arendt, bauman e arquitetura da destruição

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 ISABELLA CRISTINA DO NASCIMENTO PEREIRA RA 00097776 NA8 RESENHA    ARENDT, BAUMANN E ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO O Holocausto, segundo Zygmun Bauman, não foi um mero fracasso, e não um produto, da modernidade (1998, p.23). Para o autor, o Holocausto ocorreu a partir de elementos do funcionamento normal da sociedade, sendo uma demonstração da faceta cruel da civilização, muitas vezes oculta pela conotação positiva que o termo carrega. Da mesma maneira, a extrema racionalização burocrática e cientificidade do Holocausto levam a pensar que essa civilização moderna foi condição necessária, embora não suficiente, para sua ocorrência; a própria ideia da solução final foi resultado da busca cega pela eficiência burocrática. Bauman se utiliza do funcionalismo de Karl Schleuner para explicar a lógica da exterminação judia. Para o autor, ela não se deu como um objetivo final, mas sim um processo gradual cujo objetivo se definia ao findar de cada etapa alcançada. Assim, primeiramente, Hitler desejava um território livre de judeus, e usou do conhecimento técnico de especialistas para encontrar maneiras de concretizar seu desejo. A primeira solução foi a emigração judia; depois, com os territórios conquistados, um aterro para os judeus; depois, a tentativa de enviá-los a Madagascar; quando as conquistas se ampliaram e as ambições passaram a ser de uma Europa sob governo alemão, o extermínio físico foi a solução encontrada. As demais questões se configuravam quanto às maneiras mais racionais e eficientes de alcançar tais objetivos, sendo completamente condizente com a modernidade e seus métodos, embora por ela não tenha sido determinado. Quanto à questão moral, pode-se questionar o que teria levado os alemães a executarem tal matança, já que não possuíam desvios de caráter, mas ao mesmo tempo não se furtavam a executar os comandos de morte. A grande questão era como os alemães superaram a piedade animal nata que ia contra tais ordens. Para Herbert Kelman, as inibições morais que impediam tal comportamento poderiam ser corroídas caso três condições fossem satisfeitas. As duas primeiras seriam a autorização da violência e a desumanização das vítimas de violência. Tais se dariam pela disciplina da organização, que ao colocar tal virtude acima da responsabilidade moral faziam com que os funcionários se comprometessem a honrar suas atividades, e pela administração da SS que conseguia executar seus objetivos através de uma eficiência técnica e racionalidade que cooptava as próprias vítimas judias para sua própria

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  • ISABELLA CRISTINA DO NASCIMENTO PEREIRA RA 00097776 NA8

    RESENHA ARENDT, BAUMANN E ARQUITETURA DA DESTRUIO

    O Holocausto, segundo Zygmun Bauman, no foi um mero fracasso, e no um

    produto, da modernidade (1998, p.23). Para o autor, o Holocausto ocorreu a partir de

    elementos do funcionamento normal da sociedade, sendo uma demonstrao da

    faceta cruel da civilizao, muitas vezes oculta pela conotao positiva que o termo

    carrega. Da mesma maneira, a extrema racionalizao burocrtica e cientificidade do

    Holocausto levam a pensar que essa civilizao moderna foi condio necessria,

    embora no suficiente, para sua ocorrncia; a prpria ideia da soluo final foi

    resultado da busca cega pela eficincia burocrtica.

    Bauman se utiliza do funcionalismo de Karl Schleuner para explicar a lgica da

    exterminao judia. Para o autor, ela no se deu como um objetivo final, mas sim um

    processo gradual cujo objetivo se definia ao findar de cada etapa alcanada. Assim,

    primeiramente, Hitler desejava um territrio livre de judeus, e usou do conhecimento

    tcnico de especialistas para encontrar maneiras de concretizar seu desejo. A primeira

    soluo foi a emigrao judia; depois, com os territrios conquistados, um aterro para

    os judeus; depois, a tentativa de envi-los a Madagascar; quando as conquistas se

    ampliaram e as ambies passaram a ser de uma Europa sob governo alemo, o

    extermnio fsico foi a soluo encontrada. As demais questes se configuravam

    quanto s maneiras mais racionais e eficientes de alcanar tais objetivos, sendo

    completamente condizente com a modernidade e seus mtodos, embora por ela no

    tenha sido determinado.

    Quanto questo moral, pode-se questionar o que teria levado os alemes a

    executarem tal matana, j que no possuam desvios de carter, mas ao mesmo

    tempo no se furtavam a executar os comandos de morte. A grande questo era como

    os alemes superaram a piedade animal nata que ia contra tais ordens. Para Herbert

    Kelman, as inibies morais que impediam tal comportamento poderiam ser corrodas

    caso trs condies fossem satisfeitas. As duas primeiras seriam a autorizao da

    violncia e a desumanizao das vtimas de violncia. Tais se dariam pela disciplina da

    organizao, que ao colocar tal virtude acima da responsabilidade moral faziam com

    que os funcionrios se comprometessem a honrar suas atividades, e pela

    administrao da SS que conseguia executar seus objetivos atravs de uma eficincia

    tcnica e racionalidade que cooptava as prprias vtimas judias para sua prpria

  • destruio. A distncia fsica e/ou psquica entre as atividades burocrticas e a

    matana efetiva auxiliava na supresso dos dilemas morais que lhes seriam inerentes.

    Da mesma maneira, ao tornar as vtimas psicologicamente invisveis deixa-se de

    comprometer moralmente com suas mortes.

    A terceira condio se deu atravs da invisibilizao da prpria humanidade das

    vtimas, excluindo-as do universo da obrigao ao priv-los da participao da nao e

    da comunidade do Estado alemo. Hannah Arendt recupera os caminhos dessa

    condio de dominao e desumanizao em seu livro As Origens do Totalitarismo,

    com razes na I Guerra Mundial, ponto de inflexo na comunidade europeia pelas

    consequncias fortssimas que gerou no continente. Inflao, desemprego, guerras

    civis que geravam grandes fluxos humanos sem destino para acolh-los. Com a criao

    de diversos Estados-nao cujos limites deveriam se sobrepor, geraram-se grande

    nmero de minorias e aptridas excludas do poder, e no caso da segunda nem sequer

    eram protegidos pela lei.

    As minorias judias eram as mais significativas por no constiturem maioria em

    nenhum pas, e com o aumento do antissemitismo e dos anseios de expulso de

    minorias dos pases, passaram a configurar a maioria dos chamados aptridas,

    refugiados que no possuam uma nacionalidade e, assim, ficavam privados de

    qualquer proteo legal estatal, no se configurando como sujeitos ao Estado-nao

    onde se encontram. A perda de direitos nacionais, aqui, se tornava tambm a perda

    dos direitos humanos, expressa na expulso das pessoas de suas casas e pases natais,

    sem serem acolhidas em outras comunidades estatais, sem proteo governamental.

    Os direitos humanos, dados como naturais e inalienveis, na verdade eram

    fundamentalmente atrelados a cidadania estatal, e quem no possua a segunda

    estava excludo de qualquer direito e, assim, da condio humana; nem os tratados

    internacionais e a Liga da Nao foram capazes de garanti-los, pois despir algum de

    sua cidadania nacional, longe de garantir os direitos previstos nestas instncias, em

    verdade os privou completamente de qualquer direito. Essa foi condio precedente

    da poltica totalitria que iria atingir com fora a Europa e desembocar na II Guerra

    Mundial. E neste momento que se faz compreensvel a associao entre a arte e

    nazismo, tecida no filme Arquitetura da Destruio: deu a justificativa moral para a

    desumanizao e extermnio judeu.

    O Fhrer, pintor frustrado e aspirante a arquiteto, trouxe suas ideias para o nazismo

    de Wagner, grande compositor alemo e conhecido antissemita, e da arte clssica

  • Greco-romana. O filme revela que o princpio da arte para o nazismo era a sade,

    assim era necessrio excluir aqueles que representavam a degenerao: judeus,

    bolcheviques, ciganos, doentes mentais. Os problemas mdicos tornavam-se estticos,

    e era atravs da sade e da limpeza que a classe proletria se emanciparia da luta de

    classes. No era um acaso que os judeus frequentemente fossem comparados a ratos,

    pragas e cncer; eram os corruptores da arte e por isso, deveriam ser eliminados. O

    nazismo, assim, levava a cabo um embelezamento violento do mundo, atravs da

    desumanizao total daqueles que no se encaixavam no princpio esttico nazista.

    A desumanizao, de acordo com Bauman, questo de relacionamentos sociais,

    em que na mesma proporo em que estas so racionalizadas e tecnicamente

    aperfeioadas, tambm o so a capacidade e a eficincia de produo social da

    desumanidade (1998, p. 181). Exclui-se a vtima no apenas do ambiente fsico como

    tambm da ao social das quais os perpetuadores de sua violncia participam,

    transformando-a em objeto, com a burocracia racional maximizando esta tendncia ao

    criar uma profunda separao entre os atores e os objetos da ao. Corroborando com

    tal fala, Arendt (1989, p.329) afirma que a estratgia nazista contra os judeus foi,

    primeiramente, exclu-los de qualquer condio legal e separ-los do mundo ao

    agrup-los em guetos e campos de concentrao, e s depois de certificar-se de que

    nenhum outro pas pleiteasse por essa gente que adotaram a soluo final.

    Baumann tambm nota a tendncia do ser humano a obedincia, mesmo quando

    fatores morais deveriam ser um contrapeso a suas aes. A tecnologia tem um papel

    chave, j que o aval da sociedade quanto sobreposio da cincia pela moral permite

    que a avaliao das aes se d pela qualidade dos mtodos e de sua adequao

    regra. Constri-se uma conscincia substituta original, que rapidamente assimilada

    e ativada pela obedincia a quem comanda; o ator se torna um agente do superior

    comandante atravs da transferncia de responsabilidade de suas aes. Em uma

    cadeia de comando extensa, esta responsabilidade sempre referida como

    pertencente a um terceiro, se mostrando em verdade inatribuvel e permitindo que

    atos imorais se perpetuem. A obedincia total a uma ordem que vai contra a

    conscincia s se d quando h uma fonte monoltica de poder, a qual no possui

    resistncia ou dissonncia. Isso se d nas sociedades atravs da destruio de todo o

    pluralismo e autonomia. A polarizao tambm se mostra um fator determinante

    quando algumas pessoas recebem todo o poder sobre outras. E assim, nessas raras

    situaes extremas, que surgem o maior horror j presenciado pela humanidade.