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Senac e Educação Ambiental 45 Ano 16 n.1 janeiro/abril de 2007 Muitos equívocos relacionados ao Aqüífero Guarani decorrem da com- plexidade hidrogeológica dessa reser- va multinacional de água, definida como Sistema Aqüífero Guarani (SAG), que se estende, de forma des- contínua, por cerca de 1,2 milhão de quilômetros quadrados nos territóri- os de quatro países: Brasil, Argenti- na, Paraguai e Uruguai. O Brasil de- tém 840 mil quilômetros quadrados do megarreservatório divididos pelos seguintes estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Pau- Novos estudos começam a apontar o real potencial e limites do que é considerado “o maior mar subterrâneo de água doce do mundo”, um manancial que atravessa Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, e pode se tornar uma das principais fontes de água potável do continente Enrique Blanco lo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. De acordo com dados da Agência Nacional de Águas (ANA), o aqüífero abrange centenas de cidades brasi- leiras de médio e grande porte, dis- pondo de um volume aproveitável de água 30 vezes superior à demanda da população existente em sua área de ocorrência. Diversos órgãos governa- mentais e não-governamentais, enti- dades de classe, centros de pesqui- sa, universidades e institutos estão envolvidos em estudos e pesquisas de campo para avaliar as reais possi- bilidades desse recurso natural. O Projeto de Proteção Ambiental e De- senvolvimento Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani (PSAG) é a principal iniciativa nesse sentido e desenvolve um sistema integrado de informação e gestão com o apoio do Fundo para o Meio Ambiente do Banco Mundial, da Organização dos Estados Americanos (OEA), dos comitês de bacias hidrográ- ficas e de agências de cooperação. foto: Carlos Carvalho 90% das lagoas e rios são abasteci- dos por águas subterrâneas

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Senac e Educação Ambiental 45 Ano 16 • n.1 • janeiro/abril de 2007

Muitos equívocos relacionados aoAqüífero Guarani decorrem da com-plexidade hidrogeológica dessa reser-va multinacional de água, definidacomo Sistema Aqüífero Guarani(SAG), que se estende, de forma des-contínua, por cerca de 1,2 milhão dequilômetros quadrados nos territóri-os de quatro países: Brasil, Argenti-na, Paraguai e Uruguai. O Brasil de-tém 840 mil quilômetros quadradosdo megarreservatório divididos pelosseguintes estados: Rio Grande doSul, Santa Catarina, Paraná, São Pau-

Novos estudos começam a apontar o real potencial e limites do que é considerado “o maior marsubterrâneo de água doce do mundo”, um manancial que atravessa Brasil, Argentina, Uruguai

e Paraguai, e pode se tornar uma das principais fontes de água potável do continente

Enrique Blanco

lo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grossoe Mato Grosso do Sul.

De acordo com dados da AgênciaNacional de Águas (ANA), o aqüíferoabrange centenas de cidades brasi-leiras de médio e grande porte, dis-pondo de um volume aproveitável deágua 30 vezes superior à demanda dapopulação existente em sua área deocorrência. Diversos órgãos governa-mentais e não-governamentais, enti-dades de classe, centros de pesqui-sa, universidades e institutos estão

envolvidos em estudos e pesquisasde campo para avaliar as reais possi-bilidades desse recurso natural.

O Projeto de Proteção Ambiental e De-senvolvimento Sustentável do SistemaAqüífero Guarani (PSAG) é a principaliniciativa nesse sentido e desenvolveum sistema integrado de informação egestão com o apoio do Fundo para oMeio Ambiente do Banco Mundial, daOrganização dos Estados Americanos(OEA), dos comitês de bacias hidrográ-ficas e de agências de cooperação.

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90% das lagoas erios são abasteci-

dos por águassubterrâneas

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Iniciado há oito anos, oprojeto já passou por qua-tro fases: concepção(1999–2000), preparação(2000–2001), negocia-ção (2002–2003) e exe-cução (de 2003 até hoje).Com previsão de térmi-no no fim de 2008, o pro-jeto apresentará aos qua-tro países participantesum marco técnico, legale institucional, baseadoem informações concre-tas para a gestão integra-da, sustentável e ambi-ental do SAG.

As atividades do projeto têm sidocoordenadas, de forma conjunta, peloBrasil, Argentina, Paraguai e Uruguai,por meio de suas respectivas Secre-tarias Nacionais de Meio Ambiente.Segundo o secretário geral do PSAG,Luiz Amore, “a extensão para fins de2008 nos permitirá chegar com umacontribuição ao conhecimento cientí-fico e técnico sobre o Sistema Guara-ni absolutamente inédita. O Progra-ma de Ações Estratégicas, produto fi-nal do projeto, poderá incorporar mui-to mais informações, transformando-oem uma ferramenta muito útil à ges-tão do aqüífero pelos quatro países”.

O início das atividades do PSAG ocor-reu com a implementação de projetospiloto, localizados em quatro áreas crí-ticas (hot spots) com características di-versificadas de cada região. No Brasil,foram escolhidas as cidades de Ribei-rão Preto (SP), onde o aqüífero é a prin-cipal fonte de abastecimento da po-pulação da cidade, e Santana do Li-vramento (RS), em virtude da pouca pro-fundidade do reservatório, por ser áreade recarga e por concentrar atividadespoluentes. No Uruguai, a cidade de Ri-vera foi incluída, pois apresenta caracte-rísticas semelhantes a Santana do Livra-mento, e a cidade de Salto, por ser con-siderada área crítica e importante regiãoturística com exploração das águas ter-mais. Por esse mesmo motivo (uso geo-termal), Concórdia, na Argentina, cons-ta no plano piloto, e também a cidadeparaguaia de Itapuá, pois é importanteárea de exploração agrícola.

As Unidades Nacionais de Execuçãodo Projeto de cada país e suas res-pectivas coordenações nacionais ar-ticulam os órgãos federais e estadu-ais com as associações da sociedadecivil, institutos técnicos e científicos,universidades e organizações não-go-

vernamentais. Somente no Brasil, exis-tem 55 instituições representadas eintegradas. Essa complexa organiza-ção permite sistematizar os trabalhostécnicos e científicos, tais como cole-ta de dados, instalação de instrumen-tos de aferição e análise hidrogeológi-ca e química dos poços, definição dasáreas de recarga e descarga e análiseda potabilidade da água.

A elaboração de relatórios e estudosde caso vem consolidando informa-ções sobre as características e o po-tencial do aqüífero e fornece subsídi-os a atividades mais específicas, comoexplica o secretário de Recursos Hí-dricos do Ministério do Meio Ambi-ente, João Bosco Senra, responsávelnacional do PSAG: “Foi criado o Fun-do de Cidadania para fomentar proje-tos da sociedade civil com o tema‘Educação ambiental e divulgação dosconhecimentos sobre o Sistema Aqü-ífero Guarani’, visando à conscienti-zação sobre a proteção e o desenvol-vimento sustentável do Aqüífero.Além disso, o projeto apóia a tramita-ção da resolução do Conselho Esta-dual de Recursos Hídricos de São Pau-lo, que pretende criar áreas de restri-ção à perfuração de poços tubularesprofundos em Ribeirão Preto. Tam-bém editamos um Manual de Perfu-ração de Poços Tubulares Profundosno SAG, a fim de ordenar e controlara perfuração de poços”.

O risco deO risco deO risco deO risco deO risco decontaminaçãocontaminaçãocontaminaçãocontaminaçãocontaminação

O papel estratégico dos mananciaissubterrâneos para o sistema hídricodo país confere ao Aqüífero Guaranium lugar fundamental no desenvol-vimento socioeconômico nacional.Basta lembrar que, segundo dados do

Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística(IBGE), 51% da populaçãobrasileira capta água des-ses reservatórios subter-râneos, incluindo o aqüífe-ro.

Esse fato tem motivadomais pesquisas acerca doreal potencial do reserva-tório. Com o objetivo desistematizar os estudos,pesquisadores estão de-senvolvendo o macrozo-neamento do SAG, levan-do em conta característi-cas como o nível de pro-

fundidade do aqüífero em diferenteslocais; grau da qualidade química daságuas; potencialidade aqüífera (a ca-pacidade de vazão varia entre um mi-lhão de litros por hora até a improduti-vidade ou inacessibilidade do reser-vatório em determinadas zonas); ca-racterísticas geológicas; condiçõesgeotermais, definidas pela temperatu-ra das águas, que são aproveitadas parao turismo hidrotermal e indústrias.

A partir dos dados obtidos até agora,calcula-se que, aproximadamente,90% do aqüífero é coberto por rochasbasálticas, que mantêm as águas na-turalmente protegidas. Essa proteção,no entanto, não garante a potabilida-de da água confinada, em virtude dapresença de altos índices de sulfatose outros componentes químicos (verboxe: “Os mitos”).

Na parte menor do reservatório (cercade 10% da área), surgem as chama-das zonas de afloramento, que borde-jam o aqüífero. “Como são mais rasas,a perfuração de poços é facilitada. Emalguns casos, esses locais já foramexplorados há quase cem anos”, es-clarece o geólogo José Machado.

Tais características estimulam a per-furação desordenada de poços arte-sianos, tanto clandestinos como ca-dastrados, o que traz prejuízos ambi-entais ao aqüífero. Ao serem desati-vados, esses poços servem comodutos condutores de diversos tiposde resíduos para o interior do manan-cial. Somente no Estado de São Pau-lo, estima-se que há cerca de mil po-ços desativados. Como esse númerosó tende a aumentar, os riscos de po-luição do reservatório se ampliamconsideravelmente.

Porém, apesar desses danos locais,não existe, segundo o geólogo Erna-

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Lixo e efluentes industriaispodem contaminar o Guarani

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ni Rosa Filho, da Universidade Fede-ral do Paraná, o risco de poluição detodo o manancial: “Acreditar na con-taminação generalizada do reservató-rio mostra total desconhecimentosobre a geometria e a geologia doGuarani”, garante o geólogo. Comoboa parte das águas do SAG écompartimentada, isso impede queos resíduos se desloquem e sejamtransferidos para outras áreas do re-servatório. Além dessa barreira inter-na, algumas substâncias não conse-guem alcançar as águas subterrâneasem virtude da profundidade, ou per-dem seu potencial tóxico com a bio-degradação, fotodecomposição outermodecomposição.

No entanto, se a poluição generalizadaestá descartada, o risco de contamina-ção local é uma realidade em áreasonde o reservatório é mais suscetí-vel – áreas de pouca profundidade ede formações geológicas menos den-sas. Nessas regiões, a presença delixões, aterros químicos e sanitários,efluentes industriais e o uso intensi-vo de agrotóxicos em altas concen-trações, como nas lavouras de cana-de-açúcar, provocam danos ambien-tais ao manancial. Esse é o caso, porexemplo, de importantes cidades doEstado de São Paulo, como RibeirãoPreto e São José do Rio Preto.

O alerta consta do documento de in-trodução ao Plano Nacional de Recur-sos Hídricos: “A gravidade da conta-minação está relacionada à toxidade,persistência, quantidade e concentra-ção das substâncias que alcançam osmananciais subterrâneos”, adverte odocumento. De fato, alguns produtos

químicos são rapidamentedecompostos, mas boa par-te deles pode permanecer nomeio ambiente por até 300anos, comprometendo os re-servatórios de águas subter-râneas.

CaptaçãoCaptaçãoCaptaçãoCaptaçãoCaptaçãoexcessivaexcessivaexcessivaexcessivaexcessiva

Além da possibilidade decontaminação ambiental, outro as-pecto preocupante da perfuraçãodesordenada de poços é a captaçãoexcessiva das águas. “A demanda porágua subterrânea vem crescendosubstancialmente no Brasil, em fun-ção de as águas dos rios serem dequalidade duvidosa”, explica o pro-fessor de Geociências da Universida-de de São Paulo (USP), Aldo Rebou-ças, especialista na questão do uso eda conservação das águas subterrâ-neas no Brasil.

Em virtude da boa qualidade da águae da falta de controle por parte dopoder público, o setor privado vemrecorrendo intensamente às reservassubterrâneas, por meio de empresasperfuradoras. Segundo estudos, só noParaguai existem mais de 4.700 em-presas que oferecem esse serviço.Em relação ao Brasil, a AssociaçãoBrasileira de Águas Subterrâneas(Abas) apresenta um dado inquietan-te: entre 80% e 90% das empresasperfuradoras do Estado de São Paulosão clandestinas. O problema é que,freqüentemente, essas empresas nãoseguem padrões científicos de per-furação, ou seja, captam grandes vo-

lumes de água e não ado-tam nenhuma medida deprevenção de impactosambientais.

Aldo Rebouças confirmaque a iniciativa privada éuma das principais con-sumidoras das águassubterrâneas e, dessemodo, responsável porboa parte da perfuraçãode poços: “Apesar de as

águas subterrâneas corresponderemà segunda maior quantidade de águapotável na Terra, elas sempre foramdeixadas para a iniciativa privada, queutiliza os poços como quer, para abas-tecer hotéis de luxo, condomínios eperímetros irrigados”, constata.

No Estado de São Paulo, onde a águasubterrânea possui bom grau de po-tabilidade, há mais de 2 mil poços ati-vos localizados nas bordas do aqüífe-ro. Em toda área de ocorrência do re-servatório no país, estima-se que cer-ca de 20 mil poços tubulares estãoativos, servindo tanto ao setor priva-do como ao consumo particular: abas-tecimento de condomínios, irrigaçãoe consumo animal na agropecuária,aproveitamento geotermal nas indús-trias, hospitais, hotéis e clubes comoem Araçatuba (SP), Francisco Beltrão(PR), Chapecó (SC) e Piratuba (SC).

O principal problema dessa intensaatividade de perfuração, praticada porempresas e particulares, é o fato denão estar sendo considerada a rela-ção entre o volume extraído de águae o potencial de recarga do aqüífero,o que provoca a superexploração lo-cal do reservatório. Para evitar esseprocesso, as melhores áreas de per-furação “não deveriam possuir maisdo que 300 a 400 metros de espes-sura de basalto sobre o Guarani. Nes-sas áreas, deve-se atentar ao compro-metimento de parte do reservatório,quando é extraída mais água do queentra no reservatório como recarga doaqüífero”, explica o geólogo ErnaniRosa.

A forma como as águas vêm sendocaptadas também é uma preocupa-ção de Aldo Rebouças: “Devemosevitar que os poços no meio urbanocaptem o lençol freático, tendo umselo sanitário na boca do poço. Tam-bém deve-se evitar que os níveis debombeamento desçam muito alémde um terço da espessura da camadaaqüífera na área, a qual deverá ter fil-

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Aldo Rebouças:crítica à superexplo-ração do reservatório

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Só em SP, há mais de 2.000poços ativos sobre o reservatório

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tros em toda sua extensão”, alerta oespecialista.

Medidas como a desinfecção e o tam-ponamento dos poços desativados ea utilização do selo sanitário dos po-ços ativos (vedação do espaço entreo revestimento do poço e a parededa perfuração) são soluções técnicasque também já deveriam estar sendoutilizadas corriqueiramente.

A gestão localA gestão localA gestão localA gestão localA gestão localdas águasdas águasdas águasdas águasdas águas

As medidas implementadas em nívelnacional são fundamentais para o usocompartilhado do aqüífero, mas seuaproveitamento sustentável depen-de da gestão local das águas e doequacionamento de vários interesses.Ou seja, o gerenciamento desse ma-nancial não passa só por decisões téc-nicas, mas também políticas.

Em relação a esse último aspecto, abióloga Andréa Carestiato, membro

do Conselho Nacional de Recursos Hí-dricos e da Unidade Executiva do PSAG,alerta: “Devemos evitar o domínio deorganizações internacionais na tomadade decisão sobre o destino das águasdo Sistema Guarani. Sabemos de inú-meras ameaças que envol-vem a privatização desse re-curso para fins de sanea-mento e agricultura”.

A questão do uso do aqüí-fero para a agricultura emgrande escala tem geradodesde já muita polêmica.Como é sabido, países po-pulosos como China, Ín-dia, Paquistão e Méxicoenfrentam sérios proble-mas de abastecimento deágua. Nesse cenário, im-portar grãos brasileiros éuma forma de “importar”,por via indireta, as nossas reservasde água, pois a produção de uma to-nelada cereal consome mil toneladasde água.

“Hoje, exportamosde graça as águasdo SAG na formada soja, pois seucusto de produçãonão está contabili-zando a água ne-cessária para viabi-lizar a safra. Portan-to, os países im-portadores da nos-sa soja, por exem-plo, consomem in-diretamente nos-sas reservas hídri-cas se benefician-do e deixando paranós, em vez da tãopropalada riquezado agronegócio,todos os custosambientais e hu-manos que têmgerado inúmerasdistorções sociaise econômicas”,enfatiza AndréaCarestiato.

Com o objetivo deapoiar os interes-ses e a soberanianacional e fortale-cer o controle localem relação àságuas do Guarani,o coordenador na-cional do PSAG e

diretor de Projetos e Articulação daSecretaria de Recursos Hídricos doMinistério do Meio Ambiente, JulioThadeu Kettelhut, reforça o papel dosfacilitadores locais. Esses profissio-nais apóiam, entre outras ações, o Pla-

no de Gestão Local, alémde iniciar um processo decapacitação dos recursoshumanos.

O intuito é fortalecer osquadros de gestão exis-tentes, garantindo a inte-gração e a facilitação lo-cal das atividades relaci-onadas ao projeto pilotoe a continuidade da ges-tão local pós-projeto.“São técnicos com expe-riência específica nos as-suntos de gestão local,pública e integrada dos

recursos hídricos subterrâneos e naparticipação social nesse processo”,analisa Kettelhut.

Na mesma direção, João Bosco Senradestaca que, para a proteção e o usosustentável do SAG, os programas deeducação ambiental, a divulgação dosconhecimentos básicos adquiridos eincentivos à participação pública nagestão são ações relevantes, bemcomo a inserção do tema “águas sub-terrâneas” nos planos diretores muni-cipais e planos de bacias.

Essa estratégia também está contem-plada no Programa Nacional de ÁguasSubterrâneas, que ressalta a impor-tância da mobilização social na ges-tão das águas subterrâneas e superfi-ciais, visto que toda sociedade neces-sita da interação equilibrada dos doissistemas. A implementação dessasatividades depende da participaçãolocal, mas devem estar incorporadasàs estratégias macrorregionais. “Agestão do aqüífero é e continuarásendo local, mas, sem dúvida, tam-bém será integrada. O Programa deAções Estratégicas estabelecerá ummarco de gestão coordenado, harmo-nizando políticas hídricas e instrumen-tos de gestão entre os quatro países.Deve ser enfatizado que a Constitui-ção Brasileira define que o domíniodas águas subterrâneas pertence aosestados e, dessa forma, são estes osresponsáveis pela sua gestão no Bra-sil”, afirma João Bosco Senra.

É preciso lembrar, entretanto, queestá em análise na Comissão de Cons-tituição, Justiça e Cidadania do Sena-

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Andréa Carestiato:"Exportamos de graçaas águas do aquífero"

51% da populaçãocaptam água dos

reservatóriossubterrâneos,

incluindo o Guarani

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Pesquisas recentesapresentam novas pos-sibilidades de uso sus-tentável do reservatório

e desfazem alguns mitos,como, por exemplo, o fatode o SAG ser totalmente

transfronteiriço. Emborasuas águas sejam encontra-

das no subsolo de quatro países,com volume aproximado de 40

mil quilômetros quadrados,em alguns locais o reservató-

rio não ultrapassa as frontei-ras nacionais. A constituição

geológica do Aqüífero Guaranicompartimenta as águas em

enormes blocos, na forma de sub-reservatórios nem sempreintercomunicáveis.

Esses dados são apresentados pelo geólogo da Universidade Fede-ral do Paraná, José Machado Flores da Cunha: “As rochas que com-põem o SAG atravessam, sim, fronteiras. Entretanto, novos estu-dos têm demonstrado que, em muitos locais, suas águas não sãotransfronteiriças, como ocorre com os estados de São Paulo, MinasGerais, Goiás e Paraná. Em Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul,apenas pequenas parcelas do aqüífero poderiam apresentar um com-ponente transfronteiriço. Já entre o Uruguai e a Argentina, existeuma clara conexão entre as águas na região de fronteira”, explica.

Estudos estratigráficos mostram que as águas do reservatório es-tão contidas entre as fraturas das rochas e no interior de rochasporosas, formadas de areia e argila, que atuam como esponjas eretêm o fluxo das chuvas provenientes das áreas de recarga –locais por onde o aqüífero é reabastecido. Por isso, suas águas nãoestão distribuídas na forma de um enorme lago ou mar subterrâ-neo. “O Aqüífero Guarani não é constituído apenas por uma unida-de hidroestratigráfica, mas é um sistema que integra rochas porta-doras de água, que têm idades que somam um intervalo de maisde 100 milhões de anos. Portanto, são esperadas diferenças signi-ficativas entre as rochas que o compõem”, constata José Macha-do, em sua tese de doutorado, que investiga as características doaqüífero no Rio Grande do Sul.

Pelo fato de o SAG ocorrer de modo descontínuo e apresentarcaracterísticas próprias em cada região, seu potencial é muito vari-ável. Um aspecto extremamente importante é quanto à potabili-dade da água, pois cerca de 50% das águas do aqüífero são salo-bras, possuem altos níveis de sulfatos, flúor e sódio, ou apresen-tam grande variação de temperatura, podendo chegar até 60ºC.

Outro fator relevante é a profundidade irregular do manancial. Emalgumas regiões, há zonas de afloramento do reservatório, comono interior do Estado de São Paulo; em outras, porém, a profundi-dade varia entre 50 e 1.900 metros. Tais características inviabili-zam economicamente, nesses locais, a extração da água para aindústria, agricultura, abastecimento humano ou consumo animal.

do Federal uma Proposta de Emendaà Constituição, a PEC 43/2000, quepretende transferir a domínio daságuas subterrâneas dos estados parao governo federal, com a alegação deque não há controle do conhecimentotécnico sobre as águas subterrâneas.

Para alguns especialistas, além depoder prejudicar a gestão local do aqüí-fero, a PEC se baseia num argumentoconsiderado falho, pois estão sendodisponibilizados projetos e estudos pormeio do projeto PSAG e por diversosinstitutos de pesquisas, universidades,técnicos e pesquisadores. “No âmbitoda Câmara Técnica de Águas Subter-râneas do Conselho Nacional de Re-cursos Hídricos, houve discussõessobre o tema. A grande maioria dosrepresentantes dos estados, junto coma sociedade civil e usuários que com-põem esse conselho, foram contráriosà PEC”, admite Senra.

Paralelamente ao impasse legislativo,novos estudos estão sendo divulga-dos, e movimentos em prol do Siste-ma Guarani continuam ocorrendo.Para evitar interferências na tempera-tura e vazão dos poços termais, naárea turística de Concórdia-Salto, oPSAG estabeleceu a distância míni-ma de 2 mil metros entre perfuraçõesde novos poços. Já em Ribeirão Pre-to, Luiz Amore explica que “o Comitêde Bacia do Pardo aprovou o zonea-mento de poços em áreas completa-mente restritas, com medidas de con-trole, para evitar o aprofundamentodo cone de depressão de 60 metros,observado na zona central da cidade”,diz o secretário geral do projeto.

O arcabouço legalO arcabouço legalO arcabouço legalO arcabouço legalO arcabouço legal

A gestão das águas do reservatóriodepende, necessariamente, de pes-quisa e estudos técnicos, mas a ur-gência em definir estratégias de ge-renciamento pode comprometer aná-lises mais precisas. Como defende ogeólogo Ernani Rosa, só é possívelter um real controle público do aqüí-fero se houver um conhecimento apro-fundado de sua geometria. “Lamen-tavelmente, apenas em alguns locaisesse conhecimento existe. Falar degestão e política internacional, comoacontece atualmente, é colocar a car-roça na frente dos bois”, argumenta.

De acordo com um relatório apresen-tado em julho de 2006, na 58a Reu-nião da Sociedade Brasileira de Pro-

Aquífero Guarani

Limite da BaciaGeológica doParaná

Mapa: Publi-cação “Aqüí-fero Guarani– Uma verda-deira integra-ção dos paísesdo Mercosul(2004)”

Os mitosOs mitosOs mitosOs mitosOs mitos

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O reservatório começou a ser formado a partir da era Mesozóica (cercade 248 milhões de anos atrás), quando várias camadas de solos areno-sos e vulcânicos foram sendo sedimentadas, ao longo dos 1,2 milhão dequilômetros quadrados do aqüífero. Durante 100 milhões de anos, aconstante deposição de solos criou enormes reservatórios formadospor rochas porosas, compostas de arenito e argila, que absorviam aságuas das chuvas, dos lagos e dos rios de planícies.

Como o reservatório subterrâneo é um corpo d’água “vivo”, absorvee movimenta as águas provenientes da superfície, em imensos blo-cos de rochas argilosas e areníticas, descarrega suas “águas invisí-veis” em rios, nascentes e lagos, e mantém o ciclo das águas empermanente equilíbrio.

gresso da Ciência (SBPC), sobre otema "Aqüífero Guarani: Oportunida-des e Desafios do Grande Manancialdo Cone Sul", ainda faltam conheci-mentos mais detalhados sobre o re-servatório. O documento afirma quemuitos dos desafios em relação aoaqüífero estão diretamente relaciona-dos à falta de conhecimento das suascaracterísticas hidráulicas e hidrogeo-químicas (desafios técnico-científi-cos) e da capacidade da sociedade edos estados de se organizarem para ogerenciamento sustentável dos re-cursos do manancial (desafios insti-tucionais).

A conclusão é que a integração entrea gestão local e o conhecimento ci-entífico é o modo mais eficiente degarantir o aproveitamento racional ecompartilhado do reservatório. “Atu-almente, a melhor forma de se discu-tir o tema dos aqüíferos, em especialo Guarani, é por meio da participaçãoda sociedade civil, por meio dos co-mitês de bacia hidrográfica”, diz An-dréa Carestiato.

Mas, segundo a bióloga, a urgênciano processo de gestão executadopelo PSAG deu margem a alguns en-ganos. “O projeto teve início sem con-vidar a sociedade civil para participardesde seus primórdios e se transfor-mou num processo internacionalcomplexo na busca de entendimen-to entre os quatros países envolvidos.O Brasil está muito à frente dos ou-tros países em termos de gestão dosrecursos hídricos, e o projeto deveriater valorizado isso”, critica Andréa.

De fato, o Brasil possui uma comple-xa legislação para controlar e gerirsuas águas subterrâneas e superfici-ais. A Lei das Águas (Lei Federal 9.433de 1997) criou diversos organismosinstitucionais para dar conta dessa gi-gantesca tarefa: o Conselho Nacional

de Recursos Hídricos (CNRH), queaprovou, em março de 2006, o Pro-grama Nacional de Recursos Hídricos(PNRH), o Sistema Nacional de Ge-renciamento de Recursos Hídricos eo Programa de Águas Subterrâneas.Além dessas medidas, o governo fe-deral criou, em 2000, a Agência Naci-onal de Águas (ANA), responsável porimplementar o PNRH. Todas essasentidades estão vinculadas ao Con-selho Nacional de Meio Ambiente(Conama) e ao Ministério do MeioAmbiente. Com esses marcos insti-tucionais, a água adquiriu o estatutode bem público, sendo um direito ina-lienável e prioritário para a sobrevi-vência humana.

As águas subterrâneas são conside-radas reservas estratégicas, tanto noBrasil como no resto mundo, e issovem incentivando políticas públicasvoltadas ao seu consumo sustentá-vel, como o Programa de Águas Sub-terrâneas, elaborado em 2001, pelogoverno federal. O documento pro-põe diversas medidas de sustentabi-lidade, pois as águas contidas no sub-solo representam a parcela mais len-ta do ciclo hidrológico e a principalreserva de água disponível, pois ocor-rem em volume muito superior ao dasuperfície.

Dados do IBGE ampliam a importân-cia das “águas invisíveis” pela revela-ção de que 90% das lagoas, lagos erios brasileiros são abastecidos poresses reservatórios. Assim, ao con-trário da opinião comum, as águassubterrâneas não estão paradas, poisrecebem a carga das chuvas infiltra-

das no solo e se movimentam lenta-mente em direção às nascentes, lei-tos dos rios, lagos e oceanos (as zo-nas de descarga).

Uso sustentávelUso sustentávelUso sustentávelUso sustentávelUso sustentável

Passados oito anos de estudo siste-mático do Aqüífero Guarani, consta-ta-se que ainda há um longo caminhoa ser percorrido para que sejam defi-nidos os seus limites, suas caracte-rísticas e seu real potencial. Em virtu-de da complexidade ambiental e so-cioeconômica que envolve todos osaspectos relacionados ao manancial,seu uso não pode ser deixado à pró-pria sorte. Trata-se de um bem públi-co e, como tal, deve ser aproveitadode forma sustentável e integrada pe-los quatro países que detêm esse re-curso natural em seus subsolos.

Ainda há muitas divergências emrelação à forma como esse bemdeve ser utilizado, mas o certo é quea gestão local do aqüífero reforça aparticipação social e garante a so-berania nacional dessas águas. Damesma forma, não se pode ignorarque são fundamentais uma maiordivulgação das informações relati-vas ao manancial e um sério traba-lho de educação ambiental nas po-pulações do seu entorno. Desseesforço coletivo – que envolve téc-nicos, cientistas, lideranças políti-cas, sociais e comunitárias – de-pende a preservação de um recur-so natural tão importante comoeste, não só para as atuais comopara as próximas gerações.

Ano 16 • n.1 • janeiro/abril de 2007 50 Senac e Educação Ambiental

Como surgiu oAqüífero Guarani?

JoãoBoscoSenra: "Agestão doaquífero élocal, mastambémseráintegrada"fo

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