araujo, valdei lopes de (a aula como desafio)

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  • 7/23/2019 ARAUJO, Valdei Lopes de (a Aula Como Desafio)

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    4 A aula como desafio

    experincia da histria

    Vaidei Lopes de Araujo

    Introduo

    No minha inteno discutir neste texto a natureza do presente em geral ou

    de nosso presente em particular nem as possibilidades contemporneas de

    uma histria do tempo presente mas a partir de um panorama de como se

    transformou o valor epistemolgico do presente no comeo dos tempos mo-

    dernos pensar os desafios pedaggicos para o enfrentamento em sala de aula

    da temporalidade em geral. No farei isso como um especialista em prtica de

    ensino de histria mas como um professor universitrio que na disciplina de

    teoria da histria precisa planejar essas tarefas em sua atividade cotidiana.

    Colocar o problema do presente nesses termos deve nos levar a questio-

    namentos em duas direes. Primeiro o que isso que podemos chamar de

    presente e como ele afeta de forma especfica nossa relao com a histria.

    Em segundo lugar como certos traos de nossa contemporaneidade exigem

    uma reformulao do modo como geralmente lidamos com o problema do

    tempo em s

    afie aula.

    Para limar R. de Mattos que fez da aula vida.

    Transformaes no valor epistemolgico do tempo presente

    Nossa co-m reenscird temporalidade avanou de forma significativa a par-

    tir da-fund mentao -do tempo na subjetividade transcendental proposta

    por Husserl. Como base de toda experincia o tempo deriva da forma como

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    Aaula como desafio experincia da histria

    nossa conscincia est estruturada, permitindo que possamos distinguir

    processos anteriores e posteriores, reteno e propenso, memria e expec-

    tativa, passado e futuro.

    O presente, como o tempo do agora, justamente esse ponto onde a ex-

    perincia se torna possvel. A partir de motivaes mais ontolgicas, Heideg-

    ger lanou as bases decisivas para uma descrio da temporalidade enquanto

    condio humana. Na segunda parte de Ser e tempo 1996), o filsofo abre a

    possibilidade para pensarmos o tempo histrico a partir de uma perspectiva

    no meramente historicista. Afirma que a experincia cotidiana do agora, em

    sua realidade quase que imediata, destacar-se-ia do ontem e do amanh, do

    que j no e do que ainda no aconteceu. No entanto, nesse instante do ago-

    ra, aparentemente autorreferido, o passado e o futuro vigorariam sob formas

    variadas: lembrana e angstia, saudade e falta, medo e esperana, incerteza

    e confiana, entre muitos outros efeitos e afetos que formam a trama do ago-

    ra. O nascimento/passado/origem e a morte/destino/futuro devem ser ento

    encarados como partes inseparveis do instante/agora. Por isso, para Heideg-

    ger, toda compreenso da histria sempre a compreenso desse espao entre

    nascimento e morte, passado e futuro, ou seja, da temporalidade.

    Todo fato s possvel por encontrar uma situao neste entre. a partir

    dessa experincia primria que a histria pode acontecer e tornar-se objeto

    de uma historiografia, de uma escrita da histria. A disposio do homem

    enquanto um ser entre nascimento e morte constitui seu carter temporal, e

    s porque o homem temporal pode haver uma histria e uma historiogra-

    fia. No a histria que constitui a temporalidade humana nem a historio-

    grafia que constituiu os fatos ou a histria, mas a temporalidade, enquanto

    condio estrutural do humano, que possibilita qualquer histria e essa con-

    dio a base sobre a qual podemos nos relacionar com o passado e o futuro

    de diferentes formas. Certamente, essa afirmao ainda no foi digerida por

    grande parte da reflexo sobre a historiografia desenvolvida ao longo do s-

    culo XX. Awiaior ? t e dosautores reduz a teoria da histria a uma simples

    epistemologia. Dessa ajmadilha no escapam mesmo aqueles que, acredi-

    tando produliwm discurso anticientfico, apenas ocupam seu oposto estru-

    tural, ou seja, a celebrao de uma subjetividade hipertrofiada. A reduo do

    problema da histria busca de equilbrio entre os poios da subjetividade e

    da objetividade romente obscurece a dimenso mais fundamental das con-

    dies ontolgiolo-existencNis-que fundamentam as diversas possibilidades

    da histria, inclusive a da sociedade cientfico-tecnolgica que naturalizou

    nossa compreenso do mundo no par metafsico sujeito/objeto.

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    Vaidei Lopes de Araujo

    Da mesma forma dizer que toda histria uma histria do presente

    uma espcie de projeo de nossos interesses sobre o passado dizer muito

    pouco embora a popularidade da frmula seja um sintoma de nosso tempo.

    Se admitirmos o carter temporalmente denso do presente ele deve ser visto

    no como uma dimenso fechada em si mesma mas como o resultado da

    prpria histria viva com a qual sempre nos relacionamos. Portanto se toda

    histria uma histria do presente todo presente inclusive nos interesses

    que pode articular o resultado de uma histria da qual no pode separar

    seno apenas formalmente suas dimenses pretritas e futuras.

    Essa pequena descrio pode nos servir de guia para entender as trans-

    formaes na relao com o tempo presente. A ideia de uma universalidade

    da natureza humana ou seja a crena de que o homem poderia ser definido

    por algum trao no histrico como ser dotado de razo ou animal poltico

    permitiu uma espcie de proximidade entre o ontem e o hoje. A distncia

    poderia se dar apenas pelo arruinamento e decadncia dos povos logo o tra-

    balho de reaproximao seria como o de uma restaurao uma redescoberta

    de si mesmo. O presente igual a qualquer outro presente passado ou futuro

    poderia ser o lugar a partir do qual nos relacionaramos com a verdade. Do

    ponto de vista historiogrfico a melhor narrativa s poderia ser a histria

    escrita no presente a histria testemunho. A passagem do tempo no afeta o

    valor dessa histria a no ser que a comunidade para a qual ela fazia sentido

    seja destruda perdendo-se assim o precioso fio da continuidade.

    O valor de verdade desse relato dependeria da posio de autoridade de

    quem o escreveu. Quando o problema da imparcialidade aparecia ele nunca

    era resolvido pela distncia temporal. As respostas poderiam ser a de assu-

    mir a posio de estrangeiro no envolvido ou a de levantar os diversos pon-

    tos de vista sobre os acontecimentos na tentativa de reconstruir uma viso

    total o oposto da viso parcial.

    Nos tempos modernos a emergncia de um novo campo de experin-

    cia da histria entendida como uma totalidade em formao acumulativa

    no tempo exigiu uma mudana quase completa na forma de se relacionar

    com o tempo presente. Por um lado ele valorizado como o tempo mais

    evoludo como naimetsfora inicial da querela dos antigos e modernos: os

    modernofodem vetnelhor no por serem superiores aos antigos mas por

    contar-6n com -sua herana so anes em ombros de gigantes. Como con-

    sequncia dessa premissa todo presente tornar-se- ultrapassado ou seja

    ser superado por um presente-futuro superior e diferente. Surge a sensao

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    A segunda concepo de presente passa a predominar com a emergncia

    do conceito moderno de histria. O presente vivido como transio mas

    ganha consistncia por estar enlaado em uma grande narrativa que parece

    N I

    produzir a certeza de que a histria ser redimida em uma espcie de rea-

    lizao ou fim da histria. Isso no quer dizer que essa viso que tendeu a

    hegemesnizar-se no encontrou as mais diversas formas de resistncia: seja

    pela realer-convivncia com modelos antigos de experincia da histria

    seja pela perda de confiana no sentido geral da histria ou mesmo nas ten-

    tativas de liberar outras histrias possveis. Lembro apenas dois grandes

    Vaidei Lopes de Araujo

    nidade. Ela s pode ganhar sentido se estiver situada em relao s demais

    pocas: moderna medieval antiga. E justamente esse consenso ou seja o

    sentido da histria humana enquanto uma totalidade que no parece estar

    mais disponvel. No significa dizer com isso que no somos mais capazes

    de produzir sentido com os acontecimentos mas que essa produo parece

    ter-se democratizado no interior das diferenas produzidas dentro e entre as

    naes. Assim os diversos setores sociais segregam suas prprias narrativas

    suas histrias-memrias fundadoras com maior ou menor grau de controle

    erudito e cientfico i s s o no fundo no importa tanto para esses setores.

    Porm no conseguimos vislumbrar mais uma meta-histria que possa con-

    ciliar as inevitveis contradies entre essas mltiplas narrativas nem muito

    menos a atividade acadmico-cientfica capaz de se constituir enquanto es-

    pao monopolizador do discurso legtimo sobre o passado. O fato de esse fe-

    nmeno no abalar a prpria legitimidade do conhecimento histrico talvez

    seja apenas um sintoma de sua perda de relevncia em termos tradicionais.

    Para resumir e de modo esquemtico o presente pode ento ser pensa-

    do como:

    1. presena: o instante para o qual constantemente convergem imagens do

    passado e do futuro. Reteno e propenso. Experincia e expectativa.

    Nessa acepo o presente o agora a simultaneidade das experincias

    assimtricas de passado e futuro.

    2. poca: um momento cujos sentido e identidade dependem de uma in-

    terpretao coesa do passado e do futuro. Seja como poca moderna

    seja como contempornea sempre pressupomos uma grande narrativa

    da histria humana. Nessa dimenso o presente ganha sentido quando

    pode ser referido histria como o lugar e o momento que fazem vin-

    gar o passado no futuro como um projeto.

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    A aula como desafio experincia da histria

    autores nessa tradio: Niezstche e Walter Benjamin. No por acaso os dois

    tornaram-se referncias constantes no debate atual que procura recolocar o

    problema do tempo, da histria e do presente.

    Na Segunda considerao intempestiva (2005), Nietzsche revoltava-

    -se contra a confiana historicista no progresso constante para melhor; esse

    excesso no condizia com a experincia de que ainda poderamos identifi-

    car no passado momentos no superveis, modelos intemporais. Nietzsche

    reintroduz, ento, o valor tico do anacronismo e, assim, outro tipo de rela-

    o com o tempo, diferente da linearidade do historicismo tardio.

    Como somos o resultado de geraes anteriores, somos tambm o resul-

    tado de suas aberraes, paixes e erros, mesmo de seus crimes; no possvel

    libertar-se totalmente dessa cadeia. Se condenamos aquelas aberraes e nos

    consideramos desobrigados em relao a elas, o fato de provirmos dela no

    afastado. O melhor que podemos fazer confrontar a natureza herdada e here-

    ditria com o nosso conhecimento, combater, por meio de uma nova disciplina

    rigorosa, o que foi trazido de muito longe e o que foi herdado, implantando um

    novo hbito, um novo instinto, uma segunda natureza (Nietzsche, 2005).

    Em suas teses sobre a histria, Benjamim propor a exploso desse con-

    tinuum temporal produzido pela narrativa histrica que ele chama de histo-

    ricista, sugerindo um uso do passado que pudesse nos liberar para o instante

    capaz de reconstruir a histria e desvi-la do curso do desastre. Essas duas

    reflexes antecipavam a crtica da modernidade e de sua ancoragem na ideia

    de continuidade, processo, identidade e orientao. Ambos duvidavam no

    s da capacidade da histria nos orientar, mas tambm da direo para a

    qual essa histria estava apontando.

    O trabalho de desvendamento terico-historiogrfico da modernidade

    realizada por autores como Arendt, Koselleck, Habermas e Foucault, entre

    outros, parece ter-nos conduzido a um momento que poderamos chamar

    de poca clssica dos tempos modernos, ou seja, a rotinizao e democra-

    tizao das formas modernas de produo de sentido e historicizao. No

    que essa rotinizao seja satisfatria, mas assinala a transformao do pro-

    blema moderno em uma tecnologia pronta a servir a qualquer interesse. Por

    isso, talvez, vemos proliferar mais do que nunca, na cultura histrica atual,

    narrativas histrico-identitrias. Quase todos os grupos, segmentos e insti-

    tuies s o c i a D f i e l l te ticoberto a frmula para a produo de iden-

    tidade, orientao e legitimao por meio de narrativas histricas. Um dos

    problemas a ser destacado que esses mesmos autores, que revelaram os

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    Valdei Lopes de Araujo

    modos de formao de sentido e subjetividade, tambm nos alertaram para

    as armadilhas dessas configuraes.

    No cenrio contemporneo, vemos duas direes opostas e complemen-

    tares. Por um lado, temos um controle social crescente das formas de pro-

    duo de sentido histrico por meio das prticas de historicizao A funo

    de orientao da histria mobilizada na legitimao dos mais diferentes

    projetos e grupos, sem que sua legitimidade possa ser questionada, mas sem

    que qualquer dessas orientaes consiga alcanar o grau de adeso e natu-

    ralidade das grandes narrativas nacionais produzidas desde o sculo XIX.

    Essa perda de orientao global tem produzido o que muitos autores, desde

    o final da dcada de 1970, caracterizaram como um alargamento do tempo

    presente em funo da perda de confiana em nossa capacidade de enfrentar

    o futuro como um projeto, como um momento histrico integrado ao passa-

    do e presente como o lugar de realizao.

    Talvez, esse esgotamento por exausto e excesso da capacidade de ar-

    ticular o passado e o futuro em uma narrativa explique o interesse crescen-

    te por uma histria do tempo presente, um esforo por tornar transparente

    algo que, para ns, j no tem o sentido estabelecido em uma cadeia que vai

    do passado ao futuro. Ao deixar de ser uma poca, o tempo presente torna-se

    um enigma ass im como o passado e o futuro.

    Temos, ento, a sensao de que talvez o futuro no seja o lugar da soma,

    da redeno do passado e do presente, mas apenas outro momento nessa

    sucesso temporal que j no sabemos aonde nos leva. Essa situao torna

    mais aguda a,percepo da finitude das coisas humanas, a perda da possibili-

    dade de transcendermos, de sobrevivermos pois tambm j no acredita-

    mos em uma estabilidade da natureza ou essncia humana. Nesse cenrio, a

    viso do presente como uma poca cede lugar a sua percepo como instante

    e presena. Essa perda da histria, dessa grande cadeia causal, nos desperta

    uma vontade de viver no passado, de torn-lo fisicamente presente por meio

    de abjetos, textosI7e7, oas, cidades e ambientes inteiros. Esse desejo um

    dos m4orest10 que tem sido chamado hoje de historiografia de presena,

    que tem em Gumbrecht um de seus principais tericos e praticantes.

    No haveria espao aqui para expor mais detidamente os aspectos des-

    sa historrafia, a bibliografia a seu respeito crescente e temos uma boa

    amostra dela mesmo eelngua portuguesa. O que farei agora tentar,

    n 11 1

    1Refiro-me aqui a Pierre Nora, Hans Ulrich Gumbrecht e Franois Hartog, mas essa percepo parece

    ter sido um fenmeno/sintoma geracional, mais do que uma descoberta intelectual.

    Ver Gumbrecht (1998, 1999, 2009, 2010a, 2010b).

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    A aula como desafio experincia da histria

    muito provisoriamente, tirar algumas consequncias e possibilidades dessa

    nova situao para a prtica em sala de aula.

    A aula como narrativa e evento; como sentido e presena

    A produo de sentido histrico por meio do recurso ao crculo hermenu-

    tico em sua constante oscilao entre parte e todo responde a uma crescente

    conscincia e mesmo, at certo ponto, uma vontade dos tempos modernos

    de se distanciar de seu passado. Essa perda do passado resolvida pela ideia

    de formao o que realmente importa conservado como uma identidade

    em formao arquetipicamente, a nao ou a subjetividade e individua-

    lidade burguesas.

    O que temos de pensar hoje o sincronismo e anacronismo como pos-

    sibilidades legtimas de relacionamento com o passado. Os alunos na uni-

    versidade ou na escola vivem em um mundo em que a abundncia de re-

    ferncias histricas em todos os campos da cultura exige novas formas de

    experincia. Reduzir essas referncias a um plano meramente diacrMco ou

    como pretexto para busca de sentido pode significar uma limitao brutal

    da riqueza experiencial desses objetos. As tecnologias de historicizao por

    produo de sentido e orientao devem conviver com outras formas de ex-

    perincia histrica. Talvez, um sintoma desse fenmeno seja o modo como

    temos acesso hoje ao legado da histria humana por meio da conjuno entre

    a imensa capacidade de armazenamento de dados e os mecanismos de recu-

    perao e seleo de informao. Vivemos a possibilidade de despragmatiza-

    o de parte significativa de nossa experincia do passado.

    A tarefa principal da historiografia como um ramo das humanidades,

    cuja relevncia parece ser atualmente maior que em qualquer outro tempo,

    continua sendo a desalienao do homem. Desalienao significa a escuta

    daquilo que compartilha conosco a conjuntura do mundo. Confrontar-se

    com essa integiidade, do ponto de vista de nossa condio temporal, signi-

    fica explorar as u1.1-1-las possibilidades de escuta que esse estado permite: a

    circunstncia do sentido que integra em projeto e a entrega ao imediatismo

    das coisas, o intemporal que nos oferecido como reverso de nossos esforos

    para dar sentido ao mund(Dito de outra forma, no podemos apenas ensi-

    nar a nossos alunos cbmo dar sentido ao mundo ou como desvelar os sentidos

    que o mundo comporta, mas tambm que eles devem estar preparados para

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    Vaidel Lopes de Araujo

    enfrentar o reverso do sentido, a tragdia, a injustia, o horror como partes

    integrantes de nossa condio. Assim, no bastam os apelos lembrana, ao

    sentido, identidade e narrativa como forma de enfretamento da condio

    traumtica de nosso tempo. Qualquer tentativa de excluir o trauma da his-

    tria humana uma forma de alienao e, como tal, contm um perigo a

    iluso de que podemos nos apropriar integralmente de nossa histria, talvez

    a maior forma de alienao, pois ignora justamente o que torna a histria

    possvel, nossa incompletude e carncia liberadora.

    Dar sentido, historicizar, destraumatizar so formas de domesticar a his-

    tria. Certamente, necessitamos dessa tecnologia para fazer histria como su-

    jeitos, mas, como em toda tecnologia, h o risco do congelamento, da iluso

    e esquecimento do carter construdo e insuficiente desses procedimentos.

    Hoje, podemos ter contato com um presente repleto de experincia histrica,

    podemos ter em nossos computadores e em nossas telas o legado humano da

    msica, das artes plsticas, das literaturas em sentido amplo o que nos

    promete, por exemplo, o Google Books e todas as outras ferramentas que se

    multiplicam no universo digital e miditico. A orientao como produto da

    experincia histrica sempre significou uma renncia, do tipo que produz a

    identidade e a direo, que indica o carter necessariamente seletivo da his-

    toriografia de sentido. Ao lado dessa historiografia, tambm podemos imagi-

    nar novas formas de representao do passado, que, sem negar as funes de

    orientao do trabalho do historiador, apontem para outras formas de desa-

    lienao, de formao. Nenhuma identidade pode nos redimir ou esgotar; a

    identidade e a orientao so necessidades do mundo da vida, mas no esgo-

    tam nossas possibilidades de lidar com o passado.

    Em sala de aula, o que pode significar tudo isso? Que, ao lado das prti-

    cas de narrativizao, significao, orientao e formao de subjetividade,

    devemos estar abertos para considerar formas de historicidade que so hoje

    mais familiares a nossos alunos do que foram para ns e que, no cenrio

    de nossa sociedade-arquivo, tornaram-se mais provveis. Ao lado de uma

    abordagem diacrnica, pensar modos anacrnicos, ecolgicos ou simultne-

    os de experimentar o legado da histria humana. Entre essas duas tecnolo-

    gias, podemos situar formas hbridas de organizao dessa experincia, nas

    quais as Tilrivnss de sintido e de presena possam ser exploradas.

    R pont de kista relao antropolgica com o tempo, Gumbrecht

    vem sempre se referindo ao desejo de eternidade que explicaria o esforo

    por transcender o nascimento em direo ao passado e a morte em direo

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    A aula como desafio experincia da histria

    ao futuro. Se, em seus primeiros ensaios, esses dois caminhos pareciam no

    completamente singularizados, pode-se observar a tendncia, em sua refle-

    xo mais recente de destacar a questo da transcendncia do nascimento das

    anlises fenomenolgicas tradicionais. Os resultados concretos dessa esco-

    lha so profundamente distintos e capazes de operar a ciso estrutural entre

    produo de sentido e produo de presena.

    Heidegger formulou muito claramente a ligao entre a antecipao da

    morte e a possibilidade do ser humano Dasein) lanar-se em projeto. O sen-

    tido dado por esse prenncio permite a concentrao temporal de passado,

    presente e futuro, que constitui a condio de possibilidade da ao e do sen-

    timento de acelerao do tempo que caracteriza a modernidade. O que no

    estava claro no Heidegger de Ser e tempo a possibilidade do contato com o

    mundo se dar no por uma deciso pelo modo de vida autntico, mas, como

    afirma Gumbrecht, pelo deixar-se levar, pela quietude e desacelerao que

    caracterizam a transcendncia do nascimento em direo ao passado. Trata-

    -se, em ambos os casos, de um processo de historicizao? No caso das nar-

    rativas historiogrficas, os objetos do passado so, sem dvida, retirados de

    suas funes pragmticas, mas reinseridos na realidade como ndices de dada

    poca histrica. Remontar a essa poca por meio desse objeto requer do leitor

    um esforo interpretativo. Trabalho totalmente diverso exige a relao com

    o objeto enquanto fragmento no simblico do passado: nesse caso, no se

    trata de produzir um sentido de distncia, mas, justamente, sua dissoluo

    pela experincia da fora do objeto, evento ou fenmeno apresentado. Essa

    constatao permitira pensar uma histria dos processos de historicizao que

    no coincidem linear e triunfalmente no crontopo conscincia histrica.

    O que garantiu o carter obrigatrio modernidade foi a promessa de

    que a entrega ao projeto significaria a realizao dos desejos de eternidade,

    seja pelas tecnologias produzidas pela cincia, seja pela identificao com

    um movimento da prpria realidade histrica, cujos limites coincidiam com

    a totalidade do real. Gum-brecht aponta, em Produo de presena, que no

    se trata somente dite repudiar ou tentar superar a modernidade gesto afinal

    to moderno , mas tambm que no se pode tomar a autoconscincia mo-

    derna como uma descrio acurada de nossa situao. Se, para os modernos,

    a histria do ocidente foi a da desmaterializao do mundo e da perda pro-

    gressiva drresistncia de suas substncias pela ao de um sujeito solar, o

    que o postulado da 3scilau.estrutural entre presena e sentido sugere que

    essa linearidade no passa de uma autoimagem parcial. A histria moderna

    no coincide com sua autoconscincia.

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    Vaidei Lopes de Araujo

    A contrapartida da democratizao das tecnologias da subjetividade

    tem sido a reduo de nossa experincia, um novo tipo de alienao. Para

    produzir sujeitos reduzimos o mundo a abjetos e produtos nem mesmo

    sabemos como garantir que o prprio sujeito no se torne uma engrenagem

    de uma mquina social eficiente, confiante na sua capacidade de substituir o

    mundo de coisas e pessoas por formas sofisticadas de representao e repro-

    duo simblicas e virtuais.

    Sem abdicar dessa tecnologia, nossa atuao em sala de aula no pode se

    reduzir a ela. , em certo sentido, assustador e revelador verificarmos que

    grande parte do discurso sobre a escola e a universidade tenha se impreg-

    nado da lgica da eficincia, da velocidade, dos modos absolutos de me-

    diatizao da relao com o mundo e com os seres humanos. A reduo do

    humano ao sujeito permite que se possa acreditar na sua completa reduo

    a um sistema de informao, a uma identidade que possa ser armazenada e

    transmitida, da mesma forma que fazemos, sem nos questionar muito, com

    o mundo transformado em objetos de cincia e produtos de consumo.

    O que gostaria de deixar como contribuio ao debate a proposta de

    pensarmos a aula enquanto momento de intensidade a contrapelo da norma-

    lizao e das tecnologias do cotidiano. Em seu sentido latino, preservado em

    muitas lnguas modernas, a palavra aula no significava apenas ou principal-

    mente uma lio dada a um pupilo, mas o lugar ou situao onde uma lio

    poderia acontecer. Assim, mesmo em portugus, a parte mais interior de um

    santurio ainda pode ser chamada de aula. No apenas ou principalmente a

    dimenso fsica de um espao para algo que est em jogo, mas o acontecer de

    uma situao. No uma situao do dia a dia, mas uma situao interior, do

    plano do religioso em seu sentido etimolgico, do refazer as ligaes entre os

    humanos e o seu mundo. Por isso, acredito que hoje seja possvel investirmos

    menos nas dimenses informativas, tecnolgicas e pragmticas da aula e mais

    em suas potencialidades ta lvez uma das ltimas situaes em nosso mundo

    em que selpossa produzir um efeito, sempre provisrio, de reintegrao.

    Esses munentos de intensidade e reintegrao podem acontecer em sala

    de aula, mav9 podem ser produzidos pelo professor ou pelo estudante; o

    que ambos podemos fazer multiplicar as condies para que a sala de aula

    se co r t a a u l a , ;;z1 evento formador no sentido pleno que a palavra

    alem ldung (formaT) sugere. Uma das formas com que Gumbrecht nos

    convida a promover essa situao apresentar, a nossos estudantes, obje-

    tos de grande complexidade, em um ambiente de baixa presso temporal.

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  • 7/23/2019 ARAUJO, Valdei Lopes de (a Aula Como Desafio)

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    A aula como desafio experincia da histria

    No lugar de transformar nossos cursos em simples continentes abarrotados

    de contedos informativos e pragmticos pr-formatados, convert-los em

    uma abertura, uma clareira no tecido carregado e congelado de significa-

    es, sujeitos e objetos produzidos em nosso cotidiano. Esses objetos de alta

    complexidade, fenmenos, no vocabulrio de Heidegger, podem ser um

    conceito, um evento histrico, um objeto de arte, um fenmeno da vida

    diria. O mais fundamental que esse foco apresente a complexidade capaz

    de produzir a situao de deslocamento e quietude que vivenciamos mais

    frequentemente quando realizamos uma experincia esttica.

    Por isso, preciso tornar nosso conceito de tempo complexo, mud-lo

    de algo externo, que podemos mensurar, dividir e consumir, para algo que

    nos constitui de modo fundamental. Esses momentos de experincia vivida

    talvez possam apontar para aqum da subjetividade e da objetividade, con-

    tribuindo para a construo no apenas de um mundo liberal habitado por

    sujeitos produtores e consumidores, mas de novas ticas capazes de fazer

    jus a uma definio do humano que no tenha que se produzir na alienao

    e perda de si mesmo e do mundo.

    Referncias bibliogrficas

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