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Júlio Machado Vaz Aqui entre nós

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Page 1: Aqui entre nós - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Dec/aqui_entre_nos_ejfp.pdf · «O álibi», com data de 6/10/2009: «A melancolia é uma tristeza tão subtil que passa por bom senso;

Júlio Machado Vaz

Aqui entre nós

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PrefácioAs Duas Margens do Texto

Júlio Machado Vaz é um excelente comunicador, como todos bem sabemos, desde O Sexo dos Anjos na Rádio Nova, Sexualidades na RTP, Estes Difíceis Amores na RTPN, O Amor É… na Antena 1, para referir apenas alguns dos seus mais conhecidos programas, a que se acrescenta o blog Murcon, agora apresentado em textos seleccionados para o presente volume. Qual é o segredo de JMV para fidelizar audiências, seja qual for o meio que utilize para comunicar? A resposta é seguramente complexa. Sabedoria e sinceridade, simpatia e seriedade, coragem e irreverência, determinação e maleabilidade são alguns dos ingredientes desta forma de ser -estar em público, na rádio, na televisão, na imprensa, no blog. Quando JMV construiu o Murcon era previsível que motivasse a curiosidade que sempre despertam as suas intervenções públicas. O que talvez não fosse previsível é que tal blog conseguisse «prender» alguns comentado-res ao longo de anos, com a mesma fidelidade com que vão ao café tomar diariamente a bica, partindo dos textos do autor para rapidamente passarem a outros assuntos, em cascata dialogante como uma família alargada que se reúne ao serão, com amuos, exibições, provocações, cum-plicidades. O segredo desta família está na marca autoral,

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entidade simultaneamente próxima e encoberta, olhar oculto e acessível que configura uma forma sui generis de estar -em--blog, que muito dignifica o autor e seus fiéis comentadores.

Aqui entre Nós dá -nos a ler trechos de pura poesia, mas também sinais de paixões felizes ou desiludidas, como as que se referem ao «seu Benfica». Aqui lemos ainda opiniões que são lúcidas e corajosas tomadas de posição sobre a polis e seus desconcertos. Lemos o mundo real, lemos o mundo possível, lemos o mundo invisível do «medo que não passa de uma dolorosa celebração da vida». O que não impede o autor de lucidamente perguntar: «Por que raio não ajuda e basta sabê -lo?» (11/11/2010). É claro que não basta sabê -lo. É preciso combatê -lo, nem que para isso o autor tenha de se transformar em Gavroche que, por vezes, nos trava o braço e tanto pode sorrir -nos como atirar uma pedra disfarçada de risada por detrás da barricada dos seus dias de niebla portuense. Nascida no Norte, emprestada à capital, desde o final da adolescência, sinto ainda entranhada nos olhos a neblina de certos dias da Foz. Neblina que não impede a viagem, antes a torna mais cautelosa, mais pensada, mais iró-nica, como nos mostra este belo fragmento que nos desvela o porto de abrigo, não importa a minúscula que esconde a maiúscula, o importante é pôr -se em causa, pôr em causa «As amarras»: «O medo e a autopiedade são criminosos refinados. Espalham o nevoeiro sobre as águas e nós fica-mos na segurança do porto. Claro que a espera envelhece. Mas é a viagem por fazer que acaba por matar.» (5/6/2010)

A auto -ironia, que é seguramente um dos processos comunicantes mais evidentes em JMV, levou -o a baptizar o blog com um nome que na gíria portuense está longe de ser um auto -elogio. E nesse baptismo revela, desde logo, a sua

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espontaneidade, a extraordinária capacidade de rir e de se rir de si próprio. Às suas opiniões chama «ruminações» e assim as zoomorfiza, mas também super -humaniza, mostrando a demora, a fleuma do pensamento, sabendo -se, todavia, que JMV tem resposta prontamente afiada, temperada em ferroa da de humor. A sua palavra revela conhecimento pro-fundo das coisas, não raro polvilhado de algum cepticismo, sem erudição engravatada. Revela exigência íntima e hiperlu-cidez. Revela um Homem na sua humanidade, que, como disse Montaigne, «porte la forme entière de l’humaine condition».

Daquela humana condição faz parte a tonalidade melancólica do discurso, que o poetiza sem lhe retirar o húmus do circunstancial, num terreno juncado de ideias -emoções como este pequeno trecho a que chamou «O álibi», com data de 6/10/2009: «A melancolia é uma tristeza tão subtil que passa por bom senso; e nos permite continuar à varanda depois de terem levantado voo o riso das crianças e o pássaro do amor.»

Estamos em presença de um exercício de auto -ironia, bem visível na velada e subtil censura do título, a «passar por bom senso», a conjugar o verbo adiar, dito aqui como «continuar à varanda», para além de um limite razoá-vel, marcado pelo «riso das crianças» e pelo «pássaro do amor». A beleza de um pequeno trecho como este fica ainda mais nítida para quem leu Muros (1995), belíssimo e complexo romance do autor, que mereceu lúcida exegese a Paula Morão, sua primeiríssima e sagaz leitora1, que chama particularmente a atenção para a multiplicidade

1 «Algumas Rimas com Muros de Júlio Machado Vaz», JL − Jornal de Letras

Artes e Ideias, n.o 644, 21de Junho a 4 de Julho de 1995, pp. 17 -18.

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de vozes que assumem a escrita do romance, enigmático e labiríntico puzzle de que só descobrimos a saída depois de múltiplas manobras de diversão, em que nada é o que parece, ou melhor, em que ninguém é autor do que parece ser e outra é, na realidade, a complexa voz que se esconde na aparência linear das vozes.

A personagem Maria, destinatária de alguns dos mais belos trechos de Aqui entre Nós, tem, não por acaso, o mesmo nome da protagonista de Muros, onde encontramos um Pedro, arquitecto, irresolvidamente apaixonado por Maria, que, sob a inocência do nome, esconde a sua outra representação nada angelical, simbolizada no texto por uma minissaia que atormenta Pedro na angústia do ciúme da ausência, rosto do passado ambíguo, e na indecisão da presença, rosto do futuro incerto.

A personagem Maria de Aqui entre Nós pode bem ser lida como transfusão de sangue romanesco na escrita blo-guística, ex -amante, mas não ex -amada, em qualquer caso, alguém a quem se oferece «uma varanda escancarada sobre o coração», com Bergerac em fundo:

Se me exigires palavras, dar -tas-ei. Mas repara, são as dos poetas que abrigam espelhos, mortais ou lisonjeiros. As minhas só te darão uma certeza: nenhum Cyrano mas ensina. (É justo, não possuo a beleza de Christian para as emoldurar.) Posso fazer uma sugestão? Pede antes salvo--conduto para os meus olhos. De acordo, são escuros, mas as respostas moram lá. Porque uma coisa te garanto, amor: se o povo acertou, e são janelas da alma, fita -me bem e verás que os meus tentam desesperadamente oferecer -te uma varanda escancarada sobre o coração. (29/11/2009)

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A varanda associa -se à manhã, ao ritual do recomeço do dia, ao amor, em contraponto à noite, à paixão. De ambos nos fala em «Ritmo circadiano»: «A noite incen-deia a paixão. E contudo é a manhã a garantir o amor.» (28/2/2011) Como nos diz também o autor de Muros, «o amor é traiçoeiro, avança silenciosamente de pequeno nada em pequeno nada, as frases enormes só carimbam o que já existe». Não é fácil tirar o carimbo sem rasgar o papel da carta no blog. Não é fácil a escrita, não é fácil aceitar a sugestão da escrita:

Maria, Escrever?? Peço -te ombro, conselho ou terapêu-tica e tu sugeres que escreva?? Não invoques lucidez, catarse ou sublimação, é de um castigo que se trata, a escrita dói:(. E não permite os requebros da palavra dita; sobrevive, acusadora, em papel ou word. Como esta nossa correspon-dência esquizofrénica de ex -amantes e futuros conhecidos, que escapa ao alívio do delete por eu preferir o murmú-rio ténue ao silêncio atroador. E a este louco equilíbrio tu defendes que junte a ficção…? Nem pensar, minha querida, a realidade recusa -se a ceder -lhe o lugar, mesmo travestida. (12/10/2009)

A realidade recusa -se também a interromper o diálogo com esta personagem -espelho-da-escrita, que se questiona em busca de uma (im)possível resposta: «Diz -me de que palavras nasces…» e o autor -filósofo, que leu (e ruminou) L’être et le néant, responde à sua própria pergunta:

Como a Vida é um fogacho, consentido pelo Nada a que regressa, também as palavras desaguam no silêncio. Com

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uma diferença, ao menos para o não crente: a Vida precisa de si mesma para ficar, sem a memória alheia apaga -se; as palavras carregam o duro privilégio de moldarem o tipo de silêncio que delas brota. É o da intimidade que exige a mais hábil esgrima prévia… (13/10/2009)

Condenado à escolha, como afirmou Sartre, o texto escolhe a palavra que diz o silêncio da fala na intimidade, no rastro da memória que estrutura o dizer no espaço preenchido de ausência. Vida fogacho, ateado no lembrar--dizer, quer queira, quer não creia, porque a lucidez é estigma que não larga o pensamento machadiano, nem ele faz por largá -lo. Mão e luva.

A(lguma) lucidez é um vício doloroso. Aconteceu -me ao longo da vida suspirar pelas certezas de mecanismos de defesa psicológicos conseguidos. Mas lembro um dos meus professores, há mais de trinta anos: «A sublimação é um mecanismo de defesa. Socialmente aceite e útil, mas um mecanismo de defesa.» Tomaria a liberdade de alargar o conceito: a eficácia ansiolítica de um processo psicológico não impede que traduza sempre uma desesperada, ainda que inconsciente, fuga aos espelhos. Quanto a mim, prefiro tentar sobreviver -lhes…

Sobrevive, de facto e corajosamente, como confirma o trecho «Espelho polido»: «Para alguns de nós, a amargura é um apeadeiro obrigatório no caminho para a lucidez. “So be it”. A alternativa é humilhante − embaciar o espe-lho e mentir.» (20/1/2011). Retoma -se aqui o «motivo» do espelho -lúdico-lúcido-translúcido, que na escrita de JMV

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atingiu o seu mais elaborado grau em O Tempo dos Espe-lhos (2006), livro ancorado no passado e simultaneamente projectado no futuro, autoficção do presente e do que pres-sente, belíssima sinfonia tocada ao entardecer nesse lugar real e mítico chamado Cantelães, onde há agora rosas que cheiram ao perfume da Mãe. Para sempre.

Aqui se alinhavam algumas linhas de leitura, desa-linhando parágrafos para encontrar algumas veredas do prazer de ler esta escrita machadiana, que borda as pala-vras como Cyrano, que é bela como Christian. Leitura que não passa de janela aberta sobre o sentido, construindo ou diluindo a ponte entre o poético e o circunstancial, unindo as margens virtual e de papel. Imagem caleidoscópica, virtualmente multiplicada pelo espelho de papel do texto. Papel da mais fina gramagem de sentido(s), como é timbre da escrita de Júlio Machado Vaz.

Teresa Martins Marques*

* Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Aqui entre nós, aconselho teimar. A vida é ligeira, a morte lampeira, a ferrugem teimosa, às duas por três foi-se o tempo de amar. E resta o silêncio, falho de rima ou prosa. Aqui, entre nós; eternamente por deslindar…

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De quarentena

Maria,

A amarga liberdade de escrever não te escrevendo. E assim bordar a tristeza nas palavras, sem receio que calem o teu sorriso.

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Maria,

Parece que os prosadores lusos se queixam de dificuldades no que à escrita do sexo diz respeito. Problema deles, querida, não sou escritor. E por isso me atrevo a falar deste desejo que só foi obsceno enquanto secreto; e foi -o tempo de mais… O teu ventre. Ao qual não farei a injustiça de chamar liso, seria torná -lo um entre muitos. Recordo a sua doce ondulação, atravessada pela proa matreira e preguiçosa da minha língua, abandonado que foi o porto inundado da tua. Sentir esses olhos cravados no meu navegar entre bosque e montes, os dedos acariciando -me o cabelo em falso abandono, prontos a evitar que vagabundeie por países menos acesos. Descer. Exigir -te a prisão das coxas, antes de fazer desabrochar as margens desse rio, cujo caudal depende tanto do desmaio das tuas barragens como da vigília marota da minha boca. Ficar atento, sem me distanciar milímetro ou fantasia: os rins desprezando o solo, o gemido risonho, o grito abafado. Parar. O teu protesto, que esconde aprovação gulosa. De novo à estrada e aos degraus, até ao espasmo que me deixa

Intermezzo

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maravilhado por te sentir longe, longe e mais perto do que nunca. Maria, tenho a certeza de que o prazer das mulheres é o quebra -cabeças favorito de Deus.Boa noite.

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O teu sorriso… Agora posso admitir que o roubei, querida. Uma noite adormeceste com ele vestido e o meu foi -se apagando, à medida que este hoje invadia aquele na minha cabeça e o futuro se desenhava, inexorável. Era terrível, sabes? Terrível pensar que de ti apenas restariam o cheiro alucinado, as roupas não exigidas, as fotografias oficialmente rasgadas. Cerrei -te os lábios com um beijo hipócrita de boa noite e meti -o na caixa de anéis que minha Mãe te ofereceu. Saí, a coberto desse dormir profundo, feito de consciência tranquila e corpo saciado. O homem da loja das chaves partiu a lima, o joalheiro gastou a lupa, o pintor gemeu por novas cores, o poeta zangou -se com as palavras ao decretá -las de um cinzento impotente. Derrotado, entrei numa igreja. Não pedi nada, por curta fé e longo remorso – onde já se viu?, negar -Lhe a existência e exigir -Lhe cumplicidade em falsificação… O silêncio. A voz de minha santa Mãe, que nunca precisou de altares – «Abre a nossa caixa.» (Assim te abraçava mais uma vez…) E os dois sorrisos lá estavam, tão gémeos como fomos no amor e no seu luto, querida. Voltei a casa e devolvi -te um, na secreta esperança de guardar o original.

O roubo

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Que tolice!, o verdadeiro seria sempre o dos teus lábios. Que afloraram os meus, numa pergunta silenciosa que transformava o sono em crime de lesa -vida.

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Vai continuar a escrever -me. Não – vai continuar a escrever. A minha ausência é dolorosa, mas aceitável; a das palavras seria fatal. Foi com elas que me seduziu, serão elas a permitir -lhe sobreviver -nos. (Maria, não sejas hipócrita, decidiste que te seduzisse ainda antes de ele se decidir a tentar…) Vai continuar a escrever. E enquanto o fizer, pertence -me. Porque ninguém escreve sobre o Amor e sim sobre os amores. Os intelectuais diriam que Petrarca suspirava por Laura e desancava as mulheres reais. Estou -me nas tintas! Ouvi -o vezes suficientes para saber que Abelardo foi um sacana para Heloísa, Romeu e Julieta talvez se odiassem depois de uns anos de casamento, Cyrano era um cobarde que não teve a grandeza de levar o seu segredo de Polichinelo para o túmulo. Fui um público atento e deliciado das palavras, das palavras dele… mas a beleza encantatória do espectáculo não me fez levitar, a minha alma permanece com os pés bem assentes no chão – é do nosso amor que fala na sua escrita. E eu – que o deixei e não me arrependo! – em verdade vos digo: maldito seja, quando conseguir embainhar a pena.

From London with love

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Releio -me e vejo que mudei. Também eu cultivo a palavra, intérprete privilegiada que é de sentimentos, raciocínios, fantasias. Privilegiada mas insuficiente, algo se perde no processo de exteriorização, discurso ou escrita ficam sempre aquém da realidade interna. (Não falo dos poetas, que dão às palavras um mote e as deixam inventar mundo próprio em que mergulham o deles.) Porque desde a primeira letra reconheço a inevitabilidade de maior ou menor derrota, emprego -as com parcimónia e rigor, tento mantê -las a salvo da interferência das emoções. Ele é diferente, não lhes pede contas, escreve poesia envergonhada. Mas contagiosa… releio -me e vejo que mudei – por entre neurónios e papel esgueirou -se muito coração:(.

Relendo

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Não lanço ao rosto do coração o rali todo -o-terreno em que tornou a minha vida nos últimos anos. Pelo contrário, estou -lhe grata, nunca invejei os que chegam ao fim do caminho sem nódoas negras, afectivamente puros. Mas preciso de o colocar entre parênteses na escrita. Ele não o consegue nem deseja fazer, «apenas» exige ao texto que persiga a arte. Eu, que tenho uma relação bem menos íntima com as palavras, espero mais delas – uma lucidez crua, sem os véus da interpretação, do significado inconsciente, da metáfora. Sim, mais; porque ambiciono a compreensão do que me rodeia e acontece, não acreditando em revelações à la estrada de Damasco. Resta o trabalho árduo. E as palavras no papel são ferramentas indispensáveis, mesmo uma folha rasgada com desânimo traduz o esforço de aproximação às verdades dos factos, estados de alma leva -os a brisa.

A outra escrita

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Maria,

Céu aberto a um azul tão longo que se misturava com o de águas já curvas e as gaivotas em terra. Como estátuas, Pena Ventosa acima – que tormenta as perseguia? E porque se encarniçavam naquela invocação feroz do meu olhar? Maria, montavam guarda. Não viradas para fora da cidade, mas para dentro; não receosas da ira da Natureza, mas compungidas pelo desleixo dos homens. Cada uma velava, acusadora, um telhado desfeito do meu Porto. E são tantos…:(. Clandestinos; escarranchados sobre águas -furtadas que apenas adivinhávamos quando íamos pelas ruelas ao domingo de manhã; margens feridas do céu que espreitava para lá da roupa a secar; cascos esventrados fugidos para os mastros de navio macambúzio em doca seca; cicatrizes que já nem recordam o sangue esvaído. Subi a um terraço da Rua das Flores, Maria, e vi cascata em ruínas jorrar de uma Sé lívida de asco, vergonha e espera inúteis. E as lágrimas que me turvaram os olhos serviram de tiro de partida ao voo das gaivotas. Que não as confundiram com

Porto