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Apresentação

Cem anos do "Projeto"! Que projeto? O texto, os cem anos já decorridos deum projeto e aqueles a vir?

Ao debruçar-nos sobre o "Projeto" cabe ressaltar o que ele têm de muitopeculiar se bem o articulamos na série dos textos de Freud, não podemos esquecerque foi escrito para não ser lido. Houve uma decisão de não publicá-lo, e issomarca uma diferença — se está na série freudiana, também está fora dela. Eleex-siste à obra.

É um texto que questiona a temporalidade de uma série que se supõe ordenadano mundo e nos questiona enquanto leitores, exatamente, nesse ponto de fratura.

Com o que se depara o leitor do "Projeto"? Escrito em 1895 sobre fortetransferência com Fliess, articula na teoria freudiana o que é do trauma na cons-tituição da histeria; estabelece a ruptura entre a linguagem neuronal e a analítica;antecipa a interpretação dos sonhos, bem como, algo do além do princípio doprazer já, aí, se enuncia. E principalmente elabora uma estrutura a tal ponto que,a posteriori, podemos dizer ser um texto avant Ia lettre.

Há cem anos..., nos faz pensá-lo no campo da história. Emilio Rodrigué seencarrega disso com "História do Projeto". No entanto a abordagem histórica semostra insuficiente, o "Projeto" nos surpreende por ser um texto irreproduzivel,não faz série, desafia a lei do simbólico e reaparece no real.

Como texto não dado a ler produz um efeito, com três letras cp, y e a> fez-sea tentativa de escritura do real com que se defronta Freud — o real do sexo, dotrauma

Há um outro encontro com o real aqui em questão, o real do texto. Texto dedifícil leitura e que por isso mesmo exige leitores decididos.

É o que vemos na II Parte de nossa revista, possíveis leituras, pontuais, sobreo Outro primordial, a dor, o ego e a ligação, desejo proton-pseudos, erro, deautores intimados pelo "Projeto"... texto que retorna.

O texto banido pelo autor, no entanto, tal como fonte, continua vivificando aprodução da psicanálise, lançando-a a outros campos do saber. Na III Parte daRevista temos a articulação do "Projeto" em extensão como uma forma de pensara psicanálise na sua relação com os discursos existentes.

Ao final, o que está sempre de inicio, o encontro com a clínica, centrado sobreesse ponto de certeza que não engana ao sujeito — a angústia frente ao desejo doOutro.

Nosso projeto com esta revista é de convidar outros leitores decididos adebruçarem-se sobre os textos, causados na produção de uma psicanálise a vir.

EVR.S.M.P.

História do ProjetoEmílio Rodrigué

Foi nos tempos do Petromyzon.

Talvez seja questão de falar de um Freud jovem pavloviano e de um Freudmaduro freudiano; ou de um Freud neurólogo e um Freud psicólogo. Mas houveum tempo em que ambos coincidiam. Assim, em abril de 1886, quando assumea direção no serviço de neurologia da clínica Kassawitz, abre-se o período áureoneurológico. Daí saíram os brilhantes artigos sobre hemianopsia e hemiplegiainfantil, culminado, cinco anos mais tarde com a publicação do livro sobre asafasias. Este livro foi publicado em 1891, meses antes de iniciar seu primeiro casode psicoterapia pelo método catártico.

Freud tem 35 anos e acaba de mudar-se para Berggasse 19. Ele doravantepoderá falar alto como eminência em hemiplegia cerebral infantil. Confiante,transmite seus sentimentos a Fliess: "Dentro de poucas semanas dar-me-ei oprazer de enviar-lhe um pequeno livro sobre as afasias. Nele sou muito despudo-rado, teço armas com seu amigo Wernicke, com Lichthein e com Grashley, echego até arranhar o poderosíssimo Meynert"1.

Frente a hipótese "localizacionista" wernickiana, Freud opõe um aparelhofuncionando em termos de processo. Ele parte da noção da "desinvolução" deHughlings Jackson. Segundo esta teoria, os níveis mais complexos e refinados dahabilidade lingüística se perdem primeiro, enquanto que os mais primitivos sãoconservados durante um tempo maior, sendo os últimos a serem atingidos. Aquivemos pela primeira vez a proposição de um mecanismo de "regressão", processoinvolutivo que segue o caminho inverso do evolutivo. Para Hughlings Jackson oespírito humano apresentava uma série hierarquizada de níveis de funcionamento:as funções voluntárias "superiores" cobriam e dominavam as funções inferiores2.Freud assinala: "Na avaliação do aparelho da linguagem sob condições patológi-cas, adotamos como guia a doutrina de Huglings Jackson de que todos os modos

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de reação representam instâncias de uma regressão funcional de um aparelhoaltamente organizado, correspondendo então a estados prévios de seu desenvol-vimento"3.

Já nas primeiras páginas, Freud introduz o termo de Spracheapparat — "apa-relho de linguagem" — como se se tratasse de algo banal aos olhos e ouvidos daépoca. Este aparato, segundo Steingel, "é o irmão mais velho do 'aparelho psí-quico'"4. Ele pode ser descrito como uma organização hierárquica de funções comum substrato orgânico. Tomou este termo emprestado de Meynert, que acabavade falar de um Seelenapparat, "aparelho da alma". Apesar da novidade, Charcot,condiscípulo de Broca, já tinha se aproximado da noção de "aparelho de lingua-gem", ao estabelecer uma afinidade entre as teorias da linguagem e as da imagem.Apoiando-se nos estudos de Ribot, considerou que a palavra possuía quatroelementos: a imagem auditiva, a imagem visual, a imagem motora de articulaçãoe a imagem motora gráfica5. Freud privilegia a imagem acústica enquanto Charcota visual.

Freud fala duma "projeção" da periferia na massa cinzenta da própria medulaespinhal, embora provavelmente exista uma "representação" disso no córtex,baseada, porém, antes em agrupamentos funcionais que topográficos. O queprenuncia por cinco anos as idéias do "Projeto". Aqui, na discussão com Meynert,Freud desenvolve sua reflexão fundamental sobre o significado da "afasia agnós-tica", concepção sua de um distúrbio funcional da linguagem que compromete ovínculo associativo entre Dingvorstellung (representação de coisa) e Wortsvors-tellung (representação da palavra). No aparelho da linguagem a representação decoisa é aberta a novas impressões, enquanto a de palavra se mantém fechada.

Se levanta, então, o problema do normal e do patológico, já que alteraçõeslingüísticas podem ocorrer nos atos falhos do sujeito normal. O Discurso doafásico, então, passa a ser considerado como uma genuína parapraxis. Efeitos dosujeito, dirá Nassif, oitenta anos mais tarde . Afinal de contas, a linguagem é algoque se adquire e o aparelho de linguagem é algo que se constrói, "peça por peça",como paradigma de aprendizado. Momentos onde a fala começa a falar-se. Dessaforma, a problemática do discurso afásico nos coloca na trilha do discurso histé-rico. Daí que Eduardo Sande diga: "Sobre vários aspectos o texto das afasias é amais avançada tópica freudiana, principalmente no que diz respeito à este apare-lho, às associações de objeto e à representação palavra"7.

O "discurso afásico" com seus efeitos de sujeito, é concebido como distúrbiosque precisem ser corrigidos ou atenuados . "No entanto, aquilo que nesse aparelhoaparece como falha, será precisamente aquilo que vai ter as mais importantesconseqüências para o futuro teórico do aparelho de linguagem" . O "discursoafásico" não alcançou o estatuto do "discurso histérico", ainda que sua antecipaçãohoje em dia se torne evidente.

HISTÓRIA DO PROJETO 5

Essa é a pré-história do "Projeto".

O 'Projeto" é o casamento improvável de um sapo com uma borboleta Ensaiomarcado por sua própria história que lhe reservou o papel de "curinga" da psica-nálise. Grande revenant, ele nos chega na incompletude de rascunho que entra emcena meio século depois de ser escrito. Sulloway tem toda razão quando afirmaque "Não há nenhum outro texto, na história da psicanálise que tenha provocadoum corpus de discussão semelhante" . Sua importância é exagerada por uns, queencontram nele o essencial da teoria psicanalítica; minimizada por outros, que oconsideram um mero texto pré-psicanalítico11. Jones o classifica como um des-plante, melhor ainda, como a última tentação fisicalista.

O que significa, neste período do pensamento freudiano, a elaboração do"Projeto de uma Psicologia"? Para Strachey o sistema teórico aqui esboçado nãotem sexo, o que o leva a considerá-lo um "torso renegado pelo seu criador"12. Eleestá divorciado da clínica. Numa primeira leitura, ninguém diz que foi escritodepois dos "Estudos". Esse caráter ambíguo de fóssil premonitório, parece ter sidocompartilhado pelo próprio Freud que, nas cartas a Fliess, ora o apresenta comoseu mais importante e ambicioso conclave teórico, ora lhe retira todo valor. Assim,seu estado de espírito alterna do "orgulho e felicidade" à "vergonha e aflição" .

O esquema do "Projeto" anuncia a cibernética e a informática. Poderia serleitura obrigatória dos estudantes desse fascinante campo que é a InteligênciaArtificial. O âmbito ocupado pela ficção neurológica deste ensaio será posterior-mente o solo da metapsicologia; a explicação neurológica cederá o lugar a umadecifração de sentido. Nele, as intuições estão em germe e muitas noções futuras,consideradas como aquisições definitivas da psicanálise, aparecem enunciadaspela primeira vez, nesta galeria de futuras manchetes.

Uma intenção contundente anima o "Projeto", aparecendo no primeiro pará-grafo:

A finalidade deste projeto é estruturar uma psicologia que seja uma ciêncianatural: isto é, representar os proccessos psíquicos como estados quantitativa-mente determinados de partículas materiais específicas, dando assim a essesprocessos um caráter concreto inequívoco .

Profissão newtoniana de fé cientificista. Um positivismo radical depois deproduzir dois ensaios matizados como Sobre as afasias e os "Estudos sobre ahisteria". Um passo a ré no aprés coup de sua caminhada. Mas será bem assim?

Não pensado para ser publicado, o "Projeto" é, como Sulloway nos lembra,um super-rascunho, nada mais que isso. A quarta parte, até agora perdida, ficouinconclusa 15. Essa seria a cabeça que o torso precisava. Tinha a ver com apsicopatologia do recalque. Freud, em 8 de outubro de 1985, manda os doisprimeiros cadernos a Fliess, fazendo o comentário que o terceiro caderno continharealmente a chave do sistema .

6 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

As duas idéias principais em jogo são colocadas no segundo parágrafo daintrodução:

1- O que distingue a atividade do repouso é da ordem quantitativa: a quanti-dade ( 0 encontra-se submetida as leis gerais do movimento.

2- As partículas materiais em questão são os neurônios (A/)"17.

Uma quantidade, então, circula por uma rede. Nenhuma das duas idéias, emsi mesmas, constituem uma novidade . Cabanis tão cedo como em 1824 pensavaem energia circulando pelos nervos. Waldeyer, por sua vez, quatro anos antes do"Projeto", já "havia apontado o neurônio como o suporte material e a unidadefundamental do sistema nervoso"19. A originalidade emerge na articulação feitapor Freud.

Recapitulando, o aparelho psíquico está construído por três sistemas de neu-rônios. <p carrega percepção; v|/, memória e co, consciência. A percepção flui porneurônios permeáveis, isto é, não opõem resistência; a memória demanda umacaptação, uma marca, uma certa resistência neuronal. O terceiro sistema, inaugurao complexo âmbito da qualidade, próprio da consciência. Do ponto de vistaanatômico, o sistema cp corresponderia a substância cinzenta da medula espinhal,enquanto o sistema v|/ corresponderia a substância cinzenta do cérebro; o primeirotendo contato direto com o mundo externo e o segundo carecendo de ligaçõesperiféricas . O sistema co, por contraste, não teria referente anatômico. Mas aconsciência, na medida que lida com essa qualidade que são os sentimentos,estaria "localizada" no coração. Este aparato ilustra como a subjetividade seconstrói na interface do organismo com seu ambiente. Nas palavras de Lacan,"este aparelho é, essencialmente, uma topologia da subjetividade .

O aparelho psíquico no "Projeto" é fundamentalmente um aparelho de me-mória. O "ego oficial", como Freud o denomina na carta de 6 de janeiro de 1896

, seria a rede neuronal vy. A função principal do sistema co é a de passar para osistema \j/ signos de realidade ou signos de qualidade (Realitàtszeichen ou Qua-litãti szeichen). Estes signos, fornecidos pelas transformações em co, permitemaos neurônios cp distinguir percepção da lembrança. Essa função da consciênciasobre o ego é denominada de "atenção psíquica"23.

Para explicar a permeabilidade de co, Freud apela aoperíodo. Noção fliessiana"não totalmente clara", lamenta-se Strachey24. No período, se toma em conta acaracterística temporal da passagem de Qri: "Os neurônios co são incapazess dereceber Qi, mas em compensação apropriam-se aoperíodo de excitação. Estaafeição pelo período, com um mínimo de presença de Qi, modula o funciona-mento da consciência"25.

Garcia-Roza interpreta esta passagem afirmando que a "resposta de co se fazem função não de uma certa quantidade, mas de umperíodo, onde entra o fatortempo. Esta temporalidade não é reduzível a quantidade, trata-se do tempo puro,

HISTÓRIA DO PROJETO 7

de uma temporalidade descontínua ou periódica, pura qualidade"26. Período nosleva ao domínio da música. Daí que seja interessante a tese de Suzanne K. Langerque disse que os sentimentos têm uma estrutura musical.

Nessa problemática das diferenças, dos tempos, dos períodos fliessianos,Freud e Bergson, por caminhos diferentes, levantam tendas no mesmo cantofilosófico. É pela memória que o psíquico se constitui. Esta condição de pereni-dade lembra a teoria bergsoniana sobre a conservação integral do passado. Pa:*aambos o passado se conserva integralmente. O esquecimento é ativo e não passivo:"esquecemos por eficiência e não por deficiência"27. Finalmente, eles partilhama idéia do caráter seletivo da memória, concebendo esta como um contínuo fluxode material mnêmico.

Para Bergson a ciência é incapaz de pensar a memória. O método científico-dedutivo é bom para quantidades; ou seja, a extensão, a especialização das coisas.A ciência, isto é, a inteligência, dá-se bem com a matéria — ela é seu objetopróprio — mas fracassa frente ao espírito com sua dimensão temporal. O tempo,para Bergson, é a própria substância da subjetividade, entendido não como tempocronológico, que em verdade é espaço mascarado e não tempo, e sim comoduração, ou seja, como pura qualidade. A duração não é uma sucessão de instan-tes, pois neste caso não haveria senão o presente, mas um prolongamento dopassado "roendo" o futuro. O psíquico é duração, porque se trata de um tempoque é da essência da vida. Na duração pura o "passado está prenhe de um presenteabsolutamente novo". O psíquico é qualidade e liberdade, o oposto a quantidadee determinismo29.0 passado não é o presente que passou, é ele mesmo passadoque avança e aumenta sem cessar, conservando-se integralmente30.

Uma diferença importante entre Freud e Bergson está dada por essa relaçãoentre matéria e memória: entre cérebro e lembrança. No "Projeto", com sua redeneuronal, o suporte cerebral para os processos psíquicos está subentendido. EmBergson a matéria cinzenta e a subjetividade formam duas séries divergentes:matéria e memória, "A vida ascende, a matéria cai" .

O aparelho assim configurado apresenta a seguinte dificuldade: o sistema cpé responsável pela percepção, "mas Freud nos diz que o princípio de prazertambém se exerce precisamente sobre a percepção, que o processo primário visaa uma identidade de percepção. Sendo assim, como distinguir quando essa iden-tidade perceptiva se faz de uma forma alucinatória ou real? O bebê não sabedistinguir o seio real do seio alucinado, ocorrendo então uma frustração, já queele reage ao objeto alucinado como se fosse real. Trata-se do que Lacan falandodo infans, aponta como sendo o paradoxo do princípio de realidade"22. Justonesse lugar entra em ação o ego neurônico do 'Projeto", encarregado de impediro desprazer. Para dito fim, uma parte do sistema \\r se diferencia e passa adesempenhar a função de inibição do desejo, quando se trata de um objeto

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alucinado. Esse sistema é chamado de "ego". O ego é, portanto, uma formaçãodo sistema y e não do sistema "CD". Repito: O ego é o sistema \|/; a consciênciao sistema ca. o primeiro é definido da seguinte maneira: "O ego é a totalidade dascatexias y, existentes em determinado momento, nas quais cumpre diferenciaruma porção permanente e outra variável"33. Seu objetivo fundamental é dificultara passagem de Q; dito de outro modo, inibir o desejo, quando se trata do seioalucinado. Este ego neuronal não tem nada a ver com o ego da segunda tópica.Ele é uma formação particular no interior do sistema \y. Não se trata do egoentendido como sujeito, cavalgando barrado na vida, senão um dispositivo decontrole34.

A função da inibição exercida pelo ego neuronal vai levar Freud a fazer umadas contribuições mais importantes do "Projeto": a distinção entre processo pri-mário eprocesso secundário. O processo primário é pura descarga; o secundário,na demora, se desenvolve da percepção à inteligência, permitindo a escolha entrediversas vias de descarga. Como o assinala Anzieu: "Dá para ver que Freudreconhece a importância da produção teórica de Breuer: a energia livre caracteri-zando o processo primário e a energia ligada, o processo secundário" . O pro-cesso secundário resulta de uma transformação do primário. São duas etapas nadiferenciação do aparelho psíquico. O sonho é o território do processo primário;a vigília, a atenção o raciocínio e a linguagem são talentos do processo secundário.

No "Projeto" se esboça uma teoria onírica. Freud acaba de sonhar com Irmã,portanto, "os sonhos são realizações de desejo". Além disso, "as idéias oníricassão de caráter alucinatório". "Fecha-se os olhos e alucina-se; torna-se a abri-los epensa-se com palavras"36. Este caráter alucinatório antecipa a noção de regressão.Aqui continua o que foi dito nos "Estudos", mas agora só a "histeria de defesa"é reconhecida. Simplificando, à maneira de Azar Sarkis, podemos dizer que aparte dedicada à psicoterapia da histeria "repousa sobre dois pilares: o símbolo eo après coup . O processo de simbolização é descrito da seguinte maneira:

B tem certos pontos de contado com A. Acontece um evento que consiste emA+B. A representa uma circunstância acessória enquanto B possui o que énecessário para produzir um efeito duradouro. Quando uma lembrança dessefato ressurge, tudo se passa como sev4 houvesse tomado o lugar à&B. A, então,substituiB, e assume a função de símbolo38.

Freud constata empíricamente que este processo de defesa frente a represen-tação B só se realiza quando B está tingido de sexo. Para tal fim ele introduz umfragmento de análise de uma paciente chamada Emma, que não pode ser outraque Emma Eckstein, pela natureza do caso e porque o "Projeto" não estavapensado para ser publicado, um "apelido clínico" era desnecessário.

As idéias mais promissoras do "Projeto" apareceram no "Capítulo VII" dolivro dos sonhos e lá constatamos o que Freud necessitava: um dispositivo quefuncionasse como uma máquina, mas como uma máquina fictícia, um modelo

HISTÓRIA DO PROJETO 9

para armar, como diria Cortazar, sem relação com a trama neurológica. Era precisoesse artefato para o cálculo metapsicológico. Mas a empresa era prematura paraa época.

Numa recapitulação final, podemos dizer que o dispositivo está montado.Acontece que o "Engendro" sente, percebe, alucina, lembra - mas ele não fala.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. MASSON, J.M. Carta de Freud à Fliess de 2-5-91, Correspondência SigmundFreud\Wil-Ihelm Fliess, Rio, Imago, 1986, p.28.

2. JACKSON, J.H. "Evolution and dissolution oi the nervous system", 1884, em Selectdwriting of Hughlings Jackson, II, 1931, p.155-204.

3. FREUD, S. On Aphasia, Londres, 1951, p.87.4. STENCEL, E. "A re-evaluation oi Freud's book (On Aphasia). Its Significance for

psychoanalysis", Int). Psychoanal, 1954.5. ROUDINESCO, E. História da psicanálise na França. A batalha dos cem anos, I, Rio,

Zahar, 1986, p.31.6. NASSIF, J. Freud l'inconscient, 1977, p.338.7. SANDE, E. "A Metapsicologia não concluída-perdida de Freud", texto apresentado no

Espaço Moebios em setembro de 1992, Salvador, Bahia, p.4.8. NASSIF, J. Freud 1'inconsdent, 1977, p.419.9. CARCIA-ROZA, LA. Introdução a metaps/co/ogía freudiana -1, Rio, Zahar, 1991, p.66.

10. SULLOWAY, F.J. Freud, biologiste de Vesprit, Paris, Fayard, 1981, p.110.11. Paul Cranefield, por exemplo, fala de seu "efeito provisório e nefasto" (P.Granefield,

"Some problems in writing the history of psychoanalysis", Psychiatry end itshistory - Methodological problems in research, editado por G. Moria e J. Brand,1970, pg.54). Por outro lado, Wollhein vai tão longe como para concluir que oessencial da sua obra se encontra presente neste esboço teórico (R.WoIlhein.Sigmund Freud, Viking press, 1971, p.59)

12. FREUD, S. Obras Psicológicas Completas Ed. Standart, vol.l, Rio, Imago, 1977, p.393.13. FREUD, S., Anfàngen der Psychoanalyse, Londres, Imago Publishing Co., p.136.14. Ibidem, p.295.15. JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud, Rio, Imago, vol.l, 1989, p.381.16. SULLOWAY, F. Freud, biologiste de 1'esprit, op.cit., p.117.17. FREUD, S. op.cit., p.296.18. GARCIA-ROZA, L.A. introdução a metaps/cotogía freudiana - op.cit, p.79.19. Citado por GARCIA-ROZA, LA. op.cit, p.79.20. Ibidem, p.96.21. LACAN, J. L'éthique de Ia psychanalyse - Le Séminaire, livre VII, 1986, Paris, Seuil, p.51.22. Carta de Freud a Fliess de 6-1-96, Correspondência Sigmund Freud\Wilhelm Fliess,

op.cit., p.209.23. FREUD, S. op.cit. p.360-1.24. Ibidem, p.307.25. Ibidem, p.314.26. GARCIA-ROZA, L.A. op.cit. p.110.27. Impressão, traço e texto, Manuscrito, p.228. RUSSELL, B. História da Filosofia Ocidental, Brasília, Ed.Universidade de Bra., 1982,

p.347.

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29. BERGSON, H. L'évolution créatrice, 1907. La evolución créadora, Barcelona, Colmena,1912. 2 v.

30. GARCIA-ROZA, L.A. "Impressão, Traço e Texto", Manuscrito, p.3-4.31. RUSSELL, B. História da Filosofia Ociental. Brasília, ed. Universidade de Bra., III, 1982,

p.343.32. GARCIA-ROZA, L.A. O mal radical em Freud, Rio, Jorge Zahar, 1990, p.97.33. FREUD, S. Obras Completas. Op.cit. p.323.34. GARCIA-ROZA, L.A. Freud e o inconsciente, Rio, Zahar, 1988, pg 56.35. ANZIEU, D. A auto-analise de Freud e a descoberta da psicanálise, Porto Alegre, Artes

Médicas, 1989, p.64.36. FREUD, S. Obras Completas. Op.cit. p.339.37. AZAR, AMINE e SARKIS, ANTONIE, Freud, les femmes, l'amour, Paris, Z'Editions,

1993, p.64.38. FREUD, S. Obras Completas, p.349.

O Outro Primordial no ProjetoFreudianoMaria Cristina Vecino Vidal

Cem anos depois qual seria a importância do retorno ao "Projeto" (Entwwf)!Como o lemos agora? Num a-posteriori este manuscrito de 1895 traz o funda-mento da teoria psicanalítica. Freud interroga nele o modo de entrada do infansna estrutura da linguagem e seu confronto com o Outro real representado inicial-mente pela quantidade.

A preocupação de Freud é, segundo suas palavras "estruturar uma psicologiaque seja uma ciência natural, representar os processos psíquicos como estadosquantitativamente determinados"1.0 aparelho que Freud apresenta supõe umaarquitetura neuronal que possibilita a circulação de quantidades energéticas. Aquantidade vem sempre do exterior, seja do mundo externo ou do corpo próprio,existente como radicalmente alheio ao sujeito. Nessa exterioridade radical mani-festa-se o caráter intrusivo da quantidade como presença de um Outro pré-histó-rico.

A quantidade expressa o registro do inassimilável da experiência, e permiteteorizar o insuportável para o aparelho. A quantidade sem nome dá o modelo dador e do trauma. Há então uma Q inicial, insuportável mas indispensável, pois éa que impulsa o trabalho de simbolização. Ela representa um estado de tensãoinicial que força o aparelho a desenvolver sistemas simbólicos e a instaurar afunção de um juízo. A atividade judicativa tem notícias dessas quantidades, dodesconforto que produzem e indica como elas podem ser transmitidas e descar-regadas, ou seja, constitue uma diferenciação na estrutura indiferenciada dasquantidades.

Os processos primários de juízo são marcados pela predominância dos pro-cessos associativos entre a catexia desiderativa (quantidade que vem do interior)e a catexia perceptiva (quantidade que vem do exterior). Os processos secundáriosdo juízo emergem pela alteração dos processos associativos e sua função primor-dial seria o reconhecimento do objeto enquanto ausente e o adiamento da descarga

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14 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

das quantidades. Essa diferenciação no processo de juízo, deixa um resto que fogea toda articulação possível. Freud disse: "o que chamamos aí coisas são resíduossubtraídos ao juízo"2.

A judicação só é possível pela não coincidência entre o complexo desiderativoe o complexo perceptivo. Sua coincidência interromperia provisoriamente o pro-cesso de pensamento. Este é representado numa escrita minimal de três letras: a,b, c. O complexo desiderativo seria hipoteticamente a + b e a percepção a +c,sendo a, portanto o que permanece constante, a Coisa, enquanto que b é oelemento variável, que pode faltar, o atributo da Coisa e c aquele elemento que,no lugar áebéa marca da não coincidência. Dela provém o ato na tentativa deencontrar o b faltante. Freud exemplifica este processo no lactente:

suponhamos que a imagem mnêmica desejada seja a do peito materno com omamilo, visto de frente, mas a primeira percepção real obtida de dito objeto temsido uma visão lateral, sem o mamilo. A memória da criança incluirá umaexperiência adquirida casualmente ao amamentar, segundo a qual a imagemfrontal se transforma numa imagem lateral quando se realiza um determinadomovimento cefálico. A imagem lateral percebida agora conduz ao movimentoda cabeça e uma prova lhe demonstrará que este movimento deve efetuar-se nosentido inverso com o fim de obter a percepção da imagem frontal.

Freud ilustra com esse exemplo o encontro sempre faltoso do lactente com oobjeto seio, inerente a desemelhança no campo do Outro. A identidade de percep-ção que o aparelho tenta reproduzir encontra um elemento c diferente de b,impulsor da função do juízo. A Coisa, escrita com a letra a, é o constante, oinominável, que não se deixa apreender por atributo nenhum e permanece comocausa do desejo e do ato do sujeito.

A Coisa (das Ding) é o que sobra e resta à articulação simbólica dos juízosprimários e secundários. É resto, mas também funciona como causa desses pro-cessos. Está fora, mas seu destino é ser substituída no aparelho. Está no solo dasimbolização. Todo o sistema de substituição se apoia sobre das Ding que orga-niza o idêntico e o diferente.

A primeira apreensão da realidade pelo sujeito é através do que Freud deno-mina Nebenmensch = neben: próximo, mensch: homem. Seria o homem próximo,o vizinho, o semelhante. É a partir do próximo que Freud articula a função doOutro nas dimensões nomeadas a partir de Lacan: Imaginário, Simbólico e Real.Freud reconhece no complexo do semelhante uma parte muda, inassimilável quepermanece imutável: a Coisa (Das Ding). O primeiro Outro, encontra no próximoum suporte,

é dividido em duas porções, uma das quais dá impressão de ser uma estruturaconstante que persiste como Coisa, enquanto que a outra porção pode sercompreendida no início da atividade da memória, quer dizer reduzida a umainformação sobre o próprio corpo do sujeito4.

O OUTRO PRIMORDIAL NO PROJETO FREUDIANO 15

É o que o eu reconhece através de sua própria experiência, de seus própriosmovimentos. A qualidade do objeto que pode ser formulada como atributo, entrano investimento do sistema psi (y) e constitui as representações primitivas, asprimeiras Vorstellungen, a partir das quais o aparelho regula o prazer-desprazer."Das Ding é absolutamente outra coisa"5: excluída no interior do campo do Outro,ela não recebe atributos, não é predicavel. É o fora-significante na estrutura dalinguagem que inaugura uma nova topologia do sujeito. Lacan coloca a Coisa nocentro e, em volta dela, o mundo subjetivo do inconsciente, estruturado nascadeias signifícantes, mas destaca a dificuldade de sua representação topológica:"está no centro mas no sentido de estar excluída"6.

A noção de das Ding formulada por Freud no "Projeto" presentifica umadivisão constitutiva no campo do Outro e, portanto, no sujeito. Na relação com oOutro, algo no sujeito é expulso. É em torno desse primeiro exterior expulso quese orienta o encaminhamento subjetivo. O sujeito, na sua relação com a realidade,vai ao encontro do objeto que é, desde sempre, perdido. Vai a procura daquiloque é imposível de ser achado: Das Ding — o Outro absoluto — a mãe.

A lei de proibição do incesto determina a inacessibilidade da mãe. É o queestá no fundamento de das Ding. Freud designará posteriormente como interdiçãodo incesto o princípio da lei primordial, mola de todos os desenvolvimentosculturais e, ao mesmo tempo, identifica o incesto como o desejo mais fundamental,o desejo do filho pela mãe. Só há desejo porque o objeto é interditado e inatingível.O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois representaria o fim da demandae do inconsciente. A mãe ocupa o lugar da Coisa como impossível no inconscien-te.

Lacan diz no Seminário A ética da psicanálise

o passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de mostrar-nos quenão há Bem Supremo, que o Bem Supremo que édas Ding, que é a mãe, oobjeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem7.

Das Ding, lugar ao qual a mãe é chamada, não permite constituir o ideal deuma mãe completa como presença que responda as necessidades da criança. Amãe aparece sempre no lugar do Outro como falta nas três dimensões que, a partirde Lacan, podemos distinguir na experiência analítica:

- No Simbólico, como Outro da linguagem.- No Imaginário, sustentada no complexo do próximo, como semelhante.- No Real enquanto das Ding.

A mãe vem a ocupar o lugar do Outro simbólico para a criança, Outro dalinguagem que aparece, no "Projeto", em termos de intervenção do mundo exter-no, ajuda alheia chamada a socorrer a carência inicial, denominada desamparo(Hilflósigkeif). Essa intervenção constitui a ação específica. Incapaz de realizá-la

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sem ajuda exterior o organismo é compelido a inscrever-se na linguagem e, comisso, trocar suas necessidades em demanda. Ele não só recebe o alimento, recebetambém a palavra O grito tem uma função primordial nessa inscrição, por estarenlaçado desde o início com a linguagem. O grito é, em princípio, um meio dedescarga da tensão acumulada e, ao mesmo tempo, a expressão do estado dedesamparo e urgência inicial.

O Outro, representado pela mãe, escuta o grito da criança e o interpreta noseu sistema de significação. A criança escuta seu próprio grito que lhe retornacomo rudimento significante do exterior. Nesse instante, o sujeito se divide em,aquele que emite o som e aquele que recebe a notícia: "só falta um curto passopara chegar a invenção da linguagem"8. Freud destaca, no "Projeto", a função dogrito na ordem de um apelo ao Outro que possibilita a entrada do sujeito noSimbólico. O grito, que é abertura do sujeito no campo do Outro, precede aprimeira inscrição pela via da experiência de satisfação. Ela é a marca da impos-sibilidade do encontro do sujeito com o objeto. Não há primeiro encontro. Trata-sesempre de um (re)encontro pois o objeto é, desde sempre, perdido. A primeiraexperiência inscreve o sujeito no campo do desejo. Quando, ante a falta de objeto,são investidos, simultaneamente, os traços da experiência de satisfação o desejoemerge presentificando a dimensão de perda e de retorno a uma satisfação jáexperimentada.

Na dimensão imaginária situamos o lugar da mãe enquanto objeto: "esseobjeto próximo, íntimo ao sujeito, seu primeiro objeto satisfatório, seu primeiroobjeto hostil e também sua única força auxiliar"9. É no próximo que o ser humanoaprende por primeira vez a (re)conhecer. O semelhante, enquanto outro e imagem,informa ao sujeito sobre os movimentos de seu corpo próprio. Freud escreve:

dos complexos perceptivos emanados de seu semelhante serão em parte novose incomparaveis como por exemplo seus traços na esfera do visual; mas outraspercepções visuais (o movimento de suas mãos, por exemplo) coincidirão nosujeito com sua própria lembrança de impresões visuais similares emanadas dopróprio corpo, lembranças com as quais ficarão associadas outras lembrançasde movimentos experimentados por ele mesmo. Igualmente acontecerá comoutras percepções do objeto; assim por exemplo, quando este imita um grito,evocará a lembrança do próprio grito do sujeito e, decorrente disso, a de suaspróprias vivências dolorosas .

O Outro primordial está encarnado no Nebenmensch que permite a constitui-ção do infans como corpo, em especularidade à imagem do corpo do outro.

No começo o corpo próprio é o corpo do outro, a imagem do outro é a própriaimagem fundamento da identificação pela qual o "sujeito da superfície"quer sever como unidade:

o corpo do outro, lhe é tão próximo como o seu. Teria podido amá-lo da mesmaforma que a ele mesmo antes que ele fosse outro e que lhe seja tão próximocomo o seu... Pode se servir deste outro, desde então vazio, como de um espelho

O OUTRO PRIMORDIAL NO PROJETO FREUDIANO 1 7

para proteger aí a superfície que é ele mesmo para ver aí desenhar-se a Coisa,que não tem nome que poderia ser o fim do gozo .

Estas palavras de Lacan destacam que esta imagem do complexo do próximojá opera como função de separação do gozo do Outro, sendo das Ding o vazioque está no cerne de sua formação, produzindo o traço diferencial que se inscreveno Simbólico.

Na relação com o Outro há sempre uma dimensão de perda. Segundo Lacan,Freud "coloca na origem da conquista da realidade o objeto perdido, que não podeatingir, pois mesmo presente sua lembrança o situa numa outra cena". Esse restoque se perde que portanto fica excluído de toda símbolização e de todo revesti-mento imaginário é o das Ding que, no "Projeto", representaria o Outro absoluto,aproximando a dimensão real enquanto impossível.

Freud escreve no "Projeto" e na correspondência à Fliess um aparelho des-provido de qualquer referência psicológica, portanto, no limite, o texto não é paraser lido. Foi precisamente com esta escritura que Freud apresentou a funçãoprimordial do Outro pré-histórico, inigualável, que antecede ao sujeito comofunção do desejo. Esse Outro primordial não só oferece sua face de luz com seustraços distintivos mas sua face de sombra onde se prefigura o lugar de uma falta.

O nó que Lacan constitui com os três registros não só orientam a leitura deFreud, mas permite revelar no texto, a função de um Outro heterogêneo primordialna constituição do sujeito. No entanto, Lacan salienta que no texto freudiano nãohá nada que faça supor a existência do nó borromeano.

Os psicanalistas que se ocuparam da criança produziram uma ocultação dolugar do Outro como falta preenchendo-o com a mitologia da relação mãe-filho.O nascimento do sujeito é uma subtração operada no campo do simbólico. O Outrobarrado pelo significante, que separa o sujeito do gozo, indica a não complemen-tação possível entre o recém nascido e sua mãe. A criança representa parte dafalta do Outro que ela nunca chegará a preencher. A Coisa é o vazio na imagemque nunca poderá reencontrar.

O Outro primordial é o lugar da subtração e o advento do sujeito na dimensãoda linguagem repete a perda originária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos" in Obras Completas, v.XXII,Buenos Aires, Santiago Rueda, 1956, p.378.

2. Ibidem, p.410.3. Ibidem, p.411.4. Ibidem, p.413.5. LACAN, J., A ética da psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1986, p.68.

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6. Ibidem, p.91.7. Ibidem, p.908. FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos", op.cit, p.438.9. Ibidem, p.413.

10. Ibidem, p.41311. LACAN, )., Conference a l'Évolution Psychiatrique te 23.7.7962: "De ce que J'enseig-

ne", in Petits Ecrits et Conferences. p.586.12. Ibidem, p.588.

Sobre a Experiência de DorMaria Lessa de Barros Barreto

A idéia em torno da qual gira este trabalho é que, exatamente como Freudcoloca no "Projeto", a experiência de dor faz parte da estrutura e merece estatutoda mesma importância ao da experiência de satisfação.

A primeira parte reflete o particularismo da experiência, a partir do ouvido-vivido na clínica, na Psicanálise, e se apresenta como uma reflexão sobre a dor.É mesmo uma questão de refletir, de espelho, na media em que é o "estágio doespelho que dá a regra de partição/separação entre o imaginário e o simbólico"1.A função imaginária é a que "preside ao investimento do objeto enquanto narcí-sico" . E o simbólico é o "inconsciente enquanto discurso do Outro (A), onde osujeito recebe, sob forma invertida sua própria mensagem" . O real surgirá en-quanto traumático — presença pulsional da dor, incomodando o sujeito.

A segunda parte é a palavra de Freud no que diz respeito à dor, mas enquanto"além do princípio do prazer" e "masoquismo".

1.A dor é a melancolia do organismo, um chorar silencioso do corpo, resultado

da incidência do real da separação. O que resta, o que fica da separação. Presençade das Ding enquanto o irrepresentável, o impossível de dizer, apontando aoobjeto a de um Real que se impõe. Que se impõe sobre o Imaginário, visível napassagem do esquema L para o esquema R.

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Marca da passagem do analista da posição de "morto, seja por seu silêncioonde é o Outro (A), seja anulando sua própria resistência onde é o outro (a) —sob as incidências respectivas do simbólico e do imaginário"6 para a posição deobjeto a, onde não é mais o outro, mas o lugar do Real enquanto implicado naconstrução fantasmática do sujeito em análise.

A dor, avanço real, seria ainda uma afecção, uma inflamação narcisistaimpedindo o esquecimento e mantendo a lembrança. Mantendo "o que não querou não pode ser esquecido" presente, aceso. Conservação então de certas situaçõesvivenciadas, de posições investidas anteriormente — mandatos, vínculos que nãose pode e/ou não se quer largar e/ou deixar para trás. Representando o que não sequer perder. Gozo vivido, gozo do vivo, que resiste à imposição de uma barra.Corte Real no Imaginário do corpo, esquivando-se ao campo Simbólico. AvançoReal cortando o Imaginário, ainda fugindo do Simbólico, mas já impossível deser evitado.

Além da distração - prestar atenção em outra coisa — quando é possível, istoé, no caso da dor ir até um certo limite, e da sedação — por medicamentos e/oudrogas — quando a dor ultrapassa este limite, porque é tão difícil encontrar outrosmeios de estancar a dor? Por que a dor está sempre escapando ao nosso alcance?Por que tanta dificuldade de se atacar a dor de frente, com todas as nossas forças?O que faz a dor permanecer? E, quando conseguimos saná-la, por que é tãorecorrente?

O trabalho da dor é um longo trabalho para a análise. Se podemos suavizá-lapor um momento ou mesmo dela nos distanciar, o seu retorno, sua repetição pareceindicar que estamos lidando com uma "maneira de ser" do organismo, estruturaque diz algo para além da possível compreensão, para além do entendimento.

A presença da dor representa a vida, enquanto força pulsional, mas tambéma morte — como se apontasse de forma crua para o limite da vida, portantocastração advinda do Real.

Se a dor acompanha, temos que saber viver com ela sem que ela nos domine.Porque a dor tem força suficiente para nos matar em vida, nos tornando mortos-vivos. Então, estrategicamente, temos que fazer da dor, se dela não podemosescapar, uma forma, mesmo paradoxal, da vida nos ensinar. "A dor deixa trilha-mentos (Bahnungen) permanentes atrás de si" , nos diz Freud no "Projeto". A dorenquanto trilhamento é manifestação da pulsão sexual, mas também da pulsão demorte. Caminho necessário do possível no campo do impossível. Nosso "instintoassassino" porque a dor é assassina, como qualquer caminho, como Édipo nosensinou. Nosso querer insistente em nos matar e também em matar algo em nós.Só assim produzindo alternativas, criando veredas em meio obscuro, desconheci-do. Muitas vezes levando ao erro, poucas vezes acertando.

SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DOR 21

A dor, repete Freud em "Além do princípio do prazer", "impede a neurose"8

e, consequentemente, alguma elaboração possível para o indivíduo. A dor "blo-queia" a angústia no sentido de ser um sofrer concreto do organismo, presençanão do objeto a, mas presença da ferida aberta de um qualquer objeto arrancadosem anestesia. Quase como um corte no perverso. Talvez uma separação do Outroperverso. E, a partir daí, resistência ao trabalho de luto por esta perda. Mas a doré inibição, enquanto um não poder dizer, uma mudez desesperada. E sintomacomo expressão de que algo não funciona, não está dando certo. Num mais alémda conta, "do que se pode contar".

iAmarração do Real enlaçando os três registros, e portanto presença de nó.

Momento nodal contingente onde o indivíduo está frente a decisão de ir ou nãoadiante. Problema crucial da análise em que o recuso ao acting-out é freqüente,quando não se passa ao ato precipitadamente. Zona de perigo, em que todo umtrabalho anterior pode ser desconsiderado. E cuja conclusão dependerá de comolidar com este nó.

Cioran fala da "experiência da fatalidade", de uma "hierarquia de perplexida-des", do "horror de ser apenas uma alma dentro de" um organismo que vaienvelhecendo depressa9.

A dor expressa arrependimento, remorso e sentimento de culpa. Sinal que"desmascara a irrealidade do mundo exterior.9"

O corpo, invólucro do real, abriga o grito do indivíduo frente a este real. Estegrito é a dor.

2.Em "Além do princípio do prazer", Freud diz que "existe na alma uma forte

tendência no sentido do princípio de prazer, embora esta tendência seja contrariadapor forças e circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem semprese mostre em harmonia com esta tendência"10. Que "as pulsões sexuais são difíceisde 'educar', e que partindo dessas pulsões, ou do próprio eu, o princípio do prazercom freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento doorganismo como um todo"1 *. E que "há um processo pelo qual o recalque trans-forma uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer"12.

O fato é que "não se pode recordar a totalidade do que se acha recalcado, eo que não se é possível recordar, se é obrigado a repetir como se fosse umaexperiência contemporânea"13.0 indivíduo é então obrigado "a reexperimentaralguma parte esquecida de sua vida"14. É a 'compulsão à repetição' "que deve seratribuída ao recalcado inconsciente e que busca evitar o desprazer que seriaproduzido pela liberação do recalcado. O esforço é no sentido de conseguir atolerância do desprazer pôr um apelo de realidade" .

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A dor seria justamente um anteparo a esta situação. Em sofrimento, o indiví-duo está incapaz de suportar o desprazer que permitiria o caminho no sentido doprincípio de realidade. O Real — como tantas vezes — se apresenta antes daquestão. A dor 'literalmente' incapacita o indivíduo de andar em direção aodesprazer da recordação, de sua elaboração.

Voltando ao texto freudiano, aprendemos que a "vida sexual infantil estácondenada à extinção." E que isso se dá em "aflitivas circunstâncias e comacompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda do amor e o fracassodeixam atrás de si um 'dano permanente' à auto-consideração, sob a forma deuma 'cicatriz narcisista'. São repetidas situações indesejadas e emoções penosasde desprezo, ciúme, etc. Experiências repetidas sob a pressão da compulsão,muitas vezes junto à negação de um comportamento ativo por parte do indivíduo,que não cessa de afirmar sua inocência".

Desde o "Projeto", Freud vem colocando que são "traumáticas quaisquerexcitações provindas do exterior que sejam 'significantemente' poderosas paraatravessar o escudo protetor da vesícula viva. O conceito de trauma implica umaruptura numa barreira protetora, sob outros aspectos, eficaz contra os estímulos."Frente ao trauma são colocadas "em movimento todas as medidas defensivas'possíveis'. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente postofora de ação. Surge o problema de dominar estas quantidades que irromperam, evinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar.

"O desprazer específico do "sofrimento físico" provavelmente resulta de queo escudo protetor tenha sido atravessado numa área limitada. Todos os outrossistemas são empobrecidos, de maneira que as funções psíquicas remanescentessão grandemente paralisadas ou reduzidas. O sistema deve ser capaz de receberum influxo adicional de energia nova e convertê-la em investimento em repouso,isto é, de vinculá-lo psiquicamente." Dependendo desta capacidade, graves podemser "as conseqüências da ruptura no escudo protetor contra estímulos. Estamosfrente ao 'caráter paralisante do sofrimento' e o empobrecimento de todos osoutros sistemas"17.

Mais adiante, Freud faz uma articulação muito importante entre dor e neurose."Um grande dano físico causado simultaneamente pelo trauma diminui as possi-bilidades de que uma neurose se desenvolva. A "falta de preparação para aangústia" tem um efeito traumático; e o dano físico simultâneo, exige um hiper-investimento narcisista do órgão prejudicado. É sabido que distúrbios graves nadistribuição da libido, tal como a melancolia, são temporariamente interrompidospor uma moléstia orgânica intercorrente"1 . Quer dizer, a dor impede a neurose.A dor bloqueia a neurose que, como já frisamos acima, não deixa de ser umapossibilidade de elaboração. Com dor, o indivíduo fica paralisado; com neurose,pode até fazer análise.

SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DOR 23

Quase no final do texto — ainda "Além do princípio do prazer" — Freud fazuma observação importante sobre o recalque. "Aquilo que numa minoria deindivíduos humanos parece ser um impulso incansável no sentido de maior per-feição, pode ser facilmente compreendido como resultado do 'recalque pulsional'em que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana - (realizaçãointelectual, sublimação ética, etc.)" 9. Então perguntamos: seria a dor uma difi-culdade, uma falha neste recalque? Seria a dor uma expressão não-elaborada,não-sublimada do mal estar na civilização?

2.1Instados pelo "Projeto" para falar da dor, gostaríamos ainda de nos referir a

outro texto "O problema econômico do masoquismo".

Entendemos que a dor seria um masoquismo da carne, masoquismo não-sim-bolizado, exibição silenciosa ou mesmo ruidosa do masoquismo. A dor que nãopassa é confirmação de que o grito, o masoquismo são estruturantes. Paradoxal-mente, concordância e manifestação de revolta da estrutura. Indicação precisa dospontos erogeneizados pela história do sujeito em questão. A topografia da dor éa topografia do sujeito, por exemplo, a dor nas articulações aponta o inarticulável,a dor no estômago o indigerível, etc. A dor seria portanto uma forma "dolorosa"do indivíduo se reconhecer e de admitir a pulsão de morte. Do não preenchimentodo vazio, portanto aceitação da ausência, da falta Equação do conceito de sexua-lidade e da hipótese do narcisismo, enquanto masoquismo e 'ferida narcísica'.

Façamos, então, o percurso neste texto de Freud. "Quando dor e desprazernão são mais sinais de alarme, mas podem ser alvos em si mesmo, o princípio deprazer é paralizado, o vigia da nossa vida anímica narcotizado"20.

O masoquismo se apresenta sob três configurações: como uma condição daexcitação sexual, como a expressão de ser feminino e como uma norma docomportamento vital - respectivamente, um masoquismo erógeno, feminino emoral"21. (O que lembra aquela frase enigmática do "Projeto" de que "o desam-paro dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais"22.) "Oprimeiro, o masoquismo erógeno, o prazer da "dor"... O terceiro, como sentimentode culpa, inconsciente. O masoquismo feminino, conhecemos a partir das fantasiasmasoquistas, cujo conteúdo manifesto supõe as mais variadas atrocidades"23."Fantasias que transportam a pessoa a uma situação característica da feminilidade,expressando também um sentimento de culpa, que supõe ter cometido algo cri-minoso (mesmo sendo deixado indeterminado), mas que deve ser punido atravésde todos os procedimentos dolorosos e torturantes. O masoquismo femininobaseia-se sobre o primário, erógeno, o prazer da dor"23.

"Após a parte principal da pulsão de morte — pulsão de destruição, pulsãode domínio, vontade de poder — ter sido transposta para o exterior sobre os

24 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

objetos, permanece como seu resíduo, no interior, o masoquismo erógeno, quetem o próprio ser como objeto. Masoquismo que seria testemunho e resto doamálgama da pulsão de morte e Eros" .

No masoquismo moral, foi afrouxada sua relação com a sexualidade. (Aqui)o próprio "sofrimento" é o que importa, podendo ser causado por poderes oucircunstâncias impessoais. O sofrimento que a neurose traz consigo é o que a tornavaliosa para a tendência masoquista. Uma forma de sofrimento pode ser substi-tuída por outra e só importa poder conservar uma certa quantia de sofrimento. Nomasoquismo moral, portanto, há uma necessidade que é satisfeita através decastigo e sofrimento.

Podemos então dizer que a dor é um problema econômico, também podendoser considerada como masoquismo.

E terminamos com Lacan em "Kant com Sade": "...a dor tem, como o prazer,seu termo: é o esvanecimento do sujeito"25.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. LACAN, J. "De nossos antecedentes" in Écrits, Paris, Éditions du Seuil, 1966, p.69.2. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" in

op.cit, p.822.3. "A psicanálise e seu ensino" in op.cit, p.439.4. "O Seminário sobre 'A Carta Roubada" in op.cit., esquema L, p.535. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", (1956)

in op.cit, esquema L p.548, esquema R p.553.6. "A coisa freudiana ou sentido do retomo a Freud em psicanálise" (1955) in

op.cit, p.430.7. FREUD, S. "Projeto para uma psicologia",(1895) in "Edição Standart das Obras Com-

pletas", v.l, Rio, Imago, 1976, p.409.8. "Além do princípio de prazer", (1920) in op.cit, v.XVIII, ibidem, p. 46-47,

49-50.9. CIORAN, E.M. "Silogismos da Amargura", (1952), Rio, Ed. Rocco Ltda., 1991, p.21-22,

24 e 27.10. FREUD, S. "Além do princípio do prazer", (1920), in op.cit, ibidem, p.20.11. Ibidem, p.2112. Ibidem13. Ibidem, p.3114. Ibidem, p.32-3315. Ibidem16. ibidem, p.32-3617. Ibidem, p.42-4618. Ibidem, p.49-5020. Freud, S., "O problema econômico do masoquismo", (1924), tradução de E.Vidal in

Pulsão e Cozo - Revista da Letra Freudiana, Escola, Psicanálise e Transmissão,Rio, 1992, p. 119.

21. Ibidem, p.121.22. FREUD, S., "Projeto para uma psicologia", (1895) in op.cit, p.422.

SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DOR 25

23. "O problema econômico do masoquismo", (1924) in op.cit., p.121 e 123.24. Ibidem, p.125.25. LACAN, J. "Kant com Sade", in op.cit, p.774.

BIBLIOGRAFIA

BARRETO, M.LB. Resumo de oito aulas sonbre o "Projeto", abril/junho de 1989, da LetraFreudiana, no Seminário "O eu na teoria de Freud", não publicado.

"Além do princípio de prazer, a repetição", in op.cit.,FREUD, S. "Entwurf einer Psychologie" in Aus den Anfagen der Psychoanalyse, Londres,Imago, 1950.

"Jenseits des Lustprinzips" in Gesammelte Werke, Band XIII, Frankfurt, S.FischerVerlag, 1978.VIDAL, E. "Masoquismo originário: ser de objeto e semblante" in Revista op.cit.

O Ego no Projeto e o Problema daLigaçãoOctávio de Souza

Para a comemoração dos 100 anos do "Projeto para uma psicologia científi-ca", escolhi abordar algumas reflexões sobre a concepção de ego tal como formu-lada por Freud neste texto que festejamos.

Antes de abordar a questão do ego, ou do eu, no "Projeto", gostaria de fazeralgumas observações a respeito do entrelaçamento de conceitos psicanalíticos comsignificações da língua corrente, entrelaçamento este que, quando é o eu que estáem jogo, ganha um contorno que pode ser útil realçar.

É de se notar que quando se refere ao inconsciente, por exemplo, Freud tomatodos os cuidados necessários para distinguir com rigor o emprego do termo emsua versão popular do emprego do termo em sua concepção psicanalítica. Vocêscertamente se lembram das primeiras páginas do artigo metapsicológico sobre "Oinconsciente", quando se trata de distinguir o inconsciente em seu sentido descri-tivo, do inconsciente em seu sentido dinâmico. O mesmo cuidado observamosquando se trata de definir o que a psicanálise entende por sexualidade, conceitomuito mais amplo para a psicanálise do que o senso comum está disposto aadmitir, pelo menos o senso comum da época em que a psicanálise surgiu.Inconsciente e sexualidade são apenas exemplos, que tomo ao acaso, de cuidadosde distinção entre conceito e senso comum, que podemos encontrar a cada passoda teorização psicanalítica. Já quando se refere ao eu, e é isso que quero destacar,tais cuidados não parecem preocupar Freud além de uma certa medida. Na Con-ferência XXXI das "Novas conferências introdutórias" sobre a psicanálise, porexemplo, defendendo-se da acusação de pan-sexualismo feita contra a psicanálise,e explicando as razões que levaram a psicanálise a estudar em primeiro lugar as

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28 100ANOS DE PROJETO FREUDIANO

pulsões sexuais e o recalcado, deixando para uma etapa posterior o estudo maisdetalhado do eu, Freud diz o seguinte:

Desde o início dissemos que os seres humanos adoecem devido a um conflitoentre as exigências da vida pulsional e as resistências que neles surgem contraela; e nem por um momento esquecemos essa agência resistente, repulsora,recalcante (...) que coincide com o eu da psicologia popular.1

Ou ainda um pouco mais adiante, referindo-se à sua proposta de destacar doeu a sua consciência crítica, descrevendo-a como a instância diferenciada dosuperego:

Eu agora estou preparado para escutá-los me perguntando desdenhosamente sea nossa psicologia do ego não faz mais do que tomar, literalmente, e no sentidomais ingênuo, abstrações comumente usadas, transformando conceitos em coi-sas. A isto, eu responderia que na psicologia do ego é difícil escapar do que éuniversalmente conhecido; tratar-se-á, muito mais do que de novas descobertas,de novas maneiras de olhar as coisas e de novas maneiras de arranjá-las.

Daí podemos afirmar que, por mais convencido que estivesse sobre as sur-preendentes novidades que a psicanálise traria sobre o eu, para Freud não havianenhum problema, muito pelo contrário, em confundir o eu enquanto conceitoanalítico com o eu enquanto noção popular. Tanto a psicanálise quanto o sensocomum, quando falam do eu, se referem à mesma coisa, mesmo que possammanifestar pontos de vista diametralmente opostos sobre a sua constituição, sobresua função ou sobre seu estatuto moral.

Para Lacan, quero arriscar, as coisas também parecem se apresentar mais oumenos do mesmo modo. Por mais inesperadas que sejam suas concepções sobrea formação do eu a partir de sua elaboração do estádio do espelho, por maiscontrária ao senso comum que seja sua afirmação do eu como função de desco-nhecimento, Lacan, quando fala do eu, fala do mesmo eu que cada um consideracomo eu. A respeito do eu, portanto, não há confusão a ser desfeita quanto aoreferente, quanto à coisa de que se está falando. Somente uma radical mudançade juízo quanto à sua função e ao seu valor: onde o senso comum acreditavaencontrar certeza e unidade, a psicanálise denuncia ilusão e divisão. Não se tratade corte ou descontinuidade em relação à concepção tradicional do eu, somentede acréscimos e, em conseqüência destes mesmos acréscimos, de mudança naavaliação do seu valor funcional. Assim, no Seminário II, podia-se ouvir Lacandizer:

[o eu na teoria freudiana] Não é uma noção que se identifique ao eu da teoriaclássica tradicional, embora ela a prolongue — mas, em razão do que elaacrescenta, o eu toma, na perspectiva freudiana, um valor funcional completa-mente diferente.3

Se alguma diferença podemos encontrar entre Freud e Lacan no recorte dacoisa que é o eu, essa diferença se deve à preocupação de Lacan, patente do início

O ECO NO PROJETO E O PROBLEMA DA LIGAÇÃO 29

ao fim do seu ensino, em demonstrar a inserção da psicanálise na história daformação da subjetividade moderna. Deste modo, ainda no Seminário II, Lacanprossegue dizendo que:

O homem contemporâneo tem uma certa idéia de si mesmo que se situa numnível meio-ingênuo, meio-elaborado. A crença que ele tem de ser constituídoassim e assado participa de um certo meio ambiente de noções difusas, cultu-ralmente admitidas. Ele pode imaginar que ela é devida a uma tendência natural,ao passo que de fato ela lhe é ensinada, por todos os lados, pelo estado atualda civilização. Minha tese é a de que a técnica de Freud, em sua origem,transcende essa ilusão que, concretamente, tem uma eficácia efetiva sobre asubjetividade dos indivíduos.

Na seqüência da mesma lição, após comentar, a propósito da linguagem, aimpossibilidade de pensar o momento anterior ao surgimento da linguagem semo emprego das próprias categorias da linguagem, Lacan prolonga seu raciocínio,desta vez referindo-se à noção do eu:

Do mesmo modo, nós não podemos mais pensar sem esse registro do eu queadquirimos no curso da história, (...).

Sendo assim, parece-nos que Sócrates e seus interlocutores deveriam,como nós, ter uma noção implícita dessa função central, que o eu deveriaexercer neles mesmos uma função análoga à função que ele ocupa tanto emnossas reflexões teóricas, quanto na apreensão espontânea que temos de nossospensamentos, de nossas tendências, de nossos desejos, (...). É muito difícilpensarmos que toda essa psicologia não é eterna.

Será que é assim mesmo? A questão merece ao menos ser colocada.Colocá-la nos incita a olhar de mais perto, para ver se não há um certo momentono qual essa noção do eu deixa-se ser percebida em seu estado nascente.5

Este momento do nascimento da noção do eu é datado por Lacan no cogitocartesiano, ou seja, no surgimento do discurso científico, marca de uma profundamodificação na concepção que os homens fazem da verdade em sua relação coma tradição e o saber. Portanto, se quisermos destacar alguma diferença entre asconcepções de Freud e de Lacan referentes ao eu, não podemos deixar de levarem consideração o peso atribuído por Lacan ao valor cultural do eu, valor esseque, embora não se possa afirmar ausente em Freud, se encontra dissolvido pelalinguagem cientificista de suas construções metapsicológicas.

O peso atribuído por Lacan ao valor cultural do eu, como fica implícito nareferência ao cogito cartesiano, é correlativo da radical reavaliação da relaçãoentre ciência e psicanálise que opera no retorno à Freud de Lacan. É, aliás, nadivergência sobre o estatuto ético da ciência que podemos encontrar a racionali-dade da maior parte dos deslocamentos de ênfase que o ensino de Lacan impõeao conjunto conceituai da obra de Freud. Se para Freud a psicanálise existe comociência; para Lacan a psicanálise não existe sem a ciência, na medida em que aconsidera uma resposta, sintomática, à perda, decorrente da emergência do dis-curso da ciência, de um certo estatuto da verdade na condição humana.

30 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

Manter no horizonte a divergência entre Freud e Lacan quanto aos desdobra-mentos éticos do discurso científico, não bastasse o próprio título do texto quenos reúne, "Projeto para uma psicologia científica", é de fundamental importânciapara a compreensão do que tenho a lhes dizer. Por ora irei me restringir a teceralgumas comparações entre, por um lado, o mecanismo da ligação tal como seapresenta na obra de Freud, particularmente no Projeto onde aparece como funçãotributária do ego e, por outro lado, alguns temas desenvolvidos por Lacan, que,ao meu ver, se avizinham do conceito de ligação freudiano.

Esse pequeno esboço comparativo que lhes apresento é o início de umapesquisa mais ampla que visa estabelecer um mapeamento dos destinos, na teoriado sujeito em Lacan, das funções por Freud atribuídas ao ego. Essa pesquisa partedo pressuposto que o ego é um dos conceitos psicanalíticos que mais sofreudeslocamentos na leitura de Freud por Lacan. Para não ficar sozinho nessa afir-mação que, à primeira vista, pode ser encarada como polêmica, cito, de MoustaphaSafouan, a seguinte passagem:

No "Esboço da Psicanálise", seu testamento teórico, Freud deixou da técnicapsicanalítica uma apresentação da qual seria ir contra a evidência negar que éa ela mesma que permaneceram fiéis sua filha, Anna Freud, e os três protago-nistas da ego psychology, Hartmann, Kris e Loewenstein.

Creio ser desnecessário lembrar o quanto esta apresentação da técnica psica-nalítica, incluída no referido testamento teórico de Freud, é tributária de umaconcepção de Lacan, esta última construída a partir da ênfase na teoria do narci-sismo.

No entanto, quero acrescentar, para evitar mal-entendidos, que a perspectivadessa pesquisa, da qual lhes apresento o início, não é a de corrigir Lacan, numavisada epistêmico-universitária, denunciando as distorções que operou em relaçãoà teoria de Freud. Sua perspectiva, pelo contrário, é a de procurar a razão dosdeslocamentos operados nas funções do ego por Lacan em sua necessidade derelançar a radicalidade das descobertas da psicanálise, numa época em que asesperanças iluministas, que encontramos no nascedouro da psicanálise, se viramdesmanteladas pelos efeitos tardios apenas vislumbrados por Freud do desen-volvimento da técnica. Todos os comentários de Lacan a respeito das relaçõesentre o discurso da ciência e o totalitarismo, disto dão testemunho.

Feitas essas observações, passemos ao exame substantivo do ego noprojetoe do problema da ligação na obra de Freud. No 'Projeto", ao ego é atribuída,fundamentalmente, a função de inibir ou de ligar a energia livre do processoprimário, transformando-o em processo secundário, equivalente, neste texto, àatividade do pensamento.

Já nesse ponto, cabe observar uma diferença em relação às elaboraçõesposteriores de Freud, tais como podemos encontrar no capítulo VII da "Interpre-

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tação dos Sonhos", por exemplo. No "Projeto", a função do pensamento não éatribuída ao processo primário. Embora já se refira à realização de desejo noâmbito purificado do processo primário. Esse fato, contudo, não nos obriga aafirmar a inexistência de pensamentos inconscientes no escopo do "Projeto", vistoque o ego, sem o qual não há a atividade do pensamento, é definido como:

a totalidade dos investimentos psi, num dado momento, na qual um componentepermanente é distinguido de um componente em mutação. É fácil constatar queas facilitações entre os neurônios psi são parte das possessões do ego (...)7.

Vemos, então, que o ego no "Projeto" se define como um sistema muito maislábil do que será, posteriormente, o sistema pré-consciente sistema este concebidocomo uma localidade psíquica, distinta do inconsciente, cujos conteúdos sãoobtidos por tradução das representações do sistema inconsciente. No "Projeto",pelo contrário, o ego se justapõe, e mesmo engloba, a totalidade das facilitaçõesque compõem os próprios caminhos do processo primário. Não é à toa que Lacan,em uma das passagens em que propõe uma nova tradução para o Wo Es war sollIch weráen freudiano, dirá, numa referência explícita ao ego do "Projeto", que oIch, nesse momento, é o que sempre foi na pluma de Freud, do princípio ao fimde sua obra: o sujeito do inconsciente, ou seja, a totalidade da cadeia significante.

Retornemos à questão da ligação. A ligação da energia propiciada pelo egofornece ao aparelho psíquico um critério para distinguir entre memória e percep-ção, ou seja, uma prova de realidade, mais tarde concebida como função doprincípio de realidade. A ligação da energia se mostra de utilidade para o orga-nismo, ou para o aparelho psíquico, em duas situações fundamentais, por Freudreferidas como "estado desejante" e "reinvestimento de uma imagem mnêmicahostil".

No primeiro caso, o do estado desejante, através da ligação da energia,evita-se a alucinação do objeto de satisfação, o que permite, à posteriori, aobtenção de uma indicação de qualidade que serve como critério de realidade. Nocaso do reinvestimento da imagem hostil, através da ligação da energia, evita-sea defesa primária, o que permite, à posteriori, a operação do critério de realidade.Nesse nível de funcionamento, a prova de realidade apenas permite que o orga-nismo mame na presença de seio, procure o seio na sua ausência, fuja diante dapresença do objeto hostil ou repouse na sua ausência.

É importante ressaltar que a ligação de energia apenas permite que a provade realidade seja obtida, mas não se confunde com ela. A questão que fica é a dese a função da ligação da energia se esgota no propiciamento das condições defuncionamento da prova de realidade. Como veremos, este não parece ser o caso,a menos que possamos entender nossa concepção de realidade para toda a reali-dade psíquica

32 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

A meu ver, o que muitas vezes atrapalha a consideração da importância daligação da energia é o fato de que o ensino corrente da psicanálise privilegiou oevitamento da alucinação do objeto no estado desejante como o principal exemplodas vantagens da prova de realidade. No entanto, para o que diz respeito à práticapsicanalítica, a situação do reinvestimento da imagem hostil, e a possibilidade doevitamento da defesa primária propiciado pela ligação da energia, é, sem dúvidaalguma, muito mais importante em suas conseqüências. Todos sabemos que, emnossa prática, dificilmente nos vemos compelidos a evitar que o analisando alucineo seio, ou que se espatife contra as paredes por alucinar uma porta quando lheacontece desejar veementemente sair às pressas do consultório do analista. O fatoé que a prova de realidade não nos ajuda apenas a nos orientar em relação aosobjetos do nosso meio ambiente. A prova de realidade não se restringe a possibi-litar que a criança pare de alucinar o seio e vá até a geladeira buscar sua mama-deira. Brincadeiras à parte, esta mudança no comportamento de uma criança é defundamental importância, visto que se apresenta como uma instância mínimadaquilo que Freud chama de "ação específica".

A defesa primária contra o reinvestimento de uma imagem hostil é ummecanismo do processo primário que faz com que a passagem de energia "pule"o neurônio correspondente à memória do objeto hostil, desinvestindo-o de energia.A ligação egóica tem por função permitir que a imagem hostil seja moderadamen-te investida de energia, sem que uma produção excessiva de desprazer ocorra.Trata-se de um processo inverso ao que ocorre no estado desejante, no qual, pormais que o desprazer decorra do investimento das possibilidades de percurso daenergia através dos neurônios. O que o evitamento da defesa primária propicianão é a aquisição de um objeto de satisfação, mas a possibilidade de que umamemória possa ser revisitada pelo investimento enérgico. Neste caso, o que seganha não é um objeto de satisfação, mas uma memória, ou, melhor dizendo, umarepresentação. Trata-se, em uma análise de uma ampliação do alcance do pensa-mento e, consequetemente, de uma ampliação do alcance da palavra.

Para Freud, do início ao fim de sua obra, o princípio de realidade e a ligaçãoda energia dizem respeito ao objetivo primeiro da análise: o levantamento dorecalque. Sem isso em mente, sempre tenderemos, principalmente nós, lacanianos,a não avaliar em toda a sua extensão o que Freud quer dizer quando afirma, aolongo de toda sua obra, que a finalidade da análise é substituir o princípio doprazer pelo princípio da realidade.

Retomemos o nosso raciocínio. No âmbito do "Projeto", Freud atribui ao egoduas funções aparentemente antagônicas: por um lado, o ego evita a defesaprimária, por outro, ele é o agente da defesa patológica ou do recalque. No quese refere à defesa patológica, o problema que Freud se propõe a explicar é "o fatode que no caso de um processo egóico ocorram conseqüências que estamosacostumados apenas em relação aos processos primários . A explicação que ele

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fornece para o fato pode ser resumida do seguinte modo: o ego é surpreendidona medida em que sua atenção é normalmente voltada para a percepção, e nãopara a memória por uma memória que desencadeia um excesso de descargasexual. A partir daí, a função egóica de ligação é colocada fora de ação. O egopassa a funcionar do mesmo modo que o processo psíquico primário, com a únicadiferença da produção suplementar de uma formação simbólica estável de carátercompulsivo.

Sem nos determos nem nas complicações derivadas da diferenciação entrepercepção e memória, nem no valor enunciativo que poderíamos atribuir à for-mação simbólica compulsiva, retenhamos apenas a questão da relação do ego como excesso sexual.

Para ir direto ao ponto, coloco a seguinte questão: qual o valor ético quepodemos atribuir à fuga, ou ao rechaço, por parte do ego, do excesso sexual?Adianto minha resposta: é minha opinião que, neste caso, não podemos noscontentar em atribuir ao ego o papel de agente do recalcamento, se, por recalca-mento, estivermos dispostos a compreender apenas o rechaço pelo "moi" dodesejo inconsciente.

Permitam-me fazer o papel de advogado de defesa do ego: o fato do ego seproteger contra o excesso de sexualidade da situação traumática não pode seratribuído, simplesmente, à sua função de desconhecimento em relação ao desejoinconsciente. Se quiséssemos falar em sujeito desejante, ao invés de ego, seríamosobrigados a dizer que o sujeito desejante também se protege contra o excesso desexualidade, na medida em que este excesso, no vocabulário de Lacan, se chamagozo, e que a função do desejo, como todos sabemos, não pode se exercer semum certo afastamento do gozo. Esse afastamento do gozo é propiciado pelo egodo "Projeto" em duas etapas. Num primeiro momento, de modo patológico, pelorecalque. Num segundo momento, após um trabalho de rememoração, que nãoposso qualificar senão como analítico, pelo levantamento do recalque, levanta-mento este que não pode se efetivar de outra forma senão pelo evitamento dadefesa primária, a qual, como vimos, só pode ser levada a efeito com o recursodo ego. É somente a partir daí que a representação traumática pode ingressar naatividade do pensamento, e, consequentemente, ser tocada pela palavra.

O ego do "Projeto", para dizer de modo sucinto, é tanto o agente do recalquequanto o sujeito do inconsciente que pode vir a se enunciar como "je", tal comonos promete Lacan.

O mecanismo da ligação da energia, como sabemos, é tratado por Freud, logodepois do "Projeto", como uma função exercida pelo pré-consciente sobre oinconsciente, pelo processo secundário sobre o processo primário, pelo princípioda realidade sobre o princípio do prazer.

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Contudo, em 1920, em "Além do princípio do prazer", o processo de ligaçãoé, por assim dizer, recuado. Passa a ser concebido como solidário da compulsãoà repetição, atribuído ao próprio funcionamento do processo psíquico primário,independente de qualquer contribuição do ego, do pré-consciente, do princípio darealidade, e até mesmo do princípio do prazer. Nessa concepção, o mecanismo deligação se torna pré-condição para o exercício do princípio do prazer, e podemosobservar uma certa ruptura entre o processo psíquico primário e o princípio doprazer, até então, para todos os efeitos, estreitamente solidários.

Parece ser esse nível de ligação que Lacan privilegia com sua lógica dosignificante, na medida em que lhe permite pensar processos enunciativos ope-rando livremente no inconsciente, sem a necessidade da contraposição produtivado ego, o qual restrito a uma função de desconhecimento.

Acredito poder encontrar, em Lacan, redescrições do mecanismo de ligação,funcionando exclusivamente no nível do processo psíquico primário, em váriaspassagens do seu ensino. Uma delas é a que trata das duas operações lógicas daalienação e da separação, as quais desembocam na produção do sujeito desejantea partir do sujeito acéfalo da pulsão ou do sujeito purificado da linguagem.

A mesma coisa se pode afirmar das passagens do SeminárioXVII, nas quaisa incidência do Si sobre o S2 instaura a representação do sujeito por um signifi-cante privilegiado, o significante mestre, para todos os outros significantes dacadeia, enquanto que, num momento lógico anterior, Lacan afirma não existirnenhum significante privilegiado, um significante só operando pela sua diferençaem relação a todos os outros significantes, o que faz com que, em suas palavras,nesse nível, o sujeito seja "representado, sem dúvida, mas também não represen-tado. Nesse nível, algo permanece escondido em relação a esse mesmo signifi-cante"9.

O problema para o qual quero chamar a atenção, é que todos esses mecanis-mos descritos por Lacan, nos quais julguei poder encontrar ressonâncias com omecanismo de ligação freudiano operando exclusivamente no processo psíquicoprimário, são mecanismos de linguagem, e que, por isso mesmo, podem serdesencadeados sem a intervenção de qualquer ato de palavra.

Onde, então, encontrar processos, em Lacan, que possam ser aproximadosdos mecanismos de ligação tais quais definidos por Freud em relação ao ego, eque, portanto, se efetuam pelo intermédio da palavra?

Creio que tais processos podem ser procurados na teoria da verdade de Lacan.Muito Lacan nos diz sobre a verdade. No artigo "L'étourdit", por exemplo, nosdiz que a verdade é um dito, ao qual um dizer ex-siste10. Será que seria legítimoaproximar o dizer das operações lógicas da linguagem que vijem no Id, e reservaro dito da verdade para as condições de ligação atribuídas ao ego no "Projeto"?

O EGO N O PROJETO E O PROBLEMA DA LIGAÇÃO 35

É claro que se levarmos em conta tudo o que Lacan pôde dizer sobre a verdadeao longo do seu ensino, seremos obrigados a concordar que a referência à teoriada verdade em Lacan, e referência nenhuma, são coisas quase que equivalentes.Tomo então o Seminário XVII com suas paradoxais afirmações a propósito daverdade. Apenas duas citações:

Só há verdade a respeito do que esconde o desejo de sua falta.11

Nessa passagem, a verdade pode ser compreendida como desvelamento dafalta constitutiva da castração.

Agora uma outra passagem, do mesmo seminário:

O amor pela verdade é o amor dessa fraqueza da qual nós levantamos o véu, éo amor disso que a verdade esconde, e que se chama a castração.

Reviravolta na compreensão: agora a verdade é apresentada como velando acastração.

Talvez seja a partir desta última citação que possamos compreender porqueLacan afirma que o amor pela verdade pôde levar um Sade a recusar essa mesmaverdade, "caindo assim num sistema tão obviamente sintomático"

A recomendação de reserva em relação ao amor pela verdade pode seraproximada à recomendação de desconfiança em relação à ilusão de unidade doego. O x da questão parece estar não na possibilidade de enunciar com este mesmodito. Nas conferências que proferiu nos Estados Unidos, Lacan deixa entrever queo dito da verdade, do mesmo modo que o ego, pode se apresentar como umatotalidade enganosa:

A verdade, diz-se como se pode, quer dizer, somente em parte. Mas do modocomo ela se apresenta, ela se apresenta como um todo. E é aí que está adificuldade: é que é necessário fazer com que quem está em análise se dê contade que esta verdade não é toda, que ela não é verdadeira para todo mundo, queela não é geral, que ela não vale para todos.14

Termino aqui, como se deve em todo início de pesquisa, com uma pergunta,a mais ingênua possível:

Os paradoxos da verdade em Lacan não parecem rimar, nem que seja delonge, com os paradoxos do ego no "Projeto" e os paradoxos da ligação ao longode toda obra de Freud?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FREUD, S., "The dissection of the psychal personality", Standart Edition, v.XXII: p.57.2. idem: p.603. LACAN, ) . , Le moi dan Ia théorie de Freud et dans Ia technique de Ia psychanalyse:

Paris, Editions du Seuil, 1978, p.23.4. idem:p.12.

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5. idem: p.14.6. SAFOUAN, te transferi et /e désir de 1'analyste: Paris, Editions du Seuil, p.76.7. FREUD, S., "Project for a scientific psychology", Standart Editon, v,l: p.323.8. ibidem: p.353.9. LACAN, ]., L'envers de Ia psychanalyse: Paris, Editions du Seuil, 1991, p.101.

10. "Cest ainsi que le dit ne va pas sans dire. Mais se le dit se pose toujoursen vérité, füt-ce à ne jamais dépasser un midit (comme je nVexpri-me), le dire ne s'y couple que d'y ex-sister, soit de n'être de Ia dit-mension deIa vérité" (Lacan, Vétourdit", Scilicet4, p.8).

11. L'envers de Ia psychanalyse, p.69.12. ibidem: p.58.13. Uenvers de Ia psychanalyse: p.76.14. "Conférences et entretiens dans des universités nord-americaines", Scilicet

6/7, p.43-44.

A Imagem do DesejoMaria Elisabeth Timponi de Moura

Destinado a elaborar um modelo de aparelho psíquico que preenchesse alacuna da teoria freudiana frente à questão da separação do afeto de uma repre-sentação sexual e seu enlace com outra representação no sintoma, o "Projeto"acabou resultando num tratado sobre o desejo. Faz-se ruptura da Psicanálise comos demais campos do saber, na medida em que vincula o desejo se a uma divisãoradical do aparelho psíquico. Essa divisão determina a radicalidade da divisãoentre processo primário e processo secundário. Genialidade da intuição freudianaem relação a qual Lacan observa que ainda não apreendemos completamente aoriginalidade. Submetido ao princípio do prazer e "pura ficção teórica", a deno-minação de processo primário deve-se a sua localização no tempo, mas deve-se,sobretudo, por manter na relação com o processo secundário "uma função regu-ladora de maior importância e de maior capacidade funcional." Orientando-sebasicamente pela busca da identidade de percepção, "o processo primário significaa presença do desejo em sua forma mais despedaçada."1

Asatisfação alucinatória é o elemento que vai distingui-lo enquanto produçãoespecífica do saber psicanalítico. Satisfação alucinatória que, no nível de suporteda constituição do humano, Das Ding, não fornece simplesmente satisfação masfornece as "coordenadas de prazer". É o termo de referência que estará ali dispo-nível, organizando não só a faculdade da percepção mas inaugurando cadeias derepresentação e ordenando uma busca em direção ao objeto.

A linguagem é inventada no ponto de insuficiência do aparelho em diferenciaras percepções das imagens. Estreitamente vinculada aos restos da relação com ooutro: imagem sonora, imagem verbal, neurônios motores, e aos estados de desejo(resíduos da experiência de satisfação e de dor), tem a função de distribuir ascatexias de maneira tal que o aparelho se atenha ao princípio do prazer. Linguagemenquanto estrutura, entre percepção e consciência, fornecendo componentes aostrilhamentos e regulando os processos de descarga, colocando o princípio doprazer em movimento.

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A originalidade do "Projeto" está em colocar nos trilhamentos o lugar em queo prazer é engendrado, colocando o princípio da realidade comprometido com osefeitos da parte não assimilável do aparelho psíquico.

Referindo-se à propriedade do aparelho em barrar a quantidade que vem doexterior sustentando-o por uma quantidade psíquica Psi com o papel de crivo,Lacan situa o organismo assim como o mundo exterior como exteriores ao apa-relho neurônico no 'Projeto".

O significante opera uma transmutação daquilo que é da ordem do somático,da ordem da percepção, dos órgãos dos sentidos, num outro corpo que é o dalinguagem, que o precede, e que, sustentando o sujeito, situará no outro a refe-rência que indicará aos órgãos sua função. Na parte VII do artigo "O Inconscien-te", de 1915 Freud vai constatar que a esquizofrenia exterioriza o que nas neurosesde transferência está no inconsciente. A impossibilidade de se reportar ao simbó-lico enquanto corpo resulta numa proliferação de significação em seu corpo físico.O sistema de percepção se interpõe desorganizando a estrutura das frases. O queo delírio de Schreber revela, pelas inúmeras figuras que invadem seu corpo físico,é a fragmentação em imagens que o outro pode assumir quando falta o elementosimbólico organizador.

A imagem está situada nas margens da relação com o outro enquanto agentedo simbólico e tem o estatuto de significante. Feita da associação do som do gritocom "imagens motoras de movimentos da própria pessoa" reconduz a atençãopara essas últimas, contornando assim o ponto de fratura da relação com o outro,garantindo a restituição do princípio do prazer. (Parte III - Projeto) É enquantotal que ela participa da economia psíquica.

Resgatando o termo Ebenbild usado por Freud no final da "Interpretação dosSonhos", Lacan ressalta a dimensão invariável de uma imagem que se produz"logo à entrada no campo da linguagem, de um extremo a outro acompanhandosem variação a estruturação do desejo do sujeito"3. Trata-se de uma imagem fixa,sempre a mesma.

Se Das Ding fornece as coordenadas do prazer, o recurso à fixidez de umaimagem introduz a dimensão de subjetividade ao princípio do prazer.

Como ser falante, o recurso à fixidez da imagem como ponto limite, comosustentação no campo do desejo, só é possível no fantasma.

A espefícidade do saber que o campo Psicanalítico instaura a partir da expe-riência clínica, traz a notícia de um desejo vinculado não a um objeto, mas a umfantasma. Sustentação provisória, e elemento de passagem quando o sujeito frentea perdas reais ou imaginárias perde "o valor do que o liga ao significante".

A IMAGEM D O DESEJO 39

No esquema feito por Freud no "Projeto" sobre o caso Emma, a liberaçãosexual se liga por uma seta a um ponto que posteriormente será ocupado pelofantasma.

O que a "mentira histérica" do caso Emma revela é a presença do objeto aenquanto agente de um discurso indicativo de que "a liberação sexual não sevinculava ao atentado quando ele foi cometido"4. Tradução das pulsões parciaisno contexto edípico por uma cena onde a figura do pai conjuga amor e espanca-mento, o fantasma fornece satisfação sexual ao sujeito.

A experiência analítica mostra que a imagem da cena fantasmática pode seconstituir em um bem; pode se apresentar para o sujeito como substância no níveldo princípio do prazer. Duplamente lugar de revelação e de retenção na via dodesejo impõe ao analista o dever ético de atravessá-lo. Articulação do discurso doanalista como borda na antinomia entre desejo e gozo promovendo uma diferen-ciação entre imagem e percepção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BIBLIOGRAFIA

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LACAN, ]., A Ética da psicanálise, Rio, Jorge Zahar Ed., 1988.As psicoses, Rio, Jorge Zahar Ed., 1985.

Proton pseudosEduardo Alfonso Vidal

O rascunho de 1895 — os editores o denominaram "Entwurf' — foi escritopara não ver a luz da publicação. No desejo de Freud suas anotações não seriamlidas a não ser por um único leitor e destinatário. Após um difícil trajeto o jábatizado "Projeto" é publicado em 1950 com uma parte da correspondência —censurada — a Fliess. Inicia então outro percurso. Vamos nos ater àquele que otoma como texto fundamental para a formulação de uma ética da psicanálise. O"Projeto" é um texto que chamaremos de "originário" no sentido em que sualeitura, a-posteriori, permite estabelecer o traçado da construção freudiana doaparelho psíquico. Isto não implica na suposição de que a psicanálise já estava láem 1895 numa visão iluminada de Freud. Só depois constatamos que Freud nãose desviou da urgência de dar uma resposta articulada e sistemática às questõesrecorrentes da clínica da histeria que afunilavam-se no ponto do "atentado sexual".O substrato neuronal serve de suporte para escrever circuitos e relações entreelementos diferentes que são nomeados por letras cp, y, ca. Elas escrevem umaparelho sem substância feito de conexões e barreiras de contato em que o livrefluir das quantidades deve vencer uma magnitude de resistência. O sujeito que alise prefigura não é o agente da série de processos que se realizam sem o saber. Oaparelho freudiano está imerso na quantidade pura que o acossa desde o exterior.Ele deve realizar o trabalho primordial de distribuição desses investimentos ener-géticos nas vias de descarga. No entanto, as necessidades da vida impedem oescoamento total da quantidade. A descarga a zero será impedida e o aparelho sehabituará a lidar com quantidades crescentes em seus circuitos. É o tempo doestabelecimento de Bahnungen — trilhamentos — decisivos na estruturação dosujeito. O trilhamento consiste numa cadeia articulada de elementos, uma viapreferencial de marca da passagem da quantidade. O trilhamento supõe localiza-ção psíquica diferenciada, um mínimo de inibição no fluxo da quantidade eadiamento da descarga. O trilhamento introduz o nó da diferença e o tempo. Oenodamento não é conatural ao aparelho e resulta de um ato que implica o Outro.O aparelho do "Projeto" opera no campo da linguagem e o Outro é determinante

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de sua constituição. A experiência de satisfação é um trilhamento originário dessaordem. Entre a urgência da necessidade e esse algo que possa satisfazê-la, inter-cala-se outro termo que articula o grito da criança a um Outro que o escuta. OOutro aporta com o alimento a palavra. Desse modo não há apenas satisfação danecessidade mas emergência do desejo. Esse complexo denominado "primeiraexperiência de satisfação" consiste em trilhamentos duradouros a serem reativadostoda vez que a urgência ressurja e o objeto não esteja mais presente.

Desde os primórdios o organismo humano, chamado à dimensão da palavra,ésensível ao que o Outro deseja além daquilo que lhe oferece. O estado desiderativotende ao reencontro de uma satisfação que já terá sido. Ali o sujeito faz aexperiência da falta inerente à satisfação; ali ele encontra o desejo do Outro. Aorientação do sujeito é comandada pelo desejo que terá, a partir da formulação da"Interpretação dos sonhos" (1900), estatuto de indestrutível e inconsciente. Freudinscreve o desejo numa dimensão trágica — o destino humano é trilhado inexo-ravelmente por ele. O Outro é o lugar da palavra, do traço distintivo, da represen-tação. O desejo é movimento incessante e aponta para outra coisa diferente darepresentação. Essa outra coisa é, no Outro, a Coisa O Outro, partido, não-todotraço é o lugar da Coisa. Das Ding, a coisa, é residual ao juízo e ao projetofreudiano em seu conjunto. Os poucos parágrafos no texto que se referem à coisaa aproximam, sem elucidá-la, ao modo do impossível: resto excluído do juízo,imutável, inassimilável, que permanece idêntico à coisa. Coisa soberana e impos-sível, o desejo no aparelho se funda à distância da coisa. Freud estabelece em1895 a impossibilidade da coisa ser assimilada pela representação. No hiato queaí se abre faz emergência um desejo — não de reencontro pois a Coisa é impos-sível — sempre deslocado, vestido e revestido; não é isso, mas outra coisa. Essehiato é o cerne do "Projeto" freudiano. Causa de desejo e também de recusa, ohiato é desconhecido, preenchido, apagado. A função do discurso é obturá-lo dealgum modo. Proton pseudos é o nome de sua ocultação na histeria, comoparadigma da neurose. Coube a Freud escutar a histérica desde esse outro lugararticulando os elementos recalcados de seu discurso para restituir ali a fenda abertado inconsciente.

Que a histérica funda a psicanálise, é hoje bem aceito. Pois bem, a operaçãofreudiana consiste em articular a histérica num discurso em que o sintoma, cha-mado a dizer o que ele não sabe, venha a produzir esse sedimento de sabernomeado inconsciente. Enquanto o discurso médico olha impotente a cena que otransborda e o submerge no fracasso, Freud decide escutar o que a histérica tema lhe dizer. Do encontro com o que a palavra não diz, engana, mente, nasce apsicanálise. Na segunda parte do "Entwurf', Freud sistematiza a experiênciaacumulada desde o encontro com Janet e seus trabalhos com Breuer até o trata-mento pela palavra que inicia nos anos noventa do século XTX. jcprôxov \)/euôoÇescreve Freud, primeira mentira, se lê na tradução do grego. O significante não

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se deixa capturar numa referência unívoca. Pseudos significa mentira e falsidadee também, erro e mentira, ditos sem intenção de mentir, para tranqüilizar. Naextensão, pseudos tem acepção de invenção poética e, na arte da guerra, uma açãodisfarçada. O verbo vyeúôro significa enganar alguém na sua esperança ou expec-tativa; na voz passiva — ser enganado. Numa segunda acepção remete a conven-cer de erro ou de mentira, enganar no seu interesse, derivando-se mentir, dizeruma mentira. Ainda nesta acepção destaca-se o caráter de faltar a uma jura ouuma promessa. Em Plutarco, encontra-se o sentido de algo que parece ser e nãoé.

Proton pseudos é o engano fundamental do sujeito na linguagem. O sujeitonão encontrará jamais a verdade primeira ou toda. Há uma esperança do ser falantede que a palavra não minta. A histérica é uma inconformada com o engano dapalavra e reivindica justiça: que nunca lhe mintam nem a tomem por mentirosa;isso ela não perdoa! Nesse ponto o discurso "científico" da medicina se atola aoatribuir à histérica intencionalidade de mentir. Coube à Freud inventar — ainvenção poética se figura na palavra pseudos —, inventar um discurso quelevasse a sério a palavra de alheamento do sujeito ao que determina seu sintoma,a sexualidade.

Proton pseudos, a primeira mentira histérica, consiste na substituição integralda coisa pelo símbolo. A histeria é esse engano: desejo de fazer desaparecer acoisa, o apagamento de sua ex-sistência — nisso o recalque demonstra sua eficá-cia. A histérica é um laço social entre representações. Fundado sobre o recalque,esse discurso pretende esgotar-se na substituição, sem nada saber do que resta.

Com Freud podemos reduzir esse laço a letras e escrever A/B onde A substituiB e o sujeito que emerge dessa equação perdeu qualquer enlace com a coisa. Freudilustra a substituição com a figura do cavaleiro que se bate em duelo pela luva desua dama e sabe que a importância da luva radica na relação à dama, o que nãoimpede também venerar a dama e oferecer-lhe seus serviços de outras maneiras.A histérica que cai em prantos ou foge apavorada da cena por causa de A, nãosabe da associação A-B e B perdeu para ela qualquer significação. Pretende trataro real integralmente pelo simbólico, esquecendo o resto que se perde no que eladiz. Das Ding comanda a orientação subjetiva na escolha da neurose. Tudo seordena para histérica numa radical aversão à coisa, enquanto evoca-se ali ainsatisfação do primeiro objeto. O recalque se mostra eficaz ao cortar todo enlaceque aproxime da coisa, e determinar um falso enlace "A é compulsiva, B érecalcada".1

Freud apresenta o caso de Emma para ilustrar o Proton pseudos. Como seestabelece a mentira em Emma? Na primeira cena relatada pela paciente (Cena I)Emma foge em pânico da loja ante o riso de dois jovens vendedores que zombamde seus vestidos (KJeider). Um deles a atraiu sexualmente. Estrutura-se a seguir

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o sintoma de agorafobia. O trabalho analítico empreendido por Freud restabelecena palavra do sujeito os enlaces interrompidos pelo recalque. Os "falsos enla-ces" (fabche Verknüpfungen) são quebrados. Libertadas do falso nó do recalque,as cadeias são rearticuladas de outro modo. Assim o riso (das Lachen) dosvendedores está no lugar do riso debochado (das Grinsen) do dono da confeitariaque beliscou seus genitais, através de seus vestidos (Kleider) na cena II, aos oitoanos de idade. A cena I, relatada, reenvia à cena II, reconstruída.

Todo o complexo (linhas de tracejadas) estava representado na consciênciaatravés da única representação "vestidos", evidentemente a mais inofensiva.Havia-se produzido aqui um recalque com formação de símbolo." (Der ganzekomplex (gebrochene Linien) est im Bewusstsein vertreten durch die eine Vors-tellung "Kleider", offenbar die harmloseste. Es ist hier eine Verdrangung mitSymbolbildung vorgefallen.)1

O atentado sexual o belisco nos genitais através dos vestidos não entra naconsciência e sim apenas outro elemento em qualidade de símbolo, os vestidos.O significante allein, sozinha, indica o lugar do sujeito na cadeia; ela estava só...ante o Outro, ante o desejo fisgado no olhar de gozo. No intervalo entre as duascenas Emma entra na puberdade e encontra uma abertura para novas possibilida-des de gozo. O trauma não é o acontecimento pois Emma não experimentaangústia na cena com o dono da confeitaria. Só há trauma quando o sujeito acedeao gozo experimentado no seu corpo no tempo do desencadeamento sexual. Freudreconhece que a sexualidade humana é defasada. O "antes" sem significação doatentado sexual demanda outro acontecimento que sela o trauma, nachtrâglich ,só depois. O sujeito se determina nesse intervalo como divisão no gozo. A angústiaemerge ante a excessiva proximidade do "objeto" caído da divisão subjetiva.

Protonpseudos é uma configuração significante de falso enlace, que implicauma escansão temporal, o hiato em que o sujeito se depara com o desejo do Outro.O Outro — pré-histórico e imemorial — está no cerne da relação da histérica —de insatisfação — ao desejo. A histérica engana, se engana, em relação a essedesejo que ela pretende seja purificado do gozo. A Coisa seria inteiramentesubstituída pelo símbolo e o desejo deslizaria infinitamente de uma representaçãoà outra. Porém a Coisa não se deixa substituir inteiramente e há retornos. Umaparte desse gozo execrável retorna, no riso e no olhar, apesar de banido pelarepresentação. O afeto sinaliza a proximidade da Coisa. Ele é quantidade, inten-sidade à espera de qualquer representação que lhe sirva de apoio. O afeto não ésentimento nem emoção, ele "afeta" o corpo na angústia indicando que algo nãoanda bem no Proton pseudos. Pois se a angústia não engana ao assinalar aincidência do desejo que provém do Outro, o afeto deslizante entre as represen-tações colabora com sua intensidade para selar o engano do sujeito: o pranto anterepresentação — A, excessivamente intensa, serve para mascarar B, recalcada.

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Um salto de quase cem anos: a conferência de Lacan sobre a histeria em 26de fevereiro de 1977 em Bruxelas. Proton pseudos, diz Lacan, é a escroqueria2,termo que "inventamos" em português como misto de escroque e histeria. Nessescem anos de Projeto freudiano muito se disse e se escreveu da tna psicanálise.A histérica constituía no final do século passado um laço social que não se limitavaa eficácia de seus sintomas. Relações de saber, de amor e de ciência se ordenavamem torno da histérica. Foi ela quem "soprou" a Freud a psicanálise, na medida emque ele soube escutá-la, isto é, constituir o discurso que estabeleceu a relação entreas palavras e a sexualidade. O mais surpreendente foi constatar que o sintomahistérico se apresentava como uma densa trama simbólica e se dissolvia junto comas palavras ditas. Freud pensou que se tratava da representação, die Vorstellung,e a localizara no cerne do inconsciente iniciando uma série de equívocos e erros.O que a histérica dizia eram palavras "inconscientes" que não guardavam relaçãonenhuma com a representação. Ao postular que o inconsciente é estruturado comouma linguagem, Lacan o resgata da dependência da representação. A sua mate-rialidade é o significante. A primazia da representação produz o desconhecimentosistemático do real e a prática psicanalítica não se diferencia da histeria estabele-cendo com ela uma colaboração cúmplice de rejeição da coisa. O tão difundidomito edipiano não teria constituído um velamento do enigma da sexualidade dahistérica? De que serviria a Dora o saber sobre amor ao pai quando sua questãoestava em outro lugar, o desejo do Outro causado por uma mulher. Poderia adviralgo novo dessa referência constante ao pai cujo desejo a histérica se esforça emsustentar com seu sintoma? Ahisteria freudiana encontra no amor ao pai o rochedoque faz obstáculo à pergunta por um gozo não-todo fálico. O discurso da histérica,baseado no laço social da identificação, inventa o semblante. Como semblante doque causa seu discurso a histérica mostra sua divisão do sujeito encarnada nosintoma. O semblante — sem sua referência não é pensável a articulação dodiscurso — designa, pois, a função da verdade. Que a divisão do sujeito venhacomo semblante de agente vela a verdade em que se sustenta o discurso dahistérica: o a-mais de gozo que, sob a barra, anima seu sintoma. Precisamenteporque ela faz copular o semblante e o falo. O gozo sexual encontra no falo osignificante e o termo que permite sua conjugação ao semblante. A verdade dogozo da histérica radica na crença no falo como sendo o único termo possível decausar seu gozo por ser o "objeto" privilegiado que não a enganaria. Fazer ohomem é seu modo de sustentar o semblante fálico deixando intacta a questãoenigmática da sexualidade feminina. Que as psicanalistas mulheres não tenham,nesse século, avançado na direção de desvelar o ponto crucial do gozo da mulhernão só revela a pregnância do semblante fálico no discurso mas os benefíciosderivados de sua manutenção. Verifica-se sua incidência no teatro e nas roupagensque vestem a cena: a "primeira mentira" de Emma encontra no significante Kleider— vestidos — um suporte para o recobrimento da falta introduzida pelo desejodo Outro. Pois o que há entre a vestimenta e o corpo não é outra coisa senão o

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objeto inapreensível e fugidio, incomensurável ao significante. A afinidade queele mantém com a vestimenta faz suspeitar que detrás da aparência não há nada.É o lugar do pudor e do púbis que só como velado se faz público. A função doveu é tributária da castração e o seu levantamento demonstraria que ali, no lugardo Outro, há nada. O estatuto do objetos deve ser interrogado a partir da funçãodo semblante no discurso. A histérica faz troca e trucagem, esperando que o falorecubra integralmente o gozo e ela não tenha que saber nada além disso. Que ahistérica "ditasse" a Freud o mito do Édipo não ocultaria o que seu gozo deve aofalo e a castração... de seu parceiro, o que lhe permitiria restar longamente nainsatisfação?

A um século das primeiras histéricas, o laço social que elas constituíam foisubstituído pela "doidera psicanalítica"2: basta deparar-se com a banalização dasnoções freudianas que configura essa babel da psicanálise no século. Desarticu-lados e recalcados os conceitos fundamentais, assistimos ao ressurgimento dafunção do preconceito que rejeita a alienação essencial do sujeito no significantee no gozo. Não há de surpreender que aquilo rejeitado retorne nas formas maisrefinadas de segregação de gozo. É do analista considerar a "escroqueria" de suaprática ao menos no que se refere ao real como ponto de fuga do discurso.Existiria, nesse horizonte, a hipótese de um discurso que não seria do semblante?Para o analista, não todo o semblante é fálico; haveria, pois, disjunção entresemblante e falo. O discurso analítico estaria à escuta de um discurso que nãoseria do semblante, ali onde se marca o limite imposto no discurso pela relaçãosexual. A invenção do inconsciente, como meio-dito da estrutura de linguagem,apresenta o gozo como efeito de discurso. "O inconsciente não faz semblante. Eo desejo do Outro não é um querer falho" , diz Lacan. O inconsciente é um saberque consiste no ciframento. E no ciframento, para além de qualquer utilidade, estáo gozo sexual fazendo obstáculo a que essa parte do real, a relação sexual, possase escrever. O analista é encarnado por um semblante dessa abjeção que é o objetoa. O silêncio do analista corresponde ao semblante do objeto e leva o inconscienteproduzir mais-de-gozar. O analista, na medida em que é um dejeto do dizer,intervém ao nível do inconsciente.

Há chance, então, de disjunção e ruptura do semblante não sem que se evoqueo gozo como efeito de escritura, uma sulcagem operada no real. É do discursoanalítico manter, nos discursos existentes, a hiância aberta por Freud, o incons-ciente como um saber que aproxime um pouco mais do real.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FREUD, S. "Entwurf einer Psychologie" - 1895 - London, Imago Publishing Co., LTD,London.

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2. LACAN, }., Propôs sur l'hystérie. Conferência pronunciada em Bruxelas em 26 defevereiro de 1977.

3. "Discours prononcé le 6 décembre 1967 à I'EFP". in Scilicet 2/3, Paris, Seuil.Tradução in publicação da Escola Letra Freudiana n°0'.

BIBLIOGRAFIA

LACAN,)., Le Séminaire livre VII -UEthique de Ia Psychanalyse, Paris, Seuil.Le Séminaire livre XVII- UEnvers de Ia Psychanalyse, Paris, Seuil.Séminaire 18- D'un discours qui ne serait pas du semblant, inédito.Séminaire 21- Les non-dupes-errent, inédito."Lituraterre", in Ornicar41. Paris, Navarin.Véveil du printemps", in Ornicar 39. Paris, Navarin."Introdution à Tédition allemande d'un premier volume des Écrits" Scilicet 5,Paris, Seuil."Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines". Scilicet 6/7.Paris, Seiul.

A Boa Lógica do ErroAna Maria Portugal Maia Saliba

Analista é um sujeito que partindode premissas falsas conseguechegar a conclusões perfeitamen-te equivocadas

Millôr1

O erro se destaca entre os fenômenos descritos por Freud, em 1901, naTsicopatologia da Vida Cotidiana"2, como caracterizado por não ser reconhecidocomo tal pelo sujeito. Este lhe dá valor de verdade, lhe dá crédito e não o tomacomo lembrança falsa ou algo equivocado, ao contrário dos outros lapsos, quetrazem todos a dimensão de falha, de tropeço. Frente ao erro, o sujeito não semostra dividido.

Até na escrita, o tesouro da língua alemã registra o erro, Irrtum, com radicaldistinto dos outros fenômenos de lapsos, compostos todos com o prefixo ver, deorigem germânica: versprechen, verhòren, verlesen, vergreifen, vergessen (lapsosde fala, de escuta, de leitura, atos descuidados e esquecimento, respectivamente).Irrtum, o erro, tem sua origem latina.

Este destaque do erro em relação aos outros lapsos é visível na obra de 1901,mas nas edições posteriores, tanto quanto nas conferências sobre asFehlleistung,"Parapraxias", de 1916, o erro se mistura aos outros lapsos, e não chama espe-cialmente a atenção.

Mas é que desde o "Projeto"3, na parte III, dedicada a "Uma tentativa deapresentar os fenômenos psíquicos normais", no final do final, Freud surpreende-nos com esta questão:

"Como pode surgir erro na via do pensar? O que é o erro?"

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Ou seja, como é possível que um aparelho, regido pelas regras biológicas dadefesa primária e da atenção — descritas em todo o percurso do "Projeto" —como é possível que tal aparelho coloque um sujeito numa via de engano, semser alertado, pelo pensamento, para esta situação?

A opção de Freud pelo termo "pensamento", Gedanken, quer como processo,quer como conteúdo, aponta ao privilégio de unidades no campo da palavra —fala e escrita — questões que em textos posteriores, como por exemplo "OInconsciente"5, vão dizer de recursos da psicanálise como cura. Nestes recursos,as representações Pré-Conscientes, — Wortvorstellungen — Representações dePalavra, possibilitarão, como uma instigação de fora, reavaliar para o neurótico,seus esforços de recuperar o objeto, para sempre perdido. É uma operação espe-cial, pois não se trata do processo secundário dominante no Pré-Consciente, masque, contudo, não o esgota. Isso quer dizer que processo secundário e Pré-Cons-ciente não se igualam.

Pois, é exatamente das relações ou re-ferências (Beziehung) das palavras comas representações inconscientes da Coisa, onde precisamente claudica o processosecundário, que o Pré-Consciente, com as Wortvorstellungen, adquire um valorprecioso, com unidades passíveis de modificação e alteração. Esta é sua diferençaem relação aos processos inconscientes, que, como sabemos, são inalteráveis, porserem caminhos, que uma vez trilhados, nunca desmancharão seu sulco.

Do que posso extrair do texto freudiano, e principalmente da passagem finaldo "Projeto", é que está aí o campo do erro, recortado na região do Pré-Consciente,e indicado, no crédito que o sujeito lhe dá, o sulco da divisão, o ponto de falharadical do saber, ponto que daí por diante será marcado por um litoral, letra. Nosefeitos da análise, é função de escritura, escolher no tesouro da língua, um sinalque indique o oco dessa operação.

Vejamos o que Freud aponta nesta parte final do "Projeto".

Logo nos fala de uma primeira cisão. É que o pensar prático, original, queé a meta final de todo processo do pensar, apresenta cortes ou cisões em outrostipos de pensar, que modificam as vantagens do pensar prático: a de preceder oestado de expectativa e trazer uma configuração da ação específica, o que encur-taria o intervalo entre a percepção e a ação. O valor da prontidão é o que importae para isso deve servir o pensar, como premeditado. Se ele persiste demais,torna-se inutilizável.

A primeira cisão é a formação de juízo, à qual o Eu chega através de umadescoberta em sua própria organização, pela coincidência parcial dos investimen-tos de percepção e as informações provindas do próprio corpo. Nisso, separa-sea parte constante, não compreendida, a coisa e a parte variável, compreensível,as propriedades ou atributos da coisa.

A BOA LÓGICA DO ERRO 51

Várias articulações se fazem nessa via, para as quais têm importantíssimopapel as associações de fala, Sprachassoziation, vindas das representações sono-ras, Klangvorstellung, em associação estreita com as imagens motoras de fala,que são revestidas de qualidade de descarga.8 Na experiência de satisfação, ainformação do grito, e a dor, que o objeto desperta, assim como a emissão desons da parte de certos objetos, possibilitam encontrar, pela tendência à imitação,que faz parte do juízo, a informação de movimento correspondente a esta imagemsonora. E Freud conclui: "Não falta muito agora para inventar a linguagem"

Mas o que persiste como desejado é o estado-coisa, que vai sendo intensa-mente trabalhado e que faz-se valer independentemente da percepção real, que écircunstancial. O estado-coisa é constante.

O trabalho de pensar com juízos em vez de complexos perceptivos apresentagrande economia. Não sabemos, no entanto, se a unidade do pensar assim obtidaé apenas a representação de palavra.10

Na criação do juízo, o erro já pode ter feito sua intromissão, por não seremprecisamente idênticos os complexos-coisa e os complexos-movimento, e entre asdivergências podem estar alguns cuja omissão vicie o resultado na realidade.

É um defeito, uma carência {Mangel) do pensar: substituir um elemento porum complexo. Mas ao mesmo tempo esta é a vantagem das associações de fala,porque elas são "limitadas em número e exclusivas". Freud fala aqui da Línguacomo sistema ordenado de fonemas, e dando ênfase ao que poderíamos anunciarcomo significante:

Da imagem sonora, Klangbild, a excitação passa para a imagem de palavra,Wortbild, e desta para a descarga. São portanto, imagens de lembrança...11

Dessa conjunção disjuntiva surge o primeiro erro: enganos do juízo, Urteils-tãuschung ou erros, Fehler, incorreções das premissas.

Outra fonte de erro pertence também ao campo do juízo, mas do lado dapercepção, pois estas não foram completamente percebidas, por estarem fora docampo dos sentidos. São erros de ignorância. Ou então o Eu se desviou daspercepções, faltando o pré-investimento psíquico, e produziu percepções inexatase curso incompleto do pensar: são erros de falta — Mangel — da atenção.1

A conseqüência asfalta da atenção é que o curso do pensar pode optar portrilhamentos melhores, mas puramente associativos, isto é, não conduzidos porinvestimento de desejo, o que

terminará silenciosamente no investimento de algum neurônio vizinho, cujodestino não conhecemos como deve acontecer inúmeras vezes ao dia

Estes erros descritos até aqui são erros ligados à formação e criação do juízo.

Vamos agora aos erros do pensar (re)conhecedor.14

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O trilhamento (Bahnung) e suas ligações ( Bindung- bindem= atar, ligar,fixar) como conseqüência do juízo secundário (beurteilen= julgar, apreciar)fazem abreviar o pensar prático.

O trilhamento surge para estabelecer ligação pronta entre dois investimentos,podendo percorrer ou festejar (begehen=festejar) a via direta, em vez da antiga,mais laboriosa. Estabelece-se um trilhamento do pensar, mas nesse trabalho, podeser adotada uma via inadequada, por causa das produções de novas vias dedeslocamento.

Os erros do pensar reconhecedor são então: aparcialidade, e a incompletude.Por não ter conseguido evitar os investimentos-meta, houve parcialidade na aná-lise das percepções, e por não terem sido percorridas todas as percepções, a análisefoi incompleta.

Fazendo um registro da diversidade de termos usados por Freud para indicaressas funções em falha, destacamosMangel, Tãuschung, Fehler e Irrtum, isto é,carência, engano, incorreção e erro, que apresentam nuances interessantes:

Mangel16 = falta, defeito, penúria, pobreza, necessidade, carência.

Tãuschung = engano, ilusão.

Fehler = erro, falta, falha, afastamento da direção, incorreção, infração àsregras; falha determinada, fraqueza, insuficiência.

Irrtum = erro, julgamento errado, conclusão errada, equívoco, erro involun-tário.

Desde a carência concreta à abstração de uma conclusão errada ouequívoco,passando pela ilusão ou engano, pela incorreção ou infração, os vários termosdemonstram a precariedade do aparelho, que termina naparcialidade e incomple-tude, para lidar com o desejo que se atrela ao estado-coisa.

O outro tipo de pensar, o crítico ou examinador, dá origem a outro tipo deerro, o erro lógico. O pensar crítico ou examinador se justifica porque o processode expectativa, seguido da ação específica, apesar de todas as regras, pode con-duzir ao desprazer em vez de satisfação. Então o pensar crítico procura encontraralgum erro de pensamento ou falta psicológica {Mangel).

O pensar crítico se detém frente ao desprazer intelectual da contradição.Nisto consiste o erro lógico, na desatenção às regras biológicas, que se apoiamna ameaça do desprazer e na atenção e podem ser transpostas para as regras dalógica, onde o desprazer é a contradição.

Freud menciona ainda os erros na açãoi8, quer correspondam ao investimentototal das imagens de movimento, ou aquelas que pertencem à parte arbitrária daação específica. O que acontece é uma queda do nível do Eu, e as qualidadesmonótonas dessas imagens de movimento, que são sensórias, não se associam arepresentações de palavra, ao contrário, servem a elas. O efeito do movimento

A BOA LÓGICA DO ERRO 53

não é o desejado, pois elas fogem do trilhamento, utilizando vias motoras espe-ciais. Será esta passagem uma antecipação de toda a questão doagir e da repeti-ção?

De toda esta exposição sobre erros, o que gostaria de destacar é que nesteponto de Juro que o aparelho apresenta, o sujeito deposita crédito, tomando suaconclusão errada como certa, seja porque seguiu o desejo, que não pode parecerestranho / familiar, seja porque as respostas que deu ao não-sabido do desejo sechocam numa grande contradição.

Colocamos então uma pergunta: haverá um tema privilegiado, ou mais rigo-rosamente falando, um ponto, ou cego ou muito luminoso, que lance o sujeitonesta situação?

No texto freudiano, encontramos algumas articulações que trazem certascoincidências, como que um vetor que se traça sempre numa determinada direção.

Indicarei três delas: no tema dos sonhos absurdos, no capítulo dos erros e nomal-estar, cuja causa, o sentimento de culpa inconsciente, se declara o maisabsurdo dos erros.

O que nos revela o absurdo

Contradição, absurdo, este é um dos temas do trabalho do sonho (Traumar-beit), os sonhos absurdos, que encontramos na Traumdeutung19. Apesar de con-cluir, que o trabalho do Inconsciente "não pensa, não calcula, não julga , Freuddestaca a questão do absurdo, da contradição, e percebe, pela sua análise, que otema que cai mais facilmente sob este erro lógico é o tema da morte do pai.

Tais sonhos dizem: "...há algo de errado com o pai."210 pai aparece defor-mado, defeituoso do ponto de vista plástico, mesmo que se esforce por "perma-necer diante dos olhos do filho, após a morte, grande e imaculado..."

"O pai estava morto e não sabia..." de seu desejo de morte.Freud confessa encontrar freqüentemente uma inclinação a

manter os olhos abertos para a fraqueza do pai. Entretanto, diz ele a piedadefilia] exigida de nossas mentes pela figura de um pai, particularmente após asua morte, fortalece a censura, que impede qualquer crítica desse tipo de serexpressada claramente

A manutenção do absurdo no sonho indica a presença de uma polêmicaparticularmente acirrada e apaixonada....

Meu pai era o objeto explícito do ridículo... tratar como espantalho uma figuraque era sagrada... a censura permite dizer mais o inverídico que o verdadeiro.

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O inverídico permitido pela censura é a presença do absurdo, contrabalançadopela contradição. Os sonhos contêm elementos absurdos se o trabalho do sonhofor defrontado com a necessidade de representar alguma crítica, ridículo ouderrisão que pode estar presente nos seus pensamentos.

O que mostra estar presente nos pensamentos é isso, a insuficiência darepresentação "Pai" para dar conta dos paradoxos do prazer e do gozo, com queo desejo tem que se confrontar. E por outro lado, que credenciais tem c "Pai" eo que há de errado com o "Pai" para prestar-se a preencher este ponto paradoxal?

Há outra passagem de Freud, que aliás já mencionamos, que nos faz insistirnesta pergunta. Falo do capítulo dos erros na Tsicopatologia da Vida Cotidiana",onde os três primeiros exemplos, aliás, os únicos que constam da primeira ediçãode 1901, são exemplos do próprio Freud e exatamente em torno da questão do"Pai". Eles lhe ocorreram quando escrevia a "Interpretação dos Sonhos", duranteuma viagem, pretendendo fazer posteriormente alguma correção necessária, naconsulta às fontes. O que o surpreende é a coincidência em torno do pai.25

Io) Troca de Marbach por Marburg, como a cidade de nascimento de Schiller.

A troca se justificou por intrusões de pensamentos de crítica inamistosa aopai. Vemos que aqui a solução se dá por via metafórica, simbólica. Schiller é opai da literatura alemã.

2o) Troca do pai de Anibal, Amílcar, por Asdrúbal, erro não visto em trêsrevisões.

Freud o analisa como sendo uma troca àopai pelo irmão, pois que prefeririater sido filho do irmão, em vez de filho do pai, o que lhe permitiria ter tidomelhores condições de vida. São fantasias abafadas, reprimidas (unterdrückt). Avia imaginária mostrou aqui sua preferência, ainda mais que sabemos pelo próprioFreud, o quanto gostaria de ser como o conquistador Aníbal.

3o) Escreve Freud:

"Zeus castrou seu pai Cronos e o destronou. Localizei a atrocidade uma geraçãoadiante, pois foi Cronos que a cometeu contra seu pai Urano".

O irmão de Freud o teria dito:

Uma coisa que você não deve esquecer é que quanto à conduta de sua vida,você realmente não pertence à segunda, mas à terceira geração em relação a seupai.

O erro está onde Freud fala da devoção filial. Mas ao lado desta explicaçãonotamos que a atrocidade entre filho e pai, a castração, como contrapartida deuma atrocidade anterior, entre pai e filho, esta devoradora, real. Na borda do real,o mito se constrói e faz história.

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O mal-estar e o Pai: o sentimento de culpa inconsciente

No cap. VII do "Mal-estar na Cultura"26, a origem do sentimento inconscientede culpa aponta às relações entre o Eu e o Supereu, para tentar explicar o porquêdo incremento de agressividade do Supereu, que age sadicamente sobre o Eu,agressividade essa que não provem diretamente da agressividade dos pais dosujeito em questão.

O sentimento de culpa e a necessidade de punição surgem como um resto(Rest), sustentando a afirmativa paradoxal de que "a renúncia pulsional exigiriacada vez mais renúncias pulsionais."

Contra a autoridade, que a impede de suas primeiras e também muito signifi-cativas satisfações, a criança deve ter desenvolvido uma quantidade conside-rável de tendências agressivas, não importando o tipo de privação (Entsagung)pulsional exigida. Premida pela necessidade, ela é obrigada a renunciar (Ver-zicht) à satisfação dessa agressão vingativa. O que a ajuda a sair dessa situaçãoeconomicamente difícil, é o caminho de conhecidos mecanismos, nos quais,através da identificação, aceita em si a autoridade inatacável, que então se tornao Supereu, tomando posse de toda a agressão que a criança gostaria de exercercontra ela. O Eu da criança deve se contentar com o triste papel da autoridadeassim rebaixada (erniedrigt), do pai. Como freqüentemente acontece, há umainversão da situação. "Se eu fosse o pai e você a criança, eu te trataria mal." Arelação entre o Supereu e Eu é um retorno, deformado pelo desejo, das relaçõesreais entre o Eu ainda indiviso e um objeto externo.

Podemos destacar desta passagem, três condições sob as quais se apresentaapulsão: Triebentsagung, Triebversagung e Triebverzichtrespectivamente,pri-vação pulsional, frustração pulsional e renúncia pulsional (castração)

A Entsagung apontaria ao impossível de dizer da pulsão, a privação.

A Versagung, literalmente, falha no dizer da pulsão, pois que ela contorna umobjeto e tem que passar pelo desfiladeiro do significante, alienada à demanda.

A Verzicht, renúncia, apontando à obediência às normas da cultura, sob aégide do F e das estruturas do parentesco. Castração, que, no entanto implica emganho simbólico, é troca.

De toda esta contingência pulsional, o responsável é o Pai (é o que propõeFreud). Ele acena para o gozo, ele propõe a ordem, ele exige renúncia. Tudo estána mão do Pai, que, portanto, deve ser amado.

Mas por outro lado, o Pai não tem resposta, nem para aprivação (Entsagung)e nem para a frustração ou falha no dizer (Versagung) da pulsão. Só para arenúncia (Verzicht), onde se marca a castração.

Assim sendo, o Outro, o Pai, é inconsciente, não existe, "e por isso eu o odeio.Mas o faço existir, amando-o". É o que se pode ter no andar superior do grafoda Subversão de Lacan, no lado direito, como a escrita da pulsão: $ 0 D. Do outro

56 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

lado, está escrita sua inconsistência, S (fi.) e por isso eu o odeio. Estão aí, nestevetor do grafo, o ódio e o amor ao Pai.

O Eu não pode usar agressividade contra o Pai, para vingar-se de suasproibições e incompetências. O Eu deve amá-lo, como autoridade inatacável.

Degrada o Pai, em fantasia. A agressividade vai para o Supereu, e o Eu seidentifica com o Pai degradado. A culpa ou pecado do Pai recaem sobre o Eu. Oconflito é encenado internamente, só que invertido. A identifiação com o Paidegradado submete-se ao recalque, manifestando-se no sentimento de culpa in-consciente, que se expressa no mal-estar. E a agressividade do Supereu para como Eu é abafada, subdeposta (unterdrückt)28 na fronteira das representações pré-conscientes, como interdição e exigência de gozo, apontando sua origem proscritano gozo do Pai.

Esta passagem mostra o masoquismo como a resposta do sujeito à inconsis-tência, ao absurdo das exigências em torno do Pai, mantendo no entanto o Pai asalvo, fora de questão.

O erro é deslocado, das exigências ao Pai, diretamente para a pele do sujeito,que, por identificação, se degrada num gozo de vítima. É a presença do real, dapulsão de morte.

Que outras respostas pode o sujeito produzir neste lugar de erro, de conclusãoerrada?

Talvez o sintoma, que com sua vertente significante, traduz esse gozo pelavia simbólica, dando ao sujeito um lugar de certa sofrida garantia. Mas suaestrutura de retorno mantém viva a pergunta: Pai, não vês que estou queimando?E continua exigindo cada vez mais...

Se, no entanto, tomarmos o sintoma como real, não pela via da conclusãoerrada, mas pela via do equívoco, voltamos ao campo do erro, bem exatamenteno seu ponto de origem, que o texto do "Projeto" nos acena.

Vimos que o erro tem sua razão primeira na cisão que sofrem os processosdo pensar, quando se separa de seus atributos a parte constante, a Coisa, comonão compreensível. E o que permanece constante é o desejado estado-coisa(gewünschte Ding-Zustand)29

Equívoco30, do latim aequivocu, quer dizer aquilo que tem mais de um sentidoou se presta a mais de uma interpretação. Na lógica, sofisma verbal que consisteem dar sentidos diferentes a uma palavra dentro de um mesmo raciocínio.

É curioso que o prefixo latino aeque31, no entanto, quer dizer justamente,igualmente, como testemunham muitas palavras de nosso vocabulário, como porexemplo equiparar, equivalência e outras. E vocu refere-se a voco, vocare, que éum verbo que se traduz por nomear, chamar, invocar.

A BOA LÓGICA DO ERRO 5 7

Então, o equívoco, nesse lugar do erro, não se produz por igualar os chama-dos, as vozes, os sentidos, mas por igualar o sentido à voz, ao chamado, pois oque importa aqui não é o conteúdo expresso nas várias vozes, mas dependendoda voz, na sua condição de resto, é que justamete se abrirá alguma coisa, talveza Coisa, das Ding — coisa inédita, constante, tão desejada.

REFERENCIAS BIBÜOGRFICAS

1. FERNANDES, M. - Millôr Definitivo - A Bíblia do Caos - Porto Alegre - L & M Editores,1994, p.22.

2. FREUD, S. - "Zur Psychopathologie des Altagslebens" - 1901 - Cesamme/te Werke -Band IV - Frankfurt am Main - Fischer Verlag - 1978 - p.243 (Edição StandartBrasileira - vol.VI - Rio - Imago Editora -1976 - p.263)

3. - "Entwurf einer Psychologie" -1895 - in "Aus den Anfãngen der Psychoa-nalyse" - London -1950 - p.461 (ESB - vol.l - Rio - Imago Editora -1977 - p.501)- Tradução Livre.

4. - Op.cit. - p.451 - (ESB - p.487)5. - "Das Unbewubte" - 1913 - CW - Band X - op.cit - p.302-303 - (ESB -

vol.XIV - op.cit - p.232-233)6. Optamos aqui por manter o verbo substantivado "pensar", e não o substantivo

"pensamento", para trazer a força de ato que fica presente no texto alemão. Notexto do "Projeto", está sempre o verbo no infinitivo, usado como substantivo:das Denken, das Erkennen, das Reproduzieren, das Erinnern, das Urteilen, res-pectivamente, o pensar, o (re)conhecer, o reproduzir, o lembrar, o julgar.

7. FREUD, S. Op.cit. "Entwurf..." - p.462 (ESB - "Projeto..." - p.501)8. Ibidem - p.443 (ESB - p.480)9. Ibidem-p.445 (ESB-p.481)

10. Ibidem - p.462 (ESB - 502)11. Ibidem - p.443-444 (ESB - 478-479)12. Ibidem - p.462 (ESB - p.502)13. Ibidem - p.442 (ESB - p.476)14. Ibidem - p.464 (ESB - p.504)15. Ibidem - p.463 (ESB - p.5O3)16. Para tradução desses termos foram usados os dicionários: Langenscheidts Taschen-

wõrterbuch - Alemão-Português, Berlin Schõneberg e Wahríg Deutsches Wõrter-buch, Mosaik Verlag, München.

17. FREUD, S. - Op.cit. - p.464-465 (ESB - p.505)18. Ibidem - p.465-466 (ESB - p.505-506)19. FREUD, S. - "Die Traumdeutung" - 1900 - CW- Band ll-lll - op.cit., p.455-47420. Ibidem-p.511 (ESB-p.541)21. Ibidem - p.430 (ESB - p.456)22. Ibidem -p.431 (ESB-p.458)23. Ibidem - p.432 (ESB - p.459-460)24. Ibidem - p.437 (ESB - p.465)25. Ibidem - p.438-439 (ESB - p.466-467)25. FREUD, S. - "Zur Psychopathologie des Altagslebens" - 1901 - CW - Band IV -

p.243-245 (ESB - vol.VI - op.cit., p.263-266)

58 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

26. - "Das Unbehagen in der Kultur"-1930 - CW- Band XIV - op.cit, p.488-489(ESB-vol.XXI-op.cit., p.153)

27. LACAN, J. - Écrits - Paris - Éditions du Seuil - 1966 - p.819.28. FREUD, S. - Op.cit. - p.489 - (ESB - p.153)29. - Op.cit. - "Entwurf..." - p.462 (ESB - "Projeto..." - p.502)30. Novo Dicionário Aurélio - Rio - Editora Nova Fronteira - 1986.31. Ibidem

Projeto... Texto que RetornaMaria Cristina Ferraz Coelho

O "Projeto"-texto manteve-se pouco tempo nas mãos de Freud. Como sabe-mos, começou a escrevê-lo em 4 setembro de 1895, e, em 10 de outubro do mesmoano, já o descartava. A partir daí, sequer faz referência a este trabalho, embora asidéias aí presentes retornem à medida que avança na sua teoria.

É um texto marcado pela falta. Não foi nomeado, não foi concluído nem foipublicado por Freud. Anos depois, ao reencontrá-lo nas mãos de Marie Bonaparte,mais uma vez quis descartá-lo e mantê-lo excluído de sua obra. A ela devemos odestino que lhe foi dado: entregou-o aos editores d&Aus den Anfãgen der Psy-choanafyse que o publicaram em 1950, sendo logo em seguida traduzido porStrachey, que tenta preencher as lacunas do texto com colchetes e parênteses ondeinsere palavras supostas.

Emílio Rodrigué, na sua recém-escrita e ainda inédita biografia Freud noséculo, designa o "Projeto" com um apelido instigante, que também menciona afalta: "torso renegado" - produto do casamento improvável de um sapo com umaborboleta. Figura truncada do torso, falta a cabeça, a quarta parte prometida aFliess, que deveria conter a chave do sistema. Freud optou por ouvir a "vozsilenciosa" que lhe dizia que suas explicações não eram suficientes.

Do alvoroço provocado pela importância de sua publicação, restaram inter-pretações como "último e desesperado esforço para apegar-se à anatomia cere-bral", que o situaram como escrito pré-psicanalítico. Entretanto uma nova pers-pectiva de leitura se abre, a partir do corte efetuado por Lacan no seu retorno àobra de Freud.

No seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, o 'Projeto"adquire estatuto de texto metapsicológico. No seminário A relação de objeto, anoção de objeto perdido desenvolvida no "Projeto" é articulada à de objeto da

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60 100ANOS DE PROJETO FREUDIANO

pulsão oral dos "Três ensaios sobre sexualidade", o que, para Lacan, serve paraexplicitar que a primeira dialética da relação de objeto apresentada por Freud jáé marcada pela busca do reencontro. Mas é no seminário de 1959-60 que ao"Projeto" é dado um lugar-chave. Nele Lacan encontra inspiração e fundamentospara definir uma ética própria à psicanálise, ética do desejo, inscrita no universoda falta. Talvez, ponto de partida para se pensar a incidência de Lacan no "Pro-jeto"-texto, no projeto freudiano e no projeto da psicanálise.

A ética da psicanálise distingue-se das concepções filosóficas e religiosas atéentão formuladas, que se orientam na direção de aproximar o prazer à felicidadee ao bem supremo. Para Freud, o bem supremo está perdido por estrutura, éimpossível de se recuperar, já que o princípio do prazer se funda na exclusão deum objeto originariamente perdido. Não se trata tampouco do ideal do amorhumano, concluído sob a primazia genital; não se trata do ideal de autenticidade,nem do ideal da não-dependência, como aparece subjacente a algumas concepçõesditas psicanalíticas. Inscreve a ética da psicanálise fora do âmbito do ideal, parasituá-la em outro lugar, visando a relação do sujeito ao desejo.

A partir de indicações fornecidas por Lacan, a nossa proposta é articular, emtorno da falta, algumas idéias presentes no "Projeto": a experiência de satisfaçãoe o seu resíduo não assimilável, a série prazer-desprazer e a função do juízorelacionada à primeira partição do sujeito, que retornam em outros textos da obrade Freud - capítulo VII de "A interpretação dos sonhos", "Além do princípio doprazer" e "A negação".

A experiência de satisfação no "Projeto" e seu retorno nocapítulo VII da Interpretação dos Sonhos

Freud expõe pela primeira vez a experiência de satisfação no capítulo VII,onde, também pela primeira vez, apresenta um modelo do aparelho psíquico,"evitando a tentação de determinar a localização psíquica por qualquer modoanatômico", retratando-o como um microscópio ou uma máquina fotográfica.

A experiência de satisfação é fundamental para a estruturação e funcionamen-to do aparelho e serve como ponto de partida para se pensar como o sujeito éintroduzido na ordem simbólica e como se constitui o desejo humano. Origina-riamente trata-se da satisfação de uma necessidade biológica, através da "açãoespecífica". Experiência que se inscreve como memória de outra ordem, a "marcamnêmica desiderativa", que força a separação entre satisfação da necessidade erealização de desejo. Por quê? Quando surge novo estado de urgência, o aparelho,sob o domínio do processo primário, persegue a marca mnêmica, o reencontrocom o objeto mítico, na busca de restabelecer a satisfação original. Um impulsodesta espécie, diz Freud, é o desejo, força que impulsiona o funcionamento dos

PROJETO... TEXTO QUE RETORNA 61

processos psíquicos no sistema inconsciente, regulados pelo prazer-desprazer. Asua realização está no reaparecimento da percepção pela via alucinatória. O sonhocomo realização de desejo é a sua grande descoberta.

É um aparelho que de início se dirige ao engano. Frente à inadequação destefuncionamento, o processo secundário, regido pelo princípio de realidade, vaiexercer a função de inibição e retificação, visando assegurar a existência do objetona realidade externa através da identidade de pensamento.

Lacan, em 1955, para demonstrar a categoria do simbólico em Freud, faz umpercurso no qual inclui o capítulo VIL O sonho, assim como outras formações doinconsciente, permite apreender a presença da função simbólica que está em jogo- a subjetividade é tratada como sistema organizado, e o inconsciente estruturadocomo linguagem. A experiência de satisfação é então abordada pelo viés dodesejo, marco central na teoria freudiana que estabelece a relação do ser com afalta. Não existe satisfação efetiva do desejo e, sim, uma realização metafórica.

O desejo é de nada, nunca pode ser nomeado, só advém à existência atravésdo símbolo. Por não ser satisfeito, se repete, articulado à cadeia significante e àinsistência do automatismo da repetição. Neste momento da teorização lacaniana,o desejo está situado no mais além, como repetição, enquanto o prazer está ligadoà homeostase e satisfação biológica. O mecanismo homeostático do organismo érompido pela cadeia simbólica que se sustenta na repetição, cuja estrutura tambémé simbólica. Posicionamento teórico que será reformulado em 1960, quando odesejo é conivente com o prazer, e o gozo, com a satisfação.

No "Projeto", ao procurar introduzir a hipótese de um aparelho psíquico,Freud faz uma tentativa frustrada de relacioná-lo à anatomia, posição contráriaàquela tomada em 1891, quando propõe o "aparelho da linguagem" na monografia"As Afasias".

O aparelho é representado com base no modelo arco-reflexo, orientado peloprincípio de inércia. A descarga, função primordial, está associada ao prazer,enquanto o excesso, ao desprazer. A experiência de satisfação, que encontra suamarca na materialidade das cadeias neuronais, também é considerada ponto departida para explicar a sua origem. Mas, em 1895, Freud apresenta questões queestão excluídas no capítulo VII: a condição do desamparo infantil é explorada; afunção do juízo é fundamental para a organização do aparelho; a experiência desatisfação deixa um resíduo não assimilável - das Ding.

A impossibilidade de efetivar a ação específica, coloca o bebê humano nolugar de absoluta dependência de um outro que, por sua vez, decifra, nomeia epromove aquilo de que ele necessita. A experiência de satisfação, cujo paradigmaé a amamentação, compõe o que Freud chama Nebenmensch ou o "complexo dopróximo", ao qual se refere: "essa via de descarga adquire a importantíssima

62 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

função secundária de comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é afonte primordial de todos os motivos morais" (Freud, v.l, p.422).

Esse encontro marca a presença do Outro, da ordem simbólica, como deci-siva para o estabelecimento dos efeitos da linguagem na estruturação da subjeti-vidade. Encontro jamais descrito com tanta precisão por Freud, selado pela im-possibilidade e pela produção de um resto. Trata-se da primeira apreensão darealidade pelo sujeito, elaborada de tal forma que introduz uma nova concepçãodo sujeito e do objeto, rompendo com a noção de relação de complementaridadeentre ambos.

O complexo do objeto, como é denominado, é dividido em duas partes. DasDing, a Coisa, é o elemento isolado como Fremde, estranho; perdido para sempre,paradoxalmente está sempre presente, é a parte constante do complexo. Não estásubmetido às leis que regulam o funcionamento do aparelho e esquiva-se à funçãodo juízo. A outra parte refere-se a tudo aquilo que pode ser formulado comoatributos. Estes estão submetidos à função do juízo e presentes na atividade dopensamento, que visa a identidade e indicação da realidade.

No seminário^ ética da psicanálise, Lacan retoma a experiência de satisfa-ção, desta vez pontuando das Ding - objeto que o sujeito tenta reencontrar, mesmofrente à impossibilidade do reencontro, por ser perdido por estrutura. É em tornode das Ding que se organiza o campo do desejo. Em sua direção, as Vorstellüngeninconscientes atraem-se umas às outras, trilhamentos percorridos e regidos peloprincípio do prazer. Anterior a qualquer inscrição e ao recalque, das Ding aparececomo uma referência ao real. Está articulado também ao gozo, satisfação própriade um corpo atravessado pela materialidade do significante. Das Ding tambémpode ser a mãe, diz Lacan, sendo seu correlato o desejo incestuoso. A interdiçãodo incesto é a lei primordial; ao mesmo tempo, o incesto é o desejo mais funda-mental. Uma menção à perda da mãe não como função anaclítica de apoio danecessidade e, sim, como lugar da perda originária do gozo.

Neste seminário, Lacan faz reformulações teóricas importantes. Correspondeao momento em que se defronta com o limite do simbólico na cura a partir doqual o gozo é introduzido. Há modificação da tríade necessidade-demanda-desejo,para gozo-demanda-desejo, modificação que contém uma redefinição do conceitode real. As conseqüências iriam repercutir, de forma marcante, na direção da cura.

A série prazer-desprazer: os paradoxos do princípio do prazer

Vejamos agora o retorno do princípio do prazer, cuja problematização foi seefetivando até 1920. Em "Além do princípio do prazer", Freud dispõe-se a encon-trar solução.

Até então, ele havia sustentado o império do princípio do prazer. Todas aspossíveis rupturas pelo viés do desprazer não eram suficientes para contradizê-lo,

PROJETO... TEXTO QUE RETORNA 63

apesar de, nas entrelinhas do "Projeto", já se encontrarem idéias que contrariamesta definição.

Em 1920, ao incluir o fator econômico para interrogar o valor deste princípio,aparece pela primeira vez algo que questiona os seus limites. Não se trata dainibição do princípio do prazer pelo princípio de realidade, que apenas protela asatisfação. Não se trata tampouco do desprazer provocado pelas formações subs-titutivas, caso em que o prazer buscado por um sistema produz desprazer em outro.Trata-se do que inicialmente denomina "a reação mental ao perigo externo".

Perigo externo ou ponto de exterioridade que se mostra no interior da estru-tura?

Trauma e dor são experiências descritas de forma semelhante nos dois textosque estão sendo considerados. Concepção freudiana que faz alusão ao encontrotraumático do ser vivente com a linguagem e possibilita pensar a dimensão própriada pulsão. Refere-se à irrupção súbita de excitação, provinda de fora, suficiente-mente poderosa para atravessar qualquer proteção da superfície e atingir o orga-nismo - o "escudo protetor" do "Além do princípio do prazer", quando usa omodelo da vesícula, correlato óbvio das telas protetoras do "Projeto", onde Freudcompara: "é como se o organismo tivesse sido atingido por um raio". É o maisimperativo de todos os processos e provoca total distúrbio no funcionamentoenergético do organismo. Situação em que o princípio do prazer é colocado forade ação.

Para a excitação proveniente do interior, pulsões ou "exigências da vida", nãohá escudo nem proteção. O desprazer provocado é tratado como se atuasse desdefora, o que faz pensar o trauma como interior à estrutura, onde a irrupção pulsionalopera. O trabalho do aparelho será na direção de vincular a energia livre, funçãoindependente e mais primitiva, além do domínio do princípio do prazer. Conclui,então, que a pulsão não se encontra totalmente regulada pelo prazer-desprazer,assim como, em 1895, afirma que os restos da experiência de satisfação (estadosde desejo) e da experiência da dor (afetos) se furtam à vinculação procurada pelaatração de desejo e pela defesa primária. Há algo que escapa e força a busca dasatisfação e não do prazer.

Assim, uma nova dimensão do prazer aparece: como lei, articulado ao desejo,tem a função de regular a direção a ser percorrida na cadeia significante, barrandoa insistência repetitiva do gozo.

Juan Carlos Cosentino, nos textos que apresenta em Pontuaciones freudianasãeLacan, considera duas rupturas do princípio do prazer. A primeira diz respeitoà perda da homeostase do organismo, efeito da experiência de satisfação, onde seproduz o corte entre satisfação da necessidade e realização do desejo. Aí se impõee se sustenta o prazer de desejar, e a realização do desejo encontra uma satisfação:

64 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

satisfação parcial da pulsão, quando articulada à cadeia significante, via pela qualse estabelece uma ligadura e o gozo se articula ao desejo.

A segunda ruptura aponta para a perda inaugural do gozo. É introduzida porFreud na sua indagação sobre a reação frente ao perigo externo. Trata-se dairrupção do traumático, da energia não ligada, que invade o aparelho psíquico. Asua insistência está na compulsão da repetição, trabalho do aparelho que buscafazer ligadura.

No "Além do princípio do prazer", a tensão produzida no funcionamentoenergético abre o caminho que Lacan percorreria até "a economia política dogozo": Produção operada pela ação do significante sobre o corpo, quando seestabelece a perda da complementaridade sexual, a perda originária do gozo. Perdaeconômica que implica uma contabilidade a partir da qual pode-se falar de ganhose de uma distribuição que varia segundo a estrutra do discurso - as formassuplementares de gozo, cuja dimensão é sempre parcial.

A função do juízo 30 anos depois

A função do juízo faz seu retorno em "A negação". Relacionada ao conceitode das Ding, como está no seminário A ética da psicanálise, permite nova abor-dagem sobre a divisão originária. Cabe uma observação sobre o valor do texto "Anegação" que utilizamos aqui, traduzido do alemão por Eduardo Vidal e seguidode seus comentários na Revista da Letra Freudiana Ano VII - no. 5.

Em 1895 o juízo é definido como meio de reconhecimento de um objeto.Não é uma função primária e, sim, um processo que só se torna possível graçasà inibição exercida pelo eu. A funçãp judicativa é evocada pela diferença entrea catexia de desejo e o investimento de uma percepção que lhe seja semelhante,visando a coincidência parcial entre ambos. Provoca a dissecação do complexoperceptivo e age exclusivamente sobre uma parte do complexo, os atributos oupredicados, parte que pode ser compreendida e se presentifica nas vinculaçõesque caracterizam as diversas formas de pensamento. A Coisa, das Ding, primeiroexterior, está fora de significado; é resíduo que se esquiva ao juízo. Produto daatividade do significante que ao mesmo tempo lhe escapa, Lacan aproxima-a aoconceito do real. Não pode ser apreendida, está sempre no mesmo lugar, lugarque as representações circunscrevem, organizando o campo do desejo.

No texto de 1925, a função do juízo é introduzida como referência ao "não"do discurso, como operação que age sobre a frase. O significante precedido donão pode ser chamado à cadeia, possibilitando a suspensão do recalcado, aomesmo tempo em que mantém o essencial do recalque. Freud quer saber sobre aorigem desta função. E o faz no campo do Outro, ao relacionar o juízo às pulsõese ao apontar para a distinção pré-subjetiva do dentro e fora.

PROJETO... TEXTO QUE RETORNA 65

Duas decisões cabem ao juízo: atribuição e existência. A primeira, atribuiçãode uma qualidade - boa ou má - está sob o domínio da lei do prazer. O eu-prazerintrojeta o objeto da satisfação que tem qualidade boa. Decisão tomada semsuposição de sujeito. Aí não é o sujeito quem julga, quem decide, ele é, antes,julgado. Freud escreve na língua das antigas moções da pulsão oral: "quero comerisso ou quero cuspi-lo", assegurando a partição primeira: "quero introduzir issoem mim e quero expulsar isso de mim". No introjetado está a inscrição dosignificante a partir do campo do Outro, operação simbólica. O expulso, o estra-nho, Fremde, resto da operação de inscrição, fica fora da simbolização e determinao real.

A outra decisão do juízo recai sobre a comprovação da existência, na reali-dade, de uma representação inconsciente. Interesse do eu real, que se efetivaatravés da prova de realidade. Não importa apenas introjetar o bom, incluir umarepresentação, mas decidir se algo que já foi afirmado pode ser reencontradotambém no mundo de fora, certificar-se de que ainda existe, de modo que se possaapoderar-se dele. Freud considera como condição para a instalação da prova derealidade que tenham sido perdidos os objetos que trouxeram originaríamente asatisfação real, ou seja, o resto da experiência de satisfação. Para evitar o enganoda satisfação alucinatória, a prova de realidade tem que levar em conta a faltafundante do campo da representação.

Freud conclui que o julgar se estabelece a partir da inclusão no eu e expulsãodo eu, realizados conforme o princípio do prazer. Encontra uma correspondênciana oposição das pulsões. A afirmação, substituto da unificação, pertence a Eros.ABejahung - afirmação primeira, está correlacionada a uma inclusão significante.A negação, sucessão da expulsão, pertence à pulsão de destruição. Comporta umaexpulsão do eu, que constitui o real excluído da ordem do simbólico.

Em "A negação" reencontramos o das Ding, o estranho, Fremde, na mesmafunção daquilo que do interior do sujeito, encontra-se originariamente levado paraum primeiro exterior. Topologia que Lacan denomina exterioridade íntima, umexterior que está dentro e um interior que está fora. Espaço onde o sujeito seconstiui em relação ao Outro.

Concluímos afirmando a importância do trabalho que Lacan faz sobre o"Projeto"-Texto, que reflete a sua incidência na psicanálise e marca a sua presençanesses 100 anos de Projeto Freudiano.

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. "Projeto" para uma psicologia científica". Obras Completas Ed. Standard Brasi-leira,. Vol. I - Rio de Janeiro: Imago, 1977

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. Seminário VII: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1988VIDAL, E. Comentários sobre "Die Verneinung". Revista da Letra Freudiana - Ano VIII, Rio,no. 5

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O Projeto FreudianoRenato R. P. de Carvalho

Um homem como eu não pode viver sem um cavalo de batalha, sem uma pai-xão devoradora, sem um tirano. Encontrei um. A serviço dele não conheço li-mites. Trata-se da psicologia, que foi sempre minha meta distante a acenar-me, e que agora, desde que deparei com o problema das neuroses, aproxi-mou-se muito mais. Estou atormentado por dois objetivos: examinar queforma irá assumir a teoria do funcionamento mental, se introduzirmos consi-derações quantitativas, uma espécie de economia das forças nervosas, e,em segundo lugar, extrair da psicopatologia um lucro para a psicologia nor-mal.1 (25.05.1895)

Neste ano de 1895 Freud está no auge de sua transferência à Fliess. Envia aoamigo várias cartas que revelam uma espécie de ciclotimia, são marcadas por umtom de angústia, dão a impressão de que algo muito importante está para serproduzido. Com efeito, no final do ano envia à Fliess o manuscrito do "Projeto".No biênio 1895/1896 são escritas as obras mais importantes de toda a correspon-dência: o próprio "Projeto", a carta de 1 de janeiro de 1896, o "Manuscrito K" ea célebre "Carta 52". A amizade, que começara em 1887, torna-se uma espéciede amor cego de 1894 a 1896 e, a partir daí, começa a declinar. Como disse muitobem Mannoni, no seu estudo sobre a "Análise Original", a relação dos doisproduziu do lado de Fliess "um delírio de saber" e do lado de Freud "um sabersobre o delírio".

É sob a influência dessa relação que Freud vai inventar a psicanálise, estabe-lecendo os seus fundamentos teóricos e apontando os caminhos do seu desenvol-vimento futuro. No entanto a relação apresenta caraterísticas, no mínimo, curiosas.De um lado Freud, educado na disciplina de um pesquisador de laboratório,desenvolvendo uma teoria a partir da observação de fatos clínicos, decorrentes deum longo trabalho com pacientes histéricas. De outro, Fliess, um otorrino deprática limitada, que constrói um delírio paranóico, publicado em 1897, com o

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70 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

incentivo e a aprovação de Freud sob o título As relações entre o nariz e os órgãosgenitais femininos apresentadas segundo suas significações biológicas.

"A relação sexual não há. É preciso escrevê-la", diz Lacan. E Freud escreve.Mas, não só escreve, vai além, procura identificar as variáveis relevantes, desig-ná-las por letras e estabelecer uma sintaxe que as articule. Busca estabelecer umaescritura da psicanálise. E este esforço se inicia justamente quando sua paixão porFliess é mais intensa. Este ocupa o lugar do Outro que detém um saber universal;está incluído no fantasma de Freud. Do lado de Fliess, não há fantasma, há delírio.Segundo relato de sua viúva, ele nem leu o manuscrito do "Projeto". Parece-meque a escritura tem aí o papel de proteger Freud da invasão de um delírio que seproduz no lugar do Outro. Posteriormente, diversos discípulos de Freud que, comoFliess, acreditavam na relação sexual, ameaçaram a teoria psicanalítica com suasconstruções delirantes.

No "Projeto" está implícita uma topologia e uma lógica. Parece-me quepoderíamos considerar a topologia como a de uma cadeia simples cp \y co. Na cartade 1 de janeiro de 1896 Freud modifica a estrutura: qualidade, excitação e quan-tidade passam a relacionar os sistemas cp, \|/ e © de um modo tal que se faltar umdestes predicados os outros dois desaparecem, o que me parece configurar umaestrutura borromeana de três elos. Não se trata aqui de estabelecer uma corres-pondência biunívoca entre o sistema cp y co de Freud e o sistema RSI de Lacan.Poderíamos considerar que RSIecp y co correspondem a semânticas da estruturaenquanto o caráter borromeano corresponderia à sintaxe.

O PROJETO FREUDIANO 71

A lógica do texto é uma lógica do não-todo ou uma lógica para-completaconforme nos ensina Vappereau. Se o objeto da realidade pudesse coincidir como objeto do desejo o sistema se completaria e seria inconsistente. A consistênciasó se mantém faltando um elemento que o complete. Em uma passagem, diz Freudque o eu sofre desvalimento "quando no estado de desejo investe de novo oobjeto-recordação e então decreta a descarga; não obstante, a satisfação por forçafaltará, porque o objeto não tem presença real mas somente uma representação-fantasia." A única maneira de não acontecer isto é o eu inibir as recordaçõesdesejadas para que possa se sobressair o signo de realidade objetiva, ou seja,haverá uma discordância permanente entre o objeto da realidade e o objetodesejado. Ora, este é o mecanismo do desejo, é o que faz o aparelho funcionar.Mais tarde, no capítulo VII, da "Interpretação dos Sonhos", ele dirá que o desejoé o motor do aparelho psíquico.

É curioso que Freud tenha renegado toda a correspondência a Fliess, seja pelohorror das lembranças da relação, depois que a transferência se desfaz, seja pelofato de estar tentando apoiar os fenômenos da "psicologia" em uma escrituraneurológica. O fato é que os trabalhos desta época marcarão os desenvolvimentosfuturos e o real da estrutura ficará de certa forma escamoteado durante muitosanos até ressurgir em "Além do princípio do prazer" e "O eu e o isso".

Esta última obra, publicada em 1923, constitui um extraordinário esforço deFreud de produzir novamente uma escritura da psicanálise, já agora despida dequalquer referência neurológica, condensando mais de 20 anos de teorização emum texto que surpreende pela sua concisão. O "Projeto" e "O eu e o isso" têmmuitas semelhanças. A motivação para a elaboração dos dois textos é clínica; noprimeiro, clínica da histeria, no segundo a melancolia. Em ambos, a estrutura, ou"arquitetura", leva a uma separação entre prazer e gozo. A causa de tensão daestrutura é o furo, o real. Em ambos há uma estrutura ternária, no primeiro umatopologia de nós enquanto no segundo é sugerida uma topologia de superfícies.O desenho de Freud no texto mais recente lembra a representação do cross-capproposta por Lacan. A linha do recalque poderia talvez ser pensada como a linhade invaginação do cross-cap.

O mais importante desses dois textos é que eles estabelecem um vetor parao desenvolvimento da teoria psicanalítica com implicações éticas e políticas: apartir da clínica produzir uma escritura da psicanálise que, retroativamente, pro-duza efeitos sobre a própria prática clínica. Este é o projeto freudiano, retomadopor Lacan a partir da década de cinqüenta A grande diferença de Lacan paraFreud foi ter produzido uma escritura da experiência analítica, introduzindo oobjeto a, sua contribuição para a psicanálise conforme ele mesmo disse, enquantoFreud ainda se colocava como o cientista que olha para o seu objeto, no caso, oaparelho psíquico.

72 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

Já no Seminário 1, Lacan declarava que a psicanálise só avançaria se intro-duzisse os símbolos da sua prática. Muito mais tarde ele vai dizer "só se transmitematemática". Ele estava consciente de que só uma escritura de estilo matemático,articulada por uma lógica própria, poderia defender a psicanálise dos efeitosdeletérios dos narcisismos individuais e grupais, bem como dos desvios delirantes.Ao contrário de Freud, que na "História do movimento psicanalítico" propõe umaInstituição universal comandada por alguém com muita autoridade, Lacan nuncase enganou em relação aos grupos. Por isso ele cria o Cartel como estrutura, opasse como dispositivo de aferição das análises didáticas e a dissolução semprepresente como vórtex na Instituição analítica. Noprojeto freudiano , sustentadoem uma lógica do não-todo, desenvolvido por Lacan, o trabalho permanente deescritura é pré-requisito para sustentar a psicanálise como uma prática ética.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. MASSON, J.A. Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess1887-1904, Rio, Imago Editora Ltda, 1986, p.130.

2. FREUD, S. "Poyecto de psicologia" in Obras Completas de Sigmund Freud, vol.1,Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2sed., 1988, p.370.

A Ideologia da (In)SatisfaçãoPaulo Becker

O "Projeto" de Freud não era inocente. A estrutura do texto que leva estenome é demasiado inteligente, demasiado exata para que fosse totalmente igno-rante de suas conseqüências. À medida em que seus escritos vão avançando, Freudfaz cada vez mais uso daquele truque do narrador, através do qual ele se colocano lugar de um suposto interlocutor, usando expressões do tipo, "o leitor atentopoderia objetar", ou "aqui se poderia argumentar...", etc....

Ele é cada vez mais elegante; se tomamos este grau cada vez maior deelegância como uma das metas essenciais, no sentido ético, do homem Freud,podemos dizer que o "Projeto" foi bem sucedido. De fato, poderemos dizer, comLacan, que o projeto freudiano é de natureza essencialmente ética.

Mas em 1895, Freud é um interlocutor tão rigoroso quanto selvagem. Seumétodo é cruel; vamos utilizar as próprias armas do inimigo, até a exaustão.Levamos os seus argumentos às últimas conseqüências, e a verdade lhe cairá, nãocomo uma maçã, mas como uma bigorna sobre a cabeça. Ser-lhe-á impossíveldizer que não é a sua verdade. A relação do sujeito à verdade é de constrangi-mento. As frases são do tipo: somos forçados a, é imperativo admitir... assim eleleva o positivismo científico, naquela época e agora, ao canto do ringue. Ora,vocês não querem o materialismo? Então, eu lhes ofereço a pulsão, este é o nossoBem material. Mas será forçoso admitir também que a matéria é paradoxal. Emoposição à toda concepção vigente, esta matéria não tem substância, não carregaem si uma força positiva inerente, e não é mensurável; ela possui signos quealertam para o seu excesso.

A pulsão é tão material quanto um buraco pode ser material. As zonaserógenas são tão fisiológicas quanto a capacidade do organismo de enganar-seacerca dos seus objetos. E o fato de a matéria poder dar-se a ler, uma vez que écientificamente comprovado que ela é entranhada de signos, signos que alertamsobre a satisfação e a dor, confere uma estranha materialidade ao próprio pensa-

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mento. Até aqui, pareceria que Freud apenas antecipou, o que já seria muito, umaciência nova, inteiramente assimilável no decorrer do século. Mas a coisa vaimuito além disto.

Pois o que se depreende das suas proposições não é só um novo estatuto doEu, aqui definido como um sistema organizado de dendrítos e axônios que faci-litam ou inibem as descargas. Surge uma questão fundamental; o que é este sujeitoque está entre o prazer e a dor (tanto faz), onde é que ele está, se não está nossistemas descritos? O seu lugar anunciado é o de um transmissor de diferençasentre períodos de excitação. Entre os órgãos do sentido de um lado, e as sensaçõesconscientes de qualidade por outro, atua uma instância que é, em si, uma lacunada excitação. Com relação a um ponto hipotético de saturação, ela é uma conta amenos, ou um quantum a menos. Mais do que um transmissor de diferenças, queainda se poderia substancializar, o sujeito que se anuncia é uma diferença. Não éele que promove os atributos ou qualidades, mas terá que participar como umintervalo entre os períodos, para que então advenham à consciência. Ser uma puradiferença implica não ter atributos e, nas palavras de Freud, "não ter duração, nãodeixar atrás de si rastro algum, e não poder ser reproduzido".

Os juízos, de atribuição e de existência, são os novos agentes infiltrados noterreno da Ciência, assim como quem não quer outra coisa. Se querem sair docampo do idealismo filosófico, e submeter a questão ao tratamento da psicologiacientífica, então deverão admitir forçosamente que o juízo é um equívoco. Equí-voco que está na estrutura mesma do juízo, nas informações de que dispõe paraformular suas premissas e conclusões. As informações, geradas a partir das bar-reiras de contato, chegam truncadas, deformadas, uma mistura palatável da Per-cepção e da Lembrança. O objeto real é o impossível para o sujeito. O campo darealidade é praticamente definido aqui como uma cena, cujos enquadres são olimite da Percepção, que é a alucinação, e o limite da Lembrança, que é o sonho.Quanto mais der de cara com as Portas da Percepção, o sujeito será um alucinado.Quanto maior o predomínio da Lembrança, ele será um sonhador. A certeza éuma solução de compromisso entre o que se percebe e o que se lembra.

Não se trata mais de ensaio e erro, gerando uma ética do tipo, conhecer o erropara não repeti-lo. É impossível não repeti-lo. Trata-se antes de errar com umanova convicção! Recebem aqui o golpe, simultaneamente, a razão idealista e arazão científica. E qual o sujeito que resta aí? Além de alguém sempre mais oumenos alucinado ou sonhador, ele é aquele que garante esta solução de compro-misso. Ele é a própria falta de correspondência entre o signo do que se percebe edo que se lembra. Ele é novamente, e não poderia deixar de ser, um intervalo,uma diferença, um entre-signos: e tem algo a sustentar. Do que assume comoverdade, não há outra garantia senão a sua decisão, que é a sua aposta. E Freuddemonstra que a aposta do juízo é a aposta do desejo. A pergunta fundamentalque Lacan propõe ao sujeito encontra um eco: foste fiel ao teu desejo? Aqui se

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evidencia que o estatuto do sujeito que emerge do Projeto freudiano é ético. Asutileza de Freud se faz sentir quando ele quase pede desculpas ao seu supostointerlocutor, o científico, por introduzir de maneira necessária, naquela máquinacomplexa, uma instância que aprende com a Biologia. Quem aprende o quê comquem? Esse que aprende não pode ser definido a partir do mesmo campo.

O sujeito que se constitui como intervalo ou pura diferença, seja porquegarante a diferença entre o prazer e a dor, seja porque mantém um intervalo entreo sonho e a alucinação, é um sujeito que assume um compromisso ético. Estecompromisso pode ser definido como manter-se exilado do gozo. O mito deÉdipo, o exilado original, não deixa de expressá-lo, na medida em que ele eracasado com a mãe, gozava da mãe, e não sabia. Como se diz hoje, era feliz e nãosabia. Outra frase que escutei recentemente: "estou muito melhor agora do quenão estava!", dito de forma verdadeiramente entusiasmada com a melhora. Sempreonde isso era, o sujeito não sabia, estava em outro lugar. A satisfação que se colocapara ele é sempre paradoxal.

E o seu ato não será sem conseqüências. A cada descarga de excitação, secria uma nova via de facilitações, uma memória da descarga. E Freud define amemória como uma redução a uma informação sobre o próprio corpo. A cadadecisão, o sujeito vai escrevendo, com o que se passou, os destinos da pulsão,criando as suas vias. Elas estarão facilitadas, e será cada vez mais penoso recal-cá-las. Sob este ponto de vista, não há uma distinção entre o que ele é e o que elefaz. Este conceito está explícito em outro texto posterior, o "Bloco Mágico", ondeo sistema de traços mnêmicos constitui uma escrita.

Freud escreve o "Projeto" sob o impacto da descoberta da histeria e suarelação com a sexualidade. O discurso histérico aposta no Pequeno Grande Pênis,ao invés de apostar no Falo. Daí serem tolerados os graus mais absurdos dadecepção, da frustração e até mesmo da real privação, mas nunca a castração! Naoscilação entre a Toda-Potência e a impotência do Outro, o discurso histéricosustenta uma ideologia da insatisfação, na medida em que aposta no desejoinsatisfeito, e não aceita a satisfação paradoxal.

Ele caiu como uma luva nas décadas seguintes, os anos 20,30, e 40, aqueleinício charmoso do capitalismo, onde, ainda tomando de empréstimo algo dohumanismo religioso, principalmente a purificação pelo sofrimento, o discursodominante propõe uma promessa de satisfação, sob a forma do consumo mode-rado, o emprego, a mobilidade social e o amor burguês. A insatisfação há de sersustentada, não propriamente o desejo. A sociedade será tolerante com os sinto-mas, e abrirá um campo enorme para os psicologismos adaptativos. A sociedadepsicanalítica também esconde o projeto freudiano na gaveta. Como sempre nahisteria, ninguém quer saber do lixo que isso produz, não é responsável por essesrestos.

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O cinema de Hollywood desta época espelha muito bem o ideal dominante.AIngrid Bergman de Casablanca não fica mal como símbolo disso tudo. De fato,enquanto a guerra avança, ela vive aquele drama: quando ama a um, foge com ooutro. E quando vai com o outro, ela deixa o desejo com o Um. Isso tudo chorandoum balde de lágrimas, num tom levemente depressivo. Tudo deverá ser sustentadocom leveza; o que é mais heavy é varrido para debaixo do tapete. Nove entre dezestrelas do cinema vão sofrer de depressão e alcoolismo graves, anunciando a eradas heavy drugs. Mas isto é creditado a um lado excepcional e escandaloso. Éimpressionante como os efeitos da guerra demoraram a se fazer sentir na socie-dade americana. Foi necessária uma outra Na primeira metade deste nosso século,o Projeto freudiano esteve devidamente engavetado.

Comparemos com a abordagem que faz Bunuel, no seu filme O ObscuroObjeto do Desejo. Enquanto o personagem se perde na dúvida interminável sobrese a mulher tem ou não tem o Falo, as bombas terroristas explodem em volta,como uma ruptura daquele fluxo metonímico da insatisfação. O discurso domi-nante agora decreta que não há mais sonho, apenas um pretenso real da satisfaçãoque se tem que buscar toda. Ávida social é regida por uma máquina de gozar,que define os que são aptos. Os felizardos se apropriarão de uma parte cada vezmaior do gozo, e o resto deve apodrecer como resto. Esta nova versão do discursodo Mestre teve como base o discurso histérico que o precedeu. Produz, porexemplo, uma lógica econômica perversa na Europa, onde é aceitável que metadeda população esteja excluída como muito pobres, desempregados e francamentemiseráveis. E o pior somos nós aqui no Brasil, e em geral na América Latina,copiando isso. Ora, nós já temos know-how sobre o assunto. Os restos se acumu-lam de forma absolutamente intolerável: nós temos tentado inclusive o extermíniosistemático destas populações, mas a nossa capacidade de produzi-las é sempremaior do que a capacidade de exterminá-las. O Rio de Janeiro, por exemplo: degeneral em general, retornamos agora a velha máxima que reza: bandido bom éo bandido morto. Poderíamos levar a nossa experiência para o Velho Mundo,alertando-os para o fato de que os guetos não se acomodam no limite que lhesfoi traçado. Rapidamente, os felizardos se verão cercados pela massa turco-lati-no-afro-árabe de excluídos, em número suficiente para emperrar o funcionamentoda máquina, como já está acontecendo. O discurso do Senhor sustenta portanto aideologia da satisfação, e não deixa de se interessar pelos restos que produz, masse propõe como aquele que pode controlar os seus efeitos.

Agora talvez teremos a interveniência mais ampla do "Projeto" freudiano. Écerto que a questão ética virá com força nesta virada do século, e o crescimentovertiginoso das diversas religiões atestam isso. O discurso analítico tem um papelimportante a desempenhar. Ele reivindicará o lugar para o sujeito que não cedesobre o seu desejo, diferenciando-se do desejo insatisfeito do sujeito histérico edo imperativo do gozo que o complementa.

Das Ding ou o Lugar do Analista naCulturaNoêmia Santos Crespo

No "Projeto para uma Psicologia Científica", Freud esboça uma primeiraformalização da lógica que rege o funcionamento do aparelho psíquico. Situa suaemergência num organismo cujo estágio infantil se caracteriza pelo mais extremodesamparo. Submetido às pressões da existência, tal organismo terá de construirpenosamente seu acesso à realidade — correndo o risco de extraviar-se nestepercurso.

Os circuitos reflexos pré-formados deste organismo são incapazes de assegu-rar sua sobrevivência. O recém nascido humano não vem ao mundo equipado coma habilidade inata de outros mamíferos. Para enfrentar necessidades vitais elemen-tares como a fome, tal filhote não possui recurso melhor que descarga motora dochoro. Insuficiente para drenar a tensão proveniente do interior do corpo, o choropode, no entanto, atrair a atenção de um "adulto experiente" que realize para acriança uma "ação específica" adequada às circunstâncias, provendo o alimento.Satisfeita aí a necessidade, ocorre uma plena descarga da tensão acumulada noaparelho psíquico — experiência primeva de satisfação, que será inscrita namemória.

Para Freud, o retorno da pressão da necessidade faria com que a imagemmnêmica do objeto satisfatório fosse reativada, desencadeando a sucção reflexade um seio alucinado. Só o desprazer provocado pela frustração poderia forçar oaparelho a criar mecanismos de controle para esta tendência alucinatória primitiva.

Com o tempo, diz Freud, o aparelho modifica sua dinâmica primária, voltadapara a descarga completa de toda quantidade e de toda tensão. Abandona oprincípio de inércia; "aprende" a reter uma certa tensão em seu sistema psi, capazde contrarrestar a tendência à alucinação e capacitar o aparelho a ações específicasde complexidade crescente.

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Contudo, para que tal "aprendizagem" seja possível, "o desprazer permanececomo o único meio de educação" . Se ao seio alucinado sempre se superpusesseum seio idêntico no real, como poderia o aparelho reter alguma tensão — ou seja,como poderia constituir-se um sujeito capaz de discernir alguma alteridade?

Em "A Negação", Freud indica que "uma condição essencial para o estabe-lecimento da prova de realidade é que se tenham perdido objetos que outroratrouxeram satisfação real"2. No "Projeto...", Freud faz intervir a perda deste objetojá na inscrição mnêmica da experiência de satisfação. O complexo perceptivo doobjeto satisfatório terá um registro heteróclito, desdobrável entre uma certa porçãoconstante (o "neurônio a", referente à "coisa") e outras porções variáveis ("neu-rônios b, c, d", "atributos da coisa"). Ora, a "coisa" em si mesma já é conotadapor Freud como um "resto substraído ao juízo".

Temos aqui um paradoxo: o complexo perceptivo inscrito na memória édesigual a si mesmo. Pelo menos uma parte dele fica fora do pensar, do lembrar,do julgar e do reconhecer. E é a esta "porção constante do complexo perceptivjo"crivado pelo sistema psi que Freud fará corresponder "o núcleo do eu".

A inscrição do objeto da satisfação primeva é, assim, o registro de sua perda,memorial de sua 'ex-sistência". O "um" do traço se faz acompanhar do zero, doconjunto vazio, lugar desertado por Das Ding. A presença desta ausência será asombra de todo reencontro futuro com qualquer objeto, por mais satisfatório queele seja. O "núcleo do eu" vem a ser onde a Coisa se perde: "Wo Es war, soll Ichwerden."

Daqui para frente, nunca mais será possível um completo escoamento datensão do aparelho. A repetição da experiência satisfatória, lida pelo crivo dainscrição primordial, por mais que se encaixe nos traços desta inscrição, portaráuma desigualdade no cerne de sua identidade mesma. Entre a satisfação obtida ea satisfação esperada restará doravante uma diferença, que fará do desejo indes-trutível o núcleo de nosso ser (Freud, "Interpretação dos Sonhos").

Assim, a permanência da tensão "ligada" no sistema psi pareceria correspon-der à expulsão da Coisa do campo das inscrições — ou melhor, à sua constituição,por este campo, como resto excluído. Ora, a rede das "recordações conceituais"assim organizada intermediará doravante toda passagem de quantidade entre per-cepção e consciência; tenderá a traduzir toda representação do objeto em termosde "um pálido incubo da relação com o mundo, de um gozo extenuado" —inscrevendo uma ausência em toda a presença. Só assim o aparelho poderá fazeruso dos signos de qualidade provenientes da percepção, distinguindo entre osobjetos presentes aos sentidos (mas "esvaziados" em relação aDas Ding, devidoà intermediação do sistema psi) e os objetos ausentes aos sentidos, presentificadosde modo ainda mais tênue pela pura reativação do traço mnêmico.

DAS DINC OU O LUGAR DO ANALISTA NA CULTURA 79

Em sua releitura da teoria freudiana, Lacan faz intervir a dimensão do Outronuma anterioridade lógica radical à constituição do sujeito. Retornando à cena daexperiência de satisfação primeva descrita por Freud, ele a descreve "grávidadesse Outro a situar aquém das necessidades que ele pode suprir". O Outro seperfila de antemão, face ao desamparo da criança, "já tendo o privilégio desatisfazer as necessidades, isto é, o poder de privá-las da única coisa pela qualelas são satisfeitas".4

Para que as necessidades da criança obtenham satisfação, elas têm de passarprimeiro pelos "desfiladeiros do significante". É o Outro quem "traduz" o choroda criança, e suporta sua dependência no interior de um universo de linguagem.É no campo do Outro que a necessidade se transcreve em demanda — é de lá queela retorna configurada na lógica do significante. Antes de ser alimentada, acriança é falada. A ação específica para o indivíduo da espécie humana exigirá aintermediação do simbólico; este indivíduo só poderá sair de seu desamparo edependência radicais se receber do Outro as inscrições de um sistema estruturadocomo uma linguagem (o sistema "psi" do "Projeto").

Lugar do tesouro do significante, o Outro deve estar separado do gozo parapossibilitar a emergência de um sujeito protegido da intrusão alucinatória. Cum-prida esta pré-condição, a própria lógica do significante determina uma interdiçãodo gozo. Depois de inscrita nesta lógica, uma experiência de gozo (como a"vivência de satisfação" primeva descrita por Freud no "Projeto") tende a sofreruma perda de intensidade a cada repetição:"(...) é que, nessa mesma repetição,produz-se algo que é defeito, fracasso"5. Uma vez "sabida", isto é, registrada pelotraço unário e "reconhecida" na repetição, esta experiência sofre um "desperdíciode gozo":"(...) no nível mais elementar, o da imposição do traço unário, o sabertrabalhando produz, digamos, uma entropia"6.

Ora, é justamente esta perda que no entender de Lacan vai causar todo otrabalho do aparelho psíquico — exatamente como no "Projeto" freudiano.

"De fato, é apenas nesse efeito de entropia, nesse desperdiçamento, que o gozose apresenta, adquire umstatus. Eis porque o introduzi de início com o termoMehrlust, mais-de-gozar. É justamente por ser apreendido na dimensão da perda(...) que esse não-sei-quê (...) fez gozo, e gozo a repetir. Só a dimensão daentropia dá corpo ao seguinte há um mais-de-gozar a recuperar"7. "Eé no lugardessa perda, introduzida pela repetição, que vemos aparecer a função do objetoperdido, disso que eu chamo a .

Causa do "desejo indestrutível' postulado por Freud, diferença entre o gozoesperado e o gozo obtido, este objeto irrecuperável move o sujeito falante:

"(...) o que o impulsiona, o que trabalha nele, o que o torna de uma outra ordemde saber, (...) é a função do mais-de-gozar como tal". "Esta é a dimensão naqual se necessita o trabalho, o saber trabalhando(...) .

É a inscrição do Nome do Pai no lugar do Outro que prove a estabilização ea demarcação do campo da realidade, correlativa à extração do objeto "a" —

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herdeiro conceptual do "Das Ding" freudiano. A expulsão de "Das Ding" docampo do juízo, a perda pelo sujeito de objetos que outrora trouxeram umasatisfação real, supõem uma perda correspondente no campo do Outro. É precisoque haja ao menos alguma margem não-recoberta pelo "pisoteio de elefante docapricho do Outro"; "É esse capricho (...) que introduz o fantasma da Toda-po-tência não do sujeito, mas do Outro onde se instala sua demanda (...), e com essefantasma a necessidade de seu refreamento pela Lei"10.

Na psicose, ocorre um fracasso neste refreamento do Outro pela Lei. Com aforaclusão do Nome-do-Pai, o sujeito fica exposto ao que Freud caracterizou no"Projeto..." como um livre curso de quantidades desligadas: nada vem fazer limiteao circuito das facilitações primárias, nada pode lastrear um "fora" deste circuito."Das Ding" não se separa do "complexo do semelhante".

Na clínica da neurose, encontramos algo como uma separação malfeita, umcorte pela metade. Inibição, sintoma e angústia são convocados para escorar asparedes que separam o sujeito do gozo do Outro, fazendo seu eco ao Nome-do-Pai.

Significativamente, já nos "Complexos Familiares" Lacan relacionou o nas-cimento da Psicanálise a uma crise subjetiva decorrente de um "declínio da imagopaterna" — declínio este "condicionado pelo retorno de efeitos extremos doprogresso social no indivíduo (...): concentração econômica, catástrofes políti-cas . Lacan fala mesmo nesse texto de uma "grande neurose contemporânea",que comenta nos seguintes termos:

"Nossa experiência nos leva a designar sua determinação principal na persona-lidade do pai, sempre carente de alguma forma, ausente, humilhada, divididaou postiça. É essa carência que, de acordo com nossa concepção do Édipo, vemnão só exaurir o impulso instintivo como também prejudicar a dialética dassublimações .

Se a função paterna se define pela interdição do gozo do Outro, segue-se quealgo na ordem social vigente pareceria a Lacan dificultar o exercício desta função.A dinâmica do nosso "progresso social" conspiraria contra a estabilização de umlimite ao gozo.

Décadas mais tarde, Lacan procura na contribuição de Marx o fio condutorpara o mapeamento do que vem a denominar nosso "sintoma social" — atribuindomesmo a Marx o pioneirismo no manejo de uma noção "moderna" de sintoma.Afinal, no texto de Marx, as crises e os paradoxos que assolam as sociedades nãosão tratadas como contingências cegas, desvios de seu suposto funcionamentonormal: são antes pensadas como manifestações "sintomáticas" de uma lógicaessencialmente paradoxal que regeria toda sociedade dividida em classes. Oantagonismo latente ou manifesto entre dominantes e dominados constituiria umburaco central em torno do qual se amarrariam e reamarrariam todas as sociedadespós-neolíticas — assim, para Marx, "a História de todas as sociedades que exis-tiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes"13.

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Os antagonismos de classe já são demarcados por Marx em sociedades quefloresceram séculos antes de Cristo em torno do modo de produção dito asiáticoe do escravismo antigo. Mas, historicamente, a exploração dos escravos e servosteria sido sempre mantida dentro de certos limites — exceto em situações, extre-mamente incomuns antes do capitalismo, em que a produção fosse destinadaprioritariamente à venda no mercado:

"Não foi o capital quem inventou o trabalho excedente. Toda vez que uma parteda sociedade possui o monopólio dos meios de produção, tem o trabalhador (...)de acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria manutenção umtempo de trabalho excedente destinado a produzir os meios de subsistência parao proprietário dos meios de produção. (...) Todavia, é evidente que numaformação econômico-social em que predomine não o valor-de-troca mas ovalor-de-uso do produto, a mais valia fica limitada por um conjunto mais oumenos definido de necessidades, não se originando da natureza da própriaprodução nenhuma cobiça desmensurada por mais-valia. Na antigüidade, otrabalho em excesso só atingia as raias do monstruoso quando estava em jogoobter valor-de-troca em sua materialização autônoma, em dinheiro, com aprodução de ouro e prata." .

Curiosamente, o próprio Marx fala da perda de um certo limite "patriarcal"à exploração do trabalho quado passa a predominar a produção de valor de troca,no alvorecer do capitalismo:

"O trabalho dos negros nos estados meridionais da Améria do Nortepreserva vacerto caráter patriarcal enquanto a produção se destinava principalmente àsatisfação direta das necessidades. Na medida porém em que a exportação dealgodão se tornou interesse vital daqueles estados, o trabalho em excesso dosnegros e o consumo de sua vida em 7 anos de trabalho tornaram-se parteintegrante de um sistema friamente calculado. Não se tratava mais de obter delescerta quantidade de produtos úteis. O objetivo passou a ser a produção daprópria mais-valia" .

Em "O Capital", Marx descreve a sociedade em que vivemos como umagigantesca máquina de expansão e acumulação de riqueza abstrata. Definida emtermos de "trabalho morto", tempo de trabalho cristalizado em valores de troca,esta riqueza se transforma em capital quando ingressa majoritariamente numalógica de "reprodução ampliada" — isto é, quando passa a circular regida peloimperativo absoluto da acumulação da mais-valia. Esta é definida como o tempode trabalho que se toma ao operário além daquele necessário para que este produzasua própria subsistência — valor excedente destinado ao mercado; valor que secontabiliza e se expande indefinidamente.

Aqui, Lacan subscreve explicitamente a teorização de Marx. Data do alvore-cer do capitalismo a ocorrência de uma espécie de mutação sui generis, e decisiva,do Discurso do Mestre — correlativa à contabilização e à acumulação do mais-de-gozar em termos de mais-valia, propiciando a expansão do capital. Esta mo-netização do mais-de-gozar contribuiria para "esvaziar" ou para obscurecer aseparação estrutural entre o sujeito dividido e o gozo, a impotência que os separa.

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Se "a linguagem, mesmo a do Mestre, não pode ser outra coisa senão demanda,e demanda que fracassa"16, este fracasso é de alguma forma camuflado pelo êxitodo mecanismo de acumulação da mais-valia, pelo totalitarismo do mercado emsua lógica impessoal.

Marx denuncia o arrebentamento dos limites tradicionais à exploração dosdominados, que se seguiu à prevalência do Mercado como ordenador das trocassociais. Em "O Capital", descreve com indignação as diversas manifestações e osefeitos perversos da superexploração do trabalho que observa, ao vivo, em suasociedade. É verdade que esta face obscena do sintoma social contemporâneo —um "rosto de Medusa", no dizer de Marx — recebeu maquiagens e plásticas nos128 anos que nos separam da publicação do "Capital". Hoje, por exemplo, amaioria dos Estados modernos limita a exploração do trabalho através de legisla-ção trabalhista e previdenciária. Mas isto resultou de lutas sociais penosas, muitasdelas inspiradas nos significantes-mestres do próprio Marx, que chegaram a de-sembocar em revoluções socialistas. Presentemente, alguns autores sugerem quea derrocada do chamado socialismo real representa uma séria ameaça às conquis-tas sociais dos trabalhadores nos países capitalistas (por ex., Hobsbawn, 1992).

Neste cenário atual, mesmo no entender de cientistas políticos marxistas comoHobsbawn, "por enquanto não há nenhuma parte do mundo que apresente comcredibilidade um sistema alternativo ao capitalismo" . É com os efeitos subjeti-vos de um laço social marcado pela instabilidade de todos os limites, onde a cadadia "tudo o que era sólido e estável se esfuma", que lidamos como psicanalistasdesde Freud.

Ora, toda a lógica de nossa ordem social gira em torno do imperativo primáriodo Mercado: expandir e acumular riqueza abstrata, multiplicar e diversificar asmercadorias, gerar demanda para as mesmas via publicidade. Este mecanismocorporifica um Outro dotado de um saber cumulativo — a ciência e a tecnologiamodernas — que comanda, sem rodeios: goza, compra, consome. A felicidade éprometida por este saber, oferecida no corpo de cada mercadoria. Todo estemovimento, porém, não faz mais que exasperar a entropia do gozo e a falta-de-gozar — afinal, como Freud já indicara em seu "Projeto", qualquer objeto desatisfação é impotente para restituir-nos Z)as Ding. A sucessão de experiênciasde prazer com os mais diversos bens só faz sublinhar a distância que os separado Bem Supremo que é a Coisa? do Bem Supremo que é a Coisa.

Assim, Lacan descreve a dinâmica do capitalismo como uma ciranda retro-alimentada pelo alargamento progressivo da insatisfação, que ela mesma catalisa:

"(...) a mais-valia é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio:o da produção extensiva, por conseguinte insaciável, da falta-de-gozar. Por umlado se acumula para acrescentar os meios desta produção a título de capital.Por outro estende o consumo, sem o qual esta produção seria vã, justamente

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por sua incapacidade para produzir um gozo como qual ela pudesse desacele-rar-se"18.

Nossa cultura não parece capaz de prover, em sua ideologia dominante, umanominação estável para a falta no Outro. Os antigos viam nos males do mundoum efeito insondável da vontade dos deuses — fora de cogitação podermoscooptá-los ou compreendê-los; o certo é que deles, definitivamente, não teríamosa chave da felicidade. O cristianismo relegou para o Além a satisfação do desejojunto ao Pai; o mundo, vale de lágrimas, era um lugar onde o sujeito deveria darprovas de sua virtude pela fé e pelas obras, cercado pelo mistério e pelo silênciode Deus. Ora, na cultura tecnológica moderna, somos induzidos a crer que tudoo que nos aflige tem, ou terá um dia, solução pelo progresso da Ciência. Ninguémprecisa, e nem deve, conformar-se com a falta, que perdeu todo o valor de lastromoral.

Assim, o mal-estar na nossa cultura deriva de uma insatisfação que só temcomo traduzir-se em termos de frustração. A dificuldade em barrar o imperativo"goza!" traduzido em "consome!" pode levar à delinqüência os que se sentemexcluídos; já a insatisfação que se acumula no usufruto da ciranda de bens, se nãoencontra um derivativo capaz de ancorar o sujeito, pode levá-lo a diversas formasde desespero.

Ao grito de "Não é isto!", com que saudámos o atendimento de cada demanda,a economia do consumo de massa responde: então será aquela, e mais aquela, emais aquela mercadoria. É como se a ordem social vigente corporificasse umOutro que se recusa a separar-se do seio "e, em lugar do que não tem," sufoca-nos"com a papinha asfixiante do que tem".

Ora, "É a criança alimentada com mais amor que rechaça o alimento e jogacom sua recusa como um desejo (anorexia mental)"19.

Seria a drogadicção, epidemia expansionária na moderna sociedade de con-sumo, uma variante desta "anorexia mental"? Numa primeira abordagem, o toxi-cômano parece antes encarnar documente a obediência em sua aparente rebeldia,— submete-se ao Outro que empanturra, que não falta, que satisfaz. Como observaCharles Melman,

"(...) o que se chama para nós a 'sociedade de consumo' repousa sobre um ideal,mas ignora que este ideal é o toxicômano que o realiza. Com efeito, o sonhode todo publicitário, de todo fabricante é de realizar o objeto do qual ninguémpoderia mais passar sem; objeto que teria qualidades tais que apaziguaria, aomesmo tempo, as necessidades e os desejos, que necessitaria de uma renovaçãopermanente, uma perfeita dependência .

Por outro lado, a conduta do drogadicto pode ser também lida como umasucessão de actings voltados a "retificar a dimensão da falta no campo do Outro",como observa Ligia Bittencourt num escrito onde, justamente, discute o casoclínico de uma toxicômana21.0 buraco no Outro, o drogadicto procuraria cega-mente construí-lo, escrevê-lo, com seu corpo devastado, caído, ou mesmo morto.

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Poderia ler-se aí uma dimensão ética, e até trágica, da toxicomania na nossacultura. Levando ao pé da letra, e até as últimas conseqüências, o imperativo degozo proveniente do Outro — consumindo mercadorias supostamente capazes desuspender a diferença entre o prazer esperado e o prazer obtido — o drogadictofaria do seu próprio corpo o resto caído, perdido para o Outro. Assim, o adoeci-mento do drogadicto viria fazer limite ao saber do Outro e a sua potência.

No final do seminário da Angústia, Lacan postula que a carência da funçãopaterna, tão amiúde encontrada na clínica, nos revela "a necessidade da articula-ção, do apoio, da manutenção desta função — que o pai, na manifestação de seudesejo, saiba a que se refere dito desejo", tendo podido (...) "reintegrá-lo a suacausa, qualquer que ela seja, ao que há de irredutível na função de "a" . O desejodo analista deveria cumprir esta mesma exigência: "Sem dúvida, convém que oanalista seja aquele que tenha podido (...) reintegrar seu desejo a este "a" irredu-tível, e num grau suficiente para oferecer à questão do conceito de angústia umagarantia real" .

No Sem.17, Lacan sugere que o discurso do analista tenha sido condicionadopelo discurso da Ciência (que "não deixa para o homem lugar algum"24) e pelodiscurso do Mestre contemporâneo ("a prática analítica é propriamente iniciadapor esse discurso do Mestre" ). Na transferência, o analista é suposto saber, efaz semblante do objeto perdido — Tirésias com mamas, como diz Lacan noSem. 11; mas "é desta idealização" que ele "tem que tombar, para ser o suportedo "a" separador" . Deve catalisar a verificação pelo analisante do buraco queafeta o saber e o ser do Outro. Frente à vocação totalitária do discurso do Mestremodernizado, "em sua curiosa copulação com a ciência", o analista é convocadoa encarnar Daí Ding — e, fazer ex-sistir o furo onde o sujeito pode alojar-se comodesejante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FREUD, S. "Projeto para uma Psicologia Científica" in Obras Completas, v.l, Bibliotecanova, 1981, p.237.

2. "A negação" in Obras Completas, op.cit., p.2643. LACAN, J. A Ética da Psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1988, p.79.4. "A significação do falo" in Ecrits, S.Paulo, Perspectiva, 1978, p.2685. Seminário XVII, O Avesso da Psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1992, p.44.6. Ibidem, p.467. Ibidem, p.47-488. Ibidem, p.469. Ibidem, p.48

10. LACAN, J. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no Inconsciente Freudiano" inEscritos, op.cit., p.296-297.

11. Os complexos familiares, Rio, Jorge Zahar, 1987, p.60.12. Ibidem, p.61

DAS DING OU O LUGAR DO ANALISTA N A CULTURA 85

13. MARX, K. "Manifesto do partido comunista" in Textos, v.ll, S.Paulo, Ed.sociais, 1977,p.2.

14. O capital, livro I, Rio, Ed.Civilização Brasileira, 1968, p.265-266.15. Ibidem, p.26616. LACAN, J. Seminário XVII, op.cit, p.11717. Hobsbaun, E. "Adeus a tudo aquilo" in Depois da perda, Black hurn, S.Paulo, Ed.Paz

e Terra, 1992, p. 10418. LACAN, J. Radiofonia, Barcelona, Ed.anagrama, 1977, p.59.19. "A direção da cura e os princípios de seu poder" in Escritos li, México D.F.,

SigloXXI, 1985, p.608.20. MELMAN, C. Alcoolismo, delinqüência, drogadição: uma outra forma de gozar,

S.Paulo, Ed.Escuta, 1992.21. BITTENCOURT, L. "A paixão triste ou a narcose do desejo" in A vocação do êxtase,

Rio, Imago, 1994, p.63.22. LACAN, J. Seminário X Angústia, inédito.23. Ibidem.24. Seminário XVII, op.cit., p.138.25. Ibidem, p.144.26. LACAN, J. Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio, Jorge

Zahar, 1985, p.258.

De Projetos e de MáquinasCarlos Eduardo Estelita Lins

1 A marca do Projeto e o problema da escritaGostaria inicialmente de tratar do nome do texto que estamos homenageando.

Em primeiro lugar devemos notar que o manuscrito não tinha nome. Os editoresda Gesamelte Werke, Ilse Gubrich-Simitis e Angela Richards lembram que foramos editores dos Anfànge que entitularam este texto "Entwurf einer psychologie"ou seja: "Projeto de uma Psicologia".1 Mas, na carta a Fliess de 27 de abril de1895, Freud fala de uma "Psychologie für den Neurologen" isto é: psicologia paraos neurologistas. "Projeto" é portanto um apelido, uma alcunha forjada por umoutro para designar um manuscrito que seu redator preferia ver destruído. Tratar-se-ia de um filho sem nome? De um bastardo? Maria Bonaparte obtém os manus-critos de um livreiro, causando embaraço para um Freud surpreso com sua própriajuventude. Em função deste atraso algo fica embargado no processo de nomeação.Este texto é marcado pelo fato de estar destituído de marca. Mas, um séculodepois, o 'Projeto" se chama projeto, tem portanto um nome. Nome adquirido.Esta é sua marca. Texto inominado e abominado, traz consigo a questão do nomee da máquina. É um texto que maquina e urde a metapsicologia que viria depois.

A questão da economia de seu próprio nome é uma questão escrita e nãodeixa de ter afinidade com o nome próprio. Sua nomeação se dá a partir da escritaParadoxalmente é um escrito fundador de uma teoria da escrita psíquica, mas quenão teve seu nome inscrito senão depois. Projeto vem a ser uma alcunha eviden-temente metonímica, um nome de guerra: projeto para alguma coisa, subtítuloexplicativo que originou a posteridade "Projeto"="Entwurf'. Aliás, no singular: o"Projeto", indicando que na teoria psicanalítica freudiana só teve um e só há lugarpara um. Este é seu lugar destacado e marcado. O "Projeto" era um elemento dacorrespondência à Fliess e simultaneamente é uma carta à posteridade. Começoua ser escrito à lápis. Podia ser apagado. Traz consigo o problema de uma inscrição,da representação psíquica, a talDarstellung. Trata de como poderiam representarimpressões, examinando portanto a natureza do traço. A presença da energia

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atravessando um sistema e deixando um tipo especial de facilitação, de rastro, desirgagem, de Bahnungen. Eis aqui um sistema de notação e um modelo dememória que prescinde do traço entendido como presença durável e permanentede uma marca. Esta representação de memória, uma quase-máquina de escritaneurônica, pensa um tipo de marca que não é resultante do gesto (tempo) em umsuporte (espaço). "Fábula neurológica" segundo Derrida, "Psicologia geral deFreud" para Lacan.

O "Projeto" é um marco, e também uma marca peculiar. Sendo marcado peloséculo dezenove podemos dizer que também foi capaz de marcar profundamenteo vinte. Talvez o "Projeto" funcione, hoje, como uma espécie de marca muitopeculiar, pois trata exatamente de um sistema de notação ou marcação. Umsistema que discute as condições de possibilidade da própria marcação.

Sua etimologia desembaraça alguns fios condutores. Com Wurfel trata-se dojogar, é o jogo de dados primo-irmão do spielen que está em jogo. Werfen é lançaralgo, jogar para frente, no adiante do pró-jectar que nos chega pelo latim. Jactué simultaneamente um impulso e uma expulsão. O que foi atirado ao futuro.Menos uma teoria, seja psicologia para neurologistas ou neurologia dos psicólo-gos, e bem mais uma espécie de limite da representação onde o traço é a própriadiferença, onde toda teoria se destitui e simultaneamente se constitui a partir desua diferença. Para Freud, no "Projeto", a memória é representada pelo jogo dadiferença. O vigor desta marca é uma afirmação. Aquilo que no texto sobre adenegação aparece como uma Behajung primordial: todo não incide sobre um simprimeiro. No "Entwurf' houve entwerfung e não verwerfung.

Deste modo, descrever é antes de tudo jogar para a frente. Jogar para a luz:assim como entstehen é criar, ent-werfen é precipitar-se em atirar algo adiante.Eis a lógica deste apelido: projeto não é algo que normatiza e regula do exterioro que deve ser edificado depois, trata-se ao contrário de um lançar de dadosimanente ao jogo que se desenrola a seguir. O 'Projeto" diz algo sobre o projetoda escrita freudiana: descrever aquilo que escapa constituindo uma espécie defenomenologia do equívoco (vide a parte final que trata dos sonhos e áoprotonpseudos). O conjunto da obra freudiana, seu trabalho, nos impede de falar emdescrição psicológica.

Poderíamos nos perguntar se o 'Projeto" seria um tipo de rótulo, uma marcaregistrada. Mas, esta marca se coloca diretamente sobre o psíquico? Freud teriaentão direitos de copyright, etc... O que exatamente vem a ser o dispositivo do"Projeto"? Poderíamos tomá-lo por uma máquina. E, enquanto máquina, de quese trata? Lettera, Ollivetti, Burrowghs, Wordperfect, etc. A Máquina d'escrevermsscaEntwurf... Poderíamos supor que é uma máquina de escrever que se escondesob as garatujas freudianas sacudidas pelo trem. Entretanto, encontrar muitoapressadamente a máquina de escrever do "Projeto" pode ser um engano. O

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sistema de inscrição imaginado por Freud tem suas peculiaridades. Jacques Der-rida, em um texto seminal sobre o assunto, "Freud e a cena de escritura", sustentaque a concepção freudiana da escrita ainda não estava formulada naquele momen-to. Passemos então ao problema, sem que tenhamos que admitir necessariamentesua hipótese.

2. Escrever e descrever. A representação da memória.

Para entendermos como Derrida interpreta o "Entwurf' é preciso avaliar asituação da psicanálise na metafísica, especialmente o difícil problema das rela-ções entre ambas — para Derrida a filosofia se ocupa de seu fim, mas que querdizer para a psicanálise ocupar-se de seu próprio fim? A finitude e sua analíticaconstitui a questão principal da filosofia desde Heidegger, mas neste compassode repetição não podemos situar para o psicanalista a questão do fim da psicaná-lise. Caricaturando, diremos que para Jacques Derrida, Freud aparece num mode-lito semelhante ao Nietzsche lido por Heidegger. É alguém que anuncia e realizao final de uma festa da qual ainda participa e precisa participar. Nietzsche teriafechado as portas da metafísica, mas ficou do lado de dentro. De modo análogo,o conceito de traço em Freud, traz o germe de sua liberação do fonologocentrismo,mas ainda capitula. A escrita é o xis da questão. Derrida posiciona-se pela ine-xistência da escrita, de um dispositivo de escrita ou de uma máquina de escreverno "Projeto". A máquina freudiana seria encontrada bem mais tarde, no "Wunder-block". A problemática da dupla inscrição e do contra-investimento, presente naMetapsicologia, fica em posição intermediária e transitória, mas escrita enquantotal existe somente no bloco mágico, dispositivo de escrita caligráfico e máquinade escrever não-tipográfica. Como diz ele:

Do "Projeto" (1895) à "Nota sobre o Bloco Mágico" (1925), uma estranhaprogressão: uma problemática da bahnung é elaborada para se conformar cadavez mais a uma metáfora do traço escrito. De um sistema de traços funcionandosegundo um modelo que Freud teria querido natural tcuja escritura é perfei-tamente ausente, orientamo-nos para a configuração de traços que já não pode-mos representar senão pela estrutura e pelo funcionamento de uma escrita.

O sentido de escrita é decidido aí. AsBahnungen do "Projeto" não se cons-tituem simplesmente como antes, mas, indicam o que há de entitativo em todoente, a sua perspectiva enquanto diferença: colocação da diferença ontológica.Escrita reduz-se simplesmente à inscrição, mas enquanto tal, plena. Inscrição estaque vigora como diferença e não mais apenas como ente, presença burra ederivada que avaliza o esquecimento do ser. Sigmund Freud produz uma inespe-rada ruptura com a concepção corriqueira do traço quando afirma que as facilita-ções-Bahnungen4 representam memória:

Das Gedãchtnis sei dargstellt durch die Unterschiede in den Bahnungen zwis-chen den y Neuronen.

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onde a diferença é duplamente sublinhada. Os editores do "Entwurf' assina-lam que esta é a única palavra com duplo sublinhado no manuscrito original. Sãonecessários dois traços para marcar a emergência do conceito de traço em estadopuro. Duplicação medusante como índice da castração e artefato gráfico com quea mão de Freud hesita em tocar na máquina que se engendrava. A marca evanes-cente descreve e inscreve sua permanência: uma escrita não-escrita. É nestesentido que Derrida afirma que a escritura está perfeitamente ausente.

Devemos notar que o caráter descritivo do "Projeto" confunde-se com suaregra de construção. Podemos dizer que no "Projeto" a máquina de descreverpredomina sobre aquela de escrever. O "Projeto" é às vezes entendido como umatarefa descritiva por Freud. De qualquer modo isto dubla e matiza o problema deuma escrita secundária e arrastada pela matéria fônica, que seria mera transcriçãodesta. O escriba volta a infestar o legislador. Jacques Derrida descreve a relaçãodo "Entwurf' com o "Wunderblock".

Todos os modelos mecânicos serão experimentados e abandonados até a des-coberta do Wunderblock, máquina de escrita de uma maravilhosa complexida-de, na qual será projetado o todo do aparelho psíquico.

Da descrição do aparelho psíquico como totalidade passou-se à projeção desua totalidade em uma máquina de escrever. Do mecanismo, construiu-se umamáquina.

Sabemos que as primeiras páginas do manuscrito foram escritas à lápis, epodiam muito bem ter sido apagadas. Entretanto, o apagamento de traços comque o "Projeto" lida é ainda mais terrível e destrutivo que esta ameaça externa.Trata-se de uma questão interna, interior e intrínseca à sua economia conceituai.A questão de uma máquina de escrever envolve necessariamente a existência deuma máquina de apagar. Vemos surgir no "Projeto" uma disjunção incontornávelentre Consciência e Memória, que aparece de modo diferente da filosofia clássicaalemã, pois implica e exige a escrita em sua descrição. Se a máquina de escreverpode pretender representar a totalidade do psíquico é sobretudo porque possui umdispositivo de apagamento que temporaliza o processo sucessivo. Eis o espaça-mento das marcas, a tecla space-bar que mimetiza o funcionamento da consciên-cia enquanto dispositivo espaço-temporal linear. Sob este aspecto, Lacan noslembra no Seminário 2 que a Consciência e o Eu encontram-se defasados emrelação à racionalidade intrínseca do "Projeto". A máquina de descrever apagavatão bem e tão rápido que nos deixava em palpos de aranha, o que não aconteceno "Bloco Mágico". O problema que deve ser pensado a partir desta questão sobreuma escrita não-linear e não-sucessiva vem a ser exatamente o hipertexto. Umhipertexto é a rede por excelência. Trata-se de um encadeamento da escrita querompe com o esquema espaço-temporal baseado na sucessão. O suporte para aescrita coloca uma questão para o conceito de tempo ao permitir uma rede

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rizomática de conexões. O espaçamento e a temporalidade estão novamente seacotovelando.

Contudo, aproximemo-nos da descrição de seu papel, em que papel se ins-creve a descrição, qual seu papel efetivo? Descrever o "Projeto" seria descrevera descrição, mas não se trata absolutamente de uma descrição qualquer, poisenquanto descrição do psíquico, é a descrição da mente, é a descrição do cérebroeletrônico, da rede das redes, ou da condição de possibilidade de qualquer descri-ção. Fazê-lo seria conhecer o conhecimento além de tentar fundar uma psicologiatranscendental contra o próprio Kant. O papel desta descrição é, e não é, o mesmopapel onde se dá sua escrita. Já que o suporte da inscrição mnêmica das Bahnun-gen é um campo sináptico abstrato, talvez hoje o reconheçamos bem mais emuma rede neural do que na interioridade frenológica ou globalista de cem anosatrás. A rede neuro-sináptica do "Entwurf' tem porém uma peculiaridade que adistingue de um modelo de rede neural. É uma rede que lida com o campo doOutro e portanto está às voltas com o engano, mas é também uma rede generali-zada onde se problematiza a conexão. A concepção de rede generalizada em queestamos desde já imersos, permite leituras renovadas do "Projeto" e seu projetode máquina psíquica. A proposta de Türing sobre a inteligência artificial consisteem postular que uma máquina que se fizesse passar por humana poderia serconsiderada inteligente. Isto nos coloca em cheio na questão do engano e do erro.É por aí que surge o campo do Outro. É a partir disto que o dizer se destaca dodito. De onde justifica-se a suposição de que o teste de Türing é uma conjecturasobre a origem da nomeação. No "Projeto" freudiano esta problemática aparececom o grito da criança que exige interpretação: uma criança chora de fome, choraporque está com frio, chora por isto ou por aquilo. Isto é condição de possibilidadepara o engano tão fértil ao projeto humano, cuja dimensão pertence integralmenteà tradição cartesiana do sujeito dividido (a partir do gênio maligno ou deusenganador que Lacan tanto destaca e privilegia).

Parece-me que o "Projeto", relido em sua atualidade, não apenas coloca asquestões enormemente atuais da inteligência artificial e dos paradigmas da psico-logia cognitiva, mas sobretudo nos convida a pensar rede e redes, representaçãoe quantidade, signos e energia, soft e hardware. Este é o panorama do "Projeto":uma teoria generalizada das redes onde o termo ecologia se aplica tanto quanto anoção de interconectividade. A língua exclui comunicação, mas excluirá neces-sariamente a conexão? Problema de uma ecologia psíquica generalizada, a situar-se talvez como departamento da semiologia geral saussureana ou na semióticaglobal de Peirce.

A pretensão descritiva do "Projeto", seu projeto secreto porém evidente dedescrição, fica eclipsado sob a complexidade das questões tratadas: experiênciasde satisfação, desejo, pulsão, memória, consciência, ego. A tipologia neuronalfreudiana (cp\j/co) descreve uma rede complexa. A descrição no "Entwurf' passa

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pelos espinhos ou ganchos onde Freud repetidamente se detém: O "Projeto" ésobretudo uma teoria da pulsão, termo aliás ausente, mas que é retomado enquantotal em "A Pulsão e seus destinos". Trieb não é simplesmente romantismo alemão,é sobretudo uma teoria da coçeirinha, do prurido. O "Projeto" também éneben-mensch e desejo em sua realização alucinatória. Observemos que ocorre umadisseminação de versões da experiência de satisfação a partir do nosso manus-crito: "Interpretação dos Sonhos", 'Três ensaios sobre a sexualidade", "Formula-ção sobre o princípio de funcionamento mental" trazem retomadas da questão dodesejo encenada a partir do dito bebê freudiano. A partir dele podemos fazeralgumas inferências nada psicológicas: existe nomeação implícita no grito e nochoro, sua interpretação é língua materna. O grito preside a exclusão da coisa,evento nomeante que supõe oNebenmensch, etc. A teoria do desejo encontra suaenunciação fundamental no "Projeto" e na Traumdeutung.

A partir dele se entrelaçam duas narrativas duplamente míticas pois tratamda origem de toda origem. Indica-se uma problemática ético-ontológica: o desejoe sua realização alucinatória, a pulsão enquanto estímulo interno. A relação deambas "narrativas" ou "descrições" exige uma consideração sobre a escrita en-quanto possibilidade de se representar memória A disjunção kantiana das formaspuras da sensibilidade se evidencia: ou sucessão ou simultaneidade, o que querdizer, ou consciência ou memória. Mas esta formulação implica no esquecimentocomo síntese reprodutiva. Até então nada de novo senão a preocupação emformular o psíquico a partir de uma teoria mais acabada da inscrição. É, porém,neste traço originário ex-stático e ex-sistente, traço de que não há traço pois sóvigora a partir de seu apagamento, que encontramos todo o forrobodó. O paradoxoda origem se coloca claramente: a escrita psíquica que descreve o psíquico neces-sita da escrita de antemão. Por sua vez, esta mesma escrita não poderia vir a sersem o psíquico Freud tem uma concepção do originário, de uma arché e de umur- que obedece a este paradoxo.

Houve certamente uma radical afirmação nisto que é o escrever do descrevere o descreve de um escrever anterior a qualquer escrever. Diremos deste modoque a inscrição da escrita é imanente ao projeto do "Projeto".

3. Da marca à rede. Da escrita e da máquina.

Mas, como Lacan se apropria do "Entwurf'7 Não me ocupo com sua inter-pretação, que vai sendo construída de modo quase barroco ao longo dos primeirosseminários, mas da regra de apropriação que lhe orienta, destacando os conceitosque são condições de possibilidade para esta interpretação.

Inicialmente é preciso observar que o "Projeto"; é situado como um tipo demáquina face à outras descritas por Freud. Dirá Lacan:

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Vocês verão a máquina de sonhar" Traumdeutung" reencontrar esta máquina"Entwurf donde há pouco eu evocava o esquema à propósito do discursodo outro (...)8

Ao enumerar tantas máquinas, que estratégia orientaria Lacan? Esta passagemrevela sua apurada percepção ao destacar que o discurso do Outro e o campo dalinguagem constituem uma rede onde a máquina neural do "Projeto" se insere.Um sistema de inscrição se revela maquinaria. Entretanto, devemos nos perguntaraté que ponto a máquina importa para ele, e se sua importância não se concentrana função da repetição.

A máquina é o dispositivo que permite darstellen (representar, figurar) arepetição no início da obra de Lacan. Admitindo esta hipótese, diríamos que elenão se interessa por uma máquina universal , mas ao contrário, tenta a partir doobjeto e sua distância da coisa descrever a anti-máquina absoluta: a repetição érepetição do objeto perdido, portanto da diferença, o que se repete jamais deveser entendido como a demanda ou os circuitos Wiederkehr. Esta máquina obedeceao regime da repetição, mas não é evidente que se trate de repetição do Mesmo10.No "Projeto", a mesma máquina (de escrita e inscrição) é construída a partir dedois regimes distintos de repetição. A maquinaria alucinatória goza extraindo dadiferença o Mesmo — seu funcionamento não serve para nada. A maquinaria dopensamento trabalha sobre aquilo que resiste a este processo tentando encontrarna diferença o semelhante. A repetição bruta, do Mesmo, parece situar-se comoGozo, é comemoração de um Gozo originário imputado ao pai da horda Notemosque para Lacan uma máquina é um relógio (lembremos dos relógios moles egozosos de Salvador Dali). Um relógio é o paradigma da máquina. O que querdizer que ele a conhece como um circuito repetitivo. Parece-me que o que importana máquina é uma tentativa de exegese da repetição.

Encontramos também a teoria dos jogos operando enquanto máquina inter-subjetiva: o par ou ímpar, o bridge, as adivinhações de Dupin, o paradoxo, osofisma. Tudo aquilo onde se indica o limite e o circuito faz curto-circuito.Ousaríamos indicar aí uma acepção mais geral de máquina para Lacan: máquinaé tudo aquilo que faz circuito. A máquina definida pela repetição: o circuito. Istopermite que a física aristotélica se intrometa, situação de tiquê e de automatôn narepetição. A repetição é um encontro com a diferença através do que ela possuide evasivo. Contra a repetição da demanda e contra a repetição do semelhante, oque se repete é a diferença. Podemos dizer que, desde o seminário da "CartaRoubada", Lacan formula uma noção de repetição necessariamente diferencial,que pretende traduzir a essência da problemática freudiana da compulsão à repe-tição. É preciso notar que o encaminhamento desta questão passa pela teoria dosjogos, e sobretudo por uma tentativa de isolar, na intersubjetividade inerente aojogo, uma dimensão simbólica, lógica e significante. Embora inseparável deste

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tipo de imaginário, a intersubjetividade pode ser discernida como constituinte dacostura destes dois registros.

O jogo e o relógio aparecem como modelos de uma repetição que ocorre, masque não restringe nem limita o pensamento freudiano da repetição. Do mesmomodo, a partir da leitura lacaniana de Freud, encontramos dois paradigmas quesão reunidos nesta reflexão: o netinho defronte ao espelho da Wiederholungzwange o bebê freudiano em sua Befriedigungsertebniss tentando reencontrar, e emcerto sentido, repetir, uma experiência de satisfação que só pode ser constituída,e também em certo sentido repetida, a partir de um objeto fundamentalmenteperdido, irrepetível enquanto tal.

Se a máquina integra a estratégia de aproximação empregada por Lacan aoapropriar-se do "Entwurf', o ato constitui seu horizonte. A rede de implicaçõesdo agir no "Projeto" é desvelada por Lacan. Mas, como falar de ação livre,portanto de ética, se o agir humano aparece na descrição freudiana do "Projeto",estritamente circunscrito ao conceito de ação específica? A liberdade desta repe-tição paira enigmática sobre o texto. Liberdade de repetir com a monotonia de umrelógio ou de um circuito. No fundamento de todo agir se encontra secretamente,não apenas a satisfação, o soberano Bem, mas uma compulsão em atingir umlimite que aboliria qualquer limite e faria a repetição a que os bens nos condenamcoalescer-se um único evento. Esta noção que cintila no "Entwurf", de uma açãoque é específica no sentido de apresentar aquilo que é necessário e próprio, aoimpróprio do desejo e ao inútil do Gozo, esta noção funciona no "Projeto" comoforma pura de toda e qualquer ação do homem que está ao lado do homem.(Nebenmensch)u. O rumo que Lacan dá à estas reflexões é o privilégio da açãoem sua dimensão ética, ato formal a partir do dever, articulado com uma maqui-naria significante puramente formal. Em certo momento da teorização de Lacan,ao retomar o "Projeto" no período de "Kant com Sade" e do "Seminário da Ética",vemos surgir um Kant cujo imperativo categórico fica travestido em máximasadiana. Espécie de universalização pelo avesso de um princípio de crueldade.Repetição e ação, o significante e o eterno retorno do mesmo ou da diferença.Talvez a maior contribuição de sua leitura do "Projeto" ao tematizar práxis e açãoespecífica aponte para o problema de uma política do desejo. O Nebenmensch ea ação específica assinalam a dimensão do humano situando a questão de umaética centrada no desejo.

4. Redes e Topologia

Mas, então, se não podemos facilmente dizer que uma máquina age, o queseria uma máquina? Questão colocada ao hardlsoftware e também ao rizoma.Teremos possivelmente no que chamo de "dispositivo de "Entwurf" uma infini-dade de máquinas virtuais, onde também deve ser incluída a máquina de escrever(nem que seja para contrariar Derrida). Porém, o que salta aos olhos é que na rede

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neural simplificada do "Projeto" começa a se colocar claramente a questão darelação da máquina com a rede. Poderíamos talvez, de modo figurado, pesar umaecologia psíquica no que tange às relações complexas da ordem imaginária como simbólico. O masoquismo da máquina se opõe a seu mecanismo. Para responderao problema ôntico da máquina, diremos que uma máquina tem afinidade comuma marca. Deste modo elidimos a questão da essência da técnica, levando emconsideração, entretanto, a discussão freudiana sobre das Ding tal como Lacannos oferece. A marca é inerente ao mecanismo: o que introduz a questão do corpoem nossa digressão. Máquinas supõem números. Por este viés entram as marcascomo o que de tal cabe à máquina. O relógio foi a máquina por excelência diráLacan citando Koyré. No horizonte cartesiano organismo e mecanismo estãosempre juntos. Mas, pode haver além das máquinas desejantes deleuzianas acio-nadas a partir de um corpo sem órgãos, máquinas que prescindiam de corpo?Pode-se pensar sem o corpo? Máquinas que se resumam à conexões e circuitosrizomáticos? Seria Freud um pensador das redes? No início do estruturalismo, acuriosidade cibernética de Lacan o leva a chamar os primeiros computadores de"máquinas-de-pensar-como-o-homem", em um tom aproximadamente levistraus-siano, o que não deixa de ser uma resposta provisória que exige decifração.

O "Projeto" suscita na atualidade a questão de uma ecologia psíquica. Restaentão tentar pensar o nervoso como rede, assumir uma noção hiperextensiva dasredes: o simbólico como rede superinclusiva e regra de materialidade infinita.Tentar pensar as redes neurais e o problema da metáfora de um sistema que seconfunde com o simbólico, enfim, a ecologia de uma rede absoluta e, sobretudo,a pertinência deste tipo de problema. Falar em rede absoluta é postular umahipotética realização do real, paradoxal à medida em que este é necessariamentedesrealização (encontro faltoso com o real, etc). Podemos enfim, dizer que amáquina psíquica do "Entwurf' inaugura uma problemática relativa à conectivi-dade e à extensão material e conceituai das redes a partir do domínio da escritura.Uma rede psíquica interna, circunscrita a unidade de uma máquina, é lançada noregime rizomático de um exterior pleno de Qn em suas relações de entropia eentalpia que constituem necessariamente uma rede extensiva e generalizada. Oparadoxo energético é talvez o que salta aos olhos no fisicalismo do "Projeto"onde a rede se abre as trocas energéticas se fecham. Caberia então uma perguntasobre o registro do real. Real e rede seriam conceitos mutuamente exclusivos? Aresposta me parece difícil, mas, sob o enfoque de uma rede generalizada, pode-ríamos postular que o simbólico é princípio de ramificação, conectividade, en-quanto o real é vigência da trama, simulação de totalidade. Esta seria a tarefa dedescrever a ecologia de uma rede pensada enquanto uma topologia específica:fazendo trança borromeana. Das Ding são resíduos que escaparam ao verurtei-lung, ao julgamento, segundo Freud, mas sabemos que a Coisa freudiana é umconceito colhido por Lacan no "Projeto", uma espécie de pérola de seu ensino.

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Neste evasivo estruturante desenha-se o processo de formação de realidade. Háum tasco que pertence ao múltiplo da intuição sensível mas não pode ser sentido!Não pode ser sentido, nem por isso seria noumeno ou coisa-em-si; o real do"Projeto" é o sensível que não pode ser sentido e simultaneamente o pensável quenão pode ser pensado. Curiosamente o real comparece no final da obra de Lacanem uma estranha referência à escrita: aquilo que não cessa de não se escrever.Não apenas não se escreve, mas seu modo de ser é a impossibilidade da escrita.Impossibilidade insistentemente renovada do nó, dos nós, de uma rede, de qual-quer rede enfim.

Para concluir, diremos que Lacan se apropria do "Projeto" a partir de algunsoperadores conceituais que permitem sua interpretação. Destacamos especialmen-te a noção de máquina em sua dupla incidência: máquina como relógio repetitivoe máquina como jogo interativo. Esta vertente dirige-se para o ato e a ética,sobretudo se o motor desta máquina é o princípio do prazer. Deste modo surgeuma questão paradoxal à margem da reflexão freudiana, de grande atualidade:seria legítimo falar em máquinas que agem? Esta pergunta parece estar implícitana racionalidade do "Projeto", assim como uma concepção de uma rede complexadesenhando uma topologia interconectiva. A isto poderíamos denominar ecologiageneralizada, à medida que explicitássemos os registros de real, simbólico eimaginário envolvidos. Esta ecologia em sua estrutura de rede ou rizoma, suscitatodo tipo de questão topológica.

Nesse ínterim, o 'Projeto" cessa de nos descrever e nos sonha, ficamos aquisimples e puramente como um sonho do "Projeto".

RERERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. "das Originalmanuskript trãgt Keinen Titel." cf, nota e introdução dos editores, Gesam-melte Werke, Nacgtragsband, 1987: 375 e sq.

2. Poderíamos aproximar o sentido de meta do termo projeto (Entwurf), o que permitiriainclusive agrupar os títulos com que Freud batizou outros textos fundamentais,que funcionam como matrizes metapsicológicas: "Para além de" (Janseits),"Meta-psicologia" {Metapsychologie). Este texto é um disfarce para a metapsico-logia geral ou generalizada que propõe.

3. DERRIDA, J., "Freud e a cena da escritura", A Escritura e a Diferença, p.183.4. Traduziríamos as Bahnungen, com a ajuda de Guimarães Rosa, por "aviamentos",

hiperveredas, "descaminhos do Demo". Lacan utiliza a expressão sirgagem rela-tiva ao rastro de deslocamento marítimo do casco de uma embarcação.

5. A memória é representada através das diferenças de facilitações entre os neurônios

6. DERRIDA, J., "Freud e a cena da escritura", op.cit 183.7. Se quisermos buscar algum referencial filosófico para esta temática podemos falar em

rutura no esquema espaço-temporal e abertura para imagens-tempo (GillesDeleuze), ou ainda, em ser-para-a-morte e cura no angustiar-se fundamental eexistencial do tempo ocupado (Martin Heidegger).

DE PROJETOS E DE MÁQUINAS 97

8. Lacan, ]., Seminário 2: Paris, Seuil, p. 123.9. A noção de "máquina universal" aparece na informática como índice do questiona-

mento das fronteiras conceituais excessivamente rígidas entre hardware e soft-ware.

10. Assim como máquina evoca o conceito fundamental de repetição, devemos admitirque a repetição na obra de Lacan parece dialogar com as grandes questões dopensamento contemporâneo, a saber: a compreensão a partir do objeto ou dosujeito, ou a discussão sobre o retorno do Mesmo e de uma repetição diferen-cial.

11. Ha pelo menos três versões bastante distintas deste bebê hipotético, que representauma pequena máquina narcísica. A primeira é exatamente a do Entwurf, quecaracteriza-se por privilegiar o discurso do Outro, conectando os ovos oumônadas narcísicas em uma rede de mal-entendidos constituída pela linguagem.

12. Traduzir literalmente Nebenmensch por próximo, causa um certo desconforto poiseste próximo precisa ser aquilo que há de mais distante. Neste sentido, empleno acordo com a interpretação heideggeriana de das Ding como entfemung:distanciamento, lonjura, cafundó do judas.

A Função da AngústiaJuan Carlos Cosentino

Tradução: Paloma Vidal

O enigma sobre a "origem" da angústia está presente no início da indagaçãoque Freud realiza sobre a neurose. Retorna, modificado, depois de anos de teori-zação analítica, em 1932.

No começo "o sinal de interrogação" acompanha essa pergunta que vem comosubtítulo do "Manuscrito E" em 1894: "Como se origina, de onde nasce a angús-tia?". Então, se separa da transferência e fica situada fora do campo analítico.

Com a publicação do caso clínico do pequeno Hans, Freud introduz a históriade angústia e a situa novamente no campo da análise. A pergunta, um poucomodificada, insiste: quando sobrevém a angústia? A resposta demora, mas é aocasião, com efeito retroativo, em que introduz o complexo da castração.

A pergunta reaparece com a 32a conferência, "Angústia e vida pulsional", masno intervalo produziu-se uma virada, conseqüência desse segundo passo teórico."De que se tem medo na angustia neurótica?" "Como se concilia esta com aangústia realista ante perigos externos?".

A primeira versão da teoria, onde a neurose de angústia não corresponde aomecanismo de defesa, não se sustentará por muito tempo. A satisfação sexual,que se tornará problemática para o sujeito humano com a introdução da pulsão,não é suficiente para causar a neurose de angústia. Ao contrário, com a angústiae a partir das fobias típicas, essa neurose desfaz o nó entre a nostalgia e asatisfação.

O fracasso da função de um sonho chave na análise do pequeno Hans introduza irreversibilidade da angústia.

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Chamamos angústia patológica uma sensação de nostalgia angustiada desde omomento em que já não se pode cancelá-la apontando-lhe o objeto ansiado.

A angústia se adianta. Separa nostalgia (desejo) e satisfação (pulsão), tornacomplexo o estatuto do objeto e questiona o império do princípio do prazer.

Entre 1926 e 1932 opera-se, na verdade, uma mudança de pergunta, que éantecipada primeiro pelas fobias típicas e depois pela histeria de angústia. Talmudança não aponta tanto para a origem senão para a função da angústia e sesegura num novo vínculo, a angústia-perigo exterior. Este novo vínculo permite,no "Complexo sobre a angústia", distinguir a situação traumática da indefensão*,da situação de perigo.

A partir da série angústia-perigo-i/fcfe/msão, ergue-se um novo fundamentopara a angústia que permitirá situar "o lugar próprio" da mesma e, conseqüente-mente, diferenciar "seu fenômeno".

A neurose de angústia: as fobias ocasionais

Freud se confronta, desde o início, com o problema da angústia. Comofenômeno freqüente demais, a angústia o conduz a separar a neurastenia de umaneurose independente: a neurose de angústia Chama a atenção para esta entidadeclínica diferente e a isola conjuntamente com a criação de outra nova entidade: aneurose obsessiva.

Entre 1894 e 1895 distingue a neurose de angústia da neurastenia e, ao mesmotempo, diferencia as obsessões das fobias.

Como escreve em "Obsessões e fobias", umas e outras que até esse momentose encontravam assim indiferentemente agrupadas — não pertencem à neurasteniapropriamente dita, como tampouco dependem da degeneração mental. "São neu-roses separadas, com um mecanismo especial e de uma — diferente — etiologia" .

É precisamente sobre o fenômeno da angústia que Freud vai fundar suadistinção, o que lhe permite, ao mesmo tempo, introduzir a neurose obsessiva.

Nas fobias ó

estado emotivo é sempre a angústia, enquanto que nas verdadeiras obsessõespode ser, com igual direito que a ansiedade, outro estado emotivo, como adúvida, o remorso, a cólera3.

Por sua vez, entre as fobias, distingue dois grupos caracterizados pelo objetodo medo. As fobias comuns: um medo exagerado das coisas que a todo mundoaborrece um pouco (a noite, a solidão, a morte, etc). As fobias ocasionais: ummedo de condições especiais que não inspiram temor ao homem sadio (porexemplo, a agorafobia e outras fobias de locomoção).

A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 103

Sendo assim, à especificidade da angústia acrescenta-se outra diferença comas fobias da neurose obsessiva. As neuroses ocasionais não são obsessivas comoas verdadeiras obsessões, isto é, junto com a angústia, elas não aparecem a nãoser em condições especiais que podem, então, ser evitadas cuidadosamente.

Recordemos que, em "As neuropsicoses de defesa", para Freud "existemfobias puramente histéricas" e que as fobias e as representações obsessivas for-mam parte da neurose obsessiva4. Por sua vez, em "Obsessões", situa as fobiascomuns com as fobias da neurose obsessiva.

Não obstante,

para o enlace secundário do afeto liberado pode aproveitar-se qualquer repre-sentação. Por exemplo, uma angústia liberada, cuja origem sexual não deve serrecordada, versa sobre as fobias primárias comuns do ser humano diante decertos animais, da tempestade, da escuridão, etc, ou sobre coisas que inequi-vocadamente estão associadas com o sexual (o urinar, a defecação, o sujar-se,o contágio em geral)5.

Então, ambas fobias, as comuns e as ocasionais, introduzem uma novidade:o objeto e o medo. As fobias se apresentam com um estatuto muito particular emrelação à angústia, tendo a emergência de um objeto que provoca medo como ummeio de canalizá-la. Vale dizer, "o estado emotivo não aparece (...) senão nessascondições especiais que o doente evita cuidadosamente' .

A segunda diferença, neste momento, entre a angústia da fobia e a da neuroseobsessiva situa-se na etiologia.

Para chegar à etiologia, Freud parte de outro ponto: "o mecanismo da fobiaé totalmente diferente do das obsessões". O mecanismo da substituição não valepara as fobias da neurose de angústia. Não se revela, via análise, uma idéiainconciliável, substituída. Nunca se encontra outra coisa além da angústia que nãoprovém de uma representação recalcada e "que por uma sorte de eleição colocouem primeiro plano todas as idéias aptas a tornarem-se objeto de uma fobia"7. Oenlace do afeto liberado aproveita qualquer representação, mas é secundário.

Vale dizer,

a angústia se enlaça com um conteúdo de representação ou de percepção — oestatuto do objeto — e o despertar desse conteúdo psíquico é a condição capitalpara que aflore a angústia8.

Pois bem, "o grupo das fobias típicas (ou ocasionais), das quais aagorafobiaé o protótipo, não se deixa reconduzir ao mecanismo psíquico" da histeria e daneurose obsessiva;

ao contrário, o mecanismo do agoraf obia diverge num ponto decisivo do me-canismo das representações obsessivas e das fobias reduzíveis a estas: aqui nãose encontra nenhuma representação recalcada da qual se teria divorciado o afetoda angústia9.

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Novidade surpreendente, com alguma diferença do segundo passo teórico eainda longe da angústia de castração: como não se separou de nenhuma represen-tação recalcada, a angústia não tem representação aqui, é de outra natureza que arepresentação. Situa-se, antecipando a dimensão da falta, na própria abertura queconstitui o inconsciente.

No entanto, a pergunta do "Manuscrito E" decide o rumo. Na agorafobia podeser encontrada a recordação de um ataque de angústia e, na verdade, o que odoente teme é seu retorno. Mas, como a angústia desta fobia não se divorciou denenhuma representação recalcada, "tem outra origem" . De novo, "é precisoperguntar-se: qual pode ser a fonte?"11.

Freud estabelece, então, uma neurose especial a neurose de angústia — cujosintoma principal é esse "estado emotivo". E "assim as fobias formam parte daneurose de angústia e quase sempre vêm acompanhadas de outros sintomas damesma série".

A neurose de angústia é de origem sexual, mas "carece de mecanismo psí-quico em sentido próprio". A excitação sexual somática é desviada do psíquicoe recebe, devido a isso, um emprego anormal: o ataque de angústia.

No entanto, a angústia das fobias obedece a outras condições. "Têm umaestrutura mais complicada que os ataques de angústia simplesmente somáticos" .Nelas a angústia se enlaça com uma representação, que vale como objeto, e omedo a dosifica.

O despertar dessa representação é a condição capital para que aflore a angús-tia.

Em tal caso, a angústia é desprendida, de um modo que se assemelha ao queacontece, por exemplo, com a tensão sexual pelo despertar de umas represen-tações libidinosas14. Mas, na verdade, para Freud, não está claro ainda o vínculoque este mantém com a teoria que ele sustenta sobre a neurose de angústia.

Enquanto as fobias privilegiam o vínculo com o objeto do medo, antecipandoseu terceiro passo teórico (a reação angústia-perigo exterior), a neurose de angús-tia acentua o vínculo com a acumulação da excitação, devido a uma "satisfaçãoinsuficiente", que não admite derivação psíquica e que se libera como angústia.

Nesta tensão entre o exterior da fobia e o interior da neurose de angústia, umapergunta formulada por Freud introduz outra perspectiva: porque o aparelhopsíquico quando funciona com insuficiência para dominar a excitação sexual "caino estado afetivo peculiar da angústia" .

A psique cai no afeto da angústia — responde — quando é incapaz de tramitarum perigo que se aproxima de fora; cai na neurose de angústia quando é incapazde reequilibrar a excitação (sexual) endogenamente produzida.

A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 105

Mas com seu funcionamento, o aparelho psíquico, na neurose de angústia,produz um deslocamento: é "como se este projetara a excitação para fora"16.Reaparece o exterior da fobia e o objeto do medo e, com ele, se antecipa a viradaque retroativamente introduz em 1926. Esse autêntico perigo exterior: o da cas-tração.

Por sua vez, afeto e neurose se situam num estreito vínculo recíproco; oprimeiro é a reação a uma excitação exógena e a segunda uma reação frente auma situação endógena análoga. Mas enquanto o afeto é um estado passageiro, aneurose é crônica. A extinção exógena atua como golpe único e a endógena comouma força constante.

O estreito vínculo exterior-interior introduz também uma diferença que vinteanos mais tarde, em "Pulsões e destinos de pulsões", alojará, como uma forçaconstante, a pulsão.

Este outro vínculo excitação endógena-pulsão reorienta a pergunta: de ondenasce a angústia?

Freud se atem, no "Manuscrito K", ao modelo da neurose de angústia onde,de igual modo que na neurose compulsiva (Zwang), "uma quantidade provenienteda vida sexual causa uma perturbação dentro do psíquico", apesar do princípioregulador, o de constância.17

A fonte da angústia assim como a fonte da representação compulsiva fazemconfluir, sem apagar sua especificidade, fobias e obsessões que Freud diferenciaraao isolar a neurose de angústia.

A intuição da participação na vida psíquica de uma fonte de desprendimentode desprazer, independente do princípio de constância, ilumina, logo da separaçãofobias-obsessões, a atual confluência num ponto diferente. Para chegar a estaconfluência foi necessário, como assinalamos, isolar a neurose de angústia, criara neurose obsessiva e separar as obsessões das fobias. Mas faltará, para situar esseponto pulsional, a entrada conceituai da exigência pulsional. Existirá lugar, então,para que irrompa a perturbação econômica, núcleo genuíno do perigo.

A exigência pulsional está presente em 1896: as obsessões têm curso psíquicocompulsivo (Zwangskurs) por causa "da fonte que contribui para sua vigência"18.Retorna em 1909: o objeto do medo, na fobia, canaliza a angústia e, por sua vez,em certas circunstâncias pode acentuá-la. Freud se referirá ao cavalo como ima-gem do terror no caso clínico do pequeno Hans.

Para a cura da neurose de angústia, como neurose atual, aposta na desejadasatisfação sexual como prazer psíquico. Solução insuficiente: ainda não sabe quecom a excitação endógena introduziu a exigência da pulsão que opera semprecomo força constante. Com a angústia das fobias típicas, na dissimetria queintroduzirá o objeto do medo, começaram a se distanciar nostalgia e satisfação.

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A histeria de angústia: a irreversibilidade da angústia.

Uma senhora de meia idade, que se queixava de estados de angústia e quenão considerava concluída sua feminilidade, procura Freud. Esta consulta o con-duz, em 1910, a diferenciar a histeria de angústia e a retomar, com certa interro-gação, a neurose de angústia.

Esta não será a última oportunidade em que Freud volta à neurose de angústia,mas com a introdução desta nova entidade clínica, a angústia já não ficará disso-ciada da transferência.

No texto "Sobre a psicanálise silvestre" escreve que a ocasião da irrupção daangústia desta mulher havia sido a separação do seu último marido. O aumentoda mesma ocorre depois de consultar um jovem analista.

Este último determinara que a causa de sua angústia era a privação sexual econcluíra propondo, com diferentes alternativas, que retomasse uma vita sexualis"normal".

Tratava-se, segundo esse suposto analista, de um descobrimento novo queFreud havia feito em relação às neuroses atuais. Então, com o reforço da angústia,a paciente não demorou a consultá-lo.

Freud a recebe, e a escuta. Assinala que não deve se considerar "verdadeiro,de cara, tudo que os neuróticos falam sobre seu analista". No campo da análiseintervém a transferência: o analista tem que assumir, em certas oportunidades, a"responsabilidade" dos desejos secretos reprimidos dos neuróticos. Mas ainda queseja curioso, tais inculpações dos pacientes "em nenhuma parte encontram maiscredibilidade do que entre os outros analistas"19.

Feita esta declaração, liga esta situação às pontuações sobre a psicanálisesilvestre.

Começa pelos erros que chama científicos. O conceito do sexual é muito maisamplo na psicanálise: "também é atribuído ávida sexual toda atividade de senti-mentos ternos". Sua fonte: as moções sexuais primitivas, ainda que experimentemuma inibição de sua meta sexual ou que a tenham permutado por outra, já nãosexual.

"Preferimos, então, falar de psico-sexualidade, pois não omitimos, nem su-bestimamos o fator anímico da vida sexual". A palavra "sexualidade" se empregano mesmo sentido amplo do vocábulo "lieben" na língua alemã.

Uma insatisfação anímica com todas suas conseqüências pode estar presentequando não falta um comércio sexual normal. Ao contrário, o coito ou outros atossexuais só permitem descarregar uma medida mínima das aspirações sexuaisinsatisfeitas. Isso é testemunhado pelas satisfações substitutivas, vale dizer, ossintomas neuróticos. Sem dúvida, seu jovem colega simplificou muito o problema,

A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 107

só insistiu no fator somático do sexual; em conseqüência, "tem que assumir a totalresponsabilidade pelo seu proceder".20

Esse proceder leva-o a situar um segundo mal-entendido. Segundo a psica-nálise, uma insatisfação sexual é a causa da neurose. No entanto, os sintomasneuróticos surgem de um conflito entre a libido e o recalque. Ficou para trás essavita sexualis que levaria à almejada satisfação. A existência do conflito põe emquestão "que a satisfação sexual constitui em si a panacéia universal". Se apaciente não tivesse nenhum conflito já teria apelado muito antes para alguns dosrecursos que o jovem analista propôs.

Até aqui tudo parece muito claro, mas como no horizonte diagnóstico reapa-receu a velha neurose de angústia, o fator somático ainda retorna para o veredictojunto com certa dificuldade.

As chamadas neuroses atuais como a neurose de angústia pura dependemdesse fator somático para a vida sexual. Não obstante, a respeito delas não conta"ainda com uma representação certa sobre o papel do fator psíquico e do recalque".

Sendo assim, como antecipamos, o valor estrutural que o fator psíquico e orecalque adquiriram interroga e questiona a suposta pureza da neurose de angústia.

Novamente, a satisfação apontada, com os diferentes recursos que são acon-selhados a esta mulher, deixa fora conflito e recalque junto com o diagnóstico deuma histeria de angústia que Freud propõe. Então, já não sobra espaço algum paraa psicanálise: "onde interviria aqui o tratamento analítico, no qual vemos oprincipal recurso para o caso dos estados de angústia?"22.

Pouco tempo antes, com a análise do pequeno Hans, Freud havia proposto,como nova entidade clínica, a histeria de angústia. Com esta proposta recupera asfobias típicas. Mas agora se produz uma novidade: o mecanismo psíquico destas,que antes se situava fora dele mesmo, concorda, exceto num ponto, com o dahisteria.

Trata-se de um ponto decisivo. Está apto a estabelecer a separação: nas fobiasa libido, desprendida do material patógeno em virtude do recalque, não é conver-tida numa intervenção corporal como na histeria, mas libera-se como angústia.

Na primeira versão de sua teoria não se encontra nenhuma representaçãorecalcada da qual se tenha divorciado o afeto da angústia. Há lugar para a falta,deixando de lado a "origem", enquanto que a angústia é anterior, com muitaantecipação ao recalque. Mas será necessário esperar até 1926.

Na segunda versão, a libido liberada como angústia se divorciou de umarepresentação recalcada, enquanto que a formação substitutiva, um animal maisou menos apto a ser objeto de angústia, se estabelece pela via do deslocamento.

Mas a parte quantitativa não desapareceu, e sim se transpôs em angústia.Sendo assim, devido a cada aumento da moção pulsional "a muralha protetora

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adia o problema". Só se introduziu, junto com o mecanismo psíquico e a repre-sentação, o objeto que vale como representante e o medo que mediatiza a angústia.

Então, nesta fobia aos cavalos, quando surge a angústia?

Em relação à aparição da fobia, que acontece aos 4 anos, não há no históricodo pequeno Hans um acontecimento crítico que a explique.

Não se trata do nascimento da irmã que ocorre quando ele tem 3 anos.Tampouco se trata da ameaça da mãe que coincide com o começo da masturbaçãoativa, também nessa idade.

Estes fatos têm um papel a posteriori, mas, ao menos diretamente, não sãodesencadeantes. Frente à ameaça materna, Hans "responde ainda sem consciênciade culpa, mas é a ocasião em que adquire com efeito retroativo o complexo decastração"?*

A pergunta sobre a aparição da angústia permanece aberta. Um sonho quefracassa vai lhe permitir diferenciar a emergência da angústia da constituição dafobia.

Nas comunicações iniciais dos primeiros dias de 1908, como nota do pai aFreud, lemos:

"Hans (4 anos) aparece de manhã chorando; a mãe pergunta-lhe por que chorae ele diz: quando dormia pensei que você estava longe e eu não tenho nenhumamamãe para que me acaricie (liebkosen).

Portanto, um sonho de angústia.

Algo parecido notei nele já no verão (julho - agosto) em Gmunden. Ao anoite-cer, a maioria das vezes ia para a cama com um disposição muito sentimentale uma vez fez a observação (aproximada): se não tivesse nenhuma mamãe, sevocê fosse embora, ou coisa parecida; não me lembro com exatidão. Infeliz-mente, quando ele estava com essa disposição triste, a mãe sempre o acolhiaem seu leito.

Mais ou menos a 5 de janeiro aproximou-se cedo da mãe, que estava na cama,e disse: Tia M. falou: 'Mas que lindo pintinho você tem (Tia M. tinha sehospedado quatro semanas antes na nossa casa; certa vez viu como minhamulher dava banho no rapazinho e, de fato, disse isso a minha mulher, Hansescutou-a e procurava aproveitar isso.)

No dia 7 de janeiro ele vai, como de costume, ao Stadtpark (parque municipalsituado perto do centro de Viena) com a babá; na rua começa a chorar e pedeque o levem para a casa, quer agradar (schneicheen) a mãe. Quando em casaperguntam por que não quis continuar e começou a chorar, não quer dizer nada.De tarde está alegre como de costume; ao anoitecer tem visível angústia, chorae não conseguem separá-lo da mãe; uma e outra vez quer agradá-la (acariciar-se). Depois recobra a alegria e dorme bem.

No dia 8 de janeiro, minha própria mulher sai para passear com ele para ver oque acontece. Leva-o a Schõnbrunnn, lugar aonde ele gosta muito de ir. De

A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 109

novo começa a chorar, não quer seguir caminho, tem medo. Acaba indo, masé visível que sente angústia No caminho de volta de Schõnbrunnn diz à mãe:tive medo de que um cavalo me mordesse. (De fato, em Schõnbrunn inquietou-se quando viu um cavalo.) Quando anoitece me dizem que teve um ataqueparecido ao do dia anterior, com pedido de agradar a mãe. Tranqüilizam-no.Diz chorando: sei que me levarão de novo para passear e depois o cavaloentrará no quarto.

Esse mesmo dia, a mãe pergunta-lhe: Você passa a mão pelo faz-pipi? E sobreisso, ele diz: Sim, cada anoitecer, quando estou na cama. No dia seguinte, 9de janeiro, recomendam-lhe, antes da sesta, que não passe a mão pelo faz-pipi.Interrogado ao acordar, ele diz que passou durante um tempinho.25

Nesse fragmento clínico — suficiente, como um todo, para nos orientar —Freud situa "o começo da angústia, assim como da fobia". Mas nos indica quetemos bom fundamento para separar uma da outra. Trata-se desse "ponto temporalcom estágio inicial" que a maioria das vezes se descuida ou silencia.

A perturbação é introduzida no verão de 1907 com pensamentos terno-angus-tiados e, mais tarde, nos primeiros dias de 1908, com um sonho de angústia queo desperta.

O conteúdo do sonho é perder a mãe, de modo que ele já não possa "seacariciar" com ela. Deduz, com sua segunda teoria da angústia, que a ternura emrelação à mãe aumentou enormemente: "é o fenômeno básico de seu estado". Enos lembra, para assim confirmá-lo, das suas duas tentativas de seduzir a mãe. Aprimeira se produz ali onde o pênis de Hans é sancionado como "uma porcaria"por sua mãe, ainda no verão. E a segunda, ali onde elogia seu genital aproveitandoo comentário da Tia M., pouco antes de que irrompa a angústia ao andar pela rua.

"É essa aumentada ternura pela mãe que subitamente se transforma em an-gústia", sucumbe ao recalque. Em 1909 trata-se da transformação da libido recal-cada em angústia, mas a mesma angústia interroga o recalque.

De onde provém o estímulo para o recalque?, pergunta-se. Da intensidade damoção, não dominável pela criança? Por acaso cooperam outros poderes aindanão discernidos?

Com o estímulo para o recalque, constitui a fobia. Mas, como a angústiaindica certo fracasso do recalque, há lugar também para que irrompa essa inten-sidade da moção pulsional não dominável pelo simbólico pois não pode ser ligada.

E mesmo sustentando que a libido recalcada se transforma em angústia, aaparição como perturbação de dita angústia interroga — antecipando o mais alémdo princípio do prazer — o estatuto da satisfação e do objeto.

O sonho de angústia constitui esse estágio inicial que marca o começo daangústia que se antecipa à constituição da fobia.

Nesse "ponto temporal" (Zeitpunkt), muitas vezes descuidado ou silenciado,se introduz a perturbação que no começo carece de objeto. É, ainda, angústia e

110 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

não medo. Hans (no começo) não pode saber do que tem medo. E quando, nesseprimeiro passeio com a babá, não quer dizer do que tem medo é porque eletambém não sabe. Diz o que sabe: que na rua lhe falta a mãe com quem pode seacariciar, e que não quer se apartar dela. Para Freud, deixa vislumbrar assim osentido primeiro de sua aversão a andar na rua.

Por outro lado, seus estados angustiados — duas vezes repetidos antes dedeitar-se — e, não obstante, de nítida coloração terna provam que no começoda doença não existe uma fobia ao andar na rua ou a passear, nem tampoucoaos cavalos.

Como explicar, então, o estado ao anoitecer?

A angústia corresponde, então, a uma nostalgia recalcada, mas não é o mesmoque a nostalgia; o recalque conta também em algo.

Este dito recalque inscreve um antes e um depois e torna dissimétricasnostalgia e angústia e, conseqüentemente, prazer e satisfação.

A nostalgia poderia se transformar em satisfação plena (voei in Befiiedigung)apontando-lhe o objeto ansiado; para a angústia essa terapia não serve, elapermanece mesmo que a nostalgia pudesse ser satisfeita, já não é possível tornara transformá-la plenamente em libido: a libido é retirada no recalque por algumacoisa26.

A angústia — como indicamos — desamarra nostalgia e satisfação, questionao estatuto do objeto e interroga o império do princípio do prazer.

Nessa impossibilidade de tornar a transformar a angústia em libido, não sócai a "satisfação plena" e o objeto ansiado, como também a primeira muda designo e o segundo se torna inquietante.

No caso clínico, comenta que os "estados de angústia não são provocados poruma satisfação"27. Vale dizer, refere-se a essa satisfação, acorde com o princípio,quando Hans está alojado como objeto de prazer. Com a emergência da angústiahá desacordo entre prazer e satisfação. É necessário, então, referir-se ao desprazerda satisfação, ao prazer no desprazer, para produzir uma virada e antecipar o nomefreudiano do gozo.

No sono trata-se "de uma separação" . Os chamados pensamentos terno-an-gustiados, prévios ao sono, preparam-na. No entanto, como assinala Freud na"Epícrise", as relações cronológicas não impedem de atribuir influxo demais àocasião para a irrupção da doença — a transformação da angústia libidinosa emangústia — pois "em Hans observam-se indícios de estados de angústia há muitotempo atrás, antes que visse tombar o cavalo de diligência na rua"29.

A posteriori, comenta, a neurose se atou diretamente a essa vivência acidentale conservou seu rastro na entronização do cavalo como objeto de angústia. Masnesse ponto temporal trata-se já não da angústia e sim da fobia.

A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 111

Retomando, então, à angústia; estabelecida tal separação — como castraçãoe como fracasso do sono — não há retorno possível: Hans já não é mais o objetode prazer. Com a aquisição retroativa do complexo de castração — essa novaseparação da mãe — cai o jogo de esconde-esconde. A comparação, em 1957,introduz, para Lacan, a angústia como angústia da insuficiência: a diferença entreaquilo pelo que é amado (corpo = falo) e seu pênis "como algo miserável"30.

Depois do sonho, "está com a mãe e apesar disso tem angústia". É —indica-nos Freud — o que se mostra em Hans por causa do segundo passeio,quando a mãe o acompanha. Agora está com a mãe e, no entanto, tem angústia,isto é — insiste — uma nostalgia dela não saciada.

Na "Epícrise" escreve que se trata de um genuíno sonho de castigo e recalque"no qual, além disso, fracassa a função do sonho, posto que a criança despertacom angústia do seu sono".

Novamente considera que a criança sonhou com as ternuras com sua mãe,sonhou com dormir com ela; sendo assim

todo prazer se transformou em angústia e todo conteúdo de representação setransformou em seu oposto (pois) o recalque - outra vez, um antes e um depois— obteve a vitória sobre o mecanismo do sonho.

Freud supõe a existência em Hans de uma excitação sexual acrescentada. Emesmo que o objeto de dita excitação continue sendo a mãe, o decisivo, nova-mente, é a transformação da excitação sexual em angústia. Nessa dita transforma-ção, há lugar para o despertar contingente de impressões anteriores — essesindícios de estados de angústia de muito tempo atrás — por causa do "ocasiona-mento" da doença.

Sendo assim, quando "a angústia resistiu à prova"31 não se trata, então, danostalgia não saciada pelo objeto, nem da nostalgia da mãe, nem mesmo dacomparação, mas da iminência do objeto: intervém a pulsão. O pênis, com amudança de estatuto do objeto, se tornou real quando Hans teve suas primeirasereções, vale dizer, com a primeira excitação sexual.

Ali onde no começo a angústia carece de objeto que a dosifique, com a viradaque se produz, ela já não é sem objeto: há lugar para essa libido retida. Mas seuvalor se modificou: não corresponde ao objeto de uma nostalgia erótica recalcada,mas sim ao descobrimento traumático da realidade sexual em seu próprio corpo.

A pulsão participa Trata-se do pênis como traumático, como pertencente aoexterior do corpo, como uma coisa separada, como um cavalo — a angústiaretorna apesar da fobia — que começa a se levantar e dar coices.

Talvez — escreve Freud — teria sido possível aproveitar a angústia ao 'fazerbarulho com as patas' para preencher lacunas em nosso procedimento de prova.(...) O pai não pôde confirmar minha conjetura de que na criança se mobilizava

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uma reminiscência sobre um comércio sexual entre os pais, observado por eleno quarto .

Em 1957, para Lacan também resta um enigma: a questão de saber se oKrawalmachen, um dos temores que a criança experimenta diante do cavalo —que faça barulho com as patas — não está relacionado com o orgasmo, inclusiveum orgasmo que não seria o seu: uma cena proibida entre os pais.

Compreende-se, então, a virada que se produz em 1976. Já não se trata nemda comparação, nem da angústia da insuficiência, pois "o gozo que resulta desseWiwimacher (fazer-xixi) lhe é alheio até o ponto de estar no princípio de suafobia"33. A insuficiência é do Outro: o gozo não pode ser ligado e, enquanto tal,não pode ser comparado.

O cavalo — lemos no caso clínico — "foi sempre para a criança o modelodo prazer de movimento, ("Sou um potro", dizHans aos pulos) mas como esteprazer de movimento inclui o impulso no coito, a neurose o limita, e o cavalo éoentronizado — para nossa surpresa — como imagem sensorial do terror. Pareceque a neurose não deixa às pulsões recalcadas outra dignidade que a de brindaros pretextos para a angústia dentro da consciência"34. Do prazer ao terror, mo-difica-se o valor do objeto: o Heimlich torna-se unheimlich, passa-se da nostalgiaà iminência do objeto. Intervém o objeto de borda da pulsão.

A angústia resiste à prova do passeio com a mãe e vê a necessidade deencontrar um objeto; em dito passeio "se exterioriza pela primeira vez o medo deser mordido por um cavalo". A mudança de libido em angústia para Freud seprojetou sobre o objeto principal da fobia: o cavalo. É importante notar: trata-se"dos cavalos de angústia"35.

O cavalo morde (substituto do pai), mas também cai: o cavalo da diligênciapreviamente tombara na rua Freud refere-se ao entrelaçamento pulsional. Com ocair substitui a mãe mas também, enquanto tomba e esperneia — o Krawallmahen— o próprio pênis como traumático.

Não há lugar para a reversão da angústia, uma vez liberada, em libido. Estareversão começa a desatar os complexos dos quais provém a libido. Há lugar parauma libido de objeto e, também, ali onde intervém a pulsão, para uma libido-resto.

É esta irreversibilidade da angústia em libido que modifica, junto com aintrodução ao gozo, o valor do objeto. Agora é esse fazer barulho que introduz aperturbação e não aqueles pensamentos terno-angustiosos. Reaparece o desprazerda satisfação. Trata-se do desagradável. Introduz-se, via Krawallmachen, a di-mensão da voz.

Neste chamado mudo, talvez seja necessário situar o nó que une o desejo àangústia, no instante da iminência do objeto. Será necessário esperar, porém, 1963.A função da angústia se antecipa à cessão do objeto como libido-resto. A nãoreversão terá, então, se recuperado: como perda da libido e como constituição do

A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 113

sujeito. A angústia-função será, pois, um tempo na constituição do desejo, essemomento em que se desprende o objeto a como causa do mesmo. Em seu retorno,esta irreversibilidade da angústia em libido anuncia que ali onde o sujeito "seaterra de sua satisfação" intervém a pulsão.

O perigo externo: angústia, medo, terror.

Em 1916 "o problema da angústia continua sendo um ponto nodal e umenigma" no qual confluem, sem entrarem em acordo, angústia neurótica e realista.

A angústia realista, como antes a fobia, dá entrada ao perigo externo: épossível tratá-la sem considerar de modo algum o estado neurótico?

Freud questiona, criticando o que inicialmente comenta na 25a conferência,que a angústia realista seja racional e adequada.

A única conduta adequada frente a um perigo seria a fria avaliação daspróprias forças, comparadas com a magnitude da ameaça e o decidir-se emconseqüência: se a fuga, ou a defesa, ou ainda, chegado o caso, o ataque. Mas"numa situação assim — comenta — não há lugar algum para a angústia"; aocontrário, a eficácia da reação é "melhor se não se chega ao desenvolvimento deangústia".

Se irrompe angústia, a irrupção resulta inadequada: "paralisa toda ação, mes-mo a da fuga". Então, a reação frente ao perigo precisa conciliar angústia e açãode defesa.

E como "o desenvolvimento de angústia nunca é adequado", Freud decompõe"a situação de angústia". O primeiro que encontra em dita situação é a disposiçãoou predisposição (Bereitschaft) para o perigo (Gefahr). Evidencia-se num aumen-to da atenção sensorial e numa tensão motriz. Esta disposição expectante é oantecedente da angústia sinal e sua falta introduz o terror.

Nesta disposição se origina, por um lado, a ação motriz e, por outro, "o quesentimos como estado de angústia". Se o desenvolvimento de angústia se ajustaa uma mera ameaça ou se limita a um sinal, então a disposição à angústia(Angstbereitschaft) leva à ação: a fuga, a defesa ativa ou o ataque.

Daí a disposição para a angústia parecer-lhe afinal o mais adequado e odesenvolvimento da angústia o mais inadequado.

Não é possível tratar — comoveremos — o vínculo angústia-perigo exteriorque Freud introduziu, sem considerar a angústia neurótica. Mas ainda não seconecta, como em 1926, com a castração na mãe e com o mais além pulsional.

Só o terror (Schreck), na sua diferença com a angústia e com o medo (Furcht),adianta o efeito de um perigo que não é recebido com disposição à angústia.

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O fenômeno do terror introduz, então, um novo perigo tão exterior como esseperigo exterior, fazendo confluir, por um instante, angústia neurótica e realista.Antecipa com a pulsão, um objeto-borda que escapa àquele da reversibilidade dalibido. E prepara, junto com a inquietante estranheza, iniciando uma mudança,esse horror da satisfação que clama por um ponto de exterioridade para o aparelhopsíquico, diferente do princípio do prazer.

Na conferência volta novamente à angústia. Para o núcleo do afeto se refereà "repetição de uma determinada vivência significativa . Uma impressão muitocedo que situa, como conseqüência das lacunas da verdade individual"38, napré-história. Dito estado afetivo adota a mesma construção que um ataque histé-rico e aponta, como este, à "decantação de uma reminiscência"39.

A "Carta 52" nos orienta neste ponto. O ataque histérico é ação (Action) enão mera descarga e, como tal, retém o caráter original de toda ação: ser um meiopara a reprodução do prazer. "Dirige-se ao outro, mas acima de tudo a esse outropré-histórico, inesquecível, a quem nenhum posterior igualará"40.

Desde esta perspectiva: o que se repete? De que impressão se trata? O quedecanta?

Sobre o fundo daquelas lacunas, essa impressão precoce volta em inibição,como lugar da angústia com a indefensão e como fenômeno com o terror: esseOutro — pré-histórico — está irremediavelmente perdido. Ali onde a primeirasatisfação mítica se repete como falha, o enfrentamento com um perigo, que nãoé recebido com disposição para a angústia, reproduz em 1926, introduzindo umamudança, o "prazer" do horror, e deixa a insuficiência do lado do Outro que nãopode ser garante desse gozo.

Na conferência, por outro lado, o acento se desloca em outra direção. Aimpressão precoce que em qualidade de repetição reproduz o afeto de angústia,introduz o ato do nascimento.

Esta versão inicial do ato, com o enorme incremento dos estímulos quesobrevém no nascimento, situa esta primeira angústia como uma angústia tóxica."O nome angústia (Angst) — angustiar, estreitamento (Enge) — destaca o rasgoda falta de ar, que nesse momento foi conseqüência da situação real, e hoje sereproduz quase regularmente no afeto".

Fica como antecipação que o dito primeiro estado de angústia se origina naseparação da mãe. No entanto, ainda não aparece a comparação, como ocorreráem 1926, com a castração da mãe. A separação se ordena em outra direção: levaa que nenhum sujeito possa se subtrair a esse efeito (esse primeiro estado deangústia profundamente incorporado), por mais que, "como o legendário Macduff,tenha sido arrancado prematuramente do seio materno, e por isso não tenhaexperimentado por si só o ato do nascimento".

A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 115

No entanto, o mesmo ato do nascimento — em 1916 "fonte e modelo do afetode angústia" — o conduz a outro lugar quando se inspira no pensamento ingênuodo povo.

Este "nexo importante" entre a angústia e o nascimento, desvelado certeira-mente pela sabedoria popular, se detém em outro lugar: "ante o singular e peque-nino objeto que, com a aparição da criança,/o/ o mecômio". Esse outro lugar —como assinalamos — com a indefensão do Outro, leva em 1963, no tempo daangústia, à cessão do objeto na construção do desejo...

Há muitos anos — comenta Freud — um assistente relatou, entre um grupode jovens médicos de hospital, uma

história engraçada que havia ocorrido na última prova de parteiras. Quandoperguntaram a uma candidata o que significava o fato de que no parto apare-cesse mecônio na água do nascimento, respondeu sem vacilar — e caladamentetomei partido por ela — que a criança está angustiada41.

A função da angústia.

Com "Inibição, sintoma e angústia" a angústia do nascimento retorna. Masnesta circunstância se ordena de forma diferente do que em 1916. Acomparaçãocom essa angústia primeira leva-o à castração na mãe, e a analogia à angústiatraumática.

"A primeira vivência de angústia (a do nascimento) poderia ser comparadaa uma castração da mãe (de acordo com a equação filho-pênis)"42.

A libido da mãe desliza de novo, como na menina, ao longo da equaçãosimbólica, para uma nova posição. "Resigna o desejo de pênis para substituí-lopelo desejo de um filho e com este propósito toma o pai como objeto de amor" .Seu complexo de Édipo culminará no desejo de receber como presente um filhodo pai.

Sendo assim, esta substituição, que pertence ao complexo de Édipo, reintro-duz o que já estava logicamente antes: a castração na mãe.

Por tratar-se de uma nova separação, sustenta-se, como Freud escreve a Rank(44), nos princípios já estabelecidos: o Édipo e a função do pai.

Por isso a castração na mãe — um momento logicamente anterior à própriaconstituição do sujeito como sujeito sexuado — se ordena ao redor do falo. "Sópode ser apreciada retamente a significatividade do complexo de castração se aomesmo tempo se toma em conta sua gênese na fase do primado do falo"4 .

A inscrição particular de dita castração que retorna com a equação é, comonúcleo da neurose, o complexo de castração.

116 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

No capítulo seguinte de "Inibição" introduz, afastando-se ainda mais daposição de Rank, a angústia traumática que sustenta também na angústia donascimento.

"A reflexão nos conduz mais além dessa insistência na perda do objeto", valedizer, a angústia sinal.

"Então a situação que valorizou como perigo e da qual quer se resguardar éa da insatisfação, o aumento da tensão de necessidade, frente a que — a indefensãoé importante".

Tanto se o eu vivenciar num caso — escreve — uma dor que não cessa, eem outro um êxtase de necessidade que não pode achar satisfação em relaçãocom o princípio do prazer, a situação econômica é, em ambos, a mesma e odesvalidamento motor encontra sua expressão no desvalidamento psíquico.

Vemos agora que a situação da insatisfação em que as magnitudes de estímuloalcançam um nível de desprazer — perto da dor — sem que sejam dominadas poremprego psíquico e descarga, tem que estabelecer para o lactente a analogia coma vivência de nascimento e angústia traumática — é a perturbação econômica peloincremento das magnitudes de estímulos na espera de tramitação.

A perturbação econômica constitui, agora, o núcleo genuíno do perigo. Comosituar esta perturbação econômica, núcleo do perigo e já não da castração na mãe?

A angústia do nascimento como a angústia do lactente "não precisa de inter-pretação psicológica", quer dizer, "psicologicamente não nos diz nada".

Esta ausência de significação situa a perturbação econômica como um dosnomes freudianos do gozo e, ao mesmo tempo, como fora da função da palavra.

A isto se refere em "Inibição" ao comentar que a angústia traumática comotal "carece ainda de todo conteúdo psicológico .

Retorna a analogia; não se trata de identidade. A angústia traumática nãocorresponde ao trauma do nascimento, exceto que o trauma do nascimento tam-bém vale como irrupção de gozo ou como perturbação econômica.

Somente a magnitude da soma de excita ção converte uma impressão em fatortraumático, paralisa a operação do princípio de prazer, confere sua significati-vidade à situação de perigo.

Porque não poderia ser possível — pergunta-se — quando intervém fatorestraumáticos sem referência às supostas situações de perigo, que a angústia não seprovocasse como sinal, mas que nascesse como algo novo com um fundamentopróprio?

Com o mais além, "a experiência clínica nos diz de maneira taxativa que éassim"47: na experiência do unheimlich ou nos sonhos da neurose traumáticairrompe como fator traumático, nesse mesmo ponto de perda inaugural do gozoque introduziu a castração na mãe, essa libido-resto.

A FU NÇÃO DA ANG ÚSTIA 117

Não se trata da libido de objeto, nem da libido narcisista. Esse resto reafirmaa importância da experiência sexual que, por tal causa, se denomina traumática einaugura o que não pode ser ligado: o gozo pulsional como satisfação substitutiva.

Tal dita experiência sexual confronta o sujeito, pela primeira vez com aindefensão, ou ainda, com a angústia traumática, pois tampouco conta com "esseoutro pré-histórico e inesquecível" que possa ser garante desse gozo parcial eintransferível.

A relação angústia-perigo exterior, em 1926, redefine o "perigo pulsionalinterior".

Por um lado, "a exigência pulsional não é um perigo em si mesma; o ésomente porque compreende um autêntico perigo exterior: o da castração"48. Nafobia — retorna o pequeno Hans — só se substitui um perigo exterior — o dacastração — por outro perigo também exterior: o do cavalo que morde.

Por outro, quando intervém o fator traumático, esse mesmo cavalo com oKrawallmachen — como em 1916 — introduz, com o terror, um novo perigo quesitua de outra maneira a exterioridade da pulsão: reaparece, como antecipamos,fora-de-representação e fora-do-corpo especular, a dimensão da voz.

No "Complemento" diferencia a situação traumática da indefensão, da situa-ção de perigo e introduz uma novidade esperada: a angústia pulsional.

Esta angustia pulsional, que se apropria do fenômeno do horror, que releva aangustia traumática e que recorta o núcleo da perturbação econômica, se sustentana "reação originária frente à indefensão no trauma"49.

Dita reação originária permite situar a angústia como função.

Enquanto a função da angústia — como assinala Lacan — é anterior à cessãodo objeto, o perigo está ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo doobjeto a.

Com a função da angústia, logicamente anterior ao desprendimento do objeto,o momento de indefensão alcança o Outro. Retorna a castração na mãe: "o pontode angústia está a nível do Outro".

A angústia original — o lugar da angústia — se situa a nível do Outro quenada pode fazer com isso que lhe escapa, nada o une a esse grito, já que a cessãodo objeto é um "entre-dois"; situa-se entre o Outro e o sujeito.

Daí que "quanto à causa de seu desejo o ser humano está ante tudo submetidoa tê-la produzido num perigo que ele ignora"50.

A série freudiana angúsúa-pengo-indefensão aponta para o sujeito: um voltara passar por esse "entre-dois" como indefensão no trauma, ou seja, por essemomento de constituição subjetiva. Retorna, então, neste voltar a passar — nossoponto de partida — o fenômeno da angústia.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. LACAN, J. El Seminário, libro X, La angustia, lição de 5 de dezembro de 1962, inédito.2. FREUD, S. "Obsesiones y fobias", O.C, Buenos Aires, A.E., III, p.75. As referências,

salvo indicação, correspondem a O.C, Buenos Aires, Amorrortu Editores, (A.E.),1978-85.

3. Ibidem, p.75.4. FREUD, S. "Las neuropsicosis de defensa", O.C, Buenos Aires, A.E., III, p.58.5. Ibidem, p.55.6. FREUD, S. "Obsesiones...", op.cit., p.81.7. Ibidem, p.82.8. FREUD, S. "A propósito de las críticas a Ia neurosis de angustia" O.C, Buenos Aires,

A.E., III, 1878-85, p.133.9. "Las neuropsicosis", op.cit, p.58.

10. Ibidem.11. FREUD, S. "Obsesiones...", op.cit, p.81.12. Ibidem, p.82.13. FREUD, S. "A propósito...", op.cit, p.133.14. Ibidem.15. FREUD, S. "Sobre Ia justificación de separar de Ia neurastenia un determinado síndro-

me en calidad de neurosis de angustia" O.C, Buenos Aires, A.E., III, 1978-85,p.111.

16. Ibidem, p. 112.17. FREUD, S. Fragmentos de Ia correspondência con Fliess: "Manuscrito K", A.E., I, p.262.18. "Nuevas puntualizaciones sobre las neurospsicosis de defensa", O.C, Bue-

nos Aires, A.E., III, 1978-85, p.171.19. "Sobre ei psicoanálisis silvestre", O.C, Buenos Aires, A.E., XI, 1978-85, p.222.20. Ibidem, p.223.21. Ibidem.22. Ibidem, p.225.23. FREUD, S. "Lo inconsciente", O.C, Buenos Aires, A.E., XIV, 1978-85, p.180.24. "Análisis de Ia fobia de un nino de cinco anos (ei pequeno Hans)", O.C,

Buenos Aires, A.E., X, 1978-85, p.9.25. Ibidem, p.21-3.26. Ibidem, p.23-4.27. Ibidem, p.25.28. LACAN, J. te Séminaire, livre IV, La relation d'objet, Paris, Seuil, 1994, p.243.29. FREUD, S. "Análisis...", op.cit, p.109.30. LACAN, J. "La relation...", op.cit, p.226-27.31. FREUD, S. "Análisis...", op.cit, p.96-7.32. Ibidem, p.109.33. LACAN, J. "Conferência en Cinebra", in Intervenciones y textos 2, Bs.As., Manantial,

1988, p. 128.34. FREUD, S. "Análisis...", op.cit, p.111-2.35. Ibidem, p.102; 99.36. Ibidem, p.97.37. FREUD, S. "251 conferência. La angustia", O.C, Buenos Aires, A.E., XVI, 1978-85,

p.358-60.38. "23a conferência. Los caminos de Ia formación de sintoma", O.C, Buenos

Aires, A.E., XVI, 1978-85, p.338.

A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 119

39. "25a conferência", op.cit, p.360.40. "Carta 52", A.E., I, p.280.41. "25a conferência", op.cit., p.361-2.42. "Inhibición, sintoma y angustia", O.C, Buenos Aires, A.E., XX, 1978-85,

p.123.43. "Algunas consecuencias psíquicas de Ia diferencia anatômica entre los

sexos", O.C, Buenos Aires, A.E., XIX, 1978-85, p.274.44. "Carta a Rank dei 25 de agosto de 1924", in revista Seminário Lacaniano

n%, Bs.As., 1994.45. "La organización genital infantil", O.C, Buenos Aires, A.E., XIX, 1978-85,

p.147.46. "Inhibición...", op.cit., p.125-35.47. "32a conferência. Angustia y vida pulsional", O.C, Buenos Aires, A.E., XXII,

1978-85, p.87.48. "Inhibición...", op.cit, p.120.49. Ibidem, p. 155-6.50. LACAN, J. El Seminário, libro X, "La angustia", lição de 3 de julho de 1963, inédito.

* N.T. Ao substantivo indefension não encontramos correspondente em português,onde, no entanto, temos os adjetivos indefeso e indefenso. O autor o utiliza paratraduzir ao espanhol o termo Hilflosigkeit de importância na elaboração freudianado 'Projeto". Propomos então criar o termo indefensão em fidelidade à articulaçãoteórica do texto.

Sonhos de AngústiaMaria Lucía Silveyra

Tradução: Paloma Vidal

Introdução

Hoje, a cem anos do Projeto Freudiano, é um fato que as coordenadassimbólicas nas quais se inscreve a psicanálise têm variado.

O discurso analítico se difunde nos diferentes âmbitos da cultura. Conseqüen-temente, esta situação tem propiciado distorções que, em algumas circunstâncias,o distanciam do que fora o projeto do criador da Psicanálise. Distorções queacentuam mais a adaptação do que o conflito.

O inconsciente também se modificou no que diz respeito às suas formas deapresentação. Em certos casos o discurso de nossos analisandos dista bastante dodaquelas primeiras histéricas que Freud nos apresentava em seus "Estudos sobrea histeria".

Recordamos que, já no início, Freud se depara com a necessidade de intro-duzir certas variações na técnica analítica como maneira de responder aos obstá-culos da sua prática: desde a arte da interpretação até as resistências e a repetição.

Poderíamos dizer que na atualidade os obstáculos que encontramos são ou-tros, mas, de uma forma ou de outra, eles são necessariamente parte do trabalhoanalítico e do desafio que ele mesmo impõe.

Por sua vez, continuamos sendo convocados num mesmo ponto: o do sofri-mento subjetivo.

O fato de termos crianças como analisandos não nos isenta de ter que enfrentaras mesmas dificuldades: o fechamento do inconsciente. No entanto, certas respos-tas próprias das crianças à intervenção analítica não deixam de surpreender porseu caráter direto ou por sua rapidez.

121

122 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

Vale a pena recordar as vacilações que oportunamente manifestara Freud arespeito disso:

...a análise de uma perturbação na infância parecerá mais digna de confiança,mas seu conteúdo não pode ser muito rico já que será preciso emprestar àcriança muitas palavras e pensamentos e ainda assim os estratos impenetráveis,profundos serão inacessíveis para a consciência.

Logo acrescentará:

de qualquer maneira é lícito afirmar que as análises das neuroses da infânciapodem oferecer um interesse particularmente grande. O serviço que prestam nacompreensão da neurose dos adultos eqüivale mais ou menos ao que os sonhosdas crianças brindam a respeito dos sonhos dos adultos [...] O que ocorre é queneles vem à tona de maneira inequívoca o essencial da neurose porque estãoausentes as estratificações que se depositaram depois.2

Em se tratando da psicanálise e da ética do desejo é no caso por caso quetentaremos dar respostas a estes interrogantes.

Os sonhos: sintoma e fantasma

Tomei dois sonhos da análise de uma criança que caracterizo como sonhosde angústia.

Sonhos que constituem um momento privilegiado da cura. Por um lado, comovia de acesso à própria interrogação sobre o sintoma manifesto de sua neuroseinfantil: uma neurose secundária. Por outro, o esboço de certos pontos de fixaçãofantasmática, cujo destino na constituição subjetiva terá ficado por ora suspenso.

A respeito dos sonhos, Freud nos ensina que, se bem é função dos mesmosatuar como guardiões do sono, há sonhos — como neste caso os sonhos deangústia — que contrariando o princípio do prazer fracassam na tentativa deelaboração do desejo inconsciente, interrompem o sono e provocam o despertar.Despertar para o encontro traumático com a sexualidade, sexualidade marcadapor uma falta.

Cada sujeito tentará de uma maneira peculiar velar dito trauma, o real dacastração. Sintoma, angústia, vicissitudes do fantasma, são montagens que odispositivo analítico permitiu levar a cabo, desdobramento em transferência, dosmomentos peculiares de uma análise.

Para orientar a exposição do caso recordarei as palavras de Freud ao referir-seaos sonhos de angústia:

"A angústia nos sonhos, me seja permitido insistir, é um problema de angústiae não um problema de sonho."3

SONHOS DE ANGÚSTIA 123

Numa ocasião o analisando sonhou que se afundava em areias "molhadiças".Num cartaz lia-se a palavra "Perigo". Comentou que havia tido a sensação de nãopoder se mexer e disse "se estas areias chupam você, você desaparece". Quandoacordou assustado, havia feito xixi na cama. Durante o relato corrige e diz:"movediças, não molhadiças."

Em outro sonho havia um vampiro dentro da cama. E também uma torta. Ovampiro queria chupar-lhe todo o sangue e ele gritou.

Em ambos sonhos destaca-se um significante: "ser chupado", forma própriada gramática pulsional. Este significante que estabelece a equivalência entre asareias e o vampiro — ambos o chupam — remete na cadeia associativa a outrosignificante: "desaparecer". Chupar e desaparecer abrem o caminho para sintomae para fantasma.

A condensação que se produz no lapso molhadiça por movediça toma, noequívoco, valor de interpretação e o leva em suas associações a fazer xixi na cama.

Manifestam-se, então, através desta produção, por um lado os sonhos e olapso — pontuações próprias do inconsciente e que veiculam um desejo — eporoutro, o fantasma, que em sua versão imaginária, remete ao objeto em jogo. Háum fracasso na dimensão da representação que aproxima ao objeto, objeto causado desejo que o coloca em questão. São sonhos que, como no "Homem dosLobos", ativam um fantasma — em nosso caso: "ser chupado" — e provocamangústia.

Sabemos do valor fundante da angústia na constituição do desejo, desejo deser desejado pelo Outro. Necessariamente lugar de desamparo, onde indefeso dizdo sonho: "não podia me mexer".

O desejo toma, neste caso, a forma regressiva da oralidade veste a fantasiade vampiro ou areia chupadora.

Precisamente destaca-se em ambos os sonhos o fato de que tanto seu corpocomo seus conteúdos, no sangue, por exemplo, valem enquanto objetos a seremchupados. O sangue eqüivale, em suas associações, ao xixi.

O vampiro havia sido até esse movimento da análise um personagem habitualem seus jogos, em seus desenhos. Mas até a aparição dos sonhos ele não faziacomentários a respeito.

Voltemos à angústia. Lacan se refere ao vampirismo para situar o ponto deangústia entre a mãe e a criança, ponto que está a nível do corpo da mãe. Aangústia da criança ante a falta da mãe situa-se no esgotamento do peito. Na clínicaencontramos que, correlativamente a este fantasma, a posição vampiresca dacriança é uma resposta possível: "chupar-ser chupado".

"Não por acaso evoquei a imagem fantasmática do vampiro que não é sonhadanem concebida de outro modo pela imaginação do que como esse modo de

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fusão ou de substração primária na fonte mesma da vida, onde o sujeito agressorpode encontrar a fonte de seu gozo"4.

O descobrimento da sexualidade entre os pais é um dos nomes da castração.

No caso clínico do "Homem dos Lobos", da história de uma neurose infantil,Freud se refere à cena primordial e diz que a criança interrompeu o estar juntode seus pais mediante uma evacuação que lhe deu motivo para berrar.

Freud diz ainda, e isso nos interessa especialmente em relação a nosso ana-lisando, que, em ocasiões de índole parecida, a observação do comércio sexualentre os pais acabou em uma micção. Acrescenta que ambos fatos, a evacuaçãoe a micção, podem ser tomados como signos da primeira excitação sexual. Àexcitação sexual e satisfação pulsional do sintoma, a criança responde com enu-rese, "fazendo xixi na cama".

Já numa carta a Fliess, Freud assinala que "uma criança que molhe a camaregularmente até os sete anos (...) deve ter vivenciado excitação sexual na infân-cia".

Nos 'Três ensaios", referindo-se ao diagnóstico diferencial, considera que aenurese noturna quando não responde a um ataque epiléptico, corresponde a umapulsão.

Lacan se detém em seus desenvolvimentos sobre a angústia nessa cena pri-mordial do caso clínico mencionando:

os pontos de fixação da libido se encontram sempre ao redor de alguns dessesmomentos que a natureza oferece a essa estrutura eventual de cessão subjetiva .

Neste caso, os sonhos advertem de um perigo, perigo ligado ao desejo que ocoloca em questão como sujeito.

Este perigo — precisa Lacan — é, de acordo com a indicação freudiana maisprecisamente articulado, o que está ligado ao caráter de cessão do momentoconstitutivo do objeto a6.

Enquanto que a função da angústia é anterior à cessão do objeto, o perigoestá ligado ao caráter de cessão do objeto parcial, do objeto a e de sua posiçãodesejante.

Quanto à causa de seu desejo, o ser humano está ante tudo submetido a tê-loproduzido num perigo que ele ignora .

Poderíamos dizer que os sonhos na cura possibilitam, ao ativar o fantasma,voltar a passar por esse momento de constituição subjetiva.

O desdobramento fantasmático, a construção, produto da cadeia significante,recorta o objeto pulsional e comove o sintoma, ao mesmo tempo que nomeia aangústia e lhe dá uma proteção: o desejo da mãe disfarçado de vampiro.

SONHOS DE ANGUSTIA 125

Frente à castração cede fazendo xixi na cama. O que nomeia como objeto a,o xixi, é o gozo, o gozo autoerótico.

"Fazer xixi na cama" é o sintoma, "chupar" o verbo ao redor do qual se ordenao sintoma e o fantasma e que abre à dimensão pulsional da oralidade, colocandoem jogo um objeto: o peito. Há articulação entre o sintoma e o fantasma. Estabe-lece-se a equivalência no inconsciente entre o peito e o pênis, entre o chupar e ofazer xixi na cama.

São as teorias sexuais infantis que no dizer de Freud

resultam indispensáveis para a concepção das mesmas neuroses, nas quais estasteorias conservam vigências e cobram um influxo que chega a comandar aconfiguração dos sintomas .

E acrescenta:

o que há nessas teorias de correto é explicado por sua proveniência dos com-ponentes da pulsão sexual, já em movimento dentro do organismo infantil.

Alguns dados da história

A mãe o apresenta como uma criança superdotada, tanto por seu desenvolvi-mento físico como por sua capacidade intelectual. O ingresso na escola nãoconfirma esta fantasia. Passa a ser apenas um a mais no grupo das crianças. É omomento de queda do imaginário, do ser diferente, que ambos compartilhavam.

Nascem irmãos gêmeos, ambos meninos: acidente, não sem conseqüências,na história. Há o encontro com a castração do Outro materno que o desaloja dolugar ideal de falo, desde o qual completava imaginariamente a mãe.

Frente a imagem da completude reage com agressividade: chiliques diante dacena dos irmãos mamando, chupando dirá ele, e que freqüentemente derivam namasturbação ou no xixi na cama. Com as primeiras excitações sexuais começa aenurese. Da equação corpo-falo ao descobrimento do pênis real que irrompe comotraumático é um gozo fálico de difícil assimilação simbólica.

Nas seções se interessa pelas comparações: presente-ausente, grande-peque-no, vivo-morto, entre outras. Constrói aviões de papel. Apincípio são tão grandesque não pode fazê-los voar. Vai reduzindo-os de tamanho e consegue que semantenham no ar.

Traz um quebra-cabeça com cujas peças se monta o corpo humano. Como éde se esperar num jogo para crianças, o "pinto" não figura entre as peças. Adverte,então, que este pode faltar. Nas aulas de judô, perto do fim do ano, obtém comoprêmio por seu desempenho a ponta de uma faixa. Esperava algo mais. Faz apassagem do pênis real a uma solução simbólica, produto da conseqüente modu-lação da angústia.

126 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO

Com respeito à relação entre a criança e a angústia, Freud refere-se às histeriasde angústia como as que aparecem mais cedo na vida: "são diretamente asneuroses da época infantil". Apesar de alguns medos, que foram cedendo no cursoda análise, no caso desta criança, não se constitui uma fobia.

O desejo do analista operou e tornou possível a constituição de um saber, deuma ficção fantasmática, esboço de resposta ao impossível do real.

Até aqui chegou a análise: fica como questão a verificar o destino do objetoque virá ao mesmo tempo a velar e a assinalar a falta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FREUD, S., "Da história de uma neurose infantil. O.C v.XVII, Buenos Aires, AmorrortuEd.

2. Ibidem3. FREUD, S., A Interpretação dos Sonhos. O.C, V, op.cit4. LACAN, J., O Seminário, livro 10, A angústia. Inédito.5. Ibidem.6. Ibidem.7. Ibidem.8. FREUD, S., "Da história de uma neurose infantil". Op.cit.9. Ibidem.