Áreas de comércio livre e comércio intrablocos pedro pinto · tica de livre comércio nos...

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22 JANUS 2014 A GRANDE PARCERIA TRANSATLâNTICA (TTIP) é a última grande aposta em matéria de acordos comerciais: juntar as duas maiores áreas econó- micas do planeta, criando uma massa transatlân- tica de livre comércio nos produtos industriais e agrícolas, com liberdade total em matéria de investimento. A sedução que resulta dos enormes volumes en- volvidos em termos de PIB, população, inovação e dinâmicas empresariais é ainda insuflada, de forma decisiva, com a possibilidade de respon- der a uma futura hegemonia da China, marcan- do tendências e modelos em termos globais. No fundo, trata-se de criar as condições para o estabelecimento de um domínio ocidental no desenho das complexas regras a aplicar interna- cionalmente ao comércio, equilibrando uma ten- dência das últimas décadas, ainda mais inexorável neste século XXI, de transferência de gravidade do Atlântico para o Pacífico. E pressionando, as- sim, mais facilmente, o acelerar dos compromis- sos dentro da Organização Mundial do Comércio. Uma ambição que esbarra, contudo, num enor- me emaranhado de regulações e normas que importa simplificar e tornar comuns. Mas cujo novelo, a ser desfeito, pressionará de forma ina- pelável para que essas regras industriais e comer- ciais se assumam como referência incontornável, forjando claramente um padrão mundial vantajo- so para as indústrias dos dois lados do Atlântico. Para além disso, uma Zona de Comércio Livre entre as duas áreas amplifica as possibilidades de crescimento dos EUA e União Europeia: ga- nhos anuais entre 0,4% e 0,5% do PIB a partir de 2027, com a subida das exportações a poder chegar igualmente aos 2%, de acordo com as perspectivas mais comedidas. Do ponto de vista dos números, as cifras colo- cam a Transatlantic Trade and Investment Part- nership como a segunda maior Zona de Comér- cio Livre do Mundo – a maior em termos bilaterais – com mais de 800 milhões de consu- midores, líder na transacção de bens e serviços, responsável por um terço do fluxo de mercado- rias e metade das prestações de serviços realiza- das em todo o mundo. Mais dos que as barreiras, que até já são reduzi- das, mais do que a agricultura – sempre sensível nestes acordos, ainda mais com a relutância eu- ropeia às práticas americanas – é a harmoniza- ção em face das biotecnologias, dos produtos geneticamente modificados e dos complexos produtos financeiros que maiores ameaças im- põem à concretização do projecto. O objectivo de ultrapassar os obstáculos e che- gar a um acordo em Novembro deste ano parece arrojado, excessivamente ambicioso, até. Um casamento perfeito São fundamentalmente quatro as áreas em que o acordo pretende fazer a diferença: i) Tarifas – remoção de todas as barreiras para produtos industriais e produtos agrícolas, com um enquadramento especial para os produtos mais sensíveis. ii) Serviços – abrir e integrar o sector ao nível do que já foi alcançado no capítulo industrial e abrir novos mercados de interacção, como os transportes. iii) Investimento – aumentar os níveis de investi- mento e condições de liberalização já alcançados através de acordos existentes. iv) Mercados públicos – o acordo visa assegurar a remoção de quaisquer entraves discriminatórios no acesso e concorrência a serviços tutelados pe- las entidades estatais dos dois lados do Atlântico. A Parceria Transatlântica é muito mais do que um mero projecto de intenções, muitas vezes deli- neado ao sabor de pretensões políticas, rapida- mente volatilizadas pelo passar do tempo e a pressão das opiniões públicas ou o eclodir de no- vos interesses estratégicos. Neste caso, os números e a realidade como que impulsionam essa aliança, tão esmagadores se assumem quando comparados com os restantes espaços mundiais: o investimento europeu na economia norte-americana é oito vezes aquele que é feito na Índia ou na China; o investimento norte-americano na Europa é o triplo do que é canalizado para a Ásia. Os dois actores são, além de tudo mais, os gran- des pilares do comércio mundial: juntas, as duas economias representam praticamente metade do PIB mundial e assumem um terço de todos os fluxos de comércio. Em matéria de investimento, alternam como principal parceiro comercial e de investimento com todas as restantes economias do mundo. Se, do ponto de vista das mercadorias, os últimos anos têm demonstrado uma maior dinâmica da União Europeia, com uma balança crescentemente favorável para o lado europeu, a supremacia man- 1.7 • Conjuntura internacional Áreas de comércio livre e comércio intrablocos Pedro Pinto [...] as cifras colocam a Transatlantic Trade and Investment Partnership como a segunda maior Zona de Comércio Livre do Mundo – a maior em termos bilaterais [...] O top cinco de exportadores de mercadorias representa 36% das exportações mundiais, quase a mesma quota que os maiores Acordos Regionais de Comércio. Fonte: WTO, 2012. NAFTA 2.371 (mil milhões de dólares) 13% EU-27 2.167 (mil milhões de dólares) MERCOSUR 340 (mil milhões de dólares) SADC 208 (mil milhões de dólares) ASEAN 1.253 (mil milhões de dólares) 7% 12% 2% 1% Comércio e serviços UE-EUA. Fonte: Comissão Europeia. UE: Importações Comércio de bens entre UE e EUA (em mil milhões) 500 250 0 2010 2011 2012 200 100 0 2010 2011 2012 2011 0 1.600 1.200 800 400 UE: Exportações Balanço Comércio de serviços entre UE e EUA (em mil milhões) Fluxos internos Fluxos externos Balanço Investimento Directo Estrangeiro

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Page 1: Áreas de comércio livre e comércio intrablocos Pedro Pinto · tica de livre comércio nos produtos industriais e agrícolas, com liberdade total em matéria de investimento. A

22

JANUS 2014

A GrAnde PArceriA TrAnsATlânTicA (TTiP) é a última grande aposta em matéria de acordos comerciais: juntar as duas maiores áreas econó-micas do planeta, criando uma massa transatlân-tica de livre comércio nos produtos industriais e agrícolas, com liberdade total em matéria de investimento.A sedução que resulta dos enormes volumes en-volvidos em termos de PiB, população, inovação e dinâmicas empresariais é ainda insuflada, de forma decisiva, com a possibilidade de respon-der a uma futura hegemonia da china, marcan-do tendências e modelos em termos globais.no fundo, trata-se de criar as condições para o estabelecimento de um domínio ocidental no desenho das complexas regras a aplicar interna-cionalmente ao comércio, equilibrando uma ten-dência das últimas décadas, ainda mais inexorável neste século XXi, de transferência de gravidade do Atlântico para o Pacífico. e pressionando, as-sim, mais facilmente, o acelerar dos compromis-sos dentro da Organização Mundial do comércio.Uma ambição que esbarra, contudo, num enor-me emaranhado de regulações e normas que importa simplificar e tornar comuns. Mas cujo novelo, a ser desfeito, pressionará de forma ina-pelável para que essas regras industriais e comer-ciais se assumam como referência incontornável, forjando claramente um padrão mundial vantajo-so para as indústrias dos dois lados do Atlântico.

Para além disso, uma Zona de comércio livre entre as duas áreas amplifica as possibilidades de crescimento dos eUA e União europeia: ga-nhos anuais entre 0,4% e 0,5% do PiB a partir de 2027, com a subida das exportações a poder chegar igualmente aos 2%, de acordo com as perspectivas mais comedidas.do ponto de vista dos números, as cifras colo-cam a Transatlantic Trade and investment Part-nership como a segunda maior Zona de comér-cio livre do Mundo – a maior em termos bilaterais – com mais de 800 milhões de consu-midores, líder na transacção de bens e serviços, responsável por um terço do fluxo de mercado-rias e metade das prestações de serviços realiza-das em todo o mundo. Mais dos que as barreiras, que até já são reduzi-das, mais do que a agricultura – sempre sensível nestes acordos, ainda mais com a relutância eu-ropeia às práticas americanas – é a harmoniza-ção em face das biotecnologias, dos produtos geneticamente modificados e dos complexos produtos financeiros que maiores ameaças im-põem à concretização do projecto. O objectivo de ultrapassar os obstáculos e che-gar a um acordo em novembro deste ano parece arrojado, excessivamente ambicioso, até.

Um casamento perfeito

são fundamentalmente quatro as áreas em que o acordo pretende fazer a diferença: i) Tarifas – remoção de todas as barreiras para produtos industriais e produtos agrícolas, com um enquadramento especial para os produtos mais sensíveis.ii) serviços – abrir e integrar o sector ao nível do que já foi alcançado no capítulo industrial e abrir novos mercados de interacção, como os transportes.iii) investimento – aumentar os níveis de investi-mento e condições de liberalização já alcançados através de acordos existentes.

iv) Mercados públicos – o acordo visa assegurar a remoção de quaisquer entraves discriminatórios no acesso e concorrência a serviços tutelados pe-las entidades estatais dos dois lados do Atlântico.A Parceria Transatlântica é muito mais do que um mero projecto de intenções, muitas vezes deli-neado ao sabor de pretensões políticas, rapida-mente volatilizadas pelo passar do tempo e a pressão das opiniões públicas ou o eclodir de no-vos interesses estratégicos. neste caso, os números e a realidade como que impulsionam essa aliança, tão esmagadores se assumem quando comparados com os restantes espaços mundiais: o investimento europeu na economia norte-americana é oito vezes aquele que é feito na Índia ou na china; o investimento norte-americano na europa é o triplo do que é canalizado para a Ásia.

Os dois actores são, além de tudo mais, os gran-des pilares do comércio mundial: juntas, as duas economias representam praticamente metade do PiB mundial e assumem um terço de todos os fluxos de comércio. em matéria de investimento, alternam como principal parceiro comercial e de investimento com todas as restantes economias do mundo.se, do ponto de vista das mercadorias, os últimos anos têm demonstrado uma maior dinâmica da União europeia, com uma balança crescentemente favorável para o lado europeu, a supremacia man-

1.7 • Conjuntura internacional

Áreas de comércio livre e comércio intrablocos Pedro Pinto

[...] as cifras colocam a Transatlantic Trade and Investment Partnership como a segunda maior Zona de Comércio Livre do Mundo – a maior em termos bilaterais [...]

O top cinco de exportadores de mercadorias representa 36% das exportações mundiais, quasea mesma quota que os maiores Acordos Regionais de Comércio. Fonte: WTO, 2012.

NAFTA2.371

(mil milhões de dólares)

13%

EU-272.167

(mil milhões de dólares)

MERCOSUR340

(mil milhões de dólares) SADC208

(mil milhões de dólares)

ASEAN1.253

(mil milhões de dólares)7%12%

2%1%

Comércio e serviços UE-EUA.Fonte: Comissão Europeia.

UE: Importações

Comércio de bens entre UE e EUA (em mil milhões)

500

250

02010 2011 2012

200

100

02010 2011 2012

2011

0 1.6001.200800400

UE: Exportações Balanço

Comércio de serviços entre UE e EUA (em mil milhões)

Fluxos internos Fluxos externos Balanço

Investimento Directo Estrangeiro

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tém-se nos serviços e investimento, mas com me-nor relevância (ver “comércio e serviços Ue-eUA”).

Volumes de comércioe principais integrações

À margem deste ambicioso plano – numa impres-são digital muito própria do Ocidente – os ventos oriundos da Ásia continuam a soprar de feição para o comércio mundial: as trocas encetadas pe-los países da AseAn representaram 7% de todo o volume global, aproximando-se da nAFTA e da União europeia, as maiores integrações económi-cas no que respeita à dimensão comercial.Um valor ainda mais representativo, se olharmos para a distância que separa a AseAn do Mercosul, na América latina, e da sAdc, em África, respon-sáveis por apenas 2% e 1% de todas as trocas. Por outro lado, a china assume-se individualmen-te como o maior exportador mundial, respon-dendo por 11,4% de todas as exportações, supe-rando nessa corrida estados Unidos, Alemanha, Japão e Holanda. Um top cinco que ajuda a subli-nhar a ascensão da Ásia, com uma crescente apro-ximação ao continente europeu na exportação de produtos manufacturados – mais de 4,4 triliões de dólares – bem como em produtos petrolíferos e minérios. cifras que colocam a zona asiática como a mais dinâmica do globo, com um aumento de 3% de

exportações em 2012, em contraste com uma re-gressão de 2% por parte da europa, afectada pela estagnação na zona euro. como corolário, a Ásia passou a deter 38% de todo o mercado de expor-tação de mercadorias, ligeiramente atrás dos 41% registados pela europa, ainda na liderança. Já o continente africano e o Médio Oriente au-mentaram as suas exportações de produtos mine-rais e petróleo em 9% e 6%, respectivamente.O top dez dos países que mais trocas empreen-dem representa cerca de metade de todo o co-mércio mundial – 51% – sendo que cabe às eco-nomias desenvolvidas o grosso de todo esse tráfego: 42% de tudo o que é exportado tem a sua origem na produção desenvolvida pelas nações mais ricas do globo. Uma tendência que se estende ao sector dos ser-viços, cuja evolução foi decrescente em 2012, caindo 4% face ao ano anterior. Índia, União eu-ropeia, coreia do sul e estados Unidos foram os países mais afectados, ao invés do que aconteceu com o Japão, a economia que mais conseguiu va-riar positivamente a exportação de serviços. Apesar do enorme fosso entre mais desenvolvi-dos e menos avançados – sobretudo quando se olha para o Mundo como um enorme espaço co-mercial – o crescimento das exportações dos paí-ses menos intervenientes nesta massiva globaliza-ção ficou-se apenas por 1%, em 2012, valor que

contrasta com a exuberância dos Bric. na reali-dade, Brasil, rússia, Índia e china apresentaram uma trajectória ainda mais forte que a União eu-ropeia ou a nAFTA, a rondar os 4,5%.Por fim importa relevar os estados Unidos como maiores exportadores mundiais, apesar de um défice comercial de quase 5% do PiB. Um sinal de sentido contrário expresso tanto pela china, cada vez mais próxima nesta corrida a dois, como pela Alemanha que, como terceiro maior exportador global, pode gabar-se de um superavit comercial sem precedentes. n

Top 5 de exportadores de mercadorias(quota percentual no comércio mundial e principais parceiroscomerciais). Fonte: WTO, 2012.

1. China: 11,4%

0 5 10 15 20

Rep. da Coreia

Japão

EUA

2. EUA: 8,6%

0 5 10 15 20

China

México

Canadá

4. Japão: 4,5%

0 5 10 15 20

Rep. da Coreia

EUA

China

3. Alemanha: 7,8%

0 2 4 6 8 10

Países Baixos

EUA

França

5. Países Baixos: 3,7%

0 5 10 15 20 25

França

Bélgica

Alemanha

O aumento da exportação de produto manufacturados na Ásia ascendeu aos 4,4 triliões em 2012(em mil milhões de dólares americanos). Fonte: WTO, 2012.

Bens manufacturados Combustíveis e produtos de extracção mineira Produtos agrícolas

América do Norte

1.582

402

258

América do Sul

199

320

205

África

103

438

57

Médio Oriente

265

915

30

Ásia

4.419

694

384

Comunidade dos Estados Independentes

187

530

66

Europa

4.734

840

657

500 - 1.000

250 - 500

0 - 250

>1.000

Economias pelo volume do comércio de mercadorias, 2012 (em mil milhões de dólares americanos). Fonte: WTO, 2012.