apostila do cederj - fundamentos_da_educação

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1 Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos" Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: • Apresentar a disciplina. a u l a OBJETIVO Aula1_1pb.indd 7 5/19/2004, 10:59:34 AM

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Page 1: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

1Uma viagem pela"Terra dos Fundamentos"

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Apresentar a disciplina.

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OBJETIVO

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"

8 C E D E R J

INTRODUÇÃO Seja bem-vindo, prezado aluno, ao nosso curso de licenciatura. Aqui estamos

para trilhar com você um caminho novo. O curso que você começa agora

tem um signifi cado especial na sua vida pessoal e profi ssional. “Licenciatura”

signifi ca muito mais que “obter uma licença”, quer dizer, obter uma autorização,

credenciar-se para dar aulas; signifi ca o compromisso com a educação.

Pensemos juntos sobre seu trabalho

como professor e nos problemas que você

pode enfrentar na tarefa educativa. Como

você enfrentaria, por exemplo, o problema

de um aluno indisciplinado, desatento ou

desmotivado? Como agiria para preparar uma aula interessante, atraente,

motivadora? Como, em suma, se comportaria quando o seu problema,

em sala de aula, não dissesse respeito à sua especialidade, mas exigisse

um saber propriamente educativo ou pedagógico?

No curso de licenciatura você aprenderá a lidar com todos esses

problemas mencionados acima, além de com muitos outros. Estudando

teorias sobre como, quando e por que educar, você vai ser capaz de situar

sua disciplina no contexto mais amplo das ações educativas; de entender

o contexto histórico e social em que o trabalho educativo aconteceu

no passado e acontece agora; e – muito importante – aprenderá como

desempenhar também tarefas práticas que seu trabalho exige, como

criar programas de disciplinas, preparar adequadamente uma aula,

formular avaliações. Aprenderá, em suma, a adotar atitudes e práticas

condizentes com aquelas esperadas de um educador comprometido com

um trabalho de qualidade, não somente em termos de atuação individual,

mas igualmente em termos da dimensão social.

Além de proporcionar-lhe conhecimentos técnicos na área da

Educação, o curso de licenciatura pretende também despertar em você

o interesse pelas dimensões ética e estética, bem como pelas análises que

tratem de questões vinculadas à ideologia e aos valores, mitos e ritos

presentes no processo educativo.

Tudo isso tem um objetivo maior: fazer com que suas aulas ganhem

em dinamismo, densidade, colorido, criando maior motivação em seus

alunos e dando a eles maior segurança no desempenho do seu trabalho,

o que resultará em maior efi cácia em sua tarefa educativa.

Em cada aula, caro aluno, observe bem este espaço na margem. Nele você encontrará conceitos, informações adicionais, “dicas” etc. que poderão ajudá-lo a fazer o percurso de nossa viagem dos Fundamentos da Educação.

!

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Os cursos de licenciatura têm sido objeto de um interessante e

produtivo debate, travado tanto no âmbito da Educação, como num

diálogo com os outros campos de saber especializado. O que se está

tentando estabelecer, a partir desta discussão, é um tratamento unitário

da ação educativa, estreitando-se os laços entre a área da Educação

e os outros campos de saber. Deseja-se que, desde o ingresso para

formação em qualquer área, todos os alunos recebam uma base comum

de aprendizagem que contenha elementos formativos considerados

necessários para a habilitação ao exercício do magistério. Ao mesmo

tempo, pretende-se explorar as interfaces entre o campo pedagógico

e os campos de conhecimento específi co, bem como oferecendo aos

profi ssionais envolvidos com o ensino uma formação teórica e didático-

metodológica que permita uma adequada relação entre a teoria e a

prática, mediante uma articulação entre as disciplinas pedagógicas e

aquelas pertencentes ao currículo dos cursos específi cos.

Diante disso, um desafi o está lançado: como enfrentar o cotidiano

de uma sala de aula? Que teorias e práticas você precisa dominar para

desempenhar o seu trabalho como docente?

Acreditamos que a ênfase está na preocupação com a dimensão

inter-relacional do trabalho pedagógico, que resulte em saberes

construídos e compartilhados na relação professor-aluno, e não na

concepção tradicional da pura e simples transmissão de saberes prontos

e acabados, no ensino de verdades estabelecidas.

Veja, caro aluno, que a tarefa não é fácil. Você precisará estar

interessado em aprender a olhar, diagnosticar, apreciar e encaminhar

posições, percepções e a tomar decisões com vistas a transformações e

resoluções, porém nunca em uma via de mão única, mas numa relação

dialógica que envolva sempre os principais interessados no processo:

seus futuros alunos.

É com essa preocupação que nós, professores da área dos

Fundamentos da Educação, pretendemos ajudá-lo através das nossas

aulas. Mais do que receitas prontas, elas pretendem apresentar a você

teorias, propostas, problemas, casos, questões, a partir de cuja análise

e discussão a dimensão pedagógica de seus problemas, em sala de aula

ou fora dela, fi que mais clara e o ajude em sua tarefa educativa. Em

outras palavras, nossas aulas convidam você a se transforrmar em um

“pensador” da Educação.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"

10 C E D E R J

Como exemplo do posicionamento contido nas aulas que você

está recebendo, rejeitando uma visão reducionista da Educação como

simples transmissora de conhecimento, refl ita sobre a seguinte afi rmação

de Giroux:

Essencial para a categoria de intelectual transformador é a

necessidade de tornar o pedagógico mais político e o político

mais pedagógico. Os intelectuais transformadores precisam

desenvolver um discurso que uma linguagem crítica e a linguagem

da possibilidade, de forma que os educadores sociais reconheçam

que podem promover mudanças (GIROUX, 1997).

Mas, caro aluno, não espere, nestas aulas, encontrar uma linguagem

sem sabor e sem graça, com textos longos e maçantes, voltados apenas

para teorias. Ao contrário: o objetivo aqui é ajudá-lo, não atrapalhá-lo,

oferecendo instrumentos que sejam úteis à sua prática. Por isso, adotamos,

nos textos das presentes aulas do curso de licenciatura, uma forma de

apresentação que trabalhará seu imaginário. E isso foi feito criando a

metáfora de uma viagem de trem, em torno da qual girarão as narrativas,

os enredos de cada aula.

Que tal, gostou da idéia? Então, venha conosco! Prepare sua

bagagem em termos de interesse e atenção, e vamos iniciar agora

nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”.

A Estação Central está diante dos olhos de nossa imaginação.

A gare imensa fervilha de gente. Os trens, perfi lados nas plataformas,

soltam uma fumaça branquinha. As locomotivas aquecem cada vez

mais o vapor, que dentro em breve permitirá mover muitos vagões.

Carregadores atarefados correm daqui para lá levando malas de todos

os tamanhos e tipos; crianças saem em desabalada carreira dispendendo

energia e antecipando a alegria da viagem; homens e mulheres elegantes –

quase todos com o rosto iluminado pela perspectiva de um maravilhoso

passeio – despedem-se dos que vieram até aqui para ver o embarque para

essa importante viagem. A intervalos, apitos cortam a beleza luminosa

da manhã. Todos esperam pelo início da jornada. Nós, professores,

estamos na plataforma aguardando apenas seu embarque, caro aluno,

para acompanhá-lo no trajeto tão bonito e tão fundamental para sua

profi ssão e para... sua vida.

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Venha, prezado aluno! Aceite nosso convite! Aqui estamos, e nos

sentimos privilegiados no papel de cicerones. Juntos, construiremos

tanto o trajeto quanto nossas paradas e nosso destino: a busca,

a construção e a transformação do saber e do conhecimento no

campo dos Fundamentos da Educação.

Esta é, portanto, a viagem da Educação. Como em toda viagem – e

antes de embarcarmos e o trem iniciar sua marcha –, usaremos este nosso

encontro para consultar o “mapa” de nosso trajeto, contido no projeto

de nosso curso. Também como em qualquer viagem, vamos percorrer em

imaginação, rápida e antecipadamente, os lugares, fatos, idéias, questões

que comporão nossa paisagem ao longo de toda a viagem.

Antes de mais nada, observemos que há três pontos importantíssimos

de referência no planejamento e execução de nossa viagem. São eles o

Homem, a Sociedade e a Transformação. Qual bússolas, essas três

concepções serão os eixos norteadores de nossa trajetória. Imaginemo-nos

vestidos com aqueles longos guarda-pós brancos usados por todos

os viajantes no passado. Essas bússolas estarão no bolso para as

consultarmos periodicamente. A Educação se faz em torno do Homem

e para o Homem; serve à Sociedade, articula-se com ela e contribui para

a sua formação e sobrevivência; e a Transformação é o ingrediente de

uma dinâmica necessária, que possibilitará ao Educador e a seu esforço

educativo colaborarem na promoção das mudanças essenciais para a

construção de um mundo mais justo, mais fraterno, no qual os homens

possam ser solidários e felizes.

Vale assinalar: em nossa viagem notaremos que, além do caminho

principal que seguirmos, há vários outros os quais não iremos visitar.

São outras correntes, tendências e visões ideológicas, as quais, embora

possam ser mencionadas, não estarão incluídas em nossa opção teórica.

Isso signifi ca que há possibilidades de outras escolhas, que você mesmo

poderá fazer durante o caminho ou ao término da viagem.

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Então, como foi determinado esse caminho principal? O que o

determinou foi, antes de mais nada, o objetivo do projeto da disciplina

Fundamentos, que pode ser assim resumido:

Oferecer aos alunos os fundamentos teórico-conceituais nas

áreas filosófica, histórica, socioantropológica e psicológica

para o exercício do pensamento crítico sobre teorias e práticas

pedagógicas, objetivando uma formação docente consciente e

socialmente responsável (Projeto Político-pedagógico da disciplina

Fundamentos, 2001, p. 4).

De saída, saiba que a nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos”

vai ser feita em quatro etapas. Para cada uma delas seremos guiados por

uma EMENTA que, para efeito de nossa viagem, denominaremos “mapa”:

Mapa I

Conhecimento: produção, formas e estratégias de validação;

saber e poder. Homem: visões histórica, fi losófi ca, socioantropológica

e psicológica. Educação e sociedade: concepções e confl itos. Estado e

Educação: ideologia, cidadania e globalização.

Mapa II

Políticas públicas para a educação: seus refl exos na teorização e

nas práticas educativas.

Mapa III

Processos de escolarização:

espaços, tempos, saberes, materiais

e agentes. Escola: dispositivo de

inclusão e exclusão. O educador

em formação e em ação: acesso,

controle, gênero, pauperização,

valorização e interatividade.

Mapa IV

Cultura e cotidiano escolar. Tipos de cultura e multiculturalismo.

Sala de aula: desafi os éticos, estéticos e comunicacionais.

Estes Mapas deverão estar sempre com você, caro aluno. Além disso, haverá necessidade de que você tenha em mãos as aulas normais e as aulas especiais, que caracterizaremos como “paradas” nas diferentes Estações. Haverá momentos em que você será chamado a rever as aulas que compõem cada Estação: são as chamadas aulas-síntese, que prepararão você para uma avaliação contínua durante todo o transcorrer da viagem.

!

EMENTA

É a forma sintética de apresentação do conteúdo de uma disciplina. É a partir da ementa que o professor estabelece os Objetivos a serem alcançados, construindo o Programa a ser cumprido nas aulas de uma determinada disciplina.

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O primeiro trecho de

nossa viagem permite-nos

observar o personagem central

de todos os nossos esforços e

preocupações, como professores em ação e em formação: o Homem. Você

terá aí, caro aluno, aulas dedicadas a uma visão multidimensional do ser

humano, dos pontos de vista da Filosofi a, da História, da Psicologia e da

Socioantropologia. E perceberá que esse Homem é seu próprio aluno,

aquele que você terá diante de si em suas aulas e por cuja formação você

será responsável.

Ouvimos o som monótono das rodas sobre os trilhos; os vagões

sacolejam; a paisagem vai passando, vertiginosamente, diante de nossos

olhos. Mas não fi caremos apenas no ver; será necessário aprofundar

a visão, qualificá-la, transformando-a no conhecer. Para isso, os

próximos trechos de nossa viagem serão dedicados ao fenômeno do

conhecimento. O que é conhecimento? Quais seus diferentes tipos e

como são estabelecidos e validados?

Uma modalidade de conhecimento, em particular, motivará nossa

observação de viajantes atentos: a Ciência. Esse tipo de conhecimento

é, de longe, aquele ao qual se concede maior importância no mundo em

que vivemos. Por que isso acontece? Você verá num dos trechos de nossa

viagem o que signifi ca “paradigma” e que relação tem com a Ciência.

Você, como educador, estará

envolvido o tempo inteiro com o Saber.

Por isso, dedicaremos muitos quilômetros

da viagem a estudar a questão do saber

e de vários de seus tipos, como o Saber

Popular e o Saber Erudito.

Um aspecto em especial deverá

atrair sua atenção nessa paisagem sobre

o Saber: sua relação com o Poder, que

será observado nas suas várias formas

e manifestações, desde o pod

exercemos – ou cujos efeitos so

– em nosso dia-a-dia até o pode

emanado do Estado.

De posse de tudo isso, você poderá iniciar a viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação".

!

É preciso que você não deixe de usar tudo que existe para ajudá-lo: a

“bagagem” que você já possui; as “malas” que colocamos para

que você as abra e retire delas aquilo de que você necessita; o

“livro de viagem” que estará à sua disposição

aqui nas margens. Ah, importante:

observe o “guarda-freios”, que, de vez

em quando, aparecerá segurando uma lanterna

de luz vermelha, fazendo advertências,

assinalando pontos essenciais.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"

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Talvez num momento como esse o trem diminua um pouco sua

marcha, para que você possa apreender as relações entre o Estado, a

Sociedade e a Escola; para que sejam observadas, também, as relações

entre o Poder e a Ideologia.

De repente, caro aluno, você poderá surpreender-se com a imagem,

inusitada, de uma briga ao longo da via férrea. Ou seja, você estará sendo

posto diante da questão do confl ito. Como a Pedagogia é observada do

ponto de vista das Teorias do Confl ito e do Consenso? Como isso se refl ete

em visões “otimistas” e “pessimistas” acerca da atividade pedagógica?

Viajar conosco poderá não esgotar suas dúvidas acerca de tais questões.

Porém, mais importante do que isso, irá possibilitar o desenvolvimento de

um pensamento crítico e, talvez, dar a você a oportunidade de aproximar

tal pensamento de suas ações práticas, na sala de aula e fora dela.

Você está conseguindo imaginar nossa maravilhosa viagem, caro

aluno? Saiba que, ao longo do percurso, haverá muitas novidades,

muita coisa agradável para se ver e até para se distrair. Afi nal, a alegria

é fundamental na vida. O LÚDICO é importantíssimo em Educação. Desse

modo, você poderá ser convidado, a qualquer momento, a lançar mão de

malas, cujos conteúdos representarão os próprios fundamentos político-

pedagógicos e metodológicos corrrespondentes aos objetivos que se deseja

alcançar. Esses conteúdos poderão apresentar-se sob a forma de fi lmes,

jogos, dinâmicas de grupo etc. Tudo muito lúdico, alegre, interativo. Para

participar dessas atividades, você terá a oportunidade de comparecer

a um dos pólos e interagir com seus colegas de estudo, ou seja, seus

companheiros de viagem.

Até esse ponto, você terá percorrido o caminho correspondente

ao nosso Mapa I. Vamos agora dar uma olhada no que nos reservam as

indicações do Mapa II.

Nesse trecho, depararemos com um imenso cenário. Talvez

uma grande cidade, na qual poderão ser observados as instituições

e os organismos, nacionais e internacionais, dos quais dependem as

políticas públicas voltadas para a Educação. Como numa cidade, com

seus conglomerados fi nanceiros, órgãos públicos, empresas privadas,

você viajará observando normas, dispositivos legais, instrumentos

e ações que, em suma, são responsáveis pela política educacional e

por seu fi nanciamento; que dispõem sobre a aplicação, o controle e a

manipulação dos recursos destinados à Educação.

LÚDICO

Do latim ludus, signifi ca jogo, diver-timento, passatempo.

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Ainda nesse trecho da viagem, das janelas de nosso trem você

poderá vislumbrar um panorama sobre a Educação Básica e a Educação

Superior. Como nosso curso tem como objetivo preparar você para atuar

na Educação Básica, o trem percorrerá esse trecho mais lentamente,

para o estudo de seus três níveis de ensino: Educação Infantil, Ensino

Fundamental e Ensino Médio. Para você, que atuará nas quatro últimas

séries do Ensino Fundamental e/ou no Ensino Médio, haverá ênfase nas

questões relativas a esses ramos do ensino. Embora com menor ênfase,

a Educação Superior também será analisada. Você tomará conhecimento

do Plano Nacional da Educação, com seus objetivos e metas a serem

alcançados; descobrirá por que na organização do trabalho da escola são

obrigatórios 200 dias letivos; verá como se processa o Sistema Nacional

de Avaliação; discutirá os objetivos estabelecidos para os diferentes

ramos do ensino; observará a necessidade da participação do professor

na elaboração do Projeto Político-pedagógico, além de outros aspectos

necessários para a sua ação consciente na escola.

Cabe observar que a Educação brasileira é pródiga em legislação.

Há uma grande quantidade de leis, decretos, decretos-leis etc. – aliás,

segundo muitos especialistas, muito além do necessário. Porém, vários

estudos indicam que a grande maioria dos professores não conhece o

sufi ciente dessa legislação, a ponto de que ela possa contribuir para a

melhoria do seu trabalho. Por falta desse conhecimento, que resulta

na má utilização das verbas públicas, os profi ssionais da educação e a

comunidade em geral vêm sendo prejudicados. Daí a importância de você

percorrer com interesse e atenção esse trecho da nossa viagem.

Material escolar, merenda, transporte, bolsa-escola, educação

de pessoas com necessidades especiais, educação das pessoas jovens e

adultas, ensino profi ssional e a Educação Superior são outros temas que

não deixarão de ser estudados.

Claro que não esperamos que nesse trajeto da viagem você se torne

um especialista na organização e no funcionamento da escola. Afi nal, este

Curso de licenciatura destina-se a levar até você um conhecimento que,

como dissemos no iníco desta aula, o habilite a ser um educador consciente

e atuante, capaz de formar cidadãos transformadores da nossa sociedade.

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Mas desejamos que você, pelo menos, se sinta familiarizado com essas

informações importantes, pois, como um profi ssional mais bem informado

e consciente, você poderá atuar também como conscientizador de seus

alunos e da comunidade, contribuindo, desse modo, para melhorar a

Educação brasileira.

Feito isso, você terá percorrido todos os

caminhos indicados no Mapa II.

O Mapa III traz você para dentro da

escola. Você vai poder fechar os olhos, recostar-se

na poltrona, dar um belo suspiro e rever a escola

à luz das teorias. Encontrará temas que falarão

de perto a você. Começaremos pelo processo de escolarização, como

ele se dá, como a escola organiza os seus espaços nos diferentes tempos,

desde o surgimento da escola no Brasil.

Ao mesmo tempo que desejamos que você conheça a vida da escola

nos diferentes tempos e espaços, você terá a oportunidade de ver que a

escola infl uencia e é infl uenciada pelas dimensões política, econômica,

social e cultural. O que queremos é que você perceba o DIACRONISMO e o

SINCRONISMO que envolvem a escola.

Com relação aos saberes necessários ao

processo de escolarização, nosso trem diminuirá

a marcha e fará até paradas mais longas durante

a nossa viagem. Afi nal, como assinala RUBEM

ALVES, tais saberes representam a “caixa de

ferramentas” dos educadores. Por isso, você

deve descobrir quais saberes são necessários aos

alunos, quais aqueles que eles já trazem para a

escola e, dentre esses, quais poderão e deverão

ser aproveitados.

O objetivo nesse trecho da viagem é

pensar a escola à luz do processo de escola-

rização, nos diferentes espaços-tempos,

envolvendo todos os AGENTES ESCOLARES e as

condições necessárias ao processo educativo.

Importante: no decorrer da viagem, não esqueça de fazer uma relação do que você estuda c om tudo o que vive em seu dia-a-dia na escola. Desse modo, poderá saber se o que é previsto na legislação e nos planejamentos é cumprido na prática.

!

DIACRÔNICO E SINCRÔNICO

São termos relativos à passagem do tempo. O primeiro refere-se aos tempos em sua seqüência; o segundo, ao que acontece simultaneamente.

AGENTES ESCOLARES

São, além dos professores, os

diretores, funcionários e colaboradores que

atuam direta ou indiretamente no ambiente escolar.

RUBEM ALVES

Filósofo, educador e psicanalista brasileiro

contemporâneo, é autor de inúmeros

trabalhos amplamente divulgados na área

educacional.

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Isso implica o estudo da escola, tanto do ponto de vista da INCLUSÃO como

da EXCLUSÃO, na busca de uma educação democrática.

A formação do professor é, sem dúvida, um ponto fundamental.

Sem professores bem preparados não há boa escola. O trem reduzirá sua

velocidade, permitindo que você repense a origem, as características e o

atual estágio e modalidades dessa formação, além de analisar o papel do

educador e a ação que efetivamente vem desempenhando. Um exemplo

digno de referência é a importância da mulher no processo educativo,

tema que será abordado quando o trem percorrer trechos que se refi ram

à questão do GÊNERO.

Talvez, neste momento, em que você está na gare, esperando para

embarcar no trem, fi que um pouco assustado com todas essas informações

que estamos dando. Afi nal, como um aluno interessado e responsável,

você deseja, como nós, que a viagem transcorra da melhor maneira

possível. Mas não fi que apreensivo; cada aula foi preparada como uma

sutil e deliciosa parte da viagem, e você terá prazer em seguir por todas

os trechos, admirando a paisagem e parando nas Estações.

O último Mapa que você deverá ter em mãos é o de número IV.

Esse é o Mapa que mostra o relevo, o clima, a vegetação, os rios e os

oceanos que compõem a viagem, representando as peculiaridades de

sua sala de aula.

Nessa parte da viagem você precisará compreender a cultura que

organiza a sala de aula. Para isso, necessitará rever algumas defi nições

de Cultura, suas modalidades, entendendo que a cultura é como uma

teia que nós construímos e que adquire signifi cado para cada um de nós.

Perceberá que há uma cultura fácil de ser apreendida – cultura PATENTE –

e uma outra que é denominada cultura latente.

Com isso, você verá que a escola tem uma cultura organizacional

própria, seja na distribuição dos espaços físicos, na maneira como as

salas de aula são preparadas para receber os alunos, nas relações entre

professores, alunos e comunidade, e em outras relações que muitas vezes

são esquecidas quando se organiza o trabalho no ambiente escolar.

Da janela do trem, ou quando saltar em uma das muitas Estações,

você observará, estudará e acabará tendo de fazer escolhas sobre tudo isso.

INCLUSÃO E EXCLUSÃO

São termos que se referem à entrada e à permanência dos

alunos na escola. Você terá a oportunidade de compreendê-los melhor numa aula

dedicada a esse tema.

GÊNERO

Num sentido amplo e tomado

sem estereótipos e preconceitos – dirá respeito, nas aulas

dedicadas ao tema, aos papéis feminino

e masculino, na Sociedade e na

Educação.

PATENTE

É a cultura fácil de ser apreendida, pois se expressa nas leis, nas normas; cultura

latente é a própria vida e o modo de

pensar, sentir e agir, nosso e das pessoas

que estão à nossa volta, precisando de uma escuta sensível para ser entendidas.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"

18 C E D E R J

As escolhas que um ser humano faz nos níveis mais abrangentes e profundos

de sua vida, são o objeto de estudo da ÉTICA, uma disciplina que integra

o campo de saber da Filosofi a, tratando fundamentalmente dos valores.

Como os valores são ingredientes fundamentais da Educação, você terá

a oportunidade de estudar e discutir questões éticas, tanto num sentido

amplo quanto no âmbito mais restrito da escola e da sala de aula. Nessa

mesma direção, a viagem pela “Terra dos Fundamentos” levará você a

estudar o signifi cado de Moral e de suas implicações na Educação.

Imagine-se agora, caro aluno, olhando pela janela do trem a linda

paisagem que se descortina. Veja quanta beleza! Pois saiba que a beleza,

também de importância fundamental na Educação, será estudada no

que se denomina ESTÉTICA. Claro que nesse momento da viagem você

terá o prazer de voltar-se para a Arte, essa sublime manifestação da

criatividade humana.

Como nossa viagem busca um futuro promissor para você, as

questões da Comunicação e da Interatividade não poderiam faltar.

Afi nal, vivemos na era da informação, no mundo da comunicação cada

vez mais instantânea e da virtualidade, facilitadas por novos meios de

comunicação.

Nossa viagem prevê em seus Mapas a possibilidade de preparar

você para educar seu aluno, transformando-o em um ser criativo,

com pensamento crítico desenvolvido, alguém preparado, pessoal e

profi ssionalmente, para enfrentar os desafi os de um novo tempo, deste

novo século que já estamos vivendo.

Apressemo-nos, prezado aluno! Neste momento, todos os viajantes

já embarcaram. Na gare, agora bem mais vazia, fi carão todos aqueles que

torcem para que sua viagem seja bem-sucedida: familiares, amigos e seus

alunos. Eles terão um importantíssimo papel. A cada passo, se preocuparão

em estimulá-lo. É como se, na idéia da nossa viagem, pudessem, de vez em

quando, passar telegramas com mensagens de estímulo.

O chefe do trem vai apitar. Um silvo longo será o sinal para que

o trem se mova. Aos poucos, resfolegando, utilizando a potência

dos cavalos-vapor, a locomotiva ganhará velocidade e você estará,

na companhia dos professores do curso, empreendendo esta

maravilhosa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”.

Boa sorte, caro aluno! Desejamos que nossa viagem seja feliz,

producente, importante e inesquecível em sua vida.

ÉTICA

Ou, genericamente, “Axiologia” é o campo de saber fi losófi co que se dedica à questão dos valores. “Moral”, simplifi cadamente, é a aplicação prática, em códigos e normas de ação e de conduta, dos princípios gerais estabelecidos pela Ética.

ESTÉTICA

É o campo da Filosofi a dedicado ao estudo do belo, das formas perfeitas.

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Page 13: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

2Homem: visão fi losófi ca

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Compreender a importância de estudar-se o homem, a sua compreensão de si mesmo e do mundo em que vive.

• Apresentar visões fi losófi co-educacionais acerca do ser humano.

• Fazer correlações entre as questões estudadas e o papel do professor.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca

20 C E D E R J

HOMEM: VISÃO FILOSÓFICA

O homem velho deixa a vida para trás.

Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.

O grande espelho que é o mundo ousaria refl etir os seus sinais.

O homem velho é o rei dos animais (Homem velho, de Caetano

Veloso).

Embarcamos, aqui, caro aluno, para uma bela e importante

jornada: a viagem da Educação. Nela, como seres humanos, seremos,

ao mesmo tempo quem viaja e quem planeja a viagem; quem olha pelas

janelas de nosso trem e quem é olhado. Uma viagem em que começamos

a observar o homem, tanto teoricamente quanto em sua condição de ser

concreto, histórico e social.

Em sua formação como educador, convidamos você a olhar o

Homem representado nos jovens que chegam à escola em busca do saber

e da convivência com os colegas, num espaço de relações tão importante

para sua realização como ser humano quanto é importante a assimilação

de conhecimentos.

Esse jovem iniciará, com sua ajuda como professor, uma nova

etapa, em que a escola se apresenta organizada de forma diferente das

séries anteriores. A “tia” dá lugar à professora ou ao professor; as matérias

a serem estudadas têm nova distribuição; os processos de avaliação são

diferentes; o currículo também é distinto; o cotidiano escolar, enfi m, é

completamente diferente e representa um desafi o a enfrentar.

O aluno, lembre-se, expressa uma importante dimensão da condição

humana: o desejar coisas novas. Com isso, ele tem a aspiração de prosseguir

nos estudos, ir para o Ensino Médio, e daí para a faculdade, habilitando-se,

com o Ensino Superior, para ingressar no mundo do trabalho.

A viagem da Educação dá-se em torno desse homem, sobre o qual

estaremos falando, cantando e fazendo poesia. E você, como futuro educador

ou educadora, estará buscando conhecer um pouco mais sobre a vida do

homem e do mundo que construiu e no qual vive e procura ser feliz.

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Para isso, é preciso que você, caro aluno, se sente ao nosso lado,

escute e leia conosco o que se tem escrito, pensado, isto é, TEORIZADO sobre

as questões necessárias que fundamentam os estudos sobre o homem,

como sujeito e objeto da Educação.

O trecho da letra da canção de Caetano Veloso transcrito antes

permite-nos uma visão sobre o homem, a condição humana e o mundo

que esse animal humano, diferente dos outros animais, construiu: um

mundo de cultura, de artefatos, de relacionamentos sociais, políticos e

econômicos.

Você, atuando como professor, ajudará esse seu aluno a situar-se

nesse mundo humano, inclusive no que diz respeito à inserção no mercado

de trabalho. O mundo humano é também um mundo de trabalho, ou

seja, um mundo que é resultado da produção de objetos, de artefatos,

a partir de matérias-primas que são transformadas pela criatividade

humana; ou mesmo da produção resultante do trabalho com a terra,

bem fundamental para a sobrevivência do ser humano, tanto biológica

quanto socialmente. Como trabalhador, portanto, o homem, ao mesmo

tempo em que constrói e transforma o mundo em que vive, também se

constrói e se transforma como ser humano. Por isso, sempre se afi rma

que o trabalho dignifi ca o ser humano, desde que o homem, como um

ser trabalhador, possa reconhecer-se no fruto do seu trabalho, uma vez

que o mundo do trabalho e da produção não tem existência objetiva, ele

é criado e recriado, dependendo da vontade do homem.

Desse modo, é preciso estar atento às deformações na divisão do

trabalho, que só serão vencidas se vinculadas às funções de concepção

e de execução, colocando em ação todas as potencialidades humanas,

desenvolvendo e formando o homem “onilateral”, sem fazer a cisão

trabalho intelectual e trabalho manual. Em suma, isso seria considerar

o trabalho como princípio educativo.

Com isto, os vínculos entre trabalho e educação passam a ser

componentes da teoria da educação enquanto teoria da formação humana.

Morin afi rma que a educação do futuro deverá estar centrada na

condição humana, permitindo ao homem reconhecer-se em sua

dimensão humana comum a todos os seres humanos e, ao mesmo

tempo, reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é

humano (MORIN, 2001).

TEORIZAR

Aqui, signifi ca o modo de pensar

sistematicamente a prática educacional.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca

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Portanto, ajudar seus alunos a se preparar para o trabalho é tarefa

primordial confi ada a você, como professor. Afi nal como dizia Marx:

Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela

religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a

ser diferenciados animais tão logo começam a produzir seus meios

de vida (MARX; ENGELS, 1986).

Observe que a citação da letra da música de Caetano Veloso, lá no

início desta aula, fala de um homem velho, vivido, que deixa a vida para

trás. O mundo que tem diante de si é o espelho. Nele, vê suas realizações,

e nelas pode reconhecer-se, construir-se. Uma das possibilidades para tal

reconhecimento é justamente o trabalho.

E, na construção desse mundo humano, em que a Educação

tem papel indispensável e primordial, é fundamental que o educador

compreenda as várias visões sobre o homem, tendo em conta sua condição

de agente da humanização.

Nossa viagem de hoje nos leva a refl etir sobre o homem e a visão

que a Filosofi a tem dele. Por isso, antes de mais nada, vamos examinar

rapidamente o que vem a ser Filosofi a.

Que é Filosofi a? Que signifi cará essa palavra que tanto ouvimos e

cujo signifi cado não entendemos, de fato? Ouvimos muito, sim, porque

a palavra “fi losofi a” já se incorporou ao vocabulário do dia-a-dia. Na

televisão, dizem: “A oposição critica a fi losofi a desse governo que está

aí”. Até referindo-se ao futebol, lemos no jornal: “A nova fi losofi a de

jogo adotada pelo técnico fulano de tal prejudicou o time”. Como estes,

podemos encontrar muitos exemplos do uso da palavra “fi losofi a”.

Não podemos dizer que essas utilizações da palavra “fi losofi a” são

completamente erradas. No fundo, elas expressam o signifi cado real do

termo. Mas trata-se de apropriações de sentido feitas pelo senso comum,

e não o signifi cado técnico, digamos assim, do que seja Filosofi a.

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Deixemos logo claro: defi nir Filosofi a não é fácil. Desde muitos

séculos, ela tem sido definida de variadas maneiras, muitas delas

contraditórias entre si. Há fi lósofos que sustentam, mesmo, que é

impossível definir Filosofia. O que se pode, dizem, é vivenciá-la.

Sobre isto, Garcia Morente explica

Uma pessoa pode estudar minuciosamente o mapa de Paris; estudá-lo

muito bem; observar, um por um, os diferentes nomes das ruas;

estudar suas direções; depois, pode estudar os monumentos que

há em cada rua; pode estudar os planos desses monumentos; pode

revistar as séries das fotografi as do Museu do Louvre, uma por

uma. Depois de ter estudado o mapa e os monumentos, pode

este homem procurar para si uma visão das perspectivas de Paris

mediante uma série de fotografi as tomadas de múltiplos pontos.

Pode chegar, dessa maneira, a ter uma idéia bastante clara, muito

clara, claríssima, pormenorizadíssima, de Paris. Semelhante idéia

poderá ir aperfeiçoando-se cada vez mais, à medida que os estudos

deste homem forem cada vez mais minuciosos; mas sempre será

uma simples idéia. Ao contrário, vinte minutos de passeio a pé por

Paris são uma vivência, (MORENTE, 1976).

Tal difi culdade com a defi nição de Filosofi a acaba por nos ajudar

a entender o que ela, de fato, é. Já sabemos que a Filosofi a não é algo

que esteja longe, inacessível, uma espécie de “céu” em que os fi lósofos

permanecem, absortos, penalizados com a sorte dos comuns mortais.

A Filosofi a depende da vivência, isto é, precisa ser vivida, e não apenas

lida nos livros. Porém, é possível trabalhar com defi nições provisórias de

Filosofi a, apenas para que isso nos permita entendê-la e acompanhar o

que nos ensinam os fi lósofos, em seus pensamentos e seus sistemas.

O termo Filosofi a é grego. Philosophein signifi ca “amor à sabe-

doria”. Quer dizer, em sua raiz etimológica, a palavra fi losofi a não remete

a um saber pronto, acabado, que está ali para que nós o apanhemos e

utilizemos em nossas difi culdades, em nossas dúvidas e angústias. Em

vez de ser um saber, a Filosofi a é o amor ao próprio saber, à curiosidade

sobre a origem e a fi nalidade das coisas. É a necessidade de pensar sobre

a distinção entre o bem e o mal, sobre o belo e o feio. É a preocupação

com a capacidade que o homem tem de conhecer, e sobre as formas

de adquirir e expandir seus conhecimentos sobre todas as coisas.

É, em suma, o desenvolvimento de uma visão crítica sobre o mundo e

sobre os próprios homens.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca

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Buzzi assinala que o fi lósofo Nietzsche, em sua obra A origem da

tragédia, nos ajuda a compreender mais um pouco o que seja a Filosofi a,

quando afi rma:

Todo homem que for dotado de espírito fi losófi co há de ter o

pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos,

se esconde outra muito diferente e que, por conseqüência, a primeira

não passa de uma aparição da segunda (BUZZI, 1989, p. 10).

A Filosofi a exige um olhar diferente sobre a realidade. E o trabalho

exercido sobre o que se obtém dessa visão do que nos cerca pode ser

expresso por uma palavra: refl exão. Sobre tal característica do trabalho

fi losófi co, diz Piletti:

Se a Filosofi a é procura e não posse, podemos dizer que o trabalho

fi losófi co é um trabalho de refl exão. A palavra refl exão vem do

verbo latino refl ectere, que signifi ca voltar atrás. Filosofar, portanto,

significa retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar,

examinar detidamente, prestar atenção e analisar com cuidado

(PILETTI, 1985).

Nesta aula, prezado aluno, intitulada Homem: visão fi losófi ca,

bem como ao longo de toda esta viagem pela “Terra dos Fundamentos da

Educação”, a utilização da Filosofi a signifi ca exatamente que, em nosso

trajeto, estaremos considerando o homem como objeto de investigação

levada a efeito pelo próprio homem. Em outras palavras, o homem

– esse ser singular entre os demais seres –, exercitando a capacidade de

pensar, de produzir refl exões, torna-se, ao mesmo tempo, o investigador

e o alvo desses pensamentos e refl exões de natureza crítica possibilitados

pela Filosofi a.

Que é o homem? Essa pergunta tem assaltado a mente humana desde

que o animal humano distanciou-se dos outros animais, desenvolvendo

a consciência e situando-se como objeto de seu próprio conhecer. Nesse

momento, o homem descobre que, além de tentar enfrentar os problemas

que o cercam, usando sua inteligência e criatividade, sente a necessidade

de ir além, de satisfazer também sua ânsia de conhecer. Descobre que não

lhe basta fazer, mas necessita igualmente saber, entender, compreender

o sentido, dar explicações.

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Porém, não apenas a Filosofi a debruça-se sobre o homem como

objeto de conhecimento. As ciências, as religiões e até mesmo o SENSO

COMUM também o fazem. Mas a Filosofi a, em vez de ater-se a visões

parciais sobre o homem, busca uma visão global, de conjunto, tentando

dar resposta à pergunta fundamental formulada acima. Além disso, situa

o homem no mundo, isto é, considera-o como um ser de relação, um

ser que, tanto para viver no mundo, resolvendo problemas práticos

e teóricos, quanto para construir e reconstruir esse mundo humano,

depende dos outros homens. Isso quer dizer que os homens não nascem

assim; a condição humana é fruto da vivência coletiva dos homens num

mundo comum e em condições sociais e históricas determinadas. Além de

ter sua existência condicionada pelo mundo natural com que se defronta,

o homem vê-se condicionado pelo próprio mundo que edifi ca graças à

sua capacidade criativa ímpar entre todos os animais.

A condição humana compreende algo mais que as condições

nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres

condicionados: tudo aquilo com o qual eles entrem em contato

torna-se imediatamente uma condição de sua existência (…); os

homens constantemente criam as suas próprias condições que, a

despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a

mesma força condicionante das coisas naturais (…) a objetividade

do mundo – seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana

complementam-se uma à outra (ARENDT, 1999).

Tentando determinar características capazes de distinguir o

homem, podemos afi rmar que, enquanto o animal vive em um meio,

o homem vive em um mundo. Ou seja, os animais, até o ponto em que

podemos saber, apenas reagem às condições que lhes são impostas pelo

meio em que vivem, valendo-se de seu instinto, de sua capacidade de

reação às ameaças e aos estímulos diversos. O homem, que partilha com

os demais seres vivos essa condição de animal, vai além: cria um mundo,

isto é, constrói seu próprio ambiente humano, cheio de artefatos e pleno

de signifi cados por ele mesmo atribuídos. O homem é, em suma, um ser

capaz de construir a CULTURA.

Geertz (1989, p.15), acredita, como Max

Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de signifi cados que ele mesmo teceu,

e que a CULTURA são essas teias. Neste

sentido, não há uma única cultura, mas

várias culturas.

SENSO COMUM

É a forma direta, acrítica, com base

fundamentalmente nos cinco sentidos, na experiência direta, de

que nos servimos para viver nosso dia-a-dia.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca

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Uma das manifestações mais signifi cativas desse universo humano,

desse mundo de artefatos e de fenômenos culturais resultantes da ação

humana é a EDUCAÇÃO. Este processo sociocultural existe em todos os

grupamentos humanos. Através da Educação, as sociedades sobrevivem,

se perpetuam e se renovam; estabelecem valores e os transformam.

Em suma, é através da Educação que o mundo humano é construído.

Isso é o que permitiu a um fi lósofo como Kant afi rmar que o homem se

humaniza por intermédio da Educação.

Todo o pensar e o fazer humanos dependem dessa instância que faz

a mediação entre cada indivíduo e a sociedade em que ele se insere, num

determinado momento histórico e em condições sociais determinadas.

A Educação, em sua tarefa primordial, lança mão de modelos, que

nada mais são do que visões acerca do homem que se pretende educar. Por

isso, as concepções sobre o homem estão na base das várias Filosofi as da

Educação, concebidas a partir de visões fi losófi cas sobre o próprio homem,

sua vida, sua cultura, e sobre as organizações socioeconômicas e políticas

que estabelece. Daí a importância, para qualquer educador, de conhecer um

pouco o olhar que a Filosofi a tem lançado sobre o homem. Isto permitirá

que você refl ita sobre várias questões, como as seguintes:

• Como percebo o meu aluno enquanto um ser que busca

o saber?

• Favoreço, na minha prática diária, momentos de refl exão

fi losófi ca acerca dos problemas que fazem parte da vida

do aluno?

• O saber que transmito contribui para a humanização do

meu aluno, como afi rma Kant?

• Favoreço o nascimento das idéias (educere) dos alunos

ou simplesmente imponho o saber dominante, insti-

tuído, estabelecido?

• Que saberes o aluno possui (senso comum) e como fazer

uso desses saberes para a construção de novos saberes?

• Como posso ajudar meu aluno a situar-se no mundo

como ser produtivo, ou seja, num campo de trabalho,

convertendo a atividade produtiva igualmente num fator de

autoconhecimento e de realização da condição humana?

EDUCAÇÃO

É um processo eminentemente social e o homem, um ser gregário em relação permanente com seu semelhante. O processo educativo é, por isso mesmo, a única maneira capaz de assegurar a continuidade da espécie, além de garantir a sobrevivência das sociedades.Com sua origem latina, Educação tem duas bases etimológicas identifi cadas: educare, que signifi ca criar, amamentar, e educere, cujo signifi cado é levar para fora, fazer sair, tirar de, dar à luz.

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• Educar o homem seria transmitir às gerações futuras

os conhecimentos acumulados no passado, ajustando o

indivíduo ao meio físico e social?

Refl etindo sobre essas questões, você estará concebendo o seu aluno,

segundo se afi rmou acima, como: o homem – esse ser singular entre os

demais seres –, exercitando a capacidade de pensar, de produzir refl exões,

e de tornar-se, ao mesmo tempo, o alvo desses pensamentos e refl exões.

Importa que em Educação o professor saiba, a partir do processo

refl exivo, que tipo de homem deseja formar – um ser passivo? ou crítico,

refl exivo e atuante, capaz de, individual ou coletivamente, transformar

a sociedade?

É a Filosofi a que permite a escolha desse caminho. Usando a

imagem de nossa viagem de trem, ela permite traçar o roteiro, entre tantos

possíveis; permite tanto as paradas para a refl exão quanto possibilita

atingir o lugar que se desejava alcançar, o que, no caso da Educação, são

os fi ns almejados, tendo em conta o modelo de homem, de sociedade e

de cultura estabelecidos.

Transformado em alguém que busca essa sabedoria nas escolhas,

o professor converte-se em um amante desse saber. Deste modo, pode

ter condições de rever as visões de homem impostas pelas diferentes

concepções de Educação identifi cáveis na história educacional brasileira

– tradicional, escolanovista, tecnicista e progressista.

Pode-se afi rmar que:

• na concepção tradicional – também denominada essen-

cialista – o homem é considerado um ser físico e espiritual,

constituído por uma essência única e imutável, sendo sua

fi nalidade, na vida, dar expressão à sua própria natureza;

• na concepção escolanovista, o homem é um ser que se

encontra em contínua interação com o meio, sendo sua

natureza maleável, determinada pelo processo humano

de ajustamento social. Nessa interação constante com o

ambiente, o homem modifi ca o meio, sendo também por

ele modifi cado;

• na concepção tecnicista, o homem é produto do meio; uma

conseqüência das forças existentes em seu ambiente; um

ser cientifi camente explicável, sendo seu comportamento

governado por leis científi cas;

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca

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• na concepção progressista, o homem é um ser situado

num mundo material, concreto, social, econômico e ideolo-

gicamente determinado, o qual lhe cabe transformar.

A natureza humana vai-se constituindo histórica e

socialmente.

Podemos, agora, tentar olhar para trás e ver por onde nos conduziu

nosso trem nesta aula, que é parte da viagem da Educação.

Vimos como e por quê é importante, para o educador, ter

conhecimento das visões acerca do homem formuladas pela Filosofi a e

sintetizadas na pergunta: que é o Homem?

Aprendemos que, diferentemente dos outros animais, o animal

humano torna-se homem ao construir um mundo humano.

Vimos que a dimensão humana se constrói inclusive por intermédio

do trabalho.

Discutimos o papel e a importância da Educação nesse processo

de humanização.

Em seguida, apontamos várias questões, entre muitas outras, às

quais o educador pode ser levado a partir de uma refl exão sobre as visões

fi losófi cas acerca do homem.

Finalmente, apresentamos as concepções de Educação

identifi cáveis no pensamento educacional brasileiro, resumindo as

principais características de cada uma.

Convidamos agora você, caro aluno, a produzir suas próprias

refl exões. Para tanto, pode ser usada a letra de música já mencionada.

E que tal descobrir – em suas pesquisas individuais e em suas aulas, com

seus alunos – outras músicas, poesias e textos em prosa que ilustrem as

visões sobre o homem, tentando relacioná-las com a Educação?

Para manter nossa imagem inicial, sugerimos a construção de uma

linha de tempo, em que, nessa viagem da Educação, o trem vá parando em

estações, tendo, cada uma, as características de um tipo de ser humano que

se deseja ajudar a nascer ou a modifi car-se através da ação educacional.

O que haveria, por exemplo, na Estação tradicional? E a que destino se

chegaria, a seu ver, o aluno educado segundo essa tendência? Do mesmo

modo nas concepções escolanovista, tecnicista e progressista.

Sugerimos também que você se utilize de outras fontes para pesquisa,

como livros e artigos de revista que falem do tema desta aula.

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Os meios de comunicação – como o rádio, a televisão e o cinema

– também são fontes importantes para sua pesquisa. Na TV, por exemplo,

as personagens das novelas acabam transformando-se em modelos de

comportamento na sociedade. Que acha você, como educador, desses

modelos? Eles são de fato importantes para o processo educacional como

humanização, tal como o temos considerado nesta aula?

A internet é outra fonte de consulta muito útil. Procure sites

que tratem dos assuntos que vimos aqui, tendo como tema central

o Homem.

Como já vimos, a letra da música de Caetano Veloso fala no

homem velho. Isso permite uma refl exão sobre a situação dos velhos na

sociedade atual, em particular na sociedade brasileira. Será, caro aluno,

que nossa sociedade dá o tratamento merecido aos nossos velhos? Os

familiares tratam bem seus idosos? Os serviços de assistência médica

proporcionam o atendimento necessário às pessoas de idade? E o mercado

de trabalho, acolhe ou discrimina e rejeita os idosos? Aproveite, caro

aluno, para conversar com seus alunos sobre os familiares deles que

já têm mais idade. Como professor, aproveite para levar seus alunos à

refl exão sobre o homem velho

É muito importante lembrar que todas essas visões sobre o ser humano

não estão dissociadas do meio sociocultural e econômico em que

ocorrem. Assim, vale acentuar, por exemplo, as imagens – negativas ou

positivas – que se tem do homem brasileiro, as quais, por conseqüência,

oferecem aos educadores modelos do educando que se deseja formar.

A escola, no Brasil, deve existir para o homem brasileiro. Que homem

brasileiro é esse? O que se espera da educação em geral, e da educação

formal, sistematizada, da escola, enfi m, para que o ideal de homem

desejado seja alcançado pelo esforço educativo?

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca

30 C E D E R J

AUTO-AVALIAÇÃO

• A partir desta aula consigo entender a importância do estudo acerca das visões

do Homem empreendidas pelas visões fi losófi cas?

• Como posso identifi car modelos de ser humano entre meus alunos, na minha

prática educativa cotidiana?

• Nesta primeira etapa de nossa viagem da Educação, percebo qual a importância

do estudo aqui levado a efeito para a melhoria de meu desempenho como

professor?

• Tenho clareza sobre tudo o que foi discutido nesta aula, ou há necessidade de

retomar seu estudo e rever alguns pontos? Caso positivo, que pontos seriam esses?

• No estudo desta aula, utilizei todos os recursos que ela me oferece, inclusive as

notas contidas às margens?

• Sinto necessidade de aprofundamento, utilizando outras fontes de consulta?

INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, uma outra visão sobre o Homem será estudada: a visão histórica.

Veremos como essa visão se altera ao longo do tempo, como predomina esta ou

aquela tendência; como a Educação – que tem sua própria história – pode adaptar-se

a essas visões e à sua dinâmica, constituindo-se, também, num agente histórico.

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3Homem: visão histórica I

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Analisar o homem como um processo que se constrói no tempo.

• Refl etir, criticamente, sobre a concepção de homem na Antigüidade oriental, na Antigüidade ocidental e no mundo medieval.

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OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I

32 C E D E R J

INTRODUÇÃO

Vamos prosseguir a nossa viagem. Da janela de

nosso trem vislumbramos uma outra paisagem,

passamos pela visão fi losófi ca de homem. Agora

vamos estudar as diferentes concepções de

homem na História. Como é a relação entre o

homem e o tempo?

O que é o homem? (...) ao colocarmos a pergunta “o que é o

homem?” queremos dizer: o que o homem pode se tornar, isto é,

se o homem pode controlar o seu próprio destino, se ele pode “se

fazer”, se ele pode criar a sua própria vida. Digamos, portanto,

que o homem é um processo (...) somos “criadores de nós mesmos”,

da nossa vida, de nosso destino (GRAMSCI, 1978, p. 38).

Quem somos nós? Somos vistos do mesmo modo por todas as

civilizações? Existe uma defi nição de homem que perpasse por todos os

períodos históricos? Ou melhor, existem princípios e valores que podem

defi nir o homem, da mesma maneira, em todas as épocas históricas?

Pense nisso, ao longo de nossa viagem.

Quais os princípios e valores que devem nos guiar? Será que existe

uma única defi nição de natureza humana? Será que há uma espécie de

destino traçado para os homens e que basta compreendê-lo e seguir o

nosso caminho? Refl ita sobre essas questões. Na verdade, os homens

precisam entender e explicar a realidade na qual vivem. Em cada período

histórico, os homens buscam valores e princípios que dêem signifi cado à

sua vida, constroem explicações sobre seu mundo, mudam suas ações e

princípios, criam diferentes culturas, estabelecem relações sociais; por

isso dizemos que o homem é um ser em processo, um ser histórico. Os

homens estão em constante transformação, seja nas suas relações sociais

ou nas suas produções. Por isso, devemos esclarecer que não existe o

homem, mas homens vivendo num determinado espaço e tempo. Somos

construtores de nossas próprias vidas.

ANTONIO GRAMSCI

(1881-1937)

Intelectual italiano, militante comunista. Foi preso em 1926, passou 10 anos na prisão por defender idéias socialistas. Escreveu sua obra na prisão, morrendo jovem, aos 46 anos. Defendia a escola única, ou seja, uma escola que não desvinculasse o trabalho manual do intelectual, possibi-litando uma formação integral.

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Agora, vamos pensar em afi rmações que fazemos no nosso

cotidiano:

• O homem sempre foi assim e não vai mudar.

• Cada um tem um destino, não podemos lutar contra ele.

São expressões que parecem nos imobilizar, tirando a capacidade

de mudança, de transformação. Devemos estar atentos a determinados

comportamentos que nos engessam, tirando a nossa possibilidade de

ação e mudança.

Quando olhamos mais profundamente para a história, percebemos

que a mudança é fundamental. Se observarmos atentamente, a cada dia que

passa mudamos física, intelectual e moralmente. Quantas vezes, quando

ainda estamos exercendo apenas o nosso papel de fi lho, temos um tipo

de comportamento e quando nos tornamos pais e mães mudamos esse

comportamento? As situações que enfrentamos com o passar do tempo

fazem-nos mudar. Às vezes, temos a sensação de que podemos deter o

tempo, mas, como dizia o compositor Cazuza, “o tempo não pára”.

Como o tempo não pára, devemos buscar nos diferentes períodos

históricos os princípios e valores que guiaram a vida dos homens.

Perguntamos: como em diferentes épocas históricas se concebeu o

homem? Que características eram valorizadas no homem? Começaremos

analisando como se concebia o homem na Antigüidade.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I

34 C E D E R J

O HOMEM NA ANTIGÜIDADE ORIENTAL

Sê um artista da palavra, para seres potente. A língua é a espada

do homem (...) O discurso é mais forte do que qualquer arma

(BRESCIANI, apud MANACORDA, 1997, p. 18).

Revela a experiência que o mundo

Não pode ser plasmado à força.

O mundo é uma entidade espiritual

.......................................................

Por isto, ao sábio não interessa a força,

Não se arvora em dominador,

Não usa a violência (LAO-TSÉ).

Tomaremos como exemplo duas civilizações orientais, a chinesa

e a egípcia, para mostrar os valores que embasavam a formação do

homem na Antigüidade oriental. A civilização chinesa apresenta uma

complexa visão de mundo refl etida no I Ching – O Livro das Mutações –;

os chineses acreditam no equilíbrio de forças opostas do universo, o

yin e o yang; para eles, o mundo é resultado da união de contrastes. De

acordo com a teoria de Lao-Tsé, o princípio do mundo é a harmonia e a

não violência. O mundo é uma entidade espiritual que cria suas próprias

leis e cada ser humano tem um papel predeterminado no universo.

O homem deve buscar a harmonia, a ordem e o equilíbrio, princípios

fundamentais para a vida do homem e do universo. A visão de homem

é moldada por princípios considerados

universais que não devem ser

mudados ou contestados. Você

já teve contato com alguma

prática oriental? IOGA, SHIATSU

ou ACUPUNTURA? Caso a resposta

seja afi rmativa, preste atenção

em como eles preservam o

equilíbrio e a harmonia.

LAO-TSÉ

Viveu por volta do século VI a.C., na China, trabalhava como historiador e bibliotecário. Foi um grande crítico dos governos da China e apontava caminhos para a sua regeneração moral e política. Registrou seu pensamento no livro Tao te King.

Figura 3.1: Símbolo do yin e do yang.

IOGA

Prática de exercícios que se fundamentam numa fi losofi a de equilíbrio e perfeição.

SHIATSU

Massagem com a pressão das pontas dos dedos que busca o equilíbrio da energia do corpo humano.

ACUPUNTURA

Método terapêutico oriental que trabalha com agulhas que buscam equilibrar a energia do corpo.

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Page 29: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Na civilização egípcia incentivava-se a arte do falar bem; um

homem bem formado deveria aperfeiçoar a arte do falar. Mas o que seria

a arte do falar bem? Era aperfeiçoar a oratória como arte política do

comando, era educar o homem para a política. A palavra era poderosa

e precisava ser medida e controlada, como exemplifi ca o texto abaixo:

Se sua boca procede com palavras indignas, tu deves domá-las em

sua boca, inteiramente... A palavra é mais difícil do que qualquer

trabalho, e seu conhecedor é aquele que sabe usá-la a propósito

(ibid., p. 14).

Através da palavra o homem poderia intervir em diversas situações

e discursar para as multidões com o intuito de acalmá-las ou convencê-las

de alguma idéia. Preparar o homem para falar signifi cava preparar

o homem para comandar e governar. O homem também deveria ser

preparado para obedecer, mas o obedecer estava diretamente vinculado

ao comandar, a obediência fazia parte do jogo de poder. Exemplifi camos

com o trecho a seguir:

Educa em teu fi lho um homem obediente. Um fi lho obediente é um

servidor de Hórus, o faraó... Sê absolutamente escrupuloso para

com teu superior... Age de tal modo que o superior dele possa dizer:

como é admirável aquele que seu pai educou! (ibid., p. 15).

Nos primórdios da civilização egípcia, ainda não era

valorizada a escrita, mas, a partir do fi nal do terceiro milênio

a.C., começa a valorização da palavra escrita. Na verdade, o

aprender a grafar signifi cava poder. Aquele que sabia escrever

era um homem respeitado, porque poderia trabalhar em

diversas atividades na hierarquia do governo. Surge assim

a fi gura do ESCRIBA, homem respeitado e modelo ideal a ser

seguido pelos jovens que desejavam o respeito e o poder.

Além disso, o escriba era visto como um sábio, que podia

ler as escrituras antigas e que escrevia para o rei, podendo

por isso instruir e guiar seus superiores.

Neste trecho podemos ver a importância do escriba:

Os escribas cheios de sabedoria, do tempo que seguiu ao dos deuses...

escolheram como próprios herdeiros os livros e os ensinamentos que

deixaram... Sê escriba, fi xa isto no teu coração para que seu nome

perpetue como os teus livros: um livro é melhor do que uma ESTELA

incisa, melhor que um muro fi rmemente construído... (BRESCIANI

apud MANACORDA, 1997, p. 31)

ESCRIBA

O perito na escrita, um importante funcionário da

administração do governo egípcio.

ESTELA

Espécie de coluna destinada a ter uma

inscrição, marco.

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Page 30: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I

36 C E D E R J

Esse homem culto, que domina as letras, cultiva o poder e cumpre

o dever de obediência a seu soberano, expressa a imagem de homem

ideal na civilização egípcia.

Podemos dizer, respeitadas as diferenças culturais, que alguns

princípios marcam a cultura oriental para a formação do homem: a

harmonia, a obediência, o poder da palavra e da língua escrita e o

respeito à hierarquia.

O HOMEM NA ANTIGÜIDADE OCIDENTAL

Neste diálogo, Apologia de Sócrates, Platão narra o julgamento,

a defesa e a morte de SÓCRATES.

Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens

e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem

tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas,

como devem preocupar-se com a alma,

para que ela seja o quanto possível melhor, e vou

dizendo que a virtude não nasce da riqueza, mas

da virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os

outros bens, tanto públicos como privados (PLATÃO, 1980, p. 61).

Refl ita sobre o pensamento de Platão citado. Veja como a virtude

é fundamental para o homem. De acordo com Platão, a maior virtude do

homem era pensar fi losofi camente, ou seja, o homem devia usar a razão para

compreender o mundo. Esta afi rmação é importante, porque até o século

VI a.C., predomina na GRÉCIA a concepção MÍTICA do mundo, que explica

as ações humanas como conseqüência do destino e do sobrenatural.

Mas surgem alguns fatores: o aparecimento da escrita e da moeda,

o registro das leis escritas e a constituição da PÓLIS, que criam as condições

para o surgimento da fi losofi a, que simboliza a passagem do pensamento

mítico para o pensamento racional. Com o advento da fi losofi a, o homem

passa a ter uma nova visão do mundo e de si próprio.

SÓCRATES

Filósofo grego que viveu em Atenas, no século V a.C.; jamais registrou de modo escrito o seu pensamento. Platão, seu discípulo, o imortalizou através de seus diálogos.

Helênica, relativo à GRÉCIA, antiga Hélade.

MÍTICA

Dos mitos ou da natureza deles.

PÓLIS

Cidade-estado. A Grécia, na Antigüidade, não formava uma unidade política. Ela se compunha de várias cidades-estado.

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Page 31: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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A Antigüidade grega nos legou valores e princípios que marcaram

a visão do homem ocidental. Na busca da formação do homem, os gregos

priorizaram o pensar, o falar (RETÓRICA) e o fazer. O pensar e o falar são

imprescindíveis ao homem que deseja governar; o fazer, para aquele que

pretende ser um guerreiro.

Os gregos atingiram um elevado grau de consciência de si mesmos.

Na abertura deste item, citamos uma fala de Sócrates, da obra A Apologia

de Sócrates, escrita por Platão. Podemos dizer que Sócrates representa

um símbolo de homem. Segundo os relatos históricos, o fi lósofo Sócrates

exercia um grande fascínio sobre aqueles que o escutavam e lutava contra

o saber DOGMÁTICO. É dele a célebre frase: “Só sei que nada sei”; o seu

papel era despertar consciências adormecidas. Para Sócrates, “a busca de

si é, ao mesmo tempo, busca do verdadeiro saber e da melhor maneira de

viver (...) Saber e virtude se identifi cam” (ABBAGNANO, 1969, p. 123).

No mundo grego, a virtude e o pensar são imprescindíveis à formação

do homem. A maior virtude (ARETÉ) é o saber. A ignorância é a origem

de todo vício. Os homens devem ser educados para transformarem-se

em cidadãos e também para defender, legislar e governar a pólis.

Nas cidades gregas, uma minoria era considerada cidadã. Mulheres,

estrangeiros e escravos não desfrutavam da cidadania.

!

RETÓRICA

Arte de falar bem.

DOGMÁTICO

O que não admite contestação.

ARETÉ

Virtude, em grego.

Na Grécia clássica predominam o cultivo da razão autônoma,

a inteligência crítica e a necessidade de formar o cidadão para gerir os

destinos da cidade. Surge uma nova concepção de cultura e de homem.

O homem deve buscar conhecer racionalmente o mundo, porque essa

é a sua maior virtude. Refl ita sobre essa concepção grega de homem a

partir das palavras de Sócrates, no diálogo intitulado Mênon (PLATÃO,

1979, p. 97):

Podemos, portanto, dizer, de um modo geral, que no homem tudo

depende da alma, e que a própria alma depende da razão, condição

indispensável para que ela seja boa. Ora, como conseqüência disso,

afi rmamos que o útil é o racional. Mas não dissemos que a virtude

é o útil?... Logo, podemos concluir que a virtude é a razão.

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Page 32: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I

38 C E D E R J

SÃO TOMÁS DE AQUINO

(1224-1274)

Nasceu na Itália. Foi um importante fi lósofo e teólogo. Sofreu infl uência de Aristóteles. A sua obra mais famosa é a Suma Teológica.

SANTO AGOSTINHO

(354-430)

Nasceu em Tagasto, na África. Foi um grande fi lósofo e teólogo, sofreu infl uência da fi losofi a platônica. Confi ssões, A cidade de Deus e De Magistro são algumas de suas obras.

O HOMEM NO MUNDO MEDIEVAL

Não se chame a ninguém de mestre na terra, pois o verdadeiro e

único Mestre de todos está no céu (SANTO AGOSTINHO).

Ensinar é ato de vida contemplativa ou ativa?

Parece da contemplativa. Pois, como diz Gregório (na homilia III

sobre Ezequiel):"a vida ativa termina com o corpo". Mas tal não

se dá com o ensino, pois os anjos, que não têm corpo, ensinam.

Logo parece o ensino pertencer à vida contemplativa” (SÃO TOMÁS

DE AQUINO).

O período medieval dura cerca de

mil anos; inicia com a queda do Império

Romano (476) e termina com a tomada de

Constantinopla pelos turcos em 1453. Até o

século X, o escravismo, modo de produção

que vigorava na Antigüidade, vai cedendo

espaço para o FEUDALISMO; há um processo de

ruralização, a sociedade torna-se agrária, com

base na atividade agrícola e no artesanato.

Cria-se uma rígida hierarquia social, na qual

a nobreza (senhores feudais) e o clero ocupam

o topo e na base estão os servos da gleba. A

sociedade se fragmenta em vários FEUDOS e

o fator integrador é o cristianismo. A Igreja

exerce uma influência espiritual e política.

Toda herança cultural GRECO-ROMANA passa a

ser guardada nos mosteiros; são os padres e

monges que têm livre acesso ao conhecimento; eles se apropriam de

toda a produção cultural da Antigüidade. Sendo assim, a Igreja Católica

Apostólica Romana passa a ditar os princípios que devem moldar e

guiar os homens.

Surgem os monges copistas, que são tradutores e copiadores de

toda obra deixada pela tradição greco-romana, eles selecionam o que

deve ser passado para o latim e o que deve ser divulgado a seus fi éis, pois

tentam preservar a fé a todo custo. A proposta é HARMONIZAR razão e fé para

compreender a natureza de Deus e da alma e os valores da vida moral.

FEUDALISMO

Regime econômico, político e social que dominou a Europa ocidental na Idade

Média. Os senhores feudais (ou suseranos)

tinham vassalos para defendê-los e

trabalhadores servis, os servos da gleba,

que trabalhavam cultivando as suas

terras.

FEUDO

Domínio territorial governado pelo senhor feudal.

GRECO-ROMANA

Comum aos gregos e aos romanos.

HARMONIZAR

Conciliar.

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Page 33: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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A razão deve se submeter à fé. A partir desse princípio, eles começam a

moldar o que seria o homem ideal, ou seja, aquele que abdica do mundo

terreno e controla racionalmente as suas paixões, que valoriza o mundo

espiritual.

Tomemos como exemplo dois filósofos que marcaram

profundamente o pensamento medieval: Santo Agostinho e São Tomás

de Aquino. Segundo Santo Agostinho, o homem recebe de Deus o

conhecimento das verdades. O saber não é transmitido pelos mestres,

pois a verdade vem do interior de cada um, uma vez que Cristo habita

o interior de cada homem. Ele cria a Teoria da Iluminação, que signifi ca

que Deus ilumina a razão humana, e assim, por iluminação, o homem

tem acesso à verdade.

Veja o fi lme O nome da rosa. Ele mostra como a Igreja controlava

o acesso ao conhecimento.

!

São Tomás de Aquino afi rma que o homem é uma criatura divina,

e deve cuidar da salvação de sua alma e buscar a vida eterna. Para atingir

esse propósito é necessário que a razão não contrarie a fé e se submeta ao

princípio da autoridade, ou seja, deve-se consultar os sábios, autorizados

pela Igreja, para que não se leia algo que venha contrariar a fé. Assim,

pode-se concluir que a verdade passou a ser estabelecida pela Igreja

Católica Apostólica Romana. A razão passou a ser serva da fé.

Constata-se que o parâmetro do homem medieval é a subordinação

à fé. Valores como honra, justiça e fi delidade submetem-se à fé. O homem

somente está autorizado a conhecer o que não agride e contraria a fé.

Faça uma refl exão sobre este texto de São Tomás de Aquino:

...se o homem fosse verdadeiramente mestre, necessariamente

ensinaria a verdade. Ora quem ensina a verdade ilumina a mente,

sendo ela o lume do intelecto. Logo, o homem pelo ensino iluminará

o intelecto; o que é falso, pois “Deus é quem ilumina todo homem

que vem a este mundo”(João , I, 9). Logo, o homem não pode,

na verdade, ensinar alguém (São Tomás de Aquino apud Rosa,

1999, p. 111).

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Page 34: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I

40 C E D E R J

R E S U M O

Esta aula mostrou as diferentes concepções de homem na Antigüidade oriental, na

Antigüidade ocidental e no Mundo Medieval. Observamos que, nesses diferentes

contextos históricos, surgiram princípios e valores que indicaram como os homens

deveriam ser e atuar em suas respectivas sociedades. Na Antigüidade oriental,

buscava-se a harmonia, a obediência, o poder da palavra e da língua escrita e o

respeito à hierarquia. Na Antigüidade ocidental, o mais importante era o cultivo

da razão autônoma, a inteligência crítica e a necessidade de formar o cidadão

que tivesse como principal virtude o saber. No mundo medieval, cultivava-se a

subordinação à fé. O homem somente estava autorizado a conhecer o que não

agredia e contrariava a fé.

EXERCÍCIOS

1. A cultura chinesa considerava a harmonia e o equilíbrio características

fundamentais do homem. Analise se essas características são importantes para

o homem de hoje.

2. Compare os princípios que norteiam a visão de homem na Antigüidade ocidental

e no mundo medieval, mostrando as diferenças.

3. Na Idade Média, o homem devia se submeter à fé. Analise se esse princípio era

favorável ao avanço do conhecimento.

AUTO-AVALIAÇÃO

Você conseguiu perceber os valores e princípios que embasaram o homem na

Antigüidade oriental? Sabe mostrar as diferenças entre a visão de homem na

Antigüidade oriental e na ocidental? Então, você pode ir em frente e comparar

essas visões de homem com a concepção que predominou no mundo medieval.

E depois, percebeu a diferença entre aquelas concepções que vigoravam na

Antigüidade e o mundo medieval? Caso responda que sim, então você está

pronto para prosseguir e caminhar para outros períodos históricos. Na próxima

aula vamos conhecer quais os princípios e valores que fundamentaram a concepção

de homem no período moderno e contemporâneo.

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Page 35: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

4Homem: visão histórica II

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Refl etir, criticamente, sobre os princípios e valores que embasaram a concepção de homem no mundo moderno e contemporâneo.

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OBJETIVO

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Page 36: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II

42 C E D E R J

A nossa viagem continua. Da janela de nosso trem descortinamos uma

nova paisagem. Agora vamos conhecer quais os princípios que norteavam a

concepção de homem no mundo moderno e no contemporâneo.

O HOMEM NO MUNDO MODERNO

Penso, logo existo

(DESCARTES).

Vamos continuar nossa viagem buscando compreender os

princípios que caracterizaram a visão de homem no mundo moderno.

Entre os séculos XV e XVI, surge o Humanismo, que procura uma

nova cultura em contraposição às concepções teológicas da Idade

Média, começando assim a implantação de um novo modo de produção

econômica: o CAPITALISMO. O humanismo e o capitalismo começam a

instaurar uma nova cultura e uma nova imagem de homem. Nesse

período, procura-se superar o TEOCENTRISMO. Enfatizando os valores

ANTROPOCÊNTRICOS, o homem passa a ser o centro e o fundamento do

universo. As explicações religiosas já não satisfazem mais ao homem

que busca a autonomia da razão. Tomemos como exemplo a frase de

Descartes, citada na abertura deste item: Penso, logo existo. Nela, ele

mostra que o pensar atesta a existência do homem.

RENÉ DESCARTES

(1596-1650)

Nasceu em La Haye (Touraine), na França. Estudou no Colégio Jesuíta de La Flèche, fi lósofo vinculado à corrente fi losófi ca denominada Racionalismo. Suas principais obras são: Meditações e Discurso sobre o Método.

INTRODUÇÃO

CAPITALISMO

Modo de produção econômico com base na propriedade privada sob tríplice aspecto: industrial, comercial e fi nanceiro.

TEOCENTRISMO

Concepção que considera Deus o fundamento primeiro do universo.

ANTROPOCÊNTRICO

Concepção segundo a qual o homem é o centro do universo.

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Page 37: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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C E D E R J 43

MARTINHO LUTERO

(1483-1546)

Nasceu na Saxônia, principal inspirador

da Reforma, foi monge agostiniano.

Em 1520, foi excomungado pelo

papa Leão X, porque contestou a venda

de indulgência pela Igreja. A indulgência

era o perdão dos pecados, ou seja,

quem pagasse uma determinada quantia

era perdoado pela Igreja.

NICOLAU COPÉRNICO

(1473-1543)

Criou a teoria heliocêntrica, segundo

a qual o sol ocupa o centro de nosso sistema, e a Terra,

como os demais planetas, gira em torno

do sol.

Através das explicações racionais, o homem procura descobrir

as verdades sobre a sua vida e sobre a natureza. A partir dessa

nova mentalidade, surge uma nova imagem do universo: o sistema

heliocêntrico, descoberto por COPÉRNICO. O heliocentrismo marca uma

das mais profundas revoluções na história do pensamento, porque mostra

que o universo não é estático e se movimenta constantemente. Logo, se

o universo está em constante mudança, então os valores e princípios do

homem também podem mudar. Nesse ambiente, começa a implantação

do capitalismo, valorizando a fi gura do indivíduo, que é livre para vender

o seu trabalho a qualquer pessoa e a iniciativa privada é fortalecida. O

homem é um ser racional que pode realizar coisas autonomamente e

mudar o que está à sua volta.

Nesse ambiente, o princípio de autoridade que vigorava na Idade

Média passa a ser questionado pela razão e esta apontará os princípios

e os valores que guiarão a vida humana.

No campo religioso também houve uma mudança profunda, com o

movimento da Reforma, que fez a revisão do cristianismo, dando origem

ao protestantismo. Esse movimento religioso apregoa o retorno à origem

do cristianismo e questiona a Igreja Católica Apostólica Romana, o poder

e as ações do papa. De acordo com os protestantes, todos deveriam ter

acesso direto ao texto bíblico, restabelecendo o vínculo direto entre Deus

e os seus fi éis. Dessa forma, todos os homens deveriam ter instrução para

que pudessem ler os textos sagrados.

A educação passou a ser um valor imprescindível ao homem

moderno; mas uma educação que fosse útil e permitisse ao homem

desenvolver atividades necessárias à vida em sociedade. Essa visão de

mundo aparece nas palavras de MARTINHO LUTERO:

Mas a prosperidade, a saúde e a melhor força de uma cidade

consistem em ter muitos cidadãos instruídos, cultos, racionais,

honestos e bem-educados, capazes de acumular tesouros e

riquezas, conservá-los e usá-los bem (...) o mundo, para conservar

exteriormente a sua condição terrena, precisa de homens e mulheres

instruídos e capazes; de modo que os homens sejam capazes de

governar adequadamente cidades e cidadãos e as mulheres capazes

de dirigir e manter a casa, as crianças e os servos (LUTERO apud

MANACORDA, 1997, p. 196-197).

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Page 38: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II

44 C E D E R J

Preste atenção nesse trecho da carta de Martinho Lutero. Nele

estão os valores que deveriam pautar a vida do homem moderno: a

instrução, a racionalidade, a honestidade e a possibilidade de acúmulo

de riqueza. Há um reconhecimento da utilidade social da educação.

Fazendo um contraponto com a Reforma, surgiu a Contra-

Reforma, realizada pela Igreja Católica Apostólica Romana, que

condenava as inovações culturais propostas pela Reforma. Era preciso

restaurar o poder e o prestígio da Igreja Católica, principalmente no

campo político-cultural. Para isto, a Igreja propõe a criação da COMPANHIA

DE JESUS, uma ordem religiosa que tinha uma missão pedagógica: doutrinar

os mais humildes e formar o gentil-homem, o homem educado segundo

uma formação humanista, mas de acordo com a doutrina da Igreja. Isto

signifi cava formar um homem que não deveria contestar a fé católica,

obedecendo às determinações da doutrina católica. Os jesuítas criaram

o RATIO STUDIORUM, documento em que se identifi ca o tipo de homem

que a Igreja da Contra-Reforma queria formar. Observe os valores que

predominam nesse documento:

Aliança das virtudes sólidas com o estudo. Apliquem-se aos estudos

com seriedade e constância; e como devem se acautelar para que

o fervor dos estudos não arrefeça o amor das virtudes sólidas e

da vida religiosa (....) Evite-se a novidade de opiniões. Ainda em

assuntos que não apresentem perigo algum para a fé e a piedade,

ninguém introduza questões novas em matéria de certa importância,

nem opiniões não abonadas por nenhum autor idôneo (RATIO

STUDIORUM apud ARANHA, 2000, p. 96).

O homem moderno é a síntese de todas as mudanças que

relatamos acima; um ser que descobriu o poder da razão, que vende

sua força de trabalho, que precisa da instrução e sabe que nada é estático

e tudo pode se transformar.

COMPANHIA DE JESUS

Criada em 1534, foi ofi cialmente aprovada pelo Papa Paulo III. A ordem tem como objetivo a propagação da fé e a luta contra os infi éis. Essa ordem criou várias escolas em diferentes países.

RATIO STUDIORUM

Documento criado em 1599, que continha as diretrizes da ação pedagógica dos jesuítas.

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Page 39: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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C E D E R J 45

O HOMEM NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos

enclausurados dentro dela. A máquina, que produz

abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos

conhecimentos fi zeram-nos CÉTICOS; nossa

inteligência, EMPEDERNIDOS e cruéis. Pensa-

mos em demasia e sentimos bem pouco. Mais

do que máquinas, precisamos de humanidade.

Charles Chaplin (MOTA, 1989, p. 69)

De acordo com os historiadores, a Revolução Americana (1775-

1783), a Revolução Francesa (1789-1799) e a Revolução Industrial (1760-

1830) mudaram profundamente os cenários social, econômico, político

e cultural do Ocidente. Essas três revoluções marcam uma nova época

histórica no Ocidente, a História Contemporânea. Surge um novo conceito

de civilização e, conseqüentemente, uma nova imagem do homem.

O início da História Contemporânea é marcado pelo Século das

Luzes (século XVIII). Mas por que Século das Luzes? O que signifi cava

essa luz? A luz era a razão humana. Espalhou-se a certeza de que a razão,

o HOMEM ILUMINADO podia transformar a vida social e sua relação com a

natureza. Instalou-se o movimento cultural conhecido como Iluminismo.

Na verdade, a crença no poder

da razão começa na Idade

Moderna, como vimos no

item anterior, e consolida-se

no período contemporâneo.

Crescia o otimismo em relação

ao poder racional do homem e

começava um processo efetivo

de DESSACRALIZAÇÃO do mundo.

Fala fi nal do

fi lme O Grande

Ditador, de

Charles Chaplin.

!

CÉTICO

Aquele que duvida de tudo.

EMPEDERNIDO

Insensível.

HOMEM ILUMINADO

Era guiado pela razão.

DESSACRALIZAÇÃO

Deixar de ser sagrado.

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Page 40: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II

46 C E D E R J

De acordo com a visão iluminista, a ordem do mundo natural e

social era conferida pela razão, porque somente ela podia mostrar o mundo

tal como ele era verdadeiramente, guiando os homens em suas ações. Assim,

o homem não se submetia mais ao crivo da autoridade ou da tradição.

Seu guia era sua racionalidade, por meio da qual o homem investigava

e conhecia verdadeiramente a realidade. O conhecimento não era uma

revelação, como vimos no item sobre a Idade Média; o conhecimento

nascia da consciência humana, como nos mostrou Descartes.

O conhecimento, ou melhor, a “ilustração” libertava o

homem; por isso, uma sociedade livre dependia da intervenção de

seres “iluminados” pela razão, pois somente assim seriam realizadas

as transformações na sociedade. Essa libertação devia ser realizada no

campo da individualidade, da “consciência humana”, e depois seria

irradiada para a coletividade. Eram indivíduos portadores dessa “luz”

(razão) que tinham condições de mudar os outros homens, a ordem social

e a natureza. Esse indivíduo “livre” e “iluminado” seria o modelo ideal

do homem contemporâneo.

A instrução tornou-se imprescindível para essa nova ordem social.

Crescia a exigência para que fossem construídos sistemas educacionais

públicos. A educação assumiu papel de destaque no processo de

construção do “novo homem”, do “cidadão ilustrado”. A partir de então,

começou-se a contrapor os “cidadãos”, homens “ilustrados”, e os “não

cidadãos”, “os ignorantes”, que agiam sob o signo da “irracionalidade”

e, por isso, eram seres de segunda categoria.

Essa mentalidade avança pelo século XIX. O contexto sócio-

econômico-cultural desse século caracterizou-se pelo INDUSTRIALISMO, pela

FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS e pelo triunfo da ciência. O industrialismo

muda a face do trabalho e das cidades. O homem era considerado livre

para vender a sua força de trabalho, mas deveria se submeter às regras de

trabalho e assalariamento da produção fabril. Para executar as suas tarefas,

devia ter instrução elementar e saber dividir racionalmente sua tarefa com

os outros. Como a produção fabril concentrava-se em centros urbanos,

devia aprender uma nova consciência de “civilidade urbana”.

FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS

No século XIX ocorreram vários processos de unifi cação de países, como a Alemanha e a Itália, que eram formados por várias cidades e regiões independentes, com governos próprios. Depois do processo de unifi cação, eles se consolidaram como nações, tal qual hoje os conhecemos.

INDUSTRIALISMO

Uma expressão usada por Gramsci, para caracterizar uma nova “cultura industrial” no mundo capitalista.

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C E D E R J 47

Esse aprendizado passava pelo domínio de alguns conhecimentos

elementares da ciência, porque seus resultados possibilitavam um

conhecimento “verdadeiro” da natureza e dos outros homens. Acreditava-se

que ciência facilitava a compreensão da “evolução” e do progresso

humano; por isso os resultados científi cos tornaram-se imprescindíveis

para a cultura do industrialismo, porque forneciam conhecimentos

práticos para a vida.

No processo de formação dos Estados Nacionais, cresce a

necessidade de criar um sistema que pudesse nacionalizar, sistematizar

e controlar a disseminação da instrução. Assim, chegou o momento,

devido às exigências sócio-econômico-culturais, de encontrar caminhos

políticos que pudessem ampliar a educação para uma grande parcela da

população. O século XIX foi marcado por um esforço signifi cativo para

efetivar os sistemas nacionais de educação.

A partir do século XX, amplia-se a necessidade de escolaridade; a

ciência avançou, dando ao homem uma enorme capacidade de intervir

na natureza e a organização do trabalho tornou-se mais complexa.

Atualmente exige-se que o homem domine uma grande quantidade de

informações e a educação exigida para a maioria dos postos de trabalho

é o Ensino Médio. Poderíamos dizer que se aprofundou a exigência de

racionalidade. O homem, hoje, é essencialmente um cidadão urbano,

que não sabe mais viver sem a ciência. Mas, ao mesmo tempo, na virada

do século XXI, acreditamos que precisamos buscar mais do que nunca

o sentimento e a sensibilidade, como está proposto na fala de Chaplin

na abertura deste item.

Nesta aula vimos os princípios que nortearam a concepção de homem moderno

e contemporâneo. No mundo moderno, o homem descobriu o poder da razão,

começou a vender sua força de trabalho, precisa de instrução, descobriu que nada

é estático e tudo pode se transformar. No mundo contemporâneo, o homem se

acha liberto pelo poder da razão, é um cidadão essencialmente urbano, que não

sabe mais viver sem a ciência. O homem, por meio da ciência, adquire uma enorme

capacidade de intervir e transformar a natureza e a organização de seu trabalho

tornou-se mais complexa.

R E S U M O

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II

48 C E D E R J

EXERCÍCIOS

1. Analise criticamente a frase de Descartes “Penso, logo existo”. Mostre por que

esta afi rmação marca profundamente o homem moderno.

2. Explique como o Iluminismo infl uencia a concepção do homem contemporâneo.

3. Por que a educação tornou-se imprescindível para o homem contemporâneo?

AUTO-AVALIAÇÃO

Você conseguiu compreender os princípios que fundamentam a concepção de

homem no mundo moderno e contemporâneo? Observou como a razão e a ciência

tornaram-se imprescindíveis ao homem moderno e contemporâneo? Percebeu

como a educação passou a ter um papel fundamental na vida do homem? Além

disso, nestas duas últimas aulas você percebeu como a visão de homem muda, de

acordo com o contexto histórico. Se você conseguiu compreender essas mudanças,

você está apto a prosseguir a nossa viagem e analisar o homem sob o ponto de

vista psicológico − tema que será tratado na nossa próxima aula.

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Page 43: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

5Homem: visão psicológica I

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Fornecer subsídios para que os estudantes, após a leitura de seus conteúdos e da execução das atividades aqui propostas, sejam capazes de:

• Descrever as principais visões de homem presentes na produção do conhecimento psicológico.

• Situar as contribuições do conhecimento psicológico para o entendimento da multidimensionalidade.

• Explicar a historicidade e as relações sociais como elementos fundamentais na confi guração do homem.

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OBJETIVOS Pré-requisito

Compreensão dos aspectos abordados na aula anterior (veja a Aula 4 de Fundamentos da Educação I).

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Page 44: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I

50 C E D E R J

Mas que coisa é homem...

Um ser metafísico?

Uma fábula sem

signo que a desmonte?

Como pode o homem

sentir-se a si mesmo,

quando o mundo some?

Como vai o homem

junto de outro homem,

sem perder o nome?...

Como se faz um homem?

(Carlos Drummond de Andrade).

Eis que chegamos agora à Estação da psiquê; a que trata da dimensão psicológica

do homem. Desejo que você faça um bom passeio por esta Estação.

O tratamento da aula aqui proposta começa na contradição

existente na produção do conhecimento psicológico. Isto signifi ca dizer

que as teorias em Psicologia divergem quanto à visão de homem que

defendem. Essas divergências são fruto das contradições inerentes no

mundo da produção material e simbólica e permitem afi rmar que a visão

psicológica de homem não se confi gura como um bloco monolítico.

Destacam-se aqui dois grupos de teorias:

1. o grupo de teorias que concebe o homem como um ente

a-histórico, ou seja, desvinculado das condições históricas

e da realidade social;

2. o grupo de teorias que concebe o homem como um sujeito

situado historicamente no conjunto das relações sociais e

como síntese das múltiplas determinações culturais.

Quanto ao primeiro grupo, assinalamos, em virtude de sua

base EPISTEMOLÓGICA, os estudos relacionados ao corpo de conhecimento

denominado associacionismo e cuja expressão mais imponente

é o Behaviorismo.

INTRODUÇÃO

EPISTEMOLOGIA

Refere-se à teoria do conhecimento (gnoseologia). Disciplina fi losófi ca que trata da crítica do conhecimento científi co.

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O termo Behaviorismo foi inaugurado pelo americano JOHN

WATSON em 1913; o termo inglês behavior signifi ca comportamento;

portanto, para denominar essa tendência teórica, usamos Behaviorismo

e, também, Comportamentalismo, Teoria Comportamental, Análise

Experimental do Comportamento, Análise do Comportamento.

O objetivo principal do Behaviorismo foi a produção de uma

psicologia científica, livre da introspecção e fundada no método

experimental que lhe permitisse a objetividade das ciências da natureza,

ou seja, a busca da neutralidade do conhecimento científi co, no qual os

dados devem ser passíveis de comprovação e servir de ponto de partida

para outros experimentos na área.

Essa objetividade é a mesma localizada no paradigma positivista

e defi ne a investigação psicológica como o estudo do comportamento

(observável).

O comportamento é visto como produto das pressões do ambiente,

isto é, o conjunto de reações a estímulos. Tais reações podem ser medidas,

previstas e controladas.

Nessa via de interpretação, o comportamento humano é passível

de mudança resultante do treino ou da experiência. A ênfase do

conhecimento recai sobre o primado do objeto, reduzindo o indivíduo

ao simples comportamento condicionado.

Apesar de colocar o comportamento como objeto da Psicologia,

o Behaviorismo foi, desde Watson, modifi cando o sentido desse termo.

Contemporaneamente, não compreendemos o comportamento como uma

ação isolada de um sujeito, mas sim como uma interação entre aquilo

que o sujeito faz e o ambiente onde o seu fazer se realiza.

O Behaviorismo dedica-se ao exame das interações entre o

indivíduo e o ambiente, entre as ações do indivíduo (suas respostas) e o

ambiente (suas estimulações).

Mas, afi nal, qual é a visão de homem daí advinda?

O homem é encarado como uma conseqüência das infl uências ou

forças existentes no meio ambiente.

Reina a hipótese de que o homem não é livre, mas condicionado;

o seu comportamento pode ser controlado através da aplicação do

método científi co.

JOHN WATSON

Teórico que postulou o comportamento

como objeto da Psicologia; objeto

capaz de ser observável e mensurável. Esse fato foi importante

para que a Psicologia alcançasse o status

de ciência, rompendo defi nitivamente com a sua tradição fi losófi ca.

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Page 46: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I

52 C E D E R J

Dicotomizando o homem no que é e no que não é observável, o

Behaviorismo expõe-se à constatação de sua fragilidade por três razões:

1. pela fragmentação da unidade indissolúvel entre sujeito

e objeto;

2. pela ocupação do objeto, deixa o sujeito à mercê das

especulações metafísicas;

3. porque seu materialismo é uma forma de mecanicismo,

já que ignora as condições históricas dos sujeitos

psicológicos, tendo descartado a consciência, a

subjetividade, em vez de provar seu caráter de síntese

das relações sociais.

O sistema de psicologia objetiva denominado Behaviorismo

pelo seu fundador, Jonh Watson é, de longe, a mais infl uente e a

mais controvertida de todas as escolas americanas de Psicologia. O

Behaviorismo acabou desempenhando um papel preponderante não só

na Psicologia, mas também em toda a cultura, de um modo geral.

Watson tinha dois interesses principais: um positivo e outro

negativo. No lado positivo, ele propôs uma Psicologia inteiramente

objetiva. Ele desejava aplicar as técnicas e princípios da psicologia animal

aos seres humanos. A esse aspecto positivo do Behaviorismo foi dado o

nome de Behaviorismo metodológico ou empírico. O seu principal ponto

metodológico – a insistência na primazia do comportamento (behavior)

como fonte dos dados psicológicos – foi dominante e ainda é bem aceito

na atualidade.

Já no lado negativo, Watson negava os conceitos mentalistas em

Psicologia, protestando contra a Psicologia introspectiva, e discordava

dos problemas metafísicos em Psicologia.

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Page 47: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Ainda fazendo parte do primeiro grupo

de teorias referido anteriormente, a GESTALT

constitui uma corrente em Psicologia que

refuta as questões colocadas pelo Behaviorismo.

Nascida na Alemanha no início do século XX

(com WERTHEIMER, KÖHLER e KOFFKA), a gestalt

encontrou fértil terreno nos Estados Unidos,

onde passaram a trabalhar três de seus maiores

expoentes: Koffka, Köhler e LEWIN.

Eles iniciaram seus estudos pela

percepção e pela sensação do movimento.

Os gestaltistas estavam preocupados

em compreender quais os processos

psicológicos envolvidos na ilusão

de ótica, quando o estímulo físico

é percebido pelo sujeito como uma

forma diferente da que ele possui na

realidade.

É o caso do cinema. Quem já viu uma fi ta cinematográfi ca

sabe que ela é composta de fotogramas estáticos; o movimento que vemos

na tela é uma ilusão de ótica causada pela pós-imagem retiniana, ou

seja, a imagem demora um pouco a se “apagar” em nossa retina. Como

as imagens vão se sobrepondo em nossa retina, temos a sensação de

movimento; mas o que de fato está na tela é uma fotografi a estática.

A gestalt contrapõe-se ao behaviorismo por possuir uma

base epistemológica do tipo racionalista e por pressupor que todo

conhecimento é anterior à experiência, sendo fruto do exercício de

estruturas racionais, pré-formadas no sujeito.

Se a unilateralidade do positivismo consiste em desprezar a ação do

sujeito sobre o objeto, a do racionalismo consiste em desprezar a ação

do objeto sobre o sujeito. Todavia, nomear a gestalt como uma teoria

racionalista não implica afi rmar que ela negue a objetividade do mundo.

Implica afi rmar que ela não postula essa objetividade no sentido de uma

intervenção no processo de construção das estruturas mentais, através

das quais o sujeito apreende o real.

WOLFGANG KÖHLER

(1887-1967) E

KURT KOFFKA

(1886-1941)

Teóricos alemães representantes da gestalt que basearam seus

estudos psicofísicos na relação forma

e percepção, construindo a

base de uma teoria eminentemente

psicológica.

KURT LEWIN

(1890-1947)

Teórico norte-americano que parte da teoria da gestalt para construir um conhecimento novo, fruto do abandono da preocupação psicofi siológica e do encontro da Física como base metodológica de sua psicologia denominada teoria de campo.

GESTALT

É um termo alemão de difícil tradução; o termo mais próximo

em português seria forma ou confi guração.

A gestalt constitui-se numa tendência

teórica, em Psicologia, que estuda a percepção como ponto de partida e a considera também

um dos seus temas centrais.

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Page 48: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I

54 C E D E R J

A gestalt admite que a experiência passada possa infl uenciar na

percepção e no comportamento, mas não a defende como uma condição

necessária para tal. Por isso, é às variáveis biológicas e à circunstância

imediata que se deve recorrer para explicar a conduta. Para os gestaltistas,

as variáveis históricas não são determinantes nem são consideradas.

Na gestalt, fala-se em percepção; contradizendo o pressuposto

epistemológico do Behaviorismo, a gestalt rejeita a tese de que o

conhecimento seja fruto do comportamento apreendido. De acordo com

os seus teóricos, os sujeitos reagem não a estímulos específi cos, mas a

confi gurações perceptuais. As gestaltens (confi gurações) são as legítimas

unidades mentais para que a Psicologia deve voltar-se.

A gestalt lida com o conceito de estruturas mentais como sendo

totalidades organizadas, numa extrema oposição ao ATOMISMO BEHAVIORISTA.

Tais totalidades são organizadas em função de princípios de organização

inerentes à razão humana; logo, a estrutura da gestalt é uma estrutura

sem gênese, não comportando, pois, uma formação.

O conceito de totalidade com a qual a gestalt trabalha é irredutível

à soma ou ao produto das partes. Por isso, o todo é apreendido de

forma súbita, imediata, por uma reestruturação do campo peceptual

denominado INSIGHT.

Na gestalt a visão de homem subjacente é entendida como sendo

ele dotado de uma essência universal que antecede as condições históricas

que poderiam ser determinantes. A atuação do homem na sociedade está

determinada apenas pela sua própria vontade, pelas intenções inatas e

pelo signifi cado pessoal que ele atribui ao mundo.

Figura 5.1

ATOMISMO BEHAVIORISTA

Concepção que defende a aprendizagem a partir do estabelecimento de relações dos objetos mais simples para os mais complexos.

INSIGHT

Compreensão imediata de um objeto percebido a partir de um entendimento interno.

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Até aqui você já obteve uma gama de informações sobre a

visão psicológica do homem. Para ajudá-lo a organizar melhor essas

informações convém frisar o seguinte:

1. o behaviorismo considera o homem como um dado,

analisa os fenômenos psíquicos sem o suporte concreto

que se encontra na vida social e reduz o homem a uma

única dimensão: a do seu comportamento fi siológico;

2. a gestalt também considera o homem um dado, mesmo

privilegiando-o em sua dimensão fundamental para

fi ns de interpretação; porém, se abstém de considerá-lo

no nível de sua participação pela atividade prática na

sociedade em que se circunscreve.

A gestalt leva a opor-se ao desmembramento analítico da vida

psíquica as considerações de formas, de estruturas, de conjuntos admitidos

como realidades primitivas. Toda percepção é a de uma fi gura sobre um

fundo. O problema consiste, pois, essencialmente, em descrever estruturas

perceptivas globais, com vistas a reduzir a leis suas aparições e suas

transformações; em mostrar, principalmente, como a organização interna

que as condiciona lhes modifi ca os elementos componentes; e como basta

mudar um só desses elementos para modifi car uma estrutura global.

Essas considerações poderiam conduzir à admissão de uma

atividade estruturadora da vida psíquica, a realçar o papel do sujeito

no conhecimento. Paradoxalmente, tal não se dá; e os gestaltistas,

entendendo que as formas surgem num campo de percepção que se

organiza por si mesmo, muitas vezes alargam a noção de estrutura

global a ponto de tornar impossível a determinação da parte respectiva

do sujeito e do objeto no ato cognitivo.

Eis a hora, então, de passarmos ao segundo grupo de teorias

que leva em conta a interação homem-mundo (sujeito-objeto) e que

aqui denominamos Psicologia Genética. Desse grupo, salientamos as

contribuições de Piaget e Vygotsky.

O epistemólogo Piaget dedicou toda a sua vida à investigação de

um problema central: a formação e o desenvolvimento do conhecimento

no homem, inaugurando a Epistemologia Genética.

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Page 50: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I

56 C E D E R J

Piaget (1970) define a Epistemologia Genética a partir dos

seguintes princípios:

1. pesquisa interdisciplinar;

2. centrada na significação dos conhecimentos e nas

suas estruturas operatórias;

3. recorrência à História e funcionamento atual do

conhecimento;

4. referência aos aspectos lógicos do conhecimento;

5. referência à forma psicogenética do conhecimento ou

às suas relações com as estruturas mentais.

O interesse de Piaget não se dá apenas com o conhecimento

científi co, mas pelas formas de conhecimento típicas da ciência a partir

do estudo da gênese dessas formas e dos caminhos percorridos.

Piaget pesquisa a psicogênese do conhecimento, completando a

sociogênese, a fi m de constituir um mecanismo experimental capaz de

caracterizar a Epistemologia Genética como uma disciplina científi ca.

Os trabalhos de Piaget levaram-no à idéia central de que o

conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem

de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções

sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas.

Essas estruturas são resultantes da relação sujeito-objeto, em

que ambos os termos não se opõem, mas se solidarizam, formando

um todo único.

As ações do sujeito sobre o objeto e deste sobre aquele são

recíprocas. O ponto de partida não é o sujeito nem o objeto, e sim a

periferia de ambos.

Assim, o desenvolvimento da inteligência vai-se operando da

periferia para o centro, na direção dos mecanismos centrais da ação

do sujeito (dando lugar ao conhecimento lógico-matemático) e das

propriedades intrínsecas do objeto (dando lugar ao conhecimento do

mundo), que se relacionam mutuamente.

O sujeito constitui com o meio uma totalidade, sendo, portanto,

passível de desequilíbrio, em função das perturbações desse meio. Isso

o obriga a um esforço de adaptação, de readaptação, a fi m de que o

equilíbrio seja restabelecido.

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A adaptação comporta dois processos diferentes, porém

indissociáveis, que são a assimilação e a acomodação.

A assimilação cognitiva consiste na incorporação, pelo sujeito,

de um elemento do mundo exterior às suas estruturas de conhecimento,

aos seus esquemas sensório-motores ou conceituais.

Na assimilação, o sujeito age sobre os objetos que o rodeiam,

aplicando esquemas já constituídos ou já anteriormente solicitados.

A acomodação, termo complementar da relação sujeito-objeto,

representa o momento da ação do objeto sobre o sujeito.

A adaptação não pode ser dissociada da função de organização,

pois à medida que o indivíduo assimila/acomoda, a organização se faz

presente para integrar uma nova estrutura a uma outra preexistente que,

mesmo total, passa a funcionar como subestrutura.

A função de organização garante a totalidade, através da

solidariedade dos mecanismos de diferenciação e de integração,

preservando os fenômenos de continuidade e transformação.

A visão de homem aqui apresentada é a de que ele constitui

um sistema aberto, em reestruturações progressivas, cujo estágio fi nal

nunca será alcançado por completo. A sua inteligência desenvolve-se

tanto ONTOGENÉTICA quanto FILOGENETICAMENTE, sendo considerada uma

construção histórica.

O homem possui um grau de operatividade – motora, verbal e

mental – de acordo com o nível de desenvolvimento alcançado, bem

como possui um grau de visão de organização do mundo.

Na perspectiva piagetiana, toda conduta é uma adaptação; e

toda adaptação, um restabelecimento do equilíbrio entre organismo

e meio. Toda atividade implica um desequilíbrio momentâneo e a volta

ao equilíbrio é assinalada por um sentimento provisório de satisfação.

Nesse esquema muito genérico, suscetível de caracterizar outras

psicologias do comportamento, Piaget introduz os dois elementos em

questão (assimilação e acomodação) como os dois pólos da adaptação,

num sentido ao mesmo tempo biológico e mental. Todo ser vivo tende

a “assimilar” o mundo a seu organismo e a seus esquemas de ação

e pensamento. Se, no tocante ao organismo, a assimilação tende a

conservar-lhe a forma, a acomodação intervém nas condições exteriores

em função das quais ele se modifi ca.

ONTOGÊNESE

Diz respeito ao desenvolvimento

humano da fecundação até à

maturidade.

FILOGÊNESE

Diz respeito à história do desenvolvimento da espécie humana.

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Page 52: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I

58 C E D E R J

Do ponto de vista cognitivo, a assimilação é perceptiva e sensório-

motora: o objeto é percebido em relação com esquemas anteriores, isto

é, com o conjunto das operações mentais de que dispõe o sujeito. Por

exemplo: o bebê de um ano utiliza-se de suas cobertas, puxando-as em

sua direção, para apoderar-se de um objeto colocado sobre elas mas

excessivamente distante para que possa pegá-lo diretamente.

Já a acomodação aparece quando os esquemas anteriores devem

ser transformados para adaptar-se às propriedades de um objeto novo

que lhes opõe resistência.

Considerada sob o aspecto afetivo, a assimilação se confunde

com o interesse; e a acomodação, com o interesse por um objeto

enquanto novo. Assim, a adaptação constitui sempre um equilíbrio,

atingido quando o objeto, sem resistir em demasia à assimilação, resiste,

entretanto, sufi cientemente para que haja acomodação.

Essa tendência à assimilação, presente em diferentes níveis

– fi siológico, prático, intelectual – é, pois, fenômeno ao mesmo tempo

dinâmico, na medida em que o sujeito tende a estender sua esfera de ação

a uma parte cada vez mais vasta do meio ambiente, e conservador, na

medida em que tende a conservar sua estrutura interior e busca impô-la

às condições exteriores.

Semelhante concepção não poderia admitir uma lógica de algum

modo extrínseca, em relação aos próprios processos, e Piaget considera,

efetivamente, que a lógica é o espelho do pensamento, e não o inverso.

Nela vê uma axiomática da razão, da qual a Psicologia da inteligência

é a ciência experimental correspondente, e não crê que a lógica clássica,

enquanto permanecer numa forma descontínua e atomística de descrição,

possa ser considerada intangível.

Segundo Piaget, o sujeito assimila as realidades exteriores em certa

ordem, porque essa ordem é o que há de mais natural do ponto de vista

das fases do desenvolvimento da inteligência.

Vygotsky (1990) formulou uma teoria de superação às tradições

positivistas que pudesse estudar o homem e seu mundo psíquico como

uma construção histórica e social. O mundo psíquico está diretamente

vinculado ao mundo material e às formas de vida que os homens vão

construindo no decorrer da História.

Vygotsky desenvolveu uma estrutura teórica marxista para a

Psicologia a partir dos seguintes pressupostos:

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1. todos os fenômenos devem ser estudados como processos

em permanente movimento e transformação;

2. o homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a

natureza com sua atividade e seus instrumentos;

3. não se pode construir qualquer conhecimento a partir do

aparente, pois não se captam as determinações que são

constitutivas do objeto. Ao contrário, é preciso rastrear a

evolução dos fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu

movimento as explicações para a sua aparência atual;

4. a mudança individual tem sua raiz nas condições

sociais de vida; assim, não é a consciência do homem

que determina as formas de vida, mas é a vida que se tem que

determina a consciência.

Segundo essa abordagem, existem somente homens concretos,

situados no tempo e no espaço, inseridos num contexto socioeconômico-

cultural-político; enfi m, num contexto histórico.

O homem é considerado um sujeito que possui raízes espaço-

temporais: situado no e com o mundo.

A visão de homem que resulta do confronto e da colaboração

entre estas últimas abordagens permite resgatar:

1. a unidade do conhecimento, através da relação sujeito/

objeto, em que se afi rma, ao mesmo tempo, a objetividade

do mundo e a subjetividade;

2. a realidade concreta da vida do homem como fundamento

para toda e qualquer investigação.

R E S U M O

Você aprendeu, a partir da perspectiva psicológica, quatro visões de homem: em

duas delas o homem é encarado sem levar em conta as suas condições históricas

(behaviorismo e gestaltismo); as outras duas já encaram o homem a partir da relação

fundamental com o mundo e pressupõem a relação sujeito-objeto (PIAGET, 1976;

VYGOTSKY, 2000).

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I

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EXERCÍCIOS:

1. Qual é a visão de homem subjacente no Behaviorismo?

2. Qual é a visão de homem subjacente na gestalt?

3. Quanto à visão de homem, quais são as diferenças e os pontos comuns existentes

entre o Behaviorismo e a gestalt?

4. Qual é a visão de homem defendida pela abordagem piagetiana?

5. Qual é a visão de homem encontrada na abordagem de Vygotsky?

AUTO-AVALIAÇÃO

Quanto às questões de número 1 e 2, é importante ressaltar que as visões de

homem concernentes a cada uma delas está relacionada aos objetivos principais

da produção do conhecimento psicológico num determinado momento histórico.

A terceira questão é um desdobramento das anteriores e requisita de você o

discernimento das propriedades fundamentais que caracterizam cada uma das

visões de homem subjacentes às teorias aqui estudadas, a fi m de destacar diferenças

e semelhanças existentes entre elas. Já as questões de números 4 e 5 devem revelar

visões de homem relacionadas à interação sujeito-objeto no processo cognitivo. E

então, você considerou proveitosa a leitura desta estação? Você conseguiu realizar

os exercícios sem grandes difi culdades? Se a sua resposta for negativa ou hesitante,

recomendamos que faça uma nova leitura. Caso sua resposta seja positiva, você

pode passar tranqüilamente para a próxima aula.

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Page 55: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

6Homem: visão psicológica II

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Demarcar o objeto de estudo da Psicologia.

• Examinar as transformações da Psicologia como ciência a partir de diferentes momentos históricos.

• Dialogar com as principais teorias da Psicologia produzidas no século XX.

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OBJETIVOS

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Page 56: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II

62 C E D E R J

O importante e bonito do mundo é

isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram

terminadas, mas que elas vão

sempre mudando. Afi nam e desafi nam (Guimarães Rosa).

A presente Estação constitui um desdobramento da aula anterior. Aqui,

o estudante terá a oportunidade de ocupar-se da construção histórica da

Psicologia como ciência e de sua contribuição na formação dos professores.

Lembre-se de que a fi nalidade de passear por esta Estação está

vinculada à necessidade de entendimento dos estudos psicológicos em

Educação, bem como pressupõe retomar alguns conceitos fundamentais

trabalhados na Aula 5.

Autores como Heidbreder (1981) e Salvador (1999) advertem

que a tarefa de defi nir a Psicologia como ciência é bem mais árdua

e complicada. Comecemos, então, por defi nir o que entendemos por

ciência, para depois explicarmos por que a Psicologia é hoje considerada

uma de suas áreas.

Segundo Bachelard (1990), a ciência compõe-se de um conjunto

de conhecimentos sobre fatos ou dimensões da realidade (objeto de

estudo), expresso por meio de uma linguagem precisa e rigorosa.

Esses conhecimentos são obtidos de modo programado, sistemático e

controlado, para que se permita a constatação de sua validade.

Desse modo, caro estudante, podemos apontar o objeto dos diferentes

ramos da ciência e saber exatamente como determinado conteúdo foi

construído, possibilitando a reprodução da experiência. Isso quer dizer

que o saber pode ser transmitido, verifi cado, utilizado e desenvolvido.

Essa característica da produção científica possibilita sua

continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de

algo anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafi rmam-se, descobrem-se

novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência

caracteriza-se como um processo (JAPIASSU, 1988).

INTRODUÇÃO

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Pense no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele

nasceu de uma necessidade concreta, a crise do petróleo, e foi planejado

a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes

deste. Todavia, os primeiros automóveis movidos a álcool apresentaram

muitos problemas, como o seu mau funcionamento no clima frio; apesar

disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.

A ciência possui as seguintes características fundamentais:

• objeto específi co;

• linguagem rigorosa;

• métodos e técnicas específi cas;

• processo cumulativo do conhecimento;

• objetividade.

Essas características fazem da ciência uma forma de conhecimento,

e é o que permite que denominemos científico a um conjunto de

conhecimentos.

Você já deve estar perguntando qual é, afi nal, o objeto de estudo

da Psicologia.

Um conhecimento, para ser considerado científi co, requer um

objeto específi co de estudo. O objeto da Astronomia são os astros, já

o objeto da Biologia são os seres vivos. Essa classifi cação bem genérica

demonstra que é possível tratar o objeto dessa ciência com uma certa

distância, ou seja, é possível isolar o objeto de estudo. No caso da

Astronomia, o cientista-observador está, por exemplo, num observatório

e o astro observado, a anos-luz de distância de seu telescópio. Esse

cientista não corre o mínimo risco de se confundir com o fenômeno que

está estudando.

O mesmo não ocorre com a Psicologia que, como a Antropologia,

a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o homem. Certamente,

essa divisão é muito ampla e apenas coloca a Psicologia, como bem

sinaliza Japiassu (1982), entre as ciências humanas. Mas, afi nal, qual é

o objeto específi co de estudo da Psicologia?

Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele

dirá: “o objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”.

Se a palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “é o

inconsciente”. Outros dirão que é a consciência humana e outros,

ainda, a personalidade.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II

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Percebemos que existe uma diversidade de objetos da Psicologia.

Essa situação nos permite questionar a caracterização da Psicologia como

ciência e postular que, no momento, não existe uma psicologia, mas

psicologias embrionárias e em desenvolvimento.

Considerando toda essa difi culdade na conceituação única do

objeto de estudo da Psicologia, optamos por apresentar uma defi nição

que sirva de referência para você.

A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos

das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um

desses ramos enfoca o homem de modo particular. Cada especialidade

– a Economia, a Política, a História etc. – trabalha essa matéria-prima

de modo particular, construindo conhecimentos distintos e específi cos a

respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetividade; é essa

a sua forma particular, específi ca, de contribuição para a compreensão

da totalidade da vida humana.

Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas

expressões: as visíveis (comportamento) e as invisíveis (sentimentos), as

singulares (somos o que somos) e as genéricas (somos todos assim) – é

o homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação; tudo

isso está sintetizado no termo “subjetividade”.

Segundo depreendemos das leituras de Foucault (1999, 2000),

estudar a subjetividade, atualmente, é tentar compreender a produção de

novos modos de ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja fabricação é

social e histórica. O estudo dessas novas subjetividades vai desvendando

as relações da cultura, da política, da economia e da história na produção

do mais íntimo e do mais observável no homem – aquilo que o captura,

submete-o ou mobiliza-o para pensar e agir sobre os efeitos das formas

de submissão da subjetividade.

Acreditamos que, agora, você já pode refl etir melhor sobre o

pensamento de Guimarães Rosa, colocado no início da aula. As pessoas não

são iguais, ainda não foram terminadas; na verdade, as pessoas nunca serão

terminadas, pois estarão sempre se modifi cando naquilo que ainda não são.

Mas por quê? Como? Porque a subjetividade – esse mundo interno

construído pelo homem como síntese de suas determinações – não

cessará de se modifi car, pois as experiências sempre trarão novos

elementos para renová-la.

Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja subjetividade

e possamos, então, dar continuidade à nossa aula desta Estação.

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A fi m de compreender a diversidade com que a Psicologia se

apresenta hoje, torna-se necessário recuperar a sua história. A história de

sua construção está ligada, em cada momento histórico, às exigências

de conhecimento da humanidade, às demais áreas do conhecimento

humano e aos novos desafi os colocados pela realidade político-social e

pela insaciável necessidade do homem de compreender-se.

É entre os fi lósofos gregos que surge a primeira tentativa de

sistematizar uma Psicologia. O próprio termo psicologia vem do grego

psyché, que signifi ca alma, e de logos, que signifi ca razão. Portanto,

etimologicamente, Psicologia signifi ca “estudo da alma”. A alma ou

espírito era concebida como a parte imaterial do ser humano e abarcaria

o pensamento, os sentimentos de amor e ódio, a irracionalidade, o desejo,

a sensação e a percepção.

Os fi lósofos pré-socráticos – assim chamados por antecederem

SÓCRATES – preocupavam-se em defi nir a relação do homem com o mundo

através da percepção. Discutiam se o mundo existe porque o homem

o vê ou se o homem vê um mundo que já existe. Havia uma oposição

entre os idealistas e os materialistas.

Mas é com Sócrates (469-399 a. C.) que a Psicologia na Antigüidade

ganha consistência. Sua principal preocupação era com o limite que separa

o homem dos animais. Dessa forma, postulava que a principal característica

humana era a razão. A razão permitia ao homem sobrepor-se aos instintos,

que seriam a base da irracionalidade. Ao defi nir a razão como peculiaridade

do homem ou como essência humana, Sócrates abre um caminho que seria

muito explorado pela Psicologia. As teorias da consciência são frutos dessa

primeira sistematização na Filosofi a.

O passo seguinte é dado por Platão (427-347 a. C.), discípulo de

Sócrates. Platão procurou defi nir um lugar para a razão no nosso próprio

corpo. Defi niu esse lugar como sendo a cabeça, onde se encontra a alma

do homem. A medula seria o elemento de ligação da alma com o corpo.

Tal elemento de ligação era necessário, porque Platão concebia a

alma separada do corpo. Quando alguém morria, a matéria (o corpo)

desaparecia, mas a alma fi cava livre para ocupar outro corpo.

Aristóteles (384-322 a. C.), discípulo de Platão, foi um dos mais

importantes pensadores da história da Filosofi a. Sua contribuição foi

inovadora ao postular que alma e corpo não podem ser dissociados.

Para Aristóteles, a psyché seria o princípio ativo da vida. Tudo aquilo

que cresce, se reproduz e se alimenta possui a sua psyché ou alma. Desta

forma, os vegetais, os animais e o homem teriam alma. Os vegetais teriam

a alma vegetativa, que se defi ne pela função de alimentação e reprodução.

SÓCRATES

(469-399 A.C.)

Filósofo ateniense que participou do movimento de renovação

cultural feito pelos sofi stas, revelando-

se um inimigo deles. Convidado

a fazer parte do Senado, manifestou

sua liberdade de espírito combatendo

as medidas que considerava injustas.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II

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Os animais teriam essa alma e a alma sensitiva, que tem a função de

percepção e movimento. E o homem teria os dois níveis anteriores e a

alma racional, que tem a função pensante. Aristóteles chegou a estudar

as diferenças entre a razão, a percepção e as sensações. Esse estudo

está sistematizado no Do anima, que pode ser considerado o primeiro

tratado em Psicologia.

Em síntese, 2300 anos antes do advento da Psicologia científi ca,

os gregos já haviam formulado duas teorias: a platônica, que postulava

a imortalidade da alma e a concebia separada do corpo, e a aristotélica,

que afi rmava a mortalidade da alma e a sua relação de pertencimento

ao corpo.

Durante o período medieval, a Igreja Católica monopolizava o

saber e, conseqüentemente, o estudo do psiquismo. Nesse sentido, dois

grandes fi lósofos representavam esse período: Santo Agostinho (354-430)

e São Tomás de Aquino (1225-1274).

SANTO AGOSTINHO, inspirado em Platão,

também fazia uma cisão entre alma e corpo. Para

ele, a alma não era somente a sede da razão, mas

a prova de uma manifestação divina no homem.

A alma era imortal por ser o elemento que liga o

homem a Deus. E, sendo a alma também a sede

do pensamento, a Igreja passa a se preocupar da

mesma forma com sua compreensão.

SÃO TOMÁS DE AQUINO foi buscar em

Aristóteles a distinção entre essência e existência.

Como o filósofo grego, considerava que o

homem, na sua essência, buscava a perfeição

através da sua existência. Porém, introduzindo

o ponto de vista religioso, ao contrário de

Aristóteles, afi rmava que somente Deus seria

capaz de reunir a essência e a existência, em

termos de igualdade. Portanto, a busca de

perfeição pelo homem seria a busca de Deus.

Já durante o período do Renascimento,

RENÉ DESCARTES (1596-1650) um dos filó-

sofos que mais contribuiu para o avanço da ciência, postulava a

separação entre mente (alma, espírito) e corpo, afirmando que o

homem possui uma substância material e uma substância pensante,

e que o corpo, desprovido do espírito, é apenas uma máquina.

SANTO AGOSTINHO

(354-430)

Bispo de Hipona, na Argélia; foi um dos mais importantes iniciadores da fi losofi a cristã, sendo um dos responsáveis pela articulação entre o pensamento fi losófi co clássico e o Cristianismo. SÃO TOMÁS DE

AQUINO

(1224-1274)

Pertencente à Ordem dos Dominicanos,

percorre toda a Europa Medieval.

Sua imensa obra compreende duas

Sumas: Suma contra os gentios e Suma

Teológica. Ele tenta demonstrar que não há nenhum confl ito

entre fé e razão.RENÉ DESCARTES

(1596-1650)

Autor da proposição "Penso, logo existo". Toda a sua obra visa

demonstrar que o conhecimento requer

um fundamento metafísico, a partir da dúvida, como método

de investigação.

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Esse dualismo psico-físico (mente-corpo) tornou possível o estudo do

corpo humano morto, o que era impensável nos séculos anteriores, uma

vez que o corpo era considerado sagrado pela Igreja, por ser a sede da

alma, e dessa forma possibilitou o avanço da Anatomia e da Fisiologia,

que iria contribuir em muito para o progresso da própria Psicologia.

O berço da Psicologia moderna foi a Alemanha do fi nal do

século XIX. Seu estatuto de ciência foi obtido à medida que se liberta

da Filosofi a, que marcou sua história até aqui, e atraiu novos estudiosos

e pesquisadores que, sob novos padrões de produção de conhecimento

(MUELLER, 1978), passam a:

• defi nir seu objeto de estudo (o comportamento, a vida

psíquica, a consciência);

• delimitar seu campo de estudo, diferenciando-o de outras

áreas de conhecimento, como a Filosofi a e a Fisiologia;

• formular métodos de estudo desse objeto;

• formular teorias como um corpo consistente de

conhecimentos na área.

Essas teorias obedeciam aos critérios básicos da metodologia

científica, ou seja, a busca da neutralidade do conhecimento, a

comprovação dos dados e o caráter cumulativo do conhecimento, ponto

de partida para outros experimentos e pesquisa na área. Os pioneiros da

Psicologia procuraram, dentro das possibilidades, atingir esses critérios

e formular teorias. Entretanto, para Shultz (1981), os conhecimentos

produzidos inicialmente caracterizaram-se muito mais como postura

metodológica que norteava a pesquisa e a construção teórica.

Embora a Psicologia científi ca tenha nascido na Alemanha, é nos

Estados Unidos que ela encontra campo para um rápido crescimento,

resultado do grande avanço econômico na vanguarda do sistema

capitalista. É ali que surgem as primeiras abordagens ou escolas em

Psicologia, as quais deram origem às inúmeras teorias que existem

atualmente. Essas abordagens são: o Funcionalismo, o Estruturalismo

e o Associacionismo.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II

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O Funcionalismo é considerado como a primeira sistematização

genuinamente americana de conhecimentos em Psicologia. Para a escola

funcionalista de WILLIAM JAMES, importa responder “o que fazem os homens”

e “por que o fazem”. Para responder, James elege a consciência como o

centro de suas preocupações e busca a compreensão de seu funcionamento,

na medida em que o homem a usa para adaptar-se ao meio.

O Estruturalismo está preocupado com a compreensão do mesmo

fenômeno que o Funcionalismo – a consciência. Mas, diferentemente

de James, TITCHENER irá estudá-la em seus aspectos estruturais, isto é, os

estados elementares da consciência como estruturas do sistema nervoso

central. Essa escola foi inaugurada por WUNDT, na Alemanha, mas foi

Titchener, seguidor de Wundt, quem usou o termo estruturalismo pela

primeira vez, no sentido de diferenciá-lo do Funcionalismo. O método

de observação de Titchner, assim como o de

Wundt, é a introspecção, e os conhecimentos

psicológicos produzidos são eminentemente

experimentais, ou seja, produzidos em

laboratórios.

Já o Associacionismo tem como seu

principal representante Thorndike, e sua

importância está em ter sido o formulador

de uma primeira teoria da aprendizagem na

Psicologia. Sua produção de conhecimentos

caracterizava-se por uma visão de utilidade

desse conhecimento.

O termo associacionismo origina-se da

concepção de que a aprendizagem se dá por

um processo de associação de idéias – das mais

simples às mais complexas. Thorndike formulou

a lei do efeito, que seria de grande utilidade para a

Psicologia Comportamentalista. De acordo com

essa lei, todo comportamento de um organismo

vivo (um homem, um animal) tende a se repetir,

se for recompensado (efeito). Por outro lado, o

comportamento tenderá a não acontecer se o

organismo for castigado (efeito) após sua ocorrência. E pela lei do efeito

o organismo irá associar essas situações com outras semelhantes.

WILLIAM JAMES

(1842-1910)

Foi o mais destacado precursor da corrente funcionalista em Psicologia. Sua obra em dois volumes, The Principles of Psychology (1890), foi virtualmente um clássico mesmo antes de ser publicada, visto que o livro tinha aparecido em revistas, de forma periódica, à medida que os capítulos eram completados.

EDWARD TITCHENER

(1867-1927)

Fundador da Psicologia Estrutural nos Estados Unidos com o ensaio The Postulates of a Structural Psychology (1898). Fez a distinção entre o tipo de observação da ciência física (olhar para) e o tipo de observação psicológica ou introspecção (olhar dentro).

WILHELM WUNDT

(1832-1920)

Considerado o pai da Psicologia

Experimental. Instalou o primeiro laboratório

formal de Psicologia, na Universidade

de Leipzig, em 1879. Destacou três

aspectos da Psicologia Experimental:

análise dos processos conscientes em seus elementos,

descoberta sobre como esses elementos se correlacionavam e determinação das leis

de correlação.

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No entanto, caro estudante, a Psicologia Científica, que se

constituiu das três escolas descritas acima, foi substituída, no século XX,

por novas teorias, como o Behaviorismo e a Gestalt (estudadas na Aula 5),

bem como a Psicanálise, que nasce com FREUD, na Áustria, a partir da

prática médica, e recupera para a Psicologia a importância da afetividade,

postulando o inconsciente como objeto de estudo e quebrando a tradição

da Psicologia como ciência da consciência e da razão.

As tendências teóricas mencionadas anteriormente constituíram-se

em matrizes do desenvolvimento da Psicologia, propiciando o surgimento

de inúmeras abordagens da Psicologia contemporânea, entre elas a

Psicologia Sociohistórica.

Mesmo tendo sido estudada na Aula 5, gostaríamos de assinalar

nesta estação alguns pontos fundamentais dessa abordagem de

conhecimento em Psicologia, devido à sua importância no campo de

formação do professor.

Tendo como referência a nova abordagem

teórica formulada por VYGOTSKY, buscava-se

construir uma Psicologia que superasse as

tradições positivistas e estudasse o homem e seu

mundo psíquico como uma construção histórica

e social da humanidade, a partir dos seguintes

princípios (VYGOTSKY, 1990):

1. a compreensão das funções superiores

do homem não pode ser alcançada pela

psicologia animal, pois os animais não têm

vida sociocultural;

2. as funções superiores do homem não podem

ser vistas apenas como resultado da maturação

de um organismo que já possui, em potencial,

tais capacidades;

3. a linguagem e o pensamento humano têm origem

social. A cultura faz parte do desenvolvimento

humano e deve ser integrada ao estudo e à

explicação das funções superiores;

4. a consciência e o comportamento são

aspectos inte-grados de uma unidade, não

podendo ser isolados pela Psicologia.

FREUD

(1856-1939)

Criador da Psicanálise, começou

a desenvolver sua teoria no início do século XX,

alcançando fama e notoriedade.

Em 1910, preside a Associação Internacional

de Psicanálise. Principais obras: A Interpretação

dos Sonhos e Psicopatologia da

Vida Cotidiana.

LEV VYGOTSKY

(1896-1934)

Sob a perspectiva ideológica marxista, produziu uma teoria original do desenvolvimento intelectual com base na relação entre pensamento e linguagem. Suas pesquisas abarcam o campo da Psicologia do Desenvolvimento, da Educação e da Psicopatologia. Uma de suas principais obras é Pensamento e Linguagem.

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Vygotsky (2000) desenvolveu também uma estrutura teórica

marxista para a Psicologia:

1. todos os fenômenos devem ser estudados como processos

em permanente movimento e transformação;

2. o homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a

Natureza com sua atividade e seus instrumentos;

3. não se pode construir qualquer conhecimento a partir do

aparente, pois não se captam as determinações que são

constitutivas do objeto. É preciso rastrear a evolução dos

fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu movimento

as explicações para sua aparência atual;

4. a mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de

vida. Assim, não é a consciência do homem que determina

as formas de vida, mas é a vida que se tem que determina

a consciência.

Vygotsky não somente considerava que a Educação é dominante

no desenvolvimento cognitivo, como também é a quintessência da

atividade sociocultural. Ele estava claramente interessado em saber

como as formas humanas de pensamento se desenvolviam fi logenética

e socioculturalmente; seu trabalho se centrava nas origens sociais e nas

bases culturais do desenvolvimento individual. Ele sustentava que os

processos psicológicos superiores se desenvolvem nas crianças através da

enculturação das práticas sociais, através da aquisição da tecnologia da

sociedade, de seus signos e ferramentas e através da educação em todas

as suas formas.

Para Vygotsky, as escolas representam os melhores laboratórios

culturais para estudar o pensamento: contextos sociais especifi camente

desenhados para modifi car o pensamento. Ele destacava, em particular,

a organização social do ensino, ao escrever sobre a forma única de

cooperação entre crianças e adultos (que é o elemento central do

processo educativo), e como, por esse processo interativo, se transfere

conhecimento à criança em um sistema defi nido. Ao falar de um sistema

defi nido, Vygotsky se refere à organização social do ensino e à forma

como proporciona uma socialização especial do pensamento das crianças.

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Em particular, enfatizava duas características do ensino: uma era o

desenvolvimento da tomada de consciência; e outra, o controle voluntário

do conhecimento.

Dada a ênfase de Vygotsky no contexto social do pensamento,

o estudo do câmbio educativo tem um importante signifi cado teórico

e metodológico em seu enfoque; representa a reorganização de um

sistema social chave e modos associados de discurso com conseqüências

potenciais para o desenvolvimento de novas formas de pensamento.

Vygotsky destacava também o câmbio educativo como objetivo

prático de sua psicologia. Em parte, essa preocupação pela importância

do câmbio prático surgia de sua orientação marxista.

No Brasil, Vygotsky vem sendo estudado e utilizado na área de

Educação desde a década de 1980, através das teorias construtivistas da

aprendizagem, principalmente a partir da infl uência de Emília Ferreiro.

Chegamos ao fi nal de mais uma Estação. Esperamos que você

tenha desfrutado de forma prazerosa os conhecimentos que aqui se

apresentaram. Antes de passarmos à próxima Estação, convém examinar

os principais aspectos da aula e, em seguida, fazer os exercícios para

fi xação da aprendizagem.

R E S U M O

Você aprendeu que o objeto de estudo da Psicologia é a subjetividade e que,

como ramo da Filosofi a, estuda a alma. Durante a Idade Média, a Psicologia estava

relacionada ao conhecimento religioso. Já no Período Moderno, a racionalidade

do homem apareceu como a grande possibilidade de construção do conhecimento,

e a Psicologia constituiu-se na forma científi ca a partir do Funcionalismo, do

Estruturalismo e do Associacionismo, para logo em seguida desembocar, no

século XX, na produção de novas teorias: o Behaviorismo, a Gestalt, a Psicanálise,

a Psicologia Sócio-histórica.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II

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EXERCÍCIOS

1. Explique o objeto de estudo da Psicologia.

2. Descreva os pensamentos de Sócrates, Platão e Aristóteles acerca dos estudos

da alma.

3. Como se apresentam os estudos da alma na Idade Média?

4. Por que Descartes contribuiu para a evolução dos estudos em Psicologia?

5. Cite pelo menos dois novos padrões de estudo na constituição da Psicologia

Científi ca.

6. O que é a Psicologia Sócio-histórica?

AUTO-AVALIAÇÃO

Se você conseguiu responder a todas as questões sem difi culdades, recomendamos

que passe para a próxima aula. Caso tenha sentido alguma difi culdade, será

imprescindível mais uma leitura atenta desta aula. Entretanto, lembramos que

a pergunta referente ao objeto da Psicologia requer uma resposta objetiva e

concisa. Já as respostas concernentes à segunda, terceira e quarta questões devem

servir de base para você organizar as primeiras concepções acerca do estudo da

Psicologia no mundo ocidental. A resposta à quinta questão deve ser também

objetiva, porque revela alguns eixos importantes na confi guração da Psicologia

como atividade científi ca. A resposta à sexta questão torna-se fundamental para

compreender a contribuição dos estudos contemporâneos da Psicologia no campo

da formação do professor.

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Page 67: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

7Homem: visão socioantropológica

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Compreender o homem como um ser por inteiro: biopsico-sociocultural.

• Identifi car a cultura como fornecedora de vínculos entre o que os homens são capazes de se tornar e o que eles verdadeiramente se tornam.

• Conhecer as principais áreas da Antropologia: Biológica; Pré-Histórica; Lingüística; Psicológica, Social e Cultural.

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OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica

74 C E D E R J

É necessário analisar cuidadosamente o sistema das representações

que os indivíduos e os grupos, membros de uma determinada

sociedade, formulam sobre seu meio. É a partir destas representações

que os indivíduos ou os grupos atuam sobre o meio (GODELIER,

1981).

HOMEM: VISÃO SOCIOANTROPOLÓGICA

Nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação"

prossegue. Acabamos de parar na estaçãozinha de uma pequena cidade

brasileira. De repente, percebemos que a atenção de quase todos em

nosso vagão está voltada para alguma coisa na plataforma, fazendo com

que se debrucem nas janelas.

Olhemos, prezado aluno! Lá está: dois homens e uma mulher,

com traços indígenas, oferecem aos passageiros de nosso trem peças de

artesanato. Cocares feitos de penas multicoloridas; fl echas preparadas

com bambu; colares lindíssimos, confeccionados com sementes e com

dentes de animais.

Podemos observar, caro aluno, que se trata de índios aculturados,

isto é, que já assimilaram a cultura dos brancos, pois se vestem com

roupas semelhantes às nossas; calçam sapatos, como gente branca; e

usam até com bastante correção a língua portuguesa.

Olhar para os representantes dessa cultura indígena é relativizar

o pensar sobre a realidade humana, observando as diferenças e com elas

as ideologias, os mitos, os rituais, os valores, a ética e a estética.

Superada a surpresa e o estranhamento, podemos concluir que

estamos diante de uma manifestação cultural bastante diferente da

nossa, embora já sofrendo o desgaste provocado pelo contato com o

homem branco.

Nosso trem retoma sua marcha, e agora podemos ligar esse

acontecimento à presente aula. Isso porque, prezado aluno, nosso tema

é a visão sobre o Homem proporcionada pela Antropologia.

Antropologia vem de antrophos, que signifi ca homem, e logia,

que quer dizer estudo. Essa é, portanto, a ciência dedicada ao estudo do

homem. E num enfoque particular: o homem como ser cultural, isto é,

produtor de cultura e, ao mesmo tempo, constituído por essa mesma

cultura que produz.

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A Antropologia nasceu justamente a partir da observação,

pelo antropólogo, de culturas diferentes da sua, numa atitude de

estranhamento e de curiosidade, exatamente como nos aconteceu ainda

há pouco naquela estaçãozinha imaginária lá atrás.

Com esta aula, prezado aluno, não desejamos fazer de você

um antropólogo, mas apenas despertar o seu “olhar”, no sentido de

contemplar atentamente o que vê, procurando ver além, olhando com

curiosidade acentuada tudo o que acontece ao seu redor.

Dedicando-se ao estudo das diversas culturas, a Antropologia

transformou-se no campo em que se desenvolveram várias abordagens

metodológicas, isto é, métodos de estudo. Entre essas abordagens,

a denominada “observação participante” – ou seja, um procedimento de

pesquisa em que o antropólogo ao invés de manter-se a distância, como se

pudesse não envolver-se com seu objeto de pesquisa, efetivamente se envolve,

participa – tornando-se elemento central. Tudo isso sem que o pesquisador

pretenda se transformar em um nativo daquela cultura pesquisada.

Nesta aula, caro aluno, o objetivo central é lançar um olhar

antropológico sobre o Homem, esse ser de cultura. E, tendo em conta o

nosso curso de Licenciatura, isto é, um curso de formação de professor,

temos a meta, no dizer de Edgar Morin, de “ensinar a condição humana”,

ou seja, de pensar o Homem e sua educação do ponto de vista antropológico,

reconhecendo-o em sua humanidade comum e, ao mesmo tempo, aceitando

a diversidade cultural inerente a tudo o que é humano.

Conhecer o homem é situá-lo no universo; é buscar as respostas

para as indagações, tais como: Quem somos? Onde estamos? De onde

viemos? Para aonde iremos?

O primeiro passo nessa direção poderá ser dado relembrando as

cenas iniciais do fi lme 2001: Uma odisséia no espaço, do diretor Stanley

Kubrick.

O fi lme mostra como viviam os hominídeos, que são ancestrais,

na escala evolutiva, dos seres humanos atuais: sua alimentação, à base de

gramíneas; sua forma de luta, na qual vencia quem era capaz de gritar mais

alto; o modo como habitavam, em cavernas; como morriam atingidos pelo

frio; seu medo diante de todas as ameaças; e a espera pelo sol, que fazia

ressurgir a vida, vencendo a geada e trazendo de volta a vegetação.

Figura 7.1:Cartaz do fi lme 2001:

Uma odisséia no espaço.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica

76 C E D E R J

Numa cena importante do fi lme, vemos que esses homens das

cavernas, por acaso, ao bater com um osso maior numa ossada, acabaram

passando a representar não a ossada sofrendo os golpes, mas o próprio

animal sendo abatido. Desse modo, imaginavam o animal (símbolo do

perigo) sendo vencido sem que corressem os riscos de uma situação real.

O importante é que você perceba que a vida de babuínos, macacos,

chimpanzés e, depois, dos hominídeos já apresenta uma organização

complexa. Os chimpanzés, por exemplo, revelam afetividade, inteligência

e habilidades. Basta vê-los cuidar dos fi lhos, caçar usando pedras ou

construir abrigos.

Essas espécies de animais, como resultado de um processo

evolutivo, vão ser responsáveis pelo processo de hominização do

homem — processo biológico, psicológico e cultural. Uma evolução

antropocultural desencadeou uma evolução bionatural.

Podemos perceber que a cultura, ao mesmo tempo em que emerge

de um processo natural, infl uencia e intervém nesse processo.

O homem chegou à condição de sapiens através da cultura:

instituiu regras, criou as pequenas sociedades, evoluiu, passando de

um estágio organizacional (sociedade fechada) para um estágio mais

complexo (sociedade aberta).

Com o ser humano, surgiram o desenvolvimento da técnica, o

pensamento, a cultura e a sociedade. Por isso não se pode estabelecer

separações entre “espécie”, “homem” e “cultura”, cabendo à Antropologia

estudar essa complexidade, tanto no que se refere aos componentes

genético e sociológico, quanto à responsabilidade do homem na construção

e manutenção do mundo de hoje.

Vemos, com a Antropologia Pré-histórica, que a evolução do

Homem é uma aventura de milhões de anos, com o surgimento de novas

espécies e o aparecimento da linguagem humana, ao mesmo tempo em que

se constitui a cultura – saberes, crenças, mitos, ritos, ideologias que são

transmitidos de geração a geração.

O hominídeo humaniza-se, e o conceito de homem ganha um

duplo princípio: um biofísico e o outro psico-sociocultural. Esses

princípios remetem-se um ao outro. O humano é a um só tempo

plenamente biológico e plenamente cultural.

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Ao trabalhar com a Educação, educamos o ser humano em todas

as suas dimensões: racionalidade (HOMO SAPIENS), capacidade técnica

(homo faber), homem das atividades utilitárias (homo ecomonicus) e

necessidades obrigatórias (homo prosaicus).

Lembra Edgar Morin (2001) que o homem da racionalidade é

também o da afetividade, do mito e do delírio (demens); o homem do

trabalho é igualmente o homem do jogo (ludens); o homem empírico é da

mesma forma o homem imaginário (imaginarius); o homem da economia

é também o homem do consumismo (consumans); e homem prosaico é

o mesmo homem da poesia, do amor, do êxtase. O amor é poesia.

É esse Homem, prezado aluno, que estará sob a sua guarda e

proteção, e para quem você deverá fazer valer a sua consciência

antropológica: ver o ser humano por inteiro, uma vez que a

educação deve aspirar não apenas ao progresso, mas à sobrevida

da humanidade (MORIN, 2001).

Você poderá fazer valer os princípios da Antropologia na medida

em que valorize, por exemplo, os rituais que ocorrem no cotidiano da

sua sala de aula.

Segundo DaMatta, o ritual coloca em close up as coisas do

mundo social. Assim, na medida em que você observar os rituais,

poderá compreender como a sua sala de aula está (des)organizada

(DAMATTA, Roberto).

A dinâmica da sua sala de aula é um acontecimento “sagrado”

da educação, onde ocorrem vários rituais, dentre eles os seguintes:

• rituais de instrução, representados por um conjunto

de atividades executadas em sala de aula, durante um

dia escolar;

• rituais de revitalização, que ocorrem através das relações

professor-aluno, sobre a importância de dominarem a

matéria e de atingirem os objetivos escolares;

• rituais de intensifi cação, através da tentativa de unifi car

os grupos. Estes rituais têm a função de favorecer o

fortalecimento emocional entre você e seus alunos, na

busca de reforçar valores. (MCLAREN, Peter);

• rituais de resistência, que desestruturam as rotinas

do seu dia-a-dia. Em algumas situações há presença

marcante de confl itos, de resistências intencionais.

HOMO SAPIENS

Expressão que signifi ca “homem sabedor”, isto é, dotado de razão,

capaz de produzir e de benefi ciar-se do

conhecimento.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica

78 C E D E R J

Na medida em que você detectar esses ritos ou rituais, poderá

compreender as mais diferentes mensagens emitidas por seus alunos, que

comunicam uma informação, propícias a interpretações, à comunicação

e à transformação.

Lembre-se, prezado aluno, de que a sala de aula é o “núcleo

estruturado” da escola, em função de ser ritualmente o espaço consagrado

do processo de ensino-aprendizagem. O aluno vai à escola para aprender,

para adquirir competências necessárias ao viver social. É isso que você,

seu aluno, a família e a sociedade esperam da escola.

Você já passou por vários locais na nossa interessante viagem.

Estudou o homem do ponto vista da Filosofi a, da História e da Psicologia.

Nesta aula você está tendo uma visão antropológica. A Antropologia

consiste no estudo do homem por inteiro, em suas múltiplas dimensões, e

em qualquer tipo de sociedade. O objetivo é não parcelar o homem, mas

vê-lo como de fato se situa em sua vida concreta: num espaço geográfi co,

cultural ou histórico particular, como um ser inacabado.

Existem cinco áreas principais na Antropologia. Embora cada uma

tenha suas especifi cidades, elas mantêm estreitas relações entre si.

A Antropologia Biológica estuda as variações dos caracteres

biológicos do homem, no tempo e no espaço; as relações entre o

patrimônio genético e o meio; os fatores culturais que infl uenciam

no crescimento e na maturação do ser humano. Ela pode auxiliar seu

trabalho quando você questiona os diferentes estágios psicomotores das

crianças situadas em diferentes meios culturais: na periferia, na zona

rural, na favela. Mais do que simplesmente estudar as formas de crânio,

peso, cor de pele, como originariamente esse campo antropológico fazia,

busca-se, hoje, examinar tudo o que se relaciona com o que é INATO e o

que é adquirido pelo homem.

A Antropologia Pré-Histórica dedica-se ao estudo dos vestígios

materiais deixados pelo homem em eras remotas, visando reconstruir as

sociedades desaparecidas, tanto em suas técnicas de organização social

quanto nas produções sociais e artísticas.

A Antropologia Lingüística dedica-se ao estudo da linguagem como

parte do patrimônio cultural, investigando, inclusive, a questão ampla da

comunicação e de seus meios e técnicas. A linguagem não é um fenômeno

simples e uniforme; são muitas as suas modalidades e formas, como a

linguagem das emoções, a teórica, a gestual, a verbal e a simbólica.

INATO

Signifi ca aquilo que já se possui por ocasião do nascimento, em contraposição ao que se adquire depois, nos meios em que se vive.

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Principais teóricos da Antropologia:

BOAS E MALINOWISKI

Fundadores da Etnografi a.

A Antropologia Psicológica consiste no estudo dos processos e

do funcionamento do psiquismo humano. A apreensão da totalidade

do homem se dá através dos comportamentos conscientes e

inconscientes.

A Antropologia Social e Cultural (ou Etnologia) investiga o homem

como ser social e tudo o que diz respeito a sua vida e ação em sociedade:

modos de produção econômica, técnicas, organização política, sistemas

de parentesco e de conhecimento, crenças religiosas, língua, expressões

psicossociais, criações artísticas.

Vale acentuar que a Antropologia consiste menos no levantamento

sistemático de cada um dos aspectos acima indicados do que em mostrar a

maneira como se relacionam, confi gurando a especifi cidade da sociedade

humana. Isso é o que caracteriza a já mencionada visão de totalidade

praticada por essa ciência do homem.

A Antropologia não é, portanto, apenas a investigação de tudo

que compõe uma sociedade; ela é o estudo de todas as sociedades

humanas e, conseqüentemente, do homem em sua diversidade bio-

psico-sociocultural.

De todas, a Antropologia Social e Cultural pode ser considerada a

mais abrangente, por relacionar-se com tudo o que compõe a sociedade.

Enquanto a vertente de investigação social valoriza a totalidade das

relações, a Cultural apreende o social através dos comportamentos

particulares dos membros de um determinado grupo, dos integrantes

de uma mesma cultura.

Tendo em conta que estamos num trecho de nossa viagem dedicado

à apresentação da Antropologia, que se constitui numa das formas de

estudo do ser humano, torna-se necessário compreender quem é esse

Homem transformado em objeto dos estudos antropológicos. Para tanto,

escolhemos a visão do sociólogo francês Edgar Morin.

DURKHEIM, MAUSS E GRIAULE

Antropologia francesa.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica

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Morin (1990), situando-se na linha

de uma Socioantropologia da COMPLEXIDADE,

apresenta os múltiplos aspectos do homem

como ser complexo.

O homem é um ser cultural (na nossa

primeira aula você conheceu a defi nição de

cultura); um ser que chegou à condição humana

pela evolução da cultura, um complexo que

abrange tanto as condições que lhe são dadas

(biológicas, ambientais) quanto aquelas que o

homem cria, ao construir o mundo humano

(aspecto que também foi abordado na primeira

aula de nosso curso, a primeira parada em nossa

viagem).

Tomar o homem nessa visão de complexidade, biopsico-

sociocultural, signifi ca adotar uma concepção diferente da visão biolo-

gista – que percebe a vida como algo fechado no organismo – ou da visão

antropologista – que tem uma concepção do homem como um ser isolado.

Para chegar ao ponto em que está – como homo sapiens –, o ser humano

percorreu um longo caminho, como mostra a viagem que fazemos nestas

aulas. Houve uma demorada e complexa evolução, não apenas biológica,

mas espiritual, sociológica, multidimensional, resultante das interferências

genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais.

Nessa linha do pensamento complexo, podemos citar Crespi,

quando afi rma:

A cultura, enquanto dimensão antropológica, pode ser considerada

na ordem do vivente como o resultado evolutivo da complexidade

crescente dos modos de relação e de comunicação intersubjetivos

e intermundanos. A especifi cidade do nível cultural com relação

ao nível natural pode ser percebida não somente na maior

complexidade do primeiro, mas também no seu grau mais elevado

de indeterminação (CRESPI apud TEIXEIRA, 1990, p. 85).

É esse ser complexo, contraditório, criativo, sempre sujeito ao

aperfeiçoamento, que o professor tem diante de si. Podemos dizer,

portanto, que o homem é, como já afi rmamos, um ser sempre inacabado,

passível de constante e eterna melhoria, condicionado pelas situações

em que vive, mas aberto a todas as possibilidades.

MALINOWISKI E RADCLIFF-BROWN

Antropologia britânica.

BOAS, KROEBER E R. BENEDICT

Antropologianorte-americana.

COMPLEXIDADE

Para Morin, a palavra lembra problema, não solução. É a qualidade

do que é complexo. O termo vem do

latim, complexus, que signifi ca “o

que abrange muitos elementos ou

partes”. Trata-se da congregação de elementos que são partes do todo. O

todo é uma unidade complexa, não se

reduz à mera soma das partes.

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São a Cultura, em geral, e a Educação, em particular,

que podem permitir a construção e o aperfeiçoamento do

homem e das civilizações. Nós pertencemos à denominada

Civilização Ocidental. Somos frutos de seus acertos e de

seus fracassos. Mudar o que precisa ser mudado exige

não apenas suprimir os confl itos, as desordens, em

nome de uma harmonia que não seria humana, incapaz de ser atingida,

sendo apenas um ideal. Os confl itos, as desordens, os desacertos geram

crises que, enfrentadas de forma criativa, podem signifi car pontos de

reorganização, de avanço, de melhoria na condição humana.

Leia atentamente o que nos diz Morin sobre a necessidade de

pensarmos sobre a complexidade da realidade física, biológica e humana,

uma vez que os fenômenos da ordem, desordem e organização estão

presentes no Universo, na vida, na evolução biológica:

Se olharmos para o céu, por exemplo, inicialmente teremos a

sensação da desordem com as estrelas dispostas aleatoriamente,

totalmente dispersas. Entretanto, se olharmos consecutivamente

o céu, noite após noite, constataremos uma ordem cósmica e

aparentemente imutável até mesmo na posição das estrelas. Nessa

conjugação ordem-desordem constatamos pois a organização do

Universo a partir das transformações e do acaso, haja vista que

estrelas desintegram-se, implodem e explodem e assim desaparecem,

enquanto outras surgem (MORIN, 1990, p. 152).

Você já deve ter entendido que a Antropologia preocupa-se com

o homem em todas as suas dimensões. Ela requer uma busca incessante

da sua compreensão como ser complexo, em sua diversidade, nas diferentes

culturas, na vida cotidiana de cada grupo, nas interações, na relação com o

Outro, que a Antropologia defi ne como alteridade. Através da descrição

e da observação, constrói-se um conhecimento fundado na percepção

do Outro, o que acaba sendo fundamental para a própria percepção do Eu.

Mais um filme pode nos ajudar a pensar, desta vez sobre a

alteridade: A volta ao planeta dos macacos. A história retratada no fi lme

é a de um mundo em que a relação se inverte: ao invés de os homens

dominarem os macacos, estes é que dominam, tornando-os seus escravos.

Os homens são tratados com brutalidade pelos macacos, e têm de lutar

desesperadamente para sobreviver. Localizada no ano de 2029, a trama do

fi lme conta como um astronauta, em missão de rotina pelo espaço, sofre um

acidente, indo parar nesse mundo primitivo dominado pelos macacos.

O mito é sempre uma repre-

sentação coletiva, transmitida

através de várias gerações e que

relata uma explicação do mundo

(BRANDÃO, Junito de Souza).

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica

82 C E D E R J

Os macacos apresentados no fi lme são muito inteligentes e têm,

inclusive, a capacidade de falar. Ajudados por alguns dos macacos

dissidentes e ativistas, os humanos se rebelam e promovem um ataque

aos animais que os dominam. O objetivo é alcançar um templo sagrado,

onde estão guardados segredos do passado e as indicações que garantirão

o futuro da humanidade.

O fi lme nos mostra, portanto, o homem do ponto de vista dos

macacos, os quais, em seu processo de dominação, impõem uma nova

visão de mundo a partir da cultura tecida... pelo próprio homem!

A partir de agora, você, como professor, poderá organizar seu

trabalho didático adotando a visão antropológica que lhe foi apresentada

nesta etapa de nossa viagem, isto é, levando em conta a cultura em que a

escola está inserida, o tipo de vida vivida por seus alunos, suas condições

socioeconômico, cultural e política, o momento histórico em que se

situam, e a visão de mundo que em conseqüência possuem.

Com isso, você estará compreendendo o seu aluno como um ser

por inteiro, isto é, nos seus sentimentos, interesses, medos, segredos,

sonhos, como um ser biopsico-sociocultural que pensa, que sente e que

age, necessitando ter suas aspirações, anseios e necessidades atendidas.

A escola e todos os outros espaços onde ocorrem as atividades

educativas, institucionalizadas e empreendidas de forma sistemática ou

assistemática, constituem-se em lugares indispensáveis para a realização

humana em toda a sua complexidade.

Você, como professor, torna-se um agente nesse espaço, um mediador

entre a cultura estabelecida e a que se constrói e se institui. Adotando um

olhar antropológico em relação a seu aluno, e a você mesmo, você poderá

perceber que o respeito à individualidade e ao espaço sociocultural são

fundamentais para uma prática educacional inclusiva. Tal prática signifi ca

que a escola, em vez de excluir os “diferentes”, numa atitude discriminadora

(em relação à condição socioeconômica, à raça, ao gênero etc.), deve oferecer

as possibilidades para que o educando receba, elabore e reelabore a cultura,

como ser humano ativo, criativo e complexo.

É hora de olhar para trás, observando por que caminhos, relativos

à visão antropológica sobre o Homem, nosso trem nos conduziu.

Vimos inicialmente que o estudo do homem levado a efeito pela

Antropologia considera-o em sua totalidade biopsico-sociocultural e que,

além disso, toma-o como um ser inacabado; aberto, portanto, a todas

as possibilidades.

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Em seguida, observamos que essa visão total proporcionada

pela Antropologia é construída a partir de áreas especializadas:

as Antropologias Biológica, Pré-histórica, Lingüística, Psicológica e Social

e Cultural, também denominada Etnologia.

Continuando a viagem, adotamos a visão do homem à luz da

Socioantropologia da complexidade, tal como proposta por Morin, bem

diferente das li mitadas e simplifi cadoras visões tradicionais biologista e

antropologista. O homem foi apresentado, então, como um ser cultural,

multidimensional, contraditório e criativo.

A seguir, essa visão antropológica acerca do ser humano permitiu

examinar o papel da Educação e do professor, sendo este considerado

um agente da humanização, encarando de forma criativa e renovadora

a ordem, a desordem e a organização, consideradas do ponto de vista

da complexidade.

Finalmente, você, professor, foi conclamado a assumir seu papel

tomando como base essa nova visão antropológica, tornando-se capaz

de olhar seu aluno como um ser total, ao qual devem ser oferecidas

todas as condições para a realização de seus desejos e satisfação de

suas necessidades.

Para ter a oportunidade de exercitar o que aprendeu, apresentamos

a você algumas sugestões:

1. Tente conseguir os dois fi lmes mencionados neste segmento

de nossa viagem. Assista a eles e procure identifi car: a) os

aspectos que poderiam ser abordados por cada uma das

cinco áreas da Antropologia indicadas anteriormente; b)

como, na trama dos fi lmes, esses aspectos são apresentados

de forma integrada.

2. Ainda com a ajuda da observação dos fi lmes, procure

descobrir alguns fatores mediante os quais a espécie

transformou os hominídeos em homens.

3. Imaginando-se com a incumbência de dar uma aula sobre

o que é a Antropologia e de que trata, escreva um pequeno

texto com a fi nalidade de explicar isso a seus alunos.

4. Faça uma pesquisa entre seus alunos, procurando saber

como eles vivem, quais os seus interesses, necessidades;

descubra do que mais gostam e do que menos gostam em

casa, na rua, na cidade e na escola.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica

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5. Procure conhecer, sobre seus alunos: o peso, a altura,

a idade e o modo como se alimentam; os hábitos de

higiene; com quem moram, onde moram e em que

condições; o tamanho da família; se e como fenômenos

de ordem social, por exemplo, a violência, os envolvem; a

preocupação com o ambiente; a questão da sexualidade;

o interesse pela arte, pela religião. Enfi m, descubra tudo o

que possa sobre a cultura de seus alunos. Não se esqueça

de que a proposta é a da compreensão de seu aluno por

inteiro, como defende a Socioantropologia.

6. Tente exercer uma escuta cuidadosa, sensível, de como

seus alunos percebem a si mesmos na sala de aula, quais

as tarefas que gostam de executar, quais aquelas em

que têm difi culdade; descubra como os deveres de casa

são realizados e como gostariam que as aulas fossem

ministradas. Procure saber quais os reais motivos que

levam seus alunos à escola. Depois de todas essas

informações coletadas, observe se vale a pena repensar

seu trabalho docente.

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AUTO-AVALIAÇÃO

• O que aprendi nesta aula modifi cou minha visão sobre o homem?

• A partir da releitura desta aula, tenho clareza acerca do que signifi ca considerar

o homem um ser biopsico-sociocultural?

• Consigo entender a importância que os estudos antropológicos têm para a

Educação e, particularmente, para as visões dos educadores sobre seus alunos?

• Procurei seguir atentamente as orientações contidas nesta aula?

• Li, reli e analisei cada um dos aspectos apresentados?

• Sinto necessidade de maiores explicações sobre o tema?

• Preciso do auxílio do professor-tutor?

• Li as notas inscritas na margem do texto?

Na próxima aula nosso trem vai parar numa Estação especial. Ela se chama

Pensando o Homem e apresenta uma síntese de tudo o que foi estudado até

aqui. Você poderá rever todas as concepções acerca do homem: a fi losófi ca, a

histórica, a psicológica e a socioantropológica. Terá, também, a oportunidade de

fazer exercícios, fi xando e consolidando o que foi estudado.

Boa viagem!

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8Pensando o Homem

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Rever concepções, conceitos e noções estudados

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OBJETIVOS Pré-requisito

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem

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PENSANDO O HOMEM

Os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência

dos sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras

soltas do alfabeto; o Homem é a sintaxe (ASSIS, 1994).

Neste momento, caro aluno, é chegada a hora de uma parada mais

prolongada em nossa viagem. Assim como nas longas viagens de trem,

são necessárias paradas para descanso e para BALDEAÇÃO, este é o momento

em que pararemos para repensar e rever tudo o que foi estudado até

aqui. Imagine-se, portanto, numa grande estação em que várias linhas

férreas se cruzam; viajantes das mais diversas procedências circulam,

embarcam e desembarcam; tipos os mais diferentes, os mais exóticos,

se apresentam a seus olhos. Para compreender toda a movimentação,

você deverá comparar o que já viu e tentar sintetizar e dar sentido à

complexidade que se apresenta. Para tanto, você deverá ter à mão todas

as aulas anteriores, das quais procuraremos destacar, nesta aula-síntese,

os pontos mais importantes.

No primeiro trecho de nossa viagem estudamos a visão fi losófi ca

acerca do Homem. Usando da curiosidade, do interesse amplo e

aprofundado que caracterizam a Filosofi a, olhamos pelas janelas do

vagão de nosso trem e nos fi xamos num ser em particular: o Ser Humano.

Sintetizando as indagações na pergunta “Que é o Homem?”, a Filosofi a

percebe o animal humano como um ser especial entre os seres; um ser

que constrói um mundo humano utilizando-se de sua capacidade não

somente de conhecer o mundo que o cerca mas de reconhecer-se nesse

mundo que constrói. Enquanto os outros animais reagem ao meio em

que vivem, o ser humano edifi ca um mundo humano, pleno de sentido

e de signifi cação, um mundo que, além de real, é também simbólico.

O Homem, na visão fi losófi ca, é um ser capaz de refl exão, a partir

da qual pode saber, além de simplesmente fazer.

Nesta Estação você, relembrando o que foi ensinado, perceberá

que a Filosofi a é o mediador refl exivo entre as diversas instâncias do saber.

Isto signifi ca dizer que a prática do fi losofar deve buscar uma integração

entre os diferentes tipos de conhecimentos que participam do processo

escolar de ensino-aprendizagem: os vários ramos científi cos que se

apresentam como diferenciados por objeto e método particulares.

Nas antigas estações situadas nos entroncamentos ferroviários mais importantes, os viajantes faziam

BALDEAÇÃOou seja, passavam de um trem para outro, que os levaria a seu destino fi nal; é o equivalente à conexão, nas viagens de avião.

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Portanto, estudando o Homem na visão fi losófi ca, você estará apto a

desenvolver e a aperfeiçoar a sua habilidade de análise e de refl exão

crítica, argumentando, operando através de conceitos e por regras de

passagem a níveis mais abstratos de pensamento.

Lembramos, nesta aula, a responsabilidade do professor frente ao

mundo do trabalho, revendo a visão marxista sobre a Educação e suas

relações com as atividades produtivas. Nessa parte, o destaque foi em

relação à não-redução do homem às necessidades, mas a preocupação

com o processo natural-pragmático de satisfação das necessidades, de

modo a não ampliar a alienação e contribuir para que o homem construa

a si mesmo e à sociedade.

Importa não separar o pensar do fazer, a teoria da prática, o

cérebro da mão, o estudo do trabalho e o ensino da produção.

Outro aspecto importante assinalado é que a condição humana é

fruto da vivência coletiva dos homens num mundo comum e em condições

sociais e históricas determinadas. A Educação é um processo que promove

a mediação entre cada indivíduo e a sociedade em que ele se insere, num

determinado momento histórico e em condições sociais determinadas.

Vimos também que uma das manifestações mais signifi cativas

desse universo humano, desse mundo de artefatos e de fenômenos

culturais resultantes da ação humana, é a Educação. Ela confi gura um

processo de humanização do Homem.

No percurso de nossa viagem que corresponde à aula

denominada Homem: visão fi losófi ca, assinalamos que a Educação

constrói modelos mediante os quais norteia a ação educativa. E foi

possível observar que, na Educação brasileira, são identificáveis

diferentes concepções de Educação – tradicional, escolanovista,

tecnicista e progressista, e que em cada uma delas pode-se perceber

uma determinada visão de homem. Na concepção tradicional, o homem

é considerado um ser físico e espiritual, constituído por uma essência

única e imutável, sendo sua fi nalidade, na vida, dar expressão à sua

própria natureza; na concepção escolanovista, o homem é um ser que

se encontra em contínua interação com o meio, sendo sua natureza

maleável, determinada pelo processo humano de ajustamento social.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem

90 C E D E R J

Nessa interação constante com o ambiente, o homem modifi ca o meio,

sendo também por ele modifi cado; na concepção tecnicista, o homem

é produto do meio, uma conseqüência das forças existentes em seu

ambiente, um ser cientifi camente explicável, sendo seu comportamento

governado por leis científi cas; na concepção progressista, o homem é

um ser situado num mundo material, concreto, social, econômico e

ideologicamente determinado, o qual lhe cabe transformar. A natureza

humana vai-se constituindo histórica e socialmente.

Seguindo em nossa viagem, percorremos outros dois trechos, nos

quais o Homem foi apresentado numa visão histórica, contemplando

os seguintes períodos: Antigüidade Oriental, Antigüidade Ocidental,

Mundo Medieval, Mundo Moderno e Mundo Contemporâneo. O

objetivo fundamental dessas aulas foi refl etir criticamente sobre os

princípios, valores, eventos e circunstâncias históricas e socioeconômicas

que serviram de base para as concepções acerca do Homem e de sua

Educação nos diferentes momentos históricos.

Na primeira dessas etapas de nossa viagem foi possível observar

que a dimensão tempo é importantíssima. Diferentes épocas históricas

geraram diferentes concepções de Educação, seus fundamentos, seus

objetivos, suas práticas. Como exemplo, podemos imaginar nosso trem

viajando pela Antigüidade Oriental e, depois, pela Ocidental. Pelas

janelas imaginárias, veríamos educações completamente diferentes, nesses

dois mundos culturalmente tão diferentes. Assim, no mundo Oriental,

observavam-se, na formação do Homem, a harmonia, a obediência, o

poder da palavra e da língua escrita e a conformação com a hierarquia.

No mundo antigo Ocidental, o pensar e o falar eram imprescindíveis ao

homem; a retórica era fundamental; o Homem é preparado para tornar-se

um cidadão, integrando-se aos destinos de sua PÓLIS.

Prosseguindo em nossa trajetória,

descortinou-se a visão da Idade Média. Nela,

observamos que a concepção de mundo era

fundamentalmente TEOLÓGICA. Constatamos

que o parâmetro do homem medieval era a

subordinação à fé. Santo Agostinho e São

Tomás de Aquino, fi lósofos que marcaram o

período, apregoavam que valores como honra,

justiça e fidelidade deveriam submeter-se

ao valor supremo: a crença em Deus.

PÓLIS

É o termo grego usado para “cidade”. Daí a expressão “cidadão”, usada até hoje para designar os que exercem os direitos e deveres correspondentes à cidadania.

TEOS

Signifi ca “relativo a Deus, ou à

transcendência”. Desse modo,

“teológica” é uma visão de mundo,

segundo a qual, em última instância,

o fundamento e a garantia de todos os

saberes é a divindade.

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O homem somente estava autorizado a conhecer o que não agredisse e

contrariasse a fé. O saber não necessitava ser transmitido, já que o homem

trazia o conhecimento dentro de si, fruto da iluminação proporcionada

por Deus, numa junção de fé e razão. Lembre-se, prezado aluno, que o

importante era não contrariar as verdades estabelecidas pela Igreja.

A História inscreve-se na dimensão temporal. E, como cantava

nosso inesquecível Cazuza, “o tempo não pára”. Aparentemente

parados nesta Estação de baldeação, usamos com sabedoria uma visão

retrospectiva, revendo os pontos fundamentais estudados nos trechos

percorridos até aqui em nossa viagem, vendo que bons tempos e tempos

marcados por momentos peculiares fazem parte do transcorrer da

História, construindo nossa memória social.

Continuamos a viajar na imaginação, fazendo o percurso permitido

pela memória, que nos oferece a oportunidade de refl etir acerca do Homem

na modernidade, época da superação da visão teocêntrica e da valorização

do Homem como centro do Universo – era da busca e da afi rmação da

razão como instrumento fundamental para o conhecimento. O Homem,

insatisfeito com as explicações sobre o mundo e as coisas vigentes até então,

busca novas verdades. O mundo não é mais concebido como estático, e

o homem passa a ser visto, ao mesmo tempo, como um ser em processo

constante de mutação e capaz de promover mudanças.

Os séculos passam e a razão, já proclamada na modernidade,

tem suas bases ampliadas no mundo contemporâneo, em função das

mudanças ocorridas nos campos político, econômico, social e cultural.

É o período do “homem iluminado” – a luz era a Razão Humana, do

homem livre que, orientado pela racionalidade, buscava a investigação,

a experimentação e a descoberta. O homem passa a viver sob a égide

dessas novas exigências. É livre, ao mesmo tempo em que vive sob o

jugo da força do capital e do trabalho. E necessita da Educação para

viver nessa nova civilização, que atribui valor ao progresso através

das descobertas científi cas e tecnológicas. A ação educativa se volta

para a formação numa dimensão que valoriza a efi ciência, a efi cácia

e a produtividade, esquecendo que, para além da dimensão racional e

intelectiva, o homem é um ser dotado de sensibilidade, que necessita viver

e conviver, numa relação que valoriza o estar junto, a ética, a estética e

o querer viver social.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem

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Agora observe a riqueza de detalhes da Estação em que nos

encontramos. Olhe em volta e veja: a vegetação bem próxima, aquelas

moitas de capim que vão se abrindo com o deslocar do vento — como

se fossem fl ores — os dormentes que permitem a junção dos trilhos, a

plataforma com seus bancos envernizados, o grande relógio de porcelana

branca, com numeração em algarismos romanos, fi xado na parede. Preste

atenção aos outros passageiros que aguardam para ocupar seus devidos

lugares nos vagões, além do condutor, do chefe do trem, do maquinista

e de outros funcionários da ferrovia, que, uniformizados, cumprem suas

tarefas, inclusive a de controlar o tempo de espera e o horário de saída,

orientando os passageiros, levando-os aos seus destinos — passageiros

com os mais diferentes sonhos, expectativas e desejos. Essa imagem

pode ser tomada como modelo da trajetória humana, com os homens,

em sua diversidade biopsico-socioeconômica, construindo aquilo que

denominamos História.

Precisamos nos deter um pouco mais nesta Estação para revermos

o Homem na visão psicológica e na visão antropológica. Não há pressa;

o trem não está na hora de partir.

No trecho da viagem dedicado à visão psicológica você estudou

dois grupos de teorias: a primeira, que concebe o homem como um

ente a-histórico, desvinculado das condições históricas e da realidade

social; e a segunda, em que o homem é considerado um sujeito situado

historicamente. A primeira está representada pelas teorias behaviorista e

gestaltista. A teoria behaviorista reduz o homem a uma única dimensão:

a do comportamento fi siológico; a gestaltista considera-o dotado de uma

essência universal que antecede as condições históricas. Num segundo

momento, você teve a oportunidade de conhecer um outro grupo de

teorias, baseadas na interação homem-mundo (sujeito-objeto), a partir

das contribuições de Piaget e Vigotsky.

Para Piaget, o conhecimento não procede nem da experiência

única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no

sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de

estruturas novas.

Daí resulta uma visão de Homem segundo a qual ele constitui um

sistema aberto, em reestruturação progressiva cujo estágio fi nal nunca

será alcançado por completo. O sujeito constitui com o meio uma

totalidade, na busca incessante de adaptação e de readaptação.

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Vigotsky formulou uma teoria que considera o mundo psíquico

diretamente vinculado ao mundo material e às formas de vida que os

homens vão construindo no decorrer da História. Nesta dimensão teórica,

existem somente homens concretos, situados no tempo e no espaço,

inseridos num contexto socioeconômico-cultural-político, enfi m, num

contexto histórico. O homem é considerado um sujeito que possui raízes

espaço-temporais: está situado no e com o mundo.

Lembre-se sempre de que este homem, sobre o qual tanto

conversamos, é o seu aluno e de que, na medida em que refl ete acerca

de cada uma dessas visões, você estará conhecendo-o melhor; esta deverá

ser a sua preocupação maior como educador.

Faltam poucos minutos para o trem partir para continuar sua

trajetória conduzindo-nos pela "Terra dos Fundamentos da Educação".

Das janelas de nosso trem serão descortinadas muitas outras coisas

importantes, desafi antes e indispensáveis para a formação de um professor.

Vamos, portanto, aproveitar o tempo que nos resta para rever o último

aspecto estudado até aqui: o Homem na visão socioantropológica.

Acreditamos que você tenha seguido nossa orientação e assistido

aos dois fi lmes: 2001: Uma odisséia no espaço e A volta ao planeta dos

macacos. Esperamos que você tenha percebido a intenção desse trecho

de nossa viagem: conhecer o ser humano, uma vez que a Educação deve

estar centrada na condição humana. E conhecer o humano exige respostas

a perguntas como: quem somos? Onde estamos? De onde viemos?

E para onde vamos?

Tivemos o cuidado de esclarecer que existem cinco áreas principais

na Antropologia, com estreitas ligações entre si. Nesta Estação de

espera dedicamos nosso tempo a recordar e, como diz a nossa música

popular, “recordar é viver...”. Então, consideramos necessário repassar

a apresentação das áreas da Antropologia, lembrando que nossa

preocupação está voltada para a Antropologia Sociocultural.

As variações dos caracteres biológicos do homem, no tempo e

no espaço, as relações entre o patrimônio genético e o meio, os fatores

culturais que infl uenciam no crescimento e na maturação do ser humano

são aspectos estudados pela Antropologia Biológica.

A Antropologia Pré-histórica estuda os vestígios materiais

deixados pelo homem de eras remotas, com o objetivo de reconstruir

as sociedades desaparecidas, suas técnicas de organização social e suas

produções sociais e artísticas.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem

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A Antropologia Lingüística estuda a linguagem como parte

do patrimônio cultural, tratando, inclusive, da questão ampla da

comunicação e de seus meios e técnicas. Esse campo especializado

demonstra que são muitas as modalidades e formas de linguagem, como

a das emoções, a teórica, a gestual, a verbal e a simbólica.

O estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano

é o campo da Antropologia Psicológica. É onde se busca a apreensão

da totalidade do ser humano, que se dá através dos comportamentos

conscientes e inconscientes.

E o que estuda, afi nal, a Antropologia Social e Cultural (ou Etno-

logia)? Ela investiga o homem como ser social e tudo o que diz respeito

a sua vida e sua ação em sociedade: modos de produção econômica,

técnicas, organização política, sistemas de parentesco e de conhecimento,

crenças religiosas, língua, expressões psicossociais, criações artísticas.

Ficou demonstrado que a Antropologia não é, portanto, apenas

a investigação de tudo que compõe uma sociedade; ela é o estudo de

todas as sociedades humanas e, conseqüentemente, do homem em sua

diversidade biopsico-sociocultural.

Observamos que a Antropologia Social e Cultural é a mais

abrangente, já que se relaciona com tudo que compõe a sociedade:

a vertente de investigação social valoriza a totalidade das relações; a

cultural apreende o social através dos comportamentos particulares

dos membros de um determinado grupo, dos integrantes de um mesmo

ambiente cultural.

Levando em conta esse panorama conceitual, importa que você

adentre o mundo da Antropologia, buscando compreender essa visão

de homem. Para isso, é preciso recordar alguns pontos fundamentais,

tais como:

• O hominídeo humaniza-se, isto é, torna-se homem. Pela

cultura e na cultura ele se realiza. É importante lembrar

que o conceito de homem envolve os princípios biofísico

e psico-sociocultural. O Homem é o que podemos

denominar “um ser por inteiro”, inacabado; aberto,

portanto, a todas as possibilidades.

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A Educação necessita do exame e do estudo da complexidade

humana. Se você não conhece seu aluno como um ser por inteiro, certamente

não conseguirá alcançar os objetivos educacionais que você pretende.

• Para compreender o modo de pensar, sentir e agir do seu

aluno, importa conhecê-lo e apreender o modo como ele

vive no grupo cultural a que pertence. A Antropologia

oferece este campo de investigação, e coloca nas nossas

mãos o enfoque etnográfi co. Este possibilita o estudo

dos rituais contidos na vida escolar, cujas características

e manifestações expressam uma multiplicidade de signi-

fi cados. Tentar entender tais signifi cados, caro aluno, é

fundamental para compreender, desde o funcionamento

da instituição escolar, até a trama simbólico-imaginária

que permeia o espaço educativo, nela incluída a relação

professor-aluno.

• Podemos afi rmar agora que, desde o primeiro trecho de

nossa viagem até esta Estação de baldeação, de espera,

tivemos como objetivo maior estudar o Homem, e estudá-

lo numa visão multidimensional, tal como o concebem a

Filosofi a, a História, a Psicologia e a Socioantropologia.

Nosso objetivo foi integrar, unir, articular as diversas áreas de

conhecimento do Homem, pois acreditamos num olhar transdisciplinar,

que exige o intercâmbio e essas articulações. Na transdisciplinaridade é

possível derrubar fronteiras e unir saberes, estabelecendo correlações.

Outra intenção foi a de promover relações entre as áreas do

conhecimento, entre as disciplinas, e a vida vivida na sua prática

educativa, de modo que você seja capaz de construir um saber uno sobre

o homem, um todo constituído por muitos e signifi cativos aspectos.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem

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AUTO-AVALIAÇÃO

• O que aprendi durante todas as aulas modifi cou minha visão sobre o Homem?

• A partir da releitura desta aula, tenho clareza acerca do que signifi ca considerar

o homem “numa visão multidimensional”?

Consigo entender a importância que os estudos fi losófi cos, históricos, psicológicos

e antropológicos têm para a Educação e, particularmente, para as visões dos

educadores sobre seus alunos?

• Tenho condições de entender e conferir a devida importância aos símbolos e

rituais que ocorrem no cotidiano escolar?

• Li, reli e analisei cada um dos aspectos apresentados?

• Sinto necessidade de maiores explicações sobre o tema “O homem numa visão

multidimensional”?

• Preciso do auxílio do professor-tutor?

Estou preparado para seguir viagem, parar em outras Estações, conhecer outros

desafi os e assuntos fundamentais para a minha atuação como educador?

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A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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9Os diferentes tipos de conhecimento a

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Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Identifi car e compreender as questões presentes no conhecimento.

• Identifi car e compreender diferentes tipos

OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

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Conquistamos o sentido da palavra pensar quando nós mesmos

pensamos. Para que tal empreendimento aconteça, devemos estar

preparados para aprender a pensar (HEIDEGGER, 1958).

OS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO

Senhor passageiro! Vamos entrar agora no percurso de nossa

viagem em que discutiremos o conhecimento humano. Esperamos

que aproveite bastante todas as delícias que os conhecimentos sobre o

conhecimento poderão lhe oferecer.

Faz parte da natureza humana proble-matizar

MA R T I N HE I D E G G E R

Filósofo alemão do século XX, considerado por muitos o maior fi lósofo daquele século e um dos responsáveis pelos novos rumos da Filosofi a contemporânea. Ele empreendeu toda uma crítica à tradição fi losófi ca, procurando novamente apresentar a importância capital de se colocar a pergunta pelo “ser” das coisas (ou seja: por aquilo que faz com que uma coisa seja o que é).

a realidade que a cerca, levantando questões

sobre a origem e o sentido das coisas naturais

e sobrenaturais, das nossas ações, intenções,

fi nalidades, da beleza e do feio. MARTIN HEIDEGGER

declarou que o ser humano era aquele que, por

excelência, podia se perguntar pelo sentido do

ser. Quando você diz “a porta é de madeira”,

você está, na partícula é (terceira pessoa do

verbo ser), afi rmando, em primeiro lugar, a

existência daquela porta. Naquela corriqueira

e simples frase, temos a imensa tarefa humana

de dizer não apenas à existência dos objetos mas

também a nossa necessidade de conhecê-los, de

nomeá-los, de CATEGORIZÁ-LOS.

“A porta é de madeira”. Como

sabemos que a porta é de madeira? Podemos

confiar na palavra da Ciência, que, mediante

métodos científicos, estabeleceu e provou que

a matéria-prima daquela porta tem uma certa

consistência que foi fixada como sendo a da

madeira. Podemos também aceitar a opinião

geral do senso comum, que reconhece aquela

matéria-prima como sendo a da madeira.

CA T E G O R I Z A R

Segundo o Dicionário de Filosofi a Ferrater Mora, a categoria é uma noção “que serve como regra para a investigação ou para a sua investigação lingüística em qualquer campo” (p. 114). Categorizar é distribuir por categorias. Exemplo: a porta é de madeira ou de ferro ou de alumínio ou de pedra.

PA R M Ê N I D E S

Pensador grego do século V a.C.. Afi rmou já naquela época que deveríamos nos preocupar apenas com as coisas que são. Vimos antes que o verbo ser afi rma, em primeiro lugar, a existência de algo. Assim, de acordo com esse fi lósofo, devemos nos preocupar em conhecer as coisas que existem. Se elas existem, de algum modo se ‘mostrarão’ para nós, sujeitos do conhecimento.

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Ou podemos também acreditar na palavra de algum mito religioso que

nos narrará que aquela matéria-prima foi forjada como madeira por

um deus (ou por deuses) e dada de presente aos homens para que estes

construíssem portas, barcos ou qualquer outro utensílio. Ou podemos

acatar a palavra da arte, que nos informa que naquela porta foi usada

madeira e que ela foi belamente trabalhada no estilo colonial brasileiro

(tal como nas portas de fazenda).

Você percebeu que esses exemplos são modos distintos de conhecer

um mesmo objeto? Sim? Então, ponto para você. A conclusão é essa

mesma: há diferentes tipos de conhecimentos presentes no nosso dia-a-

dia e que são utilizados por nós o tempo todo. O objetivo desta aula é

fazer com que você os compreenda para que possa identifi cá-los melhor

no seu cotidiano.

Contudo, antes de abordarmos os diferentes tipos de conhecimentos,

há algumas questões que precisamos esclarecer. Vamos a elas.

Em todo conhecimento há uma relação fundamental entre um sujeito que vai conhecer algo e um objeto

que vai se dar a conhecer. Podemos dizer, portanto, que o pressuposto fundamental do conhecimento é

o estabelecimento de uma relação entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido. Se esse

objeto não se mostrar de alguma maneira para o sujeito, ele não poderá ser conhecido.

!

Primeira questão

O pressuposto fundamental do conhecimento: a relação sujeito-objeto

Não importa a qual tipo de conhecimento você está se referindo.

Em todos eles você encontrará subjacente a pergunta “o que é isso?”.

Imagine que você esteja olhando para uma porta de madeira da sua

casa. Você pode falar: “isso é uma porta de madeira” porque algum

dia, apontando para aquele objeto, você fez a pergunta básica: “o que

é isso?”. E você aprendeu com alguém que aquele objeto era uma porta

de madeira.

Nem sempre esse objeto necessita ser acessível aos nossos

sentidos, ou seja, ele não precisa ter materialidade, pois podemos,

por exemplo, conhecer os objetos matemáticos, que são IDEAIS, e Deus

(intuído pela fé).

ID E A I S

O termo ideal aí se refere ao fato

de os objetos matemáticos

terem existência somente na

nossa mente, como idéias.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

100 C E D E R J

Segunda questão

A possibilidade do conhecimento: a resposta ao ceticismo

Associado a esse pressuposto fundamental temos, a seguir, o

problema da possibilidade do conhecimento. É possível conhecermos

alguma coisa? À primeira vista, essa interrogação pode parecer meio

estranha, mas o fato é que ela levanta sérias questões sobre o nosso

conhecimento da realidade. Poderíamos dar o nome de CETICISMO a essa

questão. O ceticismo apareceu logo no início da caminhada fi losófi ca

ocidental, há mais de 23 séculos e, de uma maneira ou de outra, com

algumas modifi cações, sempre tem reaparecido.

Quando dizemos que conhecemos algo, estamos, na realidade,

respondendo à dúvida que o ceticismo nos apresenta (a dúvida cética)

e afi rmando que é possível, sim, conhecermos um determinado objeto

ou um setor da realidade. Por exemplo, durante o período medieval a

maioria dos europeus acreditava na existência de Deus. Se você pudesse

voltar no tempo e perguntar: por que vocês acreditam em Deus? Qual é

a evidência que vocês têm para garantir que Deus existe e que é possível

conhecê–Lo? Os europeus, um tanto assustados, responderiam que as

vidas dos santos e os eventos miraculosos dão testemunho de Deus; que

as Sagradas Escrituras, a pregação do padre e os sacramentos da Igreja

afi rmam essa existência; que eles não teriam dúvida sobre a existência

de Deus por causa de tudo que a fé mostra para eles. E que as suas

perguntas, ademais, eram muito esquisitas... e pareciam até tentação

do Tinhoso...

No mundo contemporâneo, em contrapartida, aquelas duas

perguntas não causariam tanto alvoroço. Já as respostas dos medievais

europeus, sim. Elas deixariam muita gente com o cabelo em pé. Ou seja:

a nossa contemporaneidade ocidental mantém uma postura cética em

relação à existência de Deus e à possibilidade de vir a conhecê-Lo. Você

deve saber de muitas pessoas que duvidam da existência de Deus ou,

pelo menos, da possibilidade de vir a conhecê-Lo e com isso de afi rmar

alguma coisa sobre esse objeto.

Quando, ao contrário, aceitamos o fato de podermos conhecer

verdadeiramente um objeto, estamos respondendo à dúvida cética e nos

colocando contrários aos pressupostos fundamentais do ceticismo.

CE T I C I S M O

Doutrina inicialmente desenvolvida por Pirro (365-275 a.C.) e que, ao longo dos séculos, recebeu diferentes interpretações. O ceticismo de Pirro afi rmava que não é possível atingir alguma verdade nos campos da Filosofi a e da Ciência; que todas as ‘verdades’ teriam caráter subjetivo e que por isso não nos ofereceriam certeza sobre algo. Segundo Pirro, nem os sentidos nem a razão poderiam nos conduzir a alguma certeza. Os sentidos, porque nos induzem ao erro e são, por isso, péssimos testemunhos; a razão, porque as diferentes e contraditórias opiniões sobre os mesmos assuntos revelariam os limites de nosso intelecto para o conhecimento verdadeiro. Antes de Pirro, contudo, o pensador grego Górgias (485-380 a.C.) já manifestara uma postura cética ao afi rmar que “o ser não existe; se existisse, não poderíamos conhecê-lo; e se pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-lo aos outros”. A grosso modo, podemos dizer que o ceticismo nos indica a impossibilidade de conhecermos verdadeiramente algum objeto e/ou setor da realidade. Por exemplo: Deus e a dimensão do sagrado.

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Entretanto, o ceticismo possui um aspecto positivo na medida

em que nos desaloja de posições dogmáticas frente à realidade. Uma

posição dogmática, por exemplo, conduz-nos a aceitar ingenuamente,

sem nenhuma refl exão prévia, que podemos conhecer verdadeiramente

tudo. Por quê? Porque aceitamos o fato de não haver nenhum problema

na relação entre sujeito do conhecimento e objeto conhecido. Isso signifi ca

que a postura dogmática não leva em consideração a possibilidade de

nossos sentidos e intelecto possuírem algum limite. Você já pensou

que talvez não possamos conhecer tudo devido às limitações de nosso

intelecto e de nossos sentidos? Se você, um dia, cogitou essa questão,

então você foi “mordido” pela dúvida cética.

Uma dose de ceticismo não faz mal a ninguém, você não acha? Mas

não se esqueça: uma dose apenas. Se você acatar totalmente as premissas

do ceticismo, acabará mergulhado num mar de incertezas e afi rmando

que, por não ser possível conhecer nenhum objeto, não poderemos chegar

a algum acordo sobre alguma coisa.

Terceira questão

Por que conhecemos? Para que conhecemos?

Se concluímos que podemos conhecer,

então, por que conhecemos? Para que

conhecemos? A essas perguntas podemos dar

várias respostas. Com PLATÃO responderíamos

que a admiração nos leva ao conhecimento.

Em seu diálogo Teeteto (11, 155d), explicou

que “esta emoção, esta admiração é própria do

fi lósofo; nem tem a Filosofi a outro princípio além

deste...”. Assim passamos a querer conhecer

um objeto quando sentimos uma emoção,

uma admiração por ele, quando ele nos toca de

alguma forma e nos convida a conhecê-lo.

PL A T Ã O

(427–347 A.C.)

Filósofo grego nascido em Atenas. Em 387 a.C. fundou a Academia para ensinar aos jovens o caminho da Filosofi a. Teve Sócrates como mestre. Cerca de 30 obras suas, escritas sobretudo na forma de diálogos, chegaram até nós. É considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos e, para uma imensa tradição, o marco inicial da razão ocidental. Seus escritos são de uma beleza ímpar. Procure ler Apologia a Sócrates e O banquete, pelo menos. Seu Mito da caverna (Livro VII de A República) é um dos trechos mais comentados de toda a literatura ocidental. Afi rmou, dentre outros aspectos, a imortalidade da alma, a divisão dos mundos em mundo sensível e mundo inteligível (mundo das idéias), a supremacia deste último sobre o primeiro, o conhecimento verdadeiro se dando somente a partir daquilo que nossa razão pode nos levar a conhecer.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

102 C E D E R J

De certo modo, ARISTÓTELES na época

antiga e RENÉ DESCARTES no alvorecer da Idade

Moderna reafi rmaram a admiração, porém a

associaram à dúvida e à pesquisa. Na obra

aristotélica Metafísica (I, 2 982b e seguintes)

podemos ler: “Em vista da admiração, os

homens começaram pela primeira vez a fi losofar

e ainda agora fi losofam; de início começaram a

admirar as coisas que mais suscitavam dúvidas,

depois começaram, pouco a pouco, a duvidar

até das coisas maiores, por exemplo, das

afecções da lua e do que concerne ao sol, às

estrelas, e à geração do universo...”.

Descartes, no século XVI, em As paixões

da alma (II, 53), afi rmou que “quando se nos

depara algum objeto insólito e que julgamos

novo e diferente do que conhecíamos antes ou

supúnhamos que fosse, esse objeto faz com que

nós o admiremos e daí fi quemos surpresos; e

como isso ocorre antes que saibamos se o

objeto nos será útil ou não, a admiração me

parece ser a primeira de todas as paixões...”.

Portanto, para Aristóteles e para Descartes

a admiração acha-se na base da dúvida e da

pesquisa. Quando não conhecemos um objeto

ou um aspecto de algo já conhecido, isso nos

causa surpresa e partimos para tentar conhecer

e explicar o que nos é desconhecido.

AR I S T Ó T E L E S

(384–322 A.C.)

Filósofo nascido na Macedônia (em Estagira) e que passou quase toda a vida em Atenas. O maior de todos os discípulos de Platão e que se equiparou ao próprio mestre ao apresentar um novo olhar investigativo sobre a realidade, que se diferenciava em pontos capitais da proposta platônica. Sua imensa obra abrange campos hoje díspares do conhecimento: Lógica, Física, Biologia, Psicologia, História Natural, Ética, Política, Arte, História da Ciência. Fundou a escola Liceu (em Atenas), em 335. Foi preceptor de Alexandre, o grande, da Macedônia. De família de médicos da corte macedônica, sua refl exão fi losófi ca e científi ca está marcada por uma certa infl uência da observação empírica e um certo distanciamento do racionalismo do tipo matemático, tal como encontramos em Platão. Por isso acreditava, ao contrário de seu mestre, que todo conhecimento tinha início com os sentidos. Sobre os dados oriundos de nossa sensibilidade (isto é: nossa capacidade de sentir com os nossos sentidos) nosso intelecto deveria trabalhar e completar o processo do conhecimento. Assim, nosso intelecto poderia estabelecer conceitos seguros a partir dos dados fornecidos pelos sentidos. Aristóteles afi rmou também que “nada há no nosso intelecto que não tenha passado antes pelos nossos sentidos”. Sua fi losofi a é conhecida como realista, na medida em que recusou a doutrina platônica de o mundo terreno ser cópia imperfeita do mundo das idéias. Para o fi lósofo macedônico, o nosso mundo possuía plena realidade, que poderia ser conhecida por nós.

RE N É DE S C A R T E S

(1596–1650)

Filósofo francês considerado o pai da Filosofi a moderna. Foi também um grande matemático: devemos a ele, por exemplo, as coordenadas cartesianas e a Geometria Analítica. Sua obra, em tom autobiográfi co, fez da dúvida metódica (isto é: a dúvida como método; a dúvida como ponto de partida do conhecimento) sua “alavanca de Arquimedes”. Alinha-se à tradição fi losófi ca racionalista, pois, à maneira de Platão, também acreditou que nossa razão poderia conhecer sem o auxílio de nossos sentidos. Em sua obra se fazem presentes o racionalismo e o mecanicismo que marcarão os rumos posteriores da Modernidade.

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Aristóteles escreveu também, logo no primeiro parágrafo da

Metafísica, que todo ser humano naturalmente tem a necessidade de

conhecer. Ou seja, vivemos no mundo e possuímos o instrumental

intelectual e sensitivo que nos permite, naturalmente, conhecer e somos

impelidos para o conhecimento daquilo que somos e do mundo que

nos cerca.

Há também uma tradição que afi rma que o conhecimento é

fruto do nosso medo. Assim, buscaríamos o conhecimento para darmos

conta de nosso medo, uma vez que ele (o conhecimento) nos levaria à

dominação, ao controle do conhecido, à organização da experiência

humana, a fi m de que tivéssemos mais liberdade. G. CANGUILHEM explicou

que “se, pois, o conhecimento é fi lho do medo humano (espanto, angústia

etc.) seria, contudo, pouco clarividente converter tal medo em aversão

irredutível pela situação dos seres humanos que o experimentam em crises

que lhes é preciso superar enquanto vivemos. Se o conhecimento é fi lho

do medo, é para a dominação e a organização da experiência humana,

para a liberdade da vida”. Assim, buscaríamos o conhecimento para

vencer o medo e resolver os problemas práticos.

Já uma outra interpretação dos motivos

pelos quais conhecemos, bem exemplifi cada pelo

fi lósofo espanhol do século XX JOSÉ ORTEGA Y

GASSET, nos indica que não conhecemos somente

para resolver problemas práticos, uma vez que ao

lado do homem biológico e utilitarista encontra-

se um homem “luxuoso e desportista”, que se

compraz em conviver com o “inquieto ser dos

problemas” (ORTEGA y GASSET). Ortega y

Gasset recusou a possibilidade de reduzirmos os

problemas teóricos a problemas práticos e vice-

versa. Isso signifi ca que nos ocupamos igualmente

dos problemas práticos e dos teóricos.

Como você pode ver, há diferentes

possibilidades de respostas às perguntas “Por

que conhecemos?” e “Para que conhecemos?”.

Refl ita sobre cada uma delas e encontre você

mesmo sua própria resposta.

CA N G U I L H E M

Epistemólogo francês (estudioso da Filosofi a e História da Ciência) do século XX.

JO S É OR T E G A Y GA S S E T

Filósofo espanhol do século XX. Entre suas obras mais importantes podemos destacar O que é fi losofi a?; Origem e epílogo da fi losofi a; Meditacão sobre a técnica e outros escritos sobre Filosofi a e Ciência; Em torno a Galileu. Conforme Ferrater Mora, a última fase da refl exão orteguiana é marcada pela razão vital, compreendida como “vida como razão”. Isso não faz de Ortega y Gasset um racionalista estrito e sim alguém que afi rmou a vida humana não como aquela dotada de razão e sim como a que utiliza necessariamente a razão. Assim, o ser humano sempre, em qualquer tipo de vida, necessitará dar conta a si mesmo da maneira como vive. A razão, portanto, não é mais defi nida como uma operação intelectual, mas como algo que emerge com e da vida humana. Para Ortega y Gasset, o ser humano é a realidade radical, uma vez que todas as outras realidades somente são realidade dentro daquela. A vida humana não é uma coisa, mas um puro ‘acontecer’, um faciendum; algo que acontece incessantemente em nossa vida; algo que consiste em fazer-se a si mesmo continuamente.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

104 C E D E R J

Quarta questão

Origem do conhecimento

Se estamos motivados para o conhecimento, qual seria a origem de

nosso conhecimento? Em outras palavras: quais seriam as fontes de nosso

conhecimento? Qual é a origem de nossos conceitos, de nossas idéias? É

a nossa razão, exclusivamente? São os nossos sentidos, exclusivamente?

É a nossa razão associada aos nossos sentidos?

Em relação a essas questões também não há unanimidade. Quando

olhamos para a trajetória do pensamento ocidental, deparamo-nos

majoritariamente com dois posicionamentos fundamentais que, de certo

modo, ganham novas roupagens de tempos em tempos. Essas posições

seriam: o racionalismo e o empirismo.

O RACIONALISMO é um termo EQUÍVOCO, e não UNÍVOCO. Isso signifi ca

que ele vem sendo empregado de diferentes modos na história do

pensamento ocidental. Entretanto, um aspecto permanece comum

nessas maneiras diversas de o racionalismo se apresentar, e diz respeito

ao supremo valor dado à razão humana.

Aqui estamos entendendo o racionalismo como a doutrina que

afi rma sua crença e confi ança exclusiva no poder da razão humana

como o meio efi caz de nos levar a alcançar o conhecimento verdadeiro

acerca da realidade que nos rodeia. Em contrapartida, os sentidos são

encarados como instrumentos que nos induzem ao erro; os dados que

nos chegam pela experiência sensorial são vistos como motivos de

confusão e, portanto, não são confi áveis em matéria de conhecimento

verdadeiro. Por exemplo: mergulhe um bastão numa bacia d’água. Ele lhe

parecerá quebrado, apesar de estar inteiro. E aí? Você confi ará naquilo

que seus olhos estão ‘falando’ para você e afi rmará que o bastão está

quebrado? Ou não? Pense em outros exemplos do seu dia-a-dia que

possam corroborar a tese racionalista.

Por isso Descartes considerava que deveríamos apenas nos deixar

convencer pela evidência de nossa razão e esquecer os sentidos.

RA C I O N A L I S M O

Termo derivado do latim ratio, traduzido por razão, que, por sua vez, é a tradução mais amplamente usada da palavra grega lógos.

EQ U Í V O C O

Termo que pode ser usado em mais de um sentido.

UN Í V O C O

Termo que admite um único sentido.

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De acordo com o racionalismo, somente a razão humana, por

meio de princípios lógicos e de um encadeamento sensato de argumentos

a partir de AXIOMAS, pode atingir o conhecimento universalmente

verdadeiro.

Em geral, encontramos no racionalismo a admissão de que o

ser humano possui, de forma inata (isto é: desde nosso nascimento;

de maneira não adquirida pela experiência), os princípios lógicos

fundamentais necessários, no cotidiano, para a obtenção do conhecimento

verdadeiro mediante a razão.

O EMPIRISMO, por sua vez, é a doutrina

que estabelece que todas as nossas idéias têm

origem na percepção dos sentidos. Aristóteles

já explicava que “nada há no intelecto que

não tenha passado antes pelos sentidos”. John

Locke, pensador empirista inglês (1632-1704),

atualizou as palavras aristotélicas ao dizer

“nada vem à mente que não tenha passado

pelos sentidos”. Ambos têm a mesma posição

quanto à importância dos sentidos para o

conhecimento verdadeiro. Para eles os sentidos

não são fonte de ilusão e não há como descartar os dados da percepção

sensorial que chegam à nossa mente.

Aristóteles afi rmou que cabe ao nosso intelecto construir os

conceitos e averiguar e consertar, quando for o caso, as informações dos

dados sensoriais. A verdade e o erro não estão no nível dos sentidos e sim

no juízo, que é responsabilidade do intelecto. Portanto, para Aristóteles

não são os sentidos os responsáveis pelo erro e sim o intelecto, que não

cumpriu bem a parte do conhecimento que lhe cabia.

O empirismo recusa o INATISMO ao

entender que o ser humano, ao nascer, é uma

folha em branco. Isso signifi ca que nascemos sem

nenhuma idéia preestabelecida. Sobre essa folha,

no transcorrer da vida humana, serão escritas

as idéias, os conceitos. Assim, a experiência é a

fonte de nossas idéias e nosso conhecimento.

AX I O M A

Na Matemática são os princípios

indemonstráveis mas evidentes. Aristóteles

(nos Analíticos Posteriores I, 10,

76b; I, 2, 72 a 15) defi niu os axiomas

como “as proposições primeiras de que parte

a demonstração...” e ainda “os princípios

que devem ser necessariamente

possuídos por quem queira aprender o que

quer que seja...”

EM P I R I S M O

Termo derivado do grego empeiria e que signifi ca experiência sensorial. É muito comum o empirismo vir associado estritamente à corrente de pensamento inglesa dos séculos XVII e XVIII conhecida como empirismo inglês.

IN A T I S M O

Doutrina que afi rma que existem no ser humano conhecimentos ou princípios práticos anteriores à experiência.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

106 C E D E R J

Será que racionalismo e empirismo sempre estiveram em lados

opostos e irreconciliáveis? Será que nunca foi tentada uma síntese entre

essas duas perspectivas?

Certamente, sínteses foram construídas. Merece ser destacada, até

pela importância que ainda tem em nosso tempo, o apriorismo ou criticismo

desenvolvido pelo fi lósofo iluminista de língua alemã IMMANUEL KANT.

Para Kant, o conhecimento tem início com a experiência, mas

ela sozinha não é capaz de nos fornecer todo o conhecimento. É

necessário que o sujeito organize os dados oriundos da experiência.

Conforme a análise kantiana do ser humano,

este tem em si, de maneira A PRIORI, determinadas

estruturas que possibilitam a experiência e o

conhecimento. Essas estruturas são chamadas

por ele de condições de possibilidade, e estão

presentes tanto na nossa sensibilidade (isto é, na

nossa capacidade de ter sensações) quanto no nosso entendimento (no

nosso intelecto). A experiência fornece a matéria do conhecimento (os

conteúdos do nosso conhecimento) e nosso entendimento, ao organizar

esse conteúdo conforme suas próprias formas a priori (no dizer kantiano:

categorias do entendimento), nos dá a forma do conhecimento.

Assim, todo ser humano estaria igualmente marcado por uma

idêntica estrutura que permite ter sensações e formular conceitos.

Essa estrutura é aplicada no dia-a-dia e a partir dela nos movemos,

experimentamos, sentimos e entendemos o mundo.

Kant concilia empiristas e racionalistas na medida em que, com

os primeiros, afi rma o valor da experiência e que todo conhecimento

tem início com ela; com os racionalistas, concorda que possuímos uma

estrutura a priori. Daí o nome apriorismo.

Quinta questão

A relação ignorância/verdade/falsidade

Por meio do conhecimento pretendemos conhecer verdadeiramente

um objeto. Isso signifi ca que temos a pretensão de sair da ignorância em

relação a ele e passar a ter segurança naquilo que afi rmamos sobre ele.

A difi culdade que essa questão levanta diz respeito aos cri-

térios que tomamos para estabelecer o que é verdade e falsidade.

IM M A N U E L KA N T

(1724-1804)

Um dos maiores fi lósofos de todos os tempos. Nasceu e morreu em Königsberg. De formação protestante, dedicou-se, sobretudo, às ciências da natureza. Sua obra divide-se em dois períodos: pré-crítico e crítico. O segundo é marcado por sua saída do ‘sono dogmático’ por meio do ceticismo do empirista inglês David Hume. A partir daí empreendeu umas das mais importantes tarefas da modernidade: a avaliação crítica do conhecimento humano, que ainda hoje ecoa no nosso mundo, seja quando é afi rmada, seja quando é negada. Suas principais obras são Crítica da razão pura; Crítica da razão prática; Crítica do juízo do gosto; A religião nos limites da simples razão; O que é o iluminismo?; Fundamentação da metafísica dos costumes; Da paz perpétua, dentre outras.

A P R I O R I

Antes da experiência, de modo inato; opõe-se a a posteriori, ou após

a experiência.

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Na Aula 12, Estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento,

você verá, de um modo mais aprofundado, alguns desses critérios e

maneiras diferentes de a verdade e a falsidade serem concebidas. Aguarde

mais um pouco para saciar sua curiosidade.

RECAPITULAÇÃO DOS PONTOS ESSENCIAIS QUE VOCÊ DEVE TER FIXADO:

• em todo conhecimento é necessário que haja um sujeito que conhece e um objeto conhecido. Se não houver essa relação, não haverá conhecimento;• para poder conhecer um objeto é necessário que respondamos satisfatoriamente ao ceticismo, vencendo, assim, a dúvida cética;• diferentes maneiras de responder às perguntas “por que conhecemos?”, “para que conhecemos?”; • diferentes possibilidades de conceber a origem de nosso conhecimento;• em todo conhecimento há a relação entre verdade e falsidade do nosso julgamento sobre o que é verdadeiro e falso em um objeto.

!

TIPOS DE CONHECIMENTO

No início desta aula vimos que há diferentes modos de conhecer

a realidade. Demos o exemplo da frase “A porta é de madeira”. Agora

chegou o momento de desenvolvermos o tema dos diferentes tipos de

conhecimento: arte, senso comum, ciência, mito e fi losofi a.

1) Arte

“A arte foi feita para perturbar. A ciência, para assegurar”

(BRAQUE).

Quando pensamos em arte, vários aspectos nos vêm à cabeça.

Pinturas que estão em museus, nos livros de arte e até mesmo em

calendários. Divisão da “arte” em períodos históricos (arte antiga e

arte contemporânea, por exemplo). Discos, CDs, apresentações de

orquestras e bandas de rock. Romances, fi cções escritas. Arquiteturas

de igrejas. Quadros “com rabiscos” que qualquer criança faria e que

valem milhares de dólares. Pense em outros exemplos.

Você certamente está se perguntando: diante de tantos casos, o

que é, afi nal, arte? Assim como esses exemplos acima nos mostram que

podemos nos aproximar da arte de várias maneiras, também devemos

pensar que há modos diversos de conceber a arte.

Segundo um deles, afirmamos que a arte é um meio pelo

qual o ser humano se posiciona no mundo e, ao criar os objetos

artísticos, está construindo uma interpretação do mundo tão válida

quanto os discursos da Ciência, da História ou do senso comum.

Foto da catedral medieval gótica

Quadro de Volpi (série das bandeirinhas

juninas)

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

108 C E D E R J

Ou seja: por meio dessa interpretação do mundo, nós conseguimos dizer

o que é o mundo e ainda como ele poderia ser.

A arte e os objetos artísticos, então, são também uma representação

simbólica do mundo humano. Como representação simbólica, neles

encontramos o sentido atribuído pelo homem à realidade que nos cerca.

Como nós, seres humanos, somos criaturas que vivemos em sociedade, o

sentido e a interpretação do mundo presentes nos objetos artísticos são

também construídos social e historicamente. Por isso nos deparamos, na

arte de qualquer período histórico (por exemplo: a arte renascentista),

com aspectos que são comuns aos objetos artísticos daquele momento.

Sobretudo a partir do século XIX, a arte se desvencilhou da tarefa

de ter unicamente de apresentar a realidade “tal como ela é” e pôde,

então, deixar claro que além de dizer à realidade “como ela é”, os objetos

artísticos teriam também a condição de apresentar a realidade como ela

poderia ser. Ou seja: a arte nos abre à compreensão das várias outras

possibilidades do real. Você já pensou que talvez o real pudesse ser de

outra forma? Se não é, por que não é?

Essas duas perguntas nos colocam questões interessantes. O ato

de o artista (o criador) poder construir e apresentar a realidade de uma

outra forma recorda-nos sempre que também nós podemos construir e

apresentar a realidade de uma outra maneira. Por quê? Porque a realidade

não é algo pronto e acabado que recebemos, mas algo que estamos

sempre construindo, em meio a várias difi culdades e barreiras. Esse tópico

será abordado com mais profundidade em Fundamentos IV, quando

abordarmos a parte de Estética. Por isso, se você sentiu difi culdades em

entender as idéias contidas neste parágrafo, não se angustie em demasia,

porque voltaremos a elas mais tarde.

As obras de arte nos atingem por meio de nossos sentidos (nossa

sensibilidade) e de nosso intelecto. Assim, nós experimentamos, sentimos,

percebemos essas obras e também refl etimos sobre e a partir delas. A fi m

de melhor perceber e pensar os objetos artísticos, é necessário que nossa

sensibilidade e nosso intelecto sejam educados para tanto. Daí a importância

de museus, bibliotecas, livros, arte, galerias, apresentações musicais e teatrais

de qualidade, videotecas, fi lmotecas e da proteção, sobretudo por parte do

Estado, do patrimônio cultural que pertence a todos nós.

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Porém, de nada adiantarão esses elementos se cada

um de nós não perceber que é necessário freqüentar e

experimentar as obras artísticas. Ou seja: devemos

deixar a preguiça de lado ou ainda preconceitos que

nos impedem de nos aproximar das obras de arte. Você

já pensou nos seus próprios preconceitos em relação à

arte? Você já pensou ou falou algo do tipo: “esse rabisco

qualquer criança faz”; “como embrulhar uma ponte pode

ser arte?”; “eu não escuto BACH, pois me dá sono!”.

Assim, temos de ter disponibilidade para as obras

de arte, para que elas possam nos emocionar e ainda nos

fazer refl etir sobre nosso mundo. Essa disponibilidade nos

conduz, então, à educação de nossa sensibilidade e de

nosso intelecto. Voltaremos a esses temas em Fundamentos

IV, onde os analisaremos com mais densidade.

2) Senso comum

Nós pedimos com insistência. Não digam nunca: isso é

natural! Diante dos acontecimentos de cada dia. Numa

época em que reina a confusão. Em que corre sangue, em

que se ordena a desordem, em que o arbitrário tem força

de lei, em que a humanidade se desumaniza. Nunca digam

nunca: isso é natural! (PEIXOTO, 1979).

Pare para pensar no seu cotidiano. De preferência, esqueça o que

você aprendeu na escola. Olhe para o sol, por exemplo. Ele nasce e se

põe diariamente. Se você não conhecesse a teoria heliocêntrica, não lhe

pareceria óbvio que o sol gira em torno da Terra? Você sabe que a água

ferve. Afi nal, você gosta de um cafezinho e todo dia prepara um, não é

mesmo? O fogo esquenta a água, ela ferve, você acrescenta o pó e depois

‘passa’ o café. Veja sua família. Pai, mãe, fi lhos, tios, avós, interdição do

incesto. Tenho a certeza de que você pensa que toda família, de toda e

qualquer cultura e época, se forma desse modo. Pois é. No nosso dia-a-dia

temos tantas certezas e com elas respondemos rapidamente às perguntas

que nos são feitas. Quais certezas você tem? Você saberia dizer quais

seriam os fundamentos delas? Pense nisso. Discuta com seus colegas de

pólo essas suas certezas.

JOHANN SEBASTIAN BACH

(1685–1750)

Compositor alemão do período barroco. Pertenceu a uma tradicional família de músicos profi ssionais. Considerado um dos maiores compositores de todos os

tempos. Sua obra é um resumo brilhante da arte musical polifônica dos séc. XVI, XVII e início do XVIII. Igualmente, sua música é considerada o fundamento da

música posterior, apesar de Bach ter sido esquecido até o século XIX, quando

foi redescoberto por Mendelssohn, que regeu, em Berlim, em 1824, a primeira

exe cução pública da Paixão Segundo S. Mateus. Desde então, a música de Bach

voltou a ser tocada e apreciada. Hoje, ele é um dos mais populares compositores da grande música. Em sua imensa obra encontramos, dentre outras peças, 198

cantatas, concertos (os de Brandenburgo são os mais conhecidos), corais e

oratórios (como as Paixões segundo S. João e S. Mateus), missas, motetos,

sonatas, suites, A arte da fuga, O cravo bem-temperado (considerado a bíblia do pianista), fantasias, tocatas e fugas

(como a famosa Fuga em ré menor), a popularíssima Passacaglia em dó

menor, a Oferenda musical, Variações de Goldeberg.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

110 C E D E R J

Nós podemos nomear o conjunto dessas certezas de senso comum.

O senso comum é um conhecimento espontâneo, racional no mais das

vezes, construído pelos indivíduos de uma sociedade. Nós recebemos

esse conhecimento por herança e com ele nos situamos cotidianamente

no mundo. Ele é a nossa primeira leitura da realidade e por isso nos é

imprescindível. A partir dele construímos fi losofi as e ciências, uma vez

que estas, ao não nascerem do nada nem partirem do zero, precisam das

informações mínimas que o senso comum fornece a elas.

Podemos, então, dizer que o senso comum é um conhecimento

proveniente da necessidade que temos de responder e resolver os problemas

cotidianos; é transmitido de geração em geração; é superfi cial na medida

em que não se ocupa com os fundamentos presentes nos eventos e nos

fenômenos; ele não é sistemático (ou seja: não tem a sistematização

que encontramos na Ciência e na Filosofi a. Por isso, não acharemos

nele a defi nição de campos de saberes e objetos de conhecimento nem a

formulação de hipóteses ou teorias consistentes acerca do real.

Hoje em dia, pela facilidade de acesso à informação

(jornais, rádios, internet, televisão, revistas especializadas

ou não etc.), várias idéias científi cas e fi losófi cas estão,

com mais rapidez, sendo incorporadas ao senso comum.

Contudo, ele as absorve de maneira limitada, muitas vezes

de forma incompleta e até beirando o erro.

3) Ciência

O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz

o comportamento e inibe o pensamento. Este é um dos resultados

engraçados e (trágicos) da ciência. Se existe uma classe especializada

em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos

são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o

que os cientistas mandam (ALVES).

Se o senso comum não estabelece as relações necessárias entre

os fenômenos nem age de modo metódico e sistemático, o mesmo não

acontece com a Ciência.

O cientista busca conhecer a realidade que nos cerca de maneira

mais fundamentada, procurando as causas, os porquês e como as coisas

acontecem e, para tanto, lança mão de MÉTODOS rigorosos que garantam

uma certa objetividade. Em sua busca, o cientista procura saber e entender

quais são as relações necessárias presentes nos fenômenos, a fi m de que

seu conhecimento possa proporcionar um controle da realidade.

Isso não significa que o senso comum seja um falso conhecimento. Apenas signifi ca que ele, como um conhecimento superficial, não se preocupa com as relações necessárias presentes nos eventos.

!

MÉ T O D O S

Termo de origem grega. Meta+ hódos. Meta = por meio de/ através de; Hódos = caminho. Ou seja: a etimologia nos indica que o método é o caminho que devemos usar para alcançar o que pretendemos. No caso do conhecimento, o método é o bom caminho que utilizamos para atingir o conhecimento verdadeiro.

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Em toda atividade científi ca encontramos um método científi co.

Mas o que é um método científi co? Ele é um conjunto de procedimentos

lógicos, de observação e formulação de hipóteses e de verifi cação.

Nos métodos científicos temos: enunciado do problema;

formulação de hipótese; experimentação; conclusão ou generalização.

a) Enunciado do problema: o cientista enuncia um problema. Isso

signifi ca que ele retira da realidade um problema, que se transforma em

objeto de sua investigação. O cientista deve enunciar com clareza o seu

problema, ou seja, ele deve falar claramente sobre seu objeto.

b) Formulação de hipóteses: a hipótese é uma resposta prévia que

o cientista dá ao seu problema e que será posta à prova e avaliada ao

longo da análise científi ca. Assim, a hipótese é uma resposta ainda sem

comprovação que deverá ser testada cientifi camente.

c) Experimentação: nessa fase, o cientista testa a sua hipótese,

averiguando sua validade. Os testes experimentais da hipótese se dão

em um ambiente controlado pelo cientista.

d) Conclusão: é o momento da conclusão da investigação

científi ca em que o cientista averigua, corrigindo ou não, sua hipótese.

Se a hipótese tiver validade, ela se transformará em teoria comprovada.

Nela encontramos a generalização. Ou seja: nesse momento, o cientista

conclui sua investigação, e suas conclusões, a partir de então, poderão ser

aplicadas às situações semelhantes às testadas.

O cientista procura, portanto, entender e explicar os fenômenos

regulares que ocorrem no nosso cotidiano. Suas investigações resultam

em leis científi cas. Essas leis são proposições ou enunciados gerais das

relações necessárias e constantes presentes nos fenômenos. Na medida em

que essas leis abrangem uma grande quantidade de fenômenos regulares,

elas nos permitem ter uma visão global da realidade. Por outro lado, esse

conhecimento nos permite também poder prever acontecimentos, a fi m

de que possamos controlá-los. Assim, temos a grande meta: prever para

controlar, controlar para prover, que é bem resumida no pensamento de

Francis Bacon: “Saber é poder”. As relações entre saber e poder serão

analisadas em uma aula futura.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

112 C E D E R J

4) Filosofi a

Há uma história ligada ao fi lósofo e geômetra Euclides que

afi rma que ele escutou de um discípulo a seguinte pergunta:

“Mestre, o que ganharei aprendendo Geometria?” O

mestre respondeu, ordenando a um escravo: “Dê a ele

uma moeda, uma vez que precisa ganhar algo, além do

que aprende.”

Existe uma outra história que gira em torno de Tales

de Mileto, o pai da Filosofi a. Dizem que ele estava andando,

olhando para o céu e observando as estrelas até que caiu

num buraco e se machucou. No geral, essa história é contada

como “gozação” aos fi lósofos: eles andam tanto com a

cabeça nas nuvens, ou acima delas, que nem enxergam um

simples buraco.

Uma outra história encontra-se imortalizada na

comédia de ARISTÓFANES. As nuvens, em que ele satiriza

o fi lósofo Sócrates, que aí foi apresentado como um

SOFISTA e um corruptor de jovens, por cultuar divindades

estranhas ao olímpico panteão grego, tais como o éter, o

ar, a persuasão. Essa peça é uma crítica à educação nova,

proposta por SÓCRATES e também pelos sofi stas, e que

na opinião de Aristófanes estaria destruindo os valores

religiosos e morais tradicionais.

Outra história acha-se também associada a Sócrates,

que foi condenado, em 399 a.C., por um governo tirano,

a beber cicuta. Não seria interessante para o Governo dos

Trinta Tiranos que alguém, questionador como Sócrates,

andasse às soltas por Atenas.

SÓ C R A T E S

(470–399 A.C.)

seu interlocutor deixasse para trás suas velhas opiniões, constatando, então, que nada sabia. A partir daí, ele, ajudado por Sócrates, poderia “partejar” novas idéias. Devemos a ele a noção de conceito.

AR I S T Ó F A N E S

(450–385 A.C.)

O mais brilhante expoente da comédia clássica. Conservador, apoiou em Atenas o partido aristocrático porque testemunhou o fi m da grande Atenas e ainda o papel nocivo dos demagogos que arruinaram militar, cultural e economicamente sua cidade. Nas peças de sua primeira fase (Comédia Antiga) temos, por isso, a crítica sarcástica e corrosiva contra os aspectos socioculturais e as pessoas que julgou responsáveis pela derrocada de Atenas. Usou o teatro para satirizar inovadores do pensamento, como Sócrates, do teatro, como Eurípides, e generais corruptos, como Cleon. Com a derrota de Atenas para Esparta, o partido aristocrático assumiu o poder e decretou a censura às peças teatrais. Essa proibição fez com que Aristófanes revisse sua posição. De sua primeira fase temos: Os cavaleiros (satiriza Cleon), As nuvens (satiriza Sócrates e os sofi stas), As rãs (satiriza Eurípedes), Lisístrata. Da segunda fase temos Pluto e Assembléia de Mulheres. Platão colocou Aristófanes como um dos personagens de seu diálogo O banquete.

SO F I S T A

Do grego sophós, sábio. Sofi sta tornou-se sinônimo de mentiroso e “enrolador” graças aos ataques que um grupo de pensadores sofreu por parte de Platão. Platão possuía uma concepção de fi losofi a e de verdade. Por isto criticou severamente algumas posições que se distanciavam de seu projeto. Ao propor Sócrates como modelo de sábio e ao distanciá-lo de um determinado grupo de pensadores, Platão estava, em verdade, defendendo uma certa postura em relação à realidade. A partir de Platão, sofi sta passou a designar um certo tipo de ‘sábio’, que não alcançaria a verdade por deliberadamente conviver com a mentira e com o falar sobre as coisas de uma forma sem fundamento. Sofi sta passou a designar aquele que não sabe e fi nge que sabe, graças ao seu jogo de palavras.

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A partir da primeira história, a de Euclides, podemos perceber que

a Filosofi a é um caminho que não conduzirá necessariamente a ganhos

materiais. Qual o ganho que podemos ter com ela?

A história de Tales nos leva a pensar que a Filosofi a não tem uma

utilidade prática imediata. Mas a que ela nos levará? Às nuvens?

A terceira história nos revela que a atitude pedagógico-fi losófi ca

crítica de Sócrates incomodava os conservadores de Atenas. O que a

Filosofi a nos ensina?

A última história nos indica que os poderosos de então temeram o

questionamento socrático e que por isso Sócrates foi processado e condenado

à morte. Por que incomodava aquele que fi losofava? Por que a Filosofi a

incomoda tanto?

Pense nessas questões. Como você as responderia?

Respondendo a elas, estaremos nos aproximando do horizonte

da Filosofi a.

Vamos iniciar nossa refl exão investigando previamente a etimologia

da palavra Filosofi a. Esse vocábulo é formado por dois termos gregos:

Filo (ser amigo de, ser amante de), Sophia (sabedoria). Assim, Filosofi a

seria a perspectiva e o caminho daquele que procura o conhecimento e

que, por isso, se põe como amigo/amante da sabedoria. Segundo Platão, é

Eros (deus do Amor) que nos conduz por essa senda e por essa atividade.

Temos, pois, o amor pelo conhecimento a nos guiar em nossa tarefa de

conhecer, e é ele quem nos faz amantes do conhecimento e da verdade.

Nesse sentido, a Filosofia é o amoroso convite (o caminho, a

perspectiva) à refl exão crítica da realidade, a partir de uma fundamentação

racional, na qual procuramos conhecer, por um lado, o mundo em suas

estruturas íntimas e últimas e, por outro, nosso próprio modo de conhecer

(as condições e princípios do nosso conhecimento verdadeiro) sem lançarmos

mão da experimentação, da tecnologia e, ainda, da fé. O aparato racional e

sensível (relativo aos sentidos) é o instrumental empregado dentro de uma

coerência de raciocínio.

Marilena Chauí comenta a Filosofi a como pensamento sistemático:

“O que signifi ca isso? Signifi ca que a Filosofi a trabalha com enunciados

precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre enunciados,

opera com conceitos e idéias obtidos por procedimentos de demonstração

e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado.

Somente assim a refl exão fi losófi ca pode fazer com que nossa experiência

cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

114 C E D E R J

Não se trata de dizer ‘eu acho que’, mas de poder

afi rmar ‘eu penso que’” (Chauí, p. 15).

Retomando as perguntas anteriores. Qual o

ganho que teremos com esse amoroso convite? A

que ele nos levará? O que ele nos ensina e propõe?

Por que ele incomoda tanto, a ponto de muitas

vezes ser perseguido e SER PROIBIDO?

A possibilidade de pensarmos criticamente

a realidade, eis o principal ganho. O que signifi ca

isso? Que, por meio da atitude crítica, podemos,

em primeiro lugar, dizer não ao que o senso

comum estabeleceu como ‘certo e verdadeiro’,

aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos jargões

corriqueiros de nossa experiência cotidiana.

Em segundo lugar, podemos questionar o

que as coisas, os valores, os fatos, os compor-

tamentos, os eventos são. Segundo NIETZSCHE,

nós estaríamos nos libertando do rebanho que o

status quo quer que sejamos. Se você achar que

isso vale mais do que o saco de moedas de ouro

que Euclides poderia lhe dar, então você começou

a percorrer o caminho fi losófi co.

A Filosofi a não nos pede que renunciemos ao

mundo e que passemos a viver nas nuvens. A imagem

do fi lósofo apartado de tudo e de todos, isolado nas

nuvens ou ainda em sua torre de marfi m contraria

completamente a atividade fi losófi ca. A pergunta

fi losófi ca por excelência – “o que é uma coisa?” – é

dirigida às coisas do mundo, à realidade que nos

cerca. Nada mais mundano que a Filosofi a.

Contudo, na medida em que o fi lósofo

busca conhecer o seu entorno, ele acabará

se afastando dos pré-conceitos e do jargão

do senso comum, pois procura ver, de

modo mais fundamentado e sistemático, a

realidade para além das meras aparências.

SE R P RO I B I D O

Na História recente do Brasil, após o golpe militar de 1964, consumou-se a retirada da Filosofi a (bem como da Sociologia) dos currículos do Ensino Médio. As faculdades de Ciências Humanas, em especial os cursos de Filosofi a e Sociologia, estiveram na linha de frente dos que sofreram interdições e invasões. Foi muito recentemente que a Filosofi a e a Sociologia voltaram aos currículos do Ensino Médio, e mesmo assim apenas durante um ano cada.

FRIEDRICH W. NIETZSCHE

(1844–1900)

Filósofo alemão que empreendeu uma consis-tente crítica à civili-zação ocidental como um todo. Para muitos é considerado o filósofo que abriu os

novos rumos da fi losofi a posterior. Já em A origem da tragédia, indicou o início do triunfo do mundo abstrato do pensamento e da ruína da reconciliação entre embriaguez e forma, presente na tragédia grega. A partir daí, o mundo ocidental teria tomado um caminho apenas racional, provocando a separação dos princípios apolíneo (clareza, ordem, harmonia) e dionisíaco (embriaguez, desordem, música), que seriam complementares. Foi ferrenho combatente da metafísica e retirou do mundo supra-sensível sua efi ciência. Essa oposição tem sentido ontológico (lutou contra a teoria das idéias, a separação do mundo em mundos supra-sensível e sensível, a valoração do primeiro e o esquecimento do segundo) e moral (combateu o cristianismo, pois este ao ver o mundo como vale de lágrimas causou seu desprestígio e esquecimento em prol do além-mundo, considerado como o mundo autêntico e verdadeiro). O cristianismo seria uma espécie de ‘platonismo para o povo’ que impôs, dentre outras coisas, uma moral de escravos e fez da renúncia e da resignação virtudes. O cristianismo teria horror a tudo o que é matéria, sentidos, felicidade, beleza e por isso seria vontade de aniquilamento e hostilidade à vida. Propôs, por isso, em sua obra, a transvaloração dos valores ocidentais cristãos. Destacamos as obras: A genealogia da moral; Para além do bem e do mal; Assim falou Zaratrusta; Aurora.

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Por isso, ele terminará por estabelecer determinadas categorias de análise

e todo um linguajar técnico próprio à Filosofi a.

Em geral, para quem está fora do caminho da Filosofia, esse

procedimento parece ‘coisa de maluco’ ou ‘de quem não tem mais nada o que

fazer’. Esse é um julgamento apressado e, no mais das vezes, preguiçoso.

Não se esqueça de que o fi lósofo percebeu que é possível ver a

realidade de uma outra maneira. Você se lembra do ganho da questão

anterior? Pois é. O fi lósofo compreendeu o valor de conhecer a realidade

de maneira mais fundamentada, sistemática e completa. A Filosofi a nos

dirige, pois, à realidade do mundo.

Mergulhada nessa mundaneidade, a Filosofia nos propõe o

caminho do pensar criticamente a realidade. Ou seja, ela nos joga em um

outro olhar lançado sobre a realidade. Sócrates e outros foram atacados

por Aristófanes, naquele momento de Atenas, porque eles ousaram ver

a realidade por meio do lógos e não mais dos mitos e da tradição, que

eram as óticas do status quo (do senso comum). A percepção crítica

da realidade incomoda tanto o senso comum (como vimos na questão

anterior) quanto os poderosos, que geralmente invocam e usam o senso

comum a favor da manutenção de seu poder.

Chegamos à última pergunta. Por que a Filosofia incomoda

tanto? Justamente por provocar o senso comum, por desalojar as

certezas cotidianas de seu pedestal, por mostrar o uso ideológico dessas

certezas na manutenção de poderosos e das visões de mundo majoritárias

(hegemônicas). Por isso Sócrates foi condenado: ele ousou ver diferente.

A Filosofi a é um convite. Qualquer um pode aceitá-lo ou não.

Quando aceitamos, passamos a viver criticamente nossa realidade. Para

tanto basta deixar para trás o pensar ingênuo e fragmentado do senso

comum. Está nas suas mãos esse convite. Você vai abri-lo e aceitá-lo?

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

116 C E D E R J

5) Mito

O que é mito?

Você já deve ter escutado a pergunta: quem é seu mito? Ou

em outra ocasião já deve ter ouvido alguém falar em mitos do cinema

(Marilyn Monroe, por exemplo), do esporte (Pelé, Ayrton Senna),

da televisão, do teatro, fi guras míticas (Gandhi, Madre Teresa de

Calcutá), e de mitos gregos (que são os mais conhecidos em nossa

cultura ocidental). Você já escutou com certeza os nomes de Zeus,

Atenas, Afrodite/Vênus, Hércules. Além dos mitos gregos há ainda os

de outros povos, como por exemplo, Adão e Eva (nomes ligados ao

mito da criação aceito por judeus e cristãos); Thor e Odin, da mitologia

germânica; Gilgamesh, da mitologia sumeriana.

Você já deve ter percebido também que muitas vezes mito aparece

como sinônimo de lenda, como uma fi cção, ou como algo sem lógica. Se

alguém nos fala: “ah! Isso é mito!”, essa frase está querendo nos alertar:

“não se preocupe com bobagens, relaxe, pois isso não existe”.

Assim, em torno do termo mito circulam muitas idéias: tradições

religiosas antigas (algumas até desaparecidas), grandes fi guras que se

sobressaíram em suas atividades, fi cção, falta de lógica, irracionalidade,

mentira, inexistência.

No século XX, graças a estudos de mitólogos e historiadores da

religião, o mito passou por uma reabilitação. Por isso, hoje ganhamos

a compreensão do mito como uma narrativa sagrada verdadeira de

um acontecimento passado nos tempos primordiais, fora da História,

que apresenta a criação total ou parcial de algo por parte de seres

sobrenaturais ou de apenas um ser sobrenatural, que é aceita por um

determinado povo.

Entretanto, essa reabilitação teórica do mito ainda não alcançou

todos os círculos intelectuais nem atingiu o senso comum. Isso explica

o fato de o mito continuar a ser apresentado, no mais das vezes, como

sinônimo de lenda.

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R E S U M O

A arte é um meio pelo qual nos situamos e interpretamos o mundo.

A arte é também uma representação simbólica do mundo. O sentido que aí

encontramos é construído socialmente.

A arte nos recorda que podemos construir a realidade de modos diferentes.

As obras de arte nos atingem por nossos sentidos e razão. Daí a importância da

educação de nossa sensibilidade e de nosso intelecto.

O senso comum é a nossa primeira leitura da realidade. É um conhecimento

espontâneo, fragmentado, superfi cial e não sistemático, mas isso não signifi ca

que ele seja um conhecimento falso.

O conhecimento científi co procura as relações necessárias entre os fenômenos.

É um conhecimento metódico, sistemático e fundamentado.

O conhecimento científi co explica os fenômenos regulares e resulta em leis

científicas que explicam as relações necessárias e constantes presentes nos

fenômenos.

A Ciência procura prever acontecimentos futuros para melhor controlá-los.

A Filosofi a é uma refl exão crítica da realidade, que investiga o mundo em suas

estruturas íntimas e últimas e ainda o próprio conhecimento, sem utilizar a

experimentação, a tecnologia e a fé.

A Filosofi a é um conhecimento sistemático que opera com enunciados precisos

e conceitos encadeados logicamente por meio de demonstração e prova.

Esse conhecimento exige uma fundamentação racional do que é pensado e

enunciado.

A Filosofi a é um conhecimento que incomoda porque provoca nossas certezas

cotidianas e por mostrar o uso ideológico dessas certezas para a manutenção do

status quo.

Mito é uma história sagrada que narra a criação de algo por seres sobrenaturais.

Os eventos narrados aconteceram fora da História, no início dos tempos.

Em torno do vocábulo mito, circulam as idéias de lenda, fi guras míticas, tradições

religiosas antigas, falta de lógica, fi cção.

No século XX, o mito começou a ser reabilitado teoricamente.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento

118 C E D E R J

EXERCÍCIOS

1. Por que o pressuposto básico do conhecimento é a relação sujeito-objeto?

2. Por que para haver conhecimento é necessário responder ao Ceticismo?

3. Comente as posições platônica e de Ortega Y Gasset quanto à questão “Por

que e para que conhecemos?”.

4. Aponte as diferenças entre Racionalismo e Empirismo quanto à origem do

conhecimento.

5. Explique a diferença entre o senso comum, a Ciência e a Filosofi a.

6. Por que o Mito e a Arte também são formas de conhecimento? Explique-as.

AUTO–AVALIAÇÃO

Esta aula permitiu a você conhecer os principais problemas envolvidos no conhe-

cimento? Quais seriam eles? Ela também lhe permitiu conhecer e distinguir os

diferentes tipos de conhecimento? O que você poderia dizer sobre o conhecimento

da Filosofi a, do Mito, do Senso Comum, da Ciência e da Arte? Está tudo certo? Então,

você pode continuar tranqüilamente sua viagem. A próxima parada é a Estação da

Ciência da História. Continue a fazer uma viagem saborosa pelo mundo do saber.

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Page 112: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

10A Ciência na História

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Mostrar as diferentes concepções sobre a ciência, na História.

• Refl etir, criticamente, sobre a produção científi ca nos diferentes contextos históricos.

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OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História

120 C E D E R J

INTRODUÇÃO

Continua a nossa viagem; avistamos

uma nova paisagem da janela de nosso

trem. Conhecemos os diferentes tipos

de conhecimento; percebemos que o

conhecimento científi co é considerado uma

importante produção do saber humano, que

tem possibilitado transformar, às vezes

profundamente, a realidade; por isso,

precisamos conhecer como a Ciência vem

se transformando ao longo da História.

O poder de dominar a matéria e de fazer coisas, da

ciência, acarreta nos não-iniciados uma atitude de

submissão. É por isso que ela exerce sobre muitos

um poder quase mágico... Os cientistas são vistos

como se fossem os proprietários exclusivos do saber

(JAPIASSU, 1975).

Atualmente o conhecimento científi co parece ser um conhecimento

que está acima do bem e do mal, porque quando queremos afi rmar que

algo é verdadeiro, freqüentemente recorremos à Ciência. Por que tomamos

essa atitude? Como podemos caracterizar esse conhecimento? A ciência

nasce como um conhecimento racional que busca compreender a realidade

profundamente, investigando as causas dos fenômenos que constatamos em

nosso cotidiano. Por exemplo: a partir de nossas observações cotidianas,

poderíamos, aliás, pensar que a Terra é imóvel e o sol se moveria ao seu

redor, uma crença que durou séculos. No entanto, COPÉRNICO, no século

XVI, formulou a teoria heliocêntrica, na qual a Terra e os demais planetas

giravam em torno do sol.

O CONHECIMENTO COMUM é pleno de certezas e verdades que

nem sempre nos revelam a causa, a origem ou a constituição de um

determinado fenômeno. A Ciência deve desconfi ar das verdades e certezas

de nosso cotidiano. A curiosidade e a busca devem ser os guias daquele

que faz investigação científi ca. Devemos problematizar, libertar-nos das

superstições e das certezas absolutas.

NICOLAU COPÉRNICO

Veja informações na

Aula 4.

CONHECIMENTO COMUM OU SENSO COMUM

Veja informações na

Aula 9.

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Page 114: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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O conhecimento científico se caracteriza por ser: rigoroso,

objetivo, generalizador e, também, buscar a regularidade e a constância

dos fenômenos e estabelecer as relações causais entre fatos. Mas essas

características não devem ser vistas de modo rígido, porque a Ciência

lida com múltiplos objetos ou fenômenos na sua investigação. Podemos

escolher como objeto de investigação uma planta, um animal, um

planeta, a mente humana, uma comunidade etc. Como faríamos a nossa

investigação? Com o mesmo método, utilizando os mesmos caminhos

de investigação? Será que não deveríamos observar a especifi cidade do

objeto investigado, para escolher como deveríamos conhecê-lo? Um

fenômeno humano deve ser visto do mesmo modo que um fenômeno

da Botânica? Essas questões têm atravessado a História e preocupado

aqueles que buscam compreender mais profundamente por que tal fato,

fenômeno ou prática acontece.

A Ciência se renova e se modifi ca a cada momento; seus modelos

mudam devido aos avanços do conhecimento. A razão humana se

transforma através dos tempos; por isso, precisamos conhecer como o

conhecimento científi co se apresenta nos diferentes períodos históricos.

Será que a Ciência, ao longo da História, foi sempre vista da mesma

maneira? Será que o mundo antigo concebeu esse tipo de conhecimento

do mesmo modo que o mundo moderno? Se houver diferença, será que

a Ciência antiga é mais ou menos científi ca do que a que fazemos hoje?

Pense nessas questões.

Para melhor respondermos a essas perguntas, teremos que

investigar como a Ciência vem sendo produzida, ao longo da História,

no mundo ocidental.

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Page 115: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História

122 C E D E R J

A CIÊNCIA GRECO-ROMANA E MEDIEVAL

É evidente, então, que necessitamos adquirir a ciência das causas

primeiras (pois dissemos que sabemos cada coisa, quando cremos

conhecer a causa primeira).

ARISTÓTELES

No contexto das civilizações antigas, a grega foi a que desenvolveu

um tipo de reflexão e de conhecimento racional desvinculado do

CONHECIMENTO MÍTICO, que acabou por desembocar no surgimento da

Filosofi a, no século VI a.C.

Os pensadores que primeiro se aventuraram na procura de

respostas diferentes daquelas dadas pelos mitos são hoje mais conhecidos

como pré–socráticos ou, ainda, como pensadores originários.

A contribuição dos pré-socráticos

No alvorecer da Filosofi a, a Natureza foi o objeto de estudo por

excelência. A preocupação dos primeiros fi lósofos girava em torno do

conhecimento do cosmos ou da PHYSIS. Eles começaram a investigar qual

ou quais princípios estariam presentes em todas as coisas existentes no

cosmos ou na physis. Passaram a investigar a arché da physis. Daí essa

Filosofi a ser conhecida como Cosmologia.

A Cosmologia – o modo pelo qual a Filosofi a emergente se

apresentou – consiste na explicação racional do cosmos: o mundo

ordenado a partir da determinação de um princípio racional e originário,

fonte de todas as coisas e da ordenação presente nelas. Por meio da

Cosmologia, a Filosofi a buscava ser a explicação racional sobre as coisas,

um pensamento que conferia ordem à realidade.

Esses pensadores perceberam que toda a multiplicidade e diferença

existentes no nosso mundo (por exemplo: várias árvores, mares, pessoas,

animais, estrelas etc.) deveriam estar fundamentados em um ou alguns

princípios que seriam as causas e os fundamentos de tudo que existia.

As respostas foram variadas e diferentes. Vejamos algumas, encontradas

pelos pré–socráticos para essas questões:

ARISTÓTELES

Ver Aula 9.

CONHECIMENTO MÍTICO

Veja informações na Aula 9.

PHÝSIS

Esse termo grego foi traduzido pelos latinos por natura (Natureza). Assim, os pré-socráticos foram os primeiros estudiosos da Natureza. Aristóteles os chamou de fi siologoi (físicos). O termo phýsis deve ser entendido, no mundo antigo, em três sentidos: processo de nascimento, de produção; disposição natural de cada existência, o modo de ser de cada existência; a força criadora de todos os seres.

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Page 116: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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TALES DE MILETO (fi ns do séc. VII e início do séc. VI a.C.), considerado

o pai da Filosofi a, afi rmou que o princípio era a água, pois percebeu

que sem a umidade nada sobrevivia. Empédocles de Agrigento (484–

421 a.C.), por sua vez, explicou que tudo era constituído pelos quatro

elementos – água, terra, fogo, ar – que entravam na constituição das

coisas em dosagens diferenciadas. O amor e o ódio eram as forças que

associavam e dissociavam os elementos.

Os atomistas, por sua vez, pela primeira vez intuíram e afi rmaram

que as coisas eram compostas pela reunião de um derradeiro elemento:

o átomo. Demócrito de Abdera (cerca de 460–400 a.C.) e Lucrécio de

Mileto (cerca de 500 a.C.) afi rmaram que o atomismo signifi cava a

erradicação do medo diante da morte e da superstição, porque, com

a separação dos átomos, haveria o fi m, e depois desse não haveria nem

penas e nem recompensas. Assim, por que temer a morte?

Os pré–socráticos foram os primeiros que construíram uma

imagem da Natureza a partir da própria Natureza. Como eles fi zeram

isso? Simples. Eles aboliram as metáforas simbólico–alegóricas (presentes

nos mitos) e naturalizaram o mundo. Dentro dessa idéia de Natureza, os

deuses e suas infl uências foram desaparecendo até sumirem por completo.

Com os pré–socráticos, portanto, a physis passou a ser pensada não

mais por meio das explicações e imagens mitológicas, mas por meio de

explicações racionais.

Por que eles fi zeram isso? Porque eles olharam de uma maneira

diferente para a realidade que os cercava e propuseram um novo caminho

para conhecermos essa realidade, que não mais se realizava a partir das

lentes dos mitos e sim do lógos fi losófi co–científi co. Isso signifi ca que as

respostas dadas pelos mitos e pela religião não estavam mais respondendo

satisfatoriamente a todos.

Você sabia que esses fi lósofos, no geral, foram uma mescla de

fi lósofos, astrônomos, matemáticos, físicos? Por quê? Porque as áreas

de conhecimento ainda estavam sob as asas da Filosofi a. Ou seja: elas

ainda não tinham se emancipado e se tornado áreas de conhecimento

distintas e específi cas.

A Cosmologia pré–socrática instaurou questionamentos que têm

atravessado séculos. Qual é a origem de tudo? Como o idêntico a si

mesmo engendra o diferente? Como o uno gera o múltiplo? Como o

imutável e eterno cria o mutável e perecível? Como um único princípio

origina a multiplicidade? Como o múltiplo retorna ao uno?

TALES DE MILETO

Filósofo pré-socrático.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História

124 C E D E R J

Algumas características que nasceram no pensamento pré-socrático

vão se desenvolver no período antigo e marcarão, por exemplo, Platão,

Aristóteles, Ptolomeu e Arquimedes. A refl exão que os fi lósofos/cientistas

do mundo antigo empreenderam sobre o cosmos esteve essencialmente

marcada pela especulação racional, pela falta de aplicação prática dos

conhecimentos, pela não-utilização do experimento e de um instrumental

técnico e pela não-utilização de uma linguagem matemática.

São essas características que predominaram na Ciência produzida

nos períodos greco–romano e medieval. Por isso, podemos apresentá-las

como aspectos norteadores do conhecimento construído nesses períodos.

Vamos a elas!

CARACTERÍSTICAS GERAIS DA CIÊNCIA GRECO-ROMANA E MEDIEVAL

Não-utilização da técnica (pouco desenvolvimento de um instrumental técnico) e do experimento

No mundo antigo, as "ARTES liberais" (os conhecimentos dignos

do homem livre e que diziam respeito estritamente à vida intelectual)

tiveram prestígio maior do que as artes mecânicas, uma vez que as

atividades manuais eram executadas pelos escravos e/ou pelas camadas

mais pobres da sociedade.

Além disso, a concepção de Natureza e a postura humana frente a

ela contribuíram também para o desprestígio do mecânico. Os antigos,

no geral, perceberam a Natureza como algo divino e isso impediu que

eles lançassem mão amplamente do experimento e de um instrumental

técnico para o conhecimento da physis.

Você sabia que praticamente até o século XVII persistiu um certo

recato frente às interferências técnicas na Natureza, porque ela era

compreendida ainda como uma ordenação divina? Pois é. O rompimento

dessa tradição se deu com a técnica e as Ciências modernas, a partir da

elaboração de um novo conceito de Natureza e da destruição das noções

de mundo e de homem, criados na Antigüidade clássica.

ARTES

No contexto antigo, esse termo não signifi cava somente as belas-artes, tal como hoje. O vocábulo arte é a tradução do termo latino ars que traduziu, por sua vez, o complexo vocábulo grego téchne, que está na origem da nossa palavra "técnica".

TÉCHNE

Termo grego que designava “aquilo que o homem entendia acerca de algo, especialmente ao que ele podia elaborar ou fabricar”, e não especifi camente às máquinas e às ferramentas. Téchne era um tipo de conhecimento, pois aquele que possuía uma téchne conhecia algo de algum modo. Assim, a medicina era uma téchne que dava ao médico o conhecimento sobre a saúde e a doença. A olaria era uma téchne que dava ao oleiro o conhecimento sobre a fabricação de tijolos.

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Page 118: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Especulação racional

O modo antigo de interrogar e conhecer a physis se deu de maneira

diversa da que encontramos na perspectiva científi ca moderna, pois a

Ciência antiga parte de princípios diferentes dos utilizados por nós para

o conhecimento da Natureza.

O conhecimento científi co daquela época estava essencialmente

ligado à Filosofi a, que determinou a abordagem teórica (especulativa)

dos ENTES. Isso proporcionou uma apreensão qualitativa dos entes, uma

vez que ela se dava a partir da análise dos aspectos e propriedades

intrínsecas dos entes, ou seja, esse conhecimento foi construído a partir

da investigação das essências das coisas.

E, como você sabe, não dá para pesar e medir a essência de algo.

Mas podemos pensar sobre ela. Pois é; foi isso que os antigos fi zeram.

Passaram a conhecer os entes a partir da especulação racional, da refl exão

acerca das essências presentes nas coisas. Por isso, dizemos que esse tipo

de conhecimento era mais qualitativo do que quantitativo.

O que você acha desse modo antigo de conhecer a realidade? Será

que ele é ingênuo e menos científi co ou apenas diferente do que nós,

hoje, fazemos? Pense nisso.

Falta de aplicação prática dos conhecimentos

Na medida em que a atividade intelectual era contemplativa, a

fi nalidade da Ciência visava mais à contemplação e ao conhecimento

qualitativo do ente em sua totalidade do que à aplicabilidade prática

dos conhecimentos.

Pense nos dias de hoje. Soa natural, para nós, o fato de o

conhecimento, necessariamente, ter de desembocar na criação de

uma nova máquina ou de um novo remédio, por exemplo. Os antigos

achariam muito estranha essa nossa necessidade de aplicação prática dos

conhecimentos. Do mesmo modo, nós também tendemos a considerar

esquisitos, para não dizer inúteis, os conhecimentos que não se mostram

aplicáveis na prática. Dessa forma, por exemplo, conhecimentos como

os da Filosofi a são desprestigiados na nossa época, porque geralmente

as pessoas não percebem nela nenhuma utilidade prática imediata.

Você consegue imaginar a possibilidade de construirmos algum

conhecimento que não tenha aplicabilidade? Pense nisso com carinho.

ENTE

Do latim ens. Signifi ca o que existe. A mesa é um ente. A camisa é um ente. A planta é um ente. A música

é um ente. O ser humano é um ente.

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Page 119: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História

126 C E D E R J

Não-utilização da linguagem matemática

No mundo antigo não encontramos a necessidade da utilização

da linguagem matemática e de suas fórmulas no conhecimento. Isso se

deve ao fato de a EPISTEME antiga fazer uso de premissas que desconheciam

a perspectiva da quantifi cação e da matematização da Natureza, pois

seu programa teórico procurava conhecer o ente em sua totalidade e

não apenas nos aspectos que podiam ser pesados, medidos e ditos numa

linguagem matemática.

A linguagem matemática se torna imprescindível a partir do

século XVII, que revolucionou o modo como o Ocidente passou a

conhecer a realidade.

Portanto, por mais que a razão fosse um horizonte privilegiado de

acesso ao conhecimento do que existe, na Ciência antiga os entes ainda

não eram apreendidos e conhecidos a partir de uma única instância

reguladora do conhecer (o método científi co quantitativo experimental),

tal como na Modernidade, instaurada a partir do século XVII. No período

antigo estávamos nos primórdios da escalada racional humana, que era

direcionada por uma interpretação de mundo que distanciava o técnico

do pensador, que desconhecia a percepção unicamente quantitativa da

physis; em que o conhecimento científi co se via inserido no contexto

especulativo antigo.

A CIÊNCIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

(..) o tempo antigo passou, e agora é um tempo

novo. Logo a humanidade terá uma idéia clara

de sua casa, do corpo celeste que ela habita. O

que está nos livros antigos não lhe basta mais.

Pois onde a fé teve mil anos de assento, sentou-se

agora a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos

livros, mas agora nós queremos ver com nossos

olhos (BRECHT, 1977, p. 25).

Como vimos anteriormente, a Ciência greco-romana e medieval

apresentava as seguintes características: não utilizava a técnica e o

experimento; especulava racionalmente os fenômenos humanos e da

natureza; não se preocupava em aplicar de modo prático o conhecimento;

não aplicava a linguagem matemática na investigação científi ca.

BERTOLD BRECHT

(1898-1956)

Dramaturgo e poeta alemão.

EPISTEME

Termo grego que signifi ca conhecimento verdadeiro do tipo científi co.

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Page 120: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Mas, a partir dos séculos XVI e XVII, o mundo passa por

mudanças signifi cativas, como já discutimos na Aula 4; o homem

torna-se o centro do universo, abrindo novas perspectivas no campo

sócio-cultural, político e econômico. Podemos caracterizar esse período

com os seguintes aspectos:

• nascimento de um novo modo de produção –

o capitalismo;

• desenvolvimento da navegação, do comércio e da

manufatura;

• descoberta de novos mundos – chegada às Américas;

• diminuição da infl uência religiosa sobre as idéias culturais

e políticas;

• implantação de uma visão antropocêntrica (o homem é

o centro do universo);

• questionamento do pensamento e dos dogmas

católicos;

• intensa produção intelectual e artística, com uma nova

leitura da cultura greco-latina.

Esses aspectos provocam mudanças no plano das idéias e na

maneira de conhecer a realidade. Surge, nesse período, uma nova forma

de racionalidade que cria procedimentos que possam intervir e agir na

natureza. Nesse ambiente nasce a Ciência moderna, que se fundamenta

no conhecimento racional e na experimentação (observação racional

e controlada da realidade). Essa nova Ciência procura investigar e

compreender a Natureza, assim como dominá-la e transformá-la. De

acordo com DESCARTES, por meio do conhecimento científi co devemos nos

tornar senhores da Natureza. Mas quais seriam as características da Ciência

moderna e contemporânea? A seguir, discutiremos essas características.

DESCARTES

Ver informações na Aula 4.

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Page 121: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História

128 C E D E R J

FRANCIS BACON

(1561 – 1626)

Filósofo do período moderno que pertence à tradição empirista. Afi rma que o saber confere poder ao homem. De acordo com Bacon, o saber não é de caráter teórico, mas prático; uma espécie de guia da ação. Por isso, precisa-se de um novo método para conhecer melhor a realidade.

CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

A ciência moderna e contemporânea inaugura um novo modo de

conhecer o mundo. Há uma preocupação em conhecer profundamente

a Natureza, como também em agir sobre ela. Vejamos quais são as

principais características dessa ciência:

• Saber ativo – busca-se conhecer por

que e como os fenômenos acontecem. Ela

não especula racionalmente apenas a causa

ou a essência dos elementos ou fenômenos da

Natureza; procura descrever com precisão como

esse fenômeno ocorre e, se possível, propõe uma

intervenção na Natureza, transformando-a ou

criando algo que tenha aplicabilidade. Há uma

aliança entre o saber e a técnica. Por exemplo:

Pascal e Torriceli revelam a existência da

pressão atmosférica e criam o BARÔMETRO.

• Valorização do método – embora o

método tenha sido discutido pelos fi lósofos na

Antigüidade e na Idade Média, os pensadores

modernos priorizaram a questão: como posso

conhecer verdadeiramente a realidade? Vários

pensadores (DESCARTES, BACON, LOCKE, HUME,

entre outros) responderam que somente

através de um método rigoroso e claro poder-

se-ia conhecer efetivamente a realidade.

Esses pensadores decidiram investigar a

origem do conhecimento verdadeiro e quais

os caminhos que deveríamos trilhar para

conhecer a realidade. Eles abandonaram

o princípio da autoridade e a especulação,

utilizados pelos pensadores do mundo greco-

romano e medieval, e aceitaram como fonte

do conhecimento a experiência e a razão.

JOHN LOCKE

(1623-1704)

Filósofo empirista, que busca a origem

e o valor do conhecimento. Ele defende que todo

conhecimento tem origem com e pela

experiência.

DAVID HUME

(1711-1776)

Filósofo empirista, que questiona

qual é a validade do conhecimento.

Acredita que todas as idéias nascem das impressões sensíveis.

BARÔMETRO

Instrumento destinado a medir a pressão atmosférica.

EMPIRISMO

Corrente fi losófi ca, segundo a qual o conhecimento tem origem na experiência.

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Surgem novos métodos, com base nessas fontes, para investigar a

realidade. Entre esses métodos destacamos o método experimental, que

representa um marco para a Ciência moderna.

• Método experimental – exige inicialmente a observação

de um determinado fenômeno. Essa observação poderá

ser feita por meio dos nossos sentidos ou com algum

instrumento de precisão (microscópio, telescópio,

termômetro etc.). Depois, o cientista formula hipóteses

sobre o que foi observado e, em seguida, verifi ca essas

hipóteses. Ele testa essas hipóteses realizando um processo

de experimentação, podendo repetir os fenômenos, variar

as condições da experiência, testar os fenômenos em

outros ambientes etc. Quando confi rma a sua hipótese,

o cientista faz generalizações, criando, em alguns casos,

leis. No método experimental, o uso da Matemática é

imprescindível, porque a Matemática permite medir e

quantifi car determinados fenômenos; por isso, afi rmamos

que a ciência moderna privilegia a quantidade e não a

qualidade, como a ciência greco-romana e medieval. Por

exemplo: para Aristóteles, cada corpo tem um “lugar

natural”, conforme a sua essência; sendo assim, a terra e a

água são corpos pesados, e o fogo e o ar são corpos leves.

Por isso, o lugar natural da terra e da água é embaixo e

o do fogo e do ar é em cima; sendo assim, cada corpo,

de acordo com a qualidade que possui, busca seu lugar

natural. Para a ciência moderna, esse tipo de explicação

seria inaceitável, porque seria necessário investigar as

propriedades da terra, da água, do fogo e do ar, descrever

como são o movimento e a trajetória desses elementos,

produzir explicações (hipóteses) que descrevessem os

movimentos desses corpos, produzir verifi cações, através

da experimentação, que checassem a trajetória desses

corpos, para, somente então, chegar às conclusões que

demonstrassem o movimento dos mesmos.

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Page 123: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História

130 C E D E R J

• A linguagem matemática – outro aspecto importante da

ciência moderna e contemporânea é o uso da Matemática;

a linguagem matemática possibilita medir e verifi car com

notável precisão os fenômenos observados pelos cientistas.

A Matemática auxilia a execução da experimentação.

Essas características marcam o pensamento científi co moderno e

contemporâneo; mas, no século XIX, aparecem as Ciências Humanas,

que provocam de imediato o seguinte questionamento: é possível

existir uma ciência cujo objeto de estudo é o homem? Podemos usar

nas Ciências Humanas a mesma metodologia das Ciências da Natureza

(Física, Química, Biologia, Astronomia etc.)?

Além disso, até o século XIX, o homem era estudado exclusivamente

pela Filosofi a, que apresenta uma metodologia de pesquisa diferente da

Ciência. Outro fator a considerar era que as Ciências da Natureza já

haviam defi nido seus métodos de investigação da realidade, mostrando

o caminho da pesquisa científica. Nesse contexto, a princípio, as

Ciências Humanas tendem a copiar o modelo científi co das Ciências da

Natureza, mas os cientistas esbarram na complexidade de seu objeto

de estudo, o homem, que não podia ser tratado como “uma coisa” ou

“um fenômeno” investigado exclusivamente através da experimentação;

além disso, as relações humanas e sociais não podiam ser tratadas como

algo a ser experimentado ou compreendidas por meio da Matemática.

Surgiam questões importantes: como poderíamos observar/experimentar

uma determinada sociedade? Como estabelecer leis para o que é subjetivo,

por exemplo, o psiquismo humano? As Ciências da Natureza não

trabalham com o subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo etc., mas

os homens possuem tais características.

A partir dessas indagações, inicia-se a busca de um método científi co

que possa dar conta do estudo científi co do homem e das relações humanas.

Essa busca possibilita novos caminhos para a inves-tigação científi ca. As

Ciências Humanas trabalham com as interpretações, a HERMENÊUTICA.

Freqüentemente une as metodologias científi ca e fi losófi ca; rompe com a

verdade absoluta. As Ciências Humanas têm como fi nalidade conhecer,

de modo sistemático e profundo, aspectos sociais, históricos, culturais,

políticos, econômicos e psíquicos da vida humana. Na verdade, as Ciências

Humanas promovem uma ruptura com as Ciências da Natureza, criando

um novo modelo de investigação científi ca.

HERMENÊUTICA

Método de interpretação dos sentidos das palavras.

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Page 124: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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R E S U M O

Nesta aula vimos como os pensadores concebiam a Ciência na Antigüidade e

nos períodos Medieval, Moderno e Contemporâneo. A Ciência greco-romana

e a medieval caracterizaram-se pela especulação racional, a não-utilização do

método experimental e da linguagem matemática e a falta de aplicação prática

dos conhecimentos. A Ciência moderna e contemporânea estabeleceu uma nova

forma de fazer ciência, usando o método experimental e a linguagem matemática,

produzindo um saber ativo que interfere na Natureza, agindo sobre ela, procurando

aplicabilidade para o conhecimento. No século XIX, surgem as Ciências Humanas,

que buscam investigar, de modo sistemático e profundo, aspectos sociais, históricos,

culturais, políticos, econômicos e psíquicos da vida humana, criando uma nova

metodologia científi ca.

EXERCÍCIOS

1. Discuta as características da Ciência greco-romana e a medieval, mostrando por

que elas diferem da Ciência Moderna e Contemporânea.

2. Aponte os fatores que possibilitaram o aparecimento da Ciência Moderna.

3. Por que a Ciência Moderna e Contemporânea une o saber e o poder?

4. As Ciências Humanas podem usar o método experimental? Por quê?

AUTO-AVALIAÇÃO

Este texto possibilitou o conhecimento de diferentes visões sobre a Ciência ao

longo da História. Você conseguiu fazer a distinção entre as Ciências produzidas na

Antigüidade e Idade Média e a do Mundo Moderno e Contemporâneo? Percebeu

que suas fi nalidades e métodos eram qualitativamente diferentes? Constatou a

especifi cidade e complexidade das Ciências Humanas? Se sim, você está apto a

prosseguir a nossa viagem.

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Page 125: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

CEDERJ

A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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11Paradigma da Ciência moderna au

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Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Compreender a noção de paradigma.

• Identifi car os fundamentos teórico-práticos da Ciência moderna.

do modelo experimental-indutivo na Matemática e na Física.

OBJETIVOS

Newton

Descartes

J. Locke

D. Hume

Copérnico

Da Vinci

Galileu

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Page 126: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna

134 C E D E R J

Nas duas estações

passadas analisamos os diferentes tipos de

conhecimento (Aula 9) e a Ciência na História (Aula 10). Vimos que a

Ciência é um dos tipos de conhecimento e acompanhamos seu desenvolvimento

ao longo de três situações históricas do mundo ocidental.

Ainda dentro do assunto Ciência, como você responderia às seguintes perguntas?

Por que nos diferentes períodos históricos e nas diferentes culturas existem

modos diferentes de conceber e fazer Ciência? Em outras palavras, por que

a Ciência do mundo antigo é diferente da Ciência moderna e da Ciência

contemporânea? Será que entre elas haveria uma relação de continuidade,

sendo que a Ciência de um momento posterior seria a evolução da Ciência

anterior? Ou haveria, pelo contrário, uma relação de quebra entre elas e aí a

Ciência posterior partiria de princípios completamente diferentes daqueles que

regeram a Ciência anterior? Pense nessas questões, pois é a partir delas que

vamos desenvolver esta aula.

Para responder a essas perguntas utilizaremos aqui um referencial teórico que

admite a concepção de descontinuidade e rupturas entre as diferentes maneiras

de conceber e fazer Ciência. Ou seja, estamos aceitando o fato de que, em

determinadas épocas, todo um modo de explicar cientifi camente a realidade

é deixado para trás porque já não responde mais às questões colocadas. Isso

signifi ca que as respostas que as pessoas davam em relação à pergunta mais

básica – "o que é esta COISA?" – perdem credibilidade e força explicativa.

Por causa disso, torna-se necessário inventar, mais uma vez, um modo

consistente de olhar para a realidade e responder satisfatoriamente o que são

os fenômenos, os eventos, os acontecimentos; enfi m, o que vem a ser esta

realidade que se apresenta para nós. Vamos dar um exemplo.

INTRODUÇÃO

CO I S A

Poderia ser "por que a pedra cai?", ou "por que chove" ou "por que nascemose morremos?" ou "oque é o homem?", por exemplo.

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Por que a pedra cai? Aristóteles, no século IV a.C., respondeu a esta pergunta

a partir da teoria da queda dos CORPOS PESADOS, que se associava à Teoria dos

Lugares Naturais e à composição da pedra. Os corpos caíam para chegarem ao

seu lugar natural. Uma vez que a pedra possuía mais o elemento terra em sua

formação, naturalmente ela iria para seu lugar natural junto ao elemento terra

e por isso cairia e não subiria. Essa explicação vigorou por séculos e somente

teve uma resposta à altura com a Física de Newton, no século XVIII, que utilizou

a Lei da Gravitação Universal para explicar a queda da pedra.

De acordo com o marco referencial descontinuísta, é ilusória a compreensão da

Ciência como um processo linear, estabelecido como o somatório progressivo

e acumulativo de descobertas científi cas. Então, como a Ciência se daria?

Ciência: uma construção teórica

Por meio desses exemplos queremos dizer que a Ciência de cada

época “olha” para a realidade a partir de uma determinada ótica, fazendo

com que os fenômenos e suas relações sejam explicadas historicamente

de maneiras diferentes. Elas se diferenciarão devido aos princípios

explicativos, aos modelos, aos métodos de abordagem e às técnicas

científi cas que cada período histórico elegerá como os mais corretos e

seguros para conduzir à verdade.

Você já parou para pensar que talvez o discurso científi co não seja a

fotografi a exata do que vem a ser a realidade, mas uma construção tal como

a do FOTÓGRAFO? Se aceitarmos a imagem da Ciência como uma construção

fotográfi ca, estamos acatando a idéia de que a explicação científi ca é uma

elaboração teórica da realidade. Assim, é errônea a imagem do cientista

"clicando" um instantâneo e depois apenas lendo e anotando aquilo que

viu. A melhor analogia para a tarefa do cientista é a do tecelão: como um

tecelão, ele tece uma maneira de olhar a realidade e, nessa tessitura, o

cientista estabelece uma certa ordenação e explicação dos fatos.

Nesse sentido, a Ciência é uma produção teórica, um discurso

construído a partir de determinados parâmetros aceitos historicamente

como válidos. As teorias científi cas são, portanto, soluções temporárias

para os problemas cotidianos que, em cada época, promovem a

compreensão racional dos fenômenos naturais e sociais. Como podemos

entender esses parâmetros?

CO R P O S P E S A D O S

Corpos pesados ou “graves”, daí o termo gravidade. Aristóteles

acreditava que quanto mais pesado fosse um

corpo (quanto mais elemento terra ele

tivesse), mais rápido ele chegaria ao chão.

FO T Ó G R A F O

Escolhe o ângulo,as cores, o tipo defi lme para retratar

a realidade. Assim,sua atividade é uma

construção.

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Page 128: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna

136 C E D E R J

Ciência: uma construção teórica a partir de paradigmas

No pensamento EPISTEMOLÓGICO de THOMAS KUHN, dois conceitos

caminham paralelamente: o de paradigma e o de comunidade

científi ca.

Paradigmas seriam as realizações científicas modelares,

universalmente aceitas e reconhecidas por uma comunidade científi ca

de determinado período, que oferecem a estrutura conceitual e os

instrumentos para as soluções de problemas. Como nos explica Kuhn:

“paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham

e, inversamente, uma comunidade científi ca consiste em homens que

partilham um paradigma”. A comunidade científi ca seria a produtora

e a legitimadora do conhecimento científi co.

Todo paradigma, ao estabelecer as condições de cientifi cidade

do conhecimento, acaba por determinar também quais conhecimentos

e práticas serão considerados científi cos e verdadeiros em um período

histórico.

Para Kuhn, o cientista defende a tradição que o formou e em

que acredita e, por isso, tenderá a resistir a mudanças conceituais e

práticas que alterem o trabalho científi co. A defesa e a resistência se

devem ao fato de o paradigma fornecer à comunidade científi ca a

base de seu trabalho e ainda a conseqüente adesão dessa comunidade

ao paradigma, que é fortalecida pelos sucessos obtidos.

A grande novidade presente na interpretação de Thomas Kuhn

sobre a Ciência está em sua afi rmação segundo a qual as mudanças

paradigmáticas não se devem tanto à própria lógica interna do

desenvolvimento da Ciência, ou seja, a critérios e aspectos teóricos

de cientifi cidade, mas muito mais a fatores históricos, sociológicos e

psicológicos que contribuem para a escolha do paradigma emergente

entre os paradigmas alternativos presentes numa dada época.

Quando os resultados que um paradigma não previa começam

a ser acumulados; quando cresce o número de incongruências que

os cientistas não conseguem solucionar à luz do paradigma; quando

o próprio paradigma existente passa a ser percebido como a causa

última dos problemas e das incongruências; então, já está se

insinuando uma situação de crise de conhecimento, que propiciará

as condições necessárias a uma revolução paradigmática.

TH O M A S SA M U E L KU H N

(1922-1996)

Famoso fi lósofo americano da Ciência. Físico de formação, dedicou-se aos estudos de Filosofi a e História da Ciência. Lecionou em Harvard, Universidade da Califórnia-Berkeley, Princeton e no Massachussets Institut of Technology. Tornou-se conhecido com a obra A estrutura das revoluções científi cas, que escreveu ainda como estudante de Física de Harvard e que assumiu, posteriormente, a forma de livro. Nessa obra, questionou a concepção tradicional do progresso científi co como cumulativo e propôs a noção descontinuísta da Ciência, que estaria fundada nas noções de comunidade científi ca e de paradigma.

EP I S T E M O L O G I A O U TE O R I A D O

CO N H E C I M E N T O

Parte da Filosofi a que investiga a origem e o valor do conhecimentohumano em geral e ainda os princípios quefundamentam as Ciências Humanas e Físicas, oscritérios de verifi cação e de verdade e o valor dos sistemas científi cos.

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Uma mudança paradigmática ocorre após um período de crise

no conhecimento e implica a construção de um novo paradigma e a

substituição do anterior por este. Tal substituição não acontece de

modo rápido e a fase de transição pode ser bastante longa. Ao fi m da

transição e da mudança, o paradigma emergente adquire o estatuto de

paradigma dominante, que passa a ditar os rumos do desenvolvimento

da Ciência.

Após essa explicação do que vem a ser paradigma, vamos estudar

alguns aspectos do paradigma que caracterizou a Ciência moderna.

CIÊNCIA ATIVA

Desde o Renascimento, pouco a pouco começou a ser processada a

substituição da Ciência contemplativa e especulativa aristotélico-medieval

pela Ciência ativa moderna ou prática, a partir da crença na capacidade

de o conhecimento racional humano poder transformar a realidade

natural e social. Isso acabou por promover um grande desenvolvimento

de técnicas e de instrumental que permitissem aumentar a capacidade

das forças produtivas.

Na Ciência moderna assistimos à mudança de uma explicação

qualitativa e fi nalística, tal como se apresentava na CIÊNCIA DE CUNHO

ARISTOTÉLICO-MEDIEVAL, para uma explicação quantitativa e mecanicista.

Isso signifi ca que, no geral, a Ciência aristotélico-medieval procurou

conhecer a realidade natural levando em consideração as diferenças

qualitativas entre as coisas (o grande, o pequeno, o localizado

abaixo ou no alto, o leve, o pesado, o natural e o artifi cial) e ainda as

causas fi nais ou fi nalidades que fariam com que os eventos naturais

acontecessem de um determinado modo. Com a passagem da Ciência

aristotélico-medieval para a moderna passou a vigorar a noção segundo

a qual os acontecimentos naturais ocorrem devido a relações mecânicas

de causa e efeito, que são regidas por leis necessárias e universais,

válidas para todos os fenômenos e que não possuem nenhuma fi nalidade

manifesta ou oculta.

A Mecânica como a nova Ciência da Natureza, que estudamos no

segundo grau como Mecânica Clássica, passou a ser o grande modelo

para a Ciência. Você se lembra certamente de Isaac Newton.

CI Ê N C I A A R I S T O T É L I C O–

M E D I E V A L

Para maiores informações, releia

a aula anterior.

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Page 130: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna

138 C E D E R J

Tal conhecimento parte da compreensão de que todos os fenômenos

naturais (humanos e não-humanos) podem ser conhecidos a partir

do estabelecimento de leis necessárias de movimento e repouso que

afetam, conservam ou transformam a fi gura e a grandeza das coisas

que percebemos, uma vez que modifi cam ou conservam a grandeza e a

fi gura das partículas, que por sua parte constituem todos os corpos.

A visão do universo presente nessa Ciência afi rma que ele funciona

como uma grande máquina, que se comporta de maneira previsível e que

pode ser conhecida pelas causas. Paralelamente à interpretação MECANICISTA

do universo como um grande relógio, fi rmou-se a noção da realidade

como uma máquina e ainda a idéia segundo a qual bastaria apertar os

botões certos para que a máquina continuasse a funcionar bem. Faz

parte ainda do mecanicismo a crença na possibilidade de decompormos

essa máquina em partes menores, a fi m de conhecê-la melhor. Assim,

na medida em que separamos suas peças, podemos compreender como

cada parte funciona e como as partes estão relacionadas umas com as

outras para entendermos a máquina como um todo.

A atitude científi ca moderna acabou gerando, por um lado, a

presunção de que a efi cácia e a universalidade dos critérios mecanicistas

seriam a única maneira válida para descrever e conhecer a realidade;

por outro, estabeleceu também a visão cientifi cista, que afi rmou a via

da Ciência como a única capaz de alcançar e dizer a verdade presente na

realidade. Não é à toa que ainda hoje a palavra da Ciência sobre algum

objeto é considerada a única verdade sobre ele.

Nessa nova Ciência foi determinado também o projeto de

dominação da Natureza, que até hoje vigora em nosso mundo, tendo

como base o princípio de Francis Bacon “Saber é Poder”. (As relações

entre saber e poder serão analisadas mais adiante neste curso.)

ME C A N I C I S M O

Doutrina que procura explicar arealidade a partir domovimento espacialdos corpos. Já estavapresente no MundoAntigo, por exemplo no Atomismo. Contudo, ganhou maior visibilidade no mundo moderno. Descartes e Newtonsão grandes exemplos de mecanicistas.O mecanicismoé caracterizado essencialmente pela negação de qualquer ordem fi nalística na natureza e pelodeterminismo (acrença na existênciade uma causa necessária paratodos os fenômenosnaturais).

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Page 131: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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AFIRMAÇÃO DE UMA VISÃO NATURALISTA E HUMANISTA DO CONHECIMENTO HUMANO

Em relação à fundamentação do saber, houve a passagem de uma

perspectiva teocêntrica para uma visão naturalista e humanista. Isto

signifi ca que, no paradigma moderno, a Consciência de Si Refl exiva

adquiriu importância capital. O que quer dizer isso? Tão somente que

os modernos, partindo da consciência do ato de ser consciente, passaram

a se reconhecer como sujeito e objeto primeiro do conhecimento e como

condição de verdade desse conhecimento.

Em outras palavras: o conhecimento moderno, fundamentando-se

sobre a refl exão (ou seja: o dobrar-se ou o voltar da consciência sobre si

mesma), fez da Consciência de Si o primeiro objeto do conhecimento. Isto

é: antes de ser construído qualquer conhecimento sobre a realidade seria

necessário conhecer a própria capacidade humana de e para conhecer.

Essa atitude moderna tornou-se possível porque partiu-se do suposto que

o próprio ser humano seria o fundamento e a condição do conhecimento.

Daí a necessidade de, previamente, ser analisada a capacidade humana

de e para conhecer.

A partir de então, Deus deixou de ser a condição do conhecimento, isto

é, o fundamento último do conhecer, e foi substituído pelo ser humano.

Esse processo é conhecido como o

do estabelecimento da Subjetividade, que

representou a constituição da idéia de um

sujeito do conhecimento. Compõe esse processo

a compreensão de que todos os seres humanos,

por serem racionais e conscientes, possuem o

mesmo direito ao pensamento e à verdade.

Esse reconhecimento acabou por contribuir

para o soterramento do PRINCÍPIO DE AUTORIDADE,

para a crítica a toda censura ao pensamento e

para o fortalecimento da noção de que todas

as pessoas, igual e livremente, podiam alcançar

a verdade.

PR I N C Í P I O D E A U T O R I D A D E

Princípio presente naCiência aristotélico-medieval segundo oqual a investigaçãosobre o mundonatural, social eceleste deveria estar de acordocom as análises decertos estudiosos,reconhecidos como asgrandes autoridades, tais como Aristótelese outros pensadores gregos e romanos, os Padres (do período da PATRÍSTICA).

PA T R Í S T I C A

Período dopensamento

ocidental que vai,aproximadamente,do século I ao VII.

O nome tem origemna referência aopensamento dosPadres da Igreja,

que começaram aestabelecer a teologia

cristã católica e afi losofi a medieval. Omaior representante

da Patrística foi SantoAgostinho, bispo de

Hipona.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna

140 C E D E R J

O MÉTODO CIENTÍFICO

Destacaremos dois elementos essenciais ao método científi co

moderno: a matematização da representação da natureza e o método

experimental.

A matematização da representação da natureza

Na forma de conhecimento estabelecida no mundo moderno,

a matematização da natureza adquiriu relevância capital. Isso não

signifi ca que temos de utilizar necessariamente números, fórmulas,

Geometria, Álgebra, por exemplo. Porém, o método científi co moderno,

ao utilizar a matematização, visa, por um lado, ao ideal matemático, ou

seja, por meio dele procura-se atingir o conhecimento completo e totalmente

dominado pela inteligência. Por outro, que ele possua duas características

essenciais ao conhecimento matemático: a ordem e a medida.

Mediante a ordem somos capazes de encontrar e conhecer o

encadeamento interno e necessário presente entre as coisas que são

comparadas e relacionadas quando conhecemos. Assim, quando

relacionamos, medimos e conhecemos as coisas por meio da noção de

ordem, na realidade estamos estabelecendo quais coisas se relacionam

necessariamente com outras numa seqüência ordenada. Nessa ordenação

encontramos também o ideal de um mundo geometrizado, ordenado e

regulado como peças de uma máquina.

A Matemática, portanto, seria capaz de revelar o mundo tal como

ele é em sua ordem, medida e inteligibilidade. Ela passou a ser usada para

descrever e para explicar o funcionamento do mundo físico. Galileu Galilei,

René Descartes, a pedagogia dos jesuítas e Isaac Newton certamente foram

os principais artífi ces da matematização da natureza.

Galileu Galilei (1564-1642) pode ser considerado um dos pais da

revolução científi ca moderna, pois adotou a Matemática na quantifi cação

das evidências produzidas pela experimentação e ainda aceitou a

Matemática como a garantia da verdade científi ca.

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A principal contribuição de Galileu não está tanto na

determinação da Lei Geral da Queda dos Corpos, mas, conforme

John Harry, em A revolução científi ca e as origens da ciência

moderna, “na exemplificação da utilidade e do sucesso da

abordagem matemática à natureza. Em seus escritos, Galileu

ensina repetidamente por meio de exemplos, mostrando como a

prática matemática pode nos ajudar a compreender a natureza

do mundo, mesmo naqueles casos em que a adequação entre a

análise matemática e a realidade física é apenas aproximada, sendo a

Matemática baseada numa circunstância idealizada irrealizável” (A

revolução científi ca e as origens da ciência moderna, pp. 30-31).

Para José Carlos Köche, Galileu estabeleceu “a nova ruptura

epistemológica que desenvolve a idéia de se traçar um caminho do

fazer científi co – método quantitativo-experimental – desvinculado

do caminho do fazer fi losófi co-empírico-especulativo-racional. (...)

Galileu tomou como pressuposto que os fenômenos da natureza

se comportavam segundo princípios que estabeleciam relações

quantitativas numericamente determinadas. (...) Caberia então

à razão apresentar para essa natureza, organizada geométrica e

matematicamente, suas perguntas inteligentes, manifestadas através

de hipóteses quantitativas, para que ela lhe respondesse quando

forçada por um experimento” (2001).

O sistema fi losófi co de Descartes, por seu turno, começou a ser

elaborado a partir da necessidade do fi lósofo e matemático francês, de

conhecer o mundo físico em termos matemáticos, ou seja, a partir do

ideal de conhecer completamente a totalidade do mundo pela inteligência

(razão), em termos de ordem e medida.

No sistema de ensino dos jesuítas, por sua vez, a Matemática era

disciplina importante do Ratio Studiorum (Ordem dos Estudos). Ela era

ensinada no último ou no penúltimo ano de estudos, junto com a Física ou

a Metafísica e não como matéria propedêutica ou preliminar, ministrada

nos primeiros anos. A importância da Matemática na grade curricular do

Ratio Studiorum jesuíta contribuiu para mostrar a importância dela para

a compreensão do mundo. Descartes estudou

em colégio jesuíta, bem como M. MERSENNE,

outro importante matemático contemporâneo

do pensador francês.

MARIN MERSENNE

(1588-1648)

Matemático e frade da Ordem dos Mínimos. Via a Matemática como o tipo de conhecimento mais verdadeiro e também o que mais se aproximaria do conhecimento divino. À sua volta construiu um importante núcleo de intelectuais modernos.

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Page 134: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna

142 C E D E R J

Isaac Newton marcou o ápice da matematização da representação

do mundo natural porque, partindo do princípio de que não se deve

aceitar hipóteses infundadas, APRIORÍSTICAS, que não estejam embasadas na

repetição de fenômenos sistematicamente observados e mensurados em

experimentos, sistematizou o método científi co, que defi niu o modelo

da Ciência moderna.

Newton consolidou o fundamento matemático como instrumento

privilegiado do conhecimento científi co e como modelo de representação

da própria estrutura da matéria. Daí resultaram desdobramentos que

marcaram profundamente a atitude de conhecer como quantifi car. O rigor

científi co passou a não poder ser aferido fora das medições. Nas palavras

de Boaventura Santos: “o que não é quantifi cável é cientifi camente

irrelevante” (SANTOS, 1997).

Dentre suas contribuições, destacamos a comprovação que é a

mesma lei que faz uma maçã cair e os planetas continuarem a girar

em torno do Sol, a demonstração matemática das verdades das leis de

Kepler sobre o movimento planetário e a importância da Matemática

para entendermos as dimensões terrestre e celeste.

O sucesso da mensuração ou quantifi cação do mundo na explicação

e descrição do mundo físico fez com que a racionalidade matemática

fosse defendida como garantia de cientifi cidade e de verdade.

O método experimental

Se método é o caminho tomado para chegarmos a um fi m, então

o método científi co seria o caminho utilizado pelo cientista quando

procura as "verdades científi cas". Nessa afi rmação encontramos sempre

as perguntas: "o que é Ciência?"; "o que é o cientista?"; "o que são

verdades científi cas?"

Quando pensamos em método científi co na época moderna, temos

de vê-lo dentro do recorte da Ciência moderna.

Esse método científi co seria o conjunto de regras e procedimentos

que conduzem as ações intelectuais e práticas dos que procuram conhecer

as coisas pelo viés da Ciência. Tal conjunto permite alcançar a verdade

científi ca sobre a realidade natural e social.

AP R I O R Í S T I C A

De modo a priori, isto é, antes daexperiência.

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As regras e os procedimentos necessitam ser adotados segundo

uma determinada seqüência pelos pesquisadores, para que possam

estabelecer hipóteses, confi rmar dados, efetuar a generalização e fi xar

leis e teorias capazes de explicar como os fenômenos ocorrem.

As etapas básicas do método científi co seriam:

1) observação dos elementos que compõem um evento;

2) estabelecimento de hipótese capaz de explicá-lo;

3) produção de experimentos controlados para comprovar ou não

a hipótese, ou seja, teste experimental das hipóteses;

4) conclusão: generalização dos resultados em leis que permitam

prever, explicar e descrever fenômenos semelhantes.

O método científico moderno permite o acompanhamento

objetivo e detalhado dos saberes produzidos e do modo utilizado

para chegar a eles. Ele também favorece que o conhecimento seja

amplamente compartilhado, transmitido e verifi cado. Isso signifi ca que

a hipótese é comprovada a partir dos dados experimentais, que podem

ser reproduzidos em qualquer lugar, desde que as mesmas condições

sejam obedecidas.

No nosso cotidiano costumamos usar as etapas do método

científi co. Você quer saber como? Toda vez que você procura comprovar

o que um amigo lhe disse e para tanto observa os fatos, analisa e

interpreta as informações que você possui, então você de certa maneira

está empregando, no seu dia-a-dia, etapas do método que o cientista

utiliza em suas pesquisas.

O paradigma da Ciência moderna é mais conhecido como

"paradigma newtoniano" ou ainda como "paradigma cartesiano-

newtoniano".

Podemos afi rmar ainda que ele gerou uma ideologia cientifi cista

que triunfou soberanamente até meados do século XX. Ela está baseada

nos sucessos das explicações do mundo físico proporcionadas pela

Matemática, pela Física e por outras ciências que também utilizaram

o método científi co.

Nessa ideologia podemos detectar a presença de uma

racionalidade, apoiada no desenvolvimento da Ciência e da técnica

modernas, que proporcionou bem-estar social, uma vez que a aplicação

das Ciências modernas contribuiu para a Revolução Industrial, para o

desenvolvimento do capitalismo e para os benefícios que ele gerou.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna

144 C E D E R J

Entretanto, essa ideologia trouxe também “um modelo autoritário, na

medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento

que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas

regras metodológicas” (SANTOS, 1997).

Mesmo reconhecendo todas as imensas desigualdades e injustiças

sociais criadas pelo capitalismo e pela Ciência moderna, não é possível

negar que houve também uma melhoria na vida das pessoas. Basta pensar,

por exemplo, no boom da Medicina (a invenção de vacinas, de remédios,

de práticas cirúrgicas, por exemplo), do sanitarismo (melhorias na

qualidade da água, no sistema de esgoto), dos aparelhos eletrodomésticos;

na luz elétrica, nas melhorias nas formas de comunicação humana

(estradas, avião, telefone, meios de comunicação de massa, internet,

satélites etc.).

Justamente esses benefícios, aliados aos sucessos explicativos do

mundo físico, foram e ainda têm sido fontes da adesão da comunidade

científi ca e do senso comum ao paradigma moderno.

Entretanto, hoje assistimos à quebra da hegemonia desse

paradigma. Cresce a certeza de que o tipo de desenvolvimento propor-

cionado pela Ciência moderna está na raiz dos problemas ecológicos,

econômicos, sociais de nosso tempo. A incerteza quanto à nossa forma

de conhecer é tão grande que vivemos com a incômoda impressão de

que não sabemos mais qual é a verdade sobre as coisas, sobre o que é

a verdade e quais os valores que devem reger a nossa vida em todas as

suas dimensões.

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R E S U M O

Conforme a interpretação descontinuísta da Ciência, essa não é concebida nem

como um processo linear e nem como um somatório progressivo e acumulativo

de descobertas científi cas. Ela é compreendida como uma construção teórica

historicamente realizada a partir de paradigmas.

Paradigmas: realizações científi cas modelares aceitas pela comunidade científi ca de

uma determinada época, que fornecem a estrutura conceitual e os instrumentos para

a solução dos problemas. Os paradigmas estabelecem os critérios de cientifi cidade

de conhecimento, determinando quais conhecimentos e práticas serão consideradas

científi cas e verdadeiras em um determinado período histórico.

Os paradigmas entram em crise devido ao acúmulo de resultados não – previstos e

de incongruências não – explicadas pela Ciência. O questionamento dos próprios

paradigmas indicam o ápice da crise paradigmática, que provocará a construção

de novo paradigma e a substituição do anterior pelo novo.

Alguns paradigmas da Ciência moderna: ciência ativa; afi rmação de uma visão

naturalista e humanista do conhecimento humano; o método científi co.

Ciência ativa: substituiu a ciência contemplativa e especulativa de cunho

aristotélico-tomista. Parte da crença de o conhecimento racional humano poder

transformar a realidade natural e social. Provocou grande desenvolvimento de

técnicas e instrumentos. Está baseada em uma explicação quantitativa e mecanicista

da realidade.

Visão naturalista e humanista do conhecimento humano: estabelecimento da

subjetividade moderna a partir da passagem da fundamentação teocêntrica do

conhecimento para uma visão naturalista e humanista. Antes de ser construído

qualquer conhecimento da realidade tornou-se necessário avaliar previamente a própria

capacidade humana de e para conhecer. Isto é: estabelecer previamente quais são os

limites do conhecimento humano e quais são suas condições de possibilidade.

Método científi co: analisado a partir da matematização da representação da

natureza e do método experimental.

Matematização da representação da natureza: a Matemática como ideal de

conhecimento. O conhecimento da realidade se dá a partir da mensuração e da

quantifi cação das coisas do mundo físico.

Método experimental. Suas etapas são: observação dos elementos do evento;

estabelecimento de hipótese capaz de explicá-lo; experimentos controlados para

comprovar ou não a hipótese; conclusão.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna

146 C E D E R J

EXERCÍCIOS

1. O que são paradigmas?

2. Explique a relação existente entre a descontinuidade da Ciência e o conceito

de paradigma.

3. Explique o fundamento que fez da Ciência moderna uma Ciência ativa?

4. O que signifi ca afi rmar que o conhecimento moderno privilegia a mensuração

e a quantifi cação?

AUTO–AVALIAÇÃO

Redija sua refl exão sobre o processo da Ciência que hoje resulta na clonagem e

considere indagações como:

• Há uma relação entre Ciência e Ética?

• A Ciência deve contribuir para alargar os horizontes na construção do bem-estar

de todos os homens e da solidariedade humana?

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Page 139: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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12As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento a

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a

OBJETIVOS Pré-requisito

Rever os conceitos fundamentais da Aula 9.

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Conceituar estratégias de validação do conhecimento.

• Caracterizar os diferentes tipos de verdade.

• Reconhecer nas correntes fi losófi cas a possibilidade de conhecimento da verdade.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento

148 C E D E R J

Eis que chegamos, nesta estação, ao estudo do tema relativo à verdade como

forma de estratégia de validação do conhecimento.

AS ESTRATÉGIAS DE VALIDAÇÃO DOS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO

Há uma dimensão da vida que pode ser entendida como a vida

cotidiana, em que a vida fl ui e os acontecimentos sucedem-se na dinâmica

da realidade. O estudo sistemático do cotidiano pelo conhecimento

científi co leva à elucidação e à alteração desse cotidiano

pelo exercício da refl exão.

O cotidiano e o conhecimento científi co que

temos da realidade aproximam-se e afastam-se:

1. aproximam-se porque a ciência se refere ao

real;

2. afastam-se porque a ciência abstrai a

realidade para compreendê-la, transfor-

mando-a em objeto de investigação.

Isso permite a construção do

conhecimento científi co sobre o real.

Como exemplo, pense na abstração–

distanciamento e refl exão – que Newton teve de

fazer para, partindo da fruta que caía da árvore

(fato do cotidiano), formular a lei da gravidade

(fato científi co).

INTRODUÇÃO

Nosso problema da crise nos leva a mostrar como

nossa época moderna, que, durante séculos, pôde

vangloriar-se de seus sucessos teóricos e práticos,

mergulha fi nalmente num mal-estar crescente,

devendo até experimentar sua situação como uma

situação de desamparo (HUSSERL, 1976).

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Page 141: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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PL A T Ã O

(427-348 O U 347 A.C.)

Filósofo grego, discípulo de Sócrates, pertencia a uma das mais nobres famílias de Atenas. Seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido a sua constituição física recebeu a alcunha de Platão, que vem do grego plato e signifi ca de ombros largos. Suas principais obras incluem O banquete e A república.

O conhecimento científi co tem como objetivo fundamental tornar

o mundo compreensível, proporcionando ao homem os meios de exercer

controle sobre a natureza.

Contrariamente ao senso comum, cujos conhecimentos estão

freqüentemente marcados pela incoerência e pela fragmentação, o

conhecimento científi co propõe-se a atingir conhecimentos coerentes,

precisos e abrangentes. Isso não signifi ca que os conhecimentos científi cos

sejam inquestionavelmente corretos, coerentes e infalíveis.

Segundo KUHN (1996), a história das ciências nos revela várias

teorias científi cas que, no passado, foram consideradas pela comunidade

científi ca como sólidas e corretas e atualmente foram substituídas ou

modifi cadas por outras teorias. Como exemplo, temos a substituição da

teoria geocêntrica de Ptolomeu pela teoria heliocêntrica de Copérnico.

Todavia, por que nesta estação estamos discorrendo sobre essas

questões referentes à ciência e ao senso comum? Qual a relação dessas

questões com o nosso tema de aula?

A resposta é a seguinte: os diferentes tipos de conhecimento (senso

comum, científi co, mítico, artístico e fi losófi co), estudados na oitava

estação, são modos de explicação e de compreensão do mundo, cujas

estratégias de validação se dão sob a forma de verdade.

As estratégias de validação dizem respeito aos tipos de verdade

presentes nas diversas formas de conhecimento.

O que é a verdade? Eis a pergunta fundamental e a cuja resposta

dedicaram-se os mais diferentes estudiosos na história das civilizações.

Entre as diferentes respostas fi losófi cas apresentadas para a

pergunta – o que é a verdade? – destacamos as seguintes:

1. A verdade como correspondência

Nos fi lósofos gregos, como PLATÃO e Aristóteles, o conceito de

verdade aparece como a exata correspondência de um enunciado com a

realidade da coisa por ele referida, ou seja, um determinado enunciado

é verdadeiro se estabelece correspondência entre o que diz e aquilo sobre

o que fala (MORA, 1996).

Para Aristóteles, a verdade como propriedade de certos enunciados

pode ser assim formulada: “Dizer do que é que não é, e do que não é que é, é

o falso; dizer do que é que é, e do que não é o que não é, é o verdadeiro”.

TH O M A S KU H N (1922-1996)

Filósofo norte-americano cuja preocupação fundamental na Filosofi a e história das ciências é demonstrar um novo enfoque epistemológico (referente à teoria do conhecimento) sobre a evolução da ciência. Uma das suas principais obras é: A estrutura das revoluções científi cas (1962).

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento

150 C E D E R J

AR I S T Ó T E L E S

(384-322 A.C.)

Filósofo grego, discípulo de Platão, nasceu em Estagira, na Macedônia. Preceptor de Alexandre Magno. Construiu um grande laboratório, graças à amizade com Filipe e seu fi lho Alexandre. Aos cinqüenta anos, funda sua própria escola, o Liceu, perto de um bosque dedicado a Apolo Licio. Entre seus livros destacam-se Retórica e Ética a Nicômaco.

Para ARISTÓTELES, a verdade é defi nida em função da adequação do

intelecto ao real e constitui uma propriedade dos juízos, que tanto podem

ser verdadeiros ou falsos à medida que dependam da correspondência

entre aquilo que afi rmam ou aquilo que negam e a realidade daquilo que

falam (JAPIASSU; MARCONDES, 1991).

Segundo Aristóteles, no processo de busca da verdade há

necessidade de se percorrer quatro degraus fundamentais:

• ignorância: é o estado considerado de completa ausência de

conhecimento do Sujeito em relação ao Objeto. Ignorar é desconhecer.

• dúvida: é o estado no qual determinado conhecimento é tido

como possível; porém, as razões para afi rmar ou negar alguma coisa

estão em equilíbrio.

• opinião: é o estado no qual o Sujeito julga possuir um

conhecimento provável do Objeto, ou seja, afi rma conhecer, mas com

temor de se equivocar.

• certeza: é o estado no qual o Sujeito tem plena fi rmeza de seu

conhecimento em relação ao Objeto, ou seja, o conhecimento emerge

como algo evidente.

O conceito de verdade como correspondência fi cou celebrizado

pela defi nição de São Tomás de Aquino: adequatio rerum et intellectus

(a verdade é a adequação do pensamento à coisa real).

Embora fundamentando várias correntes fi losófi cas, a defi nição de

verdade como correspondência traz consigo o problema de como alcançar

essa verdade através da adequação entre o pensamento e a realidade.

2. A verdade como revelação

O conceito de verdade revelada pode ser encontrada entre os

empiristas e os teólogos.

Os EMPIRISTAS defendem que a verdade representa aquilo que,

imediatamente, se revela ao homem; consiste na sensação, no sentimento

que temos de um fenômeno.

Já os teólogos afi rmam que a verdade é a evidência manifestada

nas coisas; e o princípio verdadeiro de todas as coisas é Deus.

O critério de verdade apontado aqui também é problemático.

São muitos os fatos que, num primeiro exame, nos parecem verdades

evidentes, mas que, logo em seguida, são refutados a partir de uma

análise mais ampla e profunda.

EM P I R I S T A S

Grupo de teóricos ligados ao empirismo, que constitui-se numa teoria do conhecimento segundo a qual todo conhecimento humano deriva da experiência sensível.

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Como exemplo, podemos trazer à luz a substituição

da TEORIA GEOCÊNTRICA pela TEORIA HELIOCÊNTRICA: grande

parte dos homens medievais acreditava ser evidente

que o Sol girava em torno da Terra; essa evidência, no

entanto, se desfez a partir da comprovação científi ca da

teoria heliocêntrica de Copérnico.

3. A verdade como utilidade

Os fi lósofos PRAGMATISTAS estabeleceram íntima

relação entre a verdade e o uso dessa verdade.

Assim, uma noção é verdadeira se provar sua

efetiva utilidade em algum setor do interesse humano.

Um dos expoentes desse tipo de verdade é WILLIAM

JAMES. Para James, a verdade está relacionada com as

conseqüências práticas, bem como está vinculada à

investigação. Isso significa que a verdade deve ser

verifi cada porque diz respeito à praticabilidade ou à

possibilidade de funcionamento no campo das idéias

(MORA, 1996).

4. A verdade como processo

Conforme MARX (1983), a verdade pode ser

compreendida como a qualidade pela qual um conhe-

cimento é produzido historicamente, revelando sua força

transformadora (êxito).

Assim sendo, a verdade é produzida numa relação

concreta e, portanto, prática, que se estabelece entre o

pensamento e a realidade. Nessa perspectiva se apresenta

o problema da objetividade da verdade.

Segundo Schaff (1991), a afi rmação da verdade

objetiva pressupõe o entendimento de que o conhecimento humano é

cumulativo, ou seja, ele se desenvolve numa temporalidade acompanhada

por uma mudança das verdades produzidas como síntese desse

conhecimento.

A verdade equivale a um juízo verdadeiro ou a uma proposição

verdadeira e significa também um conhecimento verdadeiro à

proporção que vai reunindo no tempo (história) as verdades parciais.

KA R L MA R X

(1818-1883)

Filósofo alemão. Sua obra teve grande impacto em sua época e na formação do pensamento social e político contemporâneo. Esses trabalhos estendem-se em múltiplas direções, incluindo não só a Filosofi a, como a Economia, a Ciência Política, a História etc. Entre seus livros destacam-se: O Capital (3 vols.), A ideologia alemã, Crítica da economia política.

PRAGMATISTAS

Grupo de teóricos ligados ao pragmatismo, que constitui-se numa concepção fi losófi ca que defende o empirismo no campo da epistemologia e o utilitarismo no campo da moral. Valorizam mais a prática que a teoria e consideram que devemos dar mais importância às conseqüências e efeitos da ação do que a seus princípios e

pressupostos.

WILLIAM JAMES

(1842-1910)

Filósofo e psicólogo norte-americano, é considerado o pai do pragmatismo.

TEORIA GEOCÊNTRICA

A Terra como centro do universo.

TEORIA HELIOCÊNTRICA

O Sol como centro.

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Page 144: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento

152 C E D E R J

A verdade é um devir que, no processo de acumulação das verdades

parciais, torna permanente o movimento de suas correlações e das suas

transformações no tempo.

Já que estamos na estação da verdade, de que forma somos

capazes de conhecer esta verdade? Afi nal, quais são as possibilidades

do conhecimento humano?

Como resposta, há duas correntes básicas e antagônicas na história

da fi losofi a: o ceticismo e o dogmatismo gnoseológico.

O ceticismo defende nossa impossibilidade de conhecer a verdade.

O dogmatismo gnoseológico defende nossa possibilidade de

conhecer a verdade.

O Ceticismo

Segundo Hessen (1987), o ceticismo pode ser compreendido a

partir de duas vertentes, conforme o grau de negação das possibilidades

do conhecimento.

Se a negação for total, teremos a vertente do ceticismo absoluto.

Se a negação for parcial, teremos a vertente do ceticismo relativo.

Ceticismo absoluto

O ceticismo absoluto consiste em negar de forma total a nossa

possibilidade de conhecer a verdade. Isso quer dizer que, para o ceticismo

absoluto, o homem nada pode afi rmar, nada pode conhecer.

Estudiosos como Hessen apontam o

fi lósofo grego PIRRÓN de Élida como o fundador

do ceticismo absoluto. Pirrón defendia ser

impossível ao homem conhecer a verdade das

coisas devido a duas fontes principais de erro:

• os erros dos sentidos: nossos conhe-cimentos provêm dos sentidos

(visão, audição, olfato, tato, paladar), que não são dignos de confi ança. Na

ilustração podemos observar um erro induzido pela percepção visual.

• os erros da razão: as diferentes opiniões contraditórias mani-

festadas pelos homens sobre os mesmos assuntos revelam os limites de

nossa inteligência. A superação constante das teorias científi cas por outras

mostra que todo o nosso conhecimento é provisório. Jamais alcançaremos

certeza de qualquer coisa.

PI R R Ó N

(365-275 A.C.)

Filósofo grego e fundador do ceticismo.

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Essa vertente afi rma que não é possível chegar a uma interação do

sujeito com o objeto, pois a consciência cognoscente não consegue apreender

seu objeto; logo, não existe conhecimento nem juízo verdadeiros.

Ceticismo relativo

Em vez de negar radicalmente nossas possibilidades de

conhecimento, o ceticismo relativo nega parcialmente nossa capacidade

de conhecer a verdade.

Existem várias modalidades de ceticismo relativo; destacamos

as seguintes:

• fenomenalismo: esse termo deriva de fenômeno, que signifi ca

a manifestação de um fato, a aparência de um objeto qualquer. O

fenomenalismo defende que só podemos conhecer a aparência dos seres,

tal como eles se apresentam à nossa percepção sensorial e intelectual.

Não podemos conhecer a essência das coisas. O fenomenalismo deriva

das teorias de Kant, segundo as quais nosso conhecimento é incapaz de

penetrar na “coisa em si” (número). Temos acesso, apenas, à “coisa para

nós”, isto é, só podemos conhecer a exteriorização das coisas, captada

pela sensibilidade e trabalhadas pela inteligência.

• probabilismo: defende que nosso conhecimento é incapaz de

atingir a certeza total das coisas. O que podemos alcançar é uma verdade

provável. Essa probabilidade pode ser digna de menor credibilidade, mas

nunca chegará ao nível da certeza plena, da verdade absoluta.

Dogmatismo gnoseológico

O dogmatismo GNOSEOLÓGICO defende nossa possibilidade de

conhecer a verdade. No interior do dogmatismo, podemos distinguir

duas vertentes: o dogmatismo ingênuo e o dogmatismo crítico.

Dogmatismo ingênuo

Constitui-se na crença predominante no senso comum, e consiste

em acreditar, plenamente, nas possibilidades do nosso conhecimento.

O dogmatismo ingênuo não vê problemas na relação Sujeito

conhecedor (COGNOSCENTE) e Objeto conhecido (cognoscível). Afi rma

que, sem grandes difi culdades, percebemos o mundo tal como ele é.

Dogmatismo crítico

Constitui-se na crença em nossa capacidade de conhecer a

verdade mediante um esforço conjugado de nossos sentidos e de nossa

inteligência.

GNOSEOLÓGICO

Diz respeito à teoria do conhecimento

que tem por objetivo buscar a origem, a

natureza, o valor e os limites da faculdade

de conhecer.

CO G N O S C E N T E

Aquilo que se pode conhecer.

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Page 146: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento

154 C E D E R J

O dogmatismo crítico confi a em que, através de um trabalho

metódico, racional e científi co, o homem torna-se capaz de decifrar a

realidade do mundo.

Dentro dessa vertente, encontram-se os pragmáticos, que vêem o

conhecimento como resultado de uma operação de pesquisa e investigação

na qual o homem busca solucionar problemas por ele enunciados.

De acordo com Hessen, a corrente dogmatista não compreende

que o conhecimento é essencialmente uma relação entre Sujeito e Objeto.

Acontece desse mesmo modo no que se refere ao conhecimento dos

valores. O fato de que os valores implicam uma consciência avaliadora

constitui um desconhecimento, assim como o fato de que o objeto do

conhecimento implica uma consciência cognoscente.

R E S U M O

Na aula de hoje você aprendeu que o conceito de estratégias de validação do

conhecimento diz respeito ao conceito de verdade. Partindo da indagação sobre

essa verdade, você estudou algumas respostas fi losófi cas, entre elas, a verdade

como correspondência, a verdade como revelação, a verdade como utilidade e a

verdade como processo. Prosseguindo no estudo da verdade, você aprendeu que

existem duas correntes antagônicas que defendem a questão da possibilidade do

conhecimento: o ceticismo (absoluto e relativo) e o dogmatismo gnoseológico

(ingênuo e crítico).

EXERCÍCIOS

1. O que você entende por estratégias de validação do conhecimento?

2. Caracterize os tipos de verdade apresentados na aula de hoje.

3. O que há de comum e de diferente no que concerne aos ceticismos absoluto e relativo?

4. Descreva o dogmatismo gnoseológico.

AUTO-AVALIAÇÃO

Você conseguiu responder sem difi culdades os quatro exercícios acima?

Excelente! Pode imediatamente passar para a aula seguinte. Se conseguiu resolver

com alguma difi culdade, você precisa fazer mais uma leitura atenta antes de

prosseguir para a próxima Estação.

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Page 147: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Destacar os principais aspectos que pontuaram as aulas que versaram sobre o tema "conhecimento".

• Sintetizar os aspectos mais signifi cativos sobre o conhecimento.

Pensando o conhecimento

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Page 148: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento

CEDERJ8

INTRODUÇÃO Vamos parar numa estação para analisarmos com mais vagar tudo que

aprendemos sobre o conhecimento. Precisamos refl etir sobre os diferentes tipos

de conhecimento, a importância da Ciência na história, os paradigmas da ciência

moderna e as estratégias de validação do conhecimento, com o intuito de elaborar

uma síntese desses temas que estudamos nas Aulas 9,10,11 e 12.

OS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO

O homem precisa compreender o sentido e o signifi cado das coisas

e pessoas que o cercam; por isso problematizamos tudo que está à nossa

volta, pois queremos saber o sentido e a origem das nossas ações, das coisas

naturais e sobrenaturais, de nossas intenções, do belo e do feio, do bom e

do mau etc. Sendo assim, o homem questiona vários aspectos do processo

do conhecimento e também constrói diferentes tipos de conhecimento. As

principais questões que estão presentes no conhecimento são: a relação

sujeito-objeto; a possibilidade de conhecimento; por que conhecemos;

para que conhecemos; a origem do conhecimento e a relação ignorância/

conhecimento e verdade. Essas questões sempre apareceram quando os

fi lósofos problematizaram o conhecimento.

Em toda relação de conhecimento precisamos estabelecer uma

relação entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido; este é o

pressuposto fundamental do conhecimento. Além disso, precisamos saber

se é possível ou não conhecer alguma coisa. Esta questão foi elaborada

pelo CETICISMO, que colocava em dúvida a possibilidade do conhecimento.

Quando aceitamos o fato de que podemos conhecer verdadeiramente

alguém ou um objeto, isso signifi ca que rompemos com o ceticismo e

estamos aceitando a possibilidade efetiva de conhecer o mundo. Outra

questão importante é: Por que e para que conhecemos? Há diferentes

respostas para esta questão.

De acordo com PLATÃO, a admiração diante do mundo nos leva

a desejar conhecê-lo, ou seja, o mundo nos toca de alguma forma, nos

convida a conhecê-lo. ARISTÓTELES e DESCARTES também falam da admiração

como um impulso que leva ao conhecimento. Para CANGUILHEM, o

conhecimento é fruto do nosso medo, ou seja, buscamos o conhecimento

para vencer o medo e resolver os problemas práticos. Assim, encontramos

diferentes respostas para a pergunta: Por que e para que conhecemos?

PL A T Ã O

Veja a nota na Aula 9.

AR I S T Ó T E L E S E DE S C A R T E S

Veja a nota nas Aulas 4 e 9.

CA N G U I L H E M

Veja a nota na Aula 9.

CE T I C I S M O

Veja a nota na Aula 9.

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Page 149: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Quanto à origem de nosso conhecimento, ou seja, qual é a fonte de

nosso conhecimento, encontramos três tendências clássicas: o RACIONALISMO,

o EMPIRISMO e o CRITICISMO de KANT. Para o racionalismo, somente a razão

humana, por meio de princípios lógicos e de encadeamento coerente de

argumentos, pode atingir o conhecimento verdadeiro.

Segundo o empirismo, as nossas idéias vêm por meio dos nossos

sentidos. Aristóteles, na Antigüidade, e John Locke, no período moderno,

eram seguidores do empirismo. De acordo com eles, ao nascermos somos

uma folha em branco; assim, no transcorrer da vida, serão escritas as idéias

em nosso intelecto. A fonte de nossas idéias e conceitos é a experiência;

esta se efetiva por meio da relação entre os nossos sentidos e o mundo.

O criticismo de Kant é uma síntese do racionalismo e do empirismo.

De acordo com Kant, o conhecimento inicia-se com a experiência, mas

a experiência por si só não é capaz de elaborar todo o conhecimento, o

sujeito precisa organizar os dados que vêm pela experiência usando a

sua racionalidade; o ser humano possui determinadas estruturas A PRIORI

que possibilitam a experiência e o conhecimento. Assim, a experiência

fornece os conteúdos de nosso conhecimento e o nosso entendimento

organiza esses conteúdos, dando-lhes a forma do conhecimento. Kant

concilia a visão empirista e racionalista, pois mostra a importância da

experiência e concorda, assim como os racionalistas, que possuímos uma

estrutura a priori, ou seja, algo que antecede a experiência.

Outra questão importante para o conhecimento é a relação

ignorância/verdade/falsidade, que veremos mais adiante, ao abordarmos

as estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento. Mas

como poderíamos caracterizar os diferentes modos de conhecer a

realidade? Falaremos aqui da arte, do senso comum, da ciência, do

mito e da fi losofi a.

A arte é um meio pelo qual o homem se situa no mundo; ele

constrói uma interpretação do mundo. A arte e os objetos artísticos são

uma representação simbólica do mundo; cada um tem a capacidade de

apresentar uma visão de mundo e expressá-la por meio de uma pintura,

música, escultura etc. A cultura brasileira apresenta uma enorme riqueza

no campo artístico, por exemplo as músicas de Villa-Lobos, de Chico

Buarque ou um samba de Cartola; cada uma dessas expressões artísticas

apresenta uma visão diferente de mundo e todas são signifi cativas.

IM M A N U E L KA N T

Veja a nota na Aula 9.

RA C I O N A L I S M O, EM P I R I S M O E

CR I T I C I S M O

Veja a nota na Aula 9.

A P R I O R I

Veja a nota na Aula 9.

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Page 150: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento

CEDERJ10

A arte não tem obrigação de ser uma mera reprodução da realidade; na

verdade ela é uma leitura do mundo, que expressa a vivência de cada

um, no seu mundo cultural.

Procure comparar uma expressão artística de sua região com a de

outra região e veja como há diferentes formas de representar o mundo.

Para entender melhor o senso comum, pesquise aspectos que são

comuns na sua região, como por exemplo ervas medicinais e costumes

populares.

O senso comum é um conhecimento espontâneo, fundamentado

nas experiências cotidianas, é uma primeira leitura do mundo. É um

conhe-cimento que responde às necessidades imediatas do dia-a-dia, não

apresenta uma sistematização e um método mais sofi sticados, como a

ciência e a fi losofi a; por isso ele é superfi cial.

O conhecimento científi co apresenta características diferentes do

senso comum, busca conhecer mais profundamente a realidade, estabelece

relações necessárias entre os fenômenos e utiliza um método de investiga-

ção que garante a objetividade. As Ciências da Natureza, como a Física,

a Química e a Biologia, usam uma metodologia científi ca que trabalha

com um conjunto de procedimentos lógicos: a observação, a formula-

ção de hipóteses e a verifi cação. Para investigar cientifi camente algum

aspecto da natureza, o cientista precisa seguir um método que enuncia

um problema, formula hipótese, experimenta e chega a uma conclusão

ou generalização. A pesquisa científi ca começa pela enunciação de um

problema, ou seja, o pesquisador levanta um problema sobre uma deter-

minada realidade e o transforma em objeto de sua investigação. Depois

formula uma hipótese para responder a questões sobre o seu problema

de investigação, testa suas hipóteses por meio da experimentação e chega

a conclusões ou generalizações.

Esse caminho de investigação é bastante usado nas Ciências da

Natureza, enquanto as Ciências Humanas elegem um problema, levantam

hipóteses, mas não usam a experimentação para formular suas conclusões

ou generalizações. O conhecimento científi co busca entender fenômenos

regulares que ocorrem no cotidiano.

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Page 151: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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A Filosofi a, assim como a Ciência, é um conhecimento racional,

que refl ete criticamente a realidade. Na Aula 9 aprendemos que a palavra

Filosofi a vem de dois termos gregos: Filos (ser amigo e ser amante de) e

Sophia (sabedoria). O fi lósofo é movido por EROS, uma força amorosa

e criativa, por isso sempre está numa busca amorosa e constante do conhe-

cimento. A Filosofi a é um conhecimento sistemático e rigoroso, que

trabalha com enunciados precisos e logicamente encadeados, buscando

compreender criticamente a realidade.

O conhecimento fi losófi co não aceita os fatos do cotidiano como

óbvios; na verdade questiona o mundo que nos rodeia, buscando com-

preender o signifi cado de tudo que está à nossa volta. O interrogar e o

duvidar são posturas fundamentais para a refl exão fi losófi ca. A Filosofi a

leva à formação da consciência crítica, por isso supera o senso comum.

Outro conhecimento importante para a nossa cultura é o mito, uma

narrativa que usa os feitos de deuses, semideuses e heróis, ou seja, entes

que se tornam sobrenaturais. O mito, muitas vezes, é considerado lenda,

fábula, algo que está além da história, que perpetua símbolos que são

importantes numa determinada cultura. Por exemplo: O mito de Narciso,

um belo homem que ao ver seu rosto refl etido num lago apaixonou-se

perdidamente por ele mesmo. Esse mito grego explica a excessiva vaidade

humana. Atualmente elegemos vários símbolos. Por exemplo: no esporte

temos Garrincha e mais recentemente Guga; na moda, Gisele Bündchen,

entre outros. O mito é uma forma de conhecimento que elege símbolos

que marcam uma cultura e, muitas vezes, lhe serve de parâmetro.

Os conhecimentos aqui analisados brevemente são criações dos

homens que buscam dar sentido e signifi cado à sua existência. Mas entre

esses conhecimentos há um que tem se destacado ao longo da história:

o conhecimento científi co; por isso veremos a seguir uma breve síntese

de como a ciência vem se construindo e se transformando nos diferentes

períodos históricos.

A CIÊNCIA NA HISTÓRIA

Ao longo da história a Ciência vem se renovando e se modifi cando,

seus modelos ou paradigmas mudam devido aos avanços do conhecimento;

por isso veremos aqui uma breve síntese de como vem sendo construída

no mundo ocidental.

ERO S

Na mitologia grega, representa o Deus do

Amor.

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Page 152: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento

CEDERJ12

A ciência produzida no mundo ocidental nasceu na Grécia, com

o aparecimento da Filosofi a, no século VI a.C. Os primeiros fi lósofos

gregos, denominados pré-socráticos, começaram a investigar o cosmos,

procurando saber qual era a origem do Universo. Eles começaram a

pesquisar o princípio ou os princípios que estariam presentes em todas

as coisas existentes no cosmos ou na PHYSIS. Esses fi lósofos criaram a

Cosmologia, que consiste na explicação racional do cosmos, ou seja,

o mundo possui uma ordenação dada por um princípio racional.

A Cosmologia pré-socrática instaurou questionamentos que têm

atravessado séculos. Qual é a origem do mundo? Como um único

princípio dá origem a multiplicidade? Podemos dizer que esse é o início

da investigação científi ca no Ocidente.

Outro fato a destacar é que os fi lósofos, geralmente, foram

uma mescla de fi lósofos, astrônomos, matemáticos e físicos. Assim,

os conhecimentos produzidos pelos pensadores da Antigüidade eram

classifi cados como conhecimentos fi losófi cos, porque ainda não tinham se

emancipado e se tornado áreas de conhecimento distintas e específi cas.

Os fi lósofos-cientistas do mundo antigo trabalhavam com a

especulação racional e não utilizavam a experimentação para fazer a

verifi cação de suas conclusões. Essas características de investigação

predominaram também nos períodos greco-romano e medieval.

A ciência produzida no mundo greco-romano e medieval

apresentava as seguintes características: a) não utilizava um instrumental

técnico e a experimentação; b) fazia a especulação racional, por isso

a filosofia era imprescindível; c) não havia aplicação prática dos

conhecimentos; d) não era utilizada a Matemática. Assim, a ciência

produzida no mundo greco-romano e medieval não tinha como fi nalidade

a aplicação de seus conhecimentos, havia uma distância entre aquele que

produzia a técnica e o intelectual. A especulação racional permanece

como fi nalidade primordial da investigação científi ca. Esse modelo

científi co muda profundamente a partir do século XVII, com o advento

do mundo moderno.

A partir dos séculos XVI e XVII o mundo passa por

mudanças signifi cativas. Com a instauração do modo de produção

capitalista, questionam-se os dogmas católicos e começa, grada-

tivamente, uma mudança cultural, econômica, política e social.

PH Y S I S

Veja a nota naAula 10.

Procure assistir ao fi lme Giordano Bruno, que discute o aparecimento de uma nova postura na investigação científi ca. No fi lme, Giordano discute os modelos de investigação impostos pela Igreja Católica.

Outro fi lme importante é O ponto de mutação, que discute o confronto entre diferentes modelos para conhecer a realidade, a Ciência, a Filosofi a e a Poesia.

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Constrói-se uma concepção ANTROPOCÊNTRICA de mundo, ou seja, o homem

agora é o centro do Universo. Com essa nova mentalidade, precisa-se

de um novo caminho para investigar a realidade; surge, então, uma

nova forma de racionalidade que cria procedimentos que possam

intervir e agir na natureza. Nesse cenário nasce a Ciência Moderna,

que se fundamenta no conhecimento racional e na experimentação;

essa nova Ciência procura investigar e compreender a natureza, assim

como dominá-la e transformá-la. Esse modo de investigar permanece na

Ciência Contemporânea.

As principais características da Ciência Moderna e Contemporânea

são: a) saber ativo; b) valorização do método; c) método experimental;

d) utilização da Matemática. Essas características marcam a investigação

científi ca das Ciências da Natureza (Astronomia, Biologia, Física,

Química etc.). Mas, no século XIX, aparecem as Ciências Humanas,

que provocaram a indagação: Podemos investigar o homem da mesma

forma que investigamos a natureza? A princípio, os intelectuais

utilizaram nas Ciências Humanas os mesmos métodos aplicados nas

Ciências da Natureza, mas perceberam que o homem é um objeto de

pesquisa complexo, por isso seria necessário trilhar um outro caminho

de investigação. A fi nalidade das Ciências Humanas é conhecer de modo

sistemático e profundo os aspectos sociais, históricos, culturais, políticos,

econômicos e psíquicos da vida humana.

OS PARADIGMAS DA CIÊNCIA MODERNA E AS ESTRATÉGIAS DE VALIDAÇÃO DOS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO

Mas além das diferenças entre Ciências da Natureza e Ciências

Humanas nos defrontamos com outra discussão importante: os

paradigmas da Ciência Moderna. O que a Ciência Moderna elegeu como

seus modelos ideais para a investigação? Como vimos anteriormente, a

Ciência, no mundo moderno, transformou signifi cativamente seu método

de investigação. Os símbolos dessa mudança de paradigma foram BACON,

GALILEU, GIORDANO BRUNO, Descartes, NICOLAU COPÉRNICO e NEWTON. Esse novo

paradigma elege a experimentação, a utilização da linguagem matemática,

a formulação de hipóteses e a formulação de generalizações ou leis e sua

aplicabilidade, aspectos que já discutimos anteriormente.

NI C O L A U CO P É R N I C O

Veja a explicação na Aula 4.

IS A A C NE W T O N

Veja a Aula 11.

GI O RD A N O BR U N O

Sacerdote do século XVI que contesta a

Igreja, afi rmando que a ciência e a verdade

estão acima da religião.

BA C O N

Veja a nota nas Aulas 4 e 11.

GA L I L E U

Veja a nota na Aula 11.

ANTROPOCÊNTRICO

Veja nota na Aula 4.

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Page 154: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento

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Os novos paradigmas da Ciência Moderna e Contemporânea, com

a ênfase na aplicabilidade, na possibilidade de averiguação e a formulação

de leis gerais sobre a natureza, deram ao homem um grande poder. Agora

ele pode intervir e transformar a natureza. Esse novo paradigma faz com

que o homem creia que é poderoso e liberto dos laços da religião. Agora

ele pode decidir, por meio da sua racionalidade, o destino do mundo.

Exemplos dessa potência humana são, atualmente, as mudanças genéticas e

a clonagem. O homem agora pode criar seres inteiramente modifi cados.

Mas, apesar de todo o poder que a Ciência Moderna e Contempo-

rânea confere ao homem, ao longo da história os diferentes tipos de

conhecimento precisaram criar estratégias para validar suas afi rmações.

Como vimos na Aula 9, os diferentes tipos de conhecimento — o senso

comum, a arte, a fi losofi a, a ciência e o mito — apresentam formas

diferentes para explicar e interpretar o mundo, construindo diferentes

caminhos para atingir a verdade.

Alcançar e defi nir a verdade foram os desafi os dos pensadores.

Para Platão e Aristóteles, a verdade é a correspondência de um enunciado

com a realidade, ou seja, uma afi rmação é verdadeira se estabelece a

correspondência entre o que penso e a realidade. Este tipo de concepção

de verdade atravessou a Antigüidade e a Idade Média.

Outra concepção é a verdade como revelação, aceita pelos

teólogos e fi lósofos empiristas. Esses intelectuais acreditam que a verdade

representa aquilo que, imediatamente, se revela ao homem. No caso dos

empiristas, por meio dos sentidos (audição, tato, olfato, paladar e visão);

para os teólogos, por meio da evidência manifestada nas coisas, sendo

que Deus é a maior evidência e critério máximo de verdade.

A verdade como utilidade é a concepção defendida pelos

pragmatistas. Algo é verdadeiro se provamos sua utilidade. No século

XIX, Marx defende a verdade como processo, ou seja, é verdadeiro

o conhecimento produzido historicamente. A verdade é um devir,

transforma-se na história de acordo com as condições materiais de

existência. A verdade é produzida numa relação com a realidade, há

uma relação dialética entre pensamento e realidade.

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Page 155: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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R E S U M O

A discussão sobre a verdade e o conhecimento aponta para

duas correntes fi losófi cas que discutem a possibilidade de existência do

conhecimento verdadeiro: o ceticismo e o dogmatismo gnoseológico. O

ceticismo pode ser absoluto ou relativo. De acordo com o ceticismo absoluto,

é impossível conhecer a verdade, porque tanto os nossos sentidos quanto a

nossa razão não têm condições de fornecer conhecimentos verdadeiros. Para

o ceticismo relativo, podemos conhecer a verdade parcialmente.

O dogmatismo gnoseológico apresenta duas vertentes: o dog-

matismo ingênuo e o dogmatismo crítico. Para o dogmatismo ingênuo,

podemos conhecer a verdade plenamente porque o sujeito que conhece

pode imediatamente estabelecer uma relação verdadeira com o que

pretende conhecer. Esta crença está no senso comum. O dogmatismo

crítico acredita que podemos conhecer a verdade por meio de um esforço

conjugado de nossos sentidos e nossa inteligência. Assim, com o uso

de nossa razão, de um método bem estruturado e de procedimentos

científi cos, podemos atingir a verdade.

Nesta estação fi zemos uma breve síntese do que foi estudado nas

Aulas 9, 10, 11 e 12. Refl ita com calma sobre esta síntese dos principais

aspectos que discutem as diferentes características dos conhecimentos,

a trajetória histórica e os paradigmas da ciência e as estratégias de

validação dos conhecimentos.

Analisamos de modo sintético os conhecimentos: comum, artístico, fi losófi co,

científi co e mítico e as características da ciência na Antigüidade, na Idade Média,

no mundo moderno e contemporâneo. Apontamos também os paradigmas da

Ciência Moderna e as estratégias de validação dos conhecimentos.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento

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EXERCÍCIOS

1. Podemos aproximar a ciência da arte? Por quê?

2. O que caracteriza a Ciência Moderna e Contemporânea?

3. É possível alcançarmos a verdade no senso comum?

4. Como os pragmáticos validam o conhecimento?

AUTO-AVALIAÇÃO

Nesta síntese, você conseguiu distinguir as diferentes características do conhecimento

comum, artístico, fi losófi co, científi co e mítico? Percebeu as diferenças que existem

entre a ciência produzida na Antigüidade, na Idade Média, na Idade Moderna

e Contemporânea? Conseguiu compreender os principais paradigmas da Ciência

Moderna? Compreendeu as estratégias de validação do conhecimento? Então,

pode prosseguir a sua viagem.

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Page 158: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem

Tanto o sucesso/insucesso como o acerto/erro podem ser utilizados

como fonte de virtude em geral e como fonte de virtude na

aprendizagem escolar.

Chegou o momento, prezado aluno, de fazermos uma nova parada nesta

nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”. O Sol descamba no

horizonte, a noite chega de mansinho, enquanto nosso trem vai, lentamente,

parando numa estação especial.

Mas o que haverá de tão especial nesta estação? Nela, caro aluno, você estará,

daqui a pouco, descendo do trem e se dirigindo a uma grande sala no fi nal

da plataforma.

INTRODUÇÃO

Sua bagagem poderá fi car no vagão. Porém, você deverá levar consigo todos os

textos lidos até aqui em nosso curso, além da memória destas nossas conversas,

bem como todos os dados e informações que tiver obtido nas mais variadas

fontes de consulta e nos estudos complementares que houver feito, seguindo

as recomendações constantes nas várias aulas.

Prepare-se, pois, para saltar. Mas não morra de curiosidade! É simples o que

vai ser feito. Simples, porém importantíssimo para ajudá-lo a prosseguir, com

segurança e proveito, nesta viagem em que está adquirindo conhecimentos

fundamentais no campo da Educação.

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Page 159: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Naquela sala, no fi nal da plataforma, que podemos denominar

“Sala de Avaliação”, você vai dialogar, com interlocutores atenciosos

e interessados, sobre tudo o que aprendeu até este momento em nosso

curso; vai ter a oportunidade de avaliar sua viagem. E isto, claro, é

muito importante.

Como em toda viagem, a nossa, imaginária, pela "Terra dos

Fundamentos da Educação", tem lugares aonde chegar, ou seja, objetivos

a alcançar, como você viu indicados em cada uma das aulas. E, a esse

nosso trajeto, correspondem também idéias, noções, teorias, dados e

informações que, colhidas das mais diversas fontes, de variados autores,

irão contribuindo para que você, com seu senso crítico, capacidade de

observação, assimilação e interpretação, forme suas próprias idéias.

Em suma, tudo isso tem como propósito oferecer-lhe a possibilidade de

aprendizagem dos fundamentos da Educação.

Esta é a primeira parada em nossa viagem imaginária destinada

à avaliação. Por isso, prezado aluno, vale a pena você inteirar-se da

proposta e das modalidades de avaliação previstas no Projeto do Cederj,

a instituição que promove, juntamente com a UERJ e a UNIRIO, este

nosso Curso de Pedagogia na modalidade a distância.

Entre os princípios que regem os cursos promovidos pelo Cederj,

está aquele que prevê a:

manutenção de processos de avaliação contínua, considerando

o desempenho dos alunos e a ação pedagógica, com vistas ao

constante aperfeiçoamento dos currículos (Projeto Cederj, p. 5).

Em outra passagem, lê-se, no texto do projeto que:

a avaliação de cada disciplina é parte integrante dos processos de

ensino e aprendizagem e pode variar em função das orientações

dos professores conteudistas e dos professores responsáveis pela

disciplina, ou de necessidades contextuais vigentes no momento da

sua implantação. O processo avaliativo de uma disciplina deve ser

composto por, no mínimo, exercícios avaliativos, duas avaliações

a distância, duas avaliações presenciais e, quando necessário, uma

avaliação suplementar presencial... (Projeto Cederj, p. 18).

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Page 160: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem

Estão previstas também, no projeto do Cederj, as várias

modalidades de avaliação, que são as seguintes:

Exercícios avaliativos (EA) – São exercícios pertinentes às unidades

didáticas. A cada unidade haverá, no fi nal do caderno didático

correspondente, um conjunto de EA. A idéia fundamental é que

o aluno do Cederj possa se auto-avaliar no acompanhamento da

disciplina (testes sem notas). O Cederj deve disponibilizar softwares

especiais para isso.

A interatividade dos alunos entre si próprios e com os tutores deve

ser fortemente estimulada na realização dos exercícios avaliativos,

visando a implementar um processo de ensino e aprendizagem

de sucesso. Nos pólos regionais, deve-se incentivar os alunos a

trabalhar em grupo, utilizando os microcomputadores disponíveis,

de modo a promover sua interação com os tutores a distância.

Avaliações a distância (AD) — São essencialmente de caráter

formativo e devem ser realizadas, basicamente, nos fi nais do

primeiro e do terceiro meses.

As avaliações a distância devem atribuir notas. Sugere-se que o peso

de cada avaliação a distância corresponda a 10% (dez por cento)

da nota fi nal do aluno na disciplina. Assim, a soma dos resultados

nas AD corresponderia a 20% (vinte por cento) da nota fi nal.

Sempre que possível, essas avaliações devem conter trabalhos ou

questões a serem resolvidas por grupos de alunos, estimulando o

processo autoral de caráter cooperativo.

Avaliações presenciais (AP) — Devem ser aplicadas, basicamente,

nos fi nais do segundo mês e do período letivo (fi m do quarto mês).

Essas avaliações têm, no entanto, planejamento temporal rígido.

Realizadas nos pólos regionais ou nas universidades consorciadas,

devem ocorrer em dias e horários preestabelecidos, dentro dos

Períodos de Avaliações Presenciais (PAP) do Cederj, sendo duas

por semestre letivo, com duração aproximada de uma semana

cada, planejadas e incluídas no calendário escolar (publicado no

Manual do Aluno Cederj). Recomenda-se não haver qualquer outra

atividade letiva durante os PAP.

Tais avaliações devem seguir o rigor próprio dos exames presenciais

realizados pelas Universidades Consorciadas, tanto no que se refere

à fi scalização, quanto à elaboração, aplicação e correção das provas.

O padrão de excelência do Cederj corresponderá à qualidade de

suas AP. Sugere-se que o peso de cada avaliação presencial (AP)

seja de 40% (quarenta por cento) do total da nota fi nal. Assim, as

avaliações presenciais, somadas, corresponderiam a 80% (oitenta

por cento) da nota fi nal do aluno (Projeto Cederj, p. 20).

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Dada sua importância, também o projeto da disciplina Fundamentos

da Educação contempla a questão da avaliação, como se pode ver no trecho

a seguir transcrito:

Longe de constituir-se em uma proposta para medir a quantidade

de informações assimiladas, estratégia própria da função

classifi catória, que serve apenas para a conservação da sociedade,

através da domesticação dos alunos, pretende-se, na implementação

da avaliação na disciplina Fundamentos, estabelecer um processo

avaliatório capaz de determinar a natureza e a quantidade de

mudanças efetuadas no comportamento dos alunos, em função

dos objetivos defi nidos e das estratégias planejadas, constituindo-se

num instrumento auxiliar da melhoria dos resultados.

Para atingir tal objetivo, é fundamental a prática da avaliação

diagnóstica, que torna-se assim um momento dialético do processo

de avanço no desenvolvimento da ação, do crescimento para a

autonomia e do compromisso para a competência.

Sabe-se que a avaliação é um processo permanente, capaz de

sustentar o desempenho do aluno, buscando caracterizar o

compromisso educativo, e deve estar diretamente relacionada

com os objetivos que se deseja atingir.

No caso do projeto mais amplo do curso, a área denominada

Fundamentos pretende encaminhar o aluno para uma

profi ssionalização comprometida com a cidadania ativa, na medida

em que suas ações cotidianas constituirão um espaço aberto à

renovação de estruturas e à modifi cação de papéis sociais assimilados,

ao longo do tempo, pelo tempo/espaço político brasileiro.

O modelo de avaliação ora proposto para a disciplina Fundamentos

deve permitir ao aluno:

• direcionar o conhecimento pelas diferentes Estações;

• efetuar paradas, mais rápidas ou mais demoradas, em cada

uma das Estações;

• dispor de outros caminhos para que possa sanar difi culdades;

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem

• prosseguir a “viagem”, tirando as suas dúvidas nas estações

de monitoria;

• utilizar todo o material disponível: textos literários, poesias, letras

de música, links, hipertexto;

• realizar a avaliação com função diagnóstica, de modo a

determinar o grau de progresso em relação aos objetivos, durante

todo o transcorrer da viagem;

• participar de avaliações presenciais que sirvam como instrumento

dialético de diagnóstico, preocupado com a transformação social.

Neste sentido, o rigor técnico e científi co garantirá que a avaliação

terá como objetivo maior a tomada de decisão, a partir de um

mínimo necessário de compreensão, que o aluno deverá demonstrar

em relação a cada um dos diferentes fundamentos.

Acredita-se que a reorientação do aluno é obrigação do projeto,

para que o aluno atinja ou ultrapasse esse mínimo e tenha

garantido o acesso aos conhecimentos necessários à formação de

uma consciência crítica que o liberte da fragilidade e da impotência

diante do poder e da dominação (Projeto Político-Pedagógico da

Disciplina Fundamentos, pp. 6-7).

Agora que já está informado sobre a proposta de avaliação

estabelecida para nosso curso, prezado aluno, você já pode prosseguir,

saltando do trem e dirigindo-se à Sala de Avaliação.

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Lembra-se da primeira aula de nosso curso, intitulada “Uma

Viagem pela Terra dos Fundamentos”? Pois bem, volte a ela, releia-a

e você encontrará os “mapas”, nome com que, em nossa linguagem

metafórica, denominamos as ementas correspondentes à nossa disciplina

de Fundamentos. Esses mapas sintetizam tudo o que já vimos e veremos

no curso. É aos tópicos ali contidos que você poderá se reportar neste

momento em que a parada na presente estação convida-o a avaliar todo

o trabalho feito até aqui.

Naquela sala, lá ao fundo da estação, você receberá a ajuda

inestimável de uma avaliação. Esse procedimento é que poderá revelar

seu progresso, as inegáveis conquistas em termos de conhecimento que

já fez e também as difi culdades que porventura enfrente. Somente assim,

nós, os professores e seus companheiros de viagem, poderemos ajudá-lo

a prosseguir na viagem.

Para essa avaliação, prezado aluno, lhe serão feitas perguntas,

apresentados questionamentos, solicitadas comparações, interpretações

e análises. Tudo isso, não custa repetir, tem como fi nalidade ajudá-lo

a levar a bom termo sua aprendizagem. É neste sentido que, neste

curso, entendemos “avaliação”: uma parte indispensável do processo

de aprendizagem; um recurso pedagógico que possibilita rever pontos

importantes, consolidar saberes adquiridos, dirimir dúvidas e estimar o

que eventualmente deverá ser revisto e estudado novamente, até que você

tenha dominado por completo esses fundamentos da Educação.

Feita essa avaliação, você receberá ajuda para prosseguir.

E certamente sentir-se-á mais seguro, mais confi ante e ainda mais

preparado para cumprir as demais etapas de nossa viagem, ou seja, de

nosso curso.

Prepare-se, pois, caro aluno, para desembarcar e viver essa nova e

importante experiência em nosso curso. Porém, como ainda há bastante

tempo até sua entrevista, vamos apresentar-lhe, a seguir, o conjunto de

questões dentre as quais serão mais tarde escolhidas aquelas que serão

formuladas na Sala de Avaliação. Leia cada uma delas com a máxima

atenção; tente entender completamente o que está sendo solicitado ou

perguntado; em seguida, volte ao texto de cada uma das aulas estudadas

até aqui e tente localizar a origem de cada uma das questões; fi nalmente,

tente preparar sua resposta. Com isso, certamente, você estará muito

mais preparado no momento da avaliação.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem

As questões contidas na presente aula correspondem a uma das

partes do Mapa I. Dentro desta primeira ementa, a avaliação constante

desta aula corresponde aos seguintes tópicos:

• Conhecimento: produção, formas e estratégias de

validação; saber e poder.

• Homem: visões histórica, fi losófi ca, socioantropológica

e psicológica.

Podemos pôr mãos à obra? Muito bem. Veja as questões a

seguir.

AUTO-AVALIAÇÃO

• Explique:

a) A partir da visão fi losófi ca, o que é o ser humano e em que ele se distingue

dos outros seres.

b) As principais características de cada uma das primeiras abordagens na Psicologia

científi ca — a funcionalista, a estruturalista e a associacionista — comparando-as,

em seguida, com as da visão sócio-histórica.

c) As práticas pedagógicas — tradicional, escolanovista, tecnicista ou escolanovista:

indique a que você considera a mais importante para o desempenho da educação,

justifi cando sua escolha.

d) O que, a seu ver, pode ser considerado “verdade”, no campo científi co, tendo

em conta que, ao longo do tempo, muitas têm sido as características do que se

denomina conhecimento verdadeiro.

e) O papel que pode ser desempenhado na Educação por pelo menos dois dentre os

seguintes tipos de conhecimento: Arte, Senso Comum, Ciência, Filosofi a e Mito.

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• Responda:

a) Que princípios fundamentam a concepção de homem no mundo medieval?

b) Se você tivesse de preparar uma aula sobre as etapas básicas do método

científi co, com que exemplos apresentaria cada uma delas a seus alunos?

c) Quais os principais elementos contidos, respectivamente, nas teorias de Piaget

e de Vygotsky sobre a construção do conhecimento e que pontos de divergência

podem ser estabelecidos entre elas?

d) O que signifi ca, em ciência, a noção de “paradigma”?

e) Qual o principal objeto de estudo da Psicologia e a partir de que fatores se

constitui a identidade dessa ciência?

f) Por que a instrução tornou-se fundamental para o homem no mundo con tem-

porâneo?

g) Qual a importância de o professor exercer uma escuta cuidadosa no cotidiano

das suas aulas?

h) Por que a Educação pode ser considerada uma ciência?

• Refl ita:

Imagine-se um professor preocupado com determinada conduta de seu aluno,

como, por exemplo, a difi culdade de relacionar-se num grupo de trabalho em

sala de aula. Tente explicar essa conduta, em primeiro lugar segundo a visão do

Behaviorismo; depois, analise-a de acordo com a Gestalt.

• Cite:

a) As cinco áreas principais da Antropologia e descreva cada uma delas.

b) As principais características do fenômeno denominado “conhecimento”.

c) Algumas das características que fazem com que a ciência moderna se diferencie

das visões de ciência existentes na Antiguidade e na Idade Média.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem

Aí estão, prezado aluno, as questões dentre as quais serão

escolhidas aquelas que serão utilizadas em sua entrevista de avaliação.

Depois de relê-las e de buscar sua relação com as aulas estudadas, dirija-se à

Sala de Avaliação. Lá estarão professores e tutores, cuja tarefa é ajudá-lo a

prosseguir em sua viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”.

Depois de tantos quilômetros percorridos em nosso trem

imaginário, é hora de saltar, esticar as pernas, relaxar e seguir tranqüilo

para essa importante tarefa.

Terminado o trabalho na Sala de Avaliação, tenha certeza de que

você poderá seguir viagem com mais segurança, depois de conhecer sua

própria capacidade, seus limites e de consolidar os muitos conhecimentos

que já adquiriu.

Como a avaliação deve ser contínua e subjacente a todo bom

processo de ensino e aprendizagem, você terá mais adiante, ainda com

relação ao Mapa I, outra parada numa estação para avaliação. Com isso,

terá recebido uma boa ajuda desse processo avaliatório para encetar mais

uma etapa da nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”,

seguindo então o Mapa II.

Os vagões da composição ferroviária serão limpos agora; nossa

velha porém confi ável “Maria Fumaça” passará por uma rápida revisão

e manutenção; nós faremos uma refeição, repondo as energias antes de

seguir viajando.

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Ainda temos um longo e prazeroso caminho a percorrer nesta

nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação". Muito

conhecimento nos aguarda pelo caminho; muitas surpresas nos estão

reservadas; o horizonte do saber se abre, claro e luminoso, diante de

nossa vontade, de nossa curiosidade, de nosso empenho.

Boa sorte!

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Poder e saber au

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Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Refl etir sobre as relações entre saber e poder.

• Refl etir sobre a historicidade das relações entre saber e poder.

• Refl etir sobre as concepções foucaultianas de saber e poder.

OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber

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Continuando nossa viagem, estamos chegando à Estação em que vamos parar

para conhecer e pensar os saberes e suas relações com os poderes.

Vimos, sobretudo nas Aulas 8, 9 e 10, que a Ciência se faz na história, como

qualquer outra atividade humana. Isto signifi ca que os saberes (científi cos ou

não) têm uma historicidade, pois eles são construídos por mulheres e homens

historicamente situados em determinado contexto tempo–espacial para explicar

aquilo que a realidade é. Daí esses saberes serem suscetíveis de mudanças.

Nossa aula vai abordar as históricas relações existentes entre os saberes e os

poderes, a partir das considerações de MICHEL FOUCAULT. Essa perspectiva de

análise não é a única possível e/ou a mais válida. Contudo, devido à importância

da obra de Foucault para o desenvolvimento posterior das refl exões acerca do

poder e do saber, tal caminho foi o escolhido.

Você certamente já deve ter escutado afi rmações tais como: “quem sabe

faz a hora e não espera acontecer”, “quem sabe mais pode mais”, “é mais

importante saber o porquê das coisas do que apenas saber como as coisas

funcionam”. Estas frases trazem embutidas a constatação de que saber e

poder estão intimamente ligados e, mais ainda, de que saber é poder. Daí a

importância da educação para um povo, pois um povo com formação e com

informação tem mais condições de se autodeterminar, porque a educação é um

dos meios privilegiados para desenvolver uma compreensão mais fundamentada

do que é a realidade.

SABERES E PODERES

Discursos e formações discursivas

Para Foucault, a produção dos discursos, isto é, dos enunciados

que emitimos sobre a realidade, sejam eles científi cos ou não, obedece

a certos procedimentos que controlam nossas falas, legitimando umas e

outras não. Esse processo de legitimação se dá por meio das instituições

e conforme as contingências históricas.

INTRODUÇÃO

MICHEL FOUCAULT (1926-1984)

Filósofo francês. Suas refl exões sobre a formação da subjetividade moderna, sobre a historicidade dos saberes e sobre as relações saber/poder desafi aram as convicções modernas tradicionais sobre as prisões, os hospícios, o cuidado dos doentes mentais, as escolas, a polícia, os direitos das minorias, por exemplo. Dentre suas obras podemos destacar: História da loucura, História da sexualidade vols. I, II, III, Vigiar e punir, As palavras e as coisas, Arqueologia do saber, Microfísica do poder, A ordem do discurso.

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Em geral, não temos consciência desses procedimentos, uma vez

que nascemos já lançados em uma dada FORMAÇÃO DISCURSIVA.

Em A ordem do discurso, Foucault apresenta os procedimentos

externos de exclusão de discursos que permitem dominar os seus poderes;

os procedimentos internos, que impedem o aparecimento dos discursos

ao acaso; e os que vão proporcionar o seu funcionamento.

Nessa obra encontramos a descrição do ‘ser’ do discurso

e a explicação de como os complexos saber-poder, presentes nas

construções sociais, funcionam no âmbito social. Isso nos leva a

compreender, como veremos ao longo desta aula, que todo discurso,

presente nas formas de saber-poder, está marcado por relações de força

(poder), e a verdade (presente no pólo ‘saber’) acha-se profundamente

assinalada por essas relações.

Foucault parte da hipótese de que “em toda sociedade a produção

do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e

redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função

conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório...”

(FOUCAULT, 2002, p. 9).

Para dominar os poderes dos discursos, destacamos alguns dos

procedimentos apresentados por Foucault:

a) interdição: aquilo que pode ou não ser dito a qualquer

momento. Assim, não podemos falar tudo, a qualquer momento, em

qualquer circunstância. Exemplos de interdições: o tabu do objeto, o

direito privilegiado ou mesmo exclusivo do sujeito que fala.

Em todas as culturas há os objetos sobre os quais as pessoas não

podem falar sob o risco de acarretar desgraças ou ainda que somente podem

ser falados em certas circunstâncias e/ou por pessoas autorizadas. Um

exemplo é o termo YAHWEH (Javé). Em hebraico, na cultura judaica,

é o tetragrama que representa o nome de Deus e o nome de Deus não

deve ser pronunciado. Na cultura cristã, por sua vez, há o preceito de

que não se deve pronunciar em vão o nome de Deus.

Quanto ao privilégio e/ou exclusividade do sujeito que fala,

podemos exemplifi car com o discurso do médico sobre doenças e saúde,

que nossa sociedade aceita como válido, em detrimento aos discursos de

leigos e mesmo de curandeiros.

FO R M A Ç Ã O D I S C U R S I V A

Espaços sócio-históricos

institucionalizados de enunciação. Isto

signifi ca que o fato de pertencermos a uma cultura nos joga em

uma teia de enunciados previamente já

dada. Esta rede de enunciados ou

formação discursiva condiciona e controla

o que podemos/não podemos, devemos/não devemos falar,

perceber, pensar, conhecer nos diferentes

contextos, como por exemplo: científi co,

religioso, senso comum, familiar, na

roda de amigos.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber

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b) separação entre loucura e razão: a separação entre a

palavra válida daqueles que não são loucos e a palavra

não-válida. Durante séculos, na Europa, a palavra do louco

ou não era validada (não era ouvida) ou era escutada como

uma palavra portadora da verdade, pois nesse caso o louco

era visto como alguém especialmente tocado pelo sagrado.

Mas a palavra do louco não existia de fato e por isso não

era recolhida ou ouvida. Antes do século XVIII, nenhum

médico procurou ouvir o que era dito, como e por que era

dito. Hoje a palavra do louco não é mais considerada algo

que esteja do lado “de lá”. Nós buscamos nela um sentido;

porém, de algum modo, a separação ainda existe.

c) oposição entre o verdadeiro e o falso: as sociedades, em

situações históricas diferentes, estabelecem a separação

entre a Verdade e a Falsidade.

Para Foucault, é possível detectar a VONTADE DE VERDADE, ou seja, o

tipo de separação entre Verdade e Falsidade (regime de verdade) presente

na vontade de saber, isto é, nos saberes de uma sociedade em uma

dada época. Essa separação é historicamente construída, e as grandes

modifi cações científi cas (as mudanças paradigmáticas) podem ser lidas

como o surgimento de novas formas de vontade de verdade.

Na PROPOSIÇÃO, dentro do discurso, a separação entre o falso

e o verdadeiro não é arbitrária ou aleatória, uma vez que resulta de

uma construção histórica. Tal distinção aparece claramente nos nossos

enunciados científi cos ou não, pois toda vontade de verdade é apoiada pelo

suporte institucional – como a escola – e reforçada por práticas – como a

pedagógica – e pela maneira como os saberes são distribuídos, aplicados,

valorizados em uma sociedade.

Portanto, cada regime de verdade historicamente estabelecido em

uma sociedade representa o que pode ser ENUNCIADO (o que pode e deve

ser conhecido e dito sobre o real), percebido, delimitado, conhecido,

nomeado, reconhecido.

As mudanças no modo de ver a realidade estão condicionadas ao

aparecimento/desaparecimento de regimes de verdade.

VO N T A D E D E V E RD A D E M O D E R N A

Entre os séculos XVI e XVII, conforme Foucault, teria aparecido uma nova vontade de verdade baseada no papel determinante do sujeito cognoscente, em um novo domínio de objetos (que passaram a ser mensuráveis, quantifi cados, observados experimentalmente), no uso do aparato técnico para a experimentação e verifi cação do conhecimento.Toda vontade de verdade é apoiada pelo sistema institucional e reforçada pela maneira como uma sociedade valoriza, distribui e aplica os conhecimentos.

PRO P O S I Ç Ã O

Enunciado declarativo ou ainda o que é declarado/expresso por um enunciado.

EN U N C I A D O

Expressão lingüística de sentido completo, que pode ser verdadeiro ou falso e duvidoso.

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d) disciplinas: uma disciplina é defi nida por um domínio

de objetos, pelo conjunto de métodos, de proposições

consideradas verdadeiras, de defi nições, de técnicas e por

um aparato instrumental. As disciplinas, internamente,

reconhecem suas proposições verdadeiras, mas expulsam

como ‘monstruosas’ as que não aceitam. Os ‘monstros’

mudam com a história do saber. Assim, a disciplina Física

Moderna aceita como verdadeira a proposição "é impossível

um corpo fora do espaço" e rejeita a proposição “a pedra

cai devido ao seu lugar natural, que é junto à terra”, que a

Física aristotélica acataria. Por isso, Foucault afi rma que,

quando estamos no verdadeiro, obedecemos às “regras de

uma ‘polícia’ que devemos reativar em cada um de nossos

discursos” (idem, p. 35).

e) sociedades de discursos: cabem a estas sociedades produzir

ou conservar os discursos, fazê-los circular em espaço

restrito, distribuí-los segundo regras estritas. Para este

autor, vivemos hoje numa ‘sociedade de discurso’ mais

difusa, mas igualmente coercitiva.

f) doutrinas: se em uma sociedade do discurso o número de

falantes é limitado e somente entre eles o discurso circula, a

doutrina tende à difusão. O pertencimento a uma doutrina

é dado pela aceitação de regras e pelo reconhecimento das

mesmas verdades, que associam os indivíduos a certas

enunciações e lhes proíbem outras.

A partir do que foi exposto, podemos considerar que:

• É uma ilusão considerar o sujeito fonte exclusiva de

seu discurso (seus enunciados), pois em verdade ele está

empregando signifi cados preexistentes já dados em uma

formação discursiva. Isto se deve ao fato de nascermos

numa formação discursiva, que implica, por sua vez, uma

certa constituição de mundo (ou realidade). Assim, quando

falamos/percebemos/pensamos/conhecemos/agimos,

estamos utilizando o instrumental teórico–prático presente

na nossa sociedade.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber

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• A aparente ‘neutralidade’ dos signifi cados das palavras vem

de sua institucionalização e do trabalho da ideologia.

• As instituições acabam por regular as interpretações,

dispondo sobre o quê, como, quem interpreta e em quais

condições. Assim, o sujeito (cada um de nós) é constituído/

interpelado pelas redes de interpretação.

• A forma de interpretação é historicamente modalizada

pela formação discursiva em que se dá, e a interpretação

é a relação entre os sujeitos e os signifi cados. Portanto,

há relação necessária entre o nosso dizer e as condições

históricas de produção desse dizer, pois para que nossas

palavras façam sentido é necessário que elas tenham algum

sentido. Tal sentido é estabelecido pela formação discursiva

que determina o que pode ser dito ou não a partir de um

lugar historicamente situado em um dado contexto.

Regimes de verdade, formações discursivas e discursos

Fez parte das intenções de Foucault, no nível da ARQUEOLOGIA DO

SABER, elucidar o aparecimento de novos saberes, o que corresponde ao

surgimento de um novo regime de verdade no discurso, que se dá por

meio de rupturas.

Um domínio de saber é constituído por um conjunto de enunciados,

falados e escritos. Quando investigamos a gênese destes enunciados, logo,

de um saber, temos condições de compreender como foi possível que

determinados enunciados aparecessem e outros não. Por exemplo, na

História da loucura, Foucault investigou o nascimento da Psiquiatria

apresentando as condições de possibilidade de seu aparecimento, a partir

dos estudos dos saberes e das práticas sobre a loucura em diferentes

épocas. Por sua análise, percebemos que o saber da Psiquiatria afi rma

e legitima idéias que não havia antes do século XIX, como a categoria

de doença mental.

ARQ U E O L O G I A D O S A B E R

A história arqueológica, proposta por Foucault, fundamenta-se sobre a análise do discurso, visto como o conjunto de enunciados que segue os princípios de regularidade de uma mesma formação discursiva. Nela temos o deslocamento da investigação sobre a ciência para o saber, o que signifi ca o fi m do privilégio da verdade científi ca no âmbito dos estudos do conhecimento. A arqueologia responde à questão ‘como os saberes surgem e se transformam’. Ela privilegia as inter-relações entre os discursos e ainda suas relações com as práticas institucionais (hospital, justiça, escola, família etc.).

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Page 174: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Este exemplo nos leva a ver, por um lado, que os saberes e os

regimes de verdade surgem para responder às históricas necessidades

de conhecimento de cada época. Por outro, que os saberes, tal como o

da Psiquiatria, ao legitimarem certas concepções, acabam por positivar

determinadas realidades, como a da doença mental.

Cada formação discursiva desenvolve um regime de verdade

próprio, que legitimará alguns saberes como verdadeiros, na medida

em que estes estiverem de acordo com as premissas presentes no

regime de verdade. Por conseguinte, o regime de verdade tem força de

normatização, isto é, tem poder de normatização. Este poder acaba

validando os saberes que se fazem de acordo com o regime de verdade

vigente. Por meio dos saberes e de suas práticas, das instituições e suas

relações com a verdade, o poder entra difusamente nas nossas vidas.

Assim, começamos a tocar no tema de nossa aula de modo

contundente, pois já temos condições de afi rmar que o saber e o poder se

relacionam nos discursos – sejam eles fi losófi cos, científi cos, literários,

religiosos, políticos, econômicos, do senso comum –, em instituições e

em práticas sociais, que sempre estão vinculadas aos saberes.

Saber-Poder

Você já parou para pensar sobre o que é o poder? Como alguém

exerce poder sobre outra pessoa? O poder somente é político e sempre

parte de um centro? O poder somente é negativo, coercitivo, repressivo,

limitador? Os saberes não exercem poder? Como? Onde? Os saberes

estão apenas nas escolas, nos livros, nas bibliotecas e afi ns?

Dentre as inovadoras investigações de Foucault, interessa-nos

aqui apresentar as que relacionam saber e poder, ou seja, a história

genealógica que analisa os complexos saber-poder.

Em 1975, com a publicação de Vigiar e punir, ele modifi cou

a forma de análise dos modos de exercício de poder, na medida em

que propôs uma concepção relacional de poder que se contrapõe à

de poder enquanto domínio dos macrossujeitos (Estado, rei, ditador,

classe/ideologia dominante).

Toda sociedade tem seu regime de verdade ou sua ‘política geral da verdade’, ou seja,

em toda sociedade encontramos: a)

discursos que ela aceita como verdadeiros;b) mecanismos por meio dos quais os enunciados falsos são separados dos

verdadeiros;c) o modo como ela

sanciona uns e proíbe outros;

d) as técnicas e os procedimentos que são acolhidos e instituídos como os que garantem a obtenção da verdade;

e) o estatuto daqueles que podem dizer aquilo

que funciona como verdadeiro.

GE N E A L O G I A D O P O D E R

A história genealógica estabelecida por Foucault

busca responder à questão do ‘porquê’ dos

saberes, de sua ‘origem’ e de suas transformações.

Portanto, o poder é analisado em sua relação com o saber. Isto signifi ca

que estamos submetidos pelo poder à produção

da verdade e ao próprio regime de verdade e ainda que somente

exercemos o poder por meio da verdade. Se a história arqueológica

permite o deslocamento da ciência como o lugar

da verdade para os saberes, a genealogia

permite a fuga da noção da ideologia como o

lugar do poder e do erro.

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Page 175: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber

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Foucault defi niu o poder como relação de forças. Poder é poder de

afetar algo e que, por isso, atravessa os saberes. Nesta inovadora forma

de conceber o poder, este passou a ser compreendido como relacional,

imanente (intrínseco) ao espaço social e difuso (não parte somente de

um ponto central).

Ele desconstruiu a concepção tradicional de poder, qual seja, a

que postula o poder como tendo exclusivamente um centro soberano

(o príncipe, o rei, o Estado, a classe dominante) e como sendo exercido

do centro para a periferia e de cima para baixo. Assim, ele não aborda

o poder como emanando de uma entidade concreta, que poderia estar

situada num lugar específi co ou acoplado a uma pessoa (rei ou presidente,

por exemplo).

Por isso, o poder, considerado relações de diferentes forças, atinge

todo o tecido social.

Nesse sentido, Foucault pôde afi rmar que o discurso não é o que

traduz as lutas ou os sistemas de dominação, “mas aquilo por que, pelo

que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”(FOUCAULT,

2002, p. 10).

Um aspecto central da interpretação foucaultiana é o que afi rma

que o poder não apenas normatiza, mas tende a ser constituinte, isto é,

instituidor de domínios de objetos, logo, da realidade que conhecemos

e onde vivemos. Por isso não devemos descrever o poder somente em

termos negativos.

É certo que o poder exclui, reprime, censura, recalca, mas,

sobretudo, ele é positivo na realidade que institui, na medida em que

ele produz objetos e regimes de verdade. Por isso Foucault pôde declarar

que “a verdade não existe fora do poder ou sem poder” (FOUCAULT,

2002, p. 12).

No tecido social, pois, podemos detectar uma imensa rede de

relações saber-poder. Nela temos, por um lado, as verdades estabelecidas

que agem como axiomas reguladores de nossos comportamentos, de

nosso modo de ver e entender o mundo, assim como de nos ver nele; por

outro, um poder que não está ‘localizado’ numa entidade, numa pessoa

ou numa instituição, ou na forma jurídica da lei, mas que está imbricado

nas relações sociais e que são expressos pelos saberes.

Portanto, saber e poder se relacionam nos discursos, sejam eles

fi losófi cos, científi cos, literários, religiosos etc. nas instituições e nas

práticas sociais.

Foucault concebeu o poder como uma rede de relações múltiplas, móveis, exercida a partir de vários pontos em toda a sociedade.Por conseguinte, o poder não é somente algo apropriado pela classe dominante, ou por um presidente ou mesmo por um ditador. Mas sim estratégias materializadas em discursos, em práticas, em técnicas, em instituições, em formas de disciplinarização, que permeiam a estrutura social.

Esse microfísico poder é validado, por sua vez, pelo regime de verdade (logo, pelos saberes), que tem força (isto é, poder) de coerção e de coesão.

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Page 176: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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R E S U M O

• A produção dos discursos obedece a certos procedimentos que controlam os

enunciados, legitimando uns e outros não.

• Via de regra, quando o sujeito fala, não se dá conta dos mecanismos de

assujeitamento aos quais está submetido. Ele não percebe que emite enunciados pré-

construídos e toma por suas as signifi cações validadas pelo regime de verdade.

• Os saberes e o pensamento em suas relações com a verdade têm uma história.

Quando a verdade em cada época é problematizada, isto é, o modo como as

pessoas entendem o que verdadeiramente é real, de fato estamos problematizando

os conhecimentos que dizem o que as coisas são e também o ‘peso’ (o poder) que

tais conhecimentos têm na sociedade.

• Por meio do que se fala (e do que não se pode falar), nós entendemos como os

saberes se constituem e como um regime de verdade é estabelecido pela sociedade

de modo a responder a uma urgência histórica.

• Todo regime de verdade tem poder de coerção e de coesão; nele temos os saberes/

discursos e práticas produzidas e validadas como verdadeiras por cada sociedade.

• Os saberes são considerados peças de relações de poder que podem perpetuar/

modifi car o poder.

• O poder, por sua vez, é visto como um instrumento que consegue explicar o

nascimento/permanência/morte dos saberes.

• O poder está materializado em discursos, técnicas, práticas, instituições, formas

de disciplinarização. Por isso, ele se estende pela teia social.

• Os discursos atingem a vida dos homens/mulheres promovendo hábitos

alimentares, tabus, normas, ritmos de trabalho, isto é, promovendo valores.

• Esses discursos/conhecimentos/ciência acham-se intimamente associados aos

elementos não-discursivos (instituições, prédios/formas arquitetônicas, por

exemplo). Daí Foucault não dissociar, em sua análise, o regime de verdade

‘pura’ (discursos/conhecimentos/ciência) das relações de poder sustentadoras das

instituições, da sociedade, do Estado.

• Aquilo que somos, em cada período histórico e em cada cultura, é moldado

na dependência dos regimes de verdade, das relações de poder e das formas

de individualização.

• Quando consideramos a associação saber-poder, passamos a atentar para as

relações entre as diferentes formas de saber e os poderes que as formas de saber

implicam. Por sua vez, as confi gurações de saber estão inscritas no jogo do poder.

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Page 177: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber

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EXERCÍCIOS

1. A nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases) estabeleceu que todos os professores

deverão concluir curso de nível superior. Refl ita sobre esta mudança usando o

referencial teórico saber-poder de Foucault.

2. Refl ita sobre a questão curricular articulando saber e poder, a partir da

perspectiva foucaultiana.

AUTO-AVALIAÇÃO

• Comentar a historicidade dos saberes.

• Explicar os procedimentos que controlam a produção dos discursos.

• Explicar a concepção foucaultiana de poder.

• Explicar os complexos saber-poder.

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Page 178: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Compreender a distinção entre saber e sabedoria, estabelecendo as relações e inter-relações entre essas duas noções.

• Identifi car os diferentes saberes que os alunos trazem, valorizando-os como conhecimentos importantes no processo ensino-aprendizagem.

• Refl etir, no cotidiano da prática docente, sobre a importância do saber e da sabedoria como elementos necessários ao processo ensino-aprendizagem.

Saber e sabedoria

Pré-requisito

Para a compreensão desta aula recomenda-se o estudo das aulas “Pensando o conhecimento” e “Saber e poder”.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria

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Entretidos, olhando a bela paisagem à margem da linha férrea,

percebemos agora que nosso trem vai parando lentamente. Como

imaginamos estar viajando com uma “Maria Fumaça” – locomotiva

antiga movida a vapor – observamos que se trata de uma parada

estratégica para abastecer a máquina com lenha e o reservatório com

água que, sob o fogo da caldeira, logo se transformará em vapor.

Parados, notamos próximo da linha um rio caudaloso. Num

atracadouro, vemos uma BALSA. Como em muitos rincões do Brasil, balsas

como essas servem para permitir que pessoas, animais e veículos cruzem

rios, prosseguindo a viagem na outra margem, onde a estrada continua.

Essa visão do rio e da balsa nos traz à memória uma história que

serve para ilustrar bem a distinção mais superfi cial que quase todos fazemos,

muitas vezes sem se aperceber, entre saber e sabedoria. Eis a história.

Um homem muito sábio, detentor de muitos títulos, mestre em

muitos conhecimentos, erudito capacitado a ensinar disciplinas em

muitos campos de saber, para continuar sua viagem tem de atravessar

um rio muito largo e caudaloso. As águas barrentas e revoltas dão medo.

Preferível seria o conforto de uma estrada. Mas não há jeito: o único

caminho existente exige a travessia do rio utilizando a balsa.

O sábio aproxima-se do balseiro e, com certa difi culdade, consegue

que aquele homem simples se disponha a ajudá-lo na travessia. Acertado

o pagamento, a balsa é desatracada e, manobrada com muita habilidade

por aquele pobre e iletrado homem, inicia a travessia do perigoso rio.

Reparando na habilidade do homem da balsa, que lhe infunde

confi ança, o sábio fi ca mais relaxado e começa a gostar da travessia, que é

lenta mas proporciona uma visão privilegiada do rio, de suas margens, sobre

as quais grandes árvores se debruçam, de um pôr-de-sol que se desenha no

horizonte e dos sons de pássaros vindos da mata cortada pelo rio.

Com a travessia vagarosa, nosso sábio – homem acostumado à vida

agitada das cidades e à rotina dos gabinetes e das salas de aula – começa

a fi car um tanto melancólico, lamentando que não haja transporte mais

rápido que o leve logo ao encontro de seu compromisso numa cidade

ainda distante, na qual poderá dar uma palestra com o brilho, entusiasmo

e reconhecimento costumeiros.

Onde está a sabedoria que perdemos

no conhecimento? (T.S. Eliot)

A invenção da máquina a vapor é atribuída ao escocês James Watt, que a patenteou em 1769. Entre 1801 e 1814, o norte-americano Robert Fulton desenvolveu barcos com essa mesma força motriz que, mais tarde, geraria as locomotivas.

BA L S A

É uma embarcação, geralmente mon-tada de forma muito rudimentar, formada por um aglomerado de troncos, toros ou tábuas. Balseiro é aquele que conduz a balsa.

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Page 180: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Depois de olhar para o céu, em que as primeiras estrelas começam

a despontar depois do ocaso, e para afastar o tédio que começa a invadi-

lo, o sábio puxa conversa com o balseiro.

— Meu caro homem – diz com sua voz empostada –, você sabe

o que é a Astronomia?

— Não, sinhô, num sei não.

— Pois saiba que a Astronomia é a ciência que estuda os astros do

céu, as estrelas, os planetas. Por não saber o que é a Astronomia, você

perdeu metade da sua vida. E a Botânica, sabe você o que é?

— Sei não, sinhô – diz o balseiro.

— A Botânica, meu pobre homem ignorante, é a ciência que

estuda as plantas, todo o reino vegetal, essas belas árvores que vemos à

margem do rio. Não sabendo o que é a Botânica, você perdeu metade

da sua vida.

E assim, enquanto a balsa avançava em meio às águas perigosas

em direção à outra margem, o sábio foi fazendo perguntas sobre a

Medicina, a Filosofi a, a Geologia, a Política e acerca de muitos outros

conhecimentos, enquanto o humilde balseiro só coçava a cabeça e

arregalava os olhos vendo como era sábio seu passageiro.

Lá pelas tantas, quando a balsa se encontrava no ponto mais

perigoso, no meio do rio, onde as águas eram mais fundas, o balseiro

indagou:

— Discurpe, seu sábio, mas o sinhô sabe nadá?

Assustadíssimo, o sábio respondeu que não. Então, o balseiro,

levantando-se, jogando fora o remo, e antes de pular no rio e afastar-se

para a segurança da margem com braçadas vigorosas, gritou:

— Me adiscurpe, seu sábio, então o sinhô perdeu sua vida toda,

porque o barco bateu numa pedra, tá cum buraco no fundo e vai afundá!

E lá se foi o sábio, com todo o seu conhecimento, para o fundo

do rio!

Você já deve ter percebido, caro aluno, que essa história nos dá

uma boa idéia da distinção entre o saber, como conhecimento, como

erudição, como acúmulo e entendimento de informações teóricas, e

a aplicação prática que a gente pode fazer das coisas. Além disso,

podemos ver que existe uma “escola da vida”, que acaba por nos dotar

da sabedoria necessária para enfrentar e resolver problemas.

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Page 181: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria

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Estudando neste Curso de Licenciatura, que se destina à sua formação

com professor, você estará posicionado como um mediador, ou seja,

estará entre esse mundo de saber formal, teórico, intelectual e um mundo

de saberes igualmente profundos, ensinados pela própria vida e que

caracterizarão a sabedoria.

Essa distinção, tomada em sentido mais profundo, tem sido

estudada ao longo dos séculos, especialmente pela Filosofi a. O saber

é, com freqüência, comparado ao conhecimento. É nesse sentido,

por exemplo, que falamos do saber científi co, um tipo de saber que

trata predominantemente das coisas objetivas, trabalhadas de forma

sistematizada, utilizando procedimentos e métodos. Saber, assim

considerado, significa uma maneira determinada de apreender a

realidade e de lidar com ela. Esse saber é utilizado para a realização

de coisas práticas – como, por exemplo, quando as teorias científi cas

se convertem nas aplicações que denominamos “tecnologia”. Além

disso, o saber é fi xado e transmitido, transformando-se num modelo

a ser seguido. Porém, com o passar do tempo, esses modelos – que são

denominados PARADIGMAS – vão se transformando, por não atenderem

mais às exigências e necessidades da sociedade, surgindo outros modelos.

A isso se denomina “quebra de paradigma”.

Quebrar paradigma é, em suma, buscar um novo olhar. No caso

desta aula, signifi caria o professor valorizar não apenas o conteúdo

expresso nos programas, nos livros didáticos, nas exigências apresentadas

nos documentos legais, mas buscar sentimentos, emoções, vivências que

estão presentes na vida dos alunos, que são esquecidos, abandonados

em nome de um conhecimento racional, experimentado, comprovado,

tido como verdade. Retomando o que já dissemos aí acima, caro aluno,

trata-se de valorizar os saberes que compõem o “currículo” informal

do que aprendemos, cotidianamente, desde que nascemos, em todos os

lugares e em todas as relações que estabelecemos, na família, no trabalho,

no ambiente religioso que porventura freqüentarmos etc.

Importa, nessa mudança de olhar, nesse novo paradigma, dialogar

com a incerteza, com o não-estabelecido que faz parte da cultura dos

alunos. Esta cultura é aquela que se aprende na “escola da vida”, em

seus múltiplos sentidos.

Essa riqueza que a vida nos oferece pode trazer o reencantamento

do aluno pela sala de aula, considerando-se que ele terá vez e voz para

apresentar os seus saberes impregnados de sabedoria.

PA R A D I G M A

Pode ser entendido como um modelo capaz de guiar uma investigação, sem imposições; ou como uma mudança de olhar; ou, ainda, o estabelecimento de diferentes formas de olhar, procurando dar conta de uma faceta, de uma nova realidade.

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Page 182: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Desprezando o saber que traz dentro de si, impomos o saber vindo

de fora, e acabamos por não enxergar a sabedoria que o aluno possui.

Preocupados com saberes, acabamos por perder de vista a

sabedoria, que também costuma ser denominada “sapiência”.

Uma educação que valoriza os saberes e a sabedoria permitirá ao

aluno sentir-se como sujeito importante do processo, na medida em que

tanto a cultura científi ca – os saberes – como a cultura das humanidades

– a sabedoria – podem ser mobilizadas.

O aluno deixaria de se sentir um “estranho no ninho”, com saberes

abstratos, e passaria a dialogar, também, com os saberes acumulados

pela vivência do dia-a-dia.

Os saberes do nosso “sábio” – aprendido na escola – e a sabedoria

do balseiro – aprendida na vida – certamente gerarão um saber com

sabor: a sapiência.

Era certamente ao tipo de conhecimento como “saber” que perten-

ciam as coisas mencionadas ao balseiro pelo sábio da nossa história.

Mas, caro aluno, será que todos podemos ser sábios nesse sentido?

Será que nossa vida não depende também de saberes menos objetivos,

saberes que dependem de nossa subjetividade, de nosso “sentir” o

mundo? Uma observação mais atenta demonstra que dependemos

muito de um saber do tipo “comum” ou “vulgar”, que aprendemos no

que já denominamos “escola da vida”. Foi esse saber que salvou nosso

balseiro da morte certa.

Dada a sua complexidade, a questão dos saberes tem sido objeto

inclusive de classifi cações. SCHELER, por exemplo, fala de: “saber técnico”,

aquele que é motivado pela necessidade; “saber culto”, suscitado pela

curiosidade; e “saber de salvação”, um tipo de saber que tem vinculação

com a motivação religiosa.

Outro tipo de classifi cação é feito segundo a natureza do saber.

Assim teríamos o já mencionado “saber comum ou vulgar”, o “saber

científi co” e o “saber fi losófi co”.

Desde a Grécia Antiga havia uma preocupação em distinguir saber

de sabedoria. Esta última já era considerada uma espécie de inteligência

prática, uma arte capaz de permitir o discernimento e a habilidade

necessários para agir e resolver problemas, uma forma de pensamento

ou de ação vinculada à capacidade de julgar.

MA X SC H E L E R, F I L Ó S O F O A L E M Ã O

(1874-1928)

Além de estudos sobre valores e sobre o Ho-

mem, propondo um campo de estudos

fi losófi cos que veio a denominar-se “Antro-

pologia Filosófi ca”, investiga a questão dos tipos de saber, em seus

trabalhos de Sociologia da Cultura.

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Page 183: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria

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Nesse sentido, sabedoria vincula-se menos a uma capacidade de saber

das coisas do mundo, e de buscar uma “verdade” científi ca, do que se

relaciona com a capacidade de agir com prudência, moderação, utilizando

a experiência e a maturidade.

Simplifi cando, talvez pudéssemos afi rmar que uma coisa é ser sábio

para, por exemplo, conhecer o que é a justiça, com sua leis e códigos;

outra é ter sabedoria para exercer de fato a justiça.

Há um exemplo terrível que pode nos ajudar a pensar mais um

pouco sobre essa distinção que é o tema de nossa aula. Trata-se do

episódio ocorrido ao fi nal da Segunda Guerra Mundial, em que foram

lançadas bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e

Nagasaki. Não há dúvida de que muito saber foi desenvolvido até que

aqueles artefatos fossem aperfeiçoados. Porém, podemos indagar: houve

sabedoria na utilização dessa capacidade científi ca e técnica?

Outro exemplo: a Ciência já está quase atingindo o ponto de

saber como clonar seres humanos. Mas, será preciso muita sabedoria,

muita capacidade de julgar corretamente para utilizar essas inegáveis

conquistas do saber humano em benefício da humanidade.

Nenhum de nós tem dúvida de que vivemos hoje num mundo em

que a racionalidade impera, isto é, valem mais do que quaisquer outros

os saberes fundados na Razão. A Ciência é o saber predominante; ser

sábio é, pois, fundamental, nesse sentido de dominar um saber que

explica tudo, que permite fazer coisas, especialmente construir artefatos

que dão conforto e comodidade à nossa vida. Quando adoecemos, por

exemplo, geralmente buscamos a ciência sob a forma da Medicina que,

inegavelmente, nos traz alívio ou mesmo cura nossas doenças.

Mas será que isso é simples assim, caro aluno? Será que na maioria

das vezes não recorremos também à sabedoria contida nos remédios

caseiros, e eles nos trazem alívio? Por que será que isso acontece? A

resposta puramente científi ca, fundada naquele saber experimental e

de racionalidade em que se funda a ciência paradigmática de nosso

tempo, será certamente de que isso “tem apenas valor psicológico”. Será

realmente isso, ou será que falta realmente sabedoria em nossa vida?

Entender a origem do signifi cado das palavras, o que se denomina

“etimologia”, nos ajuda muito. Se fi zermos isso com a palavra “saber”,

veremos que tem a mesma raiz do termo “sabor”, como já mencionamos

antes nesta aula.

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Isso provavelmente se deve ao fato de que os homens, desde épocas

remotas, perceberam que nosso contato com o mundo é um contato

integral: aprendemos sobre as coisas não somente entendendo-as com

a utilização de nosso intelecto, de nossa razão; aprendemos com todo

o nosso ser; aprendemos com a mente e igualmente com o corpo; com

a razão e com a emoção. Desse modo, é fácil perceber que aquele

conhecimento intelectual, de que falava o sábio de nossa história, não

dá conta de tudo; traz-nos saber, que é indispensável, mas não nos

garante a sabedoria, inclusive para a melhor utilização do saber, como

fi cou demonstrado nos exemplos que demos acima.

A Ciência é, portanto, um saber muito mais limitado do que

pen samos. Numa analogia com a culinária, o educador Rubem Alves

afi rma:

A ciência, à semelhança das vacas, tem um estômago especializado

que só é capaz de digerir um tipo de comida. Se eu oferecer à ciência

uma comida não-apropriada ela a recusará e dirá: ‘Não é comida’.

Ou, na linguagem que lhe é própria: ‘Isso não é científi co’. Que é a

mesma coisa. Quando se diz: ‘Isso não é científi co’ está-se dizendo

que aquela comida não pode ser digerida pelo estômago da ciência

(ALVES, 1999, p. 90).

Edgar Morin, socioantropólogo francês, também pode nos ajudar

nesse esforço para entender a distinção entre saber e sabedoria. Esse

autor nos diz que o homem ocidental tem sido defi nido em termos de

sua razão, ou seja, ele é o homo sapiens. Morin afi rma que, no entanto,

é preciso considerar que somos, em verdade, o homo sapiens-demens,

isto é, somos também “demência”, quer dizer, uma dimensão mais ampla

que escapa à racionalidade. Diz Morin:

Se se define homo unicamente como sapiens, oculta-se dele a

afetividade, disjuntando-a da razão inteligente. Quando retroagimos

para aquém da humanidade, surpreendemo-nos pelo fato de que o

desenvolvimento da inteligência entre os mamíferos (capacidade

estratégica de conhecimento e ação) encontra-se estreitamente

correlacionado com o desenvolvimento da afetividade (1998, p. 52).

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Page 185: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria

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Vemos, pois, que nossa relação com o mundo, com as coisas e

os outros seres humanos exige de nós a consideração de toda a nossa

potencialidade. Em outra passagem, Morin afi rma:

Assim, na copulação mecânica entre sapiens e demens tem-se

criatividade, invenção, imaginação… mas também criminalidade

e maldade (ibid., p. 54).

Você não acha, caro aluno, que isso fala muito de perto a nós,

professores? No dia-a-dia da sala de aula, desejamos que nossos alunos

apreendam o saber, mas que também desenvolvam sabedoria, isto é,

criatividade, capacidade inventiva para resolver problemas, muitos dos

quais, já vimos, não vão poder ser solucionados apenas com a ajuda do

saber, ou seja, com o lado razão de nosso aluno.

Para que isso ocorra, é necessário que o seu olhar recaia sobre o

horizonte da vida, que é similar a este horizonte que você pode apreciar da

janela do nosso trem. Uma natureza benfazeja, com árvores centenárias,

pássaros que, voando, dividem conosco esta atmosfera: pequenas fl ores do

campo, singelas, puras, tocáveis pela brisa do vento e pelo beija-fl or que

lhes rouba o néctar; o sol, que aquece e traz nova vida; e o entardecer,

que nos presenteia com um céu róseo.

Apreciar a natureza que está no nosso entorno é uma grande

sabedoria que os homens têm desprezado por causa da labuta do dia-a-

dia. Despertar no seu aluno tal sabedoria é ensinar-lhe sobre a condição

humana, que você já estudou na aula “Homem: Visão Filosófi ca”.

Mas, a condição humana, para ser ensinada, precisará que os saberes

não sejam compartimentalizados, fragmentados em disciplinas díspares.

Para tanto, importa formar homens capazes de organizar seus conhe ci-

mentos, em vez de apenas armazená-los, por uma acumulação de saberes.

Sabemos que é imenso o universo do conhecimento, mas sabemos

também que esse universo só tem sentido se for signifi cativo para o aluno,

isto é, se fi zer sentido em sua vida.

O professor de uma disciplina – seja Matemática, Física, Biologia

ou qualquer outra – precisa ter em mente que a cabeça do seu aluno

não é formada por silos que guardam saberes, depósitos dos quais, na

medida da necessidade, o aluno iria abrindo cada uma das torneirinhas

e recolhendo o saber ali acumulado. Concordar com isso seria uma

atitude reducionista por parte do professor.

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Page 186: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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WE R N E R K. HE I S E N B E R G

(1901-1976)

Cientista que lançou as bases da

Teoria Quântica, formulou também o famoso Princípio da Incertezas, segundo

o qual, se não se pode determinar com exatidão as condições iniciais de um sistema,

então também não é possível prever

seu comportamento futuro. Porém, é

possível estabelecer a probabilidade de que um fenômeno venha

a ocorrer.http://geocities.yahoo.com.br/saladefi sica9/

biografi as/heisenberg.htm

AL B E R T E I N S T E I N

(1879-1955)

foi um dos mais importantes cientistas

de nosso tempo, aquele que formulou a Teoria

da Relatividade. Ele também merece uma

pesquisa feita por você.

Para tal visão, caro aluno, importa ministrar suas aulas numa

dimensão transdisciplinar, que abarque a Ciência e as instâncias sociais,

a estética e a política.

Não queremos, a partir destas aulas – como companheiro em

nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos” fazer de você um super-

homem ou um superprofessor, mas sim alguém comprometido com a

transformação do homem, no planeta, na medida em que você desloca

a sua missão do campo exclusivo da sua área de conhecimento, o seu

domínio cognitivo para os demais domínios.

Você não deixará de fazer valer o seu conhecimento, mas estará

sempre articulando esse saber com outros saberes; buscará a interação

entre duas ou mais disciplinas, podendo ir da simples comunicação das

idéias até a integração mútua dos conhecimentos, da epistemologia, da

metodologia, dos procedimentos, buscando a unidade do saber.

A ciência clássica – o olhar CARTESIANO –, que considerou a razão

como o mito unifi cador, explica os fatos isoladamente, enquanto a Nova

Ciência, que envolve a Teoria da Relatividade e a mecânica quântica, faz

surgir a realidade indeterminada, uma probabilidade onde tudo pode

acontecer. A probabilidade assume o lugar da certeza.

Por outro lado, Einstein redimensiona esse impasse, ao afi rmar

que a simultaneidade de acontecimentos não pode ser verifi cada, pode

tão somente ser defi nida, relativizando verdades.

Além de EINSTEIN tem-se HEISENBERG, que apresenta o conceito de

probabilidade. A função da probabilidade combina entre si os elementos

objetivos (conseqüência da descrição, independente do observador),

subjetivos (se referem ao nosso conhecimento incompleto do mundo) e

as incertezas (nunca vemos as coisas realmente como são). Veja como a

história que lhe contamos no início desta aula é pertinente!

Diante disso, que, em Filosofia da Ciência, se denomina

“corte epistemológico”, como continuar ministrando conhecimentos

fragmentados, fechados em seus “casulos”?

Observe nesta viagem o mundo rico de saberes que você está

adquirindo rico em cada estação, em cada parada de nosso trem.

Acreditamos, parafraseando Edgar Morin, que estejamos

contribuindo para que você tenha uma cabeça bem-feita, e não apenas

uma cabeça cheia.

O termo “cartesiano” refere-se ao fi lósofo

René Descartes (1596-1650), muito importante para o

pensamento ocidental, para a Ciência

moderna e para a Filosofi a. Entre com

esse nome na Internet e faça uma busca sobre

esse pensador.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria

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Tente fazer isto com os seus alunos: use seu saber, mas use também

a sua sabedoria, e você estará transmitindo saberes que certamente

despertarão a sabedoria.

Isto implica, antes de mais nada, fazer a “religação dos saberes”,

termo cunhado por Morin, que é o grande desafi o do século XXI e que

signifi ca não separar os objetos de seu meio e as disciplinas uma das outras,

uma vez que “a inteligência que só sabe separar espedaça o complexo

do mundo em fragmentos desconjuntados, fraciona o problema (...) e a

inteligência se torna cega e irresponsável” (MORIN, 2002, p. 14).

Quando, mais acima nesta aula, fi zemos uma citação de Morin em

que ele menciona a criminalidade e a maldade – ingredientes infelizmente

muito presentes na realidade brasileira –, isso nos faz refl etir novamente

sobre a distinção já mencionada nesta aula: uma coisa é saber o que

são a justiça ou a bondade, outra é dispor da sabedoria necessária

para vivenciá-las, para aplicá-las efetivamente em nossa vida. Como

professores, além da missão de ajudar os alunos a adquirir saberes, é

necessário termos sensibilidade para levá-los a adquirir sabedoria.

É ainda Morin quem pode nos ajudar a pensar mais um pouco sobre

o tema desta aula, sobretudo quando menciona o papel dos professores.

Embora se refi ra especifi camente aos que lidam com a Filosofi a, cremos

que essas palavras podem se aplicar a qualquer professor, a você mesmo,

na sua relação com seus alunos:

Eu veria o esforço da sabedoria em outro lugar, eu o veria no

esforço da auto-ética. A auto-ética implica inicialmente evitar a

baixeza, evitar ceder às pulsões vingativas e maldosas. Isto supõe

muita autocrítica, auto-exame, aceitação da crítica do outro. Diz

respeito, também, aos universitários e aos professores de fi losofi a,

que não são melhores do que ninguém, mesmo que a despeito dos

manuais de fi losofi a. A auto-ética é, antes de mais nada, uma ética

da compreensão. Devemos compreender que os seres humanos são

seres instáveis, nos quais há a possibilidade do melhor e do pior, uns

possuindo melhores possibilidades do que outros (ibid., p. 61).

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Nosso trem põe-se novamente em marcha, já abastecido de lenha

e água; a locomotiva resfolega conduzindo-nos em nossa viagem pela

“Terra dos Fundamentos da Educação”.

Antes, porém, imaginemos uma cena bem ilustrativa do tema

de nossa aula. Olhando pela janela, observamos que há um menino

vendendo deliciosas cocadas feitas com doce-de-leite. Lá está ele, cercado

de passageiros querendo comprar as cocadas. O menino não tem mãos

a medir: embrulha as cocadas, recebe o dinheiro, faz o troco… E tudo

isto muito rápido; os passageiros não podem esperar, pois nosso trem

está prestes a partir.

Apesar da pressa e do assédio dos passageiros, o menino não

erra no troco. Ele, portanto, sabe operar com os números corretamente.

E isto ele aprendeu na “escola da vida”, que lhe possibilitou adquirir

essa sabedoria prática, cujo domínio é ditado pela necessidade.

Não nos surpreenderíamos, caro aluno, se esse menino fosse seu

aluno e não conseguisse ir bem na hora de tentar aprender o saber formal

contido no conhecimento estudado na escola. Ele poderia atrapalhar-

se com a teorização, com os procedimentos e todos os conhecimentos

exigidos pelo saber entendido como o conhecimento formal, sistemático,

que a escola tem para lhe oferecer.

Você, prezado aluno, é aquele mediador de que falamos acima.

Sua tarefa é conduzir o aluno nesse novo campo do saber escolar.

A inteligência ele tem, isso nós vimos ao observá-lo lidar com os números

para fazer o troco e vender as cocadas; a sabedoria, também, para lidar

com a aritmética e ao mesmo tempo relacionar-se adequadamente com

os passageiros que se apresentam com fregueses. Resta, caro aluno,

compatibilizar e articular a sabedoria com o saber. Nisto, você, como

professor terá papel decisivo.

Instalados em nosso vagão, podemos conversar sobre o que vimos

até este momento nesta aula.

Nosso objetivo, não esqueçamos, era estabelecer a distinção

entre saber e sabedoria. E começamos a percebê-la quando vimos que a

dimensão do conhecimento, por si só, não é sufi ciente para enfrentarmos

nossos problemas, como fi cou ilustrado com a história do sábio que

acabou no fundo do rio, talvez afundando mais rapidamente com o peso

de sua erudição. Esta, sem a sabedoria para a escolha e aplicação, vale

menos do que se imagina.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria

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Você já deve ter observado que tem vários alunos que, embora

enfrentando difi culdades de assimilar o conteúdo dado em sala de aula,

dispõem da sabedoria prática. Este é o caso, por exemplo, do aluno que

é reprovado porque não consegue captar os “mistérios” da Aritmética,

mas que jamais se engana no troco quando suas condições de vida o

obrigam a vender frutas ou balas no sinal de trânsito.

A Ciência também foi objeto de nossa refl exão. Vimos de que

maneira ela acaba por se estabelecer como modelo ou paradigma de

saber, mas que sua conversão em ações práticas nem sempre é louvável

e benefi cia a vida humana. Muitas decisões importantes em nossa vida

pessoal, ou relativas ao mundo onde vivemos, ultrapassam a capacidade

da Ciência, isto é, escapam à dimensão do intelecto e exigem nosso

envolvimento integral: de nosso corpo, de nossa mente, de nossos

conhecimentos, mas também de nossa sensibilidade, de nossa emoção.

Fomos alertados também que “saber” e “sabor” têm a mesma

origem ETIMOLÓGICA. Isso pode nos levar a refl etir sobre o papel do

professor e sobre o tipo de saber que está levando o aluno a adquirir.

Que tal, caro aluno, provocar essa discussão em sala de aula, para que

se possa verifi car até que ponto o conhecimento “comum” ou “vulgar” é

rico e pode se constituir numa base pedagógica interessante para que os

alunos ultrapassem esse patamar e ingressem no mundo do conhecimento

científi co? Mas, em verdade, sempre sugerindo que voltem às origens,

às fontes de sabedoria popular onde bebem tais saberes.

Olhando o mundo em que vivemos, talvez não reste dúvida

sobre outro ponto discutido nesta aula: o ser humano é sapiens mas é

igualmente demens. Isso já deve nos levar a pensar, inclusive em nosso

papel como educadores.

Eis algumas sugestões que poderão ajudá-lo a aprofundar o tema

desta aula:

• Na próxima vez em que for trabalhar algum conteúdo programático com seus alunos,

tente estabelecer um paralelo entre esse saber estabelecido e a sabedoria contida em sua

vivência do dia-a-dia.

• Discuta com seus colegas professores a questão dos saberes contidos no material

didático e no próprio discurso do professor, tentando aproximar essa discussão do que

foi tratado nesta aula.

ET I M O L O G I A

Termo derivado do grego etymología, signifi ca a ciência que investiga as origens próximas e remotas das palavras e a sua evolução histórica.

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• Tente, com a ajuda de seus alunos, trazer à escola alguém da comunidade que possa relatar experiências de vida a partir das quais se possa observar o que se considere “sabedoria”.

• Monte, com seus alunos, na sala de aula, um painel com fi guras consideradas “sábias”

na história da humanidade. Em seguida, ajude-os a tentar distinguir, entre os retratados,

aqueles que são respeitados por sua sabedoria, nos termos da distinção estabelecida na

presente aula.

Nosso trem segue em sua marcha. A linha férrea atravessa a mata, cruza pontes e avança

por longos campos verdejantes, permitindo-nos contemplar a exuberância da natureza brasileira.

Aproveite a paisagem, caro aluno, enquanto aguarda a próxima etapa da viagem, que vai tratar

de saber popular e saber erudito.

AUTO-AVALIAÇÃO

• Alguma vez, em minha vida, vivenciei uma história semelhante à apresentada

no início desta aula?

• Após o estudo desta aula, compreendi a sutil diferença entre saber e

sabedoria?

• Preciso rever algumas aulas anteriores para dominar melhor o tema em

estudo?

• Percebi que valorizar o saber e a sabedoria requer uma mudança de olhar – um

novo paradigma?

• Necessito de orientação do tutor para melhor compreender esta aula?

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A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Analisar criticamente a possibilidade de existência de um saber popular.

• Comparar o saber popular com o saber erudito, mostrando a importância de ambos.

Saber popular e saber erudito

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito

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INTRODUÇÃO Avistamos uma nova paisagem da janela de nosso trem. Observamos pessoas

cantando e dançando de um modo diferente; é interessante ver como temos

diferenciados costumes, crenças e conhecimento do mundo. Por isso, vamos

continuar discutindo as questões relativas ao saber. Existe um saber popular e

um saber erudito? Como podemos caracterizar esses saberes?

EXISTE UM SABER POPULAR?

A vida aqui só é ruim

Quando não chove no chão

Mas se chover dá de tudo

Tomara que chova logo

Tomara, meu Deus, tomara

Só deixo o meu Cariri

No último pau-de-arara.

(Venâncio, Corumbá e José Guimarães)

Observe a música de Venâncio, Corumbá e José Guimarães, três

poetas da música popular. Nessa letra simples está contida uma postura

de resistência e de consciência da importância de sua terra natal. Por isso,

precisamos inicialmente perguntar se as camadas populares produzem

um saber, pois geralmente conceitua-se o conhecimento comum como

algo pleno de ambigüidades, contradições, erros e que não apresenta

sistematização tal como os conhecimentos científi co e fi losófi co.

Mas os homens são seres que travam relações sociais dinâmicas

e contraditórias e vivem experiências que precisam ser explicadas. Essas

explicações, muitas vezes, apresentam uma sistematização e uma lógica

distintas do saber erudito, ou seja, existe um modo diferente de entender,

ver e valorar o mundo.

As diferentes classes sociais, de acordo com a sua posição, buscarão

as explicações de suas experiências vividas de forma diferente. Segundo

Lefebvre, “antes de elevar-se ao nível teórico, todo conhecimento começa

pela experiência, pela prática” (LEFEBVRE, 1975, p. 49).

Partimos da idéia de que o saber é construído; por isso, “os

homens pensam tendo como base aquilo que fazem e o modo como

se relacionam nesse fazer; e agem conforme seu modo de pensar e suas

relações sociais” (CARDOSO, 1979, p. 25). Há uma relação entre

prática e saber; por isso, nas camadas populares o saber aparecerá de

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forma diferenciada, porque dependerá do tipo de experiência que é vivida

no seu grupo social e com os outros grupos dentro de um determinado

contexto social e histórico. Sendo assim, podemos entender e explicar a

riqueza e a complexidade do saber popular quando conhecemos “o que

aqueles homens fazem, em qual contexto cultural e como se relacionam

nesse fazer” (MUÑOZ, 1983, p. 17).

Precisamos entender que existem visões de mundo diferentes, que

nasceram num contexto cultural diferente do que vivemos e, por isso,

devem ser conhecidas e merecem ser divulgadas e respeitadas. Pare e faça

uma refl exão sobre a letra da música O morro não tem vez.

O morro não tem vez

O morro não tem vez

E o que ele fez já foi demais

Mas olhem bem vocês

Quando derem vez ao morro

Toda a cidade vai cantar.

Morro pede passagem,

Morro quer se mostrar,

Abram alas pro morro

Tamborim vai falar.

É um, é dois, é três, é cem, é mil a batucada

O morro não tem vez

Quando derem vez ao morro

Toda a cidade vai cantar.

(Vinicius de Moraes e Tom Jobim)

Nesta música, Vinicius de Moraes e Tom Jobim mostram que

há uma especifi cidade cultural do morro que precisa ser conhecida

e entendida; aqueles que não pertencem a esse mundo cultural

freqüentemente não compreendem o que é produzido nesse universo.

O saber popular se constrói no interior das lutas diárias das

camadas populares, buscando satisfazer as necessidades vitais e

elementares, como moradia, saúde, educação, trabalho mais bem

remunerado etc. São estabelecidos valores e prioridades, descobrem-se

estratégias, cria-se uma nova lógica para explicar o mundo.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito

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Devemos considerar que os grupos sociais são heterogêneos:

trabalhadores do campo, operários de indústria, domésticas, trabalhadores

do comércio etc. Então questionamos: existe algo que una o saber produzido

por esses diferentes grupos sociais? Ou melhor: existem elementos ou um

núcleo comum que una essas diferentes experiências de vida?

Podemos afi rmar que o elemento comum aos diversos grupos das

camadas populares é a sua situação de classe; a dominação que sofrem

acaba sendo um elo unifi cador das camadas populares. No seu dia-a-dia

elas vivem uma situação de exploração e dominação devido à divisão

social do trabalho.

A fala desse camponês ilustra como, muitas vezes, as camadas

populares têm consciência do elo que as une:

Pensando certo ou errado, eu defi no tudo da seguinte maneira: a

classe pobre é a indústria. Como toda fábrica funciona por seção,

tem a seção dos trabalhadores do campo, a seção dos operários da

indústria e das fábricas, operários das cidades, seção política, seção da

seca, seção do comércio e muitas outras, até que forma um conjunto

de seções que signifi ca uma indústria, tendo na classe pobre tudo o

que for necessário para a engrenagem dessa indústria.

Como tem que existir classe pobre, no nordeste e no sul, para

sustentar a classe rica do país... lá no Sul foi bolado um sistema de

dominação que causa a mesma pobreza que nem aqui no Ceará e

no Nordeste. Só é diferente o sistema por causa da região, mas os

pobres de lá só se obrigam a se sujeitar aos patrões, ricos e políticos

por causa das necessidades. E, assim, a vida da classe pobre é a

mesma, aqui no Ceará, no Nordeste e no Sul, ou em todo o mundo

(NOVA, 1982, pp. 92-93).

Nessa fala constatamos que, no seio das camadas populares,

frutifi ca um saber consciente que analisa, com lógica própria, a situação

de seu grupo social num determinado contexto social e histórico. Esse

saber foi gerado a partir das experiências e lutas da vida diária, da

observação das contradições vividas no dia-a-dia e de discussões

promovidas por grupos de educadores que se propõem a fazer um

trabalho de educação popular.

Os grupos das camadas populares que têm consciência da sua

situação de exploração constroem o seu saber a partir da relação prática/

refl exão. Esse saber “se constitui no interior de lutas muito concretas

e de relações contraditórias” (MUÑOZ, 1983, p. 28) e, por isso, pode

se transformar numa força/poder de transformação da sociedade.

No início da década de 1960, surgem, no Brasil, diversos movimentos de educação popular preocupados com o processo de conscientização das camadas populares. A ênfase é colocada na alfabetização ou na educação de base, buscando difundir e preservar a cultura popular. Destacamos alguns desses grupos: o Movimento de Cultura Popular (MCP), onde Paulo Freire criou seu método de alfabetização; o Centro Popular de Cultura (CPC); o MEB (Movimento de Educação de Base), criado pela CNBB, que adotou o método Paulo Freire. Esses movimentos foram extintos ainda na década de 1960. Na década de 1970, surgiu o Nova, uma organização não- governamental que pesquisa, assessora e avalia educação, principalmente a educação popular.

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O Movimento dos Sem-Terra é um exemplo recente de movimento

social que apresenta essa força/poder. No interior desse movimento social

construiu-se um novo corpo de idéias pedagógicas, e atualmente podemos

afi rmar que existe uma PEDAGOGIA DO MOVIMENTO DOS SEM-TERRA.

Esse saber, construído nos movimentos sociais, é regido por lógica

e interesses próprios, buscando caminhos diferentes e estabelecendo um

novo espaço de luta. Esse espaço, freqüentemente, não é reconhecido

pelo poder e saber dominantes. O saber popular, construído a partir das

lutas sociais, apresenta estratégia de resistência ao que lhe é imposto

diariamente através dos meios de comunicação, da escola de visão

tradicional, dos discursos ofi ciais etc.

Mas devemos também perguntar: o saber popular, construído

nesse espaço de lutas sociais, é homogêneo? Esse saber está livre de

contradições? Ou seja, basta ele nascer no seio de um movimento social

para fi car isento de erros?

O SABER POPULAR É HOMOGÊNEO?

Devemos tomar cuidado com uma visão que idealize o saber

construído no interior de lutas sociais, porque podemos cair no erro de

considerar que basta existir um movimento social que necessariamente

haverá a produção de um conhecimento correto, puro, verdadeiro e

homogêneo. Corremos o risco de assumir uma visão “espontaneísta”

que pode considerar que, se um conhecimento nasce do povo, ele tende

a ser autêntico e verdadeiro. Essa seria uma postura ingênua em relação

à construção de um saber.

Na verdade, é necessário criar um espaço para pensar, porque o

cotidiano de exploração das camadas populares difi culta a abertura de um

espaço para a troca e a refl exão. A luta pela sobrevivência, a exploração

do trabalho, a programação ideológica, as normas e disciplinas que são

introjetadas impossibilitam o exercício da refl exão crítica. Esses versos

de cordel, por exemplo, mostram um certo conformismo:

CANÇÃO DO LENÇO

Minha vida é um romance

De tristeza e ilusão

Parece que o destino

Foi que fez traição

Minha esperança é perdida

Quando eu canto a minha vida

Dói em qualquer coração.

(Severino Pelado)

CANÇÃO DO LENÇO

Versos de cordel, de Severino Pelado. In: Brandão, Carlos

Rodrigues. A questão política da educação popular. SP,

Brasiliense, 1987.

ROSELI SALETE CALDART

Escreveu o livro Pedagogia do

Movimento Sem Terra, narrando a construção de um novo saber

pedagógico no interior do Movimento dos

Sem-Terra, que criou as bases de um novo

tipo de educação e de escola.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito

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No entanto, os versos do cordel de Patativa do Assaré refl etem

uma consciência de exploração:

CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ

Você é muito ditoso

Sabe ler e sabe escrever

Pois vá cantando seu gozo

Que eu canto meu padecer

Enquanto a felicidade

Você canta na cidade

Cá no sertão eu enfrento

A fome, a dor, a miséria

Pra ser poeta de vera

Precisa ter sofrimento

Podemos constatar que o saber popular, comumente, traz

ambigüidades. Nele está contido o saber do dominante e o saber do

dominado, porque esse saber nasce no interior de relações contraditórias.

É necessário aprender a ouvir e entender a visão das camadas

populares, abrindo espaços de refl exão sobre as contradições vividas

no cotidiano. Geralmente, no interior de um movimento social há

um ambiente que propicia uma maior refl exão sobre as contradições

que um determinado grupo social vive e, por isso, na trajetória dessa

luta, um grupo social pode vislumbrar melhor a sua situação de classe,

reconhecendo a exploração a que está submetido. Nas lutas sociais as

camadas populares defi nem seus interesses, construindo a sua autonomia

no dizer e no fazer.

Podemos afi rmar que a construção de um novo saber necessita de

um espaço de refl exão que possibilite construir um distanciamento crítico

que possa revelar “os mecanismos que instituem dominantes e dominados

e os confi rmam mutuamente nestas posições” (BRANDÃO, 1987, p. 95).

Ter espaço para refl etir signifi ca a possibilidade de fortalecimento para

decidir e realizar mudanças signifi cativas no cotidiano.

Mas qual seria o papel do saber erudito na construção desse espaço

de refl exão? Os conhecimentos científi co e fi losófi co, que representam

o saber erudito, podem auxiliar na construção do saber popular? Ou

eles são incompatíveis?

CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ,

De Patativa do Assaré, versos encontrados no interior de Goiás, em um papel mimeografado. In: Brandão, Carlos Rodrigues. A questão política da educação popular. SP, Brasiliense, 1987.

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O SABER ERUDITO

Freqüentemente o saber erudito é identifi cado com os conheci-

mentos científi co e fi losófi co. Na Aula 8 você conheceu os diferentes

tipos de conhecimento e pôde verifi car o rigor, a sistematização, o

uso do método e outras características dos conhecimentos científi co

e fi losófi co. Tais conhecimentos buscam, através de procedimentos

racionais: a coerência, o rigor das explicações, a verdade sobre uma

determinada realidade.

A Filosofi a questiona a realidade com a intenção de conhecer como

e por que determinados fatos ou fenômenos acontecem, buscando o sentido

profundo de seus diferentes aspectos. A Filosofi a é uma postura diante do

mundo, uma refl exão crítica, sistemática e rigorosa que procura superar o

que é aparente e superfi cial. Ela pode escolher diferentes objetos de estudo:

a realidade social, a política, a religião, a arte, a moral, a educação etc.

A Filosofi a não é um conjunto de conhecimentos prontos e acabados,

mas uma busca constante de conhecimento que duvida e questiona os

diversos aspectos da realidade. A postura fi losófi ca é incompatível com o

DOGMATISMO, ou seja, o fi lósofo não deve recusar o diálogo nem acreditar

que possui a verdade absoluta. O saber fi losófi co pode impulsionar o

homem a romper com a aparência, buscando a compreensão do mundo

que o cerca.

A Ciência procura também, através de procedimentos racionais,

conhecer as relações necessárias e universais entre os fenômenos. Como

já vimos anteriormente, até o século XVII a refl exão fi losófi ca fazia parte

da investigação científi ca, ou seja, Filosofi a e Ciência estavam vinculadas,

produzia-se uma investigação científi ca qualitativa, não experimental e

especulativa. A partir do século XVII, surge uma nova concepção de saber,

um saber ativo que utiliza a Matemática em seus métodos para descobrir

com rigor, precisão e objetividade as causas de um determinado fenômeno.

Essa nova concepção de saber confere muito poder ao homem porque

possibilita não somente encontrar resultados precisos sobre diversos

aspectos da realidade como também pode mudar e interferir nessa

realidade. Com essa nova forma de utilizar a racionalidade, o homem

cria tecnologias que mudam a natureza e as potencialidades humanas.

A racionalidade e a lógica dos conhecimentos fi losófi co e científi co,

pelas possibilidades e poder que apresentam, tornaram-se o parâmetro

RELEIA A AULA 8.

DOGMATISMO

Que não aceita discussão. Adesão

a princípios considerados indiscutíveis.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito

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de saber por excelência, o que fez com que os outros tipos de saber

fossem relegados a segundo plano, principalmente o saber produzido

pela experiência cotidiana das camadas populares.

Precisamos refl etir sobre a possibilidade de intercâmbio entre as

diferentes formas de saber. O saber erudito é incompatível com o saber

popular? Ou pode existir um encontro entre saber erudito e saber popular?

A POSSIBILIDADE DE ENCONTRO ENTRE O SABER POPULAR E O ERUDITO

Sabemos que as formas de produção dos saberes popular e erudito

são distintas, porque o saber popular nasce da experiência cotidiana

acumulada e da refl exão sobre essa experiência, principalmente no

interior dos movimentos sociais, enquanto o saber erudito nasce

nas academias por meio da educação formal, ou seja, a erudição é

imprescindível à construção deste saber. Por isso, ele exige métodos de

investigação rigorosos e uma linguagem não raras vezes sofi sticada e

precisa. Tanto o saber popular quanto o saber erudito buscam conhecer

efetivamente a realidade das diferentes formações sociais e da natureza,

mas com linguagens, métodos e lógicas diferentes.

O maior problema que surge no encontro desses saberes é que

freqüentemente a academia e a escola não reconhecem como válido

e consistente o conhecimento que nasce com a experiência cotidiana,

porque desconhecem a lógica que rege o saber popular. A academia

desconsidera que, no embate das diferentes experiências de vida, pode-se

coletivamente construir uma nova visão de mundo, uma nova linguagem

e uma nova racionalidade.

Tomemos como exemplo os versos do compositor popular PERCIVAL,

na Canção do Carreiro:

Na canga do boi de carro

Tem gente amarrada lá,

Gente não é boi de carro

Pra carro de boi puxar.

Gente tem mente que gira

Mente que pode girar,

Gira a mente do carreiro

A canga pode quebrar

PERCIVAL

Violeiro compositor popular, e líder de trabalhadores rurais em Goiás. Os versos aqui citados estão na página 126 do livro A questão política da educação popular, organizado por Carlos Rodrigues. Brandão.

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Com uma linguagem própria e uma racionalidade que se expressa

de modo diferente daquela utilizada na academia, o compositor popular

mostra a questão da dominação do homem e a possibilidade de superação

dessa dominação. Esses versos demonstram que Percival tem consciência

de classe e política, mas se expressa de um modo diferente de uma pessoa

que passou pela erudição e pela escolaridade formal. Ele demonstra que

tem conhecimento dos problemas sociais de sua comunidade e pode,

inclusive, ter tido contato com teorias sociais e políticas que falam da

dominação, mas a sua forma de expressão é peculiar à sua cultura e ao

seu modo de ver a vida.

A mesma consciência pode ser expressa pelo saber erudito dos

versos de AGOSTINHO NETO:

Inexoravelmente, como uma onda que ninguém trava

vencemos,

o povo tomou a direção da barca.

Na mesma barca nos encontramos.

Todos concordam – vamos lutar.

Lutar pra quê?

Pra dar vazão ao ódio antigo?

Ou para ganharmos a liberdade

E ter pra nós o que criamos?

Na mesma barca nos encontramos.

Quem há de ser o timoneiro?

Ah as tramas que eles teceram!

Ah as lutas que aí travamos!

Mantivemo-nos fi rmes: no povo

Buscáramos a força e a razão...

Assim como o violeiro e compositor Percival, Agostinho Neto,

intelectual respeitado mundialmente, fala também da libertação da

dominação em seus versos, mas com uma outra linguagem, usando

expressões reconhecidas pela cultura erudita. Observamos que a

lógica dos versos de Agostinho Neto é diversa daquela encontrada nos

versos de Percival, mas ambas são importantes e significativas.

AGOSTINHO NETO

Intelectual que foi líder do Movimento

Popular pela Libertação de Angola

(MPLA). Esse país africano conquistou

sua independência de Portugal em 1975 e o

MPLA foi reconhecido e assumiu o governo

provisório. Agostinho Neto tornou-se

presidente de Angola em 1975 e morreu em

1979. Além de ser uma importante liderança

política, Agostinho Neto é um grande

poeta, e os versos aqui citados são de seu livro

Do povo buscamos a força. Poemas de

Angola.

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Page 200: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito

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Na verdade, o saber erudito e o saber popular são imprescin-

díveis. Precisamos respeitar as diferenças entre esses saberes e fazê-

los dialogar. Porque acreditamos que as teorias presentes no saber

erudito são fundamentais para a análise dos diferentes contextos

sociais e históricos, assim como as experiências de vida são

necessárias para alimentar nossas análises e até possibilitar questio-

namentos às teorias. Por isso, o encontro entre o saber erudito e

o saber popular possibilitará uma compreensão mais profunda e

fidedigna da realidade social.

Finalizamos solicitando uma refl exão sobre os versos da música

Velha cicatriz:

Velha cicatriz

Nós convidamos essa massa aí

Para ser feliz ao menos uma vez

Para escolher a sua direção

E obedecer somente ao coração

Nós convidamos essa massa aí

Para de uma vez tomar o seu lugar

E nunca mais deixar escapulir

O tempo de sorrir, o tempo de cantar

Nós convidamos essa massa aí

Para esquecer a velha cicatriz

E entoar bem forte esta canção

Soltar de vez a força da paixão

Nós convidamos essa massa aí

Para defender as emoções reais

Plantar a paz, para colher amor

Deixar crescer a fl or dos nossos ideais.

(Ivor Lancellotti e Délcio Carvalho)

R E S U M O

Esta aula discutiu a possibilidade de existência de um saber popular, mostrando

as suas principais características: um saber que nasce da experiência de vida, a

partir das lutas travadas nas relações sociais. Constata-se que o saber popular

não é homogêneo, pois é construído na diversidade. Analisam-se brevemente

as características do saber erudito, que é identifi cado com os conhecimentos

fi losófi co e científi co. Por fi m, discute-se a possibilidade e a necessidade do

encontro e do intercâmbio entre o saber popular e o saber erudito.

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EXERCÍCIOS

1. Caracterize o saber popular e o saber erudito. Dê um exemplo para cada

saber.

2. É possível o intercâmbio entre saber popular e saber erudito? Por quê?

3. Apresente um exemplo de um saber popular da sua cidade e mostre a

importância desse saber para a sua região.

AUTO-AVALIAÇÃO

Pense sobre o saber popular produzido na sua região e refl ita sobre as contribuições

que esse saber pode oferecer ao seu mundo cultural. Compare o saber popular

com o saber erudito. Você compreendeu quais as principais características dessas

duas formas de saber? Percebeu como o saber popular e o saber erudito podem

fazer um intercâmbio? Então, pode seguir adiante para discutir outros aspectos

da produção do saber.

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Page 202: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Caracterizar os tipos de saber denominados "instituído" e "instituinte".

• Compreender a importância do saber "instituído" – estabelecido pelo sistema educacional – e do saber "instituinte" – presente na vida cotidiana do aluno.

• Diferenciar as normas, as leis etc. dos fatos diários que em conjunto tecem a cultura.

• Identifi car o papel das instituições e a trama que se estabelece, em seu interior, entre o "instituído"– as

Saber instituído e saber instituinte

Pré-Requisito

• Para a compreensão desta aula recomenda-se o estudo das aulas "Pensando Conhecimento", "Saber e poder" e "Saber e sabedoria".

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte

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INTRODUÇÃO Envergonho-me de pensar quão facilmente capitulamos em face

de insígnias e nomes, de sociedades e instituições mortas (...) Uma

instituição é a sombra alongada de um homem... (EMERSON,

Ensaios, pp. 40 e 47).

Lá vamos nós, caro aluno, em nossa viagem pela Terra dos

Fundamentos da Educação. O dia luminoso descortina uma bonita

paisagem ao se olhar pelas janelas de nosso trem imaginário. Cada

montanha avistada ao longe, as plantações, as estradinhas de terra

cortando a linha férrea, os povoados às margens da ferrovia, cada uma

dessas coisas representa uma informação, algo aprendido, signifi ca,

enfi m, a construção de nosso saber, a efetivação da aprendizagem.

Porém, assim como não basta lançar à paisagem apenas um

olhar indiferente, também não é sufi ciente receber as informações. É

necessário processá-las em nossa mente, de forma crítica e, além disso,

trabalhá-las em interação com as outras pessoas, partilhando com elas

o que se vai aprendendo. Isto signifi ca que a construção do saber é uma

obra coletiva.

Em nossa viagem, essa interação é representada por nossa

conversa no interior do vagão. Uma conversa animada, que às vezes

se transforma até numa discussão acalorada. Desse modo, vamos

relativizando nosso ponto de vista, renunciando às nossas “verdades”

quando somos convencidos por outros de que estamos equivocados.

De repente – imaginemos – nossa conversa é interrompida pelo

agente da estrada de ferro, que entra no vagão fazendo a conferência de

nossos bilhetes de viagem.

Observemos esse funcionário. Uniformizado, cortês, mas consciente

de suas obrigações, recebe os bilhetes, confere-os atentamente e depois se

afasta com um sorriso gentil.

Saiba, prezado aluno, que esse homem é um agente do que está

“instituído”. Em outras palavras: representa a instituição denominada

“Estrada de Ferro tal e qual”.

Uma ferrovia é uma instituição, assim como um banco, um

hospital, uma igreja.

Mas, caro aluno, há instituições de natureza diferente dessas já

mencionadas. O casamento, por exemplo, também é uma instituição, ou

seja, é uma forma de união entre pessoas – a denominada união conjugal.

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E sabemos que esse relacionamento obedece a uma série de determinações

legais, bem como impõe ao casal uma série de procedimentos, de

comportamentos, de obrigações, além de garantir igualmente muitos

direitos. E tudo isso encontra-se estabelecido, isto é, instituído.

As instituições são lugares onde reina, se não um consenso perfeito,

pelo menos um acordo, sufi ciente para levar adiante uma obra coletiva.

Tomando-se em conjunto as visões de Enriquez (1991) e de

Bleger (1991), pode-se perceber que a instituição está agrupada num

conjunto de normas, regras, atividades impregnadas de valores e

funções sociais.

Muitos autores, quando tratam da sociedade, usam imagens

para retratá-la, em sua diversidade e complexidade. Para Karl Marx,

por exemplo, a sociedade, em sua organização e funcionamento, seria

como uma espécie de edifício, com dois níveis: uma infra-estrutura e

uma superestrutura. Como em qualquer construção, o que está acima do

solo depende do que está abaixo, isto é, dos alicerces, que poderíamos

considerar, usando essa imagem, a infra-estrutura do edifício. Na

sociedade, as relações de produção, isto é, as relações mantidas pelos

seres humanos num determinado sistema econômico, fariam parte da

infra-estrutura desse sistema. Segundo esse entendimento, no capitalismo

– sistema econômico criticado por esse autor –, as relações de produção

são determinadas pelas relações estabelecidas entre o capital e o trabalho.

Num dos pólos da relação estaria o capital, ou seja, o dinheiro e os

demais meios empregados para produzir; de outro, estaria a capacidade

produtiva, ou seja, a força de trabalho que o trabalhador dispende para

que a produção seja feita. Em tal sistema, o capitalista compra a força de

trabalho, isto é, paga o salário do trabalhador.

Porém, um edifício não é composto apenas de sua infra-estrutura.

Usando essa imagem para comparar com a sociedade, há, sobre essa

infra-estrutura, uma superestrutura composta por tudo aquilo que

não se pode enquadrar no nível infra-estrutural da produção material.

A cultura, por exemplo, com toda a sua complexidade, estaria situada

tanto no nível da superestrutura como no nível da infra-estrutura, vez

que fornece os conhecimentos, valores, símbolos que orientam e guiam

a vida das pessoas. A Educação é um dos produtos resultantes das

relações superestruturais estabelecidas na sociedade, e que acaba por

gerar novos estilos de vida.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte

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Uma instituição é um conjunto complexo, que está presente em

ambos os níveis – o infra – e o superestrutural. Assim, pode-se pensar,

por exemplo, nas instituições educativas, como a escola, nesses termos.

Lapassade (1977) não considera a instituição, em seu todo, como

integrante da superestrutura. Afi rma esse autor que o que se encontra

na superestrutura de um sistema é apenas o aspecto institucionalizado

da instituição, como a lei, o código, a regra escrita etc. Porém, existem

coisas não-visíveis que também fazem parte da instituição, a qual se

caracteriza como um encontro desses dois níveis – o visível e o invisível.

Portanto, a instituição apresenta uma signifi cativa abrangência,

no momento em que envolve o Estado, o grupo, as pessoas e, com

elas, as normas, as ideologias, os ritos, os mitos e os valores, isto é,

o instituído e o instituinte – para usar a terminologia proposta por

Castoriadis (1982) –, o patente e o latente.

Vejamos novamente esse ponto importante, caro aluno. O que há

numa escola? Há um ou mais prédios, mobiliário, professores, alunos etc.

Porém, há outras coisas sem as quais uma escola não seria uma escola. Não

há escola sem que, por detrás dela, exista todo um sistema e uma rede de

ensino; estes, por sua vez, são organizados segundo leis, decretos, normas.

Há, ainda, numa escola, todo um conjunto complexo de relações que não se

pode ver ou tocar, toda uma “ambiência”, que caracteriza uma escola.

Ora, tudo isso que forma o que consideramos uma escola está

instituído. Quer dizer, são, como já vimos, coisas existentes ou estabelecidas.

Porém, podemos pensar também numa escola que ainda não é,

mas pode vir a ser, ou seja, uma escola diferente da que temos. Em

outras palavras: podemos imaginar que, com idéias e ações, podemos

mudar o que se encontra instituído. Tudo isso que fi zermos para

transformar a instituição podemos denominar instituinte.

Mantendo a imagem que utilizamos no início desta aula, nosso

personagem que confere os bilhetes representa a Estrada de Ferro;

você, caro professor, representa a sociedade, ou seja, é um agente

dessa mesma sociedade, incumbido da transmissão de conhecimentos e

saberes existentes e da construção de novos saberes; ajuda, pois, tanto

a promover o instituído como a introduzir o instituinte, isto é, o novo,

o transformador. Para tanto, pense bastante no conteúdo desta aula e

veja como as idéias sobre os saberes instituído e instituínte podem ser

considerados no dia-a-dia de suas aulas.

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Nesta aula, o que desejamos, também, como maquinistas que

levam você ao encontro dos fundamentos da Educação, é refl etir sobre

os saberes que você transmite aos seus alunos. Além desses, há os

saberes que não fazem parte deste rol, mas que se encontram presentes

no cotidiano da sua prática docente.

Esses documentos compõem o que podemos denominar

“currículo ofi cial”, elaborado a partir de uma cultura dominante, com

signifi cados geralmente distanciados da vida do aluno, cujo sentido não

é percebido por eles, sendo muitas vezes estranho à sua realidade.

O fato é que o aluno, diante desta falta de sintonia com a realidade

que ele vivencia, acaba por não apreender determinados conteúdos

instituídos, mas, com freqüência, demonstra ser capaz de captar outros

que encontram lugar na sua experiência de vida.

Olhemos para fora, prezado aluno e companheiro de viagem.

Vejamos como é rica e diversifi cada a paisagem contemplada pela

janela de nosso trem imaginário. Assim também, diversifi cados, são

os saberes; não podemos reduzi-los àqueles estabelecidos, instituídos.

O próprio aluno, ao chegar à escola e no decorrer de seu processo

educativo, é possuidor de saberes. É, portanto, necessário que o

professor, em sua prática diária permita a construção de uma rica,

diversifi cada e bela tessitura de saberes, integrados e complementares

– saberes instituídos e saberes instituintes.

Os saberes instituintes são tecidos através das emoções, das

brincadeiras, das relações com o Outro. Unidos aos saberes instituintes,

podem favorecer o crescimento dos alunos.

Afi nal, como lembra Durkheim (apud MORIN, 1999, p. 47) na

obra A cabeça bem-feita, o objetivo da Educação não é o de transmitir

conhecimentos sempre mais numerosos aos alunos, mas o de criar um

estado interior e profundo, uma espécie de polaridade de espírito que

o oriente em um sentido defi nido, não apenas durante a infância, mas

também por toda a vida. É que se necessita ensinar a viver, e para isso

são precisos não só os conhecimentos, mas também o esforço para

a transformação, no próprio ser mental do aluno, do conhecimento

adquirido em sapiência.

Os alunos trazem dentro de si uma infi nidade de saberes.

Os meios de comunicação fi zeram com que as informações ganhassem

uma nova dimensão, intervindo no trabalho que o professor desenvolve.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte

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A internet, por exemplo, é um desses novos meios de informação que

está, muitas vezes, confrontando tanto a forma quanto o conteúdo

trabalhados em sala de aula.

Para dar conta de todos esses saberes, é importante que o professor

refl ita sobre a sua prática. Você, como educador, deve preocupar-se

em pensar sobre o seu trabalho como dizendo respeito a saberes que

necessitam tomar por base os múltiplos saberes dos alunos.

Valorizar os saberes que o aluno traz consigo implica exercitar

o que Maffesoli (1984) denomina “ouvir o barulho da relva crescer”,

enxergando o lado “de sombra”, perceptível através de uma “pedagogia

da escuta” (PAULA CARVALHO, 1990). Ouvindo seus alunos, dando

crédito a seus relatos – por mais distanciados dos saberes instituídos que

possam parecer – você abrirá espaço para que a dimensão instituinte

se instaure e, com ela, a possibilidade de invenção, de renovação, de

transformação.

Como sua denominação indica, essa pedagogia da escuta implica,

dentre outros aspectos, ouvir os pequenos saberes que o aluno traz da

sua casa, da sua vivência nas ruas, e em seus grupos de amigos; prestar

atenção e transformar em objeto de estudo e de discussão as letras das

músicas que ele canta; comentar e debater os programas de TV que ele

assiste; indagar, dos que possuem acesso à internet, quais os tipos de

páginas pelas quais eles navegam e o conteúdo delas.

Atuando assim, caro professor, você perceberá que tais saberes

não estão instituídos nos programas e nos currículos das escolas. Por

isso, deverão ser trazidos para a dimensão instituinte e trabalhados em

consonância com alguns princípios fundamentais, como o respeito ao

universo dos alunos, a realidade local e o modo de pensar, sentir e agir

de cada grupo de estudantes.

Agindo desse modo, você, caro aluno, estará levando em conta os

Pilares da Educação, resumidos em quatro princípios gerais resultantes

de um importante e abrangente estudo realizado pela Unesco com

vistas a defi nir o que seja a Educação para o século XXI: aprender a

conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

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Vale a pena transcrever a síntese desses princípios contida no

documento resultante da pesquisa promovida pela Unesco (DELORS,

2000, pp. 89-102):

“Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral,

sufi cientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em

profundidade um pequeno número de matérias. O que também

signifi ca: aprender a aprender, para benefi ciar-se das oportunidades

oferecidas pela Educação ao longo da vida.

Aprender a fazer, a fi m de adquirir, não somente uma

qualifi cação profi ssional, mas também, de uma maneira mais ampla,

competências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas

situações e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer,

no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que

se oferecem aos jovens e adolescentes, quer espontaneamente,

fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente, graças ao

desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho.

Aprender a viver juntos, desenvolvendo a compreeensão

do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos

comuns e preparar-se para gerir confl itos – no respeito pelos valores

do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.

Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua per so -

nalidade e estar à altura de agir com cada vez maior capa cidade

de auto nomia, de discernimento e de respo nsabilidade pessoal.

Para isso, não negligenciar na Educação nenhuma das poten-

cialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido

estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se”.

Você, prezado aluno, que atuará diretamente com os estudantes

do segundo segmento do Ensino Fundamental e com alunos do Ensino

Médio, tem uma tarefa importante e difícil de ser realizada. Trata-se

da busca pela religação entre os saberes. Essa religação deve dar-se não

somente entre os saberes instituídos e os instituintes, mas também no

interior dos saberes instituídos, que são apresentados aos alunos de

forma fragmentada e compartimentalizada. Diferenciar e religar saberes

é, para Morin (2002), a arte de organizar o pensamento. Como fazer

isto? Usando métodos, instrumentos e conceitos capazes de favorecer

a reunião de saberes. Isto signifi ca dizer que a simples transmissão do

saber considerado ofi cial, instituído, deverá estar vinculada aos demais

saberes transmitidos por seus colegas nas outras disciplinas.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte

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Em suma, segundo Morin (2002) seria:

...favorecer a aptidão natural do espírito humano a

contextualizar e a globalizar, isto é, a relacionar cada informação

e cada conhecimento a seu contexto e conjunto. Trata-se de

fortifi car a aptidão a interrogar e a ligar o saber à dúvida,

de desenvolver a aptidão para integrar o saber particular em sua

própria vida, e não somente a um contexto global, a aptidão

para colocar a si mesmo os problemas fundamentais de sua

própria condição e de seu tempo (2002, p. 21).

Atuando nessa dimensão, você poderá atender aos princípios

estabelecidos pela Unesco que, em linhas gerais, são: formar homens

capazes de organizar seus conhecimentos em vez de armazená-los por

uma acumulação de saberes; ensinar a condição humana; e ensinar a

viver e a refazer uma Escola que forma para a cidadania.

Lá se vai nosso trem imaginário percorrendo a Terra dos

Fundamentos da Educação. Segue em sua marcha, conduzindo-nos

pelos caminhos de novos saberes. A locomotiva lança aos céus sua

fumaça branca que se perde no horizonte. Daqui de nosso vagão,

voltemo-nos para trás, como essa fumaça, e vejamos agora o que esta

aula, como uma etapa da viagem, nos proporcionou.

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R E S U M O

• Vimos que o saber é uma construção, uma obra coletiva, resultado de nossa

interação com os outros.

• Aprendemos que existem saberes instituídos e saberes instituintes. As instituições

puderam ser percebidas como os lugares onde os saberes são dados, estabelecidos,

ordenados, normatizados.

• Pudemos observar que há muitos tipos de instituição, e não necessariamente

apenas as que podemos observar como tal em sua existência concreta, com prédios,

coisas e pessoas. Muitas são de natureza simbólica, como uma escola, por exemplo,

na qual um professor se vê a braços com o que está instituído, e que ele mesmo,

o professor, é um representante da sociedade que institui, como o conferidor de

bilhetes de passagem em nosso trem imaginário representa a ferrovia.

• Vimos, também, que as instituições são complexas, podendo estar situadas em níveis

estruturais ou superestruturais, ou mesmo estarem permeando, isto é, percorrendo e

constituindo esses níveis, indistintamente.

• Este trecho de nossa viagem acentuou para nós a importância de abrirmos espaços

para a dimensão instituinte, representada, em nosso caso, como professores, pela

importância de ouvir o aluno, de abrir espaço para a bagagem que ele traz consigo

obtida na família, entre os amigos, na comunidade.

• A seguir, aprendemos que é possível aproximar os saberes instituintes dos saberes

instituídos existentes na legislação ou nas normas.

Por fi m, fomos apresentados aos Quatro Pilares da Educação, que tentam sintetizar

uma Educação para o novo século, uma forma completa e abrangente, resumida

nas quatro formas de aprender: a conhecer, a fazer, a viver juntos e a fazer.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte

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EXERCÍCIOS

O que você, professor, poderia fazer, em sala de aula, com seus

alunos, para vivenciar essas idéias e princípios, relacionados com as

dimensões instituída e instituinte? Aqui vão algumas sugestões.

Proponha a seus alunos a montagem de um mural. Os alunos

seriam divididos em dois grupos que pesquisariam e colecionariam

fi guras, notícias, fotografi as etc., tudo o que pudesse representar o saber

instituído e o saber instituinte,tal como apresentados aqui. Em seguida,

depois de uma boa discussão, e ouvidos todos os alunos – com aquele tipo

de escuta de que fala Maffesoli e comentamos nesta aula – seria montado

um mural, tendo, de um lado, o correspondente ao instituído; de outro,

o equivalente ao instituinte.

Evidentemente, caro professor, que essa não será uma tarefa fácil.

Por vezes, vai ser difi cílimo distinguir uma dimensão da outra. Isto será

ótimo; levará os alunos a pensar, e esse esforço contribuirá para tornar

mais clara a visão dos dois diferentes tipos de saberes que foram objeto

de estudo neste nosso trecho da viagem.

Uma atividade interessante também será transformar a citação

de Emerson, que abre esta aula, num tema de discussão centrado na

pergunta: qual a importância do ser humano em face das instituições?

Outra atividade possível seria retomar a aula "Saber e sabedoria"

e observar como os saberes instituídos e instituintes podem auxiliar

na busca de uma melhor Educação, não imposta de cima para baixo,

mas respeitando o universo do aluno, que é dotado de criatividade,

inventividade, curiosidade, espírito de cooperação, e observar como

tudo isso pode realmente favorecer a formação de um cidadão crítico,

pensante, atuante e capaz de transformar a sociedade.

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Os tipos de poder esua relação com o saber a

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber

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Para esta viagem, que entrará no perigoso território do poder e do saber,

você precisará de apetrechos especiais, como Indiana Jones. Com essa

informação na bagagem, predisponha-se a uma aventura que, com toda

certeza, valerá muito a pena.

Consideramos que MICHEL FOUCAULT é um companheiro

imprescindível nesta jornada, pois foi um dos teóricos que mais se

dedicou ao estudo das relações de poder no campo do conhecimento e

da sociedade.

Podemos estabelecer desde já que, para entender como o poder

funciona, precisamos pensar nos mecanismos (ou dispositivos, como

afi rma Foucault) que foram criados para sua ampla utilização, em

forma de rede, por toda a sociedade e por um longo período de tempo.

Podemos considerar, por exemplo, como o conhecimento médico

através da Psiquiatria pôde estabelecer o que era normalidade e,

portanto, quem tinha direito a viver em sociedade e quem era louco e

deveria viver confi nado em um manicômio. Esse saber médico conferiu

a seus profi ssionais um poder imenso sobre a sociedade e aterrorizou

muitas pessoas, como os artistas que não se encaixavam nos padrões de

normalidade estabelecidos pelo conhecimento psiquiátrico.

Por sua vez, o conhecimento psiquiátrico necessitou de dispositivos

legais para confi nar nos hospícios os cidadãos que, por força da lei

(mecanismos jurídicos criados para fortalecer e legitimar o que a

Medicina estava afi rmando), tiveram seus direitos confi scados pelo

Estado jurídico. Quantas fortunas foram tomadas de seus verdadeiros

donos porque estes foram rotulados como insanos!

Se recuarmos mais ainda na História, antes do

tempo do grande enclausuramento nos hospitais,

veremos a loucura sendo exaltada e podendo

conviver pacifi camente na sociedade e, mais do

que isso, sendo até aplaudida (em espetáculos

destinados ao entretenimento das pessoas

a que se dirigiam) em praças públicas, na

forma de uma companhia de loucos que

encenava suas (também loucas) peças.

INTRODUÇÃO

MI C H E L FO U C A U L T

Filósofo francês, lecionou no Collège de France de janeiro de 1971 até sua morte, em junho de 1984. O título de sua cátedra era: História dos sistemas de pensamento. É autor de diversos livros, frutos de seu trabalho como pesquisador no campo da genealogia das relações saber/poder. Para a construção deste texto foram consultados os livros: Microfísica do Poder; Vigiar e Punir e História da Loucura.

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Foucault comenta:

“A loucura é no essencial experimentada em

estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do

cenário e da linguagem comuns, é para cada

um uma experiência cotidiana que se procura

mais exaltar do que dominar. Há na França, no

começo do século XVII, loucos célebres com

os quais o público culto, gosta de se divertir;

alguns como Bluet d′ Arbère escrevem livros

que são publicados e lidos como obras de lou-

cura. Até cerca de 1650, a cultura ocidental foi

estranhamente hospitaleira a essas formas de

experiência” (FOUCAULT, 1994, p. 78).

Nos meados do século XVII, brusca mudança: o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da

exclusão. Criam-se (e isso em toda a Europa) estabelecimentos para internação que não são

simplesmente destinados a receber loucos, mas toda uma série de indivíduos bastante diferentes

uns dos outros, pelo menos segundo nossos critérios de percepção. Encerram-se os inválidos

pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de

doenças venéreas e libertinos de toda espécie... Em resumo, todos aqueles que, em relação à

ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de “altercação”.

O internamento toma então uma nova signifi cação: torna-se medida de caráter médico.

Pinel na França, Tuke na Inglaterra e, na Alemanha, Wagnitz e Riel ligaram seus nomes

a essa reforma. E não há história da Psiquiatria e da Medicina quem não descubra nestes

personagens os símbolos de um duplo advento: o de um humanismo e o de uma Ciência

fi nalmente positiva.

Pinel, Tuke, seus contemporâneos e sucessores não romperam com as antigas práticas do

internamento; pelo contrário, eles as estreitaram em torno do louco. Foi reconstituído, em

torno da loucura, todo um encadeamento moral e o asilo virou uma instância perpétua de

julgamento.

Foucault analisa o nascimento da Ciência psicológica a partir da loucura.

“Dir-se-á que todo saber está ligado a formas essenciais de crueldade. Mas, sem dúvida, esta

relação é no seu caso singularmente importante. Porque foi ela inicialmente que tornou pos-

sível uma análise psicológica da loucura; mas, sobretudo, porque foi ela que secretamente

fundou a possibilidade de toda a Psicologia. Não se deve esquecer que a Psicologia “obje-

tiva”, “positiva” ou “científi ca” encontrou sua origem histórica e seu fundamento numa

experiência patológica. Foi uma análise dos desdobramentos que ocasionou uma Psicologia

da Personalidade; uma análise dos automatismos da consciência que fundou uma Psicologia

da Consciência; uma Psicologia dos Défi cits que desencadeou uma Psicologia da Inteligência.

Ou seja, o homem só se tornou uma espécie psicologizável, a partir do momento em que

sua relação com a loucura permitiu uma psicologia, quer dizer a partir do momento que sua

relação com a loucura foi defi nida pela dimensão exterior da exclusão e do castigo, e pela

dimensão interior da hipoteca moral e da culpa” (FOUCAULT, 1994, p. 84).

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber

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Portanto, um saber como o da Psiquiatria liga-se a uma série de

instituições, de exigências econômicas imediatas, de urgências políticas e

de regulamentações sociais. A rede se formou, tecida com pontos fi rmes;

depois de pronta, não dá mais para saber onde está o ponto inicial.

A recém-nascida Psicologia também vai se alimentar desse

saber psiquiátrico para estabelecer um discurso científi co acerca do

desenvolvimento humano e da aprendizagem, postulando regras

de normalidade para cada etapa da existência. Nasce a criança na

Ciência psicológica. Não uma criança qualquer, mas um belo exemplar

científi co gerado em seus laboratórios experimentais, contendo tempos

cronometrados para sua maturação. Qualquer transgressão a esses tempos

estipulados pela Ciência evolucionista é considerada uma anormalidade.

Numa Ciência jovem como a Psicologia, que precisou se submeter

às regras metodológicas de outras Ciências mais antigas, principalmente

aquelas ditadas pelas ciências exatas, temos um certo tipo de discurso

cujas lentas transformações (50 a 70 anos) romperam não somente com

as proposições do senso comum (daquilo que o povo conhecia há anos

sobre a criação de fi lhos) que até então puderam ser formuladas, porém

mais profundamente com as maneiras de falar e ver e com toda uma série

de práticas que serviam de suporte à Pedagogia cotidiana.

Todo um conjunto de informações científi cas começou a circular

na sociedade mais ampla, e não somente nos cursos de formação de

professores ou de psicólogos, determinando qual era a nova regra para

se criar crianças e adolescentes emocionalmente saudáveis.

Nessa época nascem também, com muito vigor, os testes

psicológicos que revolucionam o mundo escolar e social ao determinar,

por exemplo, os diferentes níveis de capacidade intelectual das pessoas.

É o famoso QI (quoefi ciente intelectual), uma descoberta científi ca que

abala o mundo, estabelecendo uma nova geração de seres humanos que

passa agora a ser defi nida em categorias distintas através dos escores

obtidos em testes. Assim, o discurso psicológico da medição cria novos

modelos de homem: os superdotados, os medianamente dotados (aqueles

que possuem uma inteligência média ou normal) e os subdotados.

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Na escola, esse modelo quantitativo da inteligência humana promove

o surgimento de classes especiais, que são constituídas para atender os

subdotados, cujo destino social já está, de antemão, prescrito através dos

pontos obtidos no teste. Todo um conjunto de normas pedagógicas passa a

regulamentar as aprendizagens que esses alunos especiais poderão alcançar

e como poderão fazê-lo. Estipula-se que seu desenvolvimento mental não

ultrapassará determinada etapa cognitiva – a do pensamento concreto – e

é assim que esses alunos só poderão tornar-se trabalhadores manuais, já

que lhes foi negada cientifi camente a intelectualidade.

O discurso psicológico serve de base teórica para que se estabeleçam

políticas educacionais que legitimarão currículos diferenciados para

alunos distintos. Em outras palavras, a medição promovida pela

Psicologia serve de combustível científi co para o fortalecimento dos

dispositivos de exclusão que passam a agir no interior das escolas.

Um poder e tanto, porque legitimado pelo saber científi co e,

por isso mesmo, difícil de ser combatido. E os testes continuam a

surgir e a medir o homem de todas as formas possíveis: sua capacidade

perceptiva, sua atenção, sua memória, suas emoções, seus sentimentos,

suas aspirações, suas expectativas etc.

Coleções variadas de testes são montadas com o nome de baterias,

um verdadeiro arsenal com poder de fogo capaz de abalar a estrutura psi-

cológica de qualquer cidadão do mundo. Criam uma nova ordem: a seleção.

A partir de agora, não mais se contrata nenhum trabalhador, nem para

nenhum tipo de trabalho, que não tenha sido testado. Indústrias de grande

e pequeno porte, no mundo inteiro, globalizado pelo discurso científi co,

adotam baterias de testes para selecionar seus futuros funcionários. Uma

nova prática social que certamente permite o surgimento de um novo

profi ssional: o de Recursos Humanos.

Na escola, sente-se a necessidade de se criar um novo serviço:

Orientação Educacional. A partir daí, assistimos ao nascimento dos

especialistas em Educação, pessoas dotadas de um conhecimento tão

especial que vão poder prever os destinos dos alunos através do oráculo

dos testes, agora também vocacionais. É isso mesmo! As baterias de testes

se sofi sticaram tanto que passam a determinar as escolhas profi ssionais

de toda uma população escolarizada. Vira-se o homem pelo avesso,

expondo as suas entranhas psicológicas para poder localizar com precisão

a sua vocação.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber

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No ano de 1904, o Ministério francês de Educação Pública constituiu uma comissão para elaborar

um projeto de educação especial. Binet, que fez parte dessa comissão, recebeu o encargo de

elaborar um instrumento que permitisse distinguir, com grau mínimo de erro possível, os atrasos

escolares atribuídos a défi cits intelectuais que pudessem ser devidos a fatores ambientais ou a uma

escolarização prévia defi ciente. No ano seguinte, em um artigo publicado no Anée Psychologique,

com o título de "Méthodes nouvelles pour le diagnostique du niveau intellectuel des anormaux",

Binet e Simon dão a conhecer uma primeira versão do instrumento elaborado.

O teste de Binet-Simon concebe o desenvolvimento intelectual como a aquisição progressiva

de mecanismos intelectuais básicos, de tal maneira que a criança com atraso é aquela que não

adquiriu os mecanismos intelectuais que correspondem à sua idade cronológica. Comparando a

idade mental com a idade cronológica, a escala métrica permite quantifi car os anos de avanço

ou de atraso no desenvolvimento intelectual. Em 1912, William Stem enriquece o teste de Binet-

Simon com a introdução do Quociente Intelectual (QI), que é o resultado da divisão da idade

mental pela idade real e da multiplicação do resultado por 100; dessa forma, proporciona uma

medida única de inteligência (SALVADOR, 2000, p. 28).

A elaboração de provas psicométricas não se limita ao âmbito do desenvolvimento intelectual,

abrangendo, também, o campo da personalidade e do rendimento escolar. Assim, por exem-

plo, Thorndike constrói provas para medir o rendimento escolar em Matemática e na Escrita;

e Claparède, em diversas áreas escolares. Em resumo, até 1920 uma parte considerável dos

trabalhos e das pesquisas em Psicologia da Educação direciona-se à construção de instrumentos

de medida objetiva das capacidades intelectuais, dos traços de personalidade e do rendimento

escolar (SALVADOR, 2000, p. 28).

A refl exão crítica sobre a utilidade real dos conhecimentos psicológicos para melhorar efetiva-

mente a educação tem sido uma das armas fundamentais para o desenvolvimento da Psicologia

da Educação e da Psicologia do Ensino, como demonstra o seguinte acontecimento, relatado por

Charles H. Judd, um dos primeiros e mais infl uentes psicólogos educativos dos EUA:

“Lembro-me de uma vez em que fazia uma conferência (...) para um grupo de professoras da

cidade de Nova York, que queriam incrementar seus conhecimentos escutando-me, quando um

de meus ouvintes, de cabelos brancos, interrompe-me com esta pergunta: Professor explica-nos

como podemos usar este principio para melhorar o nosso ensino para a meninada. Lembro-me

dessa pergunta, à qual não tive uma resposta. Decidi, então, que deveria dedicar-me a aprender

mais sobre a escola” (...)

Em coerência com essa proposição, os trabalhos e as pesquisas de Judd passaram a girar em torno de

duas grandes temáticas que, de acordo com o seu parecer, são decisivas para melhorar a educação

de sua época (década de 20): o currículo e a organização escolar (SALVADOR, 2000, p. 31).

Enquanto isso, na Europa, a Psicologia da Educação, seguindo Alfred Binet e Edouard Claparède,

identifi ca-se praticamente com a Psicologia do Desenvolvimento Infantil e continua direcionando

os movimentos de renovação pedagógica da “escola nova” ou “escola ativa”. Dessa maneira,

e contrariamente ao que ocorreu nos EUA e no mundo anglo-saxônico, onde as fi guras mais

destacadas da Psicologia da Educação são quase sempre fi guras destacadas da Psicologia da

Aprendizagem, na Europa e sobretudo na França e nos países da sua área de infl uência (inclu-

indo o Brasil), os autores mais destacados em Psicologia da Educação são, em geral, fi guras

relevantes da Psicologia Infantil, da Psicologia do Desenvolvimento ou da Psicologia Genética

(SALVADOR, 2000, p. 32).

!

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Obviamente os meios de comunicação de massa se agitam com

as descobertas científi cas contidas nos testes psicológicos, e toda uma

nova espécie mais popular de testagem começa a surgir nas revistas

compradas nos jornaleiros. Testa-se de tudo, até a capacidade de ser

sensual, sexy, glamourosa, amiga etc. E eles continuam a exercer um

imenso poder de fascínio entre as pessoas de diferentes classes sociais,

exatamente porque é um poder, como nos diz Foucault, que curiosamente

todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fi zesse

outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? Pois

é, a idéia básica de Foucault é mostrar que as relações de poder não se

passam fundamentalmente nem ao nível do direito, nem da violência;

são basicamente contratuais, nem unicamente repressivas. Nosso

companheiro de viagem, particularmente em seus livros Vigiar e Punir

e A Vontade de Saber, está alegremente querendo demonstrar que é falso

defi nir o poder como algo que diz não, que impõe limites, que castiga.

Foucault opõe ou acrescenta a uma concepção negativa,

que identifi ca o poder com o Estado e o considera

essencialmente como aparelho repressivo (no

sentido em que seu modo básico de intervenção

sobre os cidadãos se daria em forma de

violência, coerção, opressão), uma concepção

positiva de poder que pretende dissociar os

termos dominação e repressão.

O que suas análises querem nos mostrar é

que, por exemplo, a dominação capitalista não

conseguiria se manter exclusivamente baseada na

repressão. É preciso levar em consideração, também,

a força criadora dos micropoderes junto com seus saberes que estão

continuamente sendo gestados como formas de resistência e de luta. Por

essa razão é que novos saberes podem se contrapor às teorias científi cas

instituídas como verdades absolutas, possibilitando novos caminhos e

outras práticas. Esse foi o caso da Psiquiatria: um movimento chamado

AntiPsiquiatria pode alterar o rumo dos acontecimentos científi cos

criando um saber diferente junto com um tratamento mais respeitoso para

os ditos loucos. Uma outra forma de compreender a loucura foi instituída.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber

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O mesmo aconteceu dentro da Psicologia: saberes discordantes em

relação à Psicometria se insurgiram contra o excesso de quantifi cação

do homem e uma nova maneira de compreender os processos psicológicos

foi tecida, tornando-se não só uma prática de avaliação positiva desses

processos como uma nova epistemologia.

Assim é que o aspecto negativo do poder – sua força destrutiva – não

é tudo e talvez não seja o fundamental: ao menos é preciso refl etir sobre

o seu lado positivo, isto é, produtivo, transformador. É preciso parar de

sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele exclui, ele

reprime, ele recalca, ele censura, ele abstrai, ele mascara, ele esconde. Não

porque o poder ignore essas ações e não as execute, mas, fundamentalmente,

porque o poder também produz: ele produz o real; produz domínios de

objetos e rituais de verdade. O poder possui uma efi cácia produtiva, uma

riqueza estratégica, uma positividade.

Não se explica inteiramente o poder quando se procura

or sua função repressiva. O que lhe

sicamente não é expulsar os homens

da social, impedir o exercício de suas

dades, e sim gerir a vida dos homens,

rolá-los em suas ações, para que seja

ível e viável utilizá-los ao máximo,

veitando suas potencialidades e

ando um sistema de aperfeiçoamento

ual e contínuo de suas capacidades. Um

vo ao mesmo tempo econômico, político

gico: aumento do efeito do seu trabalho,

os homens força de trabalho, dando-lhes

uma qualifi cação e uma utilidade econômica máxima.

Assim, o fundamental nesta viagem analítica é chegar à estação

onde saber e poder se relacionam e se implicam mutuamente: não há

relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também,

reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de

exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber.

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É assim que o hospital não é apenas local de cura, uma espécie

de máquina de curar, mas também instrumento de produção, acúmulo

e transmissão do saber. Do mesmo modo que a escola não é só o lugar

para confi nar crianças e adolescentes por um longo período de tempo,

mas um território social onde a grande aventura do conhecimento pode

ter um início e uma vida fecunda.

Em contrapartida, como todo saber assegura o exercício de um

poder, cada vez mais se impõe a necessidade do poder de se tornar

competente. Uma competência que é construída à medida que vamos nos

apoderando dos instrumentos do saber e podemos analisá-los, criticá-

los, usá-los ou não. Já que esses saberes se tornaram nossos, podemos

decidir o uso que faremos deles. Assim como podemos decidir o uso de

qualquer objeto ou do dinheiro de que dispomos. É aqui que reside uma

força poderosa. Como diz Caetano Veloso, no trecho da música Sampa:

“A força da grana que ergue e destrói coisas belas...”

A relação entre saber e poder permeia toda a História do Pensamento e, talvez de forma mais evidente,

na pretensão de Platão de colocar o homem mais sábio na direção da República. Nos tempos de hoje, os

tecnocratas reatualizaram essa versão – o que permanece é que a proposta é sempre proveitosa a quem

propõe, é claro!

Em contrapartida, os “governados” também percebem essa relação (e sua falácia). O diálogo entre Alice e

Humpty Dumpty (Alice no País das Maravilhas) é bastante signifi cativo para ilustrar a relação saber/poder:

“Quando uso uma palavra – disse Humpty Dumpty em tom de escarninho – ela signifi ca exatamente aquilo

que eu quero que signifi que... nem mais nem menos.

– A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.

– A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso”.

!

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber

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AUTO-AVALIAÇÃO

Por considerar que toda auto-avaliação é uma forma de refl etirmos criticamente

sobre nossas ações no mundo, incluindo nossos relacionamentos com os outros,

acredito ser pertinente propor que você reveja:

• Quais os critérios que você utiliza em sala de aula para avaliar o rendimento

escolar de seus alunos.

• Como você percebe que seus alunos realizaram aprendizagens signifi cativas.

• Quais estilos de ensino favorecem aprendizagens duradouras e quais estilos

promovem uma memorização mecânica.

• O que pode ser feito para transformar desinteresse pelos conteúdos em prazer

de aprender.

• Como você pode se relacionar com seus alunos sem recorrer ao uso do poder

docente de punir e reprovar.

Vimos como a Psicologia deve parte de sua herança como Ciência à Psiquiatria

e à loucura. Nessa gestação científi ca várias manifestações do Poder estiveram

atuantes na sociedade e dentro do campo das Ciências. A mensuração do homem

foi uma exigência para que a Psicologia pudesse ser considerada uma Ciência de

verdade. Nascem dessa exigência: a Psicometria e os mais variados testes, dentre

eles o famoso Quoefi ciente intelectual. Os testes entram na escola e as avaliações

educacionais passam a incorporá-los na seleção de alunos e na constituição das

turmas. A Psicologia da Educação ganha status e seu prestígio aumenta como

a única responsável por um diagnóstico do rendimento escolar do alunado.

Hoje, a Psicologia da Educação, sem negar seu passado, busca outros caminhos

e formas para garantir a aprendizagem signifi cativa dos alunos e colaborar com

os professores na criação de estilos de ensino adequados à clientela atendida

pelas escolas.

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Escola, saber e poder

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Compreender como escola, saber e poder se relacionam.

• Perceber as relações entre saber e poder na produção do fracasso escolar.

• Conhecer abordagens teóricas sobre a relação entre escola, saber e poder.

OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder

Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as

massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente,

claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem.

Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse

discurso e esse saber (FOUCAULT, 2001, p. 71).

Seguindo nossa metáfora do trem, convido todos os

passageiros deste curso a uma viagem inadiável. Ao mesmo

tempo sombria e libertadora. Sombria porque nos fará ver

da janela do trem que a escola ainda é um sistema de poder

que barra a expressão do saber dos alunos. Libertadora

porque nos fará criar e modifi car essa educação.

Durante a viagem é bom a gente ir se perguntando: Por

que a escola tem tornado a aquisição do saber escolar

um mito, particularmente para um determinado grupo social, as camadas

de baixa renda? Por que os mais altos índices de exclusão escolar atingem as

crianças populares? Elas são menos capazes do que as crianças pertencentes

a outros meios socioculturais mais abastados? Como se relacionam escola,

saber e poder?

DEPOIMENTO DE UM PAI

Há o depoimento indignado de um pai que revela de maneira clara

os efeitos da relação que se estabelece entre escola, saber e poder. A força

da sua indignação dá o tom desta viagem que nos levará a responder às

questões anteriormente colocadas.

“Eu sei lá, eu tenho tanto prazer de ver fi lho estudar, eu acho tão bonito uma criança chegar tudo assim na escola, cada um escrevendo... De tanto achar bonito que eu num posso pôr meus fi lho, né. De tanto eu tenho vontade! Tenho vontade de ver meus fi lho tudo estudando, pra depois ter uma boa profi ssão, né, se não fi ca um bando de criança sem estudá, né, e que profi ssão vai ter? Não vai ter profi ssão nenhuma. Num sabe nem fazê o seu nome. Num dá alegria ver meus fi lho dentro de casa, tudo sem estudar."

Bem-vindo!

Você está convidado(a) a ler sábios

depoimentos de pessoas comuns e

posicionamentos valiosos de teóricos

muito sintonizados com o tratamento

do tema desta aula.

INTRODUÇÃO

O texto desta aula conta com a colaboração da professora Rosa Maria Lepak Milet, da UFF, pesquisadora do tema em pauta: escola, saber e poder. Depoimentos de pessoas comuns e articulações teóricas aqui presentes são contribuições desenvolvidas em sua pesquisa.

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O desabafo desse pai anônimo faz parte da história de muitos

pais que vivem pelo Brasil afora. Representam as camadas mais pobres

da população e vêem a escola como único lugar de acesso ao saber

valorizado socialmente. Acreditam que, dominando esse saber, podem

“subir na vida”, ter poder nem que seja para exercer o direito de escolha

sobre o tipo de trabalho que desejam buscar. Afi nal, aspirar ao poder

é o sonho de todos aqueles que não o detêm. Para o povo em geral, ser

bem-sucedido nos estudos representa a chance de diminuir as diferenças

econômicas, de prestígio, de posição social e de poder.

Vejamos, então, na escola a relação saber e poder e tomemos o

fracasso escolar como um de seus efeitos. Para iluminar nosso percurso,

contemos basicamente com a abordagem de autores como Michel

Foucault e Paulo Freire, sobre o modo como concebem essa relação.

"É porque mais tarde eles não sofre, eles não perece como eu tô perecendo. Eu pereço nesse ponto, tô perecendo porque não tenho estudo. Se eu tivesse estudo, não tava perecendo."

"Quem não tem estudo não tá no serviço sufi ciente. Anda aí sendo faxineiro, lidando com essas coisas de serviço assim bruto. Eu queria que meus fi lho estudasse, pegasse um serviço limpinho, que eles chegasse e se trabalhasse e se pudesse se comparecê perto de quarqué pessoa. Aí dá gosto a pessoa, né?” (CECCON, 1982, pp.18-19)

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder

O FRACASSO ESCOLAR E A RELAÇÃO EDUCAÇÃO, SABER E PODER

Sabe-se que as camadas de baixa renda são as que encontram mais

difi culdades para ingressar e permanecer na escola ao longo dos anos.

Nem todas as crianças têm acesso à escola, e aquelas que conseguem

apresentam freqüentemente logo de início um fraco desempenho.

(O próprio governo reconhece que cerca de 1 milhão de crianças

continuam fora da escola, o equivalente a 4% da população em idade

de escolarização obrigatória.) Depois de uma série de reprovações (a

chamada taxa de escolarização líquida, que é de 33,4% da população

de 14 a 17 anos, também é reconhecidamente baixa segundo dados

apresentados pelo INEP/MEC na reunião com a Unesco em fevereiro/

2000), os alunos vão perdendo o interesse e o estímulo e, sentindo-se

incapazes, concluem que a escola não foi feita para eles.

Diante de tantos fracassos, são levados a abandoná-la, pressionados

pela necessidade de fazer algo em que sejam de fato úteis, como contribuir

com o sustento da família. Assim, muito cedo ingressam no mercado de

trabalho informal, marcados pelo sentimento de que são menos inteligentes

e capazes do que os outros e de que não levam jeito para o estudo.

Essas crianças aprendem a se sentir inferiores em relação àquelas

que têm bons resultados escolares. São levadas a acreditar que sua falta

de aptidão e mérito são as causas do seu insucesso escolar. Acrescenta-se

ao fracasso escolar o fracasso social que as crianças pobres vêm incutindo

desde pequenas, quando se vêem diante da marginalização causada pelas

difi culdades de acesso aos serviços básicos como saúde, educação, habitação

etc. Por tudo isso, em lugar de se constituir em um espaço de produção

de saber, de circulação de idéias, de formação da cidadania, a escola vem

se aprimorando na produção e na manutenção de fracassos.

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O PODER GERA SABERES E O SABER GERA PODERES

Em seus estudos, o fi lósofo francês MICHEL FOUCAULT trata da questão

do poder em sua relação com o saber. Segundo ele, conhecimento/saber

e poder estão estreitamente ligados. Há uma constante articulação do

poder com o saber e do saber com o poder, de modo que o poder gera

saberes e o saber gera poderes.

Para Foucault, o poder não existe em um determinado lugar, ou se

origina em um determinado ponto. Não se confunde com o Estado nem

se localiza em um ponto específi co da estrutura social. Está, na verdade,

pulverizado por toda parte.

Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu

titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção,

com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem

o detém; mas se sabe quem não o possui (...)

(FOUCAULT, 2001, p. 75).

O poder, continua o fi lósofo francês, se expressa em relações de

poder, isto é, em relações sociais que atravessam a sociedade em todas

as suas dimensões. Todo saber, por sua vez, tem sua fonte original em

relações de poder. Onde há exercício do poder criam-se objetos de

saber, assim como todo saber faz aparecer novas relações de poder. Há,

portanto, uma constante conexão do poder com o saber e do saber com

o poder.

De que maneira o pensamento de Foucault sobre saber e poder

ajuda a aprofundar a compreensão dos processos de seletividade,

presentes na escola? Como já afi rmamos, na perspectiva foucaultiana o

poder não se manifesta explicitamente, não é algo externo e está sempre

engendrando saber, que por sua vez faz emergir poder. É justamente no

bojo dessa reciprocidade que currículo e poder se vinculam.

Assim, para identifi car o modo como se expressam as relações de

poder no currículo escolar, é preciso investigar os critérios de seleção

de conhecimentos adotados, assim como os princípios utilizados para

organizá-los e distribuí-los no currículo.

MICHEL DE FOUCAULT

(1926-1984)

Veja mais informações sobre Michel Foucault

na Aula 15.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder

O modo como o saber se dispõe no currículo está intimamente

vinculado ao poder. Isso signifi ca que o poder se inscreve nos próprios

procedimentos empregados para determinar os conhecimentos

contemplados no currículo e na maneira de apresentá-los. A seleção

dos conhecimentos que serão ou não priorizados é o que irá determinar

as divisões entre indivíduos e grupos sociais. Isso é o poder propriamente

dito. Dessa maneira, para compreender o modo como o poder se

expressa, precisamos verifi car quais conhecimentos estão incluídos e

quais conhecimentos estão excluídos do currículo.

Como conseqüência dessas divisões, quais grupos sociais estão

incluídos e quais grupos sociais estão excluídos? Que divisões sociais de

classe são geradas ou fortalecidas com as opções feitas? Quais os saberes

que a escola elege como sendo saberes legítimos e que constituem o corpo

de conhecimentos que a escola veicula como sendo o currículo ofi cial?

Vejamos como acontece esse processo de seleção de conhecimentos e de

expressão ou exercício de poder no ensino formal.

A cada ano a escola recebe um novo contingente de crianças que

já trazem consigo atitudes, valores, hábitos e experiências adquiridas

desde os primeiros anos de suas vidas. O modo de ser, de pensar e de se

comportar refl ete a cultura de sua família e de seu meio social. As crianças

desenvolvem sua personalidade, sua inteligência e sua afetividade a partir da

cultura apreendida no cotidiano do ambiente social em que convivem.

Mas a escola toma como referência determinados padrões de ser

e de viver familiares somente a um determinado grupo social, o grupo

dominante, deixando de lado o contexto cultural dos segmentos mais

pobres da população. O modo como a escola se organiza, os saberes

que privilegia, os modelos de comportamento que procura inculcar em

seus alunos, a linguagem que valoriza estão sintonizados com a cultura

da classe dominante.

Desde pequenas as crianças das classes mais abastadas convivem

com a cultura que a escola requer. Mostram familiaridade com a

linguagem escrita, com livros e jornais, sentem-se à vontade com as

regras e os rituais escolares. Para elas a escola é uma continuidade do

seu universo familiar.

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Ao contrário, as crianças das classes menos favorecidas sentem

difi culdades em corresponder às exigências da escola. As normas, os

valores e a linguagem utilizados são estranhos às vivências e ao seu

ambiente social de origem. A escola não valoriza os saberes que essas

crianças trazem, discrimina seu jeito de ser e de falar. Não leva em conta

suas experiências vividas em família e em comunidade.

O depoimento de um ex-aluno de escola pública situada na periferia

do Rio de Janeiro revela o sentimento que a escola lhe provoca:

“Sinto como se a escola colocasse a gente num ônibus e levasse pra

Copacabana.”

A queixa desse aluno comprova que o rico universo

de situações vividas pelos alunos populares fora da escola

é desconsiderado em sua programação pedagógica.

Crianças que sabem quanto os pais ganham, quanto custa

o pão, o café e o feijão. Crianças que estão habituadas a

dividir o alimento, a dividir o pequeno espaço onde moram, e na escola não

conseguem resolver operações de divisão, porque estas são apresentadas

de modo que em nada lembram as concretas e verdadeiras situações de

dividir e de partilhar amplamente praticadas em seu dia-a-dia.

Tais evidências apontam a escola como componente de uma rede

de relações que mostra a sua estreita ligação com o poder. A escola

privilegia as classes que já são privilegiadas, e que detêm o poder.

A escola não é neutra, ela responde às expectativas da sociedade onde

se insere. Numa sociedade como a nossa, dividida em classes sociais,

com realidades de vida diferentes e necessidades e interesses também

divergentes, a escola coloca os saberes que veicula a serviço da reprodução

dessa divisão, de modo a favorecer os interesses dos grupos sociais que

detêm o poder.

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Para essas crianças as vivências de sala de aula lhes deixam

perdidas e confusas. Sentem-se num ambiente desconhecido e reagem

demonstrando difi culdades de aprender e mau comportamento, que

revelam seu desinteresse e ausência de motivação diante da falta de sentido

e utilidade imediata dos deveres escolares. Suas vivências cotidianas de

trabalhar vendendo chicletes ou fazendo carreto na feira, por exemplo,

não são consideradas bagagem cultural. Tampouco são enfatizados os

conhecimentos de Matemática, adquiridos por essas crianças que sabem

fazer troco, mesmo antes de aprender a ler e escrever.

Os saberes adquiridos pelos alunos populares em suas apren-

dizagens cotidianas não são levados em conta nas práticas escolares.

Pelo contrário, são desqualifi cados, rotulados de ingênuos e de baixo

nível. O que se verifi ca nesse processo é a separação entre um saber

considerado científi co e outro saber considerado hierarquicamente

inferior, ressaltando-se a supremacia de um sobre o outro.

Foucault pretende justamente alertar para a necessidade de

combater os efeitos de poder que são peculiares ao discurso considerado

científi co e que desqualifi cam outros saberes por julgá-los incompetentes

e pouco elaborados. É o que o autor chama de conhecimento subjugado.

Sobre isso declara:

Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualifi cados,

não legitimados, contra a instância teórica unitária que

pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome

de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma

ciência detida por alguns. As genealogias não são portanto retornos

positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas

anticiências. Não que reivindiquem o direito lírico à ignorância

ou ao não-saber; não que se trate da recusa de saber ou de ativar

ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata não ainda

captada pelo saber. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto

contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência,

mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os

efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e

ao funcionamento de um discurso científi co organizado no interior

de uma sociedade como a nossa (1979, p. 171).

Ou seja, o poder se exerce através de um processo de controle e

regulação, para melhor atuar sobre a conduta dos grupos dominados.

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De acordo com ele, o que distingue as mais recentes formas de governo,

compreendido em seu sentido político de regulação e controle, é a

necessidade de vir a conhecer a população a ser governada. Para isso

não pode prescindir do auxílio das ciências humanas, que desenvolvem

conhecimentos sobre o homem e seus processos de desenvolvimento, com

o objetivo de conhecê-los para controlá-los e melhor governar.

Para que sejam de fato proveitosos, esses conhecimentos sobre

os indivíduos e a população a ser governada devem traduzir o modo

como pensam e vivem o mundo, exprimindo-o tal como se apresenta

concretamente em sua realidade existencial. Tais informações podem

ser adquiridas através de questionários, exames, inquéritos etc. Depois,

mapeados em quadros estatísticos, diagramas, gráfi cos. Se é possível

conhecer, mapear, calcular, é possível governar.

EDUCAÇÃO PARA A LIBERTAÇÃO

O pensador e educador PAULO FREIRE afi rma, como idéia central

em sua obra, a necessidade e a importância de se criar uma educação

como prática da liberdade, uma Pedagogia que venha a possibilitar aos

oprimidos se libertarem da violência dos opressores. Em sociedades como

a nossa, que se caracterizam pela presença contraditória de interesses

distintos, em que determinadas classes sociais promovem a dominação

de consciências de outras, a Pedagogia que predomina é a Pedagogia

das classes dominantes.

Na visão de Freire quem tem o poder é a classe dominante, a quem

interessa uma educação que venha a encobrir a realidade dos fatos em

lugar de desvelá-las, mistifi cando-as. Uma educação que tem a primazia

de ocultar verdades, ao invés de desocultá-las. É o que o autor denomina

de concepção “bancária” da educação, que age como instrumento da

opressão. Os educandos são tratados como se fossem seres “vazios”,

como se fossem “vasilhas”, recipientes em que o educador deposita

conhecimentos que os alunos precisam memorizar e repetir.

PAULO FREIRE (1921-1997)

www.paulofreire.org

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Na visão "bancária" da educação, o "saber" é uma doação dos

que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que

se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da

opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que

chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se

encontra sempre no outro (FREIRE, 1979, p. 67).

Na ótica de Freire, a educação refl ete a estrutura do Poder, e

a concepção “bancária” não só retrata em sua prática a dicotomia

opressor-oprimido, através da relação que estabelece entre educador

e educando, como também alimenta a sua manutenção. Afi nal, cultiva

a passividade, a adaptação, o silêncio, a subordinação e a ingenuidade

dos educandos, negando o diálogo. Tais atitudes e comportamentos por

parte dos alunos se apresentam como um terreno fértil para o professor

desempenhar sua função de

disciplinar a entrada do mundo nos educandos, ‘encher’ os alunos

de conteúdos, fazer depósitos de comunicados – falso saber – que ele

considera como verdadeiro saber (FREIRE, 1979, p. 72).

Se o saber que a escola transmite numa prática “bancária”

serve para dissimular, esconder, velar e portanto difi cultar aos alunos

a ampliação da sua compreensão do mundo e das relações que aí se

engendram, certamente esse saber não serve à superação de sua condição

de oprimido e de marginalizado.

A educação como prática da liberdade se distingue daquela que

exerce o domínio e impede a emancipação das classes populares, pois

propõe a refl exão sobre o homem concreto, situado no seu tempo, em

suas relações com o mundo, ao contrário daquela educação que serve

à opressão e que considera o homem um ser abstrato e desligado do

mundo em que vive, assim como concebe o mundo como se nele não

houvesse a presença dos homens.

Para Freire é preciso postular uma “pedagogia do oprimido”,

mas uma Pedagogia que o tenha como sujeito e que seja construída a

partir dele e não para ele. Uma Pedagogia que tenha como fundamento

princípios de uma educação voltada para a libertação, de modo que

através dela o oprimido possa desenvolver uma atitude refl exiva sobre si

próprio enquanto indivíduo e enquanto presença atuante no mundo.

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Ao apropriar-se refl exivamente de si mesmo, no mundo em que

vive junto aos outros homens, o educando estará se percebendo na sua

condição de sujeito histórico, tornando-se capaz de participar ativamente da

construção de seu destino, e de assumir as rédeas de sua própria história.

A proposta pedagógica apresentada por Paulo Freire como

sendo capaz de realizar esse papel é a que se baseia na concepção

problematizadora da educação. Nessa proposta, cabe ao educador

tomar como desafi o o despertar constante de seus educandos para uma

atitude refl exiva sobre o mundo e suas relações com ele, mas o mundo

concebido em seu movimento, em seu processo de transformação, e não

como algo estático.

Nesse processo, a aquisição do saber escolar deixa de ser um mito

para as camadas de baixa renda, uma vez que pressupõe em sua essência a

presença participativa dos alunos, que são permanentemente incentivados

a trazer para o universo escolar seu universo sociocultural.

Essa atitude de respeito, de aceitação e de valorização de suas

experiências certamente gera nos educandos populares um sentimento

de autoconfi ança, capaz de reverter a história de fracasso escolar que

os atinge particularmente.

Você poderia perguntar se, na perspectiva freireana, o currículo

escolar é constituído exclusivamente por temas ligados à realidade da

sociedade em que vivemos. A essa questão o autor responde indagando:

Pode haver uma séria tentativa de escrita e leitura da palavra sem

a leitura do mundo? (FREIRE, 1992, p. 135)

E afi rma com convicção,

(...) a escola de que precisamos urgentemente é uma escola em que

realmente se estude e se trabalhe. Quando criticamos, ao lado de

outros educadores, o intelectualismo de nossa escola, não preten-

demos defender posição para a escola em que se dilu íssem disciplinas

de estudo e uma disciplina de estudar, de aprender mais do que

hoje. De aprender a ler, a escrever e a contar. De estudar História,

Geografi a. De compreender a situação ou as situações do país. O inte-

lectualismo combatido é precisamente esse palavreado oco, vazio,

sonoro, sem relação com a realidade circundante, em que nascemos,

crescemos e de que ainda hoje, em grande parte, nos nutrimos.

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Temos de nos resguardar desse tipo de intelectualismo como

também de uma posição chamada antitradicionalista que reduz o

trabalho escolar a meras experiências disso ou daquilo e a que falta

o exercício duro, pesado, do estudo sério, honesto, de que resulta

uma disciplina intelectual (FREIRE apud FREIRE, 1992, p. 114).

Aqui, Paulo Freire deixa claro que a atitude intencional de se

debruçar sobre o mundo para desvendá-lo deve se articular com os

conhecimentos científi cos produzidos nos diferentes campos do saber.

O acesso aos saberes acumulados historicamente pela humanidade,

em confronto com os saberes produzidos na busca de compreender o

mundo, fazem nascer conhecimentos novos, de outra qualidade, já que

são criados para responder às interrogações originais acerca do mundo em

que vivemos, feitas por educadores e educandos em situações pedagógicas

também originais.

Além disso os efeitos da conexão entre esses diferentes tipos de

conhecimentos servem à instrumentalização tanto dos alunos como dos

professores, já que aprofunda a sua consciência acerca dos antagonismos

e das injustiças presentes na sociedade em que vivemos.

Mas, para se realizar esse trabalho, é preciso que seja superada

a dicotomia educador-educando, professor-aluno, e se crie uma relação

de diálogo em que,

ninguém educa ninguém, tampouco ninguém se educa a si mesmo:

os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo (FREIRE,

1979, p. 79).

Para Paulo Freire, somente com base nesses procedimentos

podemos avançar no desafi o de construir uma educação de fato popular,

que venha a ampliar os horizontes pedagógicos, sociais, políticos e

culturais de todos os que estão envolvidos no processo educativo.

O empenho na compreensão de como funciona a sociedade em que

vivemos pode vir a acionar em cada uma das pessoas participantes e em

todas conjuntamente o anseio de lutar por uma sociedade mais justa,

mais democrática, mais solidária e mais feliz.

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AUTO-AVALIAÇÃO

!Você pode agir só, se preferir, mas vai a sugestão: procure

parcerias com integrantes do curso para realizar essas atividades

em colaboração, em co-criação.

• De que maneira você experimenta a relação

saber e poder em sua vida escolar, seja como

estudante, seja com professor? Descreva um

ou mais fatos vividos.

• Procure refl etir sobre a infl uência da relação

entre saber e poder na produção do fracasso

escolar e analise os índices de evasão e

repetência presente em sua escola ou numa

escola de seu bairro.

• Explicite como se dá a relação entre escola,

saber e poder segundo a abordagem de cada

um dos autores apresentados. Comente cada

abordagem.

• Escolha um dos autores trabalhados e

apresente uma proposta pedagógica de

atuação em sala de aula que possa contribuir

para o sucesso escolar dos alunos que estão

fracassando.

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A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Rever concepções, conceitos e noções estudados nas aulas anteriores, utilizando como tema principal das reflexões o saber, o poder e suas inter-relações.

Pensando sobre saber e poder

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INTRODUÇÃO Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, e o máximo de

sabor...

(BARTHES apud ALVES, 1999, p. 35).

A manhã primaveril é linda. Raios de sol, ainda tímidos, atravessam a névoa,

como se representassem uma resistência da madrugada, que não deseja ir

embora, com seu silêncio e suas sombras.

Enquanto o trem está parado na estação, para que um dos vagões de carga

receba uns engradados enormes, olhamos a cena, com a certeza de que é

sempre possível aprender alguma coisa.

A discussão que presenciamos há pouco, por exemplo, observada com atenção

e relembrada agora, dará ensejo a nossas refl exões na aula de hoje.

Com grande esforço físico, dois carregadores tentavam erguer duas caixas

muito grandes e muito pesadas, com o objetivo de embarcá-las no vagão. O

chefe do trem, esbaforido e preocupado com um possível atraso, chegou-se

a eles, dizendo:

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O tema das aulas, caro aluno, objeto desta aula-síntese, é a questão

do saber e do poder, vistos em suas inter-relações. E o diálogo imaginário

reproduzido anteriormente ilustra bem tal tema.

De saída, observamos a prepotência do chefe do trem, um

sujeito normalmente bem-educado que, pressionado pelos problemas

no trabalho, lança mão do exercício de seu poder de chefe para tentar

resolver a situação.

Podemos observar também as referências que tanto um dos

carregadores quanto o chefe do trem fazem à questão do saber.

O carregador fala dos “sabidos do escritório”; o chefe do trem, além

de defender a “sabedoria” dos colegas do escritório, ainda critica o

carregador, relacionando sua condição de trabalhador braçal com a

falta de estudo.

As seis aulas anteriores a esta, prezado aluno, tratam do tema

saber/poder sob vários enfoques.

Na primeira delas, você pôde estudar a questão a partir do ponto

de vista do fi lósofo Michel Foucault. Aí, logo de saída, afi rma-se que

saber é poder. E se acentua a importância, para a Educação, do estudo

das inter-relações entre o saber e o poder.

Nessa mesma aula, estudou-se a seguir a questão do que Foucault

denomina “formação discursiva”, isto é, aquilo que é falado, aquilo em

que consistem os discursos sobre a realidade, bem como a relação que

isso guarda com as fontes e com a manutenção do poder. Além disso,

destacou-se a questão das condições concretas, históricas e culturais,

nas quais esses discursos têm sua origem e se sustentam, como suporte

das manifestações de poder.

Em seguida, você estudou, nessa aula, a questão do que as socie-

dades consideram “loucura”, bem como viu expostas as características

das formações discursivas, aí incluídas a interdição, a separação entre

loucura e razão, a separação entre o verdadeiro e o falso, as sociedades

de discursos e as doutrinas.

Logo depois, você pôde ver mais detalhadamente a questão das

relações entre o poder e o saber, a partir da visão de Michel Foucault,

sobretudo quando constata que o poder não está presente apenas no

discurso e nas práticas da classe dominante; o poder permeia todo o tecido

social, constituindo o que Foucault denomina “poder microfísico”.

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A aula seguinte foi dedicada à questão do saber e da sabedoria.

A partir da curiosa história do barqueiro, você pôde ver que há uma

enorme diferença entre o saber como conhecimento, como erudição,

como acúmulo de informações teóricas e de conceitos, e a sabedoria

prática, exercitada na “escola da vida”. Despertar no seu aluno esta

sabedoria é ensinar a condição humana, e esta, para ser ensinada,

precisará que os saberes não sejam compartimentalizados, fragmentados

em disciplinas díspares.

Para tanto, importa formar homens capazes de organizar seus

conhecimentos, em vez de apenas armazená-los, por uma acumulação

de saberes.

Vale a pena, prezado aluno, atentar para a seguinte preocupação

expressa nos Parâmetros Curriculares Nacionais: é hora de retomar e

atualizar a educação, através de uma organização escolar e curricular

baseada em princípios estéticos, políticos e éticos (Ministério da Educação.

Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Brasília: 1999, p. 285).

Em seguida, caro aluno, prosseguindo na viagem pela Terra dos

Fundamentos da Educação, nosso trem imaginário atravessou o trecho

dedicado à questão do saber científi co como saber paradigmático, isto é,

como referência, exemplo e norma, como um verdadeiro poder exercido

por esse campo de saber sobre os demais.

Depois, o tema abordado foi o saber “comum” ou “vulgar”,

sendo analisadas suas características e sua importância.

A questão seguinte, nessa aula, foi relativa à classifi cação dos

saberes, com suas várias denominações: “saber técnico”, “saber culto”,

“saber de salvação”, de acordo com a classifi cação feita pelo fi lósofo Max

Scheler. E uma outra classifi cação muito usada também foi examinada:

“saber comum ou vulgar”, “saber científi co” e “saber fi losófi co”.

“Saber” foi estudado, também, em termos etimológicos, isto é,

segundo a origem da palavra, e aí constata-se sua relação de parentesco

com “sabor”. Recorrendo-se ao pensamento do fi lósofo e educador Rubem

Alves, analisou-se a questão dos limites éticos que devem ser impostos

ao saber científi co, numa visão que remete à importância que deve haver

tanto na construção quanto, sobretudo, na utilização dos saberes, de tal

modo que eles sirvam da melhor maneira aos seres humanos.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder

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Em seguida, com a ajuda do pensamento de Edgar Morin,

examinou-se o fato de que não somos somente “sapiência”, ou seja,

racionalidade, mas somos igualmente “demência”, isto é, uma dimensão

criativa, uma sabedoria e uma inventividade absolutamente necessárias

à vida humana.

Essa aula se encerrou com refl exões acerca da importância do tema

“saber e sabedoria” para nós, professores, que devemos sempre indagar

que tipo de saber e que tipo de sabedoria desejamos para nossos alunos.

Na aula seguinte, caro aluno, você pôde examinar com detalhes os

saberes popular e erudito. Aprendeu que os saberes não são absolutos

e independentes do contexto em que são produzidos; ao contrário,

emergem desse contexto e o refl etem. Assim, diferentes classes sociais e

distintos meios culturais produzem saberes com características diferentes.

Considerando isso é que devem ser examinados o saber denominado

“erudito” e o saber chamado “popular”.

Lançando mão da genialidade de uma composição musical de

Vinicius de Moraes e Tom Jobim, essa aula tratou das especifi cidades do

saber popular e da necessidade de que seja considerado e respeitado.

Em seguida, ressalta-se que o saber produzido no interior das lutas

sociais – o saber popular – não deve ser idealizado nem considerado com

ingenuidade, como se fosse inerentemente verdadeiro e homogêneo. Esse

saber exibe ambigüidades, contradições e mesmo muitos ingredientes

do saber dominante.

A aula examinou também, prezado aluno, o saber erudito,

especialmente no que se identifi ca com os saberes científi co e fi losófi co,

os quais acabaram por impor-se como os saberes referenciais,

paradigmáticos, os saberes por excelência.

Em seguida, a aula destaca a questão: como conciliar o saber

popular com o saber erudito? O que se constata aí, no centro dessa

refl exão, nos interessa muito de perto, como professores: o problema da

difi culdade, por parte da escola e da academia, em reconhecer a validade

e a importância do saber popular. Seu aluno chega à escola imerso nesse

saber. Então, como transmitir-lhe os saberes formais e estabelecidos

– como, por exemplo, o saber científi co – sem uma rejeição à base de

saber popular com que já chega à escola?

A conclusão é que ambos os saberes, o popular e o erudito, são

imprescindíveis, e é necessário fazê-los dialogar, em prol de uma formação

completa e consciente do aluno.

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A aula seguinte tratou de outras duas modalidades de saber: o

“saber instituído” e o “saber instituinte”.

Começou-se por caracterizar o que seja uma “instituição”, tanto

em termos concretos, como, por exemplo, a dimensão material de uma

escola, com suas salas, carteiras, pessoas etc., quanto em sua dimensão

simbólica, como o casamento. Viu-se, a partir daí, que uma instituição

traduz-se num conjunto de normas, regras e atividades impregnadas de

valores e funções sociais.

Nessa aula, acentuou-se que a escola é uma instituição, tanto em

termos materiais quanto simbólicos. E, como todas as instituições, apresenta

as dimensões “instituída”, isto é, estabelecida, estratifi cada, já dada, e a

“instituinte”, aquela que está por se constituir, por se estabelecer, o espaço

onde podem surgir as modifi cações e as transformações. Essas duas dimensões

foram estudadas também utilizando as denominações usadas por Cornelius

Castoriadis, ou seja, como as dimensões “patente” e “latente”.

A dimensão latente ou instituinte é, portanto, exatamente aquela

em que ocorre a dinâmica do vir-a-ser, ou seja, onde as mudanças podem

ocorrer, onde as idéias acerca de mudança têm seu espaço de apresentação

e de ação transformadora.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder

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Nessa aula, caro aluno, você viu em seguida que o papel do

professor abrange essas duas dimensões, a instituída e a instituinte. O

professor é responsável tanto pelos saberes instituídos, que necessitam

ser transmitidos, quanto pelos saberes instituintes, quer dizer, aqueles

que trarão o novo, o que institui, o que modifi ca, o que transforma.

A preocupação com as inovações tecnológicas, como a

informatização e a robótica, deve estar presente nas aulas, de modo

que os objetivos de formação no nível do Ensino Médio priorizem a

formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do

pensamento crítico.

Agindo assim, caro professor, você estará atendendo aos princípios dos

Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, que prevêem:

• que os estudantes desenvolvam competências básicas que lhes

permitam criar a capacidade de continuar aprendendo;

• que a educação deve cumprir um triplo papel: econômico,

científi co e cultural, e alicerçada em quatro pilares: aprender a conhecer,

aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser.

Em seguida, com a ajuda do pensamento de Émile Durkheim,

Edgar Morin e Michel Maffesoli, a aula destacou a importância

de que a escola, além de representar o saber instituído, represente

fundamentalmente o saber instituinte, aquele que ensina a viver e que

pode transformar o saber em “sapiência”.

Com Maffesoli, a aula acentuou a importância de exercitar-se uma

“pedagogia da escuta”, ou seja, ouvir o aluno, a manifestação de tudo o

que ele traz consigo antes de ingressar na escola, expondo-se à dimensão

do saber estabelecido, ou seja, instituído. Essa escuta abre espaço para

a manifestação da dimensão instituinte, na qual estão presentes as

possibilidades de invenção, de renovação, de transformação.

Então, prezado aluno, o que você está achando das várias e

interessantes facetas apresentadas pelo problema do saber e de suas

relações com o poder? Daqui a pouco, nosso trem da imaginação vai

reiniciar sua marcha, continuando a percorrer a Terra dos Fundamentos

da Educação. Vamos, enquanto isso, permanecer aqui, ao lado da estação,

e aproveitar para relembrar um pouco mais do que você aprendeu nas

últimas seis aulas.

A aula seguinte tratou do poder e de sua produção e conseqüências,

relacionando-as com o saber. Mas, uma vez lançando mão das idéias de

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Michel Foucault, observou-se o poder do ponto de vista da Psicologia, bem

como da Psiquiatria. Demonstrou-se como o conhecimento médico avalizou

a aplicação de instrumentos de poder, inclusive de poder excludente, como

no caso da loucura e da separação dos loucos, com seu confi namento.

A ciência da Psicologia vai pôr-se a serviço do poder também

quando desenvolve mecanismos mensurativos, como forma de avaliar

o desenvolvimento humano e sua capacidade de aprendizagem. Nessa

aula discorreu-se, então, sobre os famosos testes, a partir dos quais se

estabeleceram mecanismos de seleção, com as conseqüentes discriminação

e exclusão. Sobre esses, caro aluno, você já deve ter ouvido falar, por

exemplo, dos testes de estabelecimento dos coefi cientes de inteligência,

o famoso “QI”, até hoje ainda bastante aplicados, não é mesmo?

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Como você pôde aprender nessa aula, prezado aluno, nasce aí a

criança da Psicologia, uma criança cuja “normalidade”, cujo desenvolvimento

“saudável” é determinado por essas regras mensurativas nascidas do novo

saber-poder oriundo da Psicologia. Nasce aí, como conseqüência, o aluno

“especial”, “diferente”, que requer tratamento especial, separado.

Essa aula explicou a você também, caro aluno, como e por que

nasce a necessidade de se criar, em Educação, a Orientação Educacional.

A partir daí, todo o desenvolvimento, aí incluídos a maturação emocional

e o desenvolvimento cognitivo, passa a ser monitorado e controlado por

essa nova visão apoiada em parâmetros científi cos. A própria “vocação”

passa a ser determinada por testes psicológicos. Veja como se tornou

imenso o poder desse tipo de saber!

Você, que irá educar adolescentes, precisa ter em mente que esse

período de vida é, indiscutivelmente, no atual contexto, um fato social,

uma atitude cultural, com importância inegável para o desenvolvimento

político, social e cultural de nosso tempo. A adolescência abre a porta

para um mundo novo, de mudanças, não apenas na própria imagem do

indivíduo e na maneira de interagir com seus iguais e com o resto das

pessoas, mas também se estende a novas formas de pensamento.

A adolescência é também uma fase que se caracteriza por crises,

rupturas, transformações corporais e psicológicas, às quais você, como

professor, precisa estar atento, sabendo usar o seu poder com autoridade,

mas sem autoritarismo.

A aula se encerrou chamando a atenção para o fato de que o

poder não se apresenta somente sob seu aspecto negativo, repressivo; há

também um outro aspecto, positivo, que, ao invés de excluir as pessoas

da vida social, busca incluí-las, tornando-as produtivas e, ao mesmo

tempo, controlando suas ações e procurando aproveitar ao máximo

suas potencialidades.

Ao fi nal, prezado aluno, você pôde aprender nessa aula que

saber e poder estão inevitavelmente relacionados; que as relações de

poder constituem campos de saber; e que os campos de saber geram,

necessariamente, relações de poder.

A última das seis aulas aqui sintetizadas foi dedicada às relações

entre a escola, o saber e o poder. Evidentemente, caro aluno, que

compreender como essas relações se estabelecem, se perpetuam e,

eventualmente, se modifi cam é fundamental para nós, professores.

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A escola se apresenta como um sistema de poder, segundo você

pôde ver nessa aula. Um poder que barra a expressão dos alunos; que

torna a escola o âmbito do saber escolarizado, sistematizado, um mito,

especialmente para os alunos das classes populares. Se ingressar na escola

e, através dela, galgar uma boa posição na vida, é o que almejam os

integrantes das classes populares, o mito cai por terra, sobretudo quando

se constatam os altos índices de evasão; quando se observa a cruel realidade

do fracasso escolar nessa camada da população. A escola, em verdade,

como você pôde estudar nessa aula, ao invés de erradicá-lo, vem se

constituindo num espaço da produção e da manutenção do fracasso.

Articulando-se com a aula precedente, essa aula retoma a visão de

Michel Foucault acerca da relação entre o saber e o poder. E examinou

essa relação recíproca, sobretudo do ponto de vista do currículo escolar e

de como sua construção e manutenção expressam a relação saber-poder.

Estudando atentamente essa aula, você viu como a determinação do

que deve ou não estar incluído no currículo serve ao propósito do exercício

do poder. Que saberes são incluídos na grade curricular e considerados

“legítimos”? Serão os saberes engendrados e praticados no âmbito das classes

populares? A aula o convidou a refl etir sobre isso, prezado aluno.

Em verdade, conforme fi cou demonstrado nessa aula, o currículo

escolar expressa tanto o conteúdo quanto a organização dos saberes

que interessam à classe dominante. As crianças das classes populares,

da camada desfavorecida da população, se sentem, conseqüentemente,

desconfortáveis nesse ambiente inóspito, estranho à sua vivência real, o

que acaba por levar à rejeição e ao fracasso escolar.

Tal situação, como se esclareceu nessa aula, acaba por fazer da escola

um instrumento de aprofundamento dessa divisão social em classes.

Recorrendo mais uma vez a Michel Foucault, a aula exibiu

novamente a constatação de que os saberes populares são, como afi rma

aquele pensador, expressão de um “conhecimento subjugado”, em face,

sobretudo, do saber científi co, formal, paradigmático, “verdadeiro”.

Em seguida, a aula apresentou as idéias do educador Paulo Freire

sobre o que considera uma educação libertadora.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder

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Ao contrário desta, uma Educação promovida e controlada pela classe

dominante, segundo seus próprios interesses, torna-se uma educação

aprisionadora, fazendo dos alunos seres passivos, simples receptáculos

de saberes que não dizem respeito à sua verdadeira condição de vida, à

sua classe social. Trata-se da famosa concepção “bancária” da Educação,

de que falava Freire.

Seguindo o pensamento de Paulo Freire, a aula apresentou a idéia

de uma Educação libertadora, de uma “pedagogia do oprimido”, feita

não para o sujeito, mas a partir dele. Desse modo, a Educação deixa

de ser um mito, para as classes populares, as quais podem trazer para

a escola seu próprio universo sociocultural. Isso gera autoconfi ança e a

conseqüente redução do fracasso escolar.

A aula, ainda apoiada nas refl exões de Paulo Freire, destacou

que os conhecimentos acumulados – representados pelo saber formal,

especialmente pelo saber científi co – confrontam-se com os conhecimentos

produzidos pela leitura do mundo, pela busca de sua compreensão. Daí

nasce um conhecimento novo, que leva inclusive à conscientização acerca

dos antagonismos e das injustiças presentes na sociedade.

O último ponto abordado nessa seqüência de aulas foi aquele segundo

o qual, na visão paulofreireana, deve ser superada a relação “professor-

aluno”, “educador-educando”, e ser substituída por uma relação dialógica,

em que os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.

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Desse modo, prezado aluno, você pôde aprender e refl etir sobre

as relações entre o saber e o poder, suas características e sua presença

no universo educativo. Agora, provavelmente, você terá condições de

avaliar melhor aquela discussão descrita no início desta aula-síntese,

tentando responder a indagações como as seguintes:

• Como deve se comportar o professor em face da relação entre

o saber e o poder?

• É o saber um poder? Em caso afi rmativo, como se manifesta

tal poder?

• Quais as características apresentadas pela relação saber-poder

no âmbito da escola?

• Estaria o poder presente em todas as esferas da instituição escolar

manipulando todos os envolvidos no processo educacional?

• Há várias modalidades de exercício do poder nas relações sociais?

• Seria a participação um mecanismo de ação capaz de exercer

alguma infl uência sobre o poder?

• Dentre os teóricos apresentados, qual despertou em você maior

interesse em conhecer mais suas idéias?

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder

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AUTO-AVALIAÇÃO

• Com o estudo desta aula, você conseguiu aprender mais e consolidar o que havia

aprendido sobre a diferenciação entre saber e poder?

• Certifi cou-se de que há vários tipos de saberes?

• Compreendeu que há saberes que fazem parte da norma, da lei, enquanto há

outros que fazem parte da vida?

• Notou a grande quantidade de teóricos que têm estudado a questão do poder

e do saber?

• Percebeu que esta aula é um termômetro para avaliar seus conhecimentos e

que, nesse sentido, serve para você diagnosticar o seu desempenho nas diferentes

aulas até aqui estudadas?

• Caso tenha sentido difi culdade em qualquer dos tópicos aqui apresentados,

volte à aula específi ca do tema e faça uma releitura. Queremos vê-lo, caro aluno,

dominando estes conhecimentos que fazem parte do mundo dos “Fundamentos

da Educação”.

O trabalho de carregamento já foi completado. É hora de embarcar

novamente para prosseguir nossa viagem pela Terra dos Fundamentos.

O trecho seguinte da viagem será muito interessante e vai iniciar-se

com uma aula destinada a abordar as relações entre Estado, Sociedade

e Escola.

Reembarquemos, pois o maquinista do nosso trem da imaginação

já deu o último apito avisando que vai partir.

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A relação Estado, sociedadee escola 1 a

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Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Analisar as formas pelas quais a escola é envolvida em uma variedade de forças e necessidades confl itantes.

• Compreender os papéis diferenciados que o Estado pode representar em seu relacionamento com os diversos segmentos da sociedade e com a escola.

OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1

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Na medida em que nos encaminhamos para vislumbrar mais uma paisagem

nesta nossa viagem, insistem em me vir à mente as palavras do sociólogo

Manuel Castells: “a sombra da crise estende-se pelo mundo”.

Os pontos de vista tradicionais sobre a relação entre sociedade

e escola enfatizam, sempre, o papel que a educação desempenha na

alteração das características individuais e na posição ocupada pelos

indivíduos nas estruturas econômica, social e política. O foco de tais

perspectivas é fi xado em uma instituição (a escola) e em suas relações com

o indivíduo. Isso não signifi ca que o aluno seja tratado como um caso

individual; ao contrário, os indivíduos, em sua coletividade, estão imersos

em um contexto universal, e a Ciência Social e a Pedagogia tentam

encontrar normas e regras universais, através das quais possam entender

a relação entre a instituição e o indivíduo naquele contexto. Assim,

constata-se a existência de um indivíduo universal, sujeito a padrões de

comportamento derivados da cultura, da posição social e ocupacional,

e, ao mesmo tempo, separado, cada pessoa sendo responsável por si

mesma neste momento da História, separada da História passada, da

cultura passada e das interações passadas.

Há um confl ito em tal análise. Por serem separados, os indivíduos

lutam uns contra os outros. No entanto, essas lutas são resolvidas por

regras e regulamentos universalmente aceitos porque são imparciais e

justos: os confl itos econômicos são resolvidos pelo sistema de mercado,

particularmente pelo sistema de preços e salário; e os confl itos sociais

e políticos são resolvidos pelo sistema legal, em vigor no Estado

democrático. E as mudanças nesses sistemas são atingidas através

do consenso democrático, o voto. A educação – também um elemento do

Estado – é, assim, uma expressão consensual da tônica social, também

sujeita a confl ito, mas um confl ito que é trabalhado no contexto da

escolha individual e da democrática, decisão que cada um toma a respeito

do tipo e da quantidade de educação e treinamento a receber.

A perspectiva marxista é diferente. É histórica e centrada

nas classes sociais. O comportamento individual é entendido como

produto de forças históricas, enraizadas em condições materiais.

INTRODUÇÃO

“Na produção social de suas vidas, os homens estabelecem relações defi nidas que são indispensáveis e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a determinado estágio de desenvolvimento de suas forças de produção material. A soma total dessas relações constitui a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o qual se ergue uma estrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção das condições de vida material condiciona o processo geral da vida intelectual, política e social. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”

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Quando as condições materiais mudam, através da luta de classes,

alteram-se também as relações entre os indivíduos nas diferentes

posições sociais. Tais posições são determinadas pela organização social

da produção e pela relação de cada pessoa com a produção.

Assim, a organização da produção – a formação social – e seu

desenvolvimento histórico são centrais na abordagem marxista, porque

é nessa organização que encontramos as relações da vida humana, o

signifi cado e o valor das características individuais e os determinantes

do poder político e da hierarquia social. Na produção capitalista, os

capitalistas (e, mais recentemente, os empresários) controlam e acumulam

capital e são capazes, no contexto da luta constante com a classe

trabalhadora, de dar forma ao processo de desenvolvimento da sociedade,

inclusive à moral social e à formação cultural. Tanto a consciência do

capitalista como a consciência do trabalhador são formadas através de

suas relações com a produção; é essa mesma relação que condiciona o

desenvolvimento social do indivíduo e os modos de vida. Os indivíduos

e as instituições são, assim, produtos de desenvolvimento da formação

social e das relações de produção.

Nessa abordagem, o confl ito não é passível de resolução através

de regras universais, porque tais regras têm sua base em classes sociais;

elas servem a interesses particulares – os interesses da classe dominante.

Assim, o sistema de mercado e o Estado, longe de serem consensuais, são

produtos da dominação de classe e da luta de classes.

A classe capitalista, através de seu poder político, é

também capaz de explorar a classe trabalhadora

(aqueles que possuem somente sua força de

trabalho), como criar um modo de vida que

serve aos interesses capitalistas e tornar os

trabalhadores alienados e oprimidos.

A única solução para o conflito

inerente a esse sistema de produção

é a sua substituição por outro, no

qual a classe trabalhadora tenha o poder

político para reorganizar a produção e

desenvolver um modo de vida diferente.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1

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Isso nos coloca diante do problema da reprodução e de seu

contrário, a mudança social. Uma vez que a abordagem marxista

considera a sociedade capitalista organizada de acordo com o interesse

dos capitalistas e dirigentes, como são reproduzidas, de geração a geração,

as relações de produção, a divisão do trabalho e as classes sociais?

Na presente versão do “tradicional” ponto de vista liberal

(pluralismo), a reprodução acontece através da seleção dos líderes

(vereadores, deputados, senadores etc.), os quais, de alguma forma,

refl etem as necessidades e desejos do eleitorado, pelo menos daquela

parte do eleitorado que está interessada em participar da política e da

mudança social. De acordo com essa perspectiva, a atual estrutura da

sociedade capitalista e de seu complemento político – a democracia

representativa – é aceitável para a massa de cidadãos. A mudança ocorre

através da competição entre os grupos de elite que têm interpretações

diferentes sobre como alcançar o maior bem, dentro de objetivos

geralmente aceitos.

Na abordagem marxista, esse “consenso” sobre a estrutura da

sociedade não existe; ainda assim, o capitalismo continua prevalecendo

como modo de produção.

Teorias marxistas ortodoxas argumentam que a reprodução é

grandemente desempenhada pelos capitalistas no próprio setor produtivo,

por uma série de táticas que tornam a mão-de-obra temerosa de qualquer

tentativa de se organizar contra os empregadores, mantendo-se assim a

divisão do trabalho dentro dos limites de classe. Essas teorias argumentam

que o Estado capitalista é o aparelho repressivo da burguesia, que mantém

os trabalhadores em seus lugares através do sistema jurídico, do exército

e da polícia.

Análises marxistas mais recentes, entretanto, dão grande ênfase

à superestrutura no processo de reprodução. É nesse ponto que a

escolarização é considerada, porque é nesse processo que a reprodução

se reveste de sua forma mais organizada: as crianças, desde tenra

idade, freqüentam a escola e são-lhes sistematicamente inculcadas

as habilidades, os valores e a ideologia que se adaptam ao tipo de

desenvolvimento econômico adequado à continuação do controle

capitalista. Argumenta-se que, através da escola e de outras instituições

superestruturais, a classe capitalista reproduz as forças de produção

(mão-de-obra, divisão do trabalho e divisão do conhecimento) e as

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relações de produção – estas últimas predominantemente através da

manutenção e do desenvolvimento de uma ideologia “legítima” e de um

conjunto de padrões de comportamento (cultura).

A reprodução, no interesse de uma classe social particular,

automaticamente implica a existência de antagonismo de classe e de

potencial para a luta de classes. É essa noção de luta de classe, inerente

a todos os aspectos do desenvolvimento capitalista e das instituições

capitalistas, estrutura e superestrutura, que forma a base de uma teoria

marxista de mudança social. A necessidade capitalista de organizar

instituições para a reprodução signifi ca que há resistência ao conceito

capitalista de desenvolvimento e ao necessário controle capitalista desse

desenvolvimento. Outra vez, uma análise marxista da escolarização,

nesse contexto de transformação, é fundamentada nessa permanente

luta de classes.

Por razões práticas, qualquer estudo sobre Estado, sociedade

e escola precisará se debruçar sobre o sistema educacional e, para

compreender esse sistema, impõe-se uma análise implícita ou explícita

dos propósitos e do funcionamento do setor governamental. Desde

que o poder se expressa, pelo menos parcialmente, através do sistema

político de uma sociedade, qualquer tentativa de desenvolver um

modelo educacional (ou um modelo de mudança educacional) deve

ter atrás de si uma cuidadosa refl exão sobre o funcionamento do

governo, o que chamamos de uma Teoria do Estado. Por outro lado,

mesmo que não acreditássemos que um sistema educacional tenha algo

a ver com o poder na sociedade, ainda assim seríamos compelidos a

discutir o sistema governamental para entender a educação formal:

nos séculos XIX, XX e, agora, entrando no século XXI, a educação

tem-se tornado, crescente e primariamente, uma função do Estado.

Acerca do potencial transformador (ou modelador) da educação oferecida

pelo Estado às classes desfavorecidas economicamente, uma carta enviada

pelos índios norte-americanos, em meados de 1700, em resposta ao

convite para enviar seus fi lhos à Universidade de Mary e William, ilustra

como as consciências sociais podem diferir:

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1

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(...) Nós estamos convencidos, portanto, de que os senhores

desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas

aqueles que já são sábios reconhecem que diferentes nações têm

concepções diferentes das coisas, e sendo assim não fi carão os

senhores ofendidos ao saber que sua idéia de educação não é a

mesma que a nossa... Muitos dos nossos bravos foram formados

nas escolas do Norte e aprenderam toda a sua ciência, mas

quando eles voltaram para nós eram maus corredores, ignorantes

da vida da floresta e incapazes de suportar o frio e a fome.

Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma

cabana e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto,

totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores

ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela

sua oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar nossa

gratidão, oferecemos aos nobres senhores da Virginia que nos

enviem alguns de seus jovens que lhes ensinaremos tudo o que

sabemos e deles faremos homens (apud LEITE, 1979).

A carta-resposta dos índios é exemplar por nos mostrar a

percepção deles sobre o potencial modelador da escola e a sua negativa de

cair no que consideram um embuste, na armadilha generosa do inimigo.

Podemos encontrar esse mesmo tipo de percepção em uma camponesa

cearense de nossos dias:

(...) o exemplo do lar vale mais que a instrução escolar. Isso

não é querendo dizer que os fi lhos não saibam ler. Que devem

saber alguma coisa para não ser um analfabeto mais de acordo

de suas condições e de suas posses. Porque vendo o interesse de

nossa classe pobre os sacrifícios que fazem para querer formar

os fi lhos. Assim como faz o rico que tem tudo para o conforto

dos fi lhos, tirando das costas do pobre para fazer o fi lho dele

crescer. O que eu vejo é a nossa classe pobre mandar o fi lho

para classe rica; desejo de um dia seu fi lho virar um tubarão para

engolir a sua própria família; ou melhor, a sua própria classe.

Eu nunca me preocupei com essa educação nem para mim e nem

para meus fi lhos, esta educação de cultura e ciência, pois tive a

oportunidade de quem me desse gratuitamente mas nunca tive

vontade de ser grande, minha preocupação maior foi sempre de

ser o que eu sou, de ser pequena e imitar os meus pais, ter segurança

no meu pouquinho de consciência e procuro cada vez mais me

assegurar, e me perguntar todas as vezes se estou cumprindo com

as minhas responsabilidades, consciente no meu trabalho e na

minha família, principalmente com os meus fi lhos, se estou de

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fato sendo companheira amiga dos mesmos; de todas as horas;

é sempre uma revisão que gosto de fazer porque não é fácil, os

fi lhos sempre procuram imitar os pais, nós todos temos os nossos

defeitos, que ninguém é perfeito; sempre temos um lado negativo;

também temos um lado positivo, deixamos o negativo de lado; e

reforçamos o positivo mostrando para nossos fi lhos o que seus pais

são: ou seja, agricultor ou operário ou rendeira ou bordadeira, que

eles vão querendo ser o mesmo (GARCIA, 1980).

Nesse depoimento fi ca explícita a aceitação da escola como meio

de evitar que os fi lhos fi quem analfabetos (que os fi lhos não saibam ler).

Por outro lado, existe também o desejo de evitar a mudança de classe,

a transformação do fi lho em “tubarão que engole a própria família; ou

melhor, a própria classe”.

Você pode estar considerando tais depoimentos como exemplos

da ignorância do povo, mas a Educação Popular defi ne essas falas como

uma resistência do saber popular em confronto com o saber dominante

representado pela escola – aparelho ideológico do Estado.

O fato é que a escola no meio rural e no meio urbano (mesmo

quando pouco freqüentada) marca de forma distinta ambos os

saberes, tendo infl uências diferenciadas nos alunos pertencentes a

esses meios – o cerne dessa diferença reside, ainda em nosso país,

na necessidade (ou não) do aprendizado escolar para o

desempenho no trabalho. E sabemos o quanto o trabalho

infantil e juvenil é necessário para a sobrevivência de uma

família de camponeses em estado de miséria. Da mesma

forma vemos como são escassas as escolas existentes

nas zonas rurais e, geralmente, formadas por uma

classe multisseriada. A bolsa-escola federal tem,

como missão principal, fazer retornar para essas

escolas os alunos delas retirados por suas famílias.

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A título de exercício, Pedro Demo levanta algumas esferas de poder cujo abuso determina a fabricação

de vítimas no sentido político:

a) Poder econômico. Um dos abusos palpáveis do poder econômico se dá nas fraudes de compras, em

que o consumidor é lesado na quantidade (fraude no peso, no tamanho, na consistência), na qualidade

(fraude na especifi cação do produto, diferença de conteúdo, efeitos colaterais), no preço, no contrato de

compra, na garantia e assim por diante.

b) Poder político. A burocratização do Estado é, por exemplo, forma típica de abuso de poder político,

pois favorece a clássica estruturação das vantagens: oligarquização do poder, concentração de privilégios,

imposição da impunidade, mordomias, corrupção em geral etc. As duas formas mais típicas do abuso do

poder político são o estado de privilégio, e o estado de impunidade ou de exceção. O estado de privilégio

caracteriza-se pela situação de concentração de vantagens, entendida como direito de exploração. Aos

desiguais, somente deveres; aos privilegiados, todos os direitos.

O estado de impunidade caracteriza-se pela capacidade de produzir a fraude sem ser molestado pela

vítima, porque a esta se nega o direito de reagir. É, certamente, a situação mais drástica de prepotência

política, porque é concebida e exercida de modo ilimitado. O poder impune necessariamente se corrompe,

pois a impunidade é a forma máxima de sua corrupção.

c) Poder da informação. Faz parte dos conteúdos mais legítimos da democracia a transparência da informação,

evitando processos administrativos vedados ao conhecimento do público. Foi por falta dessa transparência

que em épocas passadas o governo tomou decisões escondidas, elaboradas no âmbito de umas poucas

pessoas, que se criam capazes de representar a maioria sem a consultar. Quando menos se esperava, a

sociedade se viu diante de uma dívida externa incontrolável...

Ao mesmo tempo, a censura, o controle dos órgãos de comunicação ou seu monopólio, a indústria cultural,

a moral, a cívica atuavam como instrumentos de manipulação, através dos quais se pretendia “fazer a

cabeça” da maioria, em favor de vantagens para a minoria.

É fato marcante de nossa época que os sistemas de comunicação e informação são fonte relevante de

poder. Sua infl uência cotidiana já é avassaladora e tende a crescer indefi nidamente.

d) Poder político. O saber especializado é também fonte de poder, sobretudo na versão tecnológica.

Além de fonte, o saber pode estar a serviço do poder. É o caso da tecnocracia, que tem como uma de

suas marcas colocar a serviço do poder o saber especializado de que dispõe. O abuso do poder aparece

de inúmeras formas, por vezes muito criativas: a construção de uma linguagem ininteligível ao público,

a título de superioridade; os planejamentos inefi cientes e inefi cazes, que servem à lógica dinâmica do

poder; a montagem de mandar inatos da pretensa inteligência; a tecnologia subserviente ao lucro, à

exploração, à destruição do meio ambiente e da qualidade de vida; as políticas sociais que fabricam

sobretudo formas de controle social e de desmobilização dos desiguais; o desconhecimento da sabedoria

popular. E Demo ainda enfatiza que: “sem qualquer pretensão de exaustividade, aí estão algumas for-

mas de abuso do poder, que produzem vítimas no espaço da coibição do exercício da cidadania. É mister

levar em conta que tal situação é crônica, pois é uma forma de opressão que encontrou, para além dos

traços próprios da organização econômica e social, traços culturais de forte consolidação na população”.

(DEMO, 1988, pp. 26-32).

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O Estado parece acreditar e tenta, através de uma propaganda maciça

veiculada pela mídia através da “boa imagem” angariada pela professora

Rute, personagem de uma novela da Rede Globo, nos convencer de que

a fabulosa quantia de quinze reais por mês oferecida às famílias por

criança (e para um máximo de três fi lhos, que provavelmente deverão ser

selecionados no interior de cada família) irá resolver o grave problema

da evasão escolar. Um problema que tem suas raízes fi rmemente fi ncadas

na miséria social que vitima milhares de brasileiros.

Outra distinção é feita entre os saberes do professor e os do

aluno; os professores detêm o saber dominante (legítimo e superior), e

os alunos, o saber popular (ilegítimo e inferior). A expressão escola da

vida denota esse aspecto do saber popular e, por isso, distingue-se o que

se aprende na escola e fora dela. Ou, como disse Noel Rosa:

“o samba não se aprende na escola”.

Em depoimentos de camponeses, a escola aparece

como tendo a função explícita de ensinar a ler, a escrever e

a contar. Algumas vezes essa função limita-se apenas

ao aprendizado de assinar o nome.

No meio rural, portanto, a relação

do camponês com a escola é mais ou menos

homogênea. Extrai dela muito pouco e o raio de

ação dessa instituição ainda é pequeno. Isso não signifi ca

que o camponês prescinda da escola, apenas que ele a

utilizará na medida de suas necessidades e de sua

consciência. Não se poderia afi rmar o mesmo

para aquelas pessoas que são donas de fazendas

e vivem nas zonas rurais; seus fi lhos extraem

muito mais das escolas que freqüentam e, via de

regra, prosseguem seus estudos nas grandes cidades,

dentro e fora do País.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1

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Já no meio urbano, a questão torna-se muito mais complexa,

porque o nível de escolaridade (qualifi cação) interfere diretamente no

valor da força de trabalho. A corrida por vagas nas universidades é

emblemática do valor que a sociedade brasileira confere aos diplomas

de nível superior, ainda considerados passaportes sociais para o sucesso

profi ssional. Todos os anos assistimos às homenagens prestadas aos

novos heróis das olimpíadas intelectuais: os que receberam medalhas

de ouro por terem passado nas maratonas que são os vestibulares para

os cursos mais concorridos das universidades públicas. A cultura da

“sadia” competição escolar é um disfarce para o álibi da “educação para

todos”; através dessa máscara social as relações de força dissimulam a

verdade objetiva de sua dominação.

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22AUTO-AVALIAÇÃO

• Analise como o Estado mostra-se presente no dia-a-dia de sua sala de aula.

• Seus alunos são diferentes socialmente e culturalmente de você? Em que aspectos

essas diferenças são mais marcantes?

• Como a cultura e o saber dominantes podem ser apresentados aos seus alunos

sem desmerecer a cultura e o saber que eles possuem?

• Como é possível promover a construção de conhecimentos no dia-a-dia escolar

tendo como ponto de partida a cultura popular já enraizada em seus alunos?

Vimos nesta aula duas concepções diferentes sobre a relação entre Estado,

sociedade e escola: uma concepção que enfatiza a existência de um indivíduo

universal e de uma sociedade organizada através do consenso. A segunda

concepção (marxista) centra-se nas classes sociais e em suas trajetórias históricas,

sem esquecer o signifi cado e o valor das características individuais. Classes sociais

diferentes possuem interesses divergentes; os confl itos são inevitáveis e, portanto,

as soluções para os mesmos passam por exaustivas negociações.

A escola pode ser entendida também como uma das diversas arenas de negociação

entre diferenças de classe, como é o caso das diferenças entre cultura dominante

e cultura popular, entre saber dominante e saber popular.

Por ser a educação uma função do Estado, o poder para transformá-la ou

conservá-la está em suas mãos, já que todo o fi nanciamento da educação pública

é administrado pelo poder governamental.

Contudo, é no dia-a-dia da sala de aula que a educação se realiza e, nesse

microcontexto social, os professores são os administradores e gestores do ensino.

Para o bem ou para o mal, a favor das classes mais desfavorecidas economicamente

ou a favor das elites. A escolha é inevitável.

R E S U M O

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A relação Estado, sociedadee escola 2 a

ul

a

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Analisar à luz da Psicologia como a relação Estado, sociedade e escola se concretiza em programas educacionais.

OBJETIVOS

23

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2

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INTRODUÇÃO Na Estação anterior vimos essa mesma temática com cores de uma

macroestrutura do Estado e da sociedade, como essa relação repercutia na

escola e, mais especifi camente, na educação popular com suas resistências e

submissão ao poder estatal. Agora, a macroestrutura vai virar pano de fundo

das cenas escolares. A escola nossa de todo dia ganha relevo e o nosso aluno

popular recebe destaque, assim como os professores, que são, também,

protagonistas da ação pedagógica. Dessa forma, prepare seu coração para mais

uma viagem nesta jornada de conhecimento, porque o serviço meteorológico

das teorias prevê chuvas e trovoadas pelo caminho. Coloque em suas malas

guarda-chuvas, casacos e botas, mas como São Pedro pode nos benefi ciar,

roupas leves e sandálias são imprescindíveis.

O aumento da demanda social por escola nos países industriais

capitalistas da Europa e da América e, como conseqüência, a expansão

dos sistemas educacionais de ensino trouxeram consigo dois problemas

para os educadores: a necessidade de explicar as diferenças de rendimento

da clientela escolar e, segundo, justifi car o acesso desigual dessa clientela

aos graus escolares mais avançados. Além de ter que solucionar esses

dois problemas, os educadores não podiam ferir o princípio essencial

da ideologia liberal, segundo a qual o mérito pessoal é o único critério

legítimo de seleção educacional e social.

No âmbito da liberal-democracia, é bastante plausível que haja

preocupação com a superdotação e sua contrapartida: a subdotação

intelectual; essas duas categorias de conceito foram, justamente, a

principal atividade da Psicologia nos setenta anos após a publicação da

primeira obra de Galton. Se as aparências já possibilitavam crer que as

oportunidades estavam igualmente ao alcance de todos – pois é inegável

que, ao compararmos a nova ordem social com a estática sociedade

feudal, agora tínhamos mobilidade social – a Psicologia ajudou na

sedimentação dessa visão de mundo na medida (exata?) em que os

resultados nos testes de inteligência, favorecendo quase sempre os mais

ricos, reforçavam a impressão de que os mais capazes ocupavam os

melhores lugares sociais.

As idéias de Galton a respeito da inteligência herdada marcaram época na Psicologia; sua infl uência sobre o movimento dos testes mentais que se desencadeou na última década do século XIX foi marcante: basta dizer que Cattell, pioneiro na criação de testes psicológicos nos EUA, estava entre seus alunos.

Os objetivos de Galton, contudo, iam mais longe do que a mera comprovação do caráter genético das capacidades psíquicas individuais; estava em seus planos interferir nos destinos da humanidade através da eugenia, ciência que visava a controlar e dirigir a evolução humana, aperfeiçoando a espécie através do cruzamento de indivíduos escolhidos especialmente para esse fi m.

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A explicação das dificuldades de aprendizagem escolar é

construída em cima de duas vertentes. A primeira vertente, formada

pelas Ciências Biológicas e pela Medicina do século XIX, recebeu uma

visão organicista das aptidões humanas, carregada de pressupostos

racistas e elitistas. A segunda vertente é constituída pela Psicologia e

pela Pedagogia da passagem do século, herda uma concepção menos

HEREDOLÓGICA da conduta humana – ou seja, mais atenta às infl uências

ambientais – e mais comprometida com os ideais liberais democráticos.

A ambigüidade imposta por essa dupla origem será uma característica

do discurso sobre os problemas de aprendizagem escolar e da própria

política educacional nele baseada, nos países capitalistas no decorrer de

todo o século XX.

Muitos psicólogos empenharam suas vidas, nesses dois séculos,

na pesquisa de instrumentos que pudessem verifi car se por trás do

rendimento bruto um indivíduo era intelectualmente mais apto que

outro. Em outras palavras, muitos se dedicaram com afi nco a tentativas

de medir com objetividade e precisão as verdadeiras aptidões das pessoas,

independentemente das infl uências ambientais, entre elas as de natureza

socioeconômica. Por isso, para não sermos injustos com esses muitos

pesquisadores que, da última década do século XIX aos trinta primeiros

anos do século XX, se debruçaram sobre as questões da mensuração

das aptidões, da orientação e da seleção profi ssional, é lícito afi rmar

que em suas investigações estavam imbuídos de ideais democráticos e

compartilharam da esperança de que era chegado o tempo da sociedade

igualitária, livre e fraterna.

Não eram, portanto, pessoas de má-fé que defendiam

conscientemente os interesses do capital, mas humanistas equivocados

que ingenuamente sonhavam o que a história capitalista tem mostrado ser

impossível: justiça numa ordem social estruturalmente injusta. Por essa

razão, esses muitos psicólogos acabaram, sem o desejar, fortalecendo a

crença na possibilidade de oportunidades iguais que tentavam viabilizar

através de dois recursos: o uso de instrumentos que queriam infalíveis

na mensuração das verdadeiras disposições naturais e a expansão e o

aprimoramento do sistema escolar.

Logo após a Primeira Grande Guerra, vários países engajam-se

numa nova cruzada social: identifi car os super e os subdotados na

população infantil, de modo a lhes oferecer condizente educação escolar.

Os primeiros especialistas que se ocuparam de

aprendizagem escolar foram os médicos. O fi nal do século

XVIII e o século XIX foram de grande desenvolvimento

das ciências médicas e biológicas,

especialmente da Psiquiatria. Datam

dessa época as rígidas classifi cações dos

anormais e os estudos de Neurologia,

Neurofi siologia e Neuropsiquiatria

conduzidos em laboratórios anexos

a hospícios. Quando os problemas de

aprendizagem escolar começaram a tomar corpo, os progressos

da nosologia já haviam recomendado a criação de pavilhões

especiais para os duros da cabeça ou

idiotas, anteriormente confundidos com os

loucos; a criação dessa categoria facilitou o trânsito do conceito

de anormalidade dos hospitais para as

escolas.

HE RE D O L Ó G I C A

Refere se à herança genética.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2

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Desde então, os testes psicológicos ingressaram nas escolas e passaram

a fazer parte de seu cotidiano nos países capitalistas centrais. É a partir

dessa época que, nos países dependentes (como o Brasil), educadores

mais progressistas sofrem forte INFLUÊNCIA do que se passa nos meios

educacionais da Europa e da América do Norte e começam a lutar pela

introdução da Psicometria e da Pedagogia nova em seus países.

A avaliação dos ANORMAIS ESCOLARES tornou-se, durante os primeiros

trinta anos do século XX, praticamente sinônimo de avaliação intelectual,

pois nessa época os testes de QI adquiriram um grande peso nas decisões

dos educadores a respeito do destino escolar de grandes contingentes

de crianças que, na Europa e na América, conseguiam ter acesso à

escola. No entanto, a incorporação de alguns conceitos psicanalíticos

veio modifi car não só a visão dominante de doença mental como as

concepções correntes sobre as causas das difi culdades de aprendizagem.

A consideração da infl uência ambiental sobre o desenvolvimento da

personalidade nos primeiros anos de vida e sobre a importância atribuída

à dimensão afetivo-emocional na determinação do comportamento e

seus desvios provocaram uma mudança terminológica no discurso da

Psicologia Educacional: de anormal, a criança que apresentava problemas

de ajustamento ou de aprendizagem escolar passou a ser chamada de

criança-problema.

LO U RE N Ç O F I L H O

O livro Introdução ao estudo da escola nova, publicado em 1927, é um caso exemplar dessa infl uência e desse objetivo.

AV A L I A Ç Ã O D O S A N O R M A I S E S C O L A RE S

Hoje sabemos que desse expressivo movimento das décadas de 1920 e 1930 restou a prática de submeter a diagnósticos médico-psicológicos as crianças que não respondem às exigências escolares. Nos anos 40, essa proposta já se transformara, em vários países, numa rotina quantifi cadora.

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Amplia-se, assim, o espectro de possíveis problemas presentes

no aprendiz que supostamente explicam seu insucesso escolar: as

causas agora vão desde as físicas até as emocionais e de personalidade,

passando pelas intelectuais. A nova palavra de ordem é a higiene mental

escolar e, com intenções preventivas, as clínicas de higiene mental e de

orientação infantil disseminaram-se no mundo a partir da década de

1920, propondo-se a estudar e corrigir os desajustamentos infantis. O

mais interessante é que essas clínicas serviam (e muitas ainda existem)

diretamente à rede escolar através do diagnóstico, o mais precocemente

possível, de distúrbios de aprendizagem.

Embora tenham nascido com intenções mais amplas, que abrangiam um trabalho permanente de orientação

de pais e professores, essas clínicas ortofrênicas transformaram-se rapidamente em fábricas de rótulos.

E os mais prováveis destinatários serão, mais uma vez, as crianças provenientes de segmentos das

classes trabalhadoras dos grandes centros urbanos, que tradicionalmente integram em maior número

o contingente de fracassados na escola.

!

Esse movimento gera, também, preocupação com a higiene

mental do professor e com a possibilidade de seus distúrbios emocionais

interferirem negativamente na saúde mental de seus alunos e, por fi m,

orienta uma série de medidas pedagógicas destinadas à correção dos

desajustes revelados pela clientela escolar, como, por exemplo, as

classes fracas, que mais tarde gerará uma outra modalidade escolar:

as classes especiais.

Nessa época, o peso atribuído à hereditariedade e à raça na

determinação do comportamento já havia diminuído. Contudo, diante

da recorrência de dados que apontavam os negros e os trabalhadores

pobres como os detentores dos resultados sistematicamente mais baixos

nos testes psicológicos, a explicação começa a se modifi car, em vez de ser

racial, no sentido biológico do termo, passa a ser cultural. A Psicologia

Diferencial assimilou muito dos conhecimentos acumulados pela

Antropologia Cultural e os utilizou para explicar o menor rendimento

obtido por grupos e classes sociais mais pobres na escola e nos

instrumentos de medida das capacidades psíquicas. Entretanto, como

as armadilhas da ideologia estavam presentes na substituição do conceito

de raça pelo de cultura, os juízos de valor centrados no modo de viver e

de pensar dos grupos dominantes tingem as pesquisas dos antropólogos

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2

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culturalistas, que freqüentemente consideram primitivos, atrasados e

rudes grupos humanos (e até classes sociais) que não participam e/ou

participam parcialmente da cultura dominante.

A infl uência dessa maneira de pensar atravessou as pesquisas

que investigaram as relações familiares e as práticas de criar crianças

em diferentes segmentos sociais e, assim, tornou visível, desde o

início do século, os discursos que apontavam a ausência, nas classes

dominadas, de normas, padrões e hábitos e práticas presentes nas

classes dominantes – ausência que foi considerada indicativa de atraso

cultural desses grupos e que os aproximava do estado primitivo dos

grupos étnicos de origem. Daí foi um pequeno passo para afi rmar

a existência de culturas inferiores ou diferentes. A Psicologia pega

carona nessa explicação e apela para o conceito de grupos familiares

patológicos e de ambientes sociais atrasados que gerariam crianças

desajustadas e problemáticas.

Essa versão dos fatos cientifi camente produzidos atinge seu clímax

nos anos 60, quando é elaborada a teoria da carência cultural. Não é difícil

localizar nos milhares de textos que integram essa teoria o preconceito

social e, muitas vezes lado a lado com o preconceito racial, as alusões

aos adultos das classes subalternas como mais agressivos, relapsos,

desinteressados pelos fi lhos, inconstantes, viciados e imorais. Assim, a

forte e tradicional tendência social de ver o pobre como um termo do

meio entre o selvagem e o civilizado atravessa as pesquisas científi cas e

mostra-se presente na mentalidade de muitos pesquisadores.

Em 1951, a psicóloga norte-americana Esther Milner publicou um

estudo experimental cujos resultados encontram-se entre as afi rmações-

chave da teoria da carência cultural que serviram de base a inúmeros

programas de intervenção desenvolvidos no decorrer dos anos 60.

Seu objetivo foi estudar as relações entre a prontidão para a leitura

na primeira série e padrões de interação pais-fi lhos. Suas conclusões

evidenciaram, nitidamente, a marca da visão social etnocêntrica e

preconceituosa que se tem das camadas mais pobres da população. Eis

um pequeno trecho:

Quando de seu ingresso na escola, a criança de classe baixa parece ressentir-se principalmente de duas vantagens que a criança de classe média tem. A primeira é uma atmosfera familiar afetuosa e positiva; a segunda, um padrão de relação com adultos que está sendo cada vez mais reconhecido como um requisito de motivação para qualquer tipo de aprendizagem controlada por adultos.

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A segunda vantagem é descrita como ampla oportunidade de

interagir verbalmente com adultos. Esse segundo ponto é ilustrado pela

pesquisadora por atmosferas radicalmente diferentes encontradas nas

refeições. Nas casas das crianças que apresentaram elevados escores

nos testes (as de classe média), havia conversação mais espontânea

durante as refeições. Já as crianças de classe baixa, no estudo de Milner,

percebiam o adulto como hostil e, nos lares desse grupo, as conversas

eram desencorajadas na hora das refeições entre adultos e crianças.

O que salta aos olhos nesse tipo de pesquisa é a difi culdade dos

pesquisadores de perceber a própria precariedade dos instrumentos de

avaliação utilizados e como o contexto em que suas observações estão sendo

realizadas pode ser o responsável pelos resultados negativos encontrados.

A relação estabelecida entre pesquisador e pesquisada também é

ignorada na análise dos resultados. Não leva em conta que a presença

de um pesquisador à mesa de refeições possa influenciar tanto o

comportamento dos pais de classe média, fazendo-os agir de acordo

com o que aprenderam ser a relação socialmente valorizada entre pais e

fi lhos, quanto promover efeitos inibidores nos comportamentos de pais

e crianças das classes mais baixas.

Gerada no calor dos movimentos reivindicatórios das minorias

latinas e negras norte-americanas, era de se esperar que a teoria da

carência cultural e as conclusões de suas pesquisas fossem expressão,

mesmo que de forma sutil, da crença arraigada na inferioridade de

negros, índios e mestiços, inferioridade esta que justifi cava os seus baixos

rendimentos na escola, ou seja, seus fracassos escolares.

Pulando para o Brasil, vemos a partir dos anos 70 a teoria da

carência cultural explicando os distúrbios de desenvolvimento das crianças

pobres e a relação desses distúrbios com o baixo rendimento alcançado

em suas aprendizagens e, o que é pior, seduzindo muitos psicólogos

educacionais e pedagogos. As malhas ideológicas dessa teoria aprisionaram

muitos educadores e não foi tarefa fácil desmantelar a impropriedade dos

termos-chave dessa tese, como: privação, carência ou defi ciência cultural

que sugeriam equivocadamente a idéia de ausência de cultura, idéia essa

que não encontra sustentação alguma dentro da Antropologia.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2

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Um cartum do humorista Feiffer, que mostra um monólogo de

uma pessoa proveniente das camadas populares, ilustra como os termos

usados pelas teorias ganham signifi cados:

Eu pensava que era pobre. Aí, disseram que eu não era pobre, eu

era necessitado. Aí, disseram que era autodefesa eu me considerar

necessitado, eu era defi ciente, aí, disseram que defi ciente era uma

péssima imagem, eu era carente. Aí, disseram que carente era um

termo inadequado. Eu era desprivilegiado. Até hoje eu não tenho

um tostão, mas tenho já um grande vocabulário.

Pois é, o vocabulário da discriminação social, econômica e

educacional já é bem grande e a marginalização das classes populares

em nada é alterada pelas teorias e propostas educacionais voltadas para

as defi ciências culturais dessas classes ou para as diferenças culturais

entre elas e as classes socialmente privilegiadas. Diferenças com sinais

positivos para as crianças provenientes das camadas altas e médias da

sociedade e com sinais negativos para as crianças pobres.

A Psicologia diferencial norte-americana tratou de resolver

o problema dos sinais aliando-se ao combate à pobreza, vista

como uma doença social que acabava por debilitar profundamente

o desenvolvimento emocional e intelectual das crianças pobres.

Os programas de educação compensatória, que chegaram ao Brasil por

volta dos anos 80, propunham uma intervenção precoce na educação da

criança (educação infantil, sobretudo), com o objetivo de prepará-la para

a escola, prevenindo, assim, futuros problemas de aprendizagem e de

adaptação. Essa preparação para a escola está voltada, principalmente,

para submeter a criança a atividades de socialização, partindo do

pressuposto de que a socialização que ela vivencia em seu contexto

familiar e cultural é pobre e defi ciente. Assim, o objetivo é substituir (ou

compensar a criança pobre) pelo processo de socialização considerado

rico e adequado, entendendo-se que somente através desse processo a

criança poderá desenvolver o raciocínio, adquirir capacidade de atenção

e concentração, ampliar seu vocabulário, enriquecer sua sintaxe etc.,

tudo isso a partir das carências que a ideologia da defi ciência cultural

atribuiu à população infantil pobre. É também proposta de programas

compensatórios de educação infantil despertar atitudes favoráveis em

relação à escola e à aprendizagem, sob o falso argumento de que as

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camadas populares menosprezam escola e aprendizagem formal; e, ainda,

criar bons hábitos e comportamentos sociais adequados, considerando

sempre que bons hábitos e comportamentos adequados são aqueles

próprios das classes dominantes e economicamente privilegiadas.

O dogmatismo teórico, com toda a sua prepotência de ciência

norte-americana, apela agora para uma ampla reciclagem dos professores

envolvidos com Educação Infantil. Afi nal, é preciso também que eles

aprendam comportamentos pedagogicamente adequados para treinar

bem as crianças selvagens (sem cultura) que freqüentam as escolas.

E, desde então, as atividades de treinamento (colar por colar; recortar por

recortar; levar o patinho para o lago) e toda uma série de trabalhinhos

mimeografados têm invadido o espaço escolar. As editoras rapidamente

perceberam que um veio de ouro estava à sua espera e, assim, livros

didáticos voltados para o treinamento de crianças apareceram no

mercado, com apoio do Governo Federal, comprados com o dinheiro

dos impostos (ou seja, nosso dinheiro!), entraram pela porta da frente de

nossas escolas, escolhidos pelos próprios professores. Livros de péssima

qualidade que vinham (e ainda é assim) com manuais para professores,

explicando como deveriam ser utilizados e como as crianças deveriam

ser avaliadas. O negócio deu tão certo, em termos fi nanceiros para as

editoras, que novos pacotes de livros didáticos foram criados para os

demais segmentos do ensino. Estado e editoras deram as mãos nessa

cruzada e o Governo faturou mais votos para sua perpetuação.

Entretanto, a onda teórica da carência cultural passou e nos anos 80,

anos que assistiram ao fi m da ditadura militar, à abertura política, à anistia

“total e irrestrita” e à volta dos exilados, trouxe para o cenário acadêmico

brasileiro as teorias crítico-reprodutivistas da Europa, mais especifi camente

da França. As idéias de Althusser (1974), Bourdieu (1974), Passeron

(1975) e Establet e Baudelot (1971), autores que passaram a freqüentar

assiduamente a bibliografi a de algumas publicações brasileiras de

vanguarda, introduziam em nosso campo educacional a possibilidade

de se pensar o papel da escola no âmbito de uma concepção crítica de

sociedade. Esses autores nos forneceram as ferramentas conceituais

para análise das instituições sociais como lugares nos quais se exerce

a dominação cultural, a ideologização a serviço da reprodução das

relações de produção. Dessa forma, como a escola, em suas práticas

cotidianas, embaça a visão de exploração imposta pelo capital, segundo

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estas teorias, principalmente pela veiculação de conteúdos de ensino

ideologicamente encharcados e do privilégio concedido aos estilos de

pensar e falar próprio das classes dominantes. É assim que o sistema

de ensino torna-se um instrumento a serviço da manutenção daqueles

já privilegiados educacionalmente, ou seja, daqueles que detêm o poder

econômico e o capital cultural.

A apropriação dessas novas idéias lado a lado com a ainda

convincente teoria da carência cultural, aliada a uma concepção

positivista de produção de conhecimentos, resultou em inúmeras

distorções conceituais e descaminhos teóricos perigosos para a já tão

fragilizada escola pública. Um exemplo dessa distorção foi o conceito de

dominação – contrapartida cultural da exploração econômica inerente

a uma sociedade de classes regida pelo capital – que passou a ser usado

muito freqüentemente com o mesmo sentido a-histórico presente na

literatura educacional norte-americana dos anos 60: imposição da cultura

da maioria a grupos minoritários ou por imposição dos valores da classe

bem-sucedida à classe malsucedida no contexto urbano, por intolerância,

moralismo ou inadvertência da primeira para com a existência de

subculturas distintas da sua na sociedade inclusiva.

Assim, os resultados das pesquisas norte-americanas sobre

características psicológicas das pessoas das “classes baixas” acabaram

convivendo com uma linha de raciocínio que se queria crítica. Esse foi o caso

do imediatismo e do viver sem regras – duas características freqüentemente

atribuídas, nesta literatura, às populações carentes – tomadas acriticamente

por pesquisadores brasileiros como características da clientela das escolas

de periferia; como conseqüência, o trabalho pedagógico, nessas escolas,

foi defi nido como um trabalho dirigido a crianças que não poderiam ter

outras características de personalidade senão serem: rebeldes, malcriadas,

carentes de afeto, apáticas, ladras, doentes, sujas e famintas. Da mesma

forma, suas famílias eram vistas, nada mais e nada menos, como:

desestruturadas, ignorantes, desinteressadas, não havendo como fugir

dessa situação cultural. Como esperar que esse bando de bárbaros infantis

pudesse aprender algo? As explicações do fracasso escolar dos rebeldes

alunos pobres voltam-se, então, para o despreparo dos professores que,

ao esperar encontrar em suas salas de aula alunos ideais, limpos, sadios,

disciplinados e inteligentes, todos fi lhos de famílias bem estruturadas e

interessadíssimas com o rendimento escolar de seus fi lhos, das camadas

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médias e altas da sociedade, enfi m, frente a uma realidade diferente daquela

que aprenderam em seus cursos de formação, os professores também

fracassavam em suas ações pedagógicas.

Mas, enquanto isso, outras teorias psicológicas tentavam penetrar

na escola e nos cursos de formação de professores. Piaget e sua Psicologia

Genética já estavam presentes no Brasil desde os anos 60, embora

pouco estudados pelos professores da Educação Infantil e da Educação

Fundamental. Quando muito, só é mostrada sua teoria dos estágios, pois

ao descrever uma série de etapas de desenvolvimento correspondentes

às capacidades e à maneira de atuar mais representativa de crianças de

diferentes idades, Piaget oferece um instrumento bastante tentador para

a prática educativa, porém perigoso. Tentador por permitir situar um

aluno, dentre muitos em sala de aula, de acordo com o seu estágio de

desenvolvimento, em um certo nível de competência e apreciar o que

é capaz ou incapaz de fazer e de aprender. Nesse sentido, Piaget pode

servir para delinear programas e tarefas escolares e para avaliar as

aprendizagens que acontecem na sala. Porém, pelo fato de a Psicologia

Genética ter sido reduzida tão-somente aos estágios, tornou-se um

instrumento perigoso por oferecer, pura e simplesmente, indicações de

uma capacidade cognitiva geral que nem sempre tem repercussões em

aprendizagens específi cas.

Efetivamente, não interessa a Piaget saber em que idade

aparece tal e tal capacidade cognitiva, ou em que idade se manifesta

com mais intensidade tal ou tal erro de raciocínio. Por essa razão, o

psicólogo suíço sempre dá idades aproximativas para situar os estágios

de desenvolvimento. O seu interesse teórico recai sobre a ordem de

sucessão desses estágios, sobre o que representa passar de um estágio a

outro nível cognitivo e sobre a explicação desse processo. Além do mais,

Piaget não quis estabelecer um instrumento de diagnóstico sobre o nível

cognitivo das pessoas de acordo com sua idade. O que lhe interessava

era identifi car as mudanças cognitivas mais gerais – que acontecem com

todas as pessoas – em um caráter universal, sempre associadas à espécie

humana. Enfi m, a prudência impõe-se na hora de extrapolar os dados

relativos aos estágios de Piaget na prática educativa. E, assim como a

teoria crítico-reprodutivista teve que conviver com a teoria da carência

cultural e ver seus conceitos boiarem na sopa ideológica das políticas

educacionais, Piaget teve o mesmo destino, da mesma forma que Emília

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2

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Ferreiro. Livros didáticos construtivistas choveram nas escolas e cartilhas

inspiradas na Psicogênese da Língua Escrita apareceram nas instituições

educacionais de todo o país.

Tão grave ou mais do que esses episódios educativos foi a disputa

teórica que se estabeleceu entre seguidores de Piaget e de Vygotsky. A

briga foi acirrada, mais parecida com a ocupação da faixa de Gaza: os

bombardeios eram constantes.

As teses de Vygotsky referentes à origem dos processos psicológicos

superiores (por exemplo, a formação da consciência) manifestam-se no

que ele denominou lei geral do desenvolvimento cultural – a lei da dupla

formação dos processos psicológicos superiores. De acordo com essa lei,

os processos da linha social e cultural do desenvolvimento originam-

se sempre entre pessoas, isto é, têm sua raiz inicialmente no plano da

relação com os outros e depois surgem no plano estritamente individual.

Decorre dessa lei, a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) que se

apresenta como a região dinâmica em que se pode realizar a transição

desde o funcionamento intermental (entre pessoas) até o intramental,

isto é, a internalização.

Assim como a teoria de Piaget transformou-se em uma caricatura: os

estágios e, fi cou perdida na distância entre sua vasta obra e sua transposição

apressada para as práticas educacionais, Vygotsky também não fi cou imune

às distorções em nome de sua teoria. A zona de desenvolvimento proximal

virou vedete e desfi lou nos carros alegóricos das escolas de forma vulgar

e leviana. Elevado à categoria de salvador da educação brasileira e mal

ensinado nos cursos de formação de professores, suas idéias não têm

resistido às investidas ideológicas e permanecem, quando muito, restritas

ao meio acadêmico.

O que fazer então, já que as ideologias estão sempre surgindo

com novas caras, roupas e linguagens e invadindo o território escolar?

Respondo como psicóloga educacional e clínica. Transformar um

conhecimento em uma prática profi ssional é uma tarefa à qual temos

nos dedicado. Inicialmente, nos parecia uma tarefa urgente, porém

ainda difícil. No entanto, aos poucos, fomos nos dando conta de que

nosso pensamento teórico se tornara possível por desenvolvermos, já há

alguns anos, uma prática em Psicologia Educacional que não precisava

ser reinventada. Estava lá, constituída; o que precisávamos, e ainda

precisamos fazer, é sistematizar os princípios desse fazer.

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A intervenção de um profi ssional deve ser vista, acima de tudo,

como trabalho – emprego de energia de forma intencionada para produzir

transformações no meio. Por isso, entendo que trabalhar é transformar.

O que transformamos em Psicologia Educacional? Transformamos,

porque nele interferimos, o processo psicológico das pessoas. Para tanto,

é preciso que nos posicionemos sobre o que surge como o momento atual

e o que se apresenta como fi nalidade de intervenção. A questão ética

desse processo é que, ao planejar nossa intervenção, consideramos não

só nossos conhecimentos teóricos (referências e padrões fornecidos pela

teoria adotada) e valores pessoais, mas, em primeiro plano, as condições,

necessidades, vontades e projetos das pessoas para as quais prestamos

nosso serviço. Enfi m, uma prática profi ssional que se explicita em termos

de sua intencionalidade e de sua fi nalidade. Uma prática profi ssional que

se expõe e quer se afi rmar como transformadora, sempre.

Acredito que os professores desejam o mesmo em suas práticas

profi ssionais: criar sentidos e projetos de vida para seus alunos e não

lhes fornecer como destino o fracasso. A vida escolar é muito longa,

percorre toda a infância, adolescência e chega até a vida adulta, por isso

é mais do que necessário que esta vida possa valer a pena ser vivida.

Aqueles alunos que desistem da escola por se considerarem incapazes

de aprender serão, muito provavelmente, aniquilados pela sociedade

capitalista, e aos que conseguem sobreviver resta a esperança de escalar

toda a pirâmide educacional e entrar na universidade – ápice da ascensão

social. Uma escalada e tanto. Como eles precisam de equipamento para

começar a subir, cabe aos educadores fornecer os instrumentos e apontar

os melhores caminhos.

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Page 273: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2

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Acabamos de ver como a Psicologia, como qualquer ciência humana, pode ser

vítima da ideologia, já que seus pesquisadores e cientistas também estão inseridos

na História e na sociedade, portando as idéias dominantes nos tempos que viveram

(ou que ainda vivem), fazem parte de seus ideários e idealismos pessoais. Seus

sonhos são o combustível de suas pesquisas, e suas crenças nas aptidões humanas

conduzem suas teorias. O conceito de quociente intelectual (QI) nasceu para provar

ao mundo o que a inteligência humana era capaz de realizar. Provavelmente

esse bebê-teórico teve um nascimento prematuro e não se desenvolveu de forma

sadia. É o que a história da Psicologia e da Pedagogia vem demonstrando. Muitas

deformações nas práticas escolares foram produzidas através de diagnósticos

“fechados” no QI dos alunos e, lamentavelmente, os alunos mais pobres foram

os mais prejudicados.

À medida que as décadas foram se sucedendo, novos bebês-teóricos surgiram

no mundo da Psicologia e seus nascimentos repercutiram também nas políticas

educacionais, gerando diferenciações nos tratamentos escolares entre crianças

pobres e ricas. A Pedagogia, alimentada pelas novas teorias psicológicas,

comportava-se também de forma diferenciada no que se referia à educação dos

alunos provenientes das camadas populares.

Entramos no século XXI dispostos a romper com essa herança, que julgamos

negativa e preconceituosa, e munidos de outras ciências humanas e sociais

pretendemos educar todos os alunos aproveitando todos os saberes que eles

trazem para a escola.

R E S U M O

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Page 274: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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AUTO-AVALIAÇÃO

• Depois da leitura do texto refl ita sobre os exercícios diários que você passa em

sala de aula e como dever de casa. Tente separá-los em dois grandes conjuntos:

os que acrescentam algo para os alunos e os que são, apenas, treinamento.

Lembre-se de que a inteligência não é um músculo que precisa malhar em uma

academia de ginástica, ela é uma energia criadora que precisa de criatividade

para se expandir.

• Quantos alunos na escola em que você trabalha são rotulados como incapazes

para aprender? O que eles fi zeram para merecer essa etiqueta de incapazes?

• Do mesmo modo, pense nos alunos considerados inteligentes e capazes. Por

que são considerados assim?

• Na sua escola qual é o profi ssional da Educação que julga o rendimento escolar

dos alunos? Quais os critérios usados para esses julgamentos?

• O que você pode fazer, em sala de aula, pelos alunos que demoram mais tempo

para aprender?

• Da mesma maneira, refl ita sobre o que pode ser feito pelos alunos que aprendem

rápido demais e incomodam os demais, gerando brigas e confusões.

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Page 275: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Analisar historicamente a instituição da escola no mundo moderno.

• Refletir criticamente sobre o significado da escola para a sociedade da Idade Moderna.

A instituição da escola no mundo moderno

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno

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FRANÇOIS RABELAIS

(1494-1553)

Frade beneditino e médico francês. Valoriza o saber greco-latino e os estudos científi cos. Representa o Humanismo presente no Renascimento. Seus romances Gargântua e Pantagruel descrevem, com bastante ironia, suas idéias educacionais.

INTRODUÇÃO Surge uma nova paisagem na janela de nosso trem; no cenário anterior

refl etimos sobre a relação entre o Estado, a sociedade e a escola, mas agora

precisamos pensar por que a escola tornou-se uma instituição importante a

partir da Idade Moderna.

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA IDADE MODERNA E O PAPEL DA EDUCAÇÃO

Meu fi lho, exorto-o a empregar a sua juventude no progresso

dos estudos e da virtude. Você está em Paris, com seu preceptor

Epistemon... Entendo e quero que aprenda as línguas, primei-

ramente a grega, como quer Quintiliano; secundariamente, a

latina; depois a hebraica, por causa das santas epístolas; a caldaica

e arábica pela mesma razão... Das artes liberais, Geometria,

Aritmética e Música... Quanto aos conhecimentos dos fatos da

natureza, quero que se adorne cuidadosamente deles; que não haja

mar, ribeiro ou fonte dos quais não conheça os peixes; todos os

pássaros do ar, todas as árvores e todos os arbustos e frutos das

fl orestas, todas as ervas da terra, todos os metais escondidos no

ventre dos abismos, as pedrarias do Oriente e do Sul, nada lhe

seja desconhecido. (Rabelais)

Nesta citação de RABELAIS podemos perceber uma mudança de

mentalidade com relação às idéias educacionais; há uma ênfase no estudo

da ciência, a busca de um conhecimento mais profundo da natureza;

existe uma procura de ERUDIÇÃO. No início da Idade Moderna começa-se

a valorizar uma visão de mundo humanista, o homem torna-se o eixo

central das discussões.

O mundo moderno começa a ser

construído a partir de alguns marcos

históricos importantes: o HUMANISMO; a

ascensão da burguesia, com a consolidação

do modo de produção capitalista; a

Reforma e a Contra-Reforma. A partir do

fi nal do século XV e início do século XVI,

observamos uma gradativa mudança de

mentalidade: busca-se valorizar o homem.

RABELAIS, François. Pantagruel. In: Rosa, Maria da Glória. A História através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 125.

Volte à Aula 4 e leia o primeiro item.

ERUDIÇÃO

Instrução vasta e variada.

HU M A N I S M O

Doutrina ou atitude que se coloca

numa perspectiva antropocêntrica.

Movimento renascentista voltado

especialmente para as línguas e literatura

greco-romanas.

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Page 277: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Surge um movimento cultural denominado RENASCIMENTO, que procura

romper com o mundo medieval, compreender o mundo dos homens e

valorizar a cultura greco-romana. Começa a se consolidar o Humanismo,

que tem como meta a construção de uma nova imagem de homem, a

valorização da literatura greco-romana e a busca de ampliação dos

conhecimentos. Nesse período procura-se superar o TEOCENTRISMO,

enfatizando-se os valores ANTROPOCÊNTRICOS, ou seja, o homem passa a

ser considerado o centro do universo.

Nesse mundo de novos princípios, o homem precisa de erudição;

por isso o colégio passa a ser um local importante, que possibilita o

acesso aos conhecimentos. Nele, os fi lhos da pequena nobreza e da

burguesia estudariam e se preparariam para os novos desafi os do

mundo moderno. Nesses novos tempos, o homem não devia ser um

mero espectador do mundo; ele precisava conhecer mais profundamente a

realidade à sua volta. Mesmo porque, de acordo com MONROE (1969),

a educação humanista da Renascença tinha como fi nalidade formar o

“homem perfeito, apto a participar das atividades das instituições sociais

dominantes”. Um homem livre que, através de seus estudos, atingiria a

virtude e a sabedoria, desenvolvendo os dotes do corpo e do espírito.

No contexto cultural europeu, a visão humanista não se

apresenta de modo homogêneo; dessa concepção surgiram duas

vertentes importantes que fundamentaram o contexto educacional

dos séculos posteriores à criação do movimento humanista. Ao sul da

Europa, o humanismo enfatizava a educação liberal, que possibilitava

o desenvolvimento pessoal; ao norte, predominava a transmissão de um

saber que poderia fornecer subsídios para reformar as mazelas sociais,

frutos da ignorância.

Dessa segunda vertente, nasce o movimento da Reforma, que

utiliza princípios do humanismo para questionar as crenças e práticas

religiosas da Igreja Católica Apostólica Romana. Era preciso observar,

comparar, criticar, ou seja, usar a visão racional para contestar os

princípios da Igreja Católica. De acordo com Lutero, principal expoente

da Reforma, o que contraria a razão contraria também Deus. Por isso,

cada homem deveria interpretar as Sagradas Escrituras de acordo com

a sua consciência. Essas afi rmações de LUTERO apontavam para uma

mudança cultural que vinha sendo gerada a partir da instalação da

visão humanista de mundo.

RENASCIMENTO

Movimento científi co e artístico dos

séculos XV e XVI, que valorizava a

cultura greco-latina e preconizava uma

visão humanista. O centro irradiador

desse movimento foi a Itália.

TEOCENTRISMO

Veja a explicação na Aula 4.

ANTROPOCENTRISMO

Veja a explicação na Aula 4.

MONROE, PAUL

História da Educação. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1969,

p. 153.

MARTINHO LUTERO

(1483-1546)

Volte à Aula 4 para obter informações

sobre ele.

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Page 278: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno

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Reconhecemos que as práticas racionais ainda não estavam

disseminadas e efetivadas nas diferentes instâncias da sociedade européia,

mas não podemos deixar de registrar que a racionalidade preconizada

pelo movimento humanista, somada às transformações no campo

econômico, político e social, possibilitou uma mudança signifi cativa

nas propostas educacionais.

Era necessário mudar a linha cultural da educação, porque

vinha surgindo lentamente um homem que precisava mudar o modo

de trabalhar; passava-se da produção artesanal para a manufatura; a

política deveria ser conduzida não apenas por aqueles que herdavam o

poder por laços de sangue, mas também por aqueles que demonstrassem

astúcia e sagacidade na arte de comandar. A ignorância começa a ser

vista como um mal que devia ser sanado, porque a prosperidade de um

país dependia de homens instruídos.

A educação devia se expandir às necessidades do novo mundo que

estava sendo construído na Europa. Nesse sentido, a Reforma constitui

um avanço em direção à "publicização" e disseminação da educação

formal. O povo não deveria ser somente depositário da catequese e da

evangelização; ele precisava da instrução para que se efetivasse um novo

projeto político, econômico e cultural.

Lutero, por exemplo, tinha propostas educacionais arrojadas para

sua época. Ele reivindicava:

• uma reforma educacional em todos os níveis de ensino, do

elementar à universidade;

• uma educação que não fosse monacal, antimundana e rígida;

• um sistema de ensino estatal;

a obrigatoriedade do ensino, que teria como ponto central a

formação religiosa.

Lutero, Melanchton, criador das bases da educação secundária

humanista, e outros reformadores foram responsáveis, na Alemanha,

assim como nos demais países protestantes, pela divulgação de uma

concepção que valorizasse a utilidade social da instrução, considerando

que a educação deveria ser LAICA e estatal.

Não era difícil constatar que o movimento de disseminação da escola

elementar e pública se efetivou, principalmente, nos países protestantes.

Os pressupostos defendidos pelos protestantes tornaram-se facilitadores

de uma cultura pedagógica que estava, de certa forma, em consonância

com o novo homem demandado pelo modo de produção capitalista.

MAQUIAVEL

Maquiavel, na obra O príncipe, defi ne as qualidades do soberano da Idade Moderna: astúcia, sagacidade e saber comandar, qualidades que não caracterizavam, necessariamente, aqueles que mantinham laços de sangue com a nobreza.

LAICA

Desvinculada de qualquer religião.

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Page 279: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Não queremos estabelecer uma relação simplista e mecanicista entre

idéias protestantes e visão de mundo capitalista; porém, ao valorizar o

trabalho, ao relacionar escola/cidade, instrução/governo, o protestantismo

apontou o caminho que a educação formal devia trilhar para a sua

institucionalização nessa nova conjuntura econômica, política e social.

Para se contrapor à Reforma Protestante surge a Contra-Reforma,

realizada pela Igreja Católica Apostólica Romana. A Igreja Católica

precisava restaurar o seu prestígio e propor uma concepção educacional

à altura da educação protestante. No Concílio de Trento (1545-1563),

foram discutidas as novas diretrizes da doutrina católica. Propuseram a

disseminação de seminários para a formação do clero, surgiram novas

ordens religiosas que deveriam se espalhar pelo mundo para consolidar

a evangelização católica.

Nesse contexto, uma ordem se destacou: a Companhia de Jesus,

fundada por Inácio de Loyola em 1534 e aprovada pelo Papa Paulo III

em 1540; vinculava-se diretamente à autoridade papal, não seguindo

a hierarquia tradicional da Igreja. A Companhia de Jesus tinha uma

missão pedagógica dupla: fortalecer a HEGEMONIA pedagógica da Igreja,

espalhando colégios para formar os nobres e a alta burguesia, e também

fazer um trabalho de catequese. Os jesuítas eram padres que tinham a

missão de divulgar os preceitos da Igreja Católica para combater os

heréticos e infi éis, propagando a fé. Espalharam-se pelos quatro cantos

do mundo: América, África, Ásia e Europa. Pretendiam doutrinar os

povos e formar o homem educado segundo uma formação humanista

aliada à VISÃO ARISTOTÉLICO-TOMISTA.

A Reforma e a Contra-Reforma foram importantes para os rumos

da educação no mundo moderno e a institucionalização da escola. Esses

movimentos contribuíram para a ampliação e a “publicização” do ensino

elementar, o que facilitou o crescimento da discussão sobre a necessidade

de universalizar a escola.

Devemos salientar que a Reforma, a Contra-Reforma e os movi-

mentos culturais ocorridos nesse período foram fundamentais para a

consolidação do modo de produção capitalista, assim como um novo

modo de fazer política. O capitalismo nascente precisava de pessoas

instruídas que soubessem lidar com a manufatura e o comércio, e a

escola tornou-se um local importante para fornecer essa formação; por

isso veremos no próximo item como se consolidou esse processo de

institucionalização da escola.

HEGEMONIA

Preponderância de concepções de um

grupo social sobre os outros.

VISÃO ARISTOTÉLICO-

TOMISTA

Uma visão de mundo baseada na

interpretação que Santo Tomás de

Aquino fez do fi lósofo Aristóteles. Esta era

a concepção fi losófi ca adotada pela Igreja Católica Apostólica

Romana no fi nal da Idade Média.

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Page 280: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno

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PHILIPP MELANCHTON (1497-1560)

Humanista, colaborador de Lutero, foi denominado “Preceptor da Alemanha”, pois reorganizou as escolas da Saxônia e as universidades protestantes. O trecho citado aqui está na obra In laudem nova scholae, de 1526. Esta citação foi tirada da obra de Manacorda, Mario A. História da Educação. São Paulo: Cortez, 1997, p.198.

A INSTITUIÇÃO DA ESCOLA NO MUNDO MODERNO

Antes de tudo, uma cidade bem ordenada precisa de escolas,

onde as crianças que são o viveiro da cidade sejam instruídas:

engana-se gravemente, de fato, quem pensa que sem instrução

possa adquirir-se uma sólida virtude, e ninguém é sufi cientemente

idôneo para governar as cidades sem o conhecimento daquelas

letras que contêm o critério do governo de todas as cidades.

(MELANCHTON)

A institucionalização da escola na Idade Moderna tem como fatores

determinantes as mudanças socioculturais, econômicas e políticas que

ocorreram a partir do século XVI, com a implantação do modo de produção

capitalista, a Reforma Protestante, a Contra-Reforma feita pela Igreja

Católica Apostólica Romana e a instauração da visão humanista. Diante

dessas mudanças, a educação devia expandir-se devido às necessidades do

novo mundo que estava sendo construído na Europa. O povo precisava

da instrução para que se efetivasse um novo projeto econômico, político e

cultural. Há um grande interesse pela educação no Renascimento; nesse

período há uma proliferação de colégios e manuais didáticos para alunos e

professores. Educar, numa instituição escolar, tornou-se uma exigência para

a consolidação de uma nova concepção de homem. De acordo com a obra

Cortesão, de Castiglione, publicada em 1528, enquanto os fi lhos da alta

nobreza estudavam com preceptores em seus castelos, os fi lhos da pequena

nobreza e da burguesia eram educados em colégios, no sentido de prepará-

los para a liderança, a administração da política e dos negócios.

Além disso, foi se construindo gradativamente uma nova imagem

da infância e da família. A criança não poderia ser considerada um

adulto em miniatura, ela precisava ser educada moral e intelectualmente,

por isso dever-se-iam criar instituições que separassem as crianças do

mundo adulto, formando-as por meio de uma disciplina rigorosa,

dosando os valores e os saberes que seriam ministrados. A partir do

século XV, os colégios passam a ensinar com uma hierarquia rígida

e autoritária; inclusive esse modelo também foi adotado em escolas

católicas, protestantes e leigas. Podemos afi rmar que o colégio que

se institucionaliza no mundo moderno é uma instituição de ensino

complexa, que exerce uma rigorosa disciplina e vigilância, enquadrando

seus alunos na nova ordem da civilização moderna.

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Page 281: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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A partir dos séculos XV e XVI, a instituição escolar começou a se

preocupar com a divisão por idade nas classes; na Idade Média, as classes

misturavam alunos de todas as idades numa mesma sala de aula. Podíamos

encontrar numa classe alunos que variavam de sete a dezoito anos, porque

não se distinguiam os conteúdos programáticos por idade, considerava-se

que todos podiam aprender qualquer conteúdo, não importando a idade

do aluno. De acordo com ARIÈS, no período medieval,

assim que ingressava na escola, a criança entrava imediatamente

no mundo dos adultos. Essa confusão tão inocente que passava

despercebida era um dos traços mais característicos da antiga

sociedade, e também um de seus traços mais persistentes, na medida

em que correspondia a algo enraizado na vida. Ela sobreviveria a

várias mudanças de estrutura.

Nas escolas medievais praticava-se o método da simultaneidade

e da repetição.

As mudanças na instituição escolar estão diretamente vinculadas

a uma mudança na mentalidade sobre a questão das diferenças das

idades e no olhar em direção à infância. A partir da Idade Moderna

começou-se a considerar que era necessário dar às crianças e aos jovens

um modo de vida particular, principalmente no que se refere à educação

moral. Sendo assim, o colégio passou a ser a instituição que ofereceria

as condições para educar crianças e jovens. A divisão por idade foi um

processo lento, que começou no século XV. A princípio, todos fi cavam

no mesmo espaço, com professores diferentes; depois, as classes e seus

professores foram isolados em salas especiais. A divisão não muito rígida

por idade nas classes persistirá ao longo dos séculos e, somente no século

XIX, ela se defi ne completamente, quando a idade das crianças para

uma determinada classe torna-se fundamental.

A partir do século XVI, segundo Ariès,

o colégio modificou e ampliou seu recrutamento. Composto

outrora de uma pequena minoria de clérigos letrados, ele se abriu

a um número crescente de leigos, nobres e burgueses, mas também

a famílias mais populares. O colégio tornou-se uma instituição

essencial da sociedade.

Nesse período há uma expansão do humanismo e uma maior

possibilidade de ampliação dos conhecimentos, por isso os colégios

tornam-se mais necessários. Houve uma evolução quantitativa da instrução

exigida pelo desenvolvimento econômico e social e cresce a preocupação

com o como e o quanto instruir, principalmente para quem produz.

ARIÈS, PHILIPPE

História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC,

1981, p. 168.

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Page 282: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno

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A ignorância e a pobreza são vistas como entraves para o desenvolvimento

humano, como ilustra este trecho de Alciato, citado no livro de

MANACORDA:

A direita segura uma pedra, a outra mão sustenta as asas; enquanto

uma me levanta, o grave peso da outra me submerge. Com o talento

poderia ter voado nos altos do céu, se a invejosa pobreza não me

prendesse cá embaixo.

A difusão da instrução começou a ser vista como fundamental

devido a vários motivos: para os protestantes, todas as pessoas deviam

ler e interpretar a Bíblia sem a mediação do clero; para os capitalistas,

era preciso empregados com um mínimo de instrução para que as tarefas

fossem mais bem executadas na manufatura e também no comércio.

Por isso, nos países não-católicos surgirá uma maior iniciativa para a

implementação de novos modelos de instrução popular. Ainda no século

XVI, algumas cidades da Alemanha já reivindicavam um sistema de

instrução popular. Lutero será um dos responsáveis pelo impulso prático e

político no sentido de efetivar um novo sistema escolar na Alemanha.

Enquanto isso, nos países com o domínio da Igreja Católica

Apostólica Romana, a Contra-Reforma reorganizou as escolas nos

mosteiros, conventos e igrejas. Foram criados seminários para a

formação do clero e, em 1599, foi publicada a Ratio Studiorum, que

era um conjunto de normas que regulamentava o ensino das escolas

dirigidas pelos jesuítas, estabelecendo a organização em classes, os

horários, os programas e a disciplina. Mesmo dentro da Contra-Reforma,

realizada pela Igreja Católica, observamos a importância que passou a

ser dada à escola, pois a publicação da Ratio Studiorum demonstrava

a necessidade de preservar e controlar a institucionalização da escola

no mundo moderno.

A partir do século XVII, cresce o movimento para estabelecer a

escola pública. Começa a surgir, em alguns países, a preocupação em

consolidar a escola como uma instituição pública, vinculada ao Estado.

Com o advento do modo de produção capitalista, o estabelecimento

do trabalho livre e a necessidade do desenvolvimento da manufatura,

não se concebe mais um trabalhador sem escolaridade básica. Nesse

contexto, surgem propostas para a universalização do ensino elementar

público e gratuito.

MANACORDA, MARIO A.

História da Educação. São Paulo: Cortez, 1997, p. 194

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Page 283: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Os melhores resultados em prol da educação pública estão na

Alemanha; por exemplo: o Ducado de Weimar, em 1619, regulamenta

a obrigatoriedade escolar para todas as crianças de 6 a 12 anos.

A França também possibilita alguns avanços em prol da educação pública

e, no século XVII, foram fundadas, nesse país, várias escolas gratuitas

para crianças pobres. Na passagem do século XVII para o século XVIII,

amadurecem as idéias e as condições para que se efetivem em vários

países europeus as escolas públicas.

De acordo com Manacorda, a Revolução Industrial, no século

XVIII, gera as condições para a consolidação da moderna instituição

escolar pública. Fábrica e escola nascem juntas, “as leis que criam a

escola estatal vêm juntas com as leis que suprimem a aprendizagem

corporativa”. No século XVIII, não somente os intelectuais reivindicavam

a educação pública, mas também as camadas populares começam a

reivindicar mais instrução e educação pública. Assim, podemos afi rmar

que a partir do século XVIII a escola está institucionalizada e cresce a

necessidade de intervenção do Estado na educação.

Nos séculos XVIII e XIX constatamos a consolidação da escola

como uma instituição imprescindível à sociedade contemporânea, um

local onde se passariam os valores da sociedade capitalista, preparando

as pessoas para as atividades necessárias ao modo de produção capitalista

e também formando o cidadão “civilizado”, de acordo com os novos

padrões da civilização contemporânea.

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Page 284: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno

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R E S U M O

Nesta aula analisamos o processo de institucionalização da escola a partir do mundo

moderno. Constatamos que a Reforma e a Contra-Reforma foram fundamentais

para os rumos da educação no mundo moderno e a institucionalização da escola.

Esses movimentos contribuíram para a ampliação e a “publicização” do ensino

elementar, o que facilitou o crescimento da discussão sobre a necessidade de

universalizar a escola. A Reforma, a Contra-Reforma e os movimentos culturais

ocorridos nesse período foram fundamentais para a consolidação do modo de

produção capitalista. Esse modo de produção precisava de pessoas instruídas que

soubessem lidar com a manufatura e o comércio, por isso a escola tornou-se um

local importante para fornecer essa formação. A partir dos séculos XVIII e XIX,

constatamos a consolidação da escola como uma instituição imprescindível à

sociedade contemporânea, um local que transmite os principais valores da sociedade

capitalista, preparando as pessoas para as atividades necessárias a esse modo de

produção, com a missão de formar o cidadão “civilizado”, de acordo com os novos

padrões da civilização contemporânea.

EXERCÍCIOS

1. Por que a Reforma e a Contra-Reforma foram importantes para a institu ciona-

lização da escola no Mundo Moderno?

2. Podemos dizer que tanto na Idade Média quanto na Idade Moderna educava-se

a criança do mesmo modo? Por quê?

3. Discuta, a partir do que você leu nesta aula, a importância da escola para o

modo de produção capitalista.

AUTO-AVALIAÇÃO

Você conseguiu compreender a importância do movimento cultural do

Renascimento, da Reforma e da Contra-Reforma para o processo de

institucionalização da escola no mundo moderno? Observou como o modo de

produção capitalista criou caminhos para a consolidação da instituição escolar e a

importância que esta ganhou ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX? Percebeu o

papel que a escola assume no mundo moderno e contemporâneo? Se a resposta for

afi rmativa, você pode conseguir a sua viagem até a próxima aula, que versará sobre

"A sociologia do consenso: o otimismo e o pessimismo pedagógicos".

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Page 285: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o

pessimismo pedagógico

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Identifi car os projetos, programas e discursos educacionais que estão assentados na Sociologia do Consenso.

• Analisar as ações educacionais que usam em seus pressupostos a Sociologia do Consenso.

• Compreender os porquês do otimismo pedagógico e do pessimismo pedagógico.

OBJETIVOS

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Page 286: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico

Durante a parada que fi zemos na Estação 23, vimos como a

relação Estado, sociedade e escola pode propiciar o surgimento de

teorias que explicam o fracasso escolar de alunos provenientes das

camadas populares, imputando as causas desse fracasso ao próprio

aluno, isentando a escola. Vimos, também, como essas explicações têm

apoio em algumas correntes e pesquisas da Psicologia e, como nenhuma

ciência está imunizada contra o vírus da ideologia dominante, que pode

ter sido gestada já contaminada.

De maneira geral, podemos afi rmar que, embora os sistemas

educacionais e os movimentos educativos infl uenciem a sociedade em

que estão inseridos, os dois também refl etem basicamente as condições

sociais, econômicas e políticas dessa sociedade. É por esse motivo que a

educação e a orientação do ensino evidenciam o seu caráter histórico.

A maneira como os movimentos sociais se refl etem na educação

pode ser evidenciada no início de um período de transformações e o

SISTEMA EDUCACIONAL VIGENTE (ou ainda em formação) já não atende mais

às novas demandas criadas, sendo necessária uma ampliação urgente

ou a formação de movimentos paralelos que preencham as lacunas

deixadas pelo que as características dos diversos períodos da História

da Educação de um país acompanham seu movimento histórico, suas

lutas pelo poder político e suas transformações econômicas e sociais.

Toda educação provém, assim, de uma situação social determinada e as

metas educacionais, de uma política do ensino atual.

Embora as condições socioeconômicas e políticas atuem sobre

os movimentos educativos de uma sociedade, fatores de origem

externa, assim como fatores especifi camente educativos devem ser

igualmente levados em consideração. Esse é o caso dos recentes acordos

internacionais feitos pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com

o FMI, que resultaram em uma política educacional marcada pelo lema:

toda criança na escola. Mais especifi camente na escola fundamental.

Em contrapartida, a mesma política ignora as universidades públicas e

seus centros de formação de professores.

Mas, voltando ao estreito vínculo do movimento educativo

com a sociedade como um todo, vemos como a partir dessa

vinculação surge o problema crucial dos limites e das possibilidades

da educação como instrumento de conservação e de MUDANÇA SOCIAL.

INTRODUÇÃO

SISTEMA EDUCACIONAL VIGENTE

A justifi cativa elaborada para a criação de movimentos educativos ou para a ampliação e/ou transformação dos sistemas existentes varia com as condições políticas, sociais e econômicas vividas em um dado momento. No Brasil, elas determinaram, por exemplo, não somente o desencadeamento da luta pela ampliação das oportunidades educacionais, mas também o sentido dessa luta.

MUDANÇA SOCIAL

Reconhece-se que a educação pode servir também aos objetivos de mudança social, tanto àqueles relativos a mudanças dentro das estruturas vigentes quanto à própria mudança de estruturas numa nação.

É relevante ressaltar a importância do poder constituído para que a educação não seja apenas uma força a serviço da conservação social.

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Não há dúvidas de que o sistema educacional cumpre uma função

relevante de conservação social. É através dele que são difundidos

os postulados ideológicos que servem de sustentação à ordem vigente

(política, social, econômica) – de forma explícita, através das campanhas

educacionais exibidas pela televisão, ou de forma indireta, através dos

conteúdos dos programas, da natureza dos currículos e dos métodos

utilizados nas escolas – como sua própria estrutura serve a fi nalidades

do sistema social global.

O problema é que o sistema de ensino, quando não pertence ao

Estado, liga-se às classes dominantes, a grupos cujos interesses coincidem

freqüentemente com os daqueles que detêm de forma hegemônica o

poder político. O sistema preserva-se, portanto, através da educação e

as possibilidades de conservação e/ou mudança prendem-se diretamente

à vida política, mais do que a qualquer outra instância da vida social.

E é por isso mesmo que o movimento educativo, por si só, não transforma

a sociedade.

A História da educação nos mostra que, sempre que as CRISES

aparecem, a educação das massas adquire importância especial e os

grupos comprometidos na luta política lançam-se ao campo educacional

com a esperança de fortalecerem suas posições. Assim, por exemplo, em

períodos de expansão da economia, nos quais os discursos governamentais

estão pautados na modernização, é enfatizada a necessidade de

formação de quadros mais adequados à sociedade em transformação

e, dessa forma, surgem ofertas e oportunidades para a reformulação

dos sistemas educativos ou para movimentos que buscam promover

mudanças através da educação. Nesse caso, trata-se de reformulações

do sistema educativo ou de promover movimentos de educação que

visam ao aperfeiçoamento do sistema e à consolidação dos aspectos mais

fundamentais das estruturas em uso.

A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO como instrumento ideológico já foi

cantada em verso e prosa, mas nunca é demais sublinhar o quão poderosa

é a ideologia tanto para os que detêm o poder quanto para aqueles que

pretendem disputá-lo. A diferença entre esses dois grupos está colocada

na utilização da ideologia: os detentores do poder político se encarregam

de determinar a política educacional a ser seguida os programas a serem

promovidos ou estimulados e seus conteúdos ideológicos. Já para os que

disputam o poder, a educação é um instrumento somente quando as

CRISES

Hook afi rma que os passos decisivos (para

a transformação do sistema educacional)

dependem de crises que não vêm preparadas pela educação, mas

pelo desenvolvimento da economia que a

sustenta, da tecnologia existente e das

eventualidades de guerra.

Contudo, quando as crises surgem ou se anunciam e, por

conseguinte, uma grande luta pelo poder político se desenvolve,

um novo movimento educativo surge,

lutando pela difusão do ensino e, assim, a reformulação dos

métodos educacionais tende a se estabelecer.

Por exemplo, uma luta entre os grupos

dominantes pela hegemonia pode

conduzir a movimentos em favor da instrução

popular. Mas uma instrução que se fará

sem modifi cações dos pressupostos

ideológicos do sistema.

IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO

Para Vanilda Paiva, o grau de importância

atribuído ao setor educativo como instrumento de

mudança social só pode ser encontrado

em sociedades onde a instrução

popular ainda não se generalizou, onde o sistema educacional

vigente não absorveu toda a demanda real e

potencial por educação fundamental.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico

contradições do sistema, as crises ou o clima de efervescência ideológica

chegaram a um clímax tal que os programas educacionais podem vir a

ser controlados pelos opositores da ordem vigente.

O ENTUSIASMO PELA EDUCAÇÃO

Muitos movimentos educativos ou de mobilizações em favor da

educação para o povo são agrupados em suas características e argumentos

pelo batismo entusiasmo pela educação.

A bem da verdade, a educação para as massas só começou a ser

um valor como um processo sistemático quando a Revolução Industrial

aconteceu na Europa. Um maior número de pessoas passou a exigir o domínio

das técnicas de leitura e de escrita e, coincidentemente, o desenvolvimento

do capitalismo percebeu as EXIGÊNCIAS POPULARES POR ALFABETIZAÇÃO como

fundamentais para a consolidação da nova ordem social.

No Brasil, ainda no século XIX, as idéias relativas à importância da

educação das massas populares difundiram-se entre a intelectualidade por

estarem associadas à idéia de progresso do país. Mas a forma mais bem

defi nida do fenômeno caracterizado como entusiasmo pela educação só é

desenhada na segunda década do século XX. Durante a Primeira Guerra

Mundial, surge no país uma onda de nacionalismo que tem como foco

de suas preocupações a desnacionalização da infância no sul do Brasil,

através das escolas germânicas. Na mesma época divulga-se nos EUA

uma estatística sobre analfabetismo no mundo, onde o Brasil aparece

em primeiro lugar, o que compromete o orgulho nacional. Era preciso

combater com urgência a chaga do analfabetismo, que, além de nos

envergonhar, nos impedia de pertencer ao grupo das nações cultas.

As preocupações que caracterizavam o entusiasmo pela educação

eram eminentemente quantitativas em relação à difusão do ensino e

visavam à eliminação imediata do analfabetismo através da expansão

dos sistemas educacionais existentes ou da criação de parassistemas

(de iniciativa ofi cial ou privada), abstraindo os problemas relativos à

qualidade do ensino ministrado.

EXIGÊNCIAS POPULARES POR ALFABETIZAÇÃO

Os socialistas tomaram a alfabetização do povo como bandeira de luta, vendo nessa aprendizagem um instrumento capaz de facilitar a conscientização das massas e a disputa do poder político, assim como a maximização da produção de bens e serviços que pudessem permitir a elevação do padrão de vida do povo.

Nesse momento não existiam ainda os profi ssionais da educação: nem no sentido mais geral, nem no terreno estritamente pedagógico. Foram os políticos que realmente se encarregaram de promover a luta em prol da ampliação de oportunidades de educação elementar para as massas, como de teorizar sobre o assunto.

O surgimento desses profi ssionais da educação como fenômeno educacional coincide com o progresso da industrialização no país na década de 1910 e parece estar ligado, também, ao problema da ampliação das bases eleitorais, através do aumento do número de votantes proporcionado pela ampliação das oportunidades de instrução.

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MIGUEL COUTO

Com ele, o preconceito contra o analfabeto

atinge sua forma mais extrema:

“Analfabetismo é o cancro que aniquila o nosso organismo,

com as suas múltiplas metástases, aqui a

ociosidade, ali o vício, além do crime. Exilado dentro de si mesmo como em um

mundo desabitado, quase repelido para fora da espécie pela sua inferioridade, o analfabeto é digno de pena e a nossa

desídia indigna de perdão enquanto

não acudirmos com o remédio do ensino

obrigatório.”

Nesse discurso estão misturados

os preconceitos contra o analfabeto

e sentimentos nacionalistas e

patrióticos.

Contudo, um dos aspectos mais importantes desse fenômeno é a

supervalorização da educação, agora concebida como capaz de resolver

todos os problemas nacionais. Uma vez resolvido o problema da educação

do povo, todos os demais problemas teriam solução. Por outro lado,

todas as DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO PAÍS são atribuídas à ignorância

de nossa população, e o preconceito social contra o analfabeto nasce,

forte e robusto.

O maior teórico dessa posição foi MIGUEL COUTO. Como médico,

associava o problema do ensino com o da higiene e nele colocava toda

a culpa pelos problemas do país. Defendia a difusão do ensino (em

geral) e o ensino primário compulsório, participando de campanhas

privadas para a ampliação de oportunidades educacionais. Segundo

afi rmava, “ocupava-se da ignorância, por a considerar não somente

uma doença, mas a pior de todas, porque a todas conduz: e quando se

instala endemicamente, como na nossa terra, assume as proporções de

verdadeira calamidade pública. É ela que reduz nosso homem a meio

homem, a um quarto de homem, e a nossa população à metade ou quarto

da realidade: ela, e só ela, é a responsável pelo relativo atraso da nossa

pátria, que não pode sofrer o confronto com as outras”.

O entusiasmo pela educação perpetuou-se em nossa História de

educação para as massas. Se a princípio foi defendido por políticos e diletantes

da educação, depois passa a existir, também, nos MEIOS TÉCNICOS quando estes

surgem com a criação do Ministério da Educação,

os cargos técnicos foram preenchidos, em muitos

casos, por pessoas sem formação específi ca no

campo pedagógico.

Mas não só por esse motivo o

entusiasmo pela educação se fortaleceu, sua

fama maior se deve ao fato de que desde a

segunda década do século XX, com a luta

pela difusão do ensino elementar, firma-

se a idéia de que não ser entusiasta da

educação era sinônimo de antinacionalista.

Entusiasmar-se pela educação ligou-se,

assim, à demonstração de sentimentos huma-

nitários e à preocupação com o bem público.

DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO

PAÍS

A ênfase colocada na educação como

responsável por todos os problemas

nacionais tem a virtude de chamar a atenção

para a necessidade de universalizar a

educação elementar, mas tem também

o grave defeito de mascarar a análise da realidade, deslocando

da economia e da formação social a

origem dos problemas nacionais.

MEIOS TÉCNICOS

Essa tecnifi cação do terreno pedagógico, por ter perdido de vista a perspectiva externa que acompanhou seu desenvolvimento a partir dos anos 20, conduziu os pedagogos à abstração da realidade social como fator determinante da estrutura e da história da educação brasileira. A ênfase na modernização do sistema deixou de lado a consciência de sua função como instrumento de conservação ou de transformação da sociedade.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico

A armadilha ideológica montada com essa associação de idéias garantiu

a sobrevivência desse fenômeno educacional até nossos dias, agora

não mais com a pureza e a ingenuidade de um Miguel Couto, mas

com a esperança de muitos de obter um lugar de direção nos quadros

educacionais ofi ciais e/ou de justifi car sua presença nesses cargos.

O OTIMISMO PEDAGÓGICO

Surge na década de 1920, com o aparecimento dos primeiros

profi ssionais da educação e suas preocupações com a qualidade do

ensino e contrários à difusão quantitativa imediata de instrução de

baixa qualidade. Seus representantes têm se dedicado aos problemas

de administração do ensino, preparação de professores, reformulação

e aprimoramento de currículos e métodos. Para os defensores dessa

abordagem, a questão principal é preparar adequadamente o número

de pessoas que o sistema educacional pode atender, dentro de padrões

considerados aceitáveis, para as tarefas sociais. Não estão voltados para as

conseqüências políticas da preparação de um maior números de votantes.

Em sua maioria são técnicos que defendem seu campo de trabalho da

intervenção de políticos e diletantes, isolando-se no tratamento de

problemas concernentes aos aspectos pedagógicos do ensino. Por terem

se fi xado numa perspectiva unilateral da educação, os pedagogos dessa

corrente reforçaram a função do sistema educativo como instrumento

de conservação das estruturas socioeconômicas e políticas da sociedade.

Essa unilateralidade no tratamento das questões educacionais pode ser

considerada a principal marca do otimismo pedagógico: a desvinculação

entre o pensamento pedagógico no Brasil e a refl exão (imprescindível)

sobre as questões sociais. Uma marca tão profunda que reinou de forma

quase absoluta até os anos 60 e, até hoje, pode ser encontrada nos meios

educacionais brasileiros.

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REALISMO EM EDUCAÇÃO – UMA CONJUGAÇÃO DAS PERSPECTIVAS EXTERNAS E INTERNAS

A categoria denominada REALISMO EM EDUCAÇÃO refere-se à

abordagem dos problemas educacionais sem unilateralidade; assim, ao

aliar as duas perspectivas, trata das questões educativas sem perder de

vista a qualidade do ensino e leva em consideração, também, o papel

desempenhado por outros movimentos educacionais (como é caso de

muitas Organizações Não-Governamentais que atuam no país) na

sociedade como um todo e suas conseqüências sobre a ordem vigente

nos planos político, social e econômico.

Os realistas em educação formam um grupo bem diferenciado e

nele encontramos posições muito antagônicas no que se refere às posições

políticas. Assim, conservadores e revolucionários estão agrupados sob

a mesma bandeira realista por manterem uma abordagem do fenômeno

educativo em suas várias dimensões e procurarem objetividade no

tratamento das questões educacionais.

Sua ação tem se evidenciado na promoção de programas de

massa ou de movimentos em favor da expansão dos sistemas educativos

existentes, associada à busca de métodos efi cazes em relação aos objetivos

propostos para o programa educacional promovido pelo seu grupo.

Paiva (1987) aponta para a existência de quatro grupos, bastante

diferenciados entre si, sob a égide do realismo. O primeiro e mais antigo

é formado por profi ssionais da educação liberais que, embora tenham

concentrado a maior parte de suas preocupações com a educação

brasileira nas questões relativas à QUALIDADE DO ENSINO e à reforma do

sistema educativo, não absolutizaram essas questões e não perderam de

vista a perspectiva externa em suas análises e ações.

O segundo grupo é composto por defensores de posições educativas

ligadas às esquerdas marxistas que procuraram analisar a forma como a

atuação educativa poderia contribuir para a transformação da sociedade

e para a revolução proletária. Dessa forma estavam comprometidos

também com os ideais educacionais tradicionais, defendidos pelos

liberais, por considerá-los parte da luta por melhores oportunidades

de vida para as classes populares. Por isso, dentro do conjunto de suas

reivindicações, encontramos o apelo pela difusão quantitativa do ensino.

REALISMO EM EDUCAÇÃO

De uma maneira geral, os representantes

do grupo Realismo em Educação estão

interessados pela qualidade do ensino

como requisito fundamental para

a preparação do homem para tarefas específi cas: sociais,

econômicas e políticas. Preocupam-se, também

com a produtividade, rendimento e efi ciência

do ensino ministrado e com a expansão do

sistema e a criação de movimentos educacionais de

natureza expansiva.

Anísio Teixeira pode ser considerado um dos representantes

desse primeiro grupo. Como participante

do movimento reformista, sempre

esteve atento aos problemas colocados

entre educação e democracia.

QUALIDADE DO ENSINO

A idéia da qualidade do ensino não é estranha ao

pensamento marxista: era preciso

preparar homens e prepará-los bem. E o método adotado

nessa preparação poderia promover

o surgimento da consciência crítica

acerca das condições de funcionamento da

sociedade. Embora tivessem preocupações

qualitativas, os marxistas estavam

imunes ao otimismo pedagógico, porque

eram movidos pelo desejo de

transformação social.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico

Contudo, os primeiros educadores marxistas (década de 1920), compro-

metidos com o movimento renovador das escolas, estavam ligados aos

aspectos qualitativos do ensino. Paschoal Lemme se destaca entre os

educadores que adotaram essa posição como participante da reforma

educativa no Distrito Federal entre 1933 e 1935 e como atuante no campo

educacional brasileiro até meados dos anos 60.

AS ESQUERDAS NÃO-MARXISTAS, segundo Paiva, compõem o terceiro

grupo, que surge do intercâmbio ideológico entre cristãos e marxistas

como conseqüência da evolução do pensamento social no seio da

Igreja Católica.

Esse grupo atribui uma maior importância à cultura e à educação

como fatores indispensáveis para a mudança social. Entendiam que a

revolução social só seria possível se os homens que dela participassem

fossem conscientes de suas ações e capazes de interpretar objetivamente

as condições às quais estavam submetidos, na sociedade em que estavam

inseridos. A educação deveria vir antes da revolução e não depois;

portanto, era necessário desenvolver métodos de ensino adequados que

propiciassem a promoção do homem. O principal teórico desse grupo

é Paulo Freire.

Esses três grupos mantiveram uma visão integrada dos problemas

educacionais, sem perda da perspectiva interna e externa e apresentam

algumas características em comum:

• preocupação humanista – educação como meio para a

realização do homem;

• defesa da educação – obrigatória e gratuita para todos;

• preocupação em promover a participação popular nas

decisões políticas tanto o caráter dessa participação

quanto a forma de sua promoção variam de um grupo

para o outro.

O quarto e último grupo valoriza a educação como fator capaz de

contribuir para o crescimento econômico. É formado pelos TECNOCRATAS

DA EDUCAÇÃO, provenientes principalmente do campo da economia e seu

aparecimento deve-se à tecnifi cação do território educacional.

AS ESQUERDAS NÃO-MARXISTAS

Se aproximam, em seu enfoque, do grupo anterior. A diferença entre as duas abordagens está nas ênfases colocadas pelos dois grupos. O grupo marxista sublinha a base econômica, e o não marxista dá maior relevo à cultura e à educação. É importante ressaltar, também, que os cristãos foram levemente infl uenciados pelos entusiastas da educação, na medida em que lutavam por uma ampliação das oportunidades educacionais.

TECNOCRATAS DA EDUCAÇÃO

Surgem na década de 60, buscando ajustar a oferta de educação à demanda de mão-de-obra qualifi cada e, mais tarde, indicando os níveis e tipos de ensino onde o investimento educacional seria mais rentável, com base no cálculo dos diferenciais de rendimento individual determinado pela educação adicional.

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3PIÈRRE BOURDIEU

Sociólogo francês. Atualmente leciona

na Escola Prática de Altos Estudos, em Paris. Além de

seus trabalhos sobre Etnologia e de suas

investigações teóricas sobre Sociologia,

Bourdieu dirige, com Jean-Claude Passeron, o Centro de Sociologia

Européia, que pesquisa os problemas

da educação e da cultura na sociedade

contemporânea.

Esse grupo está comprometido politicamente com a ordem vigente e

interessa aos seus membros saber de que modo podem fazer do sistema ou

dos movimentos educacionais instrumentos efi cazes de modernização, de

funcionamento adequado das estruturas socioeconômicas vigentes e

de fortalecimento dos grupos políticos dominantes. Garantir efi cácia

e rentabilidade na educação é o seu lema, e este como um curinga

no jogo de cartas, vale para qualquer um dos aspectos educacionais:

ampliação das oportunidades educativas; melhoria qualitativa do ensino;

reforma administrativa, curricular e metodológica das redes escolares

em funcionamento etc.

O PESSIMISMO PEDAGÓGICO

As teorias crítico-reprodutivistas já mencionadas na Aula 23 foram

acusadas como as responsáveis pela onda de pessimismo pedagógico que

invadiu principalmente as universidades no fi nal da década de 1980. O

que elas apresentam em comum, segundo Saviani (1985), é uma cabal

percepção da dependência da educação em relação à sociedade. Entretanto,

como na análise que desenvolvem chegam invariavelmente à conclusão de

que a função própria da educação consiste na reprodução da sociedade em

que ela se insere, foram denominadas teorias crítico-reprodutivistas. Nessa

nomeação e em que pesem as diferenças, e a maior repercussão no Brasil, as

teorias que alcançaram maior grau de elaboração foram: teoria do sistema

de ensino enquanto violência simbólica (BOURDIEU e PASSERON, 1975);

teoria da escola enquanto Aparelho Ideológico do Estado (Althusser,1976)

e a teoria da escola dualista (BAUDELOT e ESTABLET, 1971). Vejamos,

de maneira sucinta, cada uma delas.

TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO ENTENDIDA COMO VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

O ponto de partida teórico é a análise da relação entre o sistema de

ensino e o sistema social. Para BOURDIEU, a origem social marca de maneira

inevitável e irreversível a carreira escolar e, depois, a vida profi ssional

dos indivíduos. Primeiro, a origem social produz o fenômeno da seleção:

a simples estatística das possibilidades de ascender ao ensino superior.

Depois, a categoria social de origem mostra que o sistema escolar elimina

de maneira contínua um número signifi cativo de crianças provenientes

das classes populares.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico

No entanto, para os pesquisadores franceses, é um equívoco

explicar tanto o sucesso quanto o fracasso escolar apenas pela origem

social. Outras causas, por eles designadas de herança cultural, estão em

jogo no destino educacional das crianças. Entre as inúmeras vantagens

que os herdeiros possuem, a linguagem reina. A seleção escolar vai intervir

quando a linguagem é insufi ciente (menor domínio, uso de socioletos,

gírias e palavrões) para o aproveitamento do aluno. E sabemos como esse

fenômeno atinge prioritariamente as crianças de origem social mais baixa.

As que têm êxito escolar são as que resistiram, por diversos motivos, à

laminagem progressiva da seleção. Mantendo-se no sistema de ensino,

esses alunos provaram ter adquirido um domínio da linguagem igual ao

dos estudantes saídos das classes superiores.

E, para fi nalizar, a cultura das classes superiores estaria tão

próxima da cultura da escola que a criança originária de um meio social

inferior não poderia adquirir senão a formação cultural que é dada aos

fi lhos da classe culta. Assim sendo, para uns, a aprendizagem da cultura

escolar é uma conquista sofrida e duramente obtida; para outros, é uma

herança “básica”, que inclui a reprodução das normas. Ou seja, conforme

a classe de origem os caminhos a trilhar na escola são diferentes.

TEORIA DA ESCOLA ENQUANTO APARELHO IDEOLÓGICO DO ESTADO

O conceito de Aparelho Ideológico de Estado (AIE) deriva da tese:

“a ideologia tem uma existência material”, ou seja, a ideologia existe

sempre radicada em práticas materiais reguladas por rituais materiais

defi nidos por instituições também materiais. Em suma, a ideologia se

materializa em aparelhos – Aparelhos Ideológicos de Estado.

Como AIE dominante, é válido afi rmar que a escola constitui

o instrumento mais acabado de reprodução das relações de produção

de tipo capitalista. Para tanto, a escola toma para si todas as crianças

de todas as classes sociais e lhes inculca, durante anos, o fi o da audiência

obrigatória: saberes práticos envolvidos na ideologia dominante.

Uma grande parte dessas crianças (operários e camponeses)

cumpre a escolaridade básica e é colocada no mercado produtivo.

Outras avançam no processo de escolarização, mas acabam tendo que

interromper e passam a integrar os quadros médios – são os pequenos

burgueses de toda espécie.

LOUIS ALTHUSSER

Nasceu em 16 de outubro de 1918 em Birmmandreis, na Argélia. Foi normalista em 1939. Prisioneiro na Alemanha de 1940 a 1945. Licencia-se em 1948, data em que adere ao Partido Comunista Francês e permanece na Escola Normal Superior, onde se torna o preparador de concurso para os normalistas da Escola. Marxista convicto e fi lósofo estruturalista, suas teorias marcam a história do estruturalismo na França e no resto do mundo.

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CHRISTIAN BAUDELOT E ROGER ESTABLET

São professores de Sociologia da

Educação na França.

Enfi m, uma pequena parte atinge o vértice da pirâmide escolar e,

vai ocupar os lugares próprios dos agentes de exploração (no sistema

produtivo), dos agentes de repressão (nos Aparelhos Repressivos de

Estado) e dos profi ssionais de ideologia (nos Aparelhos Ideológicos

de Estado). Em todos os casos trata-se de reproduzir as relações de

exploração capitalista.

TEORIA DA ESCOLA DUALISTA

Elaborada por CHRISTIAN BAUDELOT E ROGER ESTABLET em 1971, essa

teoria aponta que a escola, embora aparente ser unitária, está dividida em

duas grandes redes, que correspondem à divisão da sociedade capitalista

em duas classes fundamentais a burguesia e o proletariado.

Os autores desenvolveram, também, os temas da divisão,

segregação e antagonismo que condicionam os resultados fi nais do aluno,

os conteúdos e as práticas escolares. A divisão social do trabalho é a

responsável pelo insucesso escolar em massa da imensa maioria que inicia

a escolaridade mas não consegue prosseguir. Para Baudelot e Establet, a

escola, o professor e o aluno deixam de ser os responsáveis pelo fracasso

e os réus para se tornarem vítimas desse processo social. Portanto, é

impossível compreender a escola sem relacioná-la com a divisão da

sociedade. Impossível ignorar que a escola está dividida.

As três teorias expostas tiveram o grande mérito de evidenciar o

comprometimento da educação com os interesses dominantes mas, por

outro lado, contribuíram, na mesma proporção, para disseminar entre os

educadores um clima de pessimismo e de desânimo que tornou ainda mais

remota a possibilidade de articular os sistemas de ensino com os esforços

de superação do problema da marginalização e da exclusão escolar.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico

R E S U M O

A aula trata de movimentos educativos que surgiram ao longo da História da

Educação e retratam os discursos a favor de mudanças e/ou consolidação dos

aspectos mais fundamentais das estruturas educacionais em uso.

As diferentes denominações – Entusiasmo pela Educação, Otimismo Pedagógico,

Realismo em Educação e Pessimismo Pedagógico – além de evidenciarem momentos

históricos distintos, realçam os postulados ideológicos que dão sustentação à ordem

educacional vigente.

Finalizando, vemos a contribuição da Sociologia ao analisar a relação entre o sistema

de ensino e o sistema social, no que se refere à origem social dos alunos, suas

trajetórias dentro e fora da escola. A pirâmide escolar mostra sua engenhosidade

arquitetônica e nos convida a lhe fazer uma visita teórica e existencial.

AUTO-AVALIAÇÃO

• Em qual destas categorias você poderia encaixar suas idéias educacionais e seus

discursos sobre Educação?

• Faça a mesma refl exão para a escola em que você trabalha situando seus colegas

nas diferentes categorias analisadas.

• Pense agora nas famílias dos alunos e em suas expectativas e demandas para a

educação de seus fi lhos. Em qual (ou em quais categorias) essas famílias podem

ser situadas?

• Como podemos desconstruir a pirâmide educacional?

• A marginalização e a exclusão escolar têm solução? Como resolvê-las?

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Sociologia do confl ito: visão crítica

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

•OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica

A crítica não arranca das cadeias as fl ores

ilusórias para que o homem suporte as sombrias

e nuas cadeias, mas para que se desembarace delas

e brotem fl ores vivas.

Karl Marx

Neste momento, chegamos à Estação da crítica, lugar onde se tecem os

confl itos, as contradições e as ambigüidades presentes no mundo da sociedade.

Para que possamos desfrutar dos conhecimentos relacionados com esta

Estação, vamos recorrer a algumas teorias que, no campo da Sociologia, são

denominadas de confl itualistas.

Segundo Petitat (2002), a oposição existente entre as teorias do consenso

e as teorias do confl ito ainda constitui um dominante debate intelectual no

campo da Sociologia. O debate entre essas teorias coloca em questão a seguinte

contradição: enquanto as teorias do consenso estão centradas na problemática

da integração social e do equilíbrio, as teorias do confl ito colocam os confl itos

de classe no cerne da explicação da realidade social, na qual se circunscreve o

espaço da educação.

Portanto, o conjunto dessas teorias apresenta diferentes interpretações da

sociedade como um todo. Para as teorias do consenso, a sociedade é concebida

como um sistema integrado ou em vias de integração de elementos que são

complementares. Já para as teorias do confl ito, a sociedade é concebida como

uma unidade confi gurada por elementos contraditórios cuja estabilidade é

garantida pela manutenção das relações de dominação. Para as primeiras

teorias (as do consenso), o conceito-chave é o de ordem, enquanto para as

teorias do confl ito é o de controle. Assim sendo, a oposição existente entre o

conjunto dessas teorias é bastante profundo e refl ete no modo de interpretação

da escola, de sua gênese, de suas funções e de suas relações com a sociedade

como unidade contraditória de elementos.

No interior da corrente confl itualista há diferentes posições teóricas; todavia,

destacaremos nesta aula três posições, a saber: 1) a reprodução social; 2) a

teoria da correspondência; 3) a reprodução cultural. Iniciaremos nosso passeio

examinando as concepções marxistas de Louis Althusser e de Bowles-Gintis; em

seguida examinaremos a teoria de Bourdieu-Passeron.

INTRODUÇÃO

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LOUIS ALTHUSSER (1918-1990)

Filósofo marxista francês que

desenvolveu uma interpretação original

do pensamento de Marx a partir

da abordagem estruturalista. Suas

obras principais são: A favor de Marx (1965),

Lênin e a fi losofi a (1969) e Aparelhos

ideológicos de Estado (1969).

A REPRODUÇÃO SOCIAL

LOUIS ALTHUSSER, no seu trabalho Ideologia e aparelhos ideológicos

de Estado, publicado pela primeira vez em 1969, apresenta-nos uma

interpretação da instituição escolar claramente política e, mais

concretamente, marxista. O seu meritório trabalho propõe um modelo

explicativo do modo como se reproduzem as relações de produção nas

sociedades capitalistas.

Todas as formações sociais devem, ao mesmo tempo que produzem,

e precisamente para poderem produzir, reproduzir as condições da sua

produção. Necessitam, por isso, reproduzir as forças produtivas e as

relações de produção existentes. Althusser vai concentrar mais atenção

na última questão, na reprodução das relações de produção.

Althusser (1989) concebe a forma de articulação de uma sociedade

constituída por duas instâncias: a infra-estrutura ou base econômica; e a

superestrutura, composta por sua vez por dois níveis, o jurídico-político

(o direito e o Estado) e a ideologia (as diferentes ideologias: religiosa,

moral, jurídica, política etc.). E, para isso, não hesita em recorrer a uma

metáfora especial, a de comparar a sociedade com um edifício com

diversos andares, na base, a infra-estrutura, e sobre esta dois andares,

a superestrutura, mostrando assim uma considerável rigidez conceitual,

pois, segundo as suas próprias palavras, “os andares superiores não

poderiam sustentar-se no ar por si próprios, se não se apoiassem,

precisamente, sobre a sua base” (p. 77). Pressupõe, dessa forma, um

total determinismo, em última instância, por parte da base econômica;

a superestrutura não teria, por conseguinte, qualquer autonomia, não

desempenharia qualquer papel de relevo como motor de transformação

da sociedade.

Na superestrutura, a diferenciação dos dois níveis atrás referidos (o

jurídico-político e o ideológico) vai ter também duas funções diferentes.

Assim, os aparelhos repressivos de Estado (o governo, o ministério, a

polícia, os tribunais, as prisões etc.) ocupar-se-ão em conservar o poder de

uma forma mais direta e visível; “funcionam mediante a violência – pelo

menos em última instância (já que a repressão, por exemplo administrativa,

pode revestir-se de formas não físicas)” (ALTHUSSER, 1989, p. 84).

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Por outro lado, os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) são

integrados pelo conjunto das seguintes instituições:

1º – AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas);

2º – AIE escolar;

3º – AIE familiar;

4º – AIE jurídico (este pertence simultaneamente aos

aparelhos repressivo e ideológico de Estado);

5º – AIE político (o sistema político com os diferentes

partidos políticos);

6º – AIE sindical;

7º – AIE da informação (imprensa, rádio, televisão etc.);

8º – AIE cultural (as belas-artes, desportos, literatura etc.).

Todos os aparelhos acima funcionam em primeiro lugar mediante a

ideologia e em segundo lugar também através da repressão. Os aparelhos

repressivos de Estado nem sempre funcionam apenas mediante a violência,

antes deixando também um pequeno espaço à ideologia, embora esta seja

neles muito secundária. Na realidade, a diferença entre os dois aparelhos

está no peso diferente que atribuem à violência e à repressão.

Também é diferente o peso de cada um dos diversos Aparelhos

Ideológicos de Estado de acordo com o período histórico vigente; assim,

na etapa pré-capitalista era a Igreja o principal, uma vez que concentrava

não só as funções religiosas, mas também as escolares e grande parte

da função de informação e de cultura. Pelo contrário, nas sociedades

capitalistas desenvolvidas é a escola o principal AIE.

A escola como Aparelho Ideológico de Estado, segundo a

teorização de Althusser, passa a desempenhar uma função prioritária

na manutenção das relações sociais e econômicas existentes. A instituição

educativa é, de todos os aparelhos ideológicos de Estado, aquele que

cumpre a função dominante na reprodução das relações de exploração

capitalistas, já que é, além disso, o que dispõe de mais anos de audiência

obrigatória e, inclusivamente, gratuita para a totalidade das crianças e

jovens da sociedade.

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A importância da escola, segundo Althusser, ser-nos-ia dada por

características como as seguintes: recebe as crianças de todas as classes

sociais, obrigando-as a freqüentarem indefectivelmente as suas instalações

durante um considerável número de anos, e prepara-as e classifi ca-as

para desempenharem na sociedade diferentes tipos de funções. Destas,

as principais seriam:

1. a função de explorados (com consciência profi ssional,

moral, cívica, nacional e a política altamente desenvolvida);

2. a função de agentes da exploração (saber dirigir e falar

aos operários);

3. a função de agentes da repressão (saber mandar e fazer-

se obedecer ou saber utilizar a demagogia da retórica dos

dirigentes políticos);

4. a de profi ssionais da ideologia (sabendo tratar as consci-

ências com a demagogia oportuna, acomodando-se ao

discurso da Moral, da Virtude, da Transcedência, da

Nação etc.).

Esta função seria levada a cabo tanto com as novas metodologias

pedagógicas como com as mais tradicionais, e boa parte do êxito dever-se-ia

ao fato de as escolas trabalharem com crianças precisamente durante os anos

em que estas são mais vulneráveis, dependendo ainda do aparelho de Estado

familiar. A instituição acadêmica tem, assim, como tarefa fomentar o

desenvolvimento de diversas competências imersas na ideologia

dominante. Na escola aprendem-se técnicas e conhecimentos, mais

ou menos rudimentares ou profundos, de cultura científi ca ou literária

diretamente utilizáveis nos diferentes postos da produção (uma instrução

para operários, outra para os técnicos, uma terceira para os engenheiros,

uma última para os quadros superiores).

Ao mesmo tempo que faz essa aprendizagem, o conjunto

dos estudantes adquire, na instrução acadêmica, as regras do bom

comportamento, isto é, da atitude adequada que deve observar, de acordo

com o posto para o qual está destinado. A educação moral, a instrução

cívica e a fi losofi a seriam as disciplinas que, de forma mais direta, estariam

encarregadas de socializar ideologicamente os alunos.

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É através da reprodução das qualifi cações e da reprodução da

submissão às regras da ordem estabelecida, ou seja, à ideologia dominante,

que se consegue a reprodução da força de trabalho.

Todos os materiais e práticas que estruturam a vida cotidiana de

professores e estudantes na instituição escolar contribuem para reforçar

as relações de poder existentes em cada sociedade específi ca.

No pensamento althusseriano, a escola é vista como uma “caixa

negra” onde na realidade não se passa nada; tudo segue uma linearidade

perfeita; não existem verdadeiras possibilidades de analisar e modifi car

esses objetivos e conteúdos da educação. A escola, como tal, não

pode contribuir em nada na luta pela transformação das estruturas de

produção e das relações sociais existentes. Isto quer dizer que a ideologia

tem de distribuir os indivíduos pelos diferentes postos da divisão do

trabalho e convencê-los da justeza e da inevitabilidade dessa mesma

distribuição. Neste sentido, em Althusser, é muito difícil o aparecimento

de um pensamento e de práticas contra-hegemônicas. O pensamento

althusseriano cai assim num determinismo de base econômica.

Autores como Gramsci (1990) e Poulantzas (1990) criticam o

economicismo e a idéia de que a economia é, em última instância, o fator

condicionante e determinante, pois atribuem um papel prioritário à luta

política e ideológica em diversos níveis dentro do Aparelho Ideológico

de Estado.

O estruturalismo althusseriano tem a grande vantagem de

plasmar a vinculação causal existente entre as relações e as práticas

sociais nas diversas instituições com as ideologias. No entanto, o seu

modelo apresenta uma série de inconvenientes, pressupõe uma política

de conspiração por parte do Governo e dos responsáveis da política

educativa com vista a planifi car de antemão o sucesso e o insucesso

escolar dos diferentes membros da comunidade estudantil. Professores e

estudantes são concebidos como pessoas obedientes e, no fundo, passivas,

dominadas por ideologias que atuam de maneira tão inconsciente que

é quase impossível desvendá-las e submetê-las a uma análise refl exiva.

Parece que a reprodução ideológica não é suscetível de apresentar

falhas facilmente. De igual modo, em nenhum momento, se explica de

que forma tanto os alunos como o coletivo docente poderiam alterar a

situação estabelecida.

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A TEORIA DA CORRESPONDÊNCIA

Um passo à frente para desvendar o interior dessa “caixa negra”

que é a instituição escolar na perspectiva da reprodução é dado por

Samuel Bowles e Herber Gintis com a sua elaboração da teoria da

correspondência (1981), a partir de uma fundamentação teórica com

fortes semelhanças com a althusseriana.

Bowles e Gintis realizam uma descrição claramente politizada

da vida cotidiana das salas de aula, captando imediatamente a crucial

importância política do currículo oculto, especialmente da forma do

currículo como recurso para a reprodução, coesão e estabilidade das

relações sociais de produção e distribuição.

As indagações de Bowles e Gintis, embora totalmente dominadas

pelo quantitativismo, destinam-se a procurar de modo prioritário pontos de

união entre o âmbito escolar e outras esferas e lugares sociais, em especial

com as estruturas derivadas dos modelos econômicos de caráter capitalista

e, mais concretamente, com as necessidades dos grupos sociais nos quais

reside uma maior concentração do poder e do controle. Como resultado

disso, os seus estudos vão provocar uma viragem muito signifi cativa nas

teorias pedagógicas existentes até o momento, viragem que tem entre as

suas peculiaridades a defesa de um maior radicalismo político.

Tal radicalismo vai levá-los a duvidar de posicionamentos mais

reformistas e a não aceitar estratégias destinadas a conseguir mudanças

parciais ou progressivas como meio de fazer frente aos numerosos

problemas sociais de sociedades como a dos Estados Unidos. Consideram

que a política de remendos é inaceitável, dado que, no caso de ser posta

em prática, vai levar necessariamente ao fracasso e, inclusivamente, irão

muitas vezes existir fortes pressões e obstáculos que impossibilitarão a

sua entrada em vigor.

O radicalismo teórico defendido por ambos os investigadores

força-os a adotarem e a comprometerem-se com vias de transformação

prática. Desta forma, como dedução dos seus diagnósticos, concluem

que apóiam o desenvolvimento de um movimento socialista

revolucionário nos Estados Unidos por considerar uma alternativa

socialista capaz de proporcionar o único acesso a um futuro progresso

real em termos de justiça, libertação pessoal e bem-estar social.

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As mudanças revolucionárias, segundo Bowles e Gintis (1981), mesmo

as violentas, desencadearam forças progressistas maciças no passado.

O desenvolvimento e a articulação da visão de uma alternativa socialista,

assim como a capacidade de enfrentar necessidades humanas concretas

atuais, para os autores, exigem um partido fundamentado nas massas,

capaz de ajudar nas lutas diárias dos trabalhadores e empenhado numa

transformação revolucionária da economia estadunidense.

Para Giroux (1986), uma especifi cação tão clara desse compromisso

pode, de fato, vir a ter efeitos contraditórios e acabar por servir para

reforçar as estruturas escolares atuais à espera de outros tempos e de outros

ventos. É possível que chegue a provocar nos professores uma sensação

de inutilidade no trabalho que desenvolvem cotidianamente nas escolas,

ou é provável que crie neles a sensação de estarem a serviço das forças

opressoras da classe capitalista. Com isso, teoricamente, as modalidades

de ação através de um trabalho profi ssional são anuladas.

As suas análises funcionalistas das relações entre o sistema educativo

e a economia levam-nos a pensar por alto o papel das pessoas, ao considerá-

las como seres passivos, incapazes de fazer frente a um destino irremediável.

A base econômica determina inexoravelmente a superestrutura.

Bowles e Gintis, no momento de realizar a sua proposta teórica da

correspondência, recorrem a um teste de confrontação e validação como

é o de comparar as mudanças nas instituições educativas através dos

tempos com as transformações na estrutura da produção e distribuição de

cada sociedade concreta. A importância dessa estratégia metodológica de

caráter comparativo é óbvia, uma vez que podemos constatar que quase

metade da sua obra-chave, A instituição escolar na América capitalista,

é dedicada a esse assunto.

Ambos os autores chegam ao seu modelo teórico após terem analisado

aquilo que podemos denominar como a tradição do pensamento liberal

educativo. Essa teoria liberal vinha e vem atribuindo um papel determinante

ao sistema educativo como motor de transformação da sociedade;

a escolarização como caminho para uma sociedade mais humana, uma

sociedade em que as relações de exploração não tenham lugar.

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A partir do Iluminismo, vai-se generalizar a atribuição de um papel

preponderante à educação como motor de transformação e avanço da

produção e da hominização.

O debate escolar vai se concentrar à volta de duas tendências liberais:

por um lado, o pensamento de Dewey e o movimento da Escola Democrática,

e, por outro, o derivado da economia neoclássica e do funcionalismo, a que

tem sido chamada Escola Tecnocrática e Meritocrática.

Essas tendências vão defender o pressuposto de que todos

somos iguais por nascimento, que a herança genética não tem grande

importância porque, de qualquer forma, pode ser compensada, e que

é possível também compensar os condicionantes sociais e econômicos.

Portanto, é o esforço pessoal, os sucessos de cada indivíduo e, portanto,

os níveis educativos alcançados que determinam em última instância os

horizontes das aspirações individuais. São os méritos individuais, fruto

do esforço pessoal, que vão decidir o acesso à estrutura ocupacional.

Assim sendo, as diferenças sociais são fruto da diferente dedicação

ao estudo por parte de cada pessoa. Deste modo, seguindo este

posicionamento teórico, se desejarmos uma sociedade mais igualitária

teremos de nos preocupar em garantir a igualdade de oportunidades;

neste caso, oferecer a possibilidade, ou melhor, a obrigatoriedade da

educação a todos os cidadãos.

Por conseguinte, do ponto de vista do modelo tecnocrático

e meritocrático, as desigualdades econômicas são fruto das escolhas

individuais ou de insufi ciências pessoais, e não o resultado de determinada

estrutura econômica e das relações sociais vigentes.

Bowles e Gintis constatam o fracasso da política liberal e dos

modelos educativos dela derivados. Servindo-se de uma ampla variedade

de fontes estatísticas, descritivas e históricas, conseguem confi rmar que

a educação nas sociedades capitalistas atuais é uma das principais

estratégias que se utilizam para a reprodução deste modelo de sociedade

e, portanto, da desigualdade.

Assim, segundo os representantes da teoria da correspondência,

a desigualdade econômica e os níveis educativos de desenvolvimento

alcançados por cada homem ou mulher são desde logo condicionados e

defi nidos em primeira instância pelo mercado, pela propriedade e pelas

relações de poder que defi nem o sistema capitalista.

As críticas que esta posição teórica recebe ao cair num excessivo

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PIERRE BOURDIEU

(1930-2002)

Sociólogo francês, foi diretor de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor no Collège de France. Seu nome constitui uma das grandes referências no campo das ciências sociais. Algumas obras: Esquisse d’une théorie de la pratique (1972), La distinction (1979), Les sens pratique (1980), Homo academicus (1984) e La noblesse d’Etat (1989).

reducionismo economicista vão ser bastante numerosas. Ainda que em

diversos momentos de sua obra pareçam optar por estabelecer certas

relações entre a base e a superestrutura, em termos marxistas, no fundo

acabam por cair numa posição mais próxima das teorias funcionalistas.

Em momento algum se apresentam claras possibilidades de contestar

e, portanto, de criar grandes contradições ao sistema de produção e

distribuição capitalista que conduzam ao seu desaparecimento.

A REPRODUÇÃO CULTURAL

Outro modelo que também pretende explicar a função da instituição

escolar como reprodutora da ordem social e cultural estabelecida é o de PIERRE

BOURDIEU. Inclusivamente, uma das suas obras mais importantes, realizada

em colaboração com Jean-Claude Passeron, tem por título A reprodução.

Ambos os autores se dedicam nesse trabalho a elaborar uma teoria do

funcionamento do sistema educativo e a explicar de que forma este

desempenha um papel decisivo na perpetuação da sociedade capitalista,

do seu modo de produção e da sua estratifi cação social.

A análise teórica que realizam parte do pressuposto de que as

sociedades humanas estão divididas de forma hierárquica em classes

e que esta hierarquização se mantém e perpetua através daquilo que

denominam a violência simbólica. Este termo, segundo especifi cam

ambos os investigadores, indica expressamente a ruptura com todas

as representações espontâneas e concepções espontaneístas da ação

pedagógica como ação não violenta e a sua incorporação como parte

de uma teoria geral da violência, mas da violência legítima. Daí que a

sua proposta teórica seja conhecida também por outros autores como

teoria da violência simbólica (SAVIANI, 1990).

Esta teoria tem como pretensão compreender e dar resposta a

três questões decisivas:

1. Como é que a educação garante que alguns grupos sociais

possam manter uma posição dominante;

2. Por que é que só determinados grupos sociais podem

participar na defi nição da cultura dominante;

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JONH DEWEY

(1859-1952)

Filósofo e educador norte-americano.

Desenvolveu o pragmatismo de

William James aplicando-o à

lógica e à ética, bem como defendendo

o experimentalismo na teoria da ciência. Fundador da escola

ativa. Principais obras: Escola e

sociedade (1889), A criança e o currículo (1902), Democracia e educação (1916),

Experiência e educação (1938) e Ensaios de lógica experimental

(1954).

3. Através de que mecanismos a natureza arbitrária de

certas normas, costumes, conteúdos e valores obtém

um forte grau de consenso e, por conseguinte, a sua

legitimação, condicionando decisivamente, desta forma,

os processos de socialização, em especial das gerações

mais jovens.

Desde a década de 1960 que a instituição escolar vem sendo objeto

de análises diversas, coincidentes ao apontar, por um lado, que o insucesso

escolar e o abandono das instituições de ensino afetam em porcentagens

muito superiores as crianças de determinadas classes e grupos sociais, as

que na estrutura hierárquica de cada sociedade ocupam os escalões de

menor poder e prestígio; e, por outro lado, que o conjunto de estudantes

que chegam aos níveis superiores do sistema educativo e às especialidades

mais prestigiosas dos estudos universitários é descendente das famílias

que gozam de maior poder e prestígio social. No respeitante à França, no

momento em que Bourdieu constrói a sua proposta teórica, os trabalhos

de Baudelot e Establet (1976) vieram dar um grande contributo com

dados decisivos de caráter quantitativo.

Não devemos esquecer a permanência na cultura francesa e,

em geral, em todas as sociedades ocidentais, de uma ideologia que

denuncia as desigualdades de oportunidades de que são alvo muitos

grupos sociais, mas, por sua vez, deposita uma excessiva confi ança nas

instituições escolares como compensadoras dessas desigualdades sociais.

Na opinião de Bourdieu, esta é uma das razões que nos impedem de ver

a educação institucionalizada como conservadora e realmente injusta,

ainda que de um modo formal se mostre equitativa. Desta forma, embora

nos encontremos perante uma ideologia que aparentemente critica um

modelo de sociedade e o seu sistema político, no fundo os seus resultados

não fazem outra coisa senão legitimá-los. Os produtos das reformas

educativas que essas políticas levam a cabo, por mais de uma vez,

continuam sem modifi car de forma decisiva os valores que as instituições

acadêmicas fomentam; os conteúdos culturais que impõem, os métodos

pedagógicos que adotam, os critérios de seleção e controle, os processos

de orientação etc. contribuem para que se continue a benefi ciar os grupos

sociais mais favorecidos e a prejudicar os mais desfavorecidos.

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A equidade formal do sistema de ensino traduz-se numa falsa

neutralidade da escola ao tratar todos os membros do corpo estudantil como

iguais em direitos e deveres, apesar das desigualdades de fato. A teoria da

violência simbólica tem procurado uma explicação para esta desigualdade

nos êxitos e fracassos nas instituições educativas. Pretende investigar através

de que processos objetivos os estudantes das classes e grupos sociais mais

desfavorecidos são negativamente sancionados e vão sendo continuamente

excluídos do sistema de ensino.

A formulação dessa teoria, cuja apresentação é excessivamente

formalista, consta de cinco proposições principais, com numerosas

subproposições e escólios. Tudo isso estruturado de forma hierárquica

e unidirecional, tal como indica o próprio plano elaborado pelos autores.

Para Bourdieu e Passeron (1982), as proposições são as seguintes:

Proposição 0: refere-se à defi nição de violência simbólica;

Proposição 1: refere-se à ação pedagógica;

Proposição 2: refere-se à autoridade pedagógica;

Proposição 3: refere-se ao trabalho pedagógico;

Proposição 4: refere-se ao sistema de ensino.

Esta teoria considera que as divisões em classe e grupos sociais e

as confi gurações ideológicas e materiais sobre as quais elas se apóiam

são transmitidas e reproduzidas através da violência simbólica (0).

Ou seja, o poder detido por uma classe social é utilizado para impor

uma defi nição de mundo, para defi nir signifi cados e apresentá-los como

legítimos, dissimulando o poder que essa classe tem para o fazer e

escondendo, além disso, que essa interpretação da realidade coincide

com os seus próprios interesses de classe. Assim, a violência simbólica

reforça com o seu próprio poder as relações de poder nas quais ela se

apóia e contribui, dessa forma, como sublinha Weber (1989), para a

domesticação do dominado. A cultura encontra-se, portanto, dominada

pelos interesses de classe.

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A violência simbólica vai exercer-se muito diretamente através

da ação pedagógica (1). De fato, Bourdieu e Passeron declaram

de forma explícita que toda ação pedagógica é objetivamente uma

violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de

uma arbitrariedade cultural. Dentro da concepção de ação pedagógica

entram todas as tentativas de instrução, quer as que são levadas a cabo

pela própria família e outros grupos da sociedade que não têm intenção

expressa de educar, quer a que se desenvolve no quadro da educação

escolar. Esta ação é rotulada como violenta, visto que se exerce numa

relação de comunicação em que as inter-relações são do tipo desigual;

existe uma classe ou grupo social que tem maior poder e que o utiliza

para realizar uma seleção arbitrária que vai precisar de recorrer a uma

maior ou menor coação, uma vez que os signifi cados que impõe não

correspondem a princípios universais.

Dado que estamos perante uma situação definida como de

imposição, é preciso, por isso mesmo, tratar de a dissimular. Entre as

estratégias válidas para levar a cabo o trabalho de ocultação está a de

lançar mão do conceito de autoridade. Se a ação pedagógica quiser ter

êxito na distribuição do capital cultural terá de recorrer à autoridade

pedagógica (2). O reconhecimento da legitimidade de inculcar vai

condicionar a recepção da informação nos seus destinatários, ou seja, a

possibilidade de transformar essa informação em formação. Em virtude

da autoridade pedagógica, qualquer agente ou instituição pedagógica

surge automaticamente como digno de transmitir aquilo que transmite

e, portanto, fi ca autorizado a impor a sua recepção e a controlar a sua

mensagem mediante um sistema de recompensas e sanções que goza da

aprovação dessa coletividade. Mas também é preciso não esquecer em

momento algum que a autoridade pedagógica é fruto de uma delegação

de autoridade; dispõe desta na qualidade de mandatária das classes ou

grupos sociais cuja arbitrariedade cultural impõe.

Uma vez que se trata de um trabalho de inculcar, a ação pedagógica

implica também um trabalho pedagógico (3), com uma duração temporal

sufi ciente para produzir nos destinatários uma formação capaz de deixar

marcas persistentes.

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Segundo Bourdieu (1992), esse processo de socialização vai criar

em cada pessoa um habitus. Este é produto de uma interiorização de

princípios da cultura dominante, das suas categorias de percepção e

de apreciação da realidade e vai ter efeitos reprodutores. Através das

práticas dele derivadas perpetua-se a arbitrariedade cultural de que é

fruto e o modelo social do qual depende a ação pedagógica. O habitus

se constrói através de um processo educativo e constitui a garantia da

sobrevivência de uma cultura, pois é equivalente, no âmbito da cultura,

à transmissão do capital genético no âmbito da Biologia.

Não obstante, o trabalho pedagógico contribui para produzir

e reproduzir a integração intelectual de uma sociedade. É assim que

podemos explicar, segundo Bourdieu (1990), que cada cultura detenha

um código comum e que os utilizadores desse código possam associar

o mesmo sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos

e às mesmas obras. Cada cultura pressupõe pontos de convergência,

problemas similares e maneiras comuns de abordar esses problemas.

O trabalho pedagógico não só contribui para dar referências sobre

como deve ser interpretada a realidade como também defi ne itinerários,

formas e métodos de resolução de problemas que se colocam às pessoas

que possuem um mesmo habitus.

Uma condição fundamental para que este habitus se forme é a de

que o trabalho pedagógico que lhe vai dar origem seja contemplado como

legítimo pelos seus destinatários; isso facilitará não só a construção de

um habitus duradouro mas também um interesse crescente pelo consumo

dessa arbitrariedade cultural. É desta forma que se legitima a cultura

dominante e que os dominados a interiorizam, lhe conferem o seu

reconhecimento e que, simultaneamente, aprendem a não conferir valor

a outras formas culturais diferentes ou incompatíveis com a legítima.

Os próprios setores sociais cuja cultura é marginalizada ou desprezada

convertem-se em aliados dos seus inimigos. Tudo aquilo que não se

identifi car com a arbitrariedade cultural que a ação pedagógica impõe

fi ca automaticamente excluído, vê negada a sua existência.

Por conseguinte, é preciso que o sistema de ensino (4) se auto-

reproduza, para o que é necessário contar com profi ssionais ou agentes

da reprodução, formados e qualifi cados para garantir um trabalho

pedagógico específi co e regulamentado, ou seja, um trabalho escolar.

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Os próprios profi ssionais da reprodução escolar necessitam receber uma

formação homogênea a fi m de serem dotados de instrumentos e técnicas

que facilitem o seu futuro trabalho de homogeneizadores das populações

a seu cargo. Além disso, o fato de se lhes conceder um reconhecimento

público por este tipo de capacitação – converte-os, por exemplo, em

funcionários públicos do sistema de ensino – leva a que não necessitem de

conquistar e confi rmar continuamente a sua autoridade pedagógica.

A teoria da reprodução cultural não explica de forma clara como

o capital cultural com o qual se sai do sistema educativo é negociado nos

próprios locais de trabalho; em que condições é que o habitus concreto

– uma vez que a pessoa se afasta do sistema escolar – sofre variações ou

mudanças profundas, fruto de outras experiências refl exivas na práxis

social; ou de que modo é que as disfunções na esfera da produção podem

provocar contradições que levem à transformação ou, inclusivamente, à

substituição desse modelo de produção e distribuição, apesar dos sistemas

de ensino vigentes.

A teorização que Bourdieu leva a cabo, segundo autores

como Giroux (1986) e e McLaren (1997), cai na rigidez das teorias

estruturalistas e funcionalistas da socialização e da reprodução, nas quais

não é fácil ver possibilidades de resistência e de contestação por parte

dos estudantes ou do professorado. No entanto, não podemos deixar

de destacar a importante contribuição que Bourdieu realiza no âmbito

da educação institucionalizada ao colocar em destaque a relevância dos

sistemas simbólicos no momento de considerar, analisar e planifi car os

sistemas escolares.

E, assim, chegamos ao fi nal desta Estação. Desejamos que todos

tenham desfrutado dos ensinamentos aqui apresentados. Antes de

passarmos à próxima Estação, convém examinarmos sumariamente as

questões estudadas nesta aula.

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Page 312: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica

R E S U M O

Denomina-se teoria do confl ito, no campo da Sociologia da Educação, o conjunto

de teorias que concebe a sociedade e a realidade social a partir das contradições

de classe e de suas relações com a reprodução da dominação e da ideologia.

As teorias do confl ito diferem das teorias do consenso porque estas centram suas

análises na problemática da integração social e na reprodução do equilíbrio.

Entre as teorias do confl ito destacamos três posições, a saber: a reprodução social,

a teoria da correspondência e a reprodução cultural.

Insere-se no interior da teoria da reprodução social a análise de Louis Althusser

denominada Aparelhos Ideológicos de Estado. Segundo Althusser, a manutenção

do atual sistema de produção e das relações de poder depende tanto do uso da

força quanto do uso da ideologia. Assim, a produção das condições de produção

baseia-se na produção de valores que sustentam as relações de produção, no uso

da força e da ideologia, que apóiam as classes dominantes em todos os espaços

de controle e na produção do conhecimento e das habilidades importantes para

as formas específi cas de trabalho.

A teoria da correspondência, postulada por Bowles e Gintis, parte do argumento

de que os padrões hierarquicamente estruturados de valores, normas e habilidades,

característicos das sociedades capitalistas, refl etem-se na dinâmica social do

cotidiano da escola. As relações sociais estabelecidas na escola inculcam nos

estudantes as atitudes e disposições necessárias para a ocultação dos imperativos

da lógica do capital.

A teoria da reprodução cultural, elaborada por Bourdieu e Passeron, começa com o

pressuposto de que a estratifi cação das sociedades e as confi gurações ideológicas e

materiais nas quais elas se sustentam estão mediadas e são reproduzidas através do

que eles chamam de violência simbólica. Assim, a educação é concebida como uma

relevante força social e política no processo de reprodução das classes, já que se

coloca como transmissora neutra dos benefícios da cultura dominante, permitindo

que as escolas promovam a desigualdade em nome da justiça e da objetividade.

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EXERCÍCIOS

1. Quais são as interpretações da sociedade colocadas pelas teorias do consenso

e pelas teorias do confl ito?

2. Qual é o conceito-chave dado pelas teorias do consenso e pelas teorias do

confl ito?

3. Qual é o principal representante da teoria da reprodução social?

4. Quais são os autores que elaboraram a teoria da correspondência?

5. Quais são os representantes da teoria da reprodução cultural?

6. Faça uma breve síntese das três posições teóricas que habitam a corrente

confl itualista, tentando enfatizar o papel da escola em cada uma delas.

AUTO-AVALIAÇÃO

Caso você tenha respondido às questões sem apresentar qualquer difi culdade,

signifi ca que poderá prosseguir viagem até a próxima Estação. Todavia, se alguma

difi culdade foi apresentada durante a consecução do exercício, é importante fazer

mais uma leitura atenta e minuciosa desta aula antes de prosseguir a viagem.

É importante frisar que as duas primeiras questões mostram a diferença existente

entre as teorias do consenso e as teorias do confl ito; já as questões de número 3, 4

e 5 apenas tentam fi xar os nomes dos autores que elaboraram as teorias aqui em

debate, enquanto a última questão é a que demanda maior esforço intelectual,

pois exige o destaque dos elementos principais enunciados pelas teorias.

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A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Analisar os conceitos de ideologia, hegemonia e poder.

• Refletir sobre a relação entre os conceitos de ideologia, hegemonia e poder e a educação, mostrando como esses conceitos são fundamentais

A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1

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Avistamos uma nova paisagem da janela de nosso trem. Na aula passada,

você analisou sociologicamente a educação, agora precisamos discutir alguns

aspectos políticos da educação; por isso vamos tratar de hegemonia, ideologia e

poder. Como esse tema é complexo, nós o veremos em dois momentos distintos.

Assim sendo, tanto a Aula 27 quanto a Aula 28 tratarão do mesmo tema.

IDEOLOGIA

A escola como universo preservado, ilhéu de pureza – à porta da

qual se deteriam as disparidades e as lutas sociais – esse milagre

não existe: a escola faz parte do mundo.

GEORGES SNYDERS

O conceito de ideologia é freqüentemente usado em vários textos

que discutem a relação entre a educação e o contexto histórico, ou seja, de

onde vêm as idéias e os valores usados na educação. Por isso precisamos

explicar com clareza esse conceito, mostrando como ele é utilizado por

diferentes autores e quais os aspectos essenciais para compreendê-lo.

O signifi cado moderno do termo ideologia originou-se no grupo

de SAVANTS no período da Revolução Francesa, em 1789; a esse grupo

foi confi ada a fundação de um Centro de Pensamento Revolucionário,

no Institute de France, iniciativa que se efetivou a partir da Convenção

de 1795, na França. Os savants eram os porta-vozes das idéias

revolucionárias na França e o principal objetivo do grupo era a liberdade

de pensamento e expressão.

Os savants pretendiam cumprir dois propósitos: mostrar a

relação entre história e pensamento e promover algumas idéias que

seriam verdadeiras em qualquer conjuntura histórica, ou seja, os

savants pensavam que algumas idéias eram tão importantes que seriam

signifi cativas e imprescindíveis em qualquer contexto histórico. Por

exemplo: as idéias de igualdade, liberdade e fraternidade, que foram

o lema da Revolução Francesa, teriam efi cácia em qualquer contexto

histórico e poderiam transformar qualquer realidade, tal a força

revolucionária que traziam. Na verdade, os savants buscavam, através das

idéias, transformar substancialmente a realidade, por isso se propuseram

a fazer uma investigação sobre a relação história/pensamento.

DESTUTT DE TRACY foi o primeiro teórico a usar a expressão

“ideologia”, na obra intitulada Projet D’Eléments D’Ideologie (1801-

ANTOINE DESTTUT DE TRACY

(1756-1836)

Aristocrata que se tornou um dos mais combativos representantes da burguesia revolucionária na França, no fi nal do século XVIII e início do século XIX. Entre 1801 e 1815 escreveu a obra Projet D’Eléments D’Ideologie.

INTRODUÇÃO

GEORGES SNYDERS

(1916)

Educador francês contemporâneo que defende uma pedagogia não-autoritária. Segue o pensamento de Gramsci, mostrando que a escola é um local de confronto de interesses de classes antagônicas.

SA V A N T Sábio, intelectual.

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1815), composta de vários volumes. Ele preocupou-se com a elaboração

de uma ciência sobre a origem e as leis de formação das idéias, queria

explicar a relação entre o corpo humano e o meio ambiente, mostrando

como essa relação constrói idéias. Ele pretendia revelar a materialidade

das idéias, acreditando que essa revelação produzisse um conhecimento

verdadeiro e universal da natureza humana. O principal objetivo dos

ideólogos do século XVIII e início do século XIX era construir um mundo

racional e, para tal, recorreram ao empirismo de JOHN LOCKE, acreditando

que as idéias derivavam das sensações. A ideologia nasce no interior de

um materialismo que considera que as operações do intelecto humano

são previsíveis como qualquer lei da Física.

Outro autor que trata do conceito de ideologia é AUGUSTO COMTE.

Sua obra Curso de Filosofi a Positiva analisa a ideologia sob dois ângulos:

primeiro como uma atividade fi losófi co-científi ca, que estuda a formação

das idéias, observando as relações entre o corpo humano e o meio

ambiente, por meio das sensações; segundo, como o conjunto de idéias

de uma época, ou melhor, o conjunto de opiniões de uma época ou das

idéias dos pensadores de uma época. Podemos observar que a primeira

concepção de Comte assemelha-se à visão de Desttut de Tracy, ou seja,

ele concebe a ideologia como um conjunto de idéias que decorrem das

sensações oriundas das relações entre a mente humana e o meio ambiente,

defendendo uma visão empirista e materialista de conhecimento. Mas

Augusto Comte não se preocupa com a relação história e pensamento,

tal como pensavam os savants; em suas refl exões sobre ideologia não

há conotação política.

ÉMILE DURKHEIM também discutirá o conceito de ideologia, sua

intenção é fi rmar a Sociologia como ciência, e para atingir tal propósito

trata a ideologia como uma pré-noção, uma concepção pré-científi ca.

De acordo com Marilena Chauí, Durkheim afi rma que a ideologia é um

conjunto de “noções vulgares ou fantasmas que o pensador acolhe porque

fazem parte de toda a tradição social onde está inserido” (CHAUÍ, 1981,

p. 30). Durkheim coloca a ideologia no terreno da subjetividade, uma

mera conjectura pessoal; logo, quem pretende fazer ciência não pode se

fundamentar em ideologias. Sendo assim, o cientista social deve seguir

três regras para não correr o risco de cair na ideologia: primeiro, tomar

distância da sociedade que vai estudar; segundo, deve ir sempre dos fatos

às idéias e não vice-versa; terceiro, deve usar conceitos precisos.

JO H N LO C K E

(1632-1714)

Veja as informações sobre esse fi lósofo na

Aula 10.

AU G U S T O CO M T E

(1798-1857)

Intelectual francês, fundador

do Positivismo, considerado o pai da

Sociologia, ou seja, aquele que tratou os estudos da sociedade como ciência, tendo

como modelo a Física e a Matemática,

consideradas ciências com métodos exatos, precisos e rigorosos.

ÉM I L E DU R K H E I M (1858-1917)

Intelectual francês, seguidor de Augusto

Comte, que se dedicou principalmente ao

estudo da Sociologia. De acordo com sua visão, a Sociologia

determinaria os fi ns da educação. Concebia a

educação como uma ação das gerações

adultas sobre as gerações mais jovens.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1

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Mas, ao longo do século XIX, surgem outras refl exões signi-

fi cativas sobre ideologia. Gostaríamos de lembrar que a discussão sobre

ideologia implica refl exão sobre a relação efetiva que existe entre as

idéias produzidas pelos homens e a realidade social e histórica. Cremos

que dois autores nos auxiliam muito na compreensão da discussão sobre

ideologia: HEGEL e MARX.

Hegel preocupa-se em discutir a relação entre as idéias e a história,

entre o conhecimento e o mundo. Sua questão fundamental era a relação

entre o real e o racional; Hegel quis romper com a separação entre o

conhecimento das coisas realizado pelas categorias mentais e as coisas em

si mesmas. Instaura o conceito contemporâneo de dialética, ou seja, admite

que o contexto social e histórico está sempre em transformação, procura

superar a separação entre conhecimento/realidade, idéia/história. Assim,

a razão dialética alcança um conhecimento verdadeiramente universal, em

um momento representa a objetivação do ESPÍRITO na história, em outro

momento a apropriação da história no espírito. De acordo com Hegel, a

consciência, por ser dialética, dá movimento à realidade.

Marx, como discípulo de Hegel, retoma a noção de dialética,

mas afi rma que as transformações não são um processo fornecido à

realidade pela consciência, mas a própria realidade é dialética, ou seja,

se transforma. Afi rma que a consciência dos homens é determinada

pelas relações sociais. Esta discussão é muito importante para entender

as refl exões de Marx sobre ideologia. Marx explica, na obra Ideologia

Alemã: “a produção de idéias, de concepções e da consciência liga-se, a

princípio, direta e intimamente, à atividade material (...) a consciência

jamais pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens

é o seu processo de vida real” (MARX e ENGELS, 1985:21). Sendo

assim, Marx conclui: “Não é a consciência que determina a vida, mas é

a vida que determina a consciência”.

Marx diz que devemos considerar a historicidade de nossa

consciência e das idéias, mostrando que as produções da consciência

estão vinculadas, mesmo que indiretamente, à produção material. Essa

proposição básica era uma resposta ao idealismo alemão, principalmente

a Hegel, que via o pensar conceitual como a verdadeira essência do ser

humano, ou seja, o mundo conceitual era a única realidade. Na obra

Ideologia Alemã, Marx descreve a consolidação da ideologia dominante

e como ela torna-se a força espiritual dominante de uma época.

HE G E L

(1770-1831)

Filósofo alemão, representante do Idealismo, que propõe a identidade entre a razão e a realidade. Considera que: “tudo que é real é racional; tudo que é racional é real”.

KA R L MA R X

(1818-1883)

Filósofo alemão, fundador do materia-lismo dialético e histórico. Marx fez profundas críticas ao modo de produção capitalista. Participou intensamente do movimento proletário internacional, fundando as bases do comunismo contemporâneo.

ES P Í R I T O

Para Hegel é a razão humana.

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Para tornar-se essa força, esse conjunto de idéias cria mecanismos de

convencimento e inversão da realidade, e através desses mecanismos cria

uma consciência que não corresponde à realidade histórica.

Segundo Marx, nas diferentes formações sociais há luta de classes.

Por exemplo: na sociedade medieval, encontrávamos o senhor feudal e o

servo; na sociedade capitalista, o proletariado e a burguesia. Essas classes

tinham interesses diferentes e confl itantes; cada um de nós está inserido

numa determinada classe social, por isso formamos nossas idéias, crenças

e valores de acordo com a nossa origem de classe. Além disso, no embate

de interesses entre as classes, aquela que está no poder procura impor as

suas concepções de mundo a toda a sociedade.

No prefácio à Contribuição à crítica da economia política, Marx

revela que as formas de consciência e, conseqüentemente, as ideologias

são veículos EPISTE MOLÓGICOS importantes para que conheçamos a realidade

histórica, por isso não podemos defi nir a ideologia simplesmente como

falsa consciência.

GRAMSCI seguirá essa interpretação do pensamento marxista, ou

seja, não considerará a ideologia como falsa consciência. Para Gramsci, a

ideologia está inserida no complexo INFRA-ESTRUTURA/SUPERESTRUTURA (bloco

histórico). Assim sendo, o conjunto da estrutura com a superestrutura

forma um bloco histórico, que representa a síntese de relações sociais e

históricas. No interior dessa síntese produzimos idéias, valores e normas

para atuar na prática social. Gramsci acreditava que uma ideologia pode

contribuir para a consolidação ou transformação de uma estrutura, e

ela não pode ser encarada simplesmente como “falsa consciência”. Ele

afi rma que as ideologias não são julgadas segundo o critério de verdade ou

falsidade, mas de acordo com a sua função e efi ciência em reunir classes

ou frações de classes em posições de domínio ou subordinação.

Para Gramsci, a ideologia é uma forma de conhecimento do

mundo. Como modo de conhecer a realidade, a ideologia tem uma

participação ativa e efetiva numa formação social, apresentando efi cácia

na explicação ou ocultamento de uma determinada realidade. De acordo

com a inserção social, produzem-se ideologias diferentes; por isso, cada

classe social constrói uma concepção específi ca de mundo, porque as

condições concretas de vida são profundamente diferentes. Mesmo

vivendo sob o mesmo modo de produção, a construção da consciência

não será semelhante nas diferentes classes sociais. Assim, a especifi cidade

de cada classe e a relação entre classes diferentes, numa mesma realidade

social, é o ambiente onde se constroem as ideologias.

AN T O N I O GR A M S C I

(1881-1937)

Veja as informações sobre este intelectual

italiano na Aula 3.

MA R X, K. E EN G E L S, F.

A Ideologia Alemã. RJ, Zahar, 1985.

EP I S T E M O L Ó G I C O

A palavra episteme em grego significa

conhecimento verdadeiro do tipo

científico, como vimos na Aula 10. O epistemológico

significa o que trabalha com o conhecimento.

IN F R A-E S T R U T U R A/

S U P E RE S T R U T U R A

Conceitos que explicam a estrutura

das sociedades, na teoria marxista.

A infraestrutura é o conjunto das relações

de produção que corresponde a uma

etapa das forças produtivas de uma

sociedade, ou seja, é a estrutura econômica

de uma sociedade. A superestrutura é

o conjunto político, jurídico, religioso,

científi co, artístico, educacional e

fi losófi co de uma determinada

sociedade.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1

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A ideologia dominante elabora os fundamentos e os objetivos de

como manter e expandir o seu domínio, enquanto as classes dominadas,

dependendo das condições objetivas, podem elaborar concepções que

questionam os fundamentos e objetivos traçados pela classe dominante

para manter o seu domínio numa determinada realidade social. Nesse

sentido, encontramos, numa determinada conjuntura social, ideologias

dominantes exercendo a função de direção e domínio e ideologias

dominadas que lutam para se impor. Por exemplo: atualmente, no

Brasil, podemos perceber o embate entre duas ideologias: a ideologia

de ocupação de terras, do Movimento dos Sem-Terra (MST) e a ideologia

do Incra. O aparato jurídico dá, freqüentemente, respaldo ao Incra e não

aos sem-terra, ou seja, o MST trabalha com uma ideologia que não é a

dominante e, por isso, luta para se impor perante a sociedade.

De acordo com Gramsci, sempre escolhemos uma concepção de

mundo para orientar a nossa ação. Essa escolha não é um fato puramente

intelectual, mas algo complexo, que implica uma opção política. A política é

um instrumento importante nas relações entre infra-estrutura e superestrutura,

porque é ela que permite a passagem da infra-estrutura para a superestrutura.

A verdade de uma ideologia está justamente na sua capacidade de mobilização

política e sua realização na História.

Dialogando com o pensamento de Gramsci, surge ALTHUSSER. Ele

propõe uma nova visão do “todo social” ou da formação social, criando a

METÁFORA DO EDIFÍCIO, comparando a sociedade a um edifício com seus pilares

e diferentes andares. Os pilares compõem a infra-estrutura e os andares

superiores, a superestrutura. A ideologia e a política são consideradas níveis

da superestrutura de uma formação social. Há uma relação hierárquica

entre os níveis, o econômico determina, em última instância, os níveis

político e ideológico. Mas é necessário lembrar que a superestrutura não

é simplesmente um refl exo da infra-estrutura, a primeira, na verdade, é a

condição necessária de existência da segunda.

Para Althusser, a ideologia é um nível importante à vida das

formações sociais e, em todo contexto histórico, a ideologia tem um

papel a desempenhar, porque as relações ideológicas ocultam as relações

reais de uma formação social, mas a ideologia não deve ser vista como

uma mera ilusão. Na verdade, a ideologia é uma relação vivida entre os

LO U I S AL T H U S S E R (1918-1990)

Filósofo francês, que segue a tendência marxista. Faz uma análise crítica da sociedade capitalista. Acredita que qualquer modo de produção precisa assegurar mecanismos para a sua reprodução, por isso cria os conceitos de Aparelhos Repressivos do Estado (ARE) e Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE).

A METÁFORA DO EDIFÍCIO de Althusser foi mencionada também na Aula 26.

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Page 320: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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homens e o seu mundo. Na ideologia os homens exprimem “a maneira

pela qual vivem a relação entre eles e suas condições de existência: isto

pressupõe tanto uma relação real como uma relação imaginária vivida”

(Da Ideologia, 1980, p. 111). A ideologia é uma representação da relação

imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência.

A função social da ideologia não é possibilitar um conhecimento

verdadeiro da estrutura social, mas inserir os sujeitos nas suas atividades

práticas que sustentam a estrutura social. Por isso, Althusser afi rma

que a ideologia oculta as contradições reais e reconstitui um discurso

imaginário que explica a realidade. A ideologia tem três funções: coesão,

inversão e mistifi cação.

Para explicar os mecanismos de reprodução na sociedade,

Althusser cria dois conceitos: Aparelhos Repressivos do Estado (ARE)

e Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Althusser acreditava que a

burguesia precisava de mecanismos para assegurar a estabilidade e

a continuação da dominação. As escolas, as igrejas, os meios de

informação (jornais, revistas, rádios, canais de televisão etc.), a família,

a cultura etc. são Aparelhos Ideológicos do Estado. Estes aparelhos têm

como função submeter as classes sociais dominadas ao poder da classe

dominante. Para Althusser, a ideologia está estreitamente vinculada ao

problema do poder do Estado e da dominação de classe. Sendo assim,

a ideologia, em Althusser, é unidimensional e sempre nos fará ver a

realidade social pela ótica dominante, ocultando as contradições da

realidade.

Observe que a concepção de ideologia de Althusser difere daquela

defendida por Gramsci. De acordo com Althusser, a ideologia oculta

as relações reais de uma formação social, por isso não possibilita o

conhecimento da realidade, enquanto em Gramsci a ideologia não deve

ser julgada de acordo com o critério de verdade ou falsidade, porque,

de acordo com a sua origem de classe, ela pode ocultar ou desvelar uma

determinada realidade, pois a ideologia é uma forma de conhecimento

do mundo que nasce no embate de diferentes classes sociais.

Como podemos constatar neste item, a ideologia é um conceito

fundamental para explicar que as idéias não são auto-sufi cientes e as suas

raízes estão em algum lugar. A questão de fundo da ideologia é saber qual

a relação efetiva que existe entre as idéias produzidas pelos homens e a

realidade social e histórica. A discussão sobre ideologia nos leva também

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Page 321: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1

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a discutir a consciência que temos da realidade que está à nossa volta.

Além disso, quando discutimos ideologia, somos levados a refl etir sobre

a dominação, a direção, ou seja, como as idéias de uma determinada

classe social dirigem um determinado contexto social e histórico e, por

isso, essa classe tem a direção da sociedade e o poder.

HEGEMONIA, PODER E EDUCAÇÃO

Toda prática educativa contém inevitavelmente uma dimensão

política.

Toda prática política também contém, por sua vez, inevitavelmente

uma dimensão educativa.

A educação é, assim, uma relação de hegemonia alicerçada... na

persuasão (consenso, compreensão).

DERMEVAL SAVIANI

O conceito de hegemonia foi utilizado

inicialmente por LÊNIN. Ao longo do processo

revolucionário que se instalou na Rússia, no

início do século XX, Lênin discute a questão

da liderança do proletariado, como essa classe

construiria mecanismos que possibilitassem

alcançar a direção do movimento revolucionário.

Com a vitória da Revolução Bolchevique,

em 1917, Lênin retoma a discussão sobre a

hegemonia do proletariado, refl etindo sobre

três aspectos: a direção de classe, a direção de classe que se exerce por

meio de uma política de alianças e a construção da hegemonia através

da luta entre classes.

A discussão sobre hegemonia gira em torno da questão do

domínio e da direção política num contexto social e histórico. Lênin

abre uma discussão fundamental para compreendermos a construção e

a consolidação do poder político. Devemos prestar atenção ao fato de

que Lênin e depois Gramsci não vão discutir somente o papel da classe

dominante, ou seja, da classe que atingiu a hegemonia e está no poder,

mas todo o processo de construção do poder político.

VL A D I M I R I L I C H LÊ N I N

(1870-1924)

Intelectual russo, fundou o comunismo bolchevista, o partido

comunista da URSS e o primeiro Estado

socialista do mundo. Foi um dos principais líderes da Revolução

Bolchevique de 1917, na Rússia.

SA V I A N I , DE R M E V A L

Onze teses sobre educação e política. In: Escola e Democracia. SP, Cortez e Autores Associados, 1984, pp. 92-93.

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Page 322: Apostila do CEDERJ - Fundamentos_da_Educação

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Gramsci vem retomar a discussão realizada por Lênin na obra

Cadernos do Cárcere. No fragmento 44 do Caderno 1, ele explica: “Podemos,

portanto, distinguir dois modos de dominação de classe: uma dominação

em que a organização ideológica complementa a força que domina, e uma

dominação-direção (hegemônica, nesse caso), que é acompa nhada de

consenso”. E complementa no Caderno 3, no fragmento 34, “se a classe

dominante perde o consenso, ela não é mais dirigente, mas exclusivamente

dominante, detentora da coerção pura”. Então, a hegemonia é ao mesmo

tempo o conjunto de domínio e direção exercido por uma classe social.

Assim, podemos perceber que para realizar a hegemonia é

necessário o consenso, o convencimento, e, portanto, a ideologia

é fundamental no processo de construção de hegemonia. Quando

uma classe social domina apenas na base da coerção, da repressão,

ela é dominante, mas não hegemônica. Por isso, Gramsci afirma:

“A hegemonia política pode e deve existir antes de se chegar ao governo;

não se deve contar somente com o poder e a força-material que ele dá,

para exercer a direção ou hegemonia política” (BUCCI-GLUCKSMANN

– op. cit., p. 87). Sendo assim, uma classe social pode chegar ao poder

como dirigente e dominante. A classe que pretende ser dirigente precisa

ter, além de uma direção política, uma direção intelectual e moral sobre

as demais. A discussão sobre hegemonia nos permite trabalhar com a

questão da direção cultural e política envolvendo as classes sociais de

um contexto social e histórico.

A luta pela hegemonia é fundamental porque permite a consolidação

do poder efetivo de uma classe social dentro de um determinado contexto

social e histórico. Devemos lembrar que a hegemonia é construída no

embate entre as diferentes classes sociais; há uma luta para que algumas

concepções de mundo prevaleçam, tornem-se consenso; por isso é

necessário saber a favor de quem e de quais interesses determinadas

idéias e valores são veiculados. Por exemplo: muitos afi rmam que “a

mulher é frágil, sensível e intuitiva”. Será que podemos generalizar? Em

todas as culturas as mulheres são assim? Percebemos que nessa frase são

veiculados valores que expressam um determinado interesse cultural.

Este trecho da obra Cadernos do Cárcere,

de Gramsci, está em Buci-Glucksmann,

Christinne. Gramsci e o Estado. RJ, Paz e

Terra, 1980, p.80.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1

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Como vimos anteriormente, a hegemonia trabalha com a persuasão,

por isso é necessário estabelecer mecanismos e estratégias na sociedade que

permitam construir a hegemonia. A classe dominante tende a imprimir uma

direção cultural e ideológica no contexto sociocultural; seus intelectuais

elaboram um sistema de idéias que tem um forte poder de convencimento;

assim, é fundamental que as classes dominadas organizem e sistematizem a

sua visão de mundo para que não permaneçam desestruturadas e passivas.

Elas devem lutar para construir uma nova hegemonia.

De acordo com Gramsci, há dois aspectos fundamentais para

a mudança qualitativa do poder: a criação de um novo senso comum

e a elevação cultural das massas. É necessária uma profunda reforma

intelectual e moral, ou seja, uma revolução cultural para que se entenda

a política sob novos parâmetros.

Os meios de comunicação, a instância jurídica, os partidos

políticos, a escola, entre outras instâncias, são fundamentais para

consolidar a hegemonia de uma classe social. A escola, para Gramsci,

será um dos principais aparelhos de hegemonia na sociedade capitalista

contemporânea: “A cultura é um privilégio. A escola é um privilégio.

E nós não queremos que seja assim. Todos os jovens deveriam ser iguais

perante a cultura.” Assim, não devemos subestimar o papel da educação

na construção de uma hegemonia e de um novo tipo de poder, pois na

escola são veiculados valores, crenças e normas que formam aquele que

atuará num determinado contexto social e histórico. Sabemos que as

escolas, os sindicatos, as organizações sociais, os partidos são instâncias

importantes para construir uma nova consciência social.

A escola deve superar a dicotomia entre trabalho intelectual e

trabalho social, cultura erudita e cultura popular para construir uma

democracia real da cultura e do saber. Para Gramsci, a escola deve ser

única, ou melhor, unitária, e o seu princípio norteador deve ser o trabalho.

Ela precisa fortalecer a criatividade, a autodisciplina e a autonomia.

No processo educativo, o professor tem um papel fundamental, pois tem

como função possibilitar a socialização do saber. A escola e as demais

instâncias sociais podem abrir caminho para a construção de uma nova

hegemonia, uma nova direção cultural e política da sociedade, mesmo

porque devemos nos lembrar sempre destas palavras de Paulo Freire:

“Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social

de que tomamos parte” (1995, p. 79).

Bucci-Glucksmann, Christinne. Gramsci e o Estado. RJ, Paz e Terra, 1980, p.89.

Freire, Paulo. Política e Educação. SP, Cortez, 1995.

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Analisamos, nesta aula, os conceitos de ideologia e hegemonia, mostrando a

importância desses conceitos para a refl exão sobre a educação. Discutimos o

conceito de ideologia de acordo com os seguintes autores: Destutt de Tracy,

Comte, Durkheim, Marx, Gramsci e Althusser. Constatamos que o estudo sobre

a ideologia tem como eixos fundamentais a relação entre as idéias produzidas

pelos homens e o contexto social e histórico e o grau de consciência que temos da

realidade que está a nossa volta. O conceito de hegemonia versa sobre a questão

da direção e do domínio político num determinado contexto social e histórico;

para discutir esta questão, nos baseamos nos pensamentos de Lênin e Gramsci.

Concluímos que na construção e manutenção da hegemonia está presente uma

determinada ideologia e o processo educacional é fundamental para manter ou

construir uma nova hegemonia.

EXERCÍCIOS

IDEOLOGIA

(Cazuza e Frejat)

Meu partido é um coração partido

E as ilusões estão todas perdidas

Os meus sonhos foram todos vendidos

Tão barato que eu nem acredito

Ah! Eu nem acredito

E aquele garoto que ia mudar o mundo

Mudar o mundo

Freqüenta agora as festas do grand monde

Meus heróis morreram de overdose

Meus inimigos estão no poder estribilho

Ideologia, eu quero uma pra viver

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1

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O meu prazer agora é risco de vida

Meu sexo and drugs não tem nenhum rock and roll

Eu vou pagar a conta de um analista

Para nunca mais ter que saber quem eu sou

Saber quem eu sou

Pois aquele garoto que ia mudar o mundo

Mudar o mundo

Agora assiste a tudo em cima do muro

1. Descreva o contexto social narrado na música acima e mostre a ideologia que

o sustenta.

2. Qual o signifi cado que os compositores dão para o termo ideologia?

3. Mostre a importância da educação para a manutenção ou transformação da

hegemonia.

AUTO-AVALIAÇÃO

Você conseguiu compreender os diferentes modos de conceituar a ideologia e

percebeu que a discussão central sobre este conceito gira em torno da questão da

relação entre a produção das idéias pelos homens e o contexto social e histórico?

Observou que quando discutimos ideologia estamos pensando no grau de

consciência que os homens têm de sua realidade social e histórica? Entendeu

que o conceito de hegemonia refere-se à questão da direção e domínio político?

Percebeu a importância da educação para o processo de hegemonia? Então, você

está apto a prosseguir a discussão sobre a relação entre hegemonia, ideologia e

poder na educação, na Aula 28.

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28A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2 a

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a

Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Examinar as dimensões do processo ideológico e as suas relações com a legitimidade do discurso social e do contradiscurso.

• Visitar o conceito de hegemonia ideológica em suas relações com as dimensões econômicas, políticas e morais.

OBJETIVOS

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2

(...) los intelectuales pueden confrontar la microfísica del poder y

el trabajo, construyendo esferas públicas de oposición conectadas

a la producción de la vida cotidiana y a más amplias esferas

institucionales de poder.

Peter MacLaren

Esta Estação é um desdobramento da Estação anterior (Aula 27) e representa

um momento específi co para refl etir sobre a complexidade do fenômeno

ideológico e de sua materialidade no campo educativo. Insistimos mais uma

vez no tratamento das questões ideológicas porque nossa preocupação como

educadores é o desenvolvimento de uma modalidade de pensamento sobre

a construção e a defi nição das práticas educativas a partir das formas sociais

concretas de nossa existência cotidiana, de forma que o ensino seja concebido

como um espaço cultural e político que encarna um projeto de regulação e

transformação.

O conceito de ideologia é talvez um dos conceitos mais polêmicos

no âmbito das Ciências Sociais. Este termo foi criado imediatamente após

a Revolução Francesa, em 1797. O seu criador foi Antoine DESTUTT DE

TRACY, um dos responsáveis pelo Instituto de França, entidade que tinha

como missão difundir os ideais do Iluminismo. Na sua obra Eléments

d’Ideologie, escrita entre 1801 e 1815, defende a necessidade de uma

nova ciência das idéias, uma ideo-logia, que seria a base de todas as

outras ciências. A necessidade deste novo conceito anda a par com a

necessidade de explicar a forma como se constroem as nossas idéias.

Perante concepções inatistas das idéias, como as idéias que a religião,

principalmente, vinha defendendo, o conceito de ideologia propunha-

se, agora, facultar outro tipo de explicações, do tipo não determinista

(LÖWY, 1989).

Antoine Destutt de Tracy defende que as nossas idéias se baseiam

em sensações físicas, pelo que podem ser estudadas de forma empírica,

com os métodos próprios da ciência, com o que as parcialidades e as

idéias preconcebidas poderiam ser eliminadas. É através da investigação

que podemos fi car a saber que essas idéias têm origem nas necessidades

e nos desejos humanos. Essas necessidades e, conseqüentemente, essas

idéias deverão constituir o fundamento da estrutura das leis reguladoras

da sociedade.

DESTUTT DE TRACY (1754-1836)

Era um nobre ofi cial da Corte Francesa que aderiu à Revolução. Criador da palavra “ideologia”. O que ele denominou inicialmente de ciências ideológicas posteriormente foi denominado de ciências morais e políticas e atualmente de ciências humanas.

INTRODUÇÃO

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Embora no princípio o próprio Napoleão Bonaparte apareça como

patrocinador do Instituto de França, ele considera de modo pejorativo a

nova ciência da ideologia. Os ideólogos, segundo Napoleão, são todos

os intelectuais que não dão aval a seus planos políticos e que carecem de

sentido prático e realista, ou seja, ideologia são as opiniões defendidas

pelos adversários.

A filosofia alemã vai, também ela, dedicar-se a aprofundar

amplamente este conceito. HEGEL (1990) explica como são relativas as

idéias dominantes numa determinada época, porquanto dependem de

situações históricas e, tal como estas, estão sujeitas a modifi cações. Marx

(1984), como discípulo de Hegel, vai colocar uma ênfase especial em

demonstrar que as idéias sociais e políticas se transformam, dependendo

das dinâmicas que promovem as relações entre as classes sociais de

cada país.

Para Marx, a ideologia é um sistema elaborado de representações

ou de idéias da vida em sociedade que se manifesta de forma invertida.

As idéias da vida em sociedade representam a consciência dos homens.

Porém, essas idéias aparecem invertidas, de cabeça para baixo, porque

elas não representam a consciência da maioria das pessoas, mas de uma

classe social predominante. Dessa forma, as relações dos homens com o

mundo aparecem como ilusão, como mentira, como sonho, porque elas

estão em oposição ao mundo real, às condições materiais da vida.

Com muita freqüência, pensa-se que a consciência do homem é

superior e anterior à realidade que busca conhecer. Nesse sentido, as

idéias moveriam o mundo e a História poderia ser explicada pela ação

dos grandes homens. Marx inverte o processo, mostrando que as idéias

surgem a partir das condições históricas reais vividas pelos homens ao

estabelecerem as relações de produção, isto é, consistem na maneira pela

qual eles se organizam por meio da divisão social do trabalho. Assim, toda

atividade intelectual (mito, religião, moral, fi losofi a, literatura, ciência

etc.) passa a ser compreendida como derivada das condições materiais

de produção da existência.

Para Marx a ideologia vincula-se ao conceito de consciência falsa

e de alienação. A consciência falsa não é um processo inconsciente, mas,

ao contrário, o pensador realiza conscientemente. O que ocorre, no

entanto, é que o sujeito desconhece as verdadeiras forças motrizes que

põem em ação o seu pensamento. Por isso é que tal processo é por ele

denominado de ideológico.

HEGEL, F.

(1770-1831)

É considerado o mais importante fi lósofo do

idealismo alemão. Suas principais obras são:

Propedêutica fi losófi ca, Fenomenologia do

espírito e Princípios de Filosofi a do Direito.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2

Chauí (1985), baseada em Marx, defi niu o conceito de ideologia

da seguinte forma:

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente

de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de

conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o

que devem pensar e como devem pensar; o que devem valorizar e

como devem valorizar; o que devem sentir e como devem sentir;

o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo

explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos)

de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos

membros de uma sociedade, dividida em classes, uma explicação

racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais

atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir

das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da

ideologia é a de apagar as diferenças entre as classes e de fornecer

aos membros da sociedade o sentimento da identidade social,

encontrando certos referenciais, identifi cadores de todos e para

todos como por exemplo: a humanidade, a liberdade, a igualdade,

a nação ou o Estado.

Em síntese, a ideologia tem aqui o sentido de mascaramento da

realidade ou deformação da realidade. Nem sempre o trabalhador percebe

com clareza a situação em que se encontra, e é a ideologia que faz com

que não perceba a exploração de que é vítima. Como um conjunto de

representações, idéias e normas de conduta, a ideologia determina, a

partir dos interesses da classe dominante, o que o homem deve pensar,

sentir e agir.

A defi nição da ideologia fez correr rios de tinta desde Destutt

de Tracy. Quase todos os fi lósofos, em maior ou menor grau, se têm

esforçado por limar ou elaborar uma defi nição de ideologia.

Este conceito vai receber, desde o início, signifi cações muito

diversas, desde os que lhe conferem uma valoração negativa, capaz de

deformar a realidade e de criar uma falsa consciência, até aos que lhe

atribuem um signifi cado mais positivo.

Como você já percebeu na Aula 27, a função da ideologia é manter

e justifi car as estruturas sociais existentes.

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A função da ideologia na sociedade humana centra-se principalmente

na constituição e aperfeiçoamento de formas sob as quais as pessoas vivem

e constroem signifi cativamente a sua realidade, os seus sonhos, desejos

e aspirações.

As ideologias, segundo Therborn (1997), submetem e qualifi cam

os indivíduos, dizendo-lhes, fazendo-lhes reconhecer e relacionando-

os com:

1. o que existe, e o seu corolário, o que não existe; quer dizer,

contribuem para nos tornar conscientes da idéia de quem somos,

do que é o mundo e de como são a natureza, a sociedade, os

homens e as mulheres;

2. o que é bom, correto, justo, belo, atraente, agradável, assim

como todos os seus contrários. Isto ajuda, por conseguinte, na

normalização dos nossos desejos e aspirações;

3. o que é possível e impossível. Conhecendo ambas as dimensões,

defi nimos as possibilidades e o sentido da mudança, assim como

as suas conseqüências. As nossas esperanças, ambições e temores

fi cam assim contidos dentro dos limites das possibilidades

concebíveis.

O discurso da manutenção de uma sociedade, de defesa da ordem

estabelecida, joga, portanto, com estas três dimensões do processo ideológico.

Em função delas, os intelectuais orgânicos que estão a serviço de determinado

modelo social podem elaborar diversas modalidades de discurso:

a) Em primeiro lugar, podem centrar-se em sublinhar unicamente

as parcelas ou traços existentes daquela realidade que reforça

os interesses do poder dominante.

b) Dado que, muitas vezes, a realidade é difícil de ocultar, pode

optar-se por uma segunda via, a de disfarçar essa realidade,

rotulando-a de tal modo que proporcione uma razão explicativa

segundo a qual a culpa será unicamente da mesma realidade.

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c) Uma terceira opção consiste em defender a impossibilidade de

uma mudança diferente da projetada, ou em procurar convencer

a sociedade de que, de momento, não é possível modifi car esse

estado de coisas, numa tentativa de arredar a solução dos

problemas para um futuro inexeqüível.

A ideologia traduz, em nosso entender, uma visão do mundo,

uma perspectiva sobre as coisas, acontecimentos e comportamentos,

mas estamos ao mesmo tempo conscientes de que esta concepção do

mundo é uma construção sócio-histórica (BERGER, 1990), sendo,

por conseguinte, relativa, parcial, e necessitando de uma reelaboração

permanente para evitar cair num absolutismo que impeça a refl exão e

favoreça a dominação dos homens.

Todas as fi losofi as e todas as sociedades democráticas precisam

ter consciência de que existem ideologias e de que é necessário conhecer

como explicam a realidade. É também conveniente saber que cada

ideologia tem, por assim dizer, as suas liturgias, as suas técnicas e as

suas táticas.

Esta concepção do mundo traduzida pela ideologia dota os

cidadãos que dela compartilham de um sentido de pertença e de

identidade, torna-os conscientes das possibilidades e limitações

de seus atos, estrutura e normaliza os seus desejos e, ao mesmo tempo,

proporciona uma explicação das transformações e das conseqüências das

mudanças. A ideologia implica assunções sobre o próprio ser individual

e a sua relação com outros agrupamentos humanos e com a sociedade

em geral.

Tal signifi cado do conceito de ideologia permite, segundo Kemmis

(1998), a criação de estruturas partilhadas de interpretação, valor e

signifi cação que, no caso de não se ter consciência do seu relativismo,

da relação dialética entre a consciência individual e as estruturas sociais,

podem funcionar como cosmovisões criadoras de condutas irracionais e

promotoras de alienação. Isto quer dizer que cada ideologia pode chegar

inclusivamente a criar entre os membros que a partilham uma espécie

de senso comum que, por sua vez, tem uma tradução na prática através

dos seus comportamentos individuais e coletivos.

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A função da ideologia é ocultar as diferenças de classe, facilitando

a continuidade de dominação de uma classe sobre a outra. A ideologia

assegura a coesão entre os homens e a aceitação sem críticas das tarefas

mais penosas e pouco recompensadoras, em nome do dever moral ou

simplesmente como decorrentes da ordem natural das coisas.

Um exemplo comum de ideologia é a frase “o trabalho dignifi ca

o homem”. Não queremos dizer que a afi rmação seja falsa, pois, de

fato, o trabalho faz com que o homem se torne homem. A frase torna-se

ideológica quando considerada independentemente do contexto histórico

concreto em que os homens trabalham, o que tende a mascarar a situação

de exploração.

Torna-se ideológica quando se apresenta de forma abstrata,

universal ou com lacunas, ou seja, “vazios”, onde alguma coisa se acha

oculta. Explicando melhor:

a) trata-se de uma abstração quando o trabalho é apresentado

como sendo a idéia de trabalho, independentemente da análise

histórica concreta das condições em que certos tipos de trabalho

brutalizam o homem ao invés de enobrecê-lo;

b) trata-se de um conceito universal quando é considerado

indistintamente para todos os homens, descuidando-se de que

as relações de dominação existentes estabelecem diferenças de

fato entre os diversos membros da sociedade;

c) existe uma lacuna, isto é, um ocultamento, pela maneira como

surge o trabalho assalariado. Descobrimos a mais-valia, ou seja,

o trabalho não pago pelo empregador. Esse ocultamento, essa

lacuna e a mais-valia levam o homem à alienação e à diferença

de condições de vida das pessoas na comunidade;

d) é caracterizada pela inversão que faz sobre a realidade. Exemplo:

se o fi lho de um operário não consegue melhorar o padrão de

vida, isto é creditado à sua incompetência, quando, na verdade,

ela é o resultado daquilo que lhe foi negado pela sociedade.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2

Outra inversão própria da ideologia é a maneira pela qual se

estabelecem as relações entre teoria e prática, colocando a teoria como

superior à prática, porque a antecede e a “ilumina”. Essa divisão

hierárquica entre o pensar e o agir encontra-se também na divisão da

sociedade, que tem um segmento dedicado ao trabalho intelectual e outro

ao manual. Uma classe “sabe pensar” (controla as decisões e manda);

a outra “não sabe pensar” (executa e obedece).

Neste sentido, cabe à crítica da ideologia desmascarar os processos

de formação de idéias e de pensamentos mostrando as suas raízes e causas

histórico-sociais. A crítica da ideologia nada mais seria do que o processo

pelo qual se passaria da consciência falsa para a consciência verdadeira,

isto é, o reconhecimento de que a consciência é resultante das condições

histórico-sociais objetivas da existência dos homens. Do ponto de vista

do conhecimento, a ideologia seria a forma de uma consciência falsa que

possibilitaria a compreensão do processo de formação de juízos falsos ou

incorretos. É importante frisar que não se trata de consciência individual

e sim de consciência de classe.

Outro ponto importante a ser considerado na questão do debate

ideológico é a crescente signifi cação política que o termo adquire na

sociedade atual e a afi rmação subseqüente de que todas as ciências humanas

e sociais não são neutras, mas portadoras de uma certa visão do mundo

que se organiza em torno das ideologias, uma vez que seus conhecimentos

são dependentes das condições sociais a que estão submetidas.

Gramsci (1990) utiliza o conceito de hegemonia ideológica para

aprofundar este último aspecto, para compreender a unidade existente em

cada agrupamento social concreto. Considera que a ideologia dominante

numa situação histórica e social pode organizar os hábitos e signifi cados

do chamado senso comum. O que quer dizer que a ideologia impõe aos

seus seguidores, de maneira sutil, signifi cados e possibilidades de ação,

de tal modo que até mesmo as formas de organização e de atuação

de uma sociedade que contribuem para manter situações de injustiça

chegam a ser entendidas como inevitáveis, naturais, sem possibilidade

de modifi cação.

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O domínio de uma classe sobre outra gera-se de uma maneira

mais efi caz quando é levado a cabo através de um processo de hegemonia

ideológica, mediante a criação dessa consciência e de um consentimento

espontâneo nos membros da classe social submetida. A classe dominadora

serve-se, para isso, do apoio que lhe confere o seu controle do Estado.

O objetivo da hegemonia é reproduzir no plano ideológico as condições

para a dominação de classe e para a perpetuação das relações sociais de

produção e distribuição.

Gramsci distingue três momentos no desenvolvimento da

hegemonia ideológica:

1. o primeiro é a fase estritamente econômica, na qual os

intelectuais orgânicos expõem os interesses da sua classe;

2. no segundo momento, o político-econômico, a totalidade das

classes, mais ou menos, apóia as exigências da economia;

3. e o terceiro é a etapa hegemônica, que implica que os objetivos

econômicos, políticos e morais de uma classe concreta sejam

assumidos pelas classes restantes e grupos sociais utilizados

pelo Estado para determinar modelos de atuação e de relações

de produção e distribuição consonantes com esses objetivos.

O conceito de hegemonia ideológica não signifi ca que as classes

e grupos sociais não dominantes sejam totalmente manipulados, sem

possibilidade de gerar uma contra-hegemonia. Antes, pelo contrário, a

hegemonia pode ser contida e rejeitada, tal como sublinha Gramsci, por

meio das tendências compensadoras resultantes da posição estrutural

da classe operária no processo de trabalho e nos demais processos.

As contradições capazes de pôr em causa esse senso comum surgem,

fundamentalmente, na medida em que as relações sociais que se

estabelecem no interior das instituições, nas quais participam os cidadãos,

são muito diferentes das existentes nos locais de trabalho.

Averiguar como trabalham as ideologias em determinada sociedade

e num momento histórico concreto requer que as contemplemos como

processos sociais em curso. O estudo das formas de atuação ideológica,

ao oferecer-nos diferentes informações acerca de como é e de que

modo funciona o mundo no qual nos desenvolvemos, quem, por que e

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2

como somos, até que ponto e de que maneira podemos transformar a

realidade, poderá revelar a existência de diversos modos alternativos de

compreender e atuar; assim como também poderá dar-nos a compreensão

dos confl itos gerados entre elas quando as suas divergências são mais

ou menos grandes.

A ideologia que, num momento histórico concreto, funciona como

hegemônica vai ser gradualmente reformulada ou substituída através

da confrontação com outras tradições intelectuais. A confrontação

entre ideologias é, por conseguinte, uma realidade. Mas, por seu turno,

cada uma delas sofre transformações em algum grau na medida em que

coexistem, competem e se confrontam umas com as outras; além disso,

vão também sobrepor-se, infl uenciar-se e contaminar-se umas às outras,

especialmente nas sociedades abertas e complexas dos nossos dias.

As ideologias constroem-se, funcionam e transmitem-se em

situações sociais concretas, circunscritas a espaços e a tempos específi cos,

mediante determinadas práticas e meios de trabalho de comunicação.

É assim que se pode ver o seu grau de efi cácia e a necessidade ou não da

sua alteração, transformação ou substituição.

O fato de as sociedades se caracterizarem por determinada

ideologia predominante, por uma hegemonia ideológica, torna patente

o resultado de toda uma série de batalhas travadas entre as diferentes

classes ou grupos sociais em momentos cruciais de crise e contradição.

A sua reprodução subseqüente será fruto, em primeiro lugar, da adequada

reprodução dessa ideologia mediante discursos textuais e simbólicos,

protegidos, por sua vez, por todo um conjunto organizado de enunciados,

proposições, classifi cações, regras e métodos que procuram impedir

possíveis desvios, e, em segundo lugar, das suas práticas e formas não

discursivas coerentes com o conjunto já referido.

Em todas as sociedades, as classes sociais e/ou grupos que detêm

o poder procuram impor e legitimar o seu domínio e organizar a sua

reprodução através desses dois meios, nos diferentes cenários em que

se desenvolve a atividade humana, contando para isso com a ajuda

imprescindível do Estado.

Um desses cenários é a instituição escolar, instituição que Althusser

(1989) denominou, conforme já estudado em aulas anteriores, de

Aparelho Ideológico de Estado, afi rmando que desempenha, em todos os

seus aspectos, a função dominante dentre os outros aparelhos ideológicos

de Estado.

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O termo ideologia foi criado por Destutt de Tracy na sua obra Eléments d’Ideologie.

Nessa obra, defende a necessidade de uma ciência das idéias.

Para Marx, o conceito de ideologia vincula-se ao conceito de consciência falsa e

de alienação e constitui um sistema elaborado de representações ou de idéias da

vida em sociedade que se manifesta de forma invertida.

As ideologias submetem e qualifi cam os indivíduos, relacionando-os com o que

existe e o que não existe, com o que é bom, correto, justo e com o que é possível

e o que é impossível.

Cabe à crítica da ideologia desmascarar os processos de formação de idéias e de

pensamentos, mostrando as suas raízes e causas histórico-sociais.

Para Gramsci, o conceito de hegemonia ideológica possui três momentos: o

econômico, o político-econômico e os objetivos políticos, econômicos e morais.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2

EXERCÍCIOS

1. Como surge o conceito de ideologia?

2. Por que as idéias da vida em sociedade, que representam a consciência do

homem, aparecem de forma invertida?

3. Comente o conceito de ideologia elaborado por Chauí (1985).

4. Cite uma função da ideologia.

5. Qual é o papel da crítica da ideologia?

6. Comente o conceito de hegemonia ideológica elaborado por Gramsci.

AUTO-AVALIAÇÃO

É importante que você consiga fazer todo o exercício sem manifestar difi culdade

alguma, pois tal empreendimento pode sinalizar a garantia para prosseguir viagem

até a próxima Estação. Todavia, se aparecer alguma difi culdade, é importante

refazer a leitura atenta desta aula, tentando destacar os principais aspectos por ela

abordados. Lembre-se de que as três primeiras questões do exercício referem-se ao

conceito de ideologia. A quarta é um desdobramento do conceito de ideologia. Já

a quinta questão destaca o aspecto crítico atribuído à ideologia e a última questão,

também de caráter conceitual, refere-se ao conceito de hegemonia ideológica.

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A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana

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OBJETIVOAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:

• Rever concepções, conceitos e noções estudados nas aulas anteriores, dedicadas a reflexões sobre a escola, o Estado e a sociedade e às relações estabelecidas entre eles.

Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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INTRODUÇÃO A igualdade de oportunidades manifesta-se pelo direito à educação e pela continuidade do sistema de educação, organizado de forma a que todos, em igualdade de condições, possam dele participar e nele continuar até os níveis mais altos (TEIXEIRA, 1977, p. 179).

Até aqui, nesta viagem pela “Terra dos Fundamentos”, quando

olhamos através das janelas, nosso olhar tem repousado em campos

cultivados, pastagens e em pequenas cidades e vilas. No trecho que

estamos percorrendo hoje, esse cenário muda radicalmente: estamos

atravessando uma grande cidade.

Veja, caro aluno, quantos prédios imensos; quantas fábricas,

lojas comerciais e igrejas. Observe as imensas avenidas asfaltadas e o

emaranhado de ruas, que cruzamos facilmente em nosso trem, muitas vezes

livres do tráfego pesado e dos engarrafamentos pela utilização de viadutos

e túneis que permitem ao nosso trem de ferro a passagem livre.

Esse cenário vem bem a calhar para a aula de hoje. Nesta aula-

síntese, vamos abordar as seis últimas aulas que você estudou, dedicadas

fundamentalmente a refl etir sobre a escola, o Estado, a sociedade e as

relações entre eles.

Uma grande cidade, esse imenso conglomerado urbano, é um

fenômeno relativamente recente; como fenômeno generalizado, data do

século XX, especialmente a partir de sua segunda década. Isto é verdade,

inclusive aqui no Brasil.

Os grandes prédios industriais e comerciais que vemos através

das janelas de nosso trem são as instituições que expressam a maneira

moderna de conviver e, sobretudo, de produzir e consumir. Para tanto, a

sociedade criou as instituições e as organizações. E criou, vale acentuar, o

Estado e o governo, para organizar e gerir as relações dos cidadãos entre

si, destes com as próprias instituições, com o aparato produtivo, com

as instituições culturais, judiciais, políticas etc. Dentre tais instituições,

interessa-nos, particularmente, como professores, estudar a Escola e suas

relações com todas as demais instituições.

Toda essa gama de informações é fundamental para você, caro

aluno, que atuará como docente no Ensino Médio, convivendo com

alunos que estão recebendo parte desses conhecimentos nas aulas de

Sociologia, Antropologia, Política e Filosofi a.

Já que estamos

falando em

instituições,

aproveite para reler

a Aula 18, que

trata do “saber

instituído” e do

“saber instituinte”.

!

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Para você ter idéia da importância destas aulas, saiba que os seus

alunos estarão refl etindo acerca da relação entre indivíduos e sociedade,

a partir da infl uência da ação individual sobre os processos sociais, assim

como sobre o processo inverso: a dinâmica social, pautada em processos

que envolvem a manutenção da ordem ou a mudança cultural.

Como dialogar, com seus alunos do Ensino Médio, sem respaldo

teórico?

O trabalho do professor dessa etapa, assim como das demais, deve

ser pautado numa visão interdisciplinar. Não se ensina Física, Biologia,

Matemática ou outra disciplina sem uma leitura do mundo, da realidade

que nos cerca.

A tarefa do educador comprometido vai além da simples

transmissão do saber acumulado. Ele é co-responsável pela construção

da identidade social e política do aluno, na medida em que favorece a

formação do cidadão pleno, atuando, efetivamente, de modo a obter uma

reciprocidade de direitos e deveres entre o poder público e o cidadão, e

entre os diferentes grupos que compõem a sociedade.

Portanto, estude os temas contidos na etapa do nosso curso

sintetizada na presente aula, pois eles propiciarão, com certeza, um dos

canais de diálogo entre você e o seu aluno do Ensino Médio.

Na primeira das aulas aqui sintetizadas, caro aluno, você começou

estudando as relações entre a sociedade e a escola de um ponto de vista

tradicional. Segundo tal visão, existe um indivíduo universal, que deve ser

submetido, pela Educação, aos padrões igualmente universais, derivados

da cultura, da posição social etc; um indivíduo cuja socialização, isto

é, o ingresso na sociedade dependerá da assimilação de tais padrões e

regras universal e formalmente estabelecidos. Isto implica, você pode

perceber, um “desenraizamento” desse indivíduo em relação às condições

concretas socioculturais em que vive, bem como às condições e aos

momentos históricos.

Em seguida, e em contraponto à visão tradicional, é apresentado

o ponto de vista marxista. Este enfatiza o condicionamento histórico e

social dos indivíduos, agrupamentos humanos e instituições; a divisão

da sociedade em classes sociais, decorrentes do modo de produção

capitalista, é a chave para que se entendam as relações sociais; a ideologia,

pode-se afi rmar, é o elemento catalisador de relações de dominação

assentadas na alienação.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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Diferentemente da visão tradicional, tal abordagem não

crê na possibilidade de que os confl itos sejam resolvidos mediante

regras e padrões universais; ao contrário, a solução só pode advir de

transformações na própria estrutura social e na adoção de um outro

modo de produção, fundado numa visão socialista do mundo.

A sociedade tem um problema de natureza prática: é necessário,

além de estabelecer, também reproduzir as condições de estruturação

e de funcionamento da própria sociedade, em termos produtivos,

socioculturais, políticos, fi losófi cos etc. Esse papel é confi ado à Escola,

a qual, segundo a crítica marxista da sociedade capitalista e da economia

política liberal, transformou-se no que o fi lósofo Althusser denominou

“um aparelho ideológico do Estado” capitalista.

Nessa aula, prezado aluno, você pôde aprender sobre essa

denominada “Teoria da Reprodução”, que, em certo momento,

foi predominante nas análises críticas da Escola e dos fenômenos

educacionais em geral.

A aula levou você a refl etir sobre o fato de que não há como estudar

o sistema educacional sem estudar o funcionamento do Governo e das

políticas deste para a Educação, o que remete à necessidade do estudo do

próprio Estado, sua formação, funcionamento e propósitos. Isto inclui

a necessidade de compreender a cidadania como participação política.

Esse conhecimento que você acaba de receber vai permitir que, nas suas

aulas do segundo segmento da Escola Fundamental e no Ensino Médio,

você possa conscientizar os seus alunos acerca do exercício de direitos

e deveres políticos, civis e sociais, adotando atitudes de solidariedade,

cooperação e repúdio às injustiças sociais, respeitando o Outro e exigindo

para si o mesmo respeito.

Em seguida, a aula examinou o tipo de Educação que é oferecido

às classes desfavorecidas economicamente. Isso fi cou bem ilustrado com

a história da carta enviada, em 1700, por índios norte-americanos ao

governo daquele país, a propósito do convite feito para que enviassem

seus fi lhos à escola.

Na aula seguinte, prezado aluno, você continuou estudando as

relações entre a escola, o Estado e a sociedade, só que, agora, do ponto

de vista da Psicologia, no que diz respeito a programas educacionais e às

questões envolvendo a aprendizagem e aos estereótipos que a envolvem.

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A aula começou por referir-se à herança recebida pelas teorias

da aprendizagem, oriundas das Ciências Biológicas do século XIX, bem

como da Psicologia e da Pedagogia do início do século XX, afi nadas com

ideais liberais democráticos. Isso resultou nas inúmeras tentativas de

medir as aptidões e capacidades dos alunos, muitas delas levadas a efeito

por educadores humanistas que, embora bem-intencionados, acabaram

ajudando a reforçar uma ordem política e socioeconômica capitalista, cujo

discurso de igualdade e premiação do “mérito” apoiava-se, não obstante,

numa sociedade estruturalmente injusta. As difi culdades resultantes dessa

ordem social e econômica acabavam por ser justifi cadas em termos de

diferenças e incapacidades individuais, com o auxílio da Psicologia.

Nas três primeiras décadas do século XX, seguiu-se, nos meios

educativos, um grande esforço para identifi car alunos sub e superdotados,

por intermédio dos cada vez mais sofi sticados e disseminados testes de

inteligência e de aptidão.

Você viu em seguida, nessa aula, a evolução na abordagem e na

terminologia adotadas em relação aos alunos e à sua aprendizagem. Sobre

isso, na aula, foram sendo apresentados conceitos como “aluno anormal”,

“criança-problema”, “higiene mental escolar” e “desajustamentos

infantis”, até culminar com idéias como “classes fracas” e, muito depois,

a durante muito tempo utilizada denominação “classes especiais”.

A seguir, você pôde ver as referências feitas à substituição paulatina

do conceito de “raça” pelo de “cultura”, e de como a Psicologia Cultural,

assimilando idéias oriundas da Antropologia Cultural, cooptada pela

visão da cultura dominante, passou a trabalhar com concepções que

consideravam “atrasados”, “rudes” ou “primitivos” aqueles grupos que

não participavam dessa cultura hegemônica. Como conseqüência, foram

postas em prática noções como as de “culturas inferiores ou diferentes”

e de “grupos familiares patológicos”.

Em outra passagem importante, a aula tratou da denominada

“teoria da carência cultural”, uma das várias abordagens que revestiram

de fundamentação científi ca discursos ideológicos que acabavam por

atingir as camadas mais pobres da população e justifi car rotulações como

a de “inferioridade”, que supostamente explicariam o fraco desempenho,

causado em última análise, por privação, carência ou defi ciência cultural,

ou pela simples ausência de cultura.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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Partindo dessa visão oriunda da Psicologia Diferencial norte-

americana, você pôde estudar, prezado aluno, os refl exos desse tipo de

abordagem nos programas de Educação compensatória implementados

no Brasil nos anos 80, visando a preparar as crianças para a escola e

evitar futuros problemas de aprendizagem e de adaptação.

Em seguida, a aula tratou da introdução, no cenário educacional

brasileiro, dos fundamentos das teorias crítico-reprodutivistas, bem como

da visão que concebe a denominada “dominação cultural”.

No rastro das teorias que têm por base a “dominação”, foram

sendo levadas a efeito ações, no âmbito da Educação, em que a cultura

da maioria foi sendo inculcada nas minorias, bem como impostos valores

dos “bem-sucedidos” aos “malsucedidos”.

Tais teorias, como você viu nessa aula, acabaram pondo a

Psicologia e a Pedagogia a serviço de visões discriminatórias em relação

às classes desfavorecidas da população, com suas crianças tachadas, na

escola, de “rebeldes”, “malcriadas”, “carentes de afeto”, “apáticas”,

“ladras”, “doentes”, “sujas” e “famintas”, sendo suas famílias rotuladas

como “desestruturadas”, “ignorantes” e “desinteressadas”.

A aula apresentou ainda outras visões, que representam avanços

consideráveis nessas abordagens acerca das teorias da aprendizagem, e

de a ação ser desenvolvida pelos professores, com respaldo na Psicologia.

Você deve se lembrar das duas últimas concepções apresentadas: a de

Piaget e a de Vygotsky.

Piaget, caro aluno, é muito justamente uma referência obrigatória

para educadores e psicólogos envolvidos com a Educação. A aula destacou

a importância da Psicologia Genética piagetiana para o estabelecimento

dos estágios de desenvolvimento das crianças e as conseqüentes

implicações para a aprendizagem. Porém, a aula, numa abordagem

crítica, acentuou o perigo da redução da visão a essa questão dos estágios,

o que, embora indicando capacidades cognitivas gerais, poderia não ser

tão apropriado em relação a aprendizagens específi cas.

Finalizando, prezado aluno, a aula dedicou-se a Vygotsky,

começando por assinalar os embates entre os partidários desse teórico

e os defensores de Piaget. Em seguida, foram apresentadas suas idéias

sobre a origem dos processos psicológicos superiores, manifestados no

que ele denominou “lei geral do desenvolvimento cultural”.

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Adiante, você pôde aprender, nessa aula, acerca do que Vygotsky

denomina “Zona de Desenvolvimento Proximal”, que é a região onde se

realiza a transição entre as dimensões intermental, ou seja, entre pessoas,

e intramental, que consiste na internalização.

Veja lá, caro aluno, pela janela de nosso trem imaginário, aquele

prédio grande, de paredes brancas e janelas azuis: é uma escola. Aí está

ela, nesta rua de um subúrbio atravessado pela linha de nosso trem.

A aula seguinte estudada por você tratou exatamente da Escola e da

consolidação de sua importância no mundo moderno.

Essa aula começou por contextualizar a escola a partir do século XV,

apresentando como pano de fundo a ascensão da burguesia, o Humanismo,

o modo de produção capitalista, a Reforma, a Contra-Reforma e todo o

movimento cultural do Renascimento. Nessa quadra histórica, a escola

passa a atender os ideais humanistas antropocêntricos.

A escola assume um novo papel nesse mundo moderno. Educar

não signifi ca mais adquirir um “verniz” de formalidades para ingresso nos

salões da nobreza; nesse novo mundo predominantemente burguês, ser

educado signifi ca conhecer a realidade à sua volta; e signifi ca preparar-se

para participar das atividades desenvolvidas pelas classes dominantes.

A nova visão de mundo possibilitada pelo Humanismo, somada à

Reforma, mudará a visão acerca do papel da Educação. Esse movimento,

ANTROPOCÊNTRICO

Signifi ca o que tem o Homem como centro.

Anthropos signifi ca homem.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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que teve à frente Martinho Lutero, com sua crítica à Igreja Católica e

com a defesa da racionalidade no exame de todas as questões, produziu

um avanço no processo educativo. Isso será reforçado em face das

transformações de ordem socioeconômica: os instruídos, e não aqueles

que herdassem suas posições na sociedade, deveriam ser os detentores do

poder; a ignorância era um mal a combater, pois somente assim se poderia

construir mundo novo, em termos políticos, culturais e econômicos.

Você pôde ver nessa aula, prezado aluno, que a proposta

educacional oriunda da Reforma, tendo em conta a utilidade social da

instrução, previa uma reforma educacional, desde os níveis elementares à

universidade, com uma Educação laica e de responsabilidade do Estado.

E observou que essa visão protestante ajustava-se às necessidades do

novo modo de produção – o capitalista.

A Igreja Católica, reagindo à Reforma Protestante, levou a efeito

o movimento denominado Contra-Reforma, o qual, no que diz respeito

à Educação, criou ordens religiosas destinadas a espalhar pelo mundo

a visão de mundo do catolicismo, aliando uma ação evangelizadora – o

catequismo – à ação educativa. Entre essas ordens religiosas, destacou-se

a Companhia de Jesus, cujos integrantes, os jesuítas, estiveram à frente

da Educação no Brasil durante 210 anos, no Período Colonial.

Nessa aula, caro aluno, fi cou demonstrado que tanto a Reforma

quanto a Contra-Reforma contribuíram decisivamente para a instituciona-

lização da Escola e para ampliar e tornar público o ensino elementar. A escola

se afi rma, em contraposição ao antigo modelo, que ensinava no interior dos

castelos, com preceptores. O espaço escolar é freqüentado

pelos fi lhos da pequena nobreza e da burguesia, com

vistas a prepará-los para assumir seu lugar

na administração, na política, nos postos

de comando dos aparatos produtivos.

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Em seguida, a aula tratou da nova visão sobre a família e sobre a

infância, deixando a criança de ser considerada um adulto em miniatura,

passando a ter seu mundo à parte e freqüentando colégios onde imperava

uma educação moral e intelectual baseada na disciplina, numa hierarquia

rígida e em métodos de ensino autoritários.

Veja, caro aluno, como essa visão histórica permite a você entender

melhor a escola e as transformações por que passou essa instituição que

aí está, nos dias de hoje, funcionando em prédios como aquele casarão

branco que acabamos de observar olhando pela janela de nosso trem

imaginário. A escola é, portanto, um organismo vivo, dinâmico, cujas

transformações correspondem às das sociedades em que está inserida e

ao momento histórico vivido.

A divisão dos alunos em classes, prezado aluno, surgiu lá por

volta dos séculos XV e XVI. Releia essa aula e saiba como e por que

isso aconteceu. A diferença por idades, você pôde ver, foi um processo

lento, só completamente consolidado no século XIX.

A escola foi, aos poucos, tornando-se uma instituição essencial

para a sociedade, ampliando-se quantitativamente e melhorando

qualitativamente.

Em seguida, prezado aluno, você aprendeu que, a partir do

século VII, surgem as iniciativas em favor da escola pública e gratuita,

como decorrência, especialmente, da evolução do modo de produção

capitalista, com o trabalho livre e o desenvolvimento da manufatura,

o que exigiu trabalhadores com escolaridade básica. No século XVIII,

como decorrência da Revolução Industrial, são geradas as condições

para a consolidação da escola pública, processo que se fortalecerá, no

século XIX, tornando a instituição escolar imprescindível na preparação

das pessoas para atuação no modo de produção capitalista e para a

transmissão dos valores e dos padrões de civilidade da época.

Então, caro aluno, com as aulas e com a presente síntese, estão

fi cando mais claras para você as informações sobre a instituição escola,

sua consolidação, características e relações com o Estado e a sociedade?

Prossigamos, então, revendo os tópicos principais das aulas que se

seguiram nesse trecho de nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos

da Educação". Elas tratam das denominadas “Sociologia do Consenso”

e “Sociologia do Confl ito”.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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Na primeira dessas aulas, você pôde ver demonstrado, caro aluno,

que os sistemas educacionais e os movimentos educativos refl etem as

condições socioeconômicas e políticas de uma sociedade, embora também

exerçam infl uência sobre essas condições.

Em seguida, viu como se estabelecem os vínculos entre a Educação

e a sociedade, bem como surgem daí os limites e possibilidades do

movimento educativo como instrumento de conservação ou de

transformação sociais. E aprendeu que, quando não pertence ao Estado,

a Educação fi ca à mercê dos interesses políticos hegemônicos, que tendem

à conservação, e não à transformação. Além disso, pôde observar que,

em épocas de crise ou de transformações socioeconômicas, as propostas

e ações políticas se voltam para a Educação e para sua possibilidade de

concorrer para mudanças.

Depois disso, caro aluno, você deve ter aprendido como tanto

aqueles que estão no poder quanto os que pretendem alcançá-lo

se servem da ideologia para seus intentos, ambos procurando utilizar-se

da Educação.

A seguir, a aula tratou do que se denominou “entusiasmo pela

Educação”, quando são depositadas todas as esperanças em movimentos

educativos voltados para a Educação das massas. Remontando às origens

dessa forma de abordar a Educação, na Revolução Industrial, a aula

demonstrou que, a partir da segunda década do século XX, o entusiasmo

pela Educação se defi ne mais claramente, no Brasil, numa versão preocupada

com a dimensão quantitativa do oferecimento do ensino e aliada a uma visão

nacionalista preocupada com a erradicação do analfabetismo e a inserção

do país entre as consideradas “nações cultas”.

Nesse momento histórico, como você pôde ver nessa aula, caro

aluno, tudo era atribuído à Educação, tanto as mazelas quanto a salvação

do País.

Ainda nas duas primeiras décadas do século XX, surgem os

primeiros profissionais da Educação no Brasil, preocupados não

somente com a expansão quantitativa do ensino, mas, sobretudo, com

sua qualidade.

Você viu a seguir, prezado aluno, que esse “otimismo pedagógico”,

por centrar-se nos aspectos técnicos, propriamente pedagógicos, do

ensino, acabou por reforçar o papel da Educação como instrumento de

conservação das estruturas socioeconômicas e políticas da sociedade.

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Em seguida, foi abordado o denominado “realismo em Educação”,

o qual, sem perder de vista a necessidade de expansão do ensino, exige sua

conciliação com a qualidade. E, mais que isso, essa abordagem considera

importantes todas as ações educativas, inclusive as levadas a efeito por

organizações não-governamentais.

Você deve lembrar, prezado aluno, de que essa aula apresentou, em

seguida, as quatro principais correntes em que se dividem, no Brasil, os

realistas em Educação: os profi ssionais de Educação liberais, os educadores

ligados às esquerdas marxistas, os vinculados às esquerdas não-marxistas

e os tecnocratas da Educação. Aproveite esta oportunidade para rever essa

aula e relembrar as características de cada uma dessas correntes.

Mas não somente de visões otimistas viveu a Educação. A aula

apresenta também o denominado “pessimismo pedagógico”, resumido

em três correntes que são geralmente reunidas sob o título de “teorias

crítico-reprodutivistas”: a teoria do sistema de ensino entendido como

violência simbólica, a teoria da escola como Aparelho Ideológico de

Estado e a teoria da escola dualista.

Estudando essa aula, caro aluno, você pôde aprender que, para a

teoria do sistema de ensino entendido como violência simbólica, a origem

social e a herança cultural são determinantes para a carreira escolar e

para a vida profi ssional dos indivíduos, registrando-se como parâmetro

a cultura das classes superiores.

Para a teoria da escola como Aparelho Ideológico de Estado, como

você pôde ver, prezado aluno, que o sistema escolar é apresentado como o

instrumento de reprodução das relações de produção do sistema capitalista.

Finalmente, a teoria da escola dualista, você viu, caro aluno,

sustenta que há duas escolas, correspondentes às duas classes fundamentais

existentes na sociedade capitalista: a burguesia e o proletariado.

Visto o ponto de vista do consenso, a aula seguinte foi dedicada

à sociologia do confl ito. E, ao contrário da visão consensualista, que

enfatizava a questão da integração social e do equilíbrio, as denominadas

“teorias confl itualistas” põem no centro do debate os confl itos de classe

existentes na sociedade que, por conseqüência, envolvem a Educação.

Nessa aula, caro aluno, você teve a oportunidade de ver

estabelecidas comparações entre essas teorias. Enquanto, para os

consensualistas, a sociedade é um sistema integrável, ou em vias de

integração, com base em complementaridades, para os confl itualistas a

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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sociedade é uma unidade composta de elementos contraditórios. Para

a teoria do consenso, o elemento central é a ordem; para a teoria do

confl ito, no centro de tudo está o controle.

A seguir, a aula apresenta as três principais teorias em que se

situam os teóricos do confl itualismo, ou seja, as da reprodução social,

da correspondência e da reprodução cultural.

Sobre a teoria da reprodução social, você já viu sua formulação,

quando foi abordada em outra aula e nesta aula-síntese, a proposta,

fundada no pensamento de Althusser, da escola como Aparelho Ideológico

de Estado. Nesta condição, o sistema escolar garantiria a manutenção

e a reprodução das relações sociais e econômicas existentes no seio do

sistema capitalista. Relendo essa aula, caro aluno, você poderá rever, em

detalhes, como se dá esse processo de reprodução e as funções a serem

desempenhadas na sociedade pela escola e pelos educandos.

Em seguida, você pôde estudar a teoria denominada da

correspondência, a qual, embora guardando grande semelhança com

a da reprodução, radicaliza a crítica e politiza fortemente o debate.

Seus representantes, Bowles e Gintis, apresentados na aula, defendem

mudanças drásticas e a implantação do sistema socialista. E como a

aula descreve os principais fundamentos teóricos da visão liberal acerca

da Educação, e de seu papel na sociedade, você pôde estabelecer o

contraponto com essa proposta alternativa socialista, que combate

sobretudo o papel reprodutivista da escola no sistema capitalista,

concebido a partir da visão liberal.

A Teoria da Reprodução Cultural, apresentada em seguida,

prezado aluno, permitiu seu contato mais detalhado com o pensamento

de Pierre Bourdieu, especialmente no que diz respeito à questão de a

escola praticar o que se denomina “violência simbólica”.

Segundo essa teoria, as divisões em classes, a ideologia e as relações

de produção materiais que as sustentam são transmitidas e reproduzidas

através da violência simbólica, da qual o sistema escolar é agente.

Na aula que ora sintetizamos, caro aluno, você pôde ver

detalhadas as cinco proposições sobre as quais se baseia a ação

educativa apoiada na violência simbólica: a) defi nição de violência

simbólica; b) ação pedagógica; c) autoridade pedagógica; d) trabalho

pedagógico; e) sistema de ensino.

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Reveja essa aula tendo em conta as proposições indicadas acima,

e refl ita, pensando se, no cotidiano de nossas escolas, estão presentes

os ingredientes que confi gurariam a violência de natureza simbólica de

que fala a teoria.

E a viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação" prossegue,

com nosso trem andando em velocidade reduzida, ainda cruzando

esta grande cidade. Enquanto isso, vamos continuar conversando

sobre a escola, o Estado e a sociedade, bem como acerca das relações

estabelecidas entre eles.

Duas das aulas que você estudou e que examinaremos a seguir

foram dedicadas a discutir a hegemonia, a ideologia e o poder,

relacionando-os com a Educação. E o primeiro e importantíssimo

conceito examinado foi o de ideologia.

Como você pôde ver, caro aluno, a palavra, o conceito e as idéias

correspondentes a ideologia surgiram no século XIX, por ocasião da

Revolução Francesa, signifi cando, então, um conjunto de idéias que

corresponderiam a verdades com validade universal, ou seja, que não

mudariam ao longo da História, e que, além disso, teriam origem

material, surgindo da relação do ser humano com o meio ambiente,

tendo origem nas sensações.

Depois disso, você aprendeu que Augusto Comte, o fundador do

Positivismo, tratou do conceito de ideologia, tomando-o como o conjunto

de idéias ou de opiniões de uma época.

Também Émile Durkheim, junto com Comte considerado um dos

fundadores da Sociologia, tratou da ideologia, considerando-a uma pré-

noção, um conjunto de idéias falsas, fantasiosas, a serem evitadas pelos

que pretendem fazer ciência.

Porém, prezado aluno, o conceito de ideologia, tal como é discutido

e utilizado ainda hoje, foi estudado e sistematizado por dois pensadores

dos mais fundamentais para a Filosofi a e as Ciências Humanas e Sociais:

Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Karl Marx.

Hegel examina a questão das idéias e da superação entre sua

produção e a realidade do mundo, ou seja, entre o real e o racional,

estabelecendo ainda uma correlação com a História, sendo esta a

realização do que Hegel denomina “Espírito Absoluto”.

Vale a pena reler, prezado aluno, essa aula, prestando atenção

também no conceito hegeliano de “dialética”, hoje tão utilizado sem que

muitas vezes se saiba com propriedade de que se está falando.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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Para Hegel, a consciência determina a realidade, em termos

dialéticos. Marx retoma essas idéias, mas afi rma que a própria realidade é

que é dialética, isto é, as condições concretas, materiais, sociais, históricas

e econômicas em que se vive, em sua dinâmica de transformação, é que

dão origem à consciência. Diferentemente de Hegel, um idealista, Marx

se apresenta como materialista-histórico, ou seja, entende a realidade

como dependente das condições materiais da existência e, sobretudo,

das relações de produção existentes concretamente na sociedade, num

dado momento histórico.

Você viu assim, caro aluno, como Marx concebe o conceito de

ideologia, que, para ele, se constitui num conjunto de idéias que cria

mecanismos de convencimento e de inversão da realidade, os quais,

considerando-se a luta de classes, que compõe a estrutura da sociedade

e das relações entre os seres humanos, constituirão as idéias (ideologia)

dominantes, correspondendo ao interesse da classe dominante.

Outro pensador importante, que pode ajudá-lo a entender o que

seja a ideologia, é Antonio Gramsci. Releia, por isso, prezado aluno, o

trecho da aula em que se explica que Gramsci, partindo da concepção

de Marx, considera a ideologia uma forma de conhecimento do mundo,

um modo de conhecer a realidade, tendo uma participação ativa e efetiva

na explicação ou no ocultamento dessa mesma realidade.

E cada classe social produz seu discurso ideológico, de

acordo com seus interesses.

Em seguida, caro aluno, você viu também como

Althusser, outro pensador marxista relevante, concebe

a ideologia utilizando a metáfora de um edifício, no

qual os pilares compõem a infra-estrutura – a dimensão

socioeconômica da produção material da existência – e a

superestrutura – a dimensão onde se encaixam a cultura,

a política e a própria ideologia como produção das idéias.

A relação entre essas dimensões tem natureza dialética,

ou seja, determinam-se uma à outra.

Ainda segundo o pensamento de Althusser, você

pôde estudar as três funções da ideologia: coesão,

inversão e mistifi cação.

Em continuação, caro aluno, você teve uma nova

e detalhada apresentação dos denominados “Aparelhos

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Ideológicos de Estado”, os quais, segundo Althusser, agem como

mecanismos que asseguram a continuação do poder por parte da classe

dominante em relação às classes dominadas.

O próximo conceito estudado foi o de hegemonia, que diz respeito

à questão do domínio e da direção política num contexto social e histórico.

Nas mãos de quem, representando que interesses e de que forma se apresenta

na sociedade aquele poder de que temos falado desde o início desta aula?

É disto que se trata quando se discute a hegemonia, desde que foi discutida

pelo político e revolucionário Lênin, na Rússia, no início do século XX.

Já agora, caro aluno, não se está discutindo um poder que se impõe

pela força; para tornar-se hegemônico, o poder precisa do convencimento,

necessita estabelecer o consenso, e nisto o que vimos acima, e se denomina

ideologia, desempenha um papel essencial.

Pode-se perceber, quão fundamental é a luta travada entre as classes

sociais em busca do poder hegemônico. Este faz com que determinados

valores, visões de mundo e concepções culturais prevaleçam, prevalecendo

com elas interesses bem determinados.

Como é dependente da persuasão, isto é, do convencimento,

o poder necessita fi rmar-se hegemonicamente, e para tal constrói um

conjunto de idéias e práticas culturais que sirvam ao seu propósito. Daí

o empenho da classe dominante em uma determinada sociedade para

obter e manter a hegemonia em relação às classes dominadas, e com isso

ganhar e perpetuar o poder.

Para o estabelecimento da hegemonia, você aprendeu que são

fundamentais os meios de comunicação, a instância jurídica, os partidos

políticos e outros recursos e instituições. Entre estas últimas – anote isto – a

escola é uma instituição fundamental para a consolidação da hegemonia de

uma classe social, conforme bem o assinalou Gramsci.

Desse modo, prezado aluno, situando-se em lugar de destaque na

construção e manutenção da hegemonia, a escola pode servir à construção

de uma nova consciência social.

A escola deve buscar a superação da dicotomia entre trabalho

manual e trabalho intelectual, cultura erudita e cultura popular,

possibilitando a instauração de uma nova hegemonia em favor das

classes até aqui dominadas. Fortalecendo a criatividade, a autonomia

e a autodisciplina em seus alunos, o professor torna-se elemento

imprescindível nesse processo de transformação.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade

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Na última das aulas aqui sintetizadas, caro aluno, dá-se

prosseguimento ao exame da hegemonia, da ideologia e do poder,

relacionando-os com a Educação.

Você deve ter observado que, dada a importância do conceito de

ideologia, voltou-se a ele nessa aula, razão pela qual você pôde consolidar

o que já havia estudado sobre esse conceito, seu surgimento numa dada

época histórica, suas várias interpretações e seu papel no que se relaciona

com as estruturas sociopolítica e econômica. Além disso, nessa aula foram

apresentados vários exemplos de concepções ideológicas, como a que

sustenta uma suposta superioridade da teoria em relação à prática, ou a

que sobrepõe o pensar ao fazer, justifi cando, conseqüentemente, as posições

de quem “sabe pensar” e controla as decisões e tem poder de mando, e de

quem “não sabe pensar”, só lhe restando obedecer e executar.

A aula destacou, em seguida, a necessidade de ser desenvolvida

a crítica da ideologia, desmascarando os processos de formação das

idéias e exibindo suas raízes histórico-sociais. Desse modo, ao invés de

uma consciência falsa, atingir-se-ia uma consciência verdadeira, com o

cuidado de atentar para o fato de que não se trata de uma consciência

individual, mas de uma consciência de classe.

A seguir, recorrendo mais uma vez ao pensamento de Gramsci,

você aprendeu que existe uma “hegemonia ideológica”, que procura

exercer seu poder mediante a criação de uma falsa consciência entre os

integrantes das classes dominadas, os quais acabam até por aceitar como

inevitáveis e “naturais” situações de injustiça, que não seriam passíveis

de modifi cação, como sustenta o discurso ideológico.

Relendo essa aula, prezado aluno, você se lembrará de que ela

abordou os três momentos que, na visão de Gramsci, se apresentam na

construção da hegemonia ideológica: a fase estritamente econômica,

em que os intelectuais orgânicos expõem os interesses de sua classe;

o momento político-econômico, em que a totalidade das classes, mais

ou menos, apóia as exigências da economia; e a etapa hegemônica,

que implica que os objetivos econômicos, políticos e morais de uma

classe concreta sejam assumidos pelas classes restantes e grupos sociais

utilizados pelo Estado para determinar modelos de atuação e de relações

de produção e distribuição consoantes com esses objetivos.

Essa aula se encerrou, caro aluno, lembrando que existe a

possibilidade de uma contra-ideologia, ou seja, que a hegemonia

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ideológica pode ser contida e rejeitada mediante a mobilização no interior

das classes dominadas. Esse confronto de ideologias levará à possibilidade

de transformação da estrutura da sociedade e de seu funcionamento.

Finalmente, a aula demonstrou que o estudo da ideologia, de suas

manifestações e dos meios contra-ideológicos de enfrentá-la conduzirá

à consciência de que existem formas alternativas de compreender a

realidade e de nela atuar.

A instituição escolar é um dos lugares onde se desenvolvem os

esforços das classes dominantes para impor e legitimar seu domínio,

bem como para garantir sua reprodução. Por isso, caro aluno, importa

refl etir acerca da ideologia, da hegemonia e do poder exercidos por essas

classes, que se utilizam inclusive do Estado para tais fi ns.

Neste ponto, prezado aluno, chegamos ao fi m da síntese das

últimas oito aulas. Esperamos que a presente aula tenha ajudado você

a rever o que estudou e a consolidar o que aprendeu.

TÓPICOS PARA AUTO-AVALIAÇÃO

• Depois de estudar esta aula-síntese, você é capaz de dizer o que é a escola, para que

serve, qual o seu papel na sociedade e que determinações incidem sobre as relações

estabelecidas entre a escola, o Estado e a sociedade?

• Você concorda com a afi rmativa segundo a qual a chance de que a escola cumpra sua

função educativa depende em grande parte da competência, bem como da consciência

e do compromisso político dos educadores que atuam nela e sobre ela?

• Você acredita que uma Educação, ainda que boa para todos, resolverá sozinha

todos os problemas da sociedade?

• Você defenderia o argumento de alguns educadores para os quais a função social

da escola deve ser elevar o nível cultural de toda a população?

• Você compreendeu que a Educação é um bem público, pertencente à sociedade,

sendo direito de todos e dever do Estado?

• Você percebeu que há Educação também fora da escola, mas esta é um lugar

privilegiado para realizar o direito dos cidadãos à Educação?

Caso você não tenha compreendido alguns desses itens, retome as aulas

anteriores.

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Não se esqueça, prezado aluno, de que, em nosso curso, você dispõe de outros

meios para uma melhor compreensão dos saberes necessários à sua formação.

Você pode recorrer a outras fontes de informação, como a livros que tratam dos

temas aos quais foram dedicadas as aulas resumidas nesta aula-síntese, entre

os quais se destacam a relação entre a escola a sociedade e o poder, a questão

da ideologia, o problema da hegemonia e as visões de otimismo, pessimismo e

realismo pedagógicos.

Vá à biblioteca, caro aluno, e faça uma busca partindo desses temas. Saiba que

nada substitui uma boa pesquisa – atenta, paciente e ampla – quando se trata de

complementar os conhecimentos adquiridos em sala de aula.

Outra fonte importante hoje disponível é a internet. Recorra a ela, usando também,

nos motores de busca, os temas indicados.

Não se esqueça, porém, de exercer seu senso crítico em relação ao que obtiver

em suas pesquisas. A comparação entre idéias, concepções e teorias revela suas

convergências e divergências, permitindo que você relativize o que aprender.

Lembre-se de que, como pôde aprender nesta e nas aulas aqui sintetizadas, os

discursos ideológicos se insinuam como verdades!

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Olhando pelas janelas deste trem imaginário em que

fazemos nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos da

Educação", vemos que acabamos de parar numa grande

estação central da cidade em que nos encontramos. Aqui,

caro aluno, você deverá saltar e se apresentar numa grande

sala situada no fi nal da plataforma central. Nesse lugar,

prezado companheiro de viagem, será feita uma avaliação

do que você fez durante o percurso até esta estação. Isso tem

como objetivo ajudá-lo a prosseguir viagem sem problemas.

Para tanto, será solicitado a você que demonstre o que

conseguiu aprender até este ponto; o que viu ao longo da

viagem; e que signifi cados têm as idéias, conceitos, teorias,

exemplos estudados ao longo das aulas.

Prepare-se agora, caro aluno, para desembarcar e

apresentar-se no local indicado. E aplique-se no trabalho a

ser desenvolvido, em seu benefício, na próxima aula, uma

aula inteiramente dedicada à avaliação.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Como vai nossa viagem?

INTRODUÇÃO De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o

discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade

mas impor ao educando a vontade arrogante do mestre (FREIRE,

1999, p. 69).

Prezado aluno, nosso trem imaginário começa a reduzir sua marcha. A velha,

porém confi ável locomotiva expele vapor; suas engrenagens transmitem força

às rodas de aço, que rangem nos trilhos; aos poucos, a composição, com seus

vários vagões de madeira e bancos confortáveis forrados com palhinha, vai

entrando no pátio de manobras de uma grande Estação.

Esta não é uma Estação comum, como várias em que paramos até

aqui. É uma Estação terminal, situada num ENTRONCAMENTO. Em nossa

forma metafórica de expressão, estamos chegando ao fi nal da primeira

etapa, correspondente ao primeiro mapa, ou seja, à primeira ementa de

nosso curso.

Nesta Estação, novamente a parada será um pouco mais demorada.

Nela, você terá, caro aluno, mais uma entrevista na Sala de Avaliação.

Desta feita, são os seguintes os tópicos contemplados:

• Educação e sociedade: concepções e confl itos.

• Estado e Educação: ideologia, cidadania e globalização.

A exemplo da outra aula de avaliação que você já leu, esta também

tem a fi nalidade de ajudá-lo a prosseguir em nossa viagem pela “Terra

dos Fundamentos da Educação”.

Para nós, seus professores e companheiros nesta viagem, como

já dissemos, a avaliação integra o processo de ensino e aprendizagem;

deve ser contínua e subjacente a toda boa relação educativa. Portanto,

caro aluno, sua entrevista daqui a pouco na Sala de Avaliação tem

como objetivo auxiliá-lo a rever o que já estudou, consolidar o que foi

aprendido e demonstrar até que ponto assimilou conceitos, habilitou-se

a discutir idéias, noções e propostas, enfi m, tudo o que integra os tópicos

constantes do Mapa I.

ENTRONCAMENTO

É o ponto de junção de dois ou mais caminhos. No entroncamento ferroviário, encontram-se várias linhas de trem, que partem para vários lugares ou chegam de inúmeros deles. É aí que os passageiros fazem baldeação, ou seja, trocam de trens, em busca de variados destinos.

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Na Sala de Avaliação, você encontrará atenciosos e dedicados

amigos que o ajudarão na importante tarefa prevista nesta aula. Para

tanto, vão lhe fazer perguntas, apresentando-lhe questões que possibilitem

concretizar esta etapa do processo avaliatório.

Como já aconteceu na primeira aula de avaliação, prezado aluno,

na página seguinte você encontrará as questões, dentre as quais estão as

escolhidas para a realização da avaliação. Estude-as. Tente dar resposta a

elas. Para tanto, utilize o texto das aulas; releia-os, estude-os novamente.

Consulte também as anotações que fez ao longo de toda etapa da nossa

viagem percorrida até aqui. Se necessário, recorra a outras fontes, como

livros ou a internet.

O importante, caro companheiro, nesta viagem em busca do

conhecimento, é que você faça um esforço para obter respostas para

as questões. Tente sempre acertar, mas lembre-se: errar é uma etapa

simplesmente indispensável no processo de aprender. Ninguém aprende

sem errar; aprendemos muito mais com nossos erros do que com

nossos acertos.

Preparado? Então, pegue o texto de suas aulas, desça do vagão e dirija-

se à Sala de Avaliação. Veja, na próxima página, as questões propostas.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Como vai nossa viagem?

AUTO-AVALIAÇÃO

• Explique:

a) O que vêm a ser as dimensões “instituída” e “instituinte”, tomando a escola

como objeto de análise.

b) O que vem a ser o conceito de “hegemonia” e como vem sendo estudado do

ponto de vista da educação.

c) De que maneira mecanismos de mensuração e avaliação psicológicas, como os

testes de QI, contribuem para o processo de exclusão escolar.

d) Em que consiste e quais são os principais ingredientes da “teoria da corres pon-

dência”, de Bowles e Gintis.

e) O que se deve entender por “saber popular” e quais as principais características

que esse tipo de saber apresenta.

f) Em que consistiu o denominado “otimismo pedagógico”, surgido no Brasil nas

duas primeiras décadas do século XX.

• Responda:

a) Tendo em conta as características que permitem a distinção entre esses dois

conceitos, de que maneira o professor, em sua prática cotidiana, deve lidar com

o "saber" e a "sabedoria"?

b) Que problemas o aumento da demanda social por escola e a expansão dos

sistemas educacionais nos países capitalistas da Europa e da América trouxeram

para os educadores?

c) O saber popular nasce das experiências cotidianas. Por isso, podemos afi rmar

que ele é sempre coerente e verdadeiro? Por quê?

d) Com base no pensamento de Paulo Freire, o que signifi ca conceber uma peda-

gogia a partir do oprimido e não para ele?

e) Quais as duas vertentes sobre as quais é construída a explicação das difi culdades de

aprendizagem escolar e como elas explicam as diferenças de rendimento escolar?

f) Por que deve ser considerada não apenas a concepção negativa, mas também

a concepção positiva do poder?

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g) Em que medida, dadas as suas características e potencialidades, os saberes

instituídos contribuem para a relação ensino/aprendizagem em geral e, em

particular, para a compreensão do Outro por parte do aluno?

h) Que papel a educação representa dentro da abordagem tradicional sobre a

relação Estado, sociedade e escola?

i) Como deve proceder um professor interessado em contribuir para o encontro

e articulação entre os saberes "popular" e "erudito"?

j) Como a educação é concebida na perspectiva marxista, segundo a qual a relação

Estado, sociedade e escola é histórica e centrada nas classes sociais?

• Refl ita:

a) O fracasso escolar das classes de baixa renda da população pode ser examinado

à luz das relações entre escola, saber e poder. Faça uma análise disso, tendo em

conta que "saberes geram poderes".

b) A Companhia de Jesus foi de soberana importância na educação brasileira.

Tendo isso em conta, apresente o contexto histórico e sociopolítico em que foi

criada e se desenvolveu essa instituição.

c) "Saber" tem sua raiz etimológica em "sabor". Partindo dessa premissa, explique

como um professor consciente, interessado e criativo pode trabalhar com a questão

do seu próprio conhecimento e o dos seus alunos.

d) Eis o trecho de uma carta de Martinho Lutero, divulgada em 1524:

“Não obstante, sabemos ou deveríamos saber o quanto é necessário, útil e agradável a Deus

que um príncipe, senhor ou conselheiro seja instruído e capaz de viver cristãmente segundo sua

condição” (LUTERO apud MANACORDA, 1997 p. 197).

A partir da visão aí contida sobre a instrução, explique por que a Reforma Protestante

foi importante para a institucionalização da escola no mundo moderno.

e) De acordo com Michel Foucault, cada formação discursiva desenvolve um regime

de verdade próprio, que legitimará alguns saberes como verdadeiros, assim como

condenará outros como falsos. Levando em conta tal visão, explique o papel do

professor como representante, em sala de aula, dessa produção de “verdades”.

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Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Como vai nossa viagem?

• Cite:

a) As principais características do chamado “realismo em educação” e descreva as

visões dos quatro grupos que integram essa corrente.

b) Os procedimentos que, segundo Foucault, a sociedade utiliza para produzir,

controlar, selecionar, organizar e redistribuir os discursos.

c) As principais concepções de “ideologia”, desde seu surgimento, na época da

Revolução Francesa, até as visões de Gramsci e de Althusser.

d) As principais características do que, em Paulo Freire, se considera uma educação

para a libertação.

e) Os três momentos da “hegemonia ideológica”, segundo Gramsci, procurando,

em seguida, relacioná-los com o papel reservado, na sociedade, à instituição

escolar.

f) As formas distintas mediante as quais a escolarização é concebida e apropriada

pelas visões liberal e marxista.

g) As três posições teóricas existentes no interior do denominado “confl itualismo”

em Educação, apresentando os principais pontos de vista de cada uma delas.

h) Estabeleça uma análise comparativa e crítica entre os principais elementos

relativos à aprendizagem contidos na Psicologia diferencial norte-americana e

nas visões de Piaget e de Vygotsky.

Então, caro aluno, gostou da atividade feita na Sala de Avaliação?

Esperamos que sim. E muito menos pelo resultado mensurável alcançado

do que pelo processo avaliatório em si, que o levou a rever o que estudou,

a descobrir como superar as eventuais difi culdades que tenha enfrentado

e a consolidar o que aprendeu.

Enquanto a avaliação acontecia, nossa “Maria Fumaça” foi

abastecida e os encarregados da manutenção e da limpeza trabalharam

no trem, para que possamos enfrentar, sem percalços, as próximas,

importantes e interessantes etapas de nossa viagem pela “Terra dos

Fundamentos da Educação”, começando pelo Mapa II.

Apressemo-nos para subir ao vagão. O trem da imaginação já

deu o último apito!

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