apostila do cederj - fundamentos_da_educação
TRANSCRIPT
1Uma viagem pela"Terra dos Fundamentos"
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Apresentar a disciplina.
au
la
OBJETIVO
Aula1_1pb.indd 7 5/19/2004, 10:59:34 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"
8 C E D E R J
INTRODUÇÃO Seja bem-vindo, prezado aluno, ao nosso curso de licenciatura. Aqui estamos
para trilhar com você um caminho novo. O curso que você começa agora
tem um signifi cado especial na sua vida pessoal e profi ssional. “Licenciatura”
signifi ca muito mais que “obter uma licença”, quer dizer, obter uma autorização,
credenciar-se para dar aulas; signifi ca o compromisso com a educação.
Pensemos juntos sobre seu trabalho
como professor e nos problemas que você
pode enfrentar na tarefa educativa. Como
você enfrentaria, por exemplo, o problema
de um aluno indisciplinado, desatento ou
desmotivado? Como agiria para preparar uma aula interessante, atraente,
motivadora? Como, em suma, se comportaria quando o seu problema,
em sala de aula, não dissesse respeito à sua especialidade, mas exigisse
um saber propriamente educativo ou pedagógico?
No curso de licenciatura você aprenderá a lidar com todos esses
problemas mencionados acima, além de com muitos outros. Estudando
teorias sobre como, quando e por que educar, você vai ser capaz de situar
sua disciplina no contexto mais amplo das ações educativas; de entender
o contexto histórico e social em que o trabalho educativo aconteceu
no passado e acontece agora; e – muito importante – aprenderá como
desempenhar também tarefas práticas que seu trabalho exige, como
criar programas de disciplinas, preparar adequadamente uma aula,
formular avaliações. Aprenderá, em suma, a adotar atitudes e práticas
condizentes com aquelas esperadas de um educador comprometido com
um trabalho de qualidade, não somente em termos de atuação individual,
mas igualmente em termos da dimensão social.
Além de proporcionar-lhe conhecimentos técnicos na área da
Educação, o curso de licenciatura pretende também despertar em você
o interesse pelas dimensões ética e estética, bem como pelas análises que
tratem de questões vinculadas à ideologia e aos valores, mitos e ritos
presentes no processo educativo.
Tudo isso tem um objetivo maior: fazer com que suas aulas ganhem
em dinamismo, densidade, colorido, criando maior motivação em seus
alunos e dando a eles maior segurança no desempenho do seu trabalho,
o que resultará em maior efi cácia em sua tarefa educativa.
Em cada aula, caro aluno, observe bem este espaço na margem. Nele você encontrará conceitos, informações adicionais, “dicas” etc. que poderão ajudá-lo a fazer o percurso de nossa viagem dos Fundamentos da Educação.
!
Aula1_1pb.indd 8 5/19/2004, 11:01:12 AM
AU
LA 1
M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 9
Os cursos de licenciatura têm sido objeto de um interessante e
produtivo debate, travado tanto no âmbito da Educação, como num
diálogo com os outros campos de saber especializado. O que se está
tentando estabelecer, a partir desta discussão, é um tratamento unitário
da ação educativa, estreitando-se os laços entre a área da Educação
e os outros campos de saber. Deseja-se que, desde o ingresso para
formação em qualquer área, todos os alunos recebam uma base comum
de aprendizagem que contenha elementos formativos considerados
necessários para a habilitação ao exercício do magistério. Ao mesmo
tempo, pretende-se explorar as interfaces entre o campo pedagógico
e os campos de conhecimento específi co, bem como oferecendo aos
profi ssionais envolvidos com o ensino uma formação teórica e didático-
metodológica que permita uma adequada relação entre a teoria e a
prática, mediante uma articulação entre as disciplinas pedagógicas e
aquelas pertencentes ao currículo dos cursos específi cos.
Diante disso, um desafi o está lançado: como enfrentar o cotidiano
de uma sala de aula? Que teorias e práticas você precisa dominar para
desempenhar o seu trabalho como docente?
Acreditamos que a ênfase está na preocupação com a dimensão
inter-relacional do trabalho pedagógico, que resulte em saberes
construídos e compartilhados na relação professor-aluno, e não na
concepção tradicional da pura e simples transmissão de saberes prontos
e acabados, no ensino de verdades estabelecidas.
Veja, caro aluno, que a tarefa não é fácil. Você precisará estar
interessado em aprender a olhar, diagnosticar, apreciar e encaminhar
posições, percepções e a tomar decisões com vistas a transformações e
resoluções, porém nunca em uma via de mão única, mas numa relação
dialógica que envolva sempre os principais interessados no processo:
seus futuros alunos.
É com essa preocupação que nós, professores da área dos
Fundamentos da Educação, pretendemos ajudá-lo através das nossas
aulas. Mais do que receitas prontas, elas pretendem apresentar a você
teorias, propostas, problemas, casos, questões, a partir de cuja análise
e discussão a dimensão pedagógica de seus problemas, em sala de aula
ou fora dela, fi que mais clara e o ajude em sua tarefa educativa. Em
outras palavras, nossas aulas convidam você a se transforrmar em um
“pensador” da Educação.
Aula1_1pb.indd 9 5/19/2004, 11:01:12 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"
10 C E D E R J
Como exemplo do posicionamento contido nas aulas que você
está recebendo, rejeitando uma visão reducionista da Educação como
simples transmissora de conhecimento, refl ita sobre a seguinte afi rmação
de Giroux:
Essencial para a categoria de intelectual transformador é a
necessidade de tornar o pedagógico mais político e o político
mais pedagógico. Os intelectuais transformadores precisam
desenvolver um discurso que uma linguagem crítica e a linguagem
da possibilidade, de forma que os educadores sociais reconheçam
que podem promover mudanças (GIROUX, 1997).
Mas, caro aluno, não espere, nestas aulas, encontrar uma linguagem
sem sabor e sem graça, com textos longos e maçantes, voltados apenas
para teorias. Ao contrário: o objetivo aqui é ajudá-lo, não atrapalhá-lo,
oferecendo instrumentos que sejam úteis à sua prática. Por isso, adotamos,
nos textos das presentes aulas do curso de licenciatura, uma forma de
apresentação que trabalhará seu imaginário. E isso foi feito criando a
metáfora de uma viagem de trem, em torno da qual girarão as narrativas,
os enredos de cada aula.
Que tal, gostou da idéia? Então, venha conosco! Prepare sua
bagagem em termos de interesse e atenção, e vamos iniciar agora
nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”.
A Estação Central está diante dos olhos de nossa imaginação.
A gare imensa fervilha de gente. Os trens, perfi lados nas plataformas,
soltam uma fumaça branquinha. As locomotivas aquecem cada vez
mais o vapor, que dentro em breve permitirá mover muitos vagões.
Carregadores atarefados correm daqui para lá levando malas de todos
os tamanhos e tipos; crianças saem em desabalada carreira dispendendo
energia e antecipando a alegria da viagem; homens e mulheres elegantes –
quase todos com o rosto iluminado pela perspectiva de um maravilhoso
passeio – despedem-se dos que vieram até aqui para ver o embarque para
essa importante viagem. A intervalos, apitos cortam a beleza luminosa
da manhã. Todos esperam pelo início da jornada. Nós, professores,
estamos na plataforma aguardando apenas seu embarque, caro aluno,
para acompanhá-lo no trajeto tão bonito e tão fundamental para sua
profi ssão e para... sua vida.
Aula1_1pb.indd 10 5/19/2004, 11:01:12 AM
AU
LA 1
M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 11
Venha, prezado aluno! Aceite nosso convite! Aqui estamos, e nos
sentimos privilegiados no papel de cicerones. Juntos, construiremos
tanto o trajeto quanto nossas paradas e nosso destino: a busca,
a construção e a transformação do saber e do conhecimento no
campo dos Fundamentos da Educação.
Esta é, portanto, a viagem da Educação. Como em toda viagem – e
antes de embarcarmos e o trem iniciar sua marcha –, usaremos este nosso
encontro para consultar o “mapa” de nosso trajeto, contido no projeto
de nosso curso. Também como em qualquer viagem, vamos percorrer em
imaginação, rápida e antecipadamente, os lugares, fatos, idéias, questões
que comporão nossa paisagem ao longo de toda a viagem.
Antes de mais nada, observemos que há três pontos importantíssimos
de referência no planejamento e execução de nossa viagem. São eles o
Homem, a Sociedade e a Transformação. Qual bússolas, essas três
concepções serão os eixos norteadores de nossa trajetória. Imaginemo-nos
vestidos com aqueles longos guarda-pós brancos usados por todos
os viajantes no passado. Essas bússolas estarão no bolso para as
consultarmos periodicamente. A Educação se faz em torno do Homem
e para o Homem; serve à Sociedade, articula-se com ela e contribui para
a sua formação e sobrevivência; e a Transformação é o ingrediente de
uma dinâmica necessária, que possibilitará ao Educador e a seu esforço
educativo colaborarem na promoção das mudanças essenciais para a
construção de um mundo mais justo, mais fraterno, no qual os homens
possam ser solidários e felizes.
Vale assinalar: em nossa viagem notaremos que, além do caminho
principal que seguirmos, há vários outros os quais não iremos visitar.
São outras correntes, tendências e visões ideológicas, as quais, embora
possam ser mencionadas, não estarão incluídas em nossa opção teórica.
Isso signifi ca que há possibilidades de outras escolhas, que você mesmo
poderá fazer durante o caminho ou ao término da viagem.
Aula1_1pb.indd 11 5/19/2004, 11:01:12 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"
12 C E D E R J
Então, como foi determinado esse caminho principal? O que o
determinou foi, antes de mais nada, o objetivo do projeto da disciplina
Fundamentos, que pode ser assim resumido:
Oferecer aos alunos os fundamentos teórico-conceituais nas
áreas filosófica, histórica, socioantropológica e psicológica
para o exercício do pensamento crítico sobre teorias e práticas
pedagógicas, objetivando uma formação docente consciente e
socialmente responsável (Projeto Político-pedagógico da disciplina
Fundamentos, 2001, p. 4).
De saída, saiba que a nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos”
vai ser feita em quatro etapas. Para cada uma delas seremos guiados por
uma EMENTA que, para efeito de nossa viagem, denominaremos “mapa”:
Mapa I
Conhecimento: produção, formas e estratégias de validação;
saber e poder. Homem: visões histórica, fi losófi ca, socioantropológica
e psicológica. Educação e sociedade: concepções e confl itos. Estado e
Educação: ideologia, cidadania e globalização.
Mapa II
Políticas públicas para a educação: seus refl exos na teorização e
nas práticas educativas.
Mapa III
Processos de escolarização:
espaços, tempos, saberes, materiais
e agentes. Escola: dispositivo de
inclusão e exclusão. O educador
em formação e em ação: acesso,
controle, gênero, pauperização,
valorização e interatividade.
Mapa IV
Cultura e cotidiano escolar. Tipos de cultura e multiculturalismo.
Sala de aula: desafi os éticos, estéticos e comunicacionais.
Estes Mapas deverão estar sempre com você, caro aluno. Além disso, haverá necessidade de que você tenha em mãos as aulas normais e as aulas especiais, que caracterizaremos como “paradas” nas diferentes Estações. Haverá momentos em que você será chamado a rever as aulas que compõem cada Estação: são as chamadas aulas-síntese, que prepararão você para uma avaliação contínua durante todo o transcorrer da viagem.
!
EMENTA
É a forma sintética de apresentação do conteúdo de uma disciplina. É a partir da ementa que o professor estabelece os Objetivos a serem alcançados, construindo o Programa a ser cumprido nas aulas de uma determinada disciplina.
Aula1_1pb.indd 12 5/19/2004, 11:01:13 AM
AU
LA 1
M
ÓD
ULO
1
O primeiro trecho de
nossa viagem permite-nos
observar o personagem central
de todos os nossos esforços e
preocupações, como professores em ação e em formação: o Homem. Você
terá aí, caro aluno, aulas dedicadas a uma visão multidimensional do ser
humano, dos pontos de vista da Filosofi a, da História, da Psicologia e da
Socioantropologia. E perceberá que esse Homem é seu próprio aluno,
aquele que você terá diante de si em suas aulas e por cuja formação você
será responsável.
Ouvimos o som monótono das rodas sobre os trilhos; os vagões
sacolejam; a paisagem vai passando, vertiginosamente, diante de nossos
olhos. Mas não fi caremos apenas no ver; será necessário aprofundar
a visão, qualificá-la, transformando-a no conhecer. Para isso, os
próximos trechos de nossa viagem serão dedicados ao fenômeno do
conhecimento. O que é conhecimento? Quais seus diferentes tipos e
como são estabelecidos e validados?
Uma modalidade de conhecimento, em particular, motivará nossa
observação de viajantes atentos: a Ciência. Esse tipo de conhecimento
é, de longe, aquele ao qual se concede maior importância no mundo em
que vivemos. Por que isso acontece? Você verá num dos trechos de nossa
viagem o que signifi ca “paradigma” e que relação tem com a Ciência.
Você, como educador, estará
envolvido o tempo inteiro com o Saber.
Por isso, dedicaremos muitos quilômetros
da viagem a estudar a questão do saber
e de vários de seus tipos, como o Saber
Popular e o Saber Erudito.
Um aspecto em especial deverá
atrair sua atenção nessa paisagem sobre
o Saber: sua relação com o Poder, que
será observado nas suas várias formas
e manifestações, desde o pod
exercemos – ou cujos efeitos so
– em nosso dia-a-dia até o pode
emanado do Estado.
De posse de tudo isso, você poderá iniciar a viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação".
!
É preciso que você não deixe de usar tudo que existe para ajudá-lo: a
“bagagem” que você já possui; as “malas” que colocamos para
que você as abra e retire delas aquilo de que você necessita; o
“livro de viagem” que estará à sua disposição
aqui nas margens. Ah, importante:
observe o “guarda-freios”, que, de vez
em quando, aparecerá segurando uma lanterna
de luz vermelha, fazendo advertências,
assinalando pontos essenciais.
Aula1_1pb.indd 13 5/19/2004, 11:01:13 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"
14 C E D E R J
Talvez num momento como esse o trem diminua um pouco sua
marcha, para que você possa apreender as relações entre o Estado, a
Sociedade e a Escola; para que sejam observadas, também, as relações
entre o Poder e a Ideologia.
De repente, caro aluno, você poderá surpreender-se com a imagem,
inusitada, de uma briga ao longo da via férrea. Ou seja, você estará sendo
posto diante da questão do confl ito. Como a Pedagogia é observada do
ponto de vista das Teorias do Confl ito e do Consenso? Como isso se refl ete
em visões “otimistas” e “pessimistas” acerca da atividade pedagógica?
Viajar conosco poderá não esgotar suas dúvidas acerca de tais questões.
Porém, mais importante do que isso, irá possibilitar o desenvolvimento de
um pensamento crítico e, talvez, dar a você a oportunidade de aproximar
tal pensamento de suas ações práticas, na sala de aula e fora dela.
Você está conseguindo imaginar nossa maravilhosa viagem, caro
aluno? Saiba que, ao longo do percurso, haverá muitas novidades,
muita coisa agradável para se ver e até para se distrair. Afi nal, a alegria
é fundamental na vida. O LÚDICO é importantíssimo em Educação. Desse
modo, você poderá ser convidado, a qualquer momento, a lançar mão de
malas, cujos conteúdos representarão os próprios fundamentos político-
pedagógicos e metodológicos corrrespondentes aos objetivos que se deseja
alcançar. Esses conteúdos poderão apresentar-se sob a forma de fi lmes,
jogos, dinâmicas de grupo etc. Tudo muito lúdico, alegre, interativo. Para
participar dessas atividades, você terá a oportunidade de comparecer
a um dos pólos e interagir com seus colegas de estudo, ou seja, seus
companheiros de viagem.
Até esse ponto, você terá percorrido o caminho correspondente
ao nosso Mapa I. Vamos agora dar uma olhada no que nos reservam as
indicações do Mapa II.
Nesse trecho, depararemos com um imenso cenário. Talvez
uma grande cidade, na qual poderão ser observados as instituições
e os organismos, nacionais e internacionais, dos quais dependem as
políticas públicas voltadas para a Educação. Como numa cidade, com
seus conglomerados fi nanceiros, órgãos públicos, empresas privadas,
você viajará observando normas, dispositivos legais, instrumentos
e ações que, em suma, são responsáveis pela política educacional e
por seu fi nanciamento; que dispõem sobre a aplicação, o controle e a
manipulação dos recursos destinados à Educação.
LÚDICO
Do latim ludus, signifi ca jogo, diver-timento, passatempo.
Aula1_1pb.indd 14 5/19/2004, 11:01:15 AM
AU
LA 1
M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 15
Ainda nesse trecho da viagem, das janelas de nosso trem você
poderá vislumbrar um panorama sobre a Educação Básica e a Educação
Superior. Como nosso curso tem como objetivo preparar você para atuar
na Educação Básica, o trem percorrerá esse trecho mais lentamente,
para o estudo de seus três níveis de ensino: Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Ensino Médio. Para você, que atuará nas quatro últimas
séries do Ensino Fundamental e/ou no Ensino Médio, haverá ênfase nas
questões relativas a esses ramos do ensino. Embora com menor ênfase,
a Educação Superior também será analisada. Você tomará conhecimento
do Plano Nacional da Educação, com seus objetivos e metas a serem
alcançados; descobrirá por que na organização do trabalho da escola são
obrigatórios 200 dias letivos; verá como se processa o Sistema Nacional
de Avaliação; discutirá os objetivos estabelecidos para os diferentes
ramos do ensino; observará a necessidade da participação do professor
na elaboração do Projeto Político-pedagógico, além de outros aspectos
necessários para a sua ação consciente na escola.
Cabe observar que a Educação brasileira é pródiga em legislação.
Há uma grande quantidade de leis, decretos, decretos-leis etc. – aliás,
segundo muitos especialistas, muito além do necessário. Porém, vários
estudos indicam que a grande maioria dos professores não conhece o
sufi ciente dessa legislação, a ponto de que ela possa contribuir para a
melhoria do seu trabalho. Por falta desse conhecimento, que resulta
na má utilização das verbas públicas, os profi ssionais da educação e a
comunidade em geral vêm sendo prejudicados. Daí a importância de você
percorrer com interesse e atenção esse trecho da nossa viagem.
Material escolar, merenda, transporte, bolsa-escola, educação
de pessoas com necessidades especiais, educação das pessoas jovens e
adultas, ensino profi ssional e a Educação Superior são outros temas que
não deixarão de ser estudados.
Claro que não esperamos que nesse trajeto da viagem você se torne
um especialista na organização e no funcionamento da escola. Afi nal, este
Curso de licenciatura destina-se a levar até você um conhecimento que,
como dissemos no iníco desta aula, o habilite a ser um educador consciente
e atuante, capaz de formar cidadãos transformadores da nossa sociedade.
Aula1_1pb.indd 15 5/19/2004, 11:01:16 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"
16 C E D E R J
Mas desejamos que você, pelo menos, se sinta familiarizado com essas
informações importantes, pois, como um profi ssional mais bem informado
e consciente, você poderá atuar também como conscientizador de seus
alunos e da comunidade, contribuindo, desse modo, para melhorar a
Educação brasileira.
Feito isso, você terá percorrido todos os
caminhos indicados no Mapa II.
O Mapa III traz você para dentro da
escola. Você vai poder fechar os olhos, recostar-se
na poltrona, dar um belo suspiro e rever a escola
à luz das teorias. Encontrará temas que falarão
de perto a você. Começaremos pelo processo de escolarização, como
ele se dá, como a escola organiza os seus espaços nos diferentes tempos,
desde o surgimento da escola no Brasil.
Ao mesmo tempo que desejamos que você conheça a vida da escola
nos diferentes tempos e espaços, você terá a oportunidade de ver que a
escola infl uencia e é infl uenciada pelas dimensões política, econômica,
social e cultural. O que queremos é que você perceba o DIACRONISMO e o
SINCRONISMO que envolvem a escola.
Com relação aos saberes necessários ao
processo de escolarização, nosso trem diminuirá
a marcha e fará até paradas mais longas durante
a nossa viagem. Afi nal, como assinala RUBEM
ALVES, tais saberes representam a “caixa de
ferramentas” dos educadores. Por isso, você
deve descobrir quais saberes são necessários aos
alunos, quais aqueles que eles já trazem para a
escola e, dentre esses, quais poderão e deverão
ser aproveitados.
O objetivo nesse trecho da viagem é
pensar a escola à luz do processo de escola-
rização, nos diferentes espaços-tempos,
envolvendo todos os AGENTES ESCOLARES e as
condições necessárias ao processo educativo.
Importante: no decorrer da viagem, não esqueça de fazer uma relação do que você estuda c om tudo o que vive em seu dia-a-dia na escola. Desse modo, poderá saber se o que é previsto na legislação e nos planejamentos é cumprido na prática.
!
DIACRÔNICO E SINCRÔNICO
São termos relativos à passagem do tempo. O primeiro refere-se aos tempos em sua seqüência; o segundo, ao que acontece simultaneamente.
AGENTES ESCOLARES
São, além dos professores, os
diretores, funcionários e colaboradores que
atuam direta ou indiretamente no ambiente escolar.
RUBEM ALVES
Filósofo, educador e psicanalista brasileiro
contemporâneo, é autor de inúmeros
trabalhos amplamente divulgados na área
educacional.
Aula1_1pb.indd 16 5/19/2004, 11:01:16 AM
AU
LA 1
M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 17
Isso implica o estudo da escola, tanto do ponto de vista da INCLUSÃO como
da EXCLUSÃO, na busca de uma educação democrática.
A formação do professor é, sem dúvida, um ponto fundamental.
Sem professores bem preparados não há boa escola. O trem reduzirá sua
velocidade, permitindo que você repense a origem, as características e o
atual estágio e modalidades dessa formação, além de analisar o papel do
educador e a ação que efetivamente vem desempenhando. Um exemplo
digno de referência é a importância da mulher no processo educativo,
tema que será abordado quando o trem percorrer trechos que se refi ram
à questão do GÊNERO.
Talvez, neste momento, em que você está na gare, esperando para
embarcar no trem, fi que um pouco assustado com todas essas informações
que estamos dando. Afi nal, como um aluno interessado e responsável,
você deseja, como nós, que a viagem transcorra da melhor maneira
possível. Mas não fi que apreensivo; cada aula foi preparada como uma
sutil e deliciosa parte da viagem, e você terá prazer em seguir por todas
os trechos, admirando a paisagem e parando nas Estações.
O último Mapa que você deverá ter em mãos é o de número IV.
Esse é o Mapa que mostra o relevo, o clima, a vegetação, os rios e os
oceanos que compõem a viagem, representando as peculiaridades de
sua sala de aula.
Nessa parte da viagem você precisará compreender a cultura que
organiza a sala de aula. Para isso, necessitará rever algumas defi nições
de Cultura, suas modalidades, entendendo que a cultura é como uma
teia que nós construímos e que adquire signifi cado para cada um de nós.
Perceberá que há uma cultura fácil de ser apreendida – cultura PATENTE –
e uma outra que é denominada cultura latente.
Com isso, você verá que a escola tem uma cultura organizacional
própria, seja na distribuição dos espaços físicos, na maneira como as
salas de aula são preparadas para receber os alunos, nas relações entre
professores, alunos e comunidade, e em outras relações que muitas vezes
são esquecidas quando se organiza o trabalho no ambiente escolar.
Da janela do trem, ou quando saltar em uma das muitas Estações,
você observará, estudará e acabará tendo de fazer escolhas sobre tudo isso.
INCLUSÃO E EXCLUSÃO
São termos que se referem à entrada e à permanência dos
alunos na escola. Você terá a oportunidade de compreendê-los melhor numa aula
dedicada a esse tema.
GÊNERO
Num sentido amplo e tomado
sem estereótipos e preconceitos – dirá respeito, nas aulas
dedicadas ao tema, aos papéis feminino
e masculino, na Sociedade e na
Educação.
PATENTE
É a cultura fácil de ser apreendida, pois se expressa nas leis, nas normas; cultura
latente é a própria vida e o modo de
pensar, sentir e agir, nosso e das pessoas
que estão à nossa volta, precisando de uma escuta sensível para ser entendidas.
Aula1_1pb.indd 17 5/19/2004, 11:01:18 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Uma viagem pela "Terra dos Fundamentos"
18 C E D E R J
As escolhas que um ser humano faz nos níveis mais abrangentes e profundos
de sua vida, são o objeto de estudo da ÉTICA, uma disciplina que integra
o campo de saber da Filosofi a, tratando fundamentalmente dos valores.
Como os valores são ingredientes fundamentais da Educação, você terá
a oportunidade de estudar e discutir questões éticas, tanto num sentido
amplo quanto no âmbito mais restrito da escola e da sala de aula. Nessa
mesma direção, a viagem pela “Terra dos Fundamentos” levará você a
estudar o signifi cado de Moral e de suas implicações na Educação.
Imagine-se agora, caro aluno, olhando pela janela do trem a linda
paisagem que se descortina. Veja quanta beleza! Pois saiba que a beleza,
também de importância fundamental na Educação, será estudada no
que se denomina ESTÉTICA. Claro que nesse momento da viagem você
terá o prazer de voltar-se para a Arte, essa sublime manifestação da
criatividade humana.
Como nossa viagem busca um futuro promissor para você, as
questões da Comunicação e da Interatividade não poderiam faltar.
Afi nal, vivemos na era da informação, no mundo da comunicação cada
vez mais instantânea e da virtualidade, facilitadas por novos meios de
comunicação.
Nossa viagem prevê em seus Mapas a possibilidade de preparar
você para educar seu aluno, transformando-o em um ser criativo,
com pensamento crítico desenvolvido, alguém preparado, pessoal e
profi ssionalmente, para enfrentar os desafi os de um novo tempo, deste
novo século que já estamos vivendo.
Apressemo-nos, prezado aluno! Neste momento, todos os viajantes
já embarcaram. Na gare, agora bem mais vazia, fi carão todos aqueles que
torcem para que sua viagem seja bem-sucedida: familiares, amigos e seus
alunos. Eles terão um importantíssimo papel. A cada passo, se preocuparão
em estimulá-lo. É como se, na idéia da nossa viagem, pudessem, de vez em
quando, passar telegramas com mensagens de estímulo.
O chefe do trem vai apitar. Um silvo longo será o sinal para que
o trem se mova. Aos poucos, resfolegando, utilizando a potência
dos cavalos-vapor, a locomotiva ganhará velocidade e você estará,
na companhia dos professores do curso, empreendendo esta
maravilhosa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”.
Boa sorte, caro aluno! Desejamos que nossa viagem seja feliz,
producente, importante e inesquecível em sua vida.
ÉTICA
Ou, genericamente, “Axiologia” é o campo de saber fi losófi co que se dedica à questão dos valores. “Moral”, simplifi cadamente, é a aplicação prática, em códigos e normas de ação e de conduta, dos princípios gerais estabelecidos pela Ética.
ESTÉTICA
É o campo da Filosofi a dedicado ao estudo do belo, das formas perfeitas.
Aula1_1pb.indd 18 5/19/2004, 11:01:18 AM
2Homem: visão fi losófi ca
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Compreender a importância de estudar-se o homem, a sua compreensão de si mesmo e do mundo em que vive.
• Apresentar visões fi losófi co-educacionais acerca do ser humano.
• Fazer correlações entre as questões estudadas e o papel do professor.
au
la
OBJETIVOS
aula2_pb.indd 19 5/19/2004, 11:07:04 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca
20 C E D E R J
HOMEM: VISÃO FILOSÓFICA
O homem velho deixa a vida para trás.
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.
O grande espelho que é o mundo ousaria refl etir os seus sinais.
O homem velho é o rei dos animais (Homem velho, de Caetano
Veloso).
Embarcamos, aqui, caro aluno, para uma bela e importante
jornada: a viagem da Educação. Nela, como seres humanos, seremos,
ao mesmo tempo quem viaja e quem planeja a viagem; quem olha pelas
janelas de nosso trem e quem é olhado. Uma viagem em que começamos
a observar o homem, tanto teoricamente quanto em sua condição de ser
concreto, histórico e social.
Em sua formação como educador, convidamos você a olhar o
Homem representado nos jovens que chegam à escola em busca do saber
e da convivência com os colegas, num espaço de relações tão importante
para sua realização como ser humano quanto é importante a assimilação
de conhecimentos.
Esse jovem iniciará, com sua ajuda como professor, uma nova
etapa, em que a escola se apresenta organizada de forma diferente das
séries anteriores. A “tia” dá lugar à professora ou ao professor; as matérias
a serem estudadas têm nova distribuição; os processos de avaliação são
diferentes; o currículo também é distinto; o cotidiano escolar, enfi m, é
completamente diferente e representa um desafi o a enfrentar.
O aluno, lembre-se, expressa uma importante dimensão da condição
humana: o desejar coisas novas. Com isso, ele tem a aspiração de prosseguir
nos estudos, ir para o Ensino Médio, e daí para a faculdade, habilitando-se,
com o Ensino Superior, para ingressar no mundo do trabalho.
A viagem da Educação dá-se em torno desse homem, sobre o qual
estaremos falando, cantando e fazendo poesia. E você, como futuro educador
ou educadora, estará buscando conhecer um pouco mais sobre a vida do
homem e do mundo que construiu e no qual vive e procura ser feliz.
aula2_pb.indd 20 5/19/2004, 11:07:19 AM
AU
LA
2 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 21
Para isso, é preciso que você, caro aluno, se sente ao nosso lado,
escute e leia conosco o que se tem escrito, pensado, isto é, TEORIZADO sobre
as questões necessárias que fundamentam os estudos sobre o homem,
como sujeito e objeto da Educação.
O trecho da letra da canção de Caetano Veloso transcrito antes
permite-nos uma visão sobre o homem, a condição humana e o mundo
que esse animal humano, diferente dos outros animais, construiu: um
mundo de cultura, de artefatos, de relacionamentos sociais, políticos e
econômicos.
Você, atuando como professor, ajudará esse seu aluno a situar-se
nesse mundo humano, inclusive no que diz respeito à inserção no mercado
de trabalho. O mundo humano é também um mundo de trabalho, ou
seja, um mundo que é resultado da produção de objetos, de artefatos,
a partir de matérias-primas que são transformadas pela criatividade
humana; ou mesmo da produção resultante do trabalho com a terra,
bem fundamental para a sobrevivência do ser humano, tanto biológica
quanto socialmente. Como trabalhador, portanto, o homem, ao mesmo
tempo em que constrói e transforma o mundo em que vive, também se
constrói e se transforma como ser humano. Por isso, sempre se afi rma
que o trabalho dignifi ca o ser humano, desde que o homem, como um
ser trabalhador, possa reconhecer-se no fruto do seu trabalho, uma vez
que o mundo do trabalho e da produção não tem existência objetiva, ele
é criado e recriado, dependendo da vontade do homem.
Desse modo, é preciso estar atento às deformações na divisão do
trabalho, que só serão vencidas se vinculadas às funções de concepção
e de execução, colocando em ação todas as potencialidades humanas,
desenvolvendo e formando o homem “onilateral”, sem fazer a cisão
trabalho intelectual e trabalho manual. Em suma, isso seria considerar
o trabalho como princípio educativo.
Com isto, os vínculos entre trabalho e educação passam a ser
componentes da teoria da educação enquanto teoria da formação humana.
Morin afi rma que a educação do futuro deverá estar centrada na
condição humana, permitindo ao homem reconhecer-se em sua
dimensão humana comum a todos os seres humanos e, ao mesmo
tempo, reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é
humano (MORIN, 2001).
TEORIZAR
Aqui, signifi ca o modo de pensar
sistematicamente a prática educacional.
aula2_pb.indd 21 5/19/2004, 11:07:19 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca
22 C E D E R J
Portanto, ajudar seus alunos a se preparar para o trabalho é tarefa
primordial confi ada a você, como professor. Afi nal como dizia Marx:
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela
religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a
ser diferenciados animais tão logo começam a produzir seus meios
de vida (MARX; ENGELS, 1986).
Observe que a citação da letra da música de Caetano Veloso, lá no
início desta aula, fala de um homem velho, vivido, que deixa a vida para
trás. O mundo que tem diante de si é o espelho. Nele, vê suas realizações,
e nelas pode reconhecer-se, construir-se. Uma das possibilidades para tal
reconhecimento é justamente o trabalho.
E, na construção desse mundo humano, em que a Educação
tem papel indispensável e primordial, é fundamental que o educador
compreenda as várias visões sobre o homem, tendo em conta sua condição
de agente da humanização.
Nossa viagem de hoje nos leva a refl etir sobre o homem e a visão
que a Filosofi a tem dele. Por isso, antes de mais nada, vamos examinar
rapidamente o que vem a ser Filosofi a.
Que é Filosofi a? Que signifi cará essa palavra que tanto ouvimos e
cujo signifi cado não entendemos, de fato? Ouvimos muito, sim, porque
a palavra “fi losofi a” já se incorporou ao vocabulário do dia-a-dia. Na
televisão, dizem: “A oposição critica a fi losofi a desse governo que está
aí”. Até referindo-se ao futebol, lemos no jornal: “A nova fi losofi a de
jogo adotada pelo técnico fulano de tal prejudicou o time”. Como estes,
podemos encontrar muitos exemplos do uso da palavra “fi losofi a”.
Não podemos dizer que essas utilizações da palavra “fi losofi a” são
completamente erradas. No fundo, elas expressam o signifi cado real do
termo. Mas trata-se de apropriações de sentido feitas pelo senso comum,
e não o signifi cado técnico, digamos assim, do que seja Filosofi a.
aula2_pb.indd 22 5/19/2004, 11:07:20 AM
AU
LA
2 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 23
Deixemos logo claro: defi nir Filosofi a não é fácil. Desde muitos
séculos, ela tem sido definida de variadas maneiras, muitas delas
contraditórias entre si. Há fi lósofos que sustentam, mesmo, que é
impossível definir Filosofia. O que se pode, dizem, é vivenciá-la.
Sobre isto, Garcia Morente explica
Uma pessoa pode estudar minuciosamente o mapa de Paris; estudá-lo
muito bem; observar, um por um, os diferentes nomes das ruas;
estudar suas direções; depois, pode estudar os monumentos que
há em cada rua; pode estudar os planos desses monumentos; pode
revistar as séries das fotografi as do Museu do Louvre, uma por
uma. Depois de ter estudado o mapa e os monumentos, pode
este homem procurar para si uma visão das perspectivas de Paris
mediante uma série de fotografi as tomadas de múltiplos pontos.
Pode chegar, dessa maneira, a ter uma idéia bastante clara, muito
clara, claríssima, pormenorizadíssima, de Paris. Semelhante idéia
poderá ir aperfeiçoando-se cada vez mais, à medida que os estudos
deste homem forem cada vez mais minuciosos; mas sempre será
uma simples idéia. Ao contrário, vinte minutos de passeio a pé por
Paris são uma vivência, (MORENTE, 1976).
Tal difi culdade com a defi nição de Filosofi a acaba por nos ajudar
a entender o que ela, de fato, é. Já sabemos que a Filosofi a não é algo
que esteja longe, inacessível, uma espécie de “céu” em que os fi lósofos
permanecem, absortos, penalizados com a sorte dos comuns mortais.
A Filosofi a depende da vivência, isto é, precisa ser vivida, e não apenas
lida nos livros. Porém, é possível trabalhar com defi nições provisórias de
Filosofi a, apenas para que isso nos permita entendê-la e acompanhar o
que nos ensinam os fi lósofos, em seus pensamentos e seus sistemas.
O termo Filosofi a é grego. Philosophein signifi ca “amor à sabe-
doria”. Quer dizer, em sua raiz etimológica, a palavra fi losofi a não remete
a um saber pronto, acabado, que está ali para que nós o apanhemos e
utilizemos em nossas difi culdades, em nossas dúvidas e angústias. Em
vez de ser um saber, a Filosofi a é o amor ao próprio saber, à curiosidade
sobre a origem e a fi nalidade das coisas. É a necessidade de pensar sobre
a distinção entre o bem e o mal, sobre o belo e o feio. É a preocupação
com a capacidade que o homem tem de conhecer, e sobre as formas
de adquirir e expandir seus conhecimentos sobre todas as coisas.
É, em suma, o desenvolvimento de uma visão crítica sobre o mundo e
sobre os próprios homens.
aula2_pb.indd 23 5/19/2004, 11:07:20 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca
24 C E D E R J
Buzzi assinala que o fi lósofo Nietzsche, em sua obra A origem da
tragédia, nos ajuda a compreender mais um pouco o que seja a Filosofi a,
quando afi rma:
Todo homem que for dotado de espírito fi losófi co há de ter o
pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos,
se esconde outra muito diferente e que, por conseqüência, a primeira
não passa de uma aparição da segunda (BUZZI, 1989, p. 10).
A Filosofi a exige um olhar diferente sobre a realidade. E o trabalho
exercido sobre o que se obtém dessa visão do que nos cerca pode ser
expresso por uma palavra: refl exão. Sobre tal característica do trabalho
fi losófi co, diz Piletti:
Se a Filosofi a é procura e não posse, podemos dizer que o trabalho
fi losófi co é um trabalho de refl exão. A palavra refl exão vem do
verbo latino refl ectere, que signifi ca voltar atrás. Filosofar, portanto,
significa retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar,
examinar detidamente, prestar atenção e analisar com cuidado
(PILETTI, 1985).
Nesta aula, prezado aluno, intitulada Homem: visão fi losófi ca,
bem como ao longo de toda esta viagem pela “Terra dos Fundamentos da
Educação”, a utilização da Filosofi a signifi ca exatamente que, em nosso
trajeto, estaremos considerando o homem como objeto de investigação
levada a efeito pelo próprio homem. Em outras palavras, o homem
– esse ser singular entre os demais seres –, exercitando a capacidade de
pensar, de produzir refl exões, torna-se, ao mesmo tempo, o investigador
e o alvo desses pensamentos e refl exões de natureza crítica possibilitados
pela Filosofi a.
Que é o homem? Essa pergunta tem assaltado a mente humana desde
que o animal humano distanciou-se dos outros animais, desenvolvendo
a consciência e situando-se como objeto de seu próprio conhecer. Nesse
momento, o homem descobre que, além de tentar enfrentar os problemas
que o cercam, usando sua inteligência e criatividade, sente a necessidade
de ir além, de satisfazer também sua ânsia de conhecer. Descobre que não
lhe basta fazer, mas necessita igualmente saber, entender, compreender
o sentido, dar explicações.
aula2_pb.indd 24 5/19/2004, 11:07:21 AM
AU
LA
2 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 25
Porém, não apenas a Filosofi a debruça-se sobre o homem como
objeto de conhecimento. As ciências, as religiões e até mesmo o SENSO
COMUM também o fazem. Mas a Filosofi a, em vez de ater-se a visões
parciais sobre o homem, busca uma visão global, de conjunto, tentando
dar resposta à pergunta fundamental formulada acima. Além disso, situa
o homem no mundo, isto é, considera-o como um ser de relação, um
ser que, tanto para viver no mundo, resolvendo problemas práticos
e teóricos, quanto para construir e reconstruir esse mundo humano,
depende dos outros homens. Isso quer dizer que os homens não nascem
assim; a condição humana é fruto da vivência coletiva dos homens num
mundo comum e em condições sociais e históricas determinadas. Além de
ter sua existência condicionada pelo mundo natural com que se defronta,
o homem vê-se condicionado pelo próprio mundo que edifi ca graças à
sua capacidade criativa ímpar entre todos os animais.
A condição humana compreende algo mais que as condições
nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres
condicionados: tudo aquilo com o qual eles entrem em contato
torna-se imediatamente uma condição de sua existência (…); os
homens constantemente criam as suas próprias condições que, a
despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a
mesma força condicionante das coisas naturais (…) a objetividade
do mundo – seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana
complementam-se uma à outra (ARENDT, 1999).
Tentando determinar características capazes de distinguir o
homem, podemos afi rmar que, enquanto o animal vive em um meio,
o homem vive em um mundo. Ou seja, os animais, até o ponto em que
podemos saber, apenas reagem às condições que lhes são impostas pelo
meio em que vivem, valendo-se de seu instinto, de sua capacidade de
reação às ameaças e aos estímulos diversos. O homem, que partilha com
os demais seres vivos essa condição de animal, vai além: cria um mundo,
isto é, constrói seu próprio ambiente humano, cheio de artefatos e pleno
de signifi cados por ele mesmo atribuídos. O homem é, em suma, um ser
capaz de construir a CULTURA.
Geertz (1989, p.15), acredita, como Max
Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de signifi cados que ele mesmo teceu,
e que a CULTURA são essas teias. Neste
sentido, não há uma única cultura, mas
várias culturas.
SENSO COMUM
É a forma direta, acrítica, com base
fundamentalmente nos cinco sentidos, na experiência direta, de
que nos servimos para viver nosso dia-a-dia.
aula2_pb.indd 25 5/19/2004, 11:07:21 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca
26 C E D E R J
Uma das manifestações mais signifi cativas desse universo humano,
desse mundo de artefatos e de fenômenos culturais resultantes da ação
humana é a EDUCAÇÃO. Este processo sociocultural existe em todos os
grupamentos humanos. Através da Educação, as sociedades sobrevivem,
se perpetuam e se renovam; estabelecem valores e os transformam.
Em suma, é através da Educação que o mundo humano é construído.
Isso é o que permitiu a um fi lósofo como Kant afi rmar que o homem se
humaniza por intermédio da Educação.
Todo o pensar e o fazer humanos dependem dessa instância que faz
a mediação entre cada indivíduo e a sociedade em que ele se insere, num
determinado momento histórico e em condições sociais determinadas.
A Educação, em sua tarefa primordial, lança mão de modelos, que
nada mais são do que visões acerca do homem que se pretende educar. Por
isso, as concepções sobre o homem estão na base das várias Filosofi as da
Educação, concebidas a partir de visões fi losófi cas sobre o próprio homem,
sua vida, sua cultura, e sobre as organizações socioeconômicas e políticas
que estabelece. Daí a importância, para qualquer educador, de conhecer um
pouco o olhar que a Filosofi a tem lançado sobre o homem. Isto permitirá
que você refl ita sobre várias questões, como as seguintes:
• Como percebo o meu aluno enquanto um ser que busca
o saber?
• Favoreço, na minha prática diária, momentos de refl exão
fi losófi ca acerca dos problemas que fazem parte da vida
do aluno?
• O saber que transmito contribui para a humanização do
meu aluno, como afi rma Kant?
• Favoreço o nascimento das idéias (educere) dos alunos
ou simplesmente imponho o saber dominante, insti-
tuído, estabelecido?
• Que saberes o aluno possui (senso comum) e como fazer
uso desses saberes para a construção de novos saberes?
• Como posso ajudar meu aluno a situar-se no mundo
como ser produtivo, ou seja, num campo de trabalho,
convertendo a atividade produtiva igualmente num fator de
autoconhecimento e de realização da condição humana?
EDUCAÇÃO
É um processo eminentemente social e o homem, um ser gregário em relação permanente com seu semelhante. O processo educativo é, por isso mesmo, a única maneira capaz de assegurar a continuidade da espécie, além de garantir a sobrevivência das sociedades.Com sua origem latina, Educação tem duas bases etimológicas identifi cadas: educare, que signifi ca criar, amamentar, e educere, cujo signifi cado é levar para fora, fazer sair, tirar de, dar à luz.
aula2_pb.indd 26 5/19/2004, 11:07:23 AM
AU
LA
2 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 27
• Educar o homem seria transmitir às gerações futuras
os conhecimentos acumulados no passado, ajustando o
indivíduo ao meio físico e social?
Refl etindo sobre essas questões, você estará concebendo o seu aluno,
segundo se afi rmou acima, como: o homem – esse ser singular entre os
demais seres –, exercitando a capacidade de pensar, de produzir refl exões,
e de tornar-se, ao mesmo tempo, o alvo desses pensamentos e refl exões.
Importa que em Educação o professor saiba, a partir do processo
refl exivo, que tipo de homem deseja formar – um ser passivo? ou crítico,
refl exivo e atuante, capaz de, individual ou coletivamente, transformar
a sociedade?
É a Filosofi a que permite a escolha desse caminho. Usando a
imagem de nossa viagem de trem, ela permite traçar o roteiro, entre tantos
possíveis; permite tanto as paradas para a refl exão quanto possibilita
atingir o lugar que se desejava alcançar, o que, no caso da Educação, são
os fi ns almejados, tendo em conta o modelo de homem, de sociedade e
de cultura estabelecidos.
Transformado em alguém que busca essa sabedoria nas escolhas,
o professor converte-se em um amante desse saber. Deste modo, pode
ter condições de rever as visões de homem impostas pelas diferentes
concepções de Educação identifi cáveis na história educacional brasileira
– tradicional, escolanovista, tecnicista e progressista.
Pode-se afi rmar que:
• na concepção tradicional – também denominada essen-
cialista – o homem é considerado um ser físico e espiritual,
constituído por uma essência única e imutável, sendo sua
fi nalidade, na vida, dar expressão à sua própria natureza;
• na concepção escolanovista, o homem é um ser que se
encontra em contínua interação com o meio, sendo sua
natureza maleável, determinada pelo processo humano
de ajustamento social. Nessa interação constante com o
ambiente, o homem modifi ca o meio, sendo também por
ele modifi cado;
• na concepção tecnicista, o homem é produto do meio; uma
conseqüência das forças existentes em seu ambiente; um
ser cientifi camente explicável, sendo seu comportamento
governado por leis científi cas;
aula2_pb.indd 27 5/19/2004, 11:07:24 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca
28 C E D E R J
• na concepção progressista, o homem é um ser situado
num mundo material, concreto, social, econômico e ideolo-
gicamente determinado, o qual lhe cabe transformar.
A natureza humana vai-se constituindo histórica e
socialmente.
Podemos, agora, tentar olhar para trás e ver por onde nos conduziu
nosso trem nesta aula, que é parte da viagem da Educação.
Vimos como e por quê é importante, para o educador, ter
conhecimento das visões acerca do homem formuladas pela Filosofi a e
sintetizadas na pergunta: que é o Homem?
Aprendemos que, diferentemente dos outros animais, o animal
humano torna-se homem ao construir um mundo humano.
Vimos que a dimensão humana se constrói inclusive por intermédio
do trabalho.
Discutimos o papel e a importância da Educação nesse processo
de humanização.
Em seguida, apontamos várias questões, entre muitas outras, às
quais o educador pode ser levado a partir de uma refl exão sobre as visões
fi losófi cas acerca do homem.
Finalmente, apresentamos as concepções de Educação
identifi cáveis no pensamento educacional brasileiro, resumindo as
principais características de cada uma.
Convidamos agora você, caro aluno, a produzir suas próprias
refl exões. Para tanto, pode ser usada a letra de música já mencionada.
E que tal descobrir – em suas pesquisas individuais e em suas aulas, com
seus alunos – outras músicas, poesias e textos em prosa que ilustrem as
visões sobre o homem, tentando relacioná-las com a Educação?
Para manter nossa imagem inicial, sugerimos a construção de uma
linha de tempo, em que, nessa viagem da Educação, o trem vá parando em
estações, tendo, cada uma, as características de um tipo de ser humano que
se deseja ajudar a nascer ou a modifi car-se através da ação educacional.
O que haveria, por exemplo, na Estação tradicional? E a que destino se
chegaria, a seu ver, o aluno educado segundo essa tendência? Do mesmo
modo nas concepções escolanovista, tecnicista e progressista.
Sugerimos também que você se utilize de outras fontes para pesquisa,
como livros e artigos de revista que falem do tema desta aula.
aula2_pb.indd 28 5/19/2004, 11:07:24 AM
AU
LA
2 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 29
Os meios de comunicação – como o rádio, a televisão e o cinema
– também são fontes importantes para sua pesquisa. Na TV, por exemplo,
as personagens das novelas acabam transformando-se em modelos de
comportamento na sociedade. Que acha você, como educador, desses
modelos? Eles são de fato importantes para o processo educacional como
humanização, tal como o temos considerado nesta aula?
A internet é outra fonte de consulta muito útil. Procure sites
que tratem dos assuntos que vimos aqui, tendo como tema central
o Homem.
Como já vimos, a letra da música de Caetano Veloso fala no
homem velho. Isso permite uma refl exão sobre a situação dos velhos na
sociedade atual, em particular na sociedade brasileira. Será, caro aluno,
que nossa sociedade dá o tratamento merecido aos nossos velhos? Os
familiares tratam bem seus idosos? Os serviços de assistência médica
proporcionam o atendimento necessário às pessoas de idade? E o mercado
de trabalho, acolhe ou discrimina e rejeita os idosos? Aproveite, caro
aluno, para conversar com seus alunos sobre os familiares deles que
já têm mais idade. Como professor, aproveite para levar seus alunos à
refl exão sobre o homem velho
É muito importante lembrar que todas essas visões sobre o ser humano
não estão dissociadas do meio sociocultural e econômico em que
ocorrem. Assim, vale acentuar, por exemplo, as imagens – negativas ou
positivas – que se tem do homem brasileiro, as quais, por conseqüência,
oferecem aos educadores modelos do educando que se deseja formar.
A escola, no Brasil, deve existir para o homem brasileiro. Que homem
brasileiro é esse? O que se espera da educação em geral, e da educação
formal, sistematizada, da escola, enfi m, para que o ideal de homem
desejado seja alcançado pelo esforço educativo?
!
aula2_pb.indd 29 5/19/2004, 11:07:24 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão fi losófi ca
30 C E D E R J
AUTO-AVALIAÇÃO
• A partir desta aula consigo entender a importância do estudo acerca das visões
do Homem empreendidas pelas visões fi losófi cas?
• Como posso identifi car modelos de ser humano entre meus alunos, na minha
prática educativa cotidiana?
• Nesta primeira etapa de nossa viagem da Educação, percebo qual a importância
do estudo aqui levado a efeito para a melhoria de meu desempenho como
professor?
• Tenho clareza sobre tudo o que foi discutido nesta aula, ou há necessidade de
retomar seu estudo e rever alguns pontos? Caso positivo, que pontos seriam esses?
• No estudo desta aula, utilizei todos os recursos que ela me oferece, inclusive as
notas contidas às margens?
• Sinto necessidade de aprofundamento, utilizando outras fontes de consulta?
INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA
Na próxima aula, uma outra visão sobre o Homem será estudada: a visão histórica.
Veremos como essa visão se altera ao longo do tempo, como predomina esta ou
aquela tendência; como a Educação – que tem sua própria história – pode adaptar-se
a essas visões e à sua dinâmica, constituindo-se, também, num agente histórico.
aula2_pb.indd 30 5/19/2004, 11:07:25 AM
3Homem: visão histórica I
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Analisar o homem como um processo que se constrói no tempo.
• Refl etir, criticamente, sobre a concepção de homem na Antigüidade oriental, na Antigüidade ocidental e no mundo medieval.
au
la
OBJETIVOS
aula3_pb.indd 31 5/20/2004, 7:56:25 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I
32 C E D E R J
INTRODUÇÃO
Vamos prosseguir a nossa viagem. Da janela de
nosso trem vislumbramos uma outra paisagem,
passamos pela visão fi losófi ca de homem. Agora
vamos estudar as diferentes concepções de
homem na História. Como é a relação entre o
homem e o tempo?
O que é o homem? (...) ao colocarmos a pergunta “o que é o
homem?” queremos dizer: o que o homem pode se tornar, isto é,
se o homem pode controlar o seu próprio destino, se ele pode “se
fazer”, se ele pode criar a sua própria vida. Digamos, portanto,
que o homem é um processo (...) somos “criadores de nós mesmos”,
da nossa vida, de nosso destino (GRAMSCI, 1978, p. 38).
Quem somos nós? Somos vistos do mesmo modo por todas as
civilizações? Existe uma defi nição de homem que perpasse por todos os
períodos históricos? Ou melhor, existem princípios e valores que podem
defi nir o homem, da mesma maneira, em todas as épocas históricas?
Pense nisso, ao longo de nossa viagem.
Quais os princípios e valores que devem nos guiar? Será que existe
uma única defi nição de natureza humana? Será que há uma espécie de
destino traçado para os homens e que basta compreendê-lo e seguir o
nosso caminho? Refl ita sobre essas questões. Na verdade, os homens
precisam entender e explicar a realidade na qual vivem. Em cada período
histórico, os homens buscam valores e princípios que dêem signifi cado à
sua vida, constroem explicações sobre seu mundo, mudam suas ações e
princípios, criam diferentes culturas, estabelecem relações sociais; por
isso dizemos que o homem é um ser em processo, um ser histórico. Os
homens estão em constante transformação, seja nas suas relações sociais
ou nas suas produções. Por isso, devemos esclarecer que não existe o
homem, mas homens vivendo num determinado espaço e tempo. Somos
construtores de nossas próprias vidas.
ANTONIO GRAMSCI
(1881-1937)
Intelectual italiano, militante comunista. Foi preso em 1926, passou 10 anos na prisão por defender idéias socialistas. Escreveu sua obra na prisão, morrendo jovem, aos 46 anos. Defendia a escola única, ou seja, uma escola que não desvinculasse o trabalho manual do intelectual, possibi-litando uma formação integral.
aula3_pb.indd 32 5/20/2004, 7:56:32 AM
AU
LA
3 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 33
Agora, vamos pensar em afi rmações que fazemos no nosso
cotidiano:
• O homem sempre foi assim e não vai mudar.
• Cada um tem um destino, não podemos lutar contra ele.
São expressões que parecem nos imobilizar, tirando a capacidade
de mudança, de transformação. Devemos estar atentos a determinados
comportamentos que nos engessam, tirando a nossa possibilidade de
ação e mudança.
Quando olhamos mais profundamente para a história, percebemos
que a mudança é fundamental. Se observarmos atentamente, a cada dia que
passa mudamos física, intelectual e moralmente. Quantas vezes, quando
ainda estamos exercendo apenas o nosso papel de fi lho, temos um tipo
de comportamento e quando nos tornamos pais e mães mudamos esse
comportamento? As situações que enfrentamos com o passar do tempo
fazem-nos mudar. Às vezes, temos a sensação de que podemos deter o
tempo, mas, como dizia o compositor Cazuza, “o tempo não pára”.
Como o tempo não pára, devemos buscar nos diferentes períodos
históricos os princípios e valores que guiaram a vida dos homens.
Perguntamos: como em diferentes épocas históricas se concebeu o
homem? Que características eram valorizadas no homem? Começaremos
analisando como se concebia o homem na Antigüidade.
aula3_pb.indd 33 5/20/2004, 7:56:37 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I
34 C E D E R J
O HOMEM NA ANTIGÜIDADE ORIENTAL
Sê um artista da palavra, para seres potente. A língua é a espada
do homem (...) O discurso é mais forte do que qualquer arma
(BRESCIANI, apud MANACORDA, 1997, p. 18).
Revela a experiência que o mundo
Não pode ser plasmado à força.
O mundo é uma entidade espiritual
.......................................................
Por isto, ao sábio não interessa a força,
Não se arvora em dominador,
Não usa a violência (LAO-TSÉ).
Tomaremos como exemplo duas civilizações orientais, a chinesa
e a egípcia, para mostrar os valores que embasavam a formação do
homem na Antigüidade oriental. A civilização chinesa apresenta uma
complexa visão de mundo refl etida no I Ching – O Livro das Mutações –;
os chineses acreditam no equilíbrio de forças opostas do universo, o
yin e o yang; para eles, o mundo é resultado da união de contrastes. De
acordo com a teoria de Lao-Tsé, o princípio do mundo é a harmonia e a
não violência. O mundo é uma entidade espiritual que cria suas próprias
leis e cada ser humano tem um papel predeterminado no universo.
O homem deve buscar a harmonia, a ordem e o equilíbrio, princípios
fundamentais para a vida do homem e do universo. A visão de homem
é moldada por princípios considerados
universais que não devem ser
mudados ou contestados. Você
já teve contato com alguma
prática oriental? IOGA, SHIATSU
ou ACUPUNTURA? Caso a resposta
seja afi rmativa, preste atenção
em como eles preservam o
equilíbrio e a harmonia.
LAO-TSÉ
Viveu por volta do século VI a.C., na China, trabalhava como historiador e bibliotecário. Foi um grande crítico dos governos da China e apontava caminhos para a sua regeneração moral e política. Registrou seu pensamento no livro Tao te King.
Figura 3.1: Símbolo do yin e do yang.
IOGA
Prática de exercícios que se fundamentam numa fi losofi a de equilíbrio e perfeição.
SHIATSU
Massagem com a pressão das pontas dos dedos que busca o equilíbrio da energia do corpo humano.
ACUPUNTURA
Método terapêutico oriental que trabalha com agulhas que buscam equilibrar a energia do corpo.
aula3_pb.indd 34 5/20/2004, 7:56:37 AM
AU
LA
3 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 35
Na civilização egípcia incentivava-se a arte do falar bem; um
homem bem formado deveria aperfeiçoar a arte do falar. Mas o que seria
a arte do falar bem? Era aperfeiçoar a oratória como arte política do
comando, era educar o homem para a política. A palavra era poderosa
e precisava ser medida e controlada, como exemplifi ca o texto abaixo:
Se sua boca procede com palavras indignas, tu deves domá-las em
sua boca, inteiramente... A palavra é mais difícil do que qualquer
trabalho, e seu conhecedor é aquele que sabe usá-la a propósito
(ibid., p. 14).
Através da palavra o homem poderia intervir em diversas situações
e discursar para as multidões com o intuito de acalmá-las ou convencê-las
de alguma idéia. Preparar o homem para falar signifi cava preparar
o homem para comandar e governar. O homem também deveria ser
preparado para obedecer, mas o obedecer estava diretamente vinculado
ao comandar, a obediência fazia parte do jogo de poder. Exemplifi camos
com o trecho a seguir:
Educa em teu fi lho um homem obediente. Um fi lho obediente é um
servidor de Hórus, o faraó... Sê absolutamente escrupuloso para
com teu superior... Age de tal modo que o superior dele possa dizer:
como é admirável aquele que seu pai educou! (ibid., p. 15).
Nos primórdios da civilização egípcia, ainda não era
valorizada a escrita, mas, a partir do fi nal do terceiro milênio
a.C., começa a valorização da palavra escrita. Na verdade, o
aprender a grafar signifi cava poder. Aquele que sabia escrever
era um homem respeitado, porque poderia trabalhar em
diversas atividades na hierarquia do governo. Surge assim
a fi gura do ESCRIBA, homem respeitado e modelo ideal a ser
seguido pelos jovens que desejavam o respeito e o poder.
Além disso, o escriba era visto como um sábio, que podia
ler as escrituras antigas e que escrevia para o rei, podendo
por isso instruir e guiar seus superiores.
Neste trecho podemos ver a importância do escriba:
Os escribas cheios de sabedoria, do tempo que seguiu ao dos deuses...
escolheram como próprios herdeiros os livros e os ensinamentos que
deixaram... Sê escriba, fi xa isto no teu coração para que seu nome
perpetue como os teus livros: um livro é melhor do que uma ESTELA
incisa, melhor que um muro fi rmemente construído... (BRESCIANI
apud MANACORDA, 1997, p. 31)
ESCRIBA
O perito na escrita, um importante funcionário da
administração do governo egípcio.
ESTELA
Espécie de coluna destinada a ter uma
inscrição, marco.
aula3_pb.indd 35 5/20/2004, 7:56:38 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I
36 C E D E R J
Esse homem culto, que domina as letras, cultiva o poder e cumpre
o dever de obediência a seu soberano, expressa a imagem de homem
ideal na civilização egípcia.
Podemos dizer, respeitadas as diferenças culturais, que alguns
princípios marcam a cultura oriental para a formação do homem: a
harmonia, a obediência, o poder da palavra e da língua escrita e o
respeito à hierarquia.
O HOMEM NA ANTIGÜIDADE OCIDENTAL
Neste diálogo, Apologia de Sócrates, Platão narra o julgamento,
a defesa e a morte de SÓCRATES.
Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens
e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem
tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas,
como devem preocupar-se com a alma,
para que ela seja o quanto possível melhor, e vou
dizendo que a virtude não nasce da riqueza, mas
da virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os
outros bens, tanto públicos como privados (PLATÃO, 1980, p. 61).
Refl ita sobre o pensamento de Platão citado. Veja como a virtude
é fundamental para o homem. De acordo com Platão, a maior virtude do
homem era pensar fi losofi camente, ou seja, o homem devia usar a razão para
compreender o mundo. Esta afi rmação é importante, porque até o século
VI a.C., predomina na GRÉCIA a concepção MÍTICA do mundo, que explica
as ações humanas como conseqüência do destino e do sobrenatural.
Mas surgem alguns fatores: o aparecimento da escrita e da moeda,
o registro das leis escritas e a constituição da PÓLIS, que criam as condições
para o surgimento da fi losofi a, que simboliza a passagem do pensamento
mítico para o pensamento racional. Com o advento da fi losofi a, o homem
passa a ter uma nova visão do mundo e de si próprio.
SÓCRATES
Filósofo grego que viveu em Atenas, no século V a.C.; jamais registrou de modo escrito o seu pensamento. Platão, seu discípulo, o imortalizou através de seus diálogos.
Helênica, relativo à GRÉCIA, antiga Hélade.
MÍTICA
Dos mitos ou da natureza deles.
PÓLIS
Cidade-estado. A Grécia, na Antigüidade, não formava uma unidade política. Ela se compunha de várias cidades-estado.
aula3_pb.indd 36 5/20/2004, 7:56:39 AM
AU
LA
3 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 37
A Antigüidade grega nos legou valores e princípios que marcaram
a visão do homem ocidental. Na busca da formação do homem, os gregos
priorizaram o pensar, o falar (RETÓRICA) e o fazer. O pensar e o falar são
imprescindíveis ao homem que deseja governar; o fazer, para aquele que
pretende ser um guerreiro.
Os gregos atingiram um elevado grau de consciência de si mesmos.
Na abertura deste item, citamos uma fala de Sócrates, da obra A Apologia
de Sócrates, escrita por Platão. Podemos dizer que Sócrates representa
um símbolo de homem. Segundo os relatos históricos, o fi lósofo Sócrates
exercia um grande fascínio sobre aqueles que o escutavam e lutava contra
o saber DOGMÁTICO. É dele a célebre frase: “Só sei que nada sei”; o seu
papel era despertar consciências adormecidas. Para Sócrates, “a busca de
si é, ao mesmo tempo, busca do verdadeiro saber e da melhor maneira de
viver (...) Saber e virtude se identifi cam” (ABBAGNANO, 1969, p. 123).
No mundo grego, a virtude e o pensar são imprescindíveis à formação
do homem. A maior virtude (ARETÉ) é o saber. A ignorância é a origem
de todo vício. Os homens devem ser educados para transformarem-se
em cidadãos e também para defender, legislar e governar a pólis.
Nas cidades gregas, uma minoria era considerada cidadã. Mulheres,
estrangeiros e escravos não desfrutavam da cidadania.
!
RETÓRICA
Arte de falar bem.
DOGMÁTICO
O que não admite contestação.
ARETÉ
Virtude, em grego.
Na Grécia clássica predominam o cultivo da razão autônoma,
a inteligência crítica e a necessidade de formar o cidadão para gerir os
destinos da cidade. Surge uma nova concepção de cultura e de homem.
O homem deve buscar conhecer racionalmente o mundo, porque essa
é a sua maior virtude. Refl ita sobre essa concepção grega de homem a
partir das palavras de Sócrates, no diálogo intitulado Mênon (PLATÃO,
1979, p. 97):
Podemos, portanto, dizer, de um modo geral, que no homem tudo
depende da alma, e que a própria alma depende da razão, condição
indispensável para que ela seja boa. Ora, como conseqüência disso,
afi rmamos que o útil é o racional. Mas não dissemos que a virtude
é o útil?... Logo, podemos concluir que a virtude é a razão.
aula3_pb.indd 37 5/20/2004, 7:56:40 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I
38 C E D E R J
SÃO TOMÁS DE AQUINO
(1224-1274)
Nasceu na Itália. Foi um importante fi lósofo e teólogo. Sofreu infl uência de Aristóteles. A sua obra mais famosa é a Suma Teológica.
SANTO AGOSTINHO
(354-430)
Nasceu em Tagasto, na África. Foi um grande fi lósofo e teólogo, sofreu infl uência da fi losofi a platônica. Confi ssões, A cidade de Deus e De Magistro são algumas de suas obras.
O HOMEM NO MUNDO MEDIEVAL
Não se chame a ninguém de mestre na terra, pois o verdadeiro e
único Mestre de todos está no céu (SANTO AGOSTINHO).
Ensinar é ato de vida contemplativa ou ativa?
Parece da contemplativa. Pois, como diz Gregório (na homilia III
sobre Ezequiel):"a vida ativa termina com o corpo". Mas tal não
se dá com o ensino, pois os anjos, que não têm corpo, ensinam.
Logo parece o ensino pertencer à vida contemplativa” (SÃO TOMÁS
DE AQUINO).
O período medieval dura cerca de
mil anos; inicia com a queda do Império
Romano (476) e termina com a tomada de
Constantinopla pelos turcos em 1453. Até o
século X, o escravismo, modo de produção
que vigorava na Antigüidade, vai cedendo
espaço para o FEUDALISMO; há um processo de
ruralização, a sociedade torna-se agrária, com
base na atividade agrícola e no artesanato.
Cria-se uma rígida hierarquia social, na qual
a nobreza (senhores feudais) e o clero ocupam
o topo e na base estão os servos da gleba. A
sociedade se fragmenta em vários FEUDOS e
o fator integrador é o cristianismo. A Igreja
exerce uma influência espiritual e política.
Toda herança cultural GRECO-ROMANA passa a
ser guardada nos mosteiros; são os padres e
monges que têm livre acesso ao conhecimento; eles se apropriam de
toda a produção cultural da Antigüidade. Sendo assim, a Igreja Católica
Apostólica Romana passa a ditar os princípios que devem moldar e
guiar os homens.
Surgem os monges copistas, que são tradutores e copiadores de
toda obra deixada pela tradição greco-romana, eles selecionam o que
deve ser passado para o latim e o que deve ser divulgado a seus fi éis, pois
tentam preservar a fé a todo custo. A proposta é HARMONIZAR razão e fé para
compreender a natureza de Deus e da alma e os valores da vida moral.
FEUDALISMO
Regime econômico, político e social que dominou a Europa ocidental na Idade
Média. Os senhores feudais (ou suseranos)
tinham vassalos para defendê-los e
trabalhadores servis, os servos da gleba,
que trabalhavam cultivando as suas
terras.
FEUDO
Domínio territorial governado pelo senhor feudal.
GRECO-ROMANA
Comum aos gregos e aos romanos.
HARMONIZAR
Conciliar.
aula3_pb.indd 38 5/20/2004, 7:56:40 AM
AU
LA
3 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 39
A razão deve se submeter à fé. A partir desse princípio, eles começam a
moldar o que seria o homem ideal, ou seja, aquele que abdica do mundo
terreno e controla racionalmente as suas paixões, que valoriza o mundo
espiritual.
Tomemos como exemplo dois filósofos que marcaram
profundamente o pensamento medieval: Santo Agostinho e São Tomás
de Aquino. Segundo Santo Agostinho, o homem recebe de Deus o
conhecimento das verdades. O saber não é transmitido pelos mestres,
pois a verdade vem do interior de cada um, uma vez que Cristo habita
o interior de cada homem. Ele cria a Teoria da Iluminação, que signifi ca
que Deus ilumina a razão humana, e assim, por iluminação, o homem
tem acesso à verdade.
Veja o fi lme O nome da rosa. Ele mostra como a Igreja controlava
o acesso ao conhecimento.
!
São Tomás de Aquino afi rma que o homem é uma criatura divina,
e deve cuidar da salvação de sua alma e buscar a vida eterna. Para atingir
esse propósito é necessário que a razão não contrarie a fé e se submeta ao
princípio da autoridade, ou seja, deve-se consultar os sábios, autorizados
pela Igreja, para que não se leia algo que venha contrariar a fé. Assim,
pode-se concluir que a verdade passou a ser estabelecida pela Igreja
Católica Apostólica Romana. A razão passou a ser serva da fé.
Constata-se que o parâmetro do homem medieval é a subordinação
à fé. Valores como honra, justiça e fi delidade submetem-se à fé. O homem
somente está autorizado a conhecer o que não agride e contraria a fé.
Faça uma refl exão sobre este texto de São Tomás de Aquino:
...se o homem fosse verdadeiramente mestre, necessariamente
ensinaria a verdade. Ora quem ensina a verdade ilumina a mente,
sendo ela o lume do intelecto. Logo, o homem pelo ensino iluminará
o intelecto; o que é falso, pois “Deus é quem ilumina todo homem
que vem a este mundo”(João , I, 9). Logo, o homem não pode,
na verdade, ensinar alguém (São Tomás de Aquino apud Rosa,
1999, p. 111).
aula3_pb.indd 39 5/20/2004, 7:56:42 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica I
40 C E D E R J
R E S U M O
Esta aula mostrou as diferentes concepções de homem na Antigüidade oriental, na
Antigüidade ocidental e no Mundo Medieval. Observamos que, nesses diferentes
contextos históricos, surgiram princípios e valores que indicaram como os homens
deveriam ser e atuar em suas respectivas sociedades. Na Antigüidade oriental,
buscava-se a harmonia, a obediência, o poder da palavra e da língua escrita e o
respeito à hierarquia. Na Antigüidade ocidental, o mais importante era o cultivo
da razão autônoma, a inteligência crítica e a necessidade de formar o cidadão
que tivesse como principal virtude o saber. No mundo medieval, cultivava-se a
subordinação à fé. O homem somente estava autorizado a conhecer o que não
agredia e contrariava a fé.
EXERCÍCIOS
1. A cultura chinesa considerava a harmonia e o equilíbrio características
fundamentais do homem. Analise se essas características são importantes para
o homem de hoje.
2. Compare os princípios que norteiam a visão de homem na Antigüidade ocidental
e no mundo medieval, mostrando as diferenças.
3. Na Idade Média, o homem devia se submeter à fé. Analise se esse princípio era
favorável ao avanço do conhecimento.
AUTO-AVALIAÇÃO
Você conseguiu perceber os valores e princípios que embasaram o homem na
Antigüidade oriental? Sabe mostrar as diferenças entre a visão de homem na
Antigüidade oriental e na ocidental? Então, você pode ir em frente e comparar
essas visões de homem com a concepção que predominou no mundo medieval.
E depois, percebeu a diferença entre aquelas concepções que vigoravam na
Antigüidade e o mundo medieval? Caso responda que sim, então você está
pronto para prosseguir e caminhar para outros períodos históricos. Na próxima
aula vamos conhecer quais os princípios e valores que fundamentaram a concepção
de homem no período moderno e contemporâneo.
aula3_pb.indd 40 5/20/2004, 7:56:42 AM
4Homem: visão histórica II
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Refl etir, criticamente, sobre os princípios e valores que embasaram a concepção de homem no mundo moderno e contemporâneo.
au
la
OBJETIVO
aula4_pb.indd 41 5/20/2004, 10:05:24 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II
42 C E D E R J
A nossa viagem continua. Da janela de nosso trem descortinamos uma
nova paisagem. Agora vamos conhecer quais os princípios que norteavam a
concepção de homem no mundo moderno e no contemporâneo.
O HOMEM NO MUNDO MODERNO
Penso, logo existo
(DESCARTES).
Vamos continuar nossa viagem buscando compreender os
princípios que caracterizaram a visão de homem no mundo moderno.
Entre os séculos XV e XVI, surge o Humanismo, que procura uma
nova cultura em contraposição às concepções teológicas da Idade
Média, começando assim a implantação de um novo modo de produção
econômica: o CAPITALISMO. O humanismo e o capitalismo começam a
instaurar uma nova cultura e uma nova imagem de homem. Nesse
período, procura-se superar o TEOCENTRISMO. Enfatizando os valores
ANTROPOCÊNTRICOS, o homem passa a ser o centro e o fundamento do
universo. As explicações religiosas já não satisfazem mais ao homem
que busca a autonomia da razão. Tomemos como exemplo a frase de
Descartes, citada na abertura deste item: Penso, logo existo. Nela, ele
mostra que o pensar atesta a existência do homem.
RENÉ DESCARTES
(1596-1650)
Nasceu em La Haye (Touraine), na França. Estudou no Colégio Jesuíta de La Flèche, fi lósofo vinculado à corrente fi losófi ca denominada Racionalismo. Suas principais obras são: Meditações e Discurso sobre o Método.
INTRODUÇÃO
CAPITALISMO
Modo de produção econômico com base na propriedade privada sob tríplice aspecto: industrial, comercial e fi nanceiro.
TEOCENTRISMO
Concepção que considera Deus o fundamento primeiro do universo.
ANTROPOCÊNTRICO
Concepção segundo a qual o homem é o centro do universo.
aula4_pb.indd 42 5/20/2004, 10:05:31 AM
AU
LA
4 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 43
MARTINHO LUTERO
(1483-1546)
Nasceu na Saxônia, principal inspirador
da Reforma, foi monge agostiniano.
Em 1520, foi excomungado pelo
papa Leão X, porque contestou a venda
de indulgência pela Igreja. A indulgência
era o perdão dos pecados, ou seja,
quem pagasse uma determinada quantia
era perdoado pela Igreja.
NICOLAU COPÉRNICO
(1473-1543)
Criou a teoria heliocêntrica, segundo
a qual o sol ocupa o centro de nosso sistema, e a Terra,
como os demais planetas, gira em torno
do sol.
Através das explicações racionais, o homem procura descobrir
as verdades sobre a sua vida e sobre a natureza. A partir dessa
nova mentalidade, surge uma nova imagem do universo: o sistema
heliocêntrico, descoberto por COPÉRNICO. O heliocentrismo marca uma
das mais profundas revoluções na história do pensamento, porque mostra
que o universo não é estático e se movimenta constantemente. Logo, se
o universo está em constante mudança, então os valores e princípios do
homem também podem mudar. Nesse ambiente, começa a implantação
do capitalismo, valorizando a fi gura do indivíduo, que é livre para vender
o seu trabalho a qualquer pessoa e a iniciativa privada é fortalecida. O
homem é um ser racional que pode realizar coisas autonomamente e
mudar o que está à sua volta.
Nesse ambiente, o princípio de autoridade que vigorava na Idade
Média passa a ser questionado pela razão e esta apontará os princípios
e os valores que guiarão a vida humana.
No campo religioso também houve uma mudança profunda, com o
movimento da Reforma, que fez a revisão do cristianismo, dando origem
ao protestantismo. Esse movimento religioso apregoa o retorno à origem
do cristianismo e questiona a Igreja Católica Apostólica Romana, o poder
e as ações do papa. De acordo com os protestantes, todos deveriam ter
acesso direto ao texto bíblico, restabelecendo o vínculo direto entre Deus
e os seus fi éis. Dessa forma, todos os homens deveriam ter instrução para
que pudessem ler os textos sagrados.
A educação passou a ser um valor imprescindível ao homem
moderno; mas uma educação que fosse útil e permitisse ao homem
desenvolver atividades necessárias à vida em sociedade. Essa visão de
mundo aparece nas palavras de MARTINHO LUTERO:
Mas a prosperidade, a saúde e a melhor força de uma cidade
consistem em ter muitos cidadãos instruídos, cultos, racionais,
honestos e bem-educados, capazes de acumular tesouros e
riquezas, conservá-los e usá-los bem (...) o mundo, para conservar
exteriormente a sua condição terrena, precisa de homens e mulheres
instruídos e capazes; de modo que os homens sejam capazes de
governar adequadamente cidades e cidadãos e as mulheres capazes
de dirigir e manter a casa, as crianças e os servos (LUTERO apud
MANACORDA, 1997, p. 196-197).
aula4_pb.indd 43 5/20/2004, 10:05:40 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II
44 C E D E R J
Preste atenção nesse trecho da carta de Martinho Lutero. Nele
estão os valores que deveriam pautar a vida do homem moderno: a
instrução, a racionalidade, a honestidade e a possibilidade de acúmulo
de riqueza. Há um reconhecimento da utilidade social da educação.
Fazendo um contraponto com a Reforma, surgiu a Contra-
Reforma, realizada pela Igreja Católica Apostólica Romana, que
condenava as inovações culturais propostas pela Reforma. Era preciso
restaurar o poder e o prestígio da Igreja Católica, principalmente no
campo político-cultural. Para isto, a Igreja propõe a criação da COMPANHIA
DE JESUS, uma ordem religiosa que tinha uma missão pedagógica: doutrinar
os mais humildes e formar o gentil-homem, o homem educado segundo
uma formação humanista, mas de acordo com a doutrina da Igreja. Isto
signifi cava formar um homem que não deveria contestar a fé católica,
obedecendo às determinações da doutrina católica. Os jesuítas criaram
o RATIO STUDIORUM, documento em que se identifi ca o tipo de homem
que a Igreja da Contra-Reforma queria formar. Observe os valores que
predominam nesse documento:
Aliança das virtudes sólidas com o estudo. Apliquem-se aos estudos
com seriedade e constância; e como devem se acautelar para que
o fervor dos estudos não arrefeça o amor das virtudes sólidas e
da vida religiosa (....) Evite-se a novidade de opiniões. Ainda em
assuntos que não apresentem perigo algum para a fé e a piedade,
ninguém introduza questões novas em matéria de certa importância,
nem opiniões não abonadas por nenhum autor idôneo (RATIO
STUDIORUM apud ARANHA, 2000, p. 96).
O homem moderno é a síntese de todas as mudanças que
relatamos acima; um ser que descobriu o poder da razão, que vende
sua força de trabalho, que precisa da instrução e sabe que nada é estático
e tudo pode se transformar.
COMPANHIA DE JESUS
Criada em 1534, foi ofi cialmente aprovada pelo Papa Paulo III. A ordem tem como objetivo a propagação da fé e a luta contra os infi éis. Essa ordem criou várias escolas em diferentes países.
RATIO STUDIORUM
Documento criado em 1599, que continha as diretrizes da ação pedagógica dos jesuítas.
aula4_pb.indd 44 5/20/2004, 10:05:41 AM
AU
LA
4 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 45
O HOMEM NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos
enclausurados dentro dela. A máquina, que produz
abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos
conhecimentos fi zeram-nos CÉTICOS; nossa
inteligência, EMPEDERNIDOS e cruéis. Pensa-
mos em demasia e sentimos bem pouco. Mais
do que máquinas, precisamos de humanidade.
Charles Chaplin (MOTA, 1989, p. 69)
De acordo com os historiadores, a Revolução Americana (1775-
1783), a Revolução Francesa (1789-1799) e a Revolução Industrial (1760-
1830) mudaram profundamente os cenários social, econômico, político
e cultural do Ocidente. Essas três revoluções marcam uma nova época
histórica no Ocidente, a História Contemporânea. Surge um novo conceito
de civilização e, conseqüentemente, uma nova imagem do homem.
O início da História Contemporânea é marcado pelo Século das
Luzes (século XVIII). Mas por que Século das Luzes? O que signifi cava
essa luz? A luz era a razão humana. Espalhou-se a certeza de que a razão,
o HOMEM ILUMINADO podia transformar a vida social e sua relação com a
natureza. Instalou-se o movimento cultural conhecido como Iluminismo.
Na verdade, a crença no poder
da razão começa na Idade
Moderna, como vimos no
item anterior, e consolida-se
no período contemporâneo.
Crescia o otimismo em relação
ao poder racional do homem e
começava um processo efetivo
de DESSACRALIZAÇÃO do mundo.
Fala fi nal do
fi lme O Grande
Ditador, de
Charles Chaplin.
!
CÉTICO
Aquele que duvida de tudo.
EMPEDERNIDO
Insensível.
HOMEM ILUMINADO
Era guiado pela razão.
DESSACRALIZAÇÃO
Deixar de ser sagrado.
aula4_pb.indd 45 5/20/2004, 10:05:42 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II
46 C E D E R J
De acordo com a visão iluminista, a ordem do mundo natural e
social era conferida pela razão, porque somente ela podia mostrar o mundo
tal como ele era verdadeiramente, guiando os homens em suas ações. Assim,
o homem não se submetia mais ao crivo da autoridade ou da tradição.
Seu guia era sua racionalidade, por meio da qual o homem investigava
e conhecia verdadeiramente a realidade. O conhecimento não era uma
revelação, como vimos no item sobre a Idade Média; o conhecimento
nascia da consciência humana, como nos mostrou Descartes.
O conhecimento, ou melhor, a “ilustração” libertava o
homem; por isso, uma sociedade livre dependia da intervenção de
seres “iluminados” pela razão, pois somente assim seriam realizadas
as transformações na sociedade. Essa libertação devia ser realizada no
campo da individualidade, da “consciência humana”, e depois seria
irradiada para a coletividade. Eram indivíduos portadores dessa “luz”
(razão) que tinham condições de mudar os outros homens, a ordem social
e a natureza. Esse indivíduo “livre” e “iluminado” seria o modelo ideal
do homem contemporâneo.
A instrução tornou-se imprescindível para essa nova ordem social.
Crescia a exigência para que fossem construídos sistemas educacionais
públicos. A educação assumiu papel de destaque no processo de
construção do “novo homem”, do “cidadão ilustrado”. A partir de então,
começou-se a contrapor os “cidadãos”, homens “ilustrados”, e os “não
cidadãos”, “os ignorantes”, que agiam sob o signo da “irracionalidade”
e, por isso, eram seres de segunda categoria.
Essa mentalidade avança pelo século XIX. O contexto sócio-
econômico-cultural desse século caracterizou-se pelo INDUSTRIALISMO, pela
FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS e pelo triunfo da ciência. O industrialismo
muda a face do trabalho e das cidades. O homem era considerado livre
para vender a sua força de trabalho, mas deveria se submeter às regras de
trabalho e assalariamento da produção fabril. Para executar as suas tarefas,
devia ter instrução elementar e saber dividir racionalmente sua tarefa com
os outros. Como a produção fabril concentrava-se em centros urbanos,
devia aprender uma nova consciência de “civilidade urbana”.
FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS
No século XIX ocorreram vários processos de unifi cação de países, como a Alemanha e a Itália, que eram formados por várias cidades e regiões independentes, com governos próprios. Depois do processo de unifi cação, eles se consolidaram como nações, tal qual hoje os conhecemos.
INDUSTRIALISMO
Uma expressão usada por Gramsci, para caracterizar uma nova “cultura industrial” no mundo capitalista.
aula4_pb.indd 46 5/20/2004, 10:05:53 AM
AU
LA
4 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 47
Esse aprendizado passava pelo domínio de alguns conhecimentos
elementares da ciência, porque seus resultados possibilitavam um
conhecimento “verdadeiro” da natureza e dos outros homens. Acreditava-se
que ciência facilitava a compreensão da “evolução” e do progresso
humano; por isso os resultados científi cos tornaram-se imprescindíveis
para a cultura do industrialismo, porque forneciam conhecimentos
práticos para a vida.
No processo de formação dos Estados Nacionais, cresce a
necessidade de criar um sistema que pudesse nacionalizar, sistematizar
e controlar a disseminação da instrução. Assim, chegou o momento,
devido às exigências sócio-econômico-culturais, de encontrar caminhos
políticos que pudessem ampliar a educação para uma grande parcela da
população. O século XIX foi marcado por um esforço signifi cativo para
efetivar os sistemas nacionais de educação.
A partir do século XX, amplia-se a necessidade de escolaridade; a
ciência avançou, dando ao homem uma enorme capacidade de intervir
na natureza e a organização do trabalho tornou-se mais complexa.
Atualmente exige-se que o homem domine uma grande quantidade de
informações e a educação exigida para a maioria dos postos de trabalho
é o Ensino Médio. Poderíamos dizer que se aprofundou a exigência de
racionalidade. O homem, hoje, é essencialmente um cidadão urbano,
que não sabe mais viver sem a ciência. Mas, ao mesmo tempo, na virada
do século XXI, acreditamos que precisamos buscar mais do que nunca
o sentimento e a sensibilidade, como está proposto na fala de Chaplin
na abertura deste item.
Nesta aula vimos os princípios que nortearam a concepção de homem moderno
e contemporâneo. No mundo moderno, o homem descobriu o poder da razão,
começou a vender sua força de trabalho, precisa de instrução, descobriu que nada
é estático e tudo pode se transformar. No mundo contemporâneo, o homem se
acha liberto pelo poder da razão, é um cidadão essencialmente urbano, que não
sabe mais viver sem a ciência. O homem, por meio da ciência, adquire uma enorme
capacidade de intervir e transformar a natureza e a organização de seu trabalho
tornou-se mais complexa.
R E S U M O
aula4_pb.indd 47 5/20/2004, 10:05:53 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão histórica II
48 C E D E R J
EXERCÍCIOS
1. Analise criticamente a frase de Descartes “Penso, logo existo”. Mostre por que
esta afi rmação marca profundamente o homem moderno.
2. Explique como o Iluminismo infl uencia a concepção do homem contemporâneo.
3. Por que a educação tornou-se imprescindível para o homem contemporâneo?
AUTO-AVALIAÇÃO
Você conseguiu compreender os princípios que fundamentam a concepção de
homem no mundo moderno e contemporâneo? Observou como a razão e a ciência
tornaram-se imprescindíveis ao homem moderno e contemporâneo? Percebeu
como a educação passou a ter um papel fundamental na vida do homem? Além
disso, nestas duas últimas aulas você percebeu como a visão de homem muda, de
acordo com o contexto histórico. Se você conseguiu compreender essas mudanças,
você está apto a prosseguir a nossa viagem e analisar o homem sob o ponto de
vista psicológico − tema que será tratado na nossa próxima aula.
aula4_pb.indd 48 5/20/2004, 10:05:54 AM
5Homem: visão psicológica I
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Fornecer subsídios para que os estudantes, após a leitura de seus conteúdos e da execução das atividades aqui propostas, sejam capazes de:
• Descrever as principais visões de homem presentes na produção do conhecimento psicológico.
• Situar as contribuições do conhecimento psicológico para o entendimento da multidimensionalidade.
• Explicar a historicidade e as relações sociais como elementos fundamentais na confi guração do homem.
au
la
OBJETIVOS Pré-requisito
Compreensão dos aspectos abordados na aula anterior (veja a Aula 4 de Fundamentos da Educação I).
aula5_pb.indd 49 5/19/2004, 11:33:22 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I
50 C E D E R J
Mas que coisa é homem...
Um ser metafísico?
Uma fábula sem
signo que a desmonte?
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?
Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?...
Como se faz um homem?
(Carlos Drummond de Andrade).
Eis que chegamos agora à Estação da psiquê; a que trata da dimensão psicológica
do homem. Desejo que você faça um bom passeio por esta Estação.
O tratamento da aula aqui proposta começa na contradição
existente na produção do conhecimento psicológico. Isto signifi ca dizer
que as teorias em Psicologia divergem quanto à visão de homem que
defendem. Essas divergências são fruto das contradições inerentes no
mundo da produção material e simbólica e permitem afi rmar que a visão
psicológica de homem não se confi gura como um bloco monolítico.
Destacam-se aqui dois grupos de teorias:
1. o grupo de teorias que concebe o homem como um ente
a-histórico, ou seja, desvinculado das condições históricas
e da realidade social;
2. o grupo de teorias que concebe o homem como um sujeito
situado historicamente no conjunto das relações sociais e
como síntese das múltiplas determinações culturais.
Quanto ao primeiro grupo, assinalamos, em virtude de sua
base EPISTEMOLÓGICA, os estudos relacionados ao corpo de conhecimento
denominado associacionismo e cuja expressão mais imponente
é o Behaviorismo.
INTRODUÇÃO
EPISTEMOLOGIA
Refere-se à teoria do conhecimento (gnoseologia). Disciplina fi losófi ca que trata da crítica do conhecimento científi co.
aula5_pb.indd 50 5/19/2004, 11:33:30 AM
AU
LA
5 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 51
O termo Behaviorismo foi inaugurado pelo americano JOHN
WATSON em 1913; o termo inglês behavior signifi ca comportamento;
portanto, para denominar essa tendência teórica, usamos Behaviorismo
e, também, Comportamentalismo, Teoria Comportamental, Análise
Experimental do Comportamento, Análise do Comportamento.
O objetivo principal do Behaviorismo foi a produção de uma
psicologia científica, livre da introspecção e fundada no método
experimental que lhe permitisse a objetividade das ciências da natureza,
ou seja, a busca da neutralidade do conhecimento científi co, no qual os
dados devem ser passíveis de comprovação e servir de ponto de partida
para outros experimentos na área.
Essa objetividade é a mesma localizada no paradigma positivista
e defi ne a investigação psicológica como o estudo do comportamento
(observável).
O comportamento é visto como produto das pressões do ambiente,
isto é, o conjunto de reações a estímulos. Tais reações podem ser medidas,
previstas e controladas.
Nessa via de interpretação, o comportamento humano é passível
de mudança resultante do treino ou da experiência. A ênfase do
conhecimento recai sobre o primado do objeto, reduzindo o indivíduo
ao simples comportamento condicionado.
Apesar de colocar o comportamento como objeto da Psicologia,
o Behaviorismo foi, desde Watson, modifi cando o sentido desse termo.
Contemporaneamente, não compreendemos o comportamento como uma
ação isolada de um sujeito, mas sim como uma interação entre aquilo
que o sujeito faz e o ambiente onde o seu fazer se realiza.
O Behaviorismo dedica-se ao exame das interações entre o
indivíduo e o ambiente, entre as ações do indivíduo (suas respostas) e o
ambiente (suas estimulações).
Mas, afi nal, qual é a visão de homem daí advinda?
O homem é encarado como uma conseqüência das infl uências ou
forças existentes no meio ambiente.
Reina a hipótese de que o homem não é livre, mas condicionado;
o seu comportamento pode ser controlado através da aplicação do
método científi co.
JOHN WATSON
Teórico que postulou o comportamento
como objeto da Psicologia; objeto
capaz de ser observável e mensurável. Esse fato foi importante
para que a Psicologia alcançasse o status
de ciência, rompendo defi nitivamente com a sua tradição fi losófi ca.
aula5_pb.indd 51 5/19/2004, 11:33:30 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I
52 C E D E R J
Dicotomizando o homem no que é e no que não é observável, o
Behaviorismo expõe-se à constatação de sua fragilidade por três razões:
1. pela fragmentação da unidade indissolúvel entre sujeito
e objeto;
2. pela ocupação do objeto, deixa o sujeito à mercê das
especulações metafísicas;
3. porque seu materialismo é uma forma de mecanicismo,
já que ignora as condições históricas dos sujeitos
psicológicos, tendo descartado a consciência, a
subjetividade, em vez de provar seu caráter de síntese
das relações sociais.
O sistema de psicologia objetiva denominado Behaviorismo
pelo seu fundador, Jonh Watson é, de longe, a mais infl uente e a
mais controvertida de todas as escolas americanas de Psicologia. O
Behaviorismo acabou desempenhando um papel preponderante não só
na Psicologia, mas também em toda a cultura, de um modo geral.
Watson tinha dois interesses principais: um positivo e outro
negativo. No lado positivo, ele propôs uma Psicologia inteiramente
objetiva. Ele desejava aplicar as técnicas e princípios da psicologia animal
aos seres humanos. A esse aspecto positivo do Behaviorismo foi dado o
nome de Behaviorismo metodológico ou empírico. O seu principal ponto
metodológico – a insistência na primazia do comportamento (behavior)
como fonte dos dados psicológicos – foi dominante e ainda é bem aceito
na atualidade.
Já no lado negativo, Watson negava os conceitos mentalistas em
Psicologia, protestando contra a Psicologia introspectiva, e discordava
dos problemas metafísicos em Psicologia.
aula5_pb.indd 52 5/19/2004, 11:33:31 AM
AU
LA
5 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 53
Ainda fazendo parte do primeiro grupo
de teorias referido anteriormente, a GESTALT
constitui uma corrente em Psicologia que
refuta as questões colocadas pelo Behaviorismo.
Nascida na Alemanha no início do século XX
(com WERTHEIMER, KÖHLER e KOFFKA), a gestalt
encontrou fértil terreno nos Estados Unidos,
onde passaram a trabalhar três de seus maiores
expoentes: Koffka, Köhler e LEWIN.
Eles iniciaram seus estudos pela
percepção e pela sensação do movimento.
Os gestaltistas estavam preocupados
em compreender quais os processos
psicológicos envolvidos na ilusão
de ótica, quando o estímulo físico
é percebido pelo sujeito como uma
forma diferente da que ele possui na
realidade.
É o caso do cinema. Quem já viu uma fi ta cinematográfi ca
sabe que ela é composta de fotogramas estáticos; o movimento que vemos
na tela é uma ilusão de ótica causada pela pós-imagem retiniana, ou
seja, a imagem demora um pouco a se “apagar” em nossa retina. Como
as imagens vão se sobrepondo em nossa retina, temos a sensação de
movimento; mas o que de fato está na tela é uma fotografi a estática.
A gestalt contrapõe-se ao behaviorismo por possuir uma
base epistemológica do tipo racionalista e por pressupor que todo
conhecimento é anterior à experiência, sendo fruto do exercício de
estruturas racionais, pré-formadas no sujeito.
Se a unilateralidade do positivismo consiste em desprezar a ação do
sujeito sobre o objeto, a do racionalismo consiste em desprezar a ação
do objeto sobre o sujeito. Todavia, nomear a gestalt como uma teoria
racionalista não implica afi rmar que ela negue a objetividade do mundo.
Implica afi rmar que ela não postula essa objetividade no sentido de uma
intervenção no processo de construção das estruturas mentais, através
das quais o sujeito apreende o real.
WOLFGANG KÖHLER
(1887-1967) E
KURT KOFFKA
(1886-1941)
Teóricos alemães representantes da gestalt que basearam seus
estudos psicofísicos na relação forma
e percepção, construindo a
base de uma teoria eminentemente
psicológica.
KURT LEWIN
(1890-1947)
Teórico norte-americano que parte da teoria da gestalt para construir um conhecimento novo, fruto do abandono da preocupação psicofi siológica e do encontro da Física como base metodológica de sua psicologia denominada teoria de campo.
GESTALT
É um termo alemão de difícil tradução; o termo mais próximo
em português seria forma ou confi guração.
A gestalt constitui-se numa tendência
teórica, em Psicologia, que estuda a percepção como ponto de partida e a considera também
um dos seus temas centrais.
aula5_pb.indd 53 5/19/2004, 11:33:31 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I
54 C E D E R J
A gestalt admite que a experiência passada possa infl uenciar na
percepção e no comportamento, mas não a defende como uma condição
necessária para tal. Por isso, é às variáveis biológicas e à circunstância
imediata que se deve recorrer para explicar a conduta. Para os gestaltistas,
as variáveis históricas não são determinantes nem são consideradas.
Na gestalt, fala-se em percepção; contradizendo o pressuposto
epistemológico do Behaviorismo, a gestalt rejeita a tese de que o
conhecimento seja fruto do comportamento apreendido. De acordo com
os seus teóricos, os sujeitos reagem não a estímulos específi cos, mas a
confi gurações perceptuais. As gestaltens (confi gurações) são as legítimas
unidades mentais para que a Psicologia deve voltar-se.
A gestalt lida com o conceito de estruturas mentais como sendo
totalidades organizadas, numa extrema oposição ao ATOMISMO BEHAVIORISTA.
Tais totalidades são organizadas em função de princípios de organização
inerentes à razão humana; logo, a estrutura da gestalt é uma estrutura
sem gênese, não comportando, pois, uma formação.
O conceito de totalidade com a qual a gestalt trabalha é irredutível
à soma ou ao produto das partes. Por isso, o todo é apreendido de
forma súbita, imediata, por uma reestruturação do campo peceptual
denominado INSIGHT.
Na gestalt a visão de homem subjacente é entendida como sendo
ele dotado de uma essência universal que antecede as condições históricas
que poderiam ser determinantes. A atuação do homem na sociedade está
determinada apenas pela sua própria vontade, pelas intenções inatas e
pelo signifi cado pessoal que ele atribui ao mundo.
Figura 5.1
ATOMISMO BEHAVIORISTA
Concepção que defende a aprendizagem a partir do estabelecimento de relações dos objetos mais simples para os mais complexos.
INSIGHT
Compreensão imediata de um objeto percebido a partir de um entendimento interno.
aula5_pb.indd 54 5/19/2004, 11:33:34 AM
AU
LA
5 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 55
Até aqui você já obteve uma gama de informações sobre a
visão psicológica do homem. Para ajudá-lo a organizar melhor essas
informações convém frisar o seguinte:
1. o behaviorismo considera o homem como um dado,
analisa os fenômenos psíquicos sem o suporte concreto
que se encontra na vida social e reduz o homem a uma
única dimensão: a do seu comportamento fi siológico;
2. a gestalt também considera o homem um dado, mesmo
privilegiando-o em sua dimensão fundamental para
fi ns de interpretação; porém, se abstém de considerá-lo
no nível de sua participação pela atividade prática na
sociedade em que se circunscreve.
A gestalt leva a opor-se ao desmembramento analítico da vida
psíquica as considerações de formas, de estruturas, de conjuntos admitidos
como realidades primitivas. Toda percepção é a de uma fi gura sobre um
fundo. O problema consiste, pois, essencialmente, em descrever estruturas
perceptivas globais, com vistas a reduzir a leis suas aparições e suas
transformações; em mostrar, principalmente, como a organização interna
que as condiciona lhes modifi ca os elementos componentes; e como basta
mudar um só desses elementos para modifi car uma estrutura global.
Essas considerações poderiam conduzir à admissão de uma
atividade estruturadora da vida psíquica, a realçar o papel do sujeito
no conhecimento. Paradoxalmente, tal não se dá; e os gestaltistas,
entendendo que as formas surgem num campo de percepção que se
organiza por si mesmo, muitas vezes alargam a noção de estrutura
global a ponto de tornar impossível a determinação da parte respectiva
do sujeito e do objeto no ato cognitivo.
Eis a hora, então, de passarmos ao segundo grupo de teorias
que leva em conta a interação homem-mundo (sujeito-objeto) e que
aqui denominamos Psicologia Genética. Desse grupo, salientamos as
contribuições de Piaget e Vygotsky.
O epistemólogo Piaget dedicou toda a sua vida à investigação de
um problema central: a formação e o desenvolvimento do conhecimento
no homem, inaugurando a Epistemologia Genética.
aula5_pb.indd 55 5/19/2004, 11:33:35 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I
56 C E D E R J
Piaget (1970) define a Epistemologia Genética a partir dos
seguintes princípios:
1. pesquisa interdisciplinar;
2. centrada na significação dos conhecimentos e nas
suas estruturas operatórias;
3. recorrência à História e funcionamento atual do
conhecimento;
4. referência aos aspectos lógicos do conhecimento;
5. referência à forma psicogenética do conhecimento ou
às suas relações com as estruturas mentais.
O interesse de Piaget não se dá apenas com o conhecimento
científi co, mas pelas formas de conhecimento típicas da ciência a partir
do estudo da gênese dessas formas e dos caminhos percorridos.
Piaget pesquisa a psicogênese do conhecimento, completando a
sociogênese, a fi m de constituir um mecanismo experimental capaz de
caracterizar a Epistemologia Genética como uma disciplina científi ca.
Os trabalhos de Piaget levaram-no à idéia central de que o
conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem
de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções
sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas.
Essas estruturas são resultantes da relação sujeito-objeto, em
que ambos os termos não se opõem, mas se solidarizam, formando
um todo único.
As ações do sujeito sobre o objeto e deste sobre aquele são
recíprocas. O ponto de partida não é o sujeito nem o objeto, e sim a
periferia de ambos.
Assim, o desenvolvimento da inteligência vai-se operando da
periferia para o centro, na direção dos mecanismos centrais da ação
do sujeito (dando lugar ao conhecimento lógico-matemático) e das
propriedades intrínsecas do objeto (dando lugar ao conhecimento do
mundo), que se relacionam mutuamente.
O sujeito constitui com o meio uma totalidade, sendo, portanto,
passível de desequilíbrio, em função das perturbações desse meio. Isso
o obriga a um esforço de adaptação, de readaptação, a fi m de que o
equilíbrio seja restabelecido.
aula5_pb.indd 56 5/19/2004, 11:33:35 AM
AU
LA
5 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 57
A adaptação comporta dois processos diferentes, porém
indissociáveis, que são a assimilação e a acomodação.
A assimilação cognitiva consiste na incorporação, pelo sujeito,
de um elemento do mundo exterior às suas estruturas de conhecimento,
aos seus esquemas sensório-motores ou conceituais.
Na assimilação, o sujeito age sobre os objetos que o rodeiam,
aplicando esquemas já constituídos ou já anteriormente solicitados.
A acomodação, termo complementar da relação sujeito-objeto,
representa o momento da ação do objeto sobre o sujeito.
A adaptação não pode ser dissociada da função de organização,
pois à medida que o indivíduo assimila/acomoda, a organização se faz
presente para integrar uma nova estrutura a uma outra preexistente que,
mesmo total, passa a funcionar como subestrutura.
A função de organização garante a totalidade, através da
solidariedade dos mecanismos de diferenciação e de integração,
preservando os fenômenos de continuidade e transformação.
A visão de homem aqui apresentada é a de que ele constitui
um sistema aberto, em reestruturações progressivas, cujo estágio fi nal
nunca será alcançado por completo. A sua inteligência desenvolve-se
tanto ONTOGENÉTICA quanto FILOGENETICAMENTE, sendo considerada uma
construção histórica.
O homem possui um grau de operatividade – motora, verbal e
mental – de acordo com o nível de desenvolvimento alcançado, bem
como possui um grau de visão de organização do mundo.
Na perspectiva piagetiana, toda conduta é uma adaptação; e
toda adaptação, um restabelecimento do equilíbrio entre organismo
e meio. Toda atividade implica um desequilíbrio momentâneo e a volta
ao equilíbrio é assinalada por um sentimento provisório de satisfação.
Nesse esquema muito genérico, suscetível de caracterizar outras
psicologias do comportamento, Piaget introduz os dois elementos em
questão (assimilação e acomodação) como os dois pólos da adaptação,
num sentido ao mesmo tempo biológico e mental. Todo ser vivo tende
a “assimilar” o mundo a seu organismo e a seus esquemas de ação
e pensamento. Se, no tocante ao organismo, a assimilação tende a
conservar-lhe a forma, a acomodação intervém nas condições exteriores
em função das quais ele se modifi ca.
ONTOGÊNESE
Diz respeito ao desenvolvimento
humano da fecundação até à
maturidade.
FILOGÊNESE
Diz respeito à história do desenvolvimento da espécie humana.
aula5_pb.indd 57 5/19/2004, 11:33:35 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I
58 C E D E R J
Do ponto de vista cognitivo, a assimilação é perceptiva e sensório-
motora: o objeto é percebido em relação com esquemas anteriores, isto
é, com o conjunto das operações mentais de que dispõe o sujeito. Por
exemplo: o bebê de um ano utiliza-se de suas cobertas, puxando-as em
sua direção, para apoderar-se de um objeto colocado sobre elas mas
excessivamente distante para que possa pegá-lo diretamente.
Já a acomodação aparece quando os esquemas anteriores devem
ser transformados para adaptar-se às propriedades de um objeto novo
que lhes opõe resistência.
Considerada sob o aspecto afetivo, a assimilação se confunde
com o interesse; e a acomodação, com o interesse por um objeto
enquanto novo. Assim, a adaptação constitui sempre um equilíbrio,
atingido quando o objeto, sem resistir em demasia à assimilação, resiste,
entretanto, sufi cientemente para que haja acomodação.
Essa tendência à assimilação, presente em diferentes níveis
– fi siológico, prático, intelectual – é, pois, fenômeno ao mesmo tempo
dinâmico, na medida em que o sujeito tende a estender sua esfera de ação
a uma parte cada vez mais vasta do meio ambiente, e conservador, na
medida em que tende a conservar sua estrutura interior e busca impô-la
às condições exteriores.
Semelhante concepção não poderia admitir uma lógica de algum
modo extrínseca, em relação aos próprios processos, e Piaget considera,
efetivamente, que a lógica é o espelho do pensamento, e não o inverso.
Nela vê uma axiomática da razão, da qual a Psicologia da inteligência
é a ciência experimental correspondente, e não crê que a lógica clássica,
enquanto permanecer numa forma descontínua e atomística de descrição,
possa ser considerada intangível.
Segundo Piaget, o sujeito assimila as realidades exteriores em certa
ordem, porque essa ordem é o que há de mais natural do ponto de vista
das fases do desenvolvimento da inteligência.
Vygotsky (1990) formulou uma teoria de superação às tradições
positivistas que pudesse estudar o homem e seu mundo psíquico como
uma construção histórica e social. O mundo psíquico está diretamente
vinculado ao mundo material e às formas de vida que os homens vão
construindo no decorrer da História.
Vygotsky desenvolveu uma estrutura teórica marxista para a
Psicologia a partir dos seguintes pressupostos:
aula5_pb.indd 58 5/19/2004, 11:33:36 AM
AU
LA
5 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 59
1. todos os fenômenos devem ser estudados como processos
em permanente movimento e transformação;
2. o homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a
natureza com sua atividade e seus instrumentos;
3. não se pode construir qualquer conhecimento a partir do
aparente, pois não se captam as determinações que são
constitutivas do objeto. Ao contrário, é preciso rastrear a
evolução dos fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu
movimento as explicações para a sua aparência atual;
4. a mudança individual tem sua raiz nas condições
sociais de vida; assim, não é a consciência do homem
que determina as formas de vida, mas é a vida que se tem que
determina a consciência.
Segundo essa abordagem, existem somente homens concretos,
situados no tempo e no espaço, inseridos num contexto socioeconômico-
cultural-político; enfi m, num contexto histórico.
O homem é considerado um sujeito que possui raízes espaço-
temporais: situado no e com o mundo.
A visão de homem que resulta do confronto e da colaboração
entre estas últimas abordagens permite resgatar:
1. a unidade do conhecimento, através da relação sujeito/
objeto, em que se afi rma, ao mesmo tempo, a objetividade
do mundo e a subjetividade;
2. a realidade concreta da vida do homem como fundamento
para toda e qualquer investigação.
R E S U M O
Você aprendeu, a partir da perspectiva psicológica, quatro visões de homem: em
duas delas o homem é encarado sem levar em conta as suas condições históricas
(behaviorismo e gestaltismo); as outras duas já encaram o homem a partir da relação
fundamental com o mundo e pressupõem a relação sujeito-objeto (PIAGET, 1976;
VYGOTSKY, 2000).
aula5_pb.indd 59 5/19/2004, 11:33:36 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica I
60 C E D E R J
EXERCÍCIOS:
1. Qual é a visão de homem subjacente no Behaviorismo?
2. Qual é a visão de homem subjacente na gestalt?
3. Quanto à visão de homem, quais são as diferenças e os pontos comuns existentes
entre o Behaviorismo e a gestalt?
4. Qual é a visão de homem defendida pela abordagem piagetiana?
5. Qual é a visão de homem encontrada na abordagem de Vygotsky?
AUTO-AVALIAÇÃO
Quanto às questões de número 1 e 2, é importante ressaltar que as visões de
homem concernentes a cada uma delas está relacionada aos objetivos principais
da produção do conhecimento psicológico num determinado momento histórico.
A terceira questão é um desdobramento das anteriores e requisita de você o
discernimento das propriedades fundamentais que caracterizam cada uma das
visões de homem subjacentes às teorias aqui estudadas, a fi m de destacar diferenças
e semelhanças existentes entre elas. Já as questões de números 4 e 5 devem revelar
visões de homem relacionadas à interação sujeito-objeto no processo cognitivo. E
então, você considerou proveitosa a leitura desta estação? Você conseguiu realizar
os exercícios sem grandes difi culdades? Se a sua resposta for negativa ou hesitante,
recomendamos que faça uma nova leitura. Caso sua resposta seja positiva, você
pode passar tranqüilamente para a próxima aula.
aula5_pb.indd 60 5/19/2004, 11:33:36 AM
6Homem: visão psicológica II
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Demarcar o objeto de estudo da Psicologia.
• Examinar as transformações da Psicologia como ciência a partir de diferentes momentos históricos.
• Dialogar com as principais teorias da Psicologia produzidas no século XX.
au
la
OBJETIVOS
aula6_pb.indd 61 5/19/2004, 11:40:47 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II
62 C E D E R J
O importante e bonito do mundo é
isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas, mas que elas vão
sempre mudando. Afi nam e desafi nam (Guimarães Rosa).
A presente Estação constitui um desdobramento da aula anterior. Aqui,
o estudante terá a oportunidade de ocupar-se da construção histórica da
Psicologia como ciência e de sua contribuição na formação dos professores.
Lembre-se de que a fi nalidade de passear por esta Estação está
vinculada à necessidade de entendimento dos estudos psicológicos em
Educação, bem como pressupõe retomar alguns conceitos fundamentais
trabalhados na Aula 5.
Autores como Heidbreder (1981) e Salvador (1999) advertem
que a tarefa de defi nir a Psicologia como ciência é bem mais árdua
e complicada. Comecemos, então, por defi nir o que entendemos por
ciência, para depois explicarmos por que a Psicologia é hoje considerada
uma de suas áreas.
Segundo Bachelard (1990), a ciência compõe-se de um conjunto
de conhecimentos sobre fatos ou dimensões da realidade (objeto de
estudo), expresso por meio de uma linguagem precisa e rigorosa.
Esses conhecimentos são obtidos de modo programado, sistemático e
controlado, para que se permita a constatação de sua validade.
Desse modo, caro estudante, podemos apontar o objeto dos diferentes
ramos da ciência e saber exatamente como determinado conteúdo foi
construído, possibilitando a reprodução da experiência. Isso quer dizer
que o saber pode ser transmitido, verifi cado, utilizado e desenvolvido.
Essa característica da produção científica possibilita sua
continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de
algo anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafi rmam-se, descobrem-se
novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência
caracteriza-se como um processo (JAPIASSU, 1988).
INTRODUÇÃO
aula6_pb.indd 62 5/19/2004, 11:40:55 AM
AU
LA
6 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 63
Pense no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele
nasceu de uma necessidade concreta, a crise do petróleo, e foi planejado
a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes
deste. Todavia, os primeiros automóveis movidos a álcool apresentaram
muitos problemas, como o seu mau funcionamento no clima frio; apesar
disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.
A ciência possui as seguintes características fundamentais:
• objeto específi co;
• linguagem rigorosa;
• métodos e técnicas específi cas;
• processo cumulativo do conhecimento;
• objetividade.
Essas características fazem da ciência uma forma de conhecimento,
e é o que permite que denominemos científico a um conjunto de
conhecimentos.
Você já deve estar perguntando qual é, afi nal, o objeto de estudo
da Psicologia.
Um conhecimento, para ser considerado científi co, requer um
objeto específi co de estudo. O objeto da Astronomia são os astros, já
o objeto da Biologia são os seres vivos. Essa classifi cação bem genérica
demonstra que é possível tratar o objeto dessa ciência com uma certa
distância, ou seja, é possível isolar o objeto de estudo. No caso da
Astronomia, o cientista-observador está, por exemplo, num observatório
e o astro observado, a anos-luz de distância de seu telescópio. Esse
cientista não corre o mínimo risco de se confundir com o fenômeno que
está estudando.
O mesmo não ocorre com a Psicologia que, como a Antropologia,
a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o homem. Certamente,
essa divisão é muito ampla e apenas coloca a Psicologia, como bem
sinaliza Japiassu (1982), entre as ciências humanas. Mas, afi nal, qual é
o objeto específi co de estudo da Psicologia?
Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele
dirá: “o objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”.
Se a palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “é o
inconsciente”. Outros dirão que é a consciência humana e outros,
ainda, a personalidade.
aula6_pb.indd 63 5/19/2004, 11:40:56 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II
64 C E D E R J
Percebemos que existe uma diversidade de objetos da Psicologia.
Essa situação nos permite questionar a caracterização da Psicologia como
ciência e postular que, no momento, não existe uma psicologia, mas
psicologias embrionárias e em desenvolvimento.
Considerando toda essa difi culdade na conceituação única do
objeto de estudo da Psicologia, optamos por apresentar uma defi nição
que sirva de referência para você.
A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos
das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um
desses ramos enfoca o homem de modo particular. Cada especialidade
– a Economia, a Política, a História etc. – trabalha essa matéria-prima
de modo particular, construindo conhecimentos distintos e específi cos a
respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetividade; é essa
a sua forma particular, específi ca, de contribuição para a compreensão
da totalidade da vida humana.
Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas
expressões: as visíveis (comportamento) e as invisíveis (sentimentos), as
singulares (somos o que somos) e as genéricas (somos todos assim) – é
o homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação; tudo
isso está sintetizado no termo “subjetividade”.
Segundo depreendemos das leituras de Foucault (1999, 2000),
estudar a subjetividade, atualmente, é tentar compreender a produção de
novos modos de ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja fabricação é
social e histórica. O estudo dessas novas subjetividades vai desvendando
as relações da cultura, da política, da economia e da história na produção
do mais íntimo e do mais observável no homem – aquilo que o captura,
submete-o ou mobiliza-o para pensar e agir sobre os efeitos das formas
de submissão da subjetividade.
Acreditamos que, agora, você já pode refl etir melhor sobre o
pensamento de Guimarães Rosa, colocado no início da aula. As pessoas não
são iguais, ainda não foram terminadas; na verdade, as pessoas nunca serão
terminadas, pois estarão sempre se modifi cando naquilo que ainda não são.
Mas por quê? Como? Porque a subjetividade – esse mundo interno
construído pelo homem como síntese de suas determinações – não
cessará de se modifi car, pois as experiências sempre trarão novos
elementos para renová-la.
Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja subjetividade
e possamos, então, dar continuidade à nossa aula desta Estação.
aula6_pb.indd 64 5/19/2004, 11:40:56 AM
AU
LA
6 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 65
A fi m de compreender a diversidade com que a Psicologia se
apresenta hoje, torna-se necessário recuperar a sua história. A história de
sua construção está ligada, em cada momento histórico, às exigências
de conhecimento da humanidade, às demais áreas do conhecimento
humano e aos novos desafi os colocados pela realidade político-social e
pela insaciável necessidade do homem de compreender-se.
É entre os fi lósofos gregos que surge a primeira tentativa de
sistematizar uma Psicologia. O próprio termo psicologia vem do grego
psyché, que signifi ca alma, e de logos, que signifi ca razão. Portanto,
etimologicamente, Psicologia signifi ca “estudo da alma”. A alma ou
espírito era concebida como a parte imaterial do ser humano e abarcaria
o pensamento, os sentimentos de amor e ódio, a irracionalidade, o desejo,
a sensação e a percepção.
Os fi lósofos pré-socráticos – assim chamados por antecederem
SÓCRATES – preocupavam-se em defi nir a relação do homem com o mundo
através da percepção. Discutiam se o mundo existe porque o homem
o vê ou se o homem vê um mundo que já existe. Havia uma oposição
entre os idealistas e os materialistas.
Mas é com Sócrates (469-399 a. C.) que a Psicologia na Antigüidade
ganha consistência. Sua principal preocupação era com o limite que separa
o homem dos animais. Dessa forma, postulava que a principal característica
humana era a razão. A razão permitia ao homem sobrepor-se aos instintos,
que seriam a base da irracionalidade. Ao defi nir a razão como peculiaridade
do homem ou como essência humana, Sócrates abre um caminho que seria
muito explorado pela Psicologia. As teorias da consciência são frutos dessa
primeira sistematização na Filosofi a.
O passo seguinte é dado por Platão (427-347 a. C.), discípulo de
Sócrates. Platão procurou defi nir um lugar para a razão no nosso próprio
corpo. Defi niu esse lugar como sendo a cabeça, onde se encontra a alma
do homem. A medula seria o elemento de ligação da alma com o corpo.
Tal elemento de ligação era necessário, porque Platão concebia a
alma separada do corpo. Quando alguém morria, a matéria (o corpo)
desaparecia, mas a alma fi cava livre para ocupar outro corpo.
Aristóteles (384-322 a. C.), discípulo de Platão, foi um dos mais
importantes pensadores da história da Filosofi a. Sua contribuição foi
inovadora ao postular que alma e corpo não podem ser dissociados.
Para Aristóteles, a psyché seria o princípio ativo da vida. Tudo aquilo
que cresce, se reproduz e se alimenta possui a sua psyché ou alma. Desta
forma, os vegetais, os animais e o homem teriam alma. Os vegetais teriam
a alma vegetativa, que se defi ne pela função de alimentação e reprodução.
SÓCRATES
(469-399 A.C.)
Filósofo ateniense que participou do movimento de renovação
cultural feito pelos sofi stas, revelando-
se um inimigo deles. Convidado
a fazer parte do Senado, manifestou
sua liberdade de espírito combatendo
as medidas que considerava injustas.
aula6_pb.indd 65 5/19/2004, 11:40:57 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II
66 C E D E R J
Os animais teriam essa alma e a alma sensitiva, que tem a função de
percepção e movimento. E o homem teria os dois níveis anteriores e a
alma racional, que tem a função pensante. Aristóteles chegou a estudar
as diferenças entre a razão, a percepção e as sensações. Esse estudo
está sistematizado no Do anima, que pode ser considerado o primeiro
tratado em Psicologia.
Em síntese, 2300 anos antes do advento da Psicologia científi ca,
os gregos já haviam formulado duas teorias: a platônica, que postulava
a imortalidade da alma e a concebia separada do corpo, e a aristotélica,
que afi rmava a mortalidade da alma e a sua relação de pertencimento
ao corpo.
Durante o período medieval, a Igreja Católica monopolizava o
saber e, conseqüentemente, o estudo do psiquismo. Nesse sentido, dois
grandes fi lósofos representavam esse período: Santo Agostinho (354-430)
e São Tomás de Aquino (1225-1274).
SANTO AGOSTINHO, inspirado em Platão,
também fazia uma cisão entre alma e corpo. Para
ele, a alma não era somente a sede da razão, mas
a prova de uma manifestação divina no homem.
A alma era imortal por ser o elemento que liga o
homem a Deus. E, sendo a alma também a sede
do pensamento, a Igreja passa a se preocupar da
mesma forma com sua compreensão.
SÃO TOMÁS DE AQUINO foi buscar em
Aristóteles a distinção entre essência e existência.
Como o filósofo grego, considerava que o
homem, na sua essência, buscava a perfeição
através da sua existência. Porém, introduzindo
o ponto de vista religioso, ao contrário de
Aristóteles, afi rmava que somente Deus seria
capaz de reunir a essência e a existência, em
termos de igualdade. Portanto, a busca de
perfeição pelo homem seria a busca de Deus.
Já durante o período do Renascimento,
RENÉ DESCARTES (1596-1650) um dos filó-
sofos que mais contribuiu para o avanço da ciência, postulava a
separação entre mente (alma, espírito) e corpo, afirmando que o
homem possui uma substância material e uma substância pensante,
e que o corpo, desprovido do espírito, é apenas uma máquina.
SANTO AGOSTINHO
(354-430)
Bispo de Hipona, na Argélia; foi um dos mais importantes iniciadores da fi losofi a cristã, sendo um dos responsáveis pela articulação entre o pensamento fi losófi co clássico e o Cristianismo. SÃO TOMÁS DE
AQUINO
(1224-1274)
Pertencente à Ordem dos Dominicanos,
percorre toda a Europa Medieval.
Sua imensa obra compreende duas
Sumas: Suma contra os gentios e Suma
Teológica. Ele tenta demonstrar que não há nenhum confl ito
entre fé e razão.RENÉ DESCARTES
(1596-1650)
Autor da proposição "Penso, logo existo". Toda a sua obra visa
demonstrar que o conhecimento requer
um fundamento metafísico, a partir da dúvida, como método
de investigação.
aula6_pb.indd 66 5/19/2004, 11:40:57 AM
AU
LA
6 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 67
Esse dualismo psico-físico (mente-corpo) tornou possível o estudo do
corpo humano morto, o que era impensável nos séculos anteriores, uma
vez que o corpo era considerado sagrado pela Igreja, por ser a sede da
alma, e dessa forma possibilitou o avanço da Anatomia e da Fisiologia,
que iria contribuir em muito para o progresso da própria Psicologia.
O berço da Psicologia moderna foi a Alemanha do fi nal do
século XIX. Seu estatuto de ciência foi obtido à medida que se liberta
da Filosofi a, que marcou sua história até aqui, e atraiu novos estudiosos
e pesquisadores que, sob novos padrões de produção de conhecimento
(MUELLER, 1978), passam a:
• defi nir seu objeto de estudo (o comportamento, a vida
psíquica, a consciência);
• delimitar seu campo de estudo, diferenciando-o de outras
áreas de conhecimento, como a Filosofi a e a Fisiologia;
• formular métodos de estudo desse objeto;
• formular teorias como um corpo consistente de
conhecimentos na área.
Essas teorias obedeciam aos critérios básicos da metodologia
científica, ou seja, a busca da neutralidade do conhecimento, a
comprovação dos dados e o caráter cumulativo do conhecimento, ponto
de partida para outros experimentos e pesquisa na área. Os pioneiros da
Psicologia procuraram, dentro das possibilidades, atingir esses critérios
e formular teorias. Entretanto, para Shultz (1981), os conhecimentos
produzidos inicialmente caracterizaram-se muito mais como postura
metodológica que norteava a pesquisa e a construção teórica.
Embora a Psicologia científi ca tenha nascido na Alemanha, é nos
Estados Unidos que ela encontra campo para um rápido crescimento,
resultado do grande avanço econômico na vanguarda do sistema
capitalista. É ali que surgem as primeiras abordagens ou escolas em
Psicologia, as quais deram origem às inúmeras teorias que existem
atualmente. Essas abordagens são: o Funcionalismo, o Estruturalismo
e o Associacionismo.
aula6_pb.indd 67 5/19/2004, 11:41:02 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II
68 C E D E R J
O Funcionalismo é considerado como a primeira sistematização
genuinamente americana de conhecimentos em Psicologia. Para a escola
funcionalista de WILLIAM JAMES, importa responder “o que fazem os homens”
e “por que o fazem”. Para responder, James elege a consciência como o
centro de suas preocupações e busca a compreensão de seu funcionamento,
na medida em que o homem a usa para adaptar-se ao meio.
O Estruturalismo está preocupado com a compreensão do mesmo
fenômeno que o Funcionalismo – a consciência. Mas, diferentemente
de James, TITCHENER irá estudá-la em seus aspectos estruturais, isto é, os
estados elementares da consciência como estruturas do sistema nervoso
central. Essa escola foi inaugurada por WUNDT, na Alemanha, mas foi
Titchener, seguidor de Wundt, quem usou o termo estruturalismo pela
primeira vez, no sentido de diferenciá-lo do Funcionalismo. O método
de observação de Titchner, assim como o de
Wundt, é a introspecção, e os conhecimentos
psicológicos produzidos são eminentemente
experimentais, ou seja, produzidos em
laboratórios.
Já o Associacionismo tem como seu
principal representante Thorndike, e sua
importância está em ter sido o formulador
de uma primeira teoria da aprendizagem na
Psicologia. Sua produção de conhecimentos
caracterizava-se por uma visão de utilidade
desse conhecimento.
O termo associacionismo origina-se da
concepção de que a aprendizagem se dá por
um processo de associação de idéias – das mais
simples às mais complexas. Thorndike formulou
a lei do efeito, que seria de grande utilidade para a
Psicologia Comportamentalista. De acordo com
essa lei, todo comportamento de um organismo
vivo (um homem, um animal) tende a se repetir,
se for recompensado (efeito). Por outro lado, o
comportamento tenderá a não acontecer se o
organismo for castigado (efeito) após sua ocorrência. E pela lei do efeito
o organismo irá associar essas situações com outras semelhantes.
WILLIAM JAMES
(1842-1910)
Foi o mais destacado precursor da corrente funcionalista em Psicologia. Sua obra em dois volumes, The Principles of Psychology (1890), foi virtualmente um clássico mesmo antes de ser publicada, visto que o livro tinha aparecido em revistas, de forma periódica, à medida que os capítulos eram completados.
EDWARD TITCHENER
(1867-1927)
Fundador da Psicologia Estrutural nos Estados Unidos com o ensaio The Postulates of a Structural Psychology (1898). Fez a distinção entre o tipo de observação da ciência física (olhar para) e o tipo de observação psicológica ou introspecção (olhar dentro).
WILHELM WUNDT
(1832-1920)
Considerado o pai da Psicologia
Experimental. Instalou o primeiro laboratório
formal de Psicologia, na Universidade
de Leipzig, em 1879. Destacou três
aspectos da Psicologia Experimental:
análise dos processos conscientes em seus elementos,
descoberta sobre como esses elementos se correlacionavam e determinação das leis
de correlação.
aula6_pb.indd 68 5/19/2004, 11:41:02 AM
AU
LA
6 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 69
No entanto, caro estudante, a Psicologia Científica, que se
constituiu das três escolas descritas acima, foi substituída, no século XX,
por novas teorias, como o Behaviorismo e a Gestalt (estudadas na Aula 5),
bem como a Psicanálise, que nasce com FREUD, na Áustria, a partir da
prática médica, e recupera para a Psicologia a importância da afetividade,
postulando o inconsciente como objeto de estudo e quebrando a tradição
da Psicologia como ciência da consciência e da razão.
As tendências teóricas mencionadas anteriormente constituíram-se
em matrizes do desenvolvimento da Psicologia, propiciando o surgimento
de inúmeras abordagens da Psicologia contemporânea, entre elas a
Psicologia Sociohistórica.
Mesmo tendo sido estudada na Aula 5, gostaríamos de assinalar
nesta estação alguns pontos fundamentais dessa abordagem de
conhecimento em Psicologia, devido à sua importância no campo de
formação do professor.
Tendo como referência a nova abordagem
teórica formulada por VYGOTSKY, buscava-se
construir uma Psicologia que superasse as
tradições positivistas e estudasse o homem e seu
mundo psíquico como uma construção histórica
e social da humanidade, a partir dos seguintes
princípios (VYGOTSKY, 1990):
1. a compreensão das funções superiores
do homem não pode ser alcançada pela
psicologia animal, pois os animais não têm
vida sociocultural;
2. as funções superiores do homem não podem
ser vistas apenas como resultado da maturação
de um organismo que já possui, em potencial,
tais capacidades;
3. a linguagem e o pensamento humano têm origem
social. A cultura faz parte do desenvolvimento
humano e deve ser integrada ao estudo e à
explicação das funções superiores;
4. a consciência e o comportamento são
aspectos inte-grados de uma unidade, não
podendo ser isolados pela Psicologia.
FREUD
(1856-1939)
Criador da Psicanálise, começou
a desenvolver sua teoria no início do século XX,
alcançando fama e notoriedade.
Em 1910, preside a Associação Internacional
de Psicanálise. Principais obras: A Interpretação
dos Sonhos e Psicopatologia da
Vida Cotidiana.
LEV VYGOTSKY
(1896-1934)
Sob a perspectiva ideológica marxista, produziu uma teoria original do desenvolvimento intelectual com base na relação entre pensamento e linguagem. Suas pesquisas abarcam o campo da Psicologia do Desenvolvimento, da Educação e da Psicopatologia. Uma de suas principais obras é Pensamento e Linguagem.
aula6_pb.indd 69 5/19/2004, 11:41:07 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II
70 C E D E R J
Vygotsky (2000) desenvolveu também uma estrutura teórica
marxista para a Psicologia:
1. todos os fenômenos devem ser estudados como processos
em permanente movimento e transformação;
2. o homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a
Natureza com sua atividade e seus instrumentos;
3. não se pode construir qualquer conhecimento a partir do
aparente, pois não se captam as determinações que são
constitutivas do objeto. É preciso rastrear a evolução dos
fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu movimento
as explicações para sua aparência atual;
4. a mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de
vida. Assim, não é a consciência do homem que determina
as formas de vida, mas é a vida que se tem que determina
a consciência.
Vygotsky não somente considerava que a Educação é dominante
no desenvolvimento cognitivo, como também é a quintessência da
atividade sociocultural. Ele estava claramente interessado em saber
como as formas humanas de pensamento se desenvolviam fi logenética
e socioculturalmente; seu trabalho se centrava nas origens sociais e nas
bases culturais do desenvolvimento individual. Ele sustentava que os
processos psicológicos superiores se desenvolvem nas crianças através da
enculturação das práticas sociais, através da aquisição da tecnologia da
sociedade, de seus signos e ferramentas e através da educação em todas
as suas formas.
Para Vygotsky, as escolas representam os melhores laboratórios
culturais para estudar o pensamento: contextos sociais especifi camente
desenhados para modifi car o pensamento. Ele destacava, em particular,
a organização social do ensino, ao escrever sobre a forma única de
cooperação entre crianças e adultos (que é o elemento central do
processo educativo), e como, por esse processo interativo, se transfere
conhecimento à criança em um sistema defi nido. Ao falar de um sistema
defi nido, Vygotsky se refere à organização social do ensino e à forma
como proporciona uma socialização especial do pensamento das crianças.
aula6_pb.indd 70 5/19/2004, 11:41:08 AM
AU
LA
6 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 71
Em particular, enfatizava duas características do ensino: uma era o
desenvolvimento da tomada de consciência; e outra, o controle voluntário
do conhecimento.
Dada a ênfase de Vygotsky no contexto social do pensamento,
o estudo do câmbio educativo tem um importante signifi cado teórico
e metodológico em seu enfoque; representa a reorganização de um
sistema social chave e modos associados de discurso com conseqüências
potenciais para o desenvolvimento de novas formas de pensamento.
Vygotsky destacava também o câmbio educativo como objetivo
prático de sua psicologia. Em parte, essa preocupação pela importância
do câmbio prático surgia de sua orientação marxista.
No Brasil, Vygotsky vem sendo estudado e utilizado na área de
Educação desde a década de 1980, através das teorias construtivistas da
aprendizagem, principalmente a partir da infl uência de Emília Ferreiro.
Chegamos ao fi nal de mais uma Estação. Esperamos que você
tenha desfrutado de forma prazerosa os conhecimentos que aqui se
apresentaram. Antes de passarmos à próxima Estação, convém examinar
os principais aspectos da aula e, em seguida, fazer os exercícios para
fi xação da aprendizagem.
R E S U M O
Você aprendeu que o objeto de estudo da Psicologia é a subjetividade e que,
como ramo da Filosofi a, estuda a alma. Durante a Idade Média, a Psicologia estava
relacionada ao conhecimento religioso. Já no Período Moderno, a racionalidade
do homem apareceu como a grande possibilidade de construção do conhecimento,
e a Psicologia constituiu-se na forma científi ca a partir do Funcionalismo, do
Estruturalismo e do Associacionismo, para logo em seguida desembocar, no
século XX, na produção de novas teorias: o Behaviorismo, a Gestalt, a Psicanálise,
a Psicologia Sócio-histórica.
aula6_pb.indd 71 5/19/2004, 11:41:09 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão psicológica II
72 C E D E R J
EXERCÍCIOS
1. Explique o objeto de estudo da Psicologia.
2. Descreva os pensamentos de Sócrates, Platão e Aristóteles acerca dos estudos
da alma.
3. Como se apresentam os estudos da alma na Idade Média?
4. Por que Descartes contribuiu para a evolução dos estudos em Psicologia?
5. Cite pelo menos dois novos padrões de estudo na constituição da Psicologia
Científi ca.
6. O que é a Psicologia Sócio-histórica?
AUTO-AVALIAÇÃO
Se você conseguiu responder a todas as questões sem difi culdades, recomendamos
que passe para a próxima aula. Caso tenha sentido alguma difi culdade, será
imprescindível mais uma leitura atenta desta aula. Entretanto, lembramos que
a pergunta referente ao objeto da Psicologia requer uma resposta objetiva e
concisa. Já as respostas concernentes à segunda, terceira e quarta questões devem
servir de base para você organizar as primeiras concepções acerca do estudo da
Psicologia no mundo ocidental. A resposta à quinta questão deve ser também
objetiva, porque revela alguns eixos importantes na confi guração da Psicologia
como atividade científi ca. A resposta à sexta questão torna-se fundamental para
compreender a contribuição dos estudos contemporâneos da Psicologia no campo
da formação do professor.
aula6_pb.indd 72 5/19/2004, 11:41:09 AM
7Homem: visão socioantropológica
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Compreender o homem como um ser por inteiro: biopsico-sociocultural.
• Identifi car a cultura como fornecedora de vínculos entre o que os homens são capazes de se tornar e o que eles verdadeiramente se tornam.
• Conhecer as principais áreas da Antropologia: Biológica; Pré-Histórica; Lingüística; Psicológica, Social e Cultural.
au
la
OBJETIVOS
aula7_pb.indd 73 5/19/2004, 2:19:11 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica
74 C E D E R J
É necessário analisar cuidadosamente o sistema das representações
que os indivíduos e os grupos, membros de uma determinada
sociedade, formulam sobre seu meio. É a partir destas representações
que os indivíduos ou os grupos atuam sobre o meio (GODELIER,
1981).
HOMEM: VISÃO SOCIOANTROPOLÓGICA
Nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação"
prossegue. Acabamos de parar na estaçãozinha de uma pequena cidade
brasileira. De repente, percebemos que a atenção de quase todos em
nosso vagão está voltada para alguma coisa na plataforma, fazendo com
que se debrucem nas janelas.
Olhemos, prezado aluno! Lá está: dois homens e uma mulher,
com traços indígenas, oferecem aos passageiros de nosso trem peças de
artesanato. Cocares feitos de penas multicoloridas; fl echas preparadas
com bambu; colares lindíssimos, confeccionados com sementes e com
dentes de animais.
Podemos observar, caro aluno, que se trata de índios aculturados,
isto é, que já assimilaram a cultura dos brancos, pois se vestem com
roupas semelhantes às nossas; calçam sapatos, como gente branca; e
usam até com bastante correção a língua portuguesa.
Olhar para os representantes dessa cultura indígena é relativizar
o pensar sobre a realidade humana, observando as diferenças e com elas
as ideologias, os mitos, os rituais, os valores, a ética e a estética.
Superada a surpresa e o estranhamento, podemos concluir que
estamos diante de uma manifestação cultural bastante diferente da
nossa, embora já sofrendo o desgaste provocado pelo contato com o
homem branco.
Nosso trem retoma sua marcha, e agora podemos ligar esse
acontecimento à presente aula. Isso porque, prezado aluno, nosso tema
é a visão sobre o Homem proporcionada pela Antropologia.
Antropologia vem de antrophos, que signifi ca homem, e logia,
que quer dizer estudo. Essa é, portanto, a ciência dedicada ao estudo do
homem. E num enfoque particular: o homem como ser cultural, isto é,
produtor de cultura e, ao mesmo tempo, constituído por essa mesma
cultura que produz.
aula7_pb.indd 74 5/19/2004, 2:19:30 PM
AU
LA
7 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 75
A Antropologia nasceu justamente a partir da observação,
pelo antropólogo, de culturas diferentes da sua, numa atitude de
estranhamento e de curiosidade, exatamente como nos aconteceu ainda
há pouco naquela estaçãozinha imaginária lá atrás.
Com esta aula, prezado aluno, não desejamos fazer de você
um antropólogo, mas apenas despertar o seu “olhar”, no sentido de
contemplar atentamente o que vê, procurando ver além, olhando com
curiosidade acentuada tudo o que acontece ao seu redor.
Dedicando-se ao estudo das diversas culturas, a Antropologia
transformou-se no campo em que se desenvolveram várias abordagens
metodológicas, isto é, métodos de estudo. Entre essas abordagens,
a denominada “observação participante” – ou seja, um procedimento de
pesquisa em que o antropólogo ao invés de manter-se a distância, como se
pudesse não envolver-se com seu objeto de pesquisa, efetivamente se envolve,
participa – tornando-se elemento central. Tudo isso sem que o pesquisador
pretenda se transformar em um nativo daquela cultura pesquisada.
Nesta aula, caro aluno, o objetivo central é lançar um olhar
antropológico sobre o Homem, esse ser de cultura. E, tendo em conta o
nosso curso de Licenciatura, isto é, um curso de formação de professor,
temos a meta, no dizer de Edgar Morin, de “ensinar a condição humana”,
ou seja, de pensar o Homem e sua educação do ponto de vista antropológico,
reconhecendo-o em sua humanidade comum e, ao mesmo tempo, aceitando
a diversidade cultural inerente a tudo o que é humano.
Conhecer o homem é situá-lo no universo; é buscar as respostas
para as indagações, tais como: Quem somos? Onde estamos? De onde
viemos? Para aonde iremos?
O primeiro passo nessa direção poderá ser dado relembrando as
cenas iniciais do fi lme 2001: Uma odisséia no espaço, do diretor Stanley
Kubrick.
O fi lme mostra como viviam os hominídeos, que são ancestrais,
na escala evolutiva, dos seres humanos atuais: sua alimentação, à base de
gramíneas; sua forma de luta, na qual vencia quem era capaz de gritar mais
alto; o modo como habitavam, em cavernas; como morriam atingidos pelo
frio; seu medo diante de todas as ameaças; e a espera pelo sol, que fazia
ressurgir a vida, vencendo a geada e trazendo de volta a vegetação.
Figura 7.1:Cartaz do fi lme 2001:
Uma odisséia no espaço.
aula7_pb.indd 75 5/19/2004, 2:19:30 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica
76 C E D E R J
Numa cena importante do fi lme, vemos que esses homens das
cavernas, por acaso, ao bater com um osso maior numa ossada, acabaram
passando a representar não a ossada sofrendo os golpes, mas o próprio
animal sendo abatido. Desse modo, imaginavam o animal (símbolo do
perigo) sendo vencido sem que corressem os riscos de uma situação real.
O importante é que você perceba que a vida de babuínos, macacos,
chimpanzés e, depois, dos hominídeos já apresenta uma organização
complexa. Os chimpanzés, por exemplo, revelam afetividade, inteligência
e habilidades. Basta vê-los cuidar dos fi lhos, caçar usando pedras ou
construir abrigos.
Essas espécies de animais, como resultado de um processo
evolutivo, vão ser responsáveis pelo processo de hominização do
homem — processo biológico, psicológico e cultural. Uma evolução
antropocultural desencadeou uma evolução bionatural.
Podemos perceber que a cultura, ao mesmo tempo em que emerge
de um processo natural, infl uencia e intervém nesse processo.
O homem chegou à condição de sapiens através da cultura:
instituiu regras, criou as pequenas sociedades, evoluiu, passando de
um estágio organizacional (sociedade fechada) para um estágio mais
complexo (sociedade aberta).
Com o ser humano, surgiram o desenvolvimento da técnica, o
pensamento, a cultura e a sociedade. Por isso não se pode estabelecer
separações entre “espécie”, “homem” e “cultura”, cabendo à Antropologia
estudar essa complexidade, tanto no que se refere aos componentes
genético e sociológico, quanto à responsabilidade do homem na construção
e manutenção do mundo de hoje.
Vemos, com a Antropologia Pré-histórica, que a evolução do
Homem é uma aventura de milhões de anos, com o surgimento de novas
espécies e o aparecimento da linguagem humana, ao mesmo tempo em que
se constitui a cultura – saberes, crenças, mitos, ritos, ideologias que são
transmitidos de geração a geração.
O hominídeo humaniza-se, e o conceito de homem ganha um
duplo princípio: um biofísico e o outro psico-sociocultural. Esses
princípios remetem-se um ao outro. O humano é a um só tempo
plenamente biológico e plenamente cultural.
aula7_pb.indd 76 5/19/2004, 2:19:31 PM
AU
LA
7 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 77
Ao trabalhar com a Educação, educamos o ser humano em todas
as suas dimensões: racionalidade (HOMO SAPIENS), capacidade técnica
(homo faber), homem das atividades utilitárias (homo ecomonicus) e
necessidades obrigatórias (homo prosaicus).
Lembra Edgar Morin (2001) que o homem da racionalidade é
também o da afetividade, do mito e do delírio (demens); o homem do
trabalho é igualmente o homem do jogo (ludens); o homem empírico é da
mesma forma o homem imaginário (imaginarius); o homem da economia
é também o homem do consumismo (consumans); e homem prosaico é
o mesmo homem da poesia, do amor, do êxtase. O amor é poesia.
É esse Homem, prezado aluno, que estará sob a sua guarda e
proteção, e para quem você deverá fazer valer a sua consciência
antropológica: ver o ser humano por inteiro, uma vez que a
educação deve aspirar não apenas ao progresso, mas à sobrevida
da humanidade (MORIN, 2001).
Você poderá fazer valer os princípios da Antropologia na medida
em que valorize, por exemplo, os rituais que ocorrem no cotidiano da
sua sala de aula.
Segundo DaMatta, o ritual coloca em close up as coisas do
mundo social. Assim, na medida em que você observar os rituais,
poderá compreender como a sua sala de aula está (des)organizada
(DAMATTA, Roberto).
A dinâmica da sua sala de aula é um acontecimento “sagrado”
da educação, onde ocorrem vários rituais, dentre eles os seguintes:
• rituais de instrução, representados por um conjunto
de atividades executadas em sala de aula, durante um
dia escolar;
• rituais de revitalização, que ocorrem através das relações
professor-aluno, sobre a importância de dominarem a
matéria e de atingirem os objetivos escolares;
• rituais de intensifi cação, através da tentativa de unifi car
os grupos. Estes rituais têm a função de favorecer o
fortalecimento emocional entre você e seus alunos, na
busca de reforçar valores. (MCLAREN, Peter);
• rituais de resistência, que desestruturam as rotinas
do seu dia-a-dia. Em algumas situações há presença
marcante de confl itos, de resistências intencionais.
HOMO SAPIENS
Expressão que signifi ca “homem sabedor”, isto é, dotado de razão,
capaz de produzir e de benefi ciar-se do
conhecimento.
aula7_pb.indd 77 5/19/2004, 2:19:31 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica
78 C E D E R J
Na medida em que você detectar esses ritos ou rituais, poderá
compreender as mais diferentes mensagens emitidas por seus alunos, que
comunicam uma informação, propícias a interpretações, à comunicação
e à transformação.
Lembre-se, prezado aluno, de que a sala de aula é o “núcleo
estruturado” da escola, em função de ser ritualmente o espaço consagrado
do processo de ensino-aprendizagem. O aluno vai à escola para aprender,
para adquirir competências necessárias ao viver social. É isso que você,
seu aluno, a família e a sociedade esperam da escola.
Você já passou por vários locais na nossa interessante viagem.
Estudou o homem do ponto vista da Filosofi a, da História e da Psicologia.
Nesta aula você está tendo uma visão antropológica. A Antropologia
consiste no estudo do homem por inteiro, em suas múltiplas dimensões, e
em qualquer tipo de sociedade. O objetivo é não parcelar o homem, mas
vê-lo como de fato se situa em sua vida concreta: num espaço geográfi co,
cultural ou histórico particular, como um ser inacabado.
Existem cinco áreas principais na Antropologia. Embora cada uma
tenha suas especifi cidades, elas mantêm estreitas relações entre si.
A Antropologia Biológica estuda as variações dos caracteres
biológicos do homem, no tempo e no espaço; as relações entre o
patrimônio genético e o meio; os fatores culturais que infl uenciam
no crescimento e na maturação do ser humano. Ela pode auxiliar seu
trabalho quando você questiona os diferentes estágios psicomotores das
crianças situadas em diferentes meios culturais: na periferia, na zona
rural, na favela. Mais do que simplesmente estudar as formas de crânio,
peso, cor de pele, como originariamente esse campo antropológico fazia,
busca-se, hoje, examinar tudo o que se relaciona com o que é INATO e o
que é adquirido pelo homem.
A Antropologia Pré-Histórica dedica-se ao estudo dos vestígios
materiais deixados pelo homem em eras remotas, visando reconstruir as
sociedades desaparecidas, tanto em suas técnicas de organização social
quanto nas produções sociais e artísticas.
A Antropologia Lingüística dedica-se ao estudo da linguagem como
parte do patrimônio cultural, investigando, inclusive, a questão ampla da
comunicação e de seus meios e técnicas. A linguagem não é um fenômeno
simples e uniforme; são muitas as suas modalidades e formas, como a
linguagem das emoções, a teórica, a gestual, a verbal e a simbólica.
INATO
Signifi ca aquilo que já se possui por ocasião do nascimento, em contraposição ao que se adquire depois, nos meios em que se vive.
aula7_pb.indd 78 5/19/2004, 2:19:31 PM
AU
LA
7 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 79
Principais teóricos da Antropologia:
BOAS E MALINOWISKI
Fundadores da Etnografi a.
A Antropologia Psicológica consiste no estudo dos processos e
do funcionamento do psiquismo humano. A apreensão da totalidade
do homem se dá através dos comportamentos conscientes e
inconscientes.
A Antropologia Social e Cultural (ou Etnologia) investiga o homem
como ser social e tudo o que diz respeito a sua vida e ação em sociedade:
modos de produção econômica, técnicas, organização política, sistemas
de parentesco e de conhecimento, crenças religiosas, língua, expressões
psicossociais, criações artísticas.
Vale acentuar que a Antropologia consiste menos no levantamento
sistemático de cada um dos aspectos acima indicados do que em mostrar a
maneira como se relacionam, confi gurando a especifi cidade da sociedade
humana. Isso é o que caracteriza a já mencionada visão de totalidade
praticada por essa ciência do homem.
A Antropologia não é, portanto, apenas a investigação de tudo
que compõe uma sociedade; ela é o estudo de todas as sociedades
humanas e, conseqüentemente, do homem em sua diversidade bio-
psico-sociocultural.
De todas, a Antropologia Social e Cultural pode ser considerada a
mais abrangente, por relacionar-se com tudo o que compõe a sociedade.
Enquanto a vertente de investigação social valoriza a totalidade das
relações, a Cultural apreende o social através dos comportamentos
particulares dos membros de um determinado grupo, dos integrantes
de uma mesma cultura.
Tendo em conta que estamos num trecho de nossa viagem dedicado
à apresentação da Antropologia, que se constitui numa das formas de
estudo do ser humano, torna-se necessário compreender quem é esse
Homem transformado em objeto dos estudos antropológicos. Para tanto,
escolhemos a visão do sociólogo francês Edgar Morin.
DURKHEIM, MAUSS E GRIAULE
Antropologia francesa.
aula7_pb.indd 79 5/19/2004, 2:19:32 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica
80 C E D E R J
Morin (1990), situando-se na linha
de uma Socioantropologia da COMPLEXIDADE,
apresenta os múltiplos aspectos do homem
como ser complexo.
O homem é um ser cultural (na nossa
primeira aula você conheceu a defi nição de
cultura); um ser que chegou à condição humana
pela evolução da cultura, um complexo que
abrange tanto as condições que lhe são dadas
(biológicas, ambientais) quanto aquelas que o
homem cria, ao construir o mundo humano
(aspecto que também foi abordado na primeira
aula de nosso curso, a primeira parada em nossa
viagem).
Tomar o homem nessa visão de complexidade, biopsico-
sociocultural, signifi ca adotar uma concepção diferente da visão biolo-
gista – que percebe a vida como algo fechado no organismo – ou da visão
antropologista – que tem uma concepção do homem como um ser isolado.
Para chegar ao ponto em que está – como homo sapiens –, o ser humano
percorreu um longo caminho, como mostra a viagem que fazemos nestas
aulas. Houve uma demorada e complexa evolução, não apenas biológica,
mas espiritual, sociológica, multidimensional, resultante das interferências
genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais.
Nessa linha do pensamento complexo, podemos citar Crespi,
quando afi rma:
A cultura, enquanto dimensão antropológica, pode ser considerada
na ordem do vivente como o resultado evolutivo da complexidade
crescente dos modos de relação e de comunicação intersubjetivos
e intermundanos. A especifi cidade do nível cultural com relação
ao nível natural pode ser percebida não somente na maior
complexidade do primeiro, mas também no seu grau mais elevado
de indeterminação (CRESPI apud TEIXEIRA, 1990, p. 85).
É esse ser complexo, contraditório, criativo, sempre sujeito ao
aperfeiçoamento, que o professor tem diante de si. Podemos dizer,
portanto, que o homem é, como já afi rmamos, um ser sempre inacabado,
passível de constante e eterna melhoria, condicionado pelas situações
em que vive, mas aberto a todas as possibilidades.
MALINOWISKI E RADCLIFF-BROWN
Antropologia britânica.
BOAS, KROEBER E R. BENEDICT
Antropologianorte-americana.
COMPLEXIDADE
Para Morin, a palavra lembra problema, não solução. É a qualidade
do que é complexo. O termo vem do
latim, complexus, que signifi ca “o
que abrange muitos elementos ou
partes”. Trata-se da congregação de elementos que são partes do todo. O
todo é uma unidade complexa, não se
reduz à mera soma das partes.
aula7_pb.indd 80 5/19/2004, 2:19:38 PM
AU
LA
7 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 81
São a Cultura, em geral, e a Educação, em particular,
que podem permitir a construção e o aperfeiçoamento do
homem e das civilizações. Nós pertencemos à denominada
Civilização Ocidental. Somos frutos de seus acertos e de
seus fracassos. Mudar o que precisa ser mudado exige
não apenas suprimir os confl itos, as desordens, em
nome de uma harmonia que não seria humana, incapaz de ser atingida,
sendo apenas um ideal. Os confl itos, as desordens, os desacertos geram
crises que, enfrentadas de forma criativa, podem signifi car pontos de
reorganização, de avanço, de melhoria na condição humana.
Leia atentamente o que nos diz Morin sobre a necessidade de
pensarmos sobre a complexidade da realidade física, biológica e humana,
uma vez que os fenômenos da ordem, desordem e organização estão
presentes no Universo, na vida, na evolução biológica:
Se olharmos para o céu, por exemplo, inicialmente teremos a
sensação da desordem com as estrelas dispostas aleatoriamente,
totalmente dispersas. Entretanto, se olharmos consecutivamente
o céu, noite após noite, constataremos uma ordem cósmica e
aparentemente imutável até mesmo na posição das estrelas. Nessa
conjugação ordem-desordem constatamos pois a organização do
Universo a partir das transformações e do acaso, haja vista que
estrelas desintegram-se, implodem e explodem e assim desaparecem,
enquanto outras surgem (MORIN, 1990, p. 152).
Você já deve ter entendido que a Antropologia preocupa-se com
o homem em todas as suas dimensões. Ela requer uma busca incessante
da sua compreensão como ser complexo, em sua diversidade, nas diferentes
culturas, na vida cotidiana de cada grupo, nas interações, na relação com o
Outro, que a Antropologia defi ne como alteridade. Através da descrição
e da observação, constrói-se um conhecimento fundado na percepção
do Outro, o que acaba sendo fundamental para a própria percepção do Eu.
Mais um filme pode nos ajudar a pensar, desta vez sobre a
alteridade: A volta ao planeta dos macacos. A história retratada no fi lme
é a de um mundo em que a relação se inverte: ao invés de os homens
dominarem os macacos, estes é que dominam, tornando-os seus escravos.
Os homens são tratados com brutalidade pelos macacos, e têm de lutar
desesperadamente para sobreviver. Localizada no ano de 2029, a trama do
fi lme conta como um astronauta, em missão de rotina pelo espaço, sofre um
acidente, indo parar nesse mundo primitivo dominado pelos macacos.
O mito é sempre uma repre-
sentação coletiva, transmitida
através de várias gerações e que
relata uma explicação do mundo
(BRANDÃO, Junito de Souza).
!
aula7_pb.indd 81 5/19/2004, 2:19:45 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica
82 C E D E R J
Os macacos apresentados no fi lme são muito inteligentes e têm,
inclusive, a capacidade de falar. Ajudados por alguns dos macacos
dissidentes e ativistas, os humanos se rebelam e promovem um ataque
aos animais que os dominam. O objetivo é alcançar um templo sagrado,
onde estão guardados segredos do passado e as indicações que garantirão
o futuro da humanidade.
O fi lme nos mostra, portanto, o homem do ponto de vista dos
macacos, os quais, em seu processo de dominação, impõem uma nova
visão de mundo a partir da cultura tecida... pelo próprio homem!
A partir de agora, você, como professor, poderá organizar seu
trabalho didático adotando a visão antropológica que lhe foi apresentada
nesta etapa de nossa viagem, isto é, levando em conta a cultura em que a
escola está inserida, o tipo de vida vivida por seus alunos, suas condições
socioeconômico, cultural e política, o momento histórico em que se
situam, e a visão de mundo que em conseqüência possuem.
Com isso, você estará compreendendo o seu aluno como um ser
por inteiro, isto é, nos seus sentimentos, interesses, medos, segredos,
sonhos, como um ser biopsico-sociocultural que pensa, que sente e que
age, necessitando ter suas aspirações, anseios e necessidades atendidas.
A escola e todos os outros espaços onde ocorrem as atividades
educativas, institucionalizadas e empreendidas de forma sistemática ou
assistemática, constituem-se em lugares indispensáveis para a realização
humana em toda a sua complexidade.
Você, como professor, torna-se um agente nesse espaço, um mediador
entre a cultura estabelecida e a que se constrói e se institui. Adotando um
olhar antropológico em relação a seu aluno, e a você mesmo, você poderá
perceber que o respeito à individualidade e ao espaço sociocultural são
fundamentais para uma prática educacional inclusiva. Tal prática signifi ca
que a escola, em vez de excluir os “diferentes”, numa atitude discriminadora
(em relação à condição socioeconômica, à raça, ao gênero etc.), deve oferecer
as possibilidades para que o educando receba, elabore e reelabore a cultura,
como ser humano ativo, criativo e complexo.
É hora de olhar para trás, observando por que caminhos, relativos
à visão antropológica sobre o Homem, nosso trem nos conduziu.
Vimos inicialmente que o estudo do homem levado a efeito pela
Antropologia considera-o em sua totalidade biopsico-sociocultural e que,
além disso, toma-o como um ser inacabado; aberto, portanto, a todas
as possibilidades.
aula7_pb.indd 82 5/19/2004, 2:19:46 PM
AU
LA
7 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 83
Em seguida, observamos que essa visão total proporcionada
pela Antropologia é construída a partir de áreas especializadas:
as Antropologias Biológica, Pré-histórica, Lingüística, Psicológica e Social
e Cultural, também denominada Etnologia.
Continuando a viagem, adotamos a visão do homem à luz da
Socioantropologia da complexidade, tal como proposta por Morin, bem
diferente das li mitadas e simplifi cadoras visões tradicionais biologista e
antropologista. O homem foi apresentado, então, como um ser cultural,
multidimensional, contraditório e criativo.
A seguir, essa visão antropológica acerca do ser humano permitiu
examinar o papel da Educação e do professor, sendo este considerado
um agente da humanização, encarando de forma criativa e renovadora
a ordem, a desordem e a organização, consideradas do ponto de vista
da complexidade.
Finalmente, você, professor, foi conclamado a assumir seu papel
tomando como base essa nova visão antropológica, tornando-se capaz
de olhar seu aluno como um ser total, ao qual devem ser oferecidas
todas as condições para a realização de seus desejos e satisfação de
suas necessidades.
Para ter a oportunidade de exercitar o que aprendeu, apresentamos
a você algumas sugestões:
1. Tente conseguir os dois fi lmes mencionados neste segmento
de nossa viagem. Assista a eles e procure identifi car: a) os
aspectos que poderiam ser abordados por cada uma das
cinco áreas da Antropologia indicadas anteriormente; b)
como, na trama dos fi lmes, esses aspectos são apresentados
de forma integrada.
2. Ainda com a ajuda da observação dos fi lmes, procure
descobrir alguns fatores mediante os quais a espécie
transformou os hominídeos em homens.
3. Imaginando-se com a incumbência de dar uma aula sobre
o que é a Antropologia e de que trata, escreva um pequeno
texto com a fi nalidade de explicar isso a seus alunos.
4. Faça uma pesquisa entre seus alunos, procurando saber
como eles vivem, quais os seus interesses, necessidades;
descubra do que mais gostam e do que menos gostam em
casa, na rua, na cidade e na escola.
aula7_pb.indd 83 5/19/2004, 2:19:46 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Homem: visão socioantropológica
84 C E D E R J
5. Procure conhecer, sobre seus alunos: o peso, a altura,
a idade e o modo como se alimentam; os hábitos de
higiene; com quem moram, onde moram e em que
condições; o tamanho da família; se e como fenômenos
de ordem social, por exemplo, a violência, os envolvem; a
preocupação com o ambiente; a questão da sexualidade;
o interesse pela arte, pela religião. Enfi m, descubra tudo o
que possa sobre a cultura de seus alunos. Não se esqueça
de que a proposta é a da compreensão de seu aluno por
inteiro, como defende a Socioantropologia.
6. Tente exercer uma escuta cuidadosa, sensível, de como
seus alunos percebem a si mesmos na sala de aula, quais
as tarefas que gostam de executar, quais aquelas em
que têm difi culdade; descubra como os deveres de casa
são realizados e como gostariam que as aulas fossem
ministradas. Procure saber quais os reais motivos que
levam seus alunos à escola. Depois de todas essas
informações coletadas, observe se vale a pena repensar
seu trabalho docente.
aula7_pb.indd 84 5/19/2004, 2:19:46 PM
AU
LA
7 M
ÓD
ULO
1
C E D E R J 85
AUTO-AVALIAÇÃO
• O que aprendi nesta aula modifi cou minha visão sobre o homem?
• A partir da releitura desta aula, tenho clareza acerca do que signifi ca considerar
o homem um ser biopsico-sociocultural?
• Consigo entender a importância que os estudos antropológicos têm para a
Educação e, particularmente, para as visões dos educadores sobre seus alunos?
• Procurei seguir atentamente as orientações contidas nesta aula?
• Li, reli e analisei cada um dos aspectos apresentados?
• Sinto necessidade de maiores explicações sobre o tema?
• Preciso do auxílio do professor-tutor?
• Li as notas inscritas na margem do texto?
Na próxima aula nosso trem vai parar numa Estação especial. Ela se chama
Pensando o Homem e apresenta uma síntese de tudo o que foi estudado até
aqui. Você poderá rever todas as concepções acerca do homem: a fi losófi ca, a
histórica, a psicológica e a socioantropológica. Terá, também, a oportunidade de
fazer exercícios, fi xando e consolidando o que foi estudado.
Boa viagem!
aula7_pb.indd 85 5/19/2004, 2:19:46 PM
8Pensando o Homem
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Rever concepções, conceitos e noções estudados
au
la
OBJETIVOS Pré-requisito
aula8_pb.indd 87 5/20/2004, 10:21:01 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem
88 C E D E R J
PENSANDO O HOMEM
Os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência
dos sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras
soltas do alfabeto; o Homem é a sintaxe (ASSIS, 1994).
Neste momento, caro aluno, é chegada a hora de uma parada mais
prolongada em nossa viagem. Assim como nas longas viagens de trem,
são necessárias paradas para descanso e para BALDEAÇÃO, este é o momento
em que pararemos para repensar e rever tudo o que foi estudado até
aqui. Imagine-se, portanto, numa grande estação em que várias linhas
férreas se cruzam; viajantes das mais diversas procedências circulam,
embarcam e desembarcam; tipos os mais diferentes, os mais exóticos,
se apresentam a seus olhos. Para compreender toda a movimentação,
você deverá comparar o que já viu e tentar sintetizar e dar sentido à
complexidade que se apresenta. Para tanto, você deverá ter à mão todas
as aulas anteriores, das quais procuraremos destacar, nesta aula-síntese,
os pontos mais importantes.
No primeiro trecho de nossa viagem estudamos a visão fi losófi ca
acerca do Homem. Usando da curiosidade, do interesse amplo e
aprofundado que caracterizam a Filosofi a, olhamos pelas janelas do
vagão de nosso trem e nos fi xamos num ser em particular: o Ser Humano.
Sintetizando as indagações na pergunta “Que é o Homem?”, a Filosofi a
percebe o animal humano como um ser especial entre os seres; um ser
que constrói um mundo humano utilizando-se de sua capacidade não
somente de conhecer o mundo que o cerca mas de reconhecer-se nesse
mundo que constrói. Enquanto os outros animais reagem ao meio em
que vivem, o ser humano edifi ca um mundo humano, pleno de sentido
e de signifi cação, um mundo que, além de real, é também simbólico.
O Homem, na visão fi losófi ca, é um ser capaz de refl exão, a partir
da qual pode saber, além de simplesmente fazer.
Nesta Estação você, relembrando o que foi ensinado, perceberá
que a Filosofi a é o mediador refl exivo entre as diversas instâncias do saber.
Isto signifi ca dizer que a prática do fi losofar deve buscar uma integração
entre os diferentes tipos de conhecimentos que participam do processo
escolar de ensino-aprendizagem: os vários ramos científi cos que se
apresentam como diferenciados por objeto e método particulares.
Nas antigas estações situadas nos entroncamentos ferroviários mais importantes, os viajantes faziam
BALDEAÇÃOou seja, passavam de um trem para outro, que os levaria a seu destino fi nal; é o equivalente à conexão, nas viagens de avião.
aula8_pb.indd 88 5/20/2004, 10:21:14 AM
AU
LA
8 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 89
Portanto, estudando o Homem na visão fi losófi ca, você estará apto a
desenvolver e a aperfeiçoar a sua habilidade de análise e de refl exão
crítica, argumentando, operando através de conceitos e por regras de
passagem a níveis mais abstratos de pensamento.
Lembramos, nesta aula, a responsabilidade do professor frente ao
mundo do trabalho, revendo a visão marxista sobre a Educação e suas
relações com as atividades produtivas. Nessa parte, o destaque foi em
relação à não-redução do homem às necessidades, mas a preocupação
com o processo natural-pragmático de satisfação das necessidades, de
modo a não ampliar a alienação e contribuir para que o homem construa
a si mesmo e à sociedade.
Importa não separar o pensar do fazer, a teoria da prática, o
cérebro da mão, o estudo do trabalho e o ensino da produção.
Outro aspecto importante assinalado é que a condição humana é
fruto da vivência coletiva dos homens num mundo comum e em condições
sociais e históricas determinadas. A Educação é um processo que promove
a mediação entre cada indivíduo e a sociedade em que ele se insere, num
determinado momento histórico e em condições sociais determinadas.
Vimos também que uma das manifestações mais signifi cativas
desse universo humano, desse mundo de artefatos e de fenômenos
culturais resultantes da ação humana, é a Educação. Ela confi gura um
processo de humanização do Homem.
No percurso de nossa viagem que corresponde à aula
denominada Homem: visão fi losófi ca, assinalamos que a Educação
constrói modelos mediante os quais norteia a ação educativa. E foi
possível observar que, na Educação brasileira, são identificáveis
diferentes concepções de Educação – tradicional, escolanovista,
tecnicista e progressista, e que em cada uma delas pode-se perceber
uma determinada visão de homem. Na concepção tradicional, o homem
é considerado um ser físico e espiritual, constituído por uma essência
única e imutável, sendo sua fi nalidade, na vida, dar expressão à sua
própria natureza; na concepção escolanovista, o homem é um ser que
se encontra em contínua interação com o meio, sendo sua natureza
maleável, determinada pelo processo humano de ajustamento social.
aula8_pb.indd 89 5/20/2004, 10:21:14 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem
90 C E D E R J
Nessa interação constante com o ambiente, o homem modifi ca o meio,
sendo também por ele modifi cado; na concepção tecnicista, o homem
é produto do meio, uma conseqüência das forças existentes em seu
ambiente, um ser cientifi camente explicável, sendo seu comportamento
governado por leis científi cas; na concepção progressista, o homem é
um ser situado num mundo material, concreto, social, econômico e
ideologicamente determinado, o qual lhe cabe transformar. A natureza
humana vai-se constituindo histórica e socialmente.
Seguindo em nossa viagem, percorremos outros dois trechos, nos
quais o Homem foi apresentado numa visão histórica, contemplando
os seguintes períodos: Antigüidade Oriental, Antigüidade Ocidental,
Mundo Medieval, Mundo Moderno e Mundo Contemporâneo. O
objetivo fundamental dessas aulas foi refl etir criticamente sobre os
princípios, valores, eventos e circunstâncias históricas e socioeconômicas
que serviram de base para as concepções acerca do Homem e de sua
Educação nos diferentes momentos históricos.
Na primeira dessas etapas de nossa viagem foi possível observar
que a dimensão tempo é importantíssima. Diferentes épocas históricas
geraram diferentes concepções de Educação, seus fundamentos, seus
objetivos, suas práticas. Como exemplo, podemos imaginar nosso trem
viajando pela Antigüidade Oriental e, depois, pela Ocidental. Pelas
janelas imaginárias, veríamos educações completamente diferentes, nesses
dois mundos culturalmente tão diferentes. Assim, no mundo Oriental,
observavam-se, na formação do Homem, a harmonia, a obediência, o
poder da palavra e da língua escrita e a conformação com a hierarquia.
No mundo antigo Ocidental, o pensar e o falar eram imprescindíveis ao
homem; a retórica era fundamental; o Homem é preparado para tornar-se
um cidadão, integrando-se aos destinos de sua PÓLIS.
Prosseguindo em nossa trajetória,
descortinou-se a visão da Idade Média. Nela,
observamos que a concepção de mundo era
fundamentalmente TEOLÓGICA. Constatamos
que o parâmetro do homem medieval era a
subordinação à fé. Santo Agostinho e São
Tomás de Aquino, fi lósofos que marcaram o
período, apregoavam que valores como honra,
justiça e fidelidade deveriam submeter-se
ao valor supremo: a crença em Deus.
PÓLIS
É o termo grego usado para “cidade”. Daí a expressão “cidadão”, usada até hoje para designar os que exercem os direitos e deveres correspondentes à cidadania.
TEOS
Signifi ca “relativo a Deus, ou à
transcendência”. Desse modo,
“teológica” é uma visão de mundo,
segundo a qual, em última instância,
o fundamento e a garantia de todos os
saberes é a divindade.
aula8_pb.indd 90 5/20/2004, 10:21:14 AM
AU
LA
8 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 91
O homem somente estava autorizado a conhecer o que não agredisse e
contrariasse a fé. O saber não necessitava ser transmitido, já que o homem
trazia o conhecimento dentro de si, fruto da iluminação proporcionada
por Deus, numa junção de fé e razão. Lembre-se, prezado aluno, que o
importante era não contrariar as verdades estabelecidas pela Igreja.
A História inscreve-se na dimensão temporal. E, como cantava
nosso inesquecível Cazuza, “o tempo não pára”. Aparentemente
parados nesta Estação de baldeação, usamos com sabedoria uma visão
retrospectiva, revendo os pontos fundamentais estudados nos trechos
percorridos até aqui em nossa viagem, vendo que bons tempos e tempos
marcados por momentos peculiares fazem parte do transcorrer da
História, construindo nossa memória social.
Continuamos a viajar na imaginação, fazendo o percurso permitido
pela memória, que nos oferece a oportunidade de refl etir acerca do Homem
na modernidade, época da superação da visão teocêntrica e da valorização
do Homem como centro do Universo – era da busca e da afi rmação da
razão como instrumento fundamental para o conhecimento. O Homem,
insatisfeito com as explicações sobre o mundo e as coisas vigentes até então,
busca novas verdades. O mundo não é mais concebido como estático, e
o homem passa a ser visto, ao mesmo tempo, como um ser em processo
constante de mutação e capaz de promover mudanças.
Os séculos passam e a razão, já proclamada na modernidade,
tem suas bases ampliadas no mundo contemporâneo, em função das
mudanças ocorridas nos campos político, econômico, social e cultural.
É o período do “homem iluminado” – a luz era a Razão Humana, do
homem livre que, orientado pela racionalidade, buscava a investigação,
a experimentação e a descoberta. O homem passa a viver sob a égide
dessas novas exigências. É livre, ao mesmo tempo em que vive sob o
jugo da força do capital e do trabalho. E necessita da Educação para
viver nessa nova civilização, que atribui valor ao progresso através
das descobertas científi cas e tecnológicas. A ação educativa se volta
para a formação numa dimensão que valoriza a efi ciência, a efi cácia
e a produtividade, esquecendo que, para além da dimensão racional e
intelectiva, o homem é um ser dotado de sensibilidade, que necessita viver
e conviver, numa relação que valoriza o estar junto, a ética, a estética e
o querer viver social.
aula8_pb.indd 91 5/20/2004, 10:21:14 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem
92 C E D E R J
Agora observe a riqueza de detalhes da Estação em que nos
encontramos. Olhe em volta e veja: a vegetação bem próxima, aquelas
moitas de capim que vão se abrindo com o deslocar do vento — como
se fossem fl ores — os dormentes que permitem a junção dos trilhos, a
plataforma com seus bancos envernizados, o grande relógio de porcelana
branca, com numeração em algarismos romanos, fi xado na parede. Preste
atenção aos outros passageiros que aguardam para ocupar seus devidos
lugares nos vagões, além do condutor, do chefe do trem, do maquinista
e de outros funcionários da ferrovia, que, uniformizados, cumprem suas
tarefas, inclusive a de controlar o tempo de espera e o horário de saída,
orientando os passageiros, levando-os aos seus destinos — passageiros
com os mais diferentes sonhos, expectativas e desejos. Essa imagem
pode ser tomada como modelo da trajetória humana, com os homens,
em sua diversidade biopsico-socioeconômica, construindo aquilo que
denominamos História.
Precisamos nos deter um pouco mais nesta Estação para revermos
o Homem na visão psicológica e na visão antropológica. Não há pressa;
o trem não está na hora de partir.
No trecho da viagem dedicado à visão psicológica você estudou
dois grupos de teorias: a primeira, que concebe o homem como um
ente a-histórico, desvinculado das condições históricas e da realidade
social; e a segunda, em que o homem é considerado um sujeito situado
historicamente. A primeira está representada pelas teorias behaviorista e
gestaltista. A teoria behaviorista reduz o homem a uma única dimensão:
a do comportamento fi siológico; a gestaltista considera-o dotado de uma
essência universal que antecede as condições históricas. Num segundo
momento, você teve a oportunidade de conhecer um outro grupo de
teorias, baseadas na interação homem-mundo (sujeito-objeto), a partir
das contribuições de Piaget e Vigotsky.
Para Piaget, o conhecimento não procede nem da experiência
única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no
sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de
estruturas novas.
Daí resulta uma visão de Homem segundo a qual ele constitui um
sistema aberto, em reestruturação progressiva cujo estágio fi nal nunca
será alcançado por completo. O sujeito constitui com o meio uma
totalidade, na busca incessante de adaptação e de readaptação.
aula8_pb.indd 92 5/20/2004, 10:21:15 AM
AU
LA
8 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 93
Vigotsky formulou uma teoria que considera o mundo psíquico
diretamente vinculado ao mundo material e às formas de vida que os
homens vão construindo no decorrer da História. Nesta dimensão teórica,
existem somente homens concretos, situados no tempo e no espaço,
inseridos num contexto socioeconômico-cultural-político, enfi m, num
contexto histórico. O homem é considerado um sujeito que possui raízes
espaço-temporais: está situado no e com o mundo.
Lembre-se sempre de que este homem, sobre o qual tanto
conversamos, é o seu aluno e de que, na medida em que refl ete acerca
de cada uma dessas visões, você estará conhecendo-o melhor; esta deverá
ser a sua preocupação maior como educador.
Faltam poucos minutos para o trem partir para continuar sua
trajetória conduzindo-nos pela "Terra dos Fundamentos da Educação".
Das janelas de nosso trem serão descortinadas muitas outras coisas
importantes, desafi antes e indispensáveis para a formação de um professor.
Vamos, portanto, aproveitar o tempo que nos resta para rever o último
aspecto estudado até aqui: o Homem na visão socioantropológica.
Acreditamos que você tenha seguido nossa orientação e assistido
aos dois fi lmes: 2001: Uma odisséia no espaço e A volta ao planeta dos
macacos. Esperamos que você tenha percebido a intenção desse trecho
de nossa viagem: conhecer o ser humano, uma vez que a Educação deve
estar centrada na condição humana. E conhecer o humano exige respostas
a perguntas como: quem somos? Onde estamos? De onde viemos?
E para onde vamos?
Tivemos o cuidado de esclarecer que existem cinco áreas principais
na Antropologia, com estreitas ligações entre si. Nesta Estação de
espera dedicamos nosso tempo a recordar e, como diz a nossa música
popular, “recordar é viver...”. Então, consideramos necessário repassar
a apresentação das áreas da Antropologia, lembrando que nossa
preocupação está voltada para a Antropologia Sociocultural.
As variações dos caracteres biológicos do homem, no tempo e
no espaço, as relações entre o patrimônio genético e o meio, os fatores
culturais que infl uenciam no crescimento e na maturação do ser humano
são aspectos estudados pela Antropologia Biológica.
A Antropologia Pré-histórica estuda os vestígios materiais
deixados pelo homem de eras remotas, com o objetivo de reconstruir
as sociedades desaparecidas, suas técnicas de organização social e suas
produções sociais e artísticas.
aula8_pb.indd 93 5/20/2004, 10:21:15 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem
94 C E D E R J
A Antropologia Lingüística estuda a linguagem como parte
do patrimônio cultural, tratando, inclusive, da questão ampla da
comunicação e de seus meios e técnicas. Esse campo especializado
demonstra que são muitas as modalidades e formas de linguagem, como
a das emoções, a teórica, a gestual, a verbal e a simbólica.
O estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano
é o campo da Antropologia Psicológica. É onde se busca a apreensão
da totalidade do ser humano, que se dá através dos comportamentos
conscientes e inconscientes.
E o que estuda, afi nal, a Antropologia Social e Cultural (ou Etno-
logia)? Ela investiga o homem como ser social e tudo o que diz respeito
a sua vida e sua ação em sociedade: modos de produção econômica,
técnicas, organização política, sistemas de parentesco e de conhecimento,
crenças religiosas, língua, expressões psicossociais, criações artísticas.
Ficou demonstrado que a Antropologia não é, portanto, apenas
a investigação de tudo que compõe uma sociedade; ela é o estudo de
todas as sociedades humanas e, conseqüentemente, do homem em sua
diversidade biopsico-sociocultural.
Observamos que a Antropologia Social e Cultural é a mais
abrangente, já que se relaciona com tudo que compõe a sociedade:
a vertente de investigação social valoriza a totalidade das relações; a
cultural apreende o social através dos comportamentos particulares
dos membros de um determinado grupo, dos integrantes de um mesmo
ambiente cultural.
Levando em conta esse panorama conceitual, importa que você
adentre o mundo da Antropologia, buscando compreender essa visão
de homem. Para isso, é preciso recordar alguns pontos fundamentais,
tais como:
• O hominídeo humaniza-se, isto é, torna-se homem. Pela
cultura e na cultura ele se realiza. É importante lembrar
que o conceito de homem envolve os princípios biofísico
e psico-sociocultural. O Homem é o que podemos
denominar “um ser por inteiro”, inacabado; aberto,
portanto, a todas as possibilidades.
aula8_pb.indd 94 5/20/2004, 10:21:15 AM
AU
LA
8 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 95
A Educação necessita do exame e do estudo da complexidade
humana. Se você não conhece seu aluno como um ser por inteiro, certamente
não conseguirá alcançar os objetivos educacionais que você pretende.
• Para compreender o modo de pensar, sentir e agir do seu
aluno, importa conhecê-lo e apreender o modo como ele
vive no grupo cultural a que pertence. A Antropologia
oferece este campo de investigação, e coloca nas nossas
mãos o enfoque etnográfi co. Este possibilita o estudo
dos rituais contidos na vida escolar, cujas características
e manifestações expressam uma multiplicidade de signi-
fi cados. Tentar entender tais signifi cados, caro aluno, é
fundamental para compreender, desde o funcionamento
da instituição escolar, até a trama simbólico-imaginária
que permeia o espaço educativo, nela incluída a relação
professor-aluno.
• Podemos afi rmar agora que, desde o primeiro trecho de
nossa viagem até esta Estação de baldeação, de espera,
tivemos como objetivo maior estudar o Homem, e estudá-
lo numa visão multidimensional, tal como o concebem a
Filosofi a, a História, a Psicologia e a Socioantropologia.
Nosso objetivo foi integrar, unir, articular as diversas áreas de
conhecimento do Homem, pois acreditamos num olhar transdisciplinar,
que exige o intercâmbio e essas articulações. Na transdisciplinaridade é
possível derrubar fronteiras e unir saberes, estabelecendo correlações.
Outra intenção foi a de promover relações entre as áreas do
conhecimento, entre as disciplinas, e a vida vivida na sua prática
educativa, de modo que você seja capaz de construir um saber uno sobre
o homem, um todo constituído por muitos e signifi cativos aspectos.
aula8_pb.indd 95 5/20/2004, 10:21:15 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o Homem
96 C E D E R J
AUTO-AVALIAÇÃO
• O que aprendi durante todas as aulas modifi cou minha visão sobre o Homem?
• A partir da releitura desta aula, tenho clareza acerca do que signifi ca considerar
o homem “numa visão multidimensional”?
Consigo entender a importância que os estudos fi losófi cos, históricos, psicológicos
e antropológicos têm para a Educação e, particularmente, para as visões dos
educadores sobre seus alunos?
• Tenho condições de entender e conferir a devida importância aos símbolos e
rituais que ocorrem no cotidiano escolar?
• Li, reli e analisei cada um dos aspectos apresentados?
• Sinto necessidade de maiores explicações sobre o tema “O homem numa visão
multidimensional”?
• Preciso do auxílio do professor-tutor?
Estou preparado para seguir viagem, parar em outras Estações, conhecer outros
desafi os e assuntos fundamentais para a minha atuação como educador?
aula8_pb.indd 96 5/20/2004, 10:21:15 AM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
9Os diferentes tipos de conhecimento a
ul
a
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Identifi car e compreender as questões presentes no conhecimento.
• Identifi car e compreender diferentes tipos
OBJETIVOS
aula9_pb.indd 97 5/20/2004, 8:56:05 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
98 C E D E R J
Conquistamos o sentido da palavra pensar quando nós mesmos
pensamos. Para que tal empreendimento aconteça, devemos estar
preparados para aprender a pensar (HEIDEGGER, 1958).
OS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO
Senhor passageiro! Vamos entrar agora no percurso de nossa
viagem em que discutiremos o conhecimento humano. Esperamos
que aproveite bastante todas as delícias que os conhecimentos sobre o
conhecimento poderão lhe oferecer.
Faz parte da natureza humana proble-matizar
MA R T I N HE I D E G G E R
Filósofo alemão do século XX, considerado por muitos o maior fi lósofo daquele século e um dos responsáveis pelos novos rumos da Filosofi a contemporânea. Ele empreendeu toda uma crítica à tradição fi losófi ca, procurando novamente apresentar a importância capital de se colocar a pergunta pelo “ser” das coisas (ou seja: por aquilo que faz com que uma coisa seja o que é).
a realidade que a cerca, levantando questões
sobre a origem e o sentido das coisas naturais
e sobrenaturais, das nossas ações, intenções,
fi nalidades, da beleza e do feio. MARTIN HEIDEGGER
declarou que o ser humano era aquele que, por
excelência, podia se perguntar pelo sentido do
ser. Quando você diz “a porta é de madeira”,
você está, na partícula é (terceira pessoa do
verbo ser), afi rmando, em primeiro lugar, a
existência daquela porta. Naquela corriqueira
e simples frase, temos a imensa tarefa humana
de dizer não apenas à existência dos objetos mas
também a nossa necessidade de conhecê-los, de
nomeá-los, de CATEGORIZÁ-LOS.
“A porta é de madeira”. Como
sabemos que a porta é de madeira? Podemos
confiar na palavra da Ciência, que, mediante
métodos científicos, estabeleceu e provou que
a matéria-prima daquela porta tem uma certa
consistência que foi fixada como sendo a da
madeira. Podemos também aceitar a opinião
geral do senso comum, que reconhece aquela
matéria-prima como sendo a da madeira.
CA T E G O R I Z A R
Segundo o Dicionário de Filosofi a Ferrater Mora, a categoria é uma noção “que serve como regra para a investigação ou para a sua investigação lingüística em qualquer campo” (p. 114). Categorizar é distribuir por categorias. Exemplo: a porta é de madeira ou de ferro ou de alumínio ou de pedra.
PA R M Ê N I D E S
Pensador grego do século V a.C.. Afi rmou já naquela época que deveríamos nos preocupar apenas com as coisas que são. Vimos antes que o verbo ser afi rma, em primeiro lugar, a existência de algo. Assim, de acordo com esse fi lósofo, devemos nos preocupar em conhecer as coisas que existem. Se elas existem, de algum modo se ‘mostrarão’ para nós, sujeitos do conhecimento.
aula9_pb.indd 98 5/20/2004, 8:56:16 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 99
Ou podemos também acreditar na palavra de algum mito religioso que
nos narrará que aquela matéria-prima foi forjada como madeira por
um deus (ou por deuses) e dada de presente aos homens para que estes
construíssem portas, barcos ou qualquer outro utensílio. Ou podemos
acatar a palavra da arte, que nos informa que naquela porta foi usada
madeira e que ela foi belamente trabalhada no estilo colonial brasileiro
(tal como nas portas de fazenda).
Você percebeu que esses exemplos são modos distintos de conhecer
um mesmo objeto? Sim? Então, ponto para você. A conclusão é essa
mesma: há diferentes tipos de conhecimentos presentes no nosso dia-a-
dia e que são utilizados por nós o tempo todo. O objetivo desta aula é
fazer com que você os compreenda para que possa identifi cá-los melhor
no seu cotidiano.
Contudo, antes de abordarmos os diferentes tipos de conhecimentos,
há algumas questões que precisamos esclarecer. Vamos a elas.
Em todo conhecimento há uma relação fundamental entre um sujeito que vai conhecer algo e um objeto
que vai se dar a conhecer. Podemos dizer, portanto, que o pressuposto fundamental do conhecimento é
o estabelecimento de uma relação entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido. Se esse
objeto não se mostrar de alguma maneira para o sujeito, ele não poderá ser conhecido.
!
Primeira questão
O pressuposto fundamental do conhecimento: a relação sujeito-objeto
Não importa a qual tipo de conhecimento você está se referindo.
Em todos eles você encontrará subjacente a pergunta “o que é isso?”.
Imagine que você esteja olhando para uma porta de madeira da sua
casa. Você pode falar: “isso é uma porta de madeira” porque algum
dia, apontando para aquele objeto, você fez a pergunta básica: “o que
é isso?”. E você aprendeu com alguém que aquele objeto era uma porta
de madeira.
Nem sempre esse objeto necessita ser acessível aos nossos
sentidos, ou seja, ele não precisa ter materialidade, pois podemos,
por exemplo, conhecer os objetos matemáticos, que são IDEAIS, e Deus
(intuído pela fé).
ID E A I S
O termo ideal aí se refere ao fato
de os objetos matemáticos
terem existência somente na
nossa mente, como idéias.
aula9_pb.indd 99 5/20/2004, 8:56:16 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
100 C E D E R J
Segunda questão
A possibilidade do conhecimento: a resposta ao ceticismo
Associado a esse pressuposto fundamental temos, a seguir, o
problema da possibilidade do conhecimento. É possível conhecermos
alguma coisa? À primeira vista, essa interrogação pode parecer meio
estranha, mas o fato é que ela levanta sérias questões sobre o nosso
conhecimento da realidade. Poderíamos dar o nome de CETICISMO a essa
questão. O ceticismo apareceu logo no início da caminhada fi losófi ca
ocidental, há mais de 23 séculos e, de uma maneira ou de outra, com
algumas modifi cações, sempre tem reaparecido.
Quando dizemos que conhecemos algo, estamos, na realidade,
respondendo à dúvida que o ceticismo nos apresenta (a dúvida cética)
e afi rmando que é possível, sim, conhecermos um determinado objeto
ou um setor da realidade. Por exemplo, durante o período medieval a
maioria dos europeus acreditava na existência de Deus. Se você pudesse
voltar no tempo e perguntar: por que vocês acreditam em Deus? Qual é
a evidência que vocês têm para garantir que Deus existe e que é possível
conhecê–Lo? Os europeus, um tanto assustados, responderiam que as
vidas dos santos e os eventos miraculosos dão testemunho de Deus; que
as Sagradas Escrituras, a pregação do padre e os sacramentos da Igreja
afi rmam essa existência; que eles não teriam dúvida sobre a existência
de Deus por causa de tudo que a fé mostra para eles. E que as suas
perguntas, ademais, eram muito esquisitas... e pareciam até tentação
do Tinhoso...
No mundo contemporâneo, em contrapartida, aquelas duas
perguntas não causariam tanto alvoroço. Já as respostas dos medievais
europeus, sim. Elas deixariam muita gente com o cabelo em pé. Ou seja:
a nossa contemporaneidade ocidental mantém uma postura cética em
relação à existência de Deus e à possibilidade de vir a conhecê-Lo. Você
deve saber de muitas pessoas que duvidam da existência de Deus ou,
pelo menos, da possibilidade de vir a conhecê-Lo e com isso de afi rmar
alguma coisa sobre esse objeto.
Quando, ao contrário, aceitamos o fato de podermos conhecer
verdadeiramente um objeto, estamos respondendo à dúvida cética e nos
colocando contrários aos pressupostos fundamentais do ceticismo.
CE T I C I S M O
Doutrina inicialmente desenvolvida por Pirro (365-275 a.C.) e que, ao longo dos séculos, recebeu diferentes interpretações. O ceticismo de Pirro afi rmava que não é possível atingir alguma verdade nos campos da Filosofi a e da Ciência; que todas as ‘verdades’ teriam caráter subjetivo e que por isso não nos ofereceriam certeza sobre algo. Segundo Pirro, nem os sentidos nem a razão poderiam nos conduzir a alguma certeza. Os sentidos, porque nos induzem ao erro e são, por isso, péssimos testemunhos; a razão, porque as diferentes e contraditórias opiniões sobre os mesmos assuntos revelariam os limites de nosso intelecto para o conhecimento verdadeiro. Antes de Pirro, contudo, o pensador grego Górgias (485-380 a.C.) já manifestara uma postura cética ao afi rmar que “o ser não existe; se existisse, não poderíamos conhecê-lo; e se pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-lo aos outros”. A grosso modo, podemos dizer que o ceticismo nos indica a impossibilidade de conhecermos verdadeiramente algum objeto e/ou setor da realidade. Por exemplo: Deus e a dimensão do sagrado.
aula9_pb.indd 100 5/20/2004, 8:56:17 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 101
Entretanto, o ceticismo possui um aspecto positivo na medida
em que nos desaloja de posições dogmáticas frente à realidade. Uma
posição dogmática, por exemplo, conduz-nos a aceitar ingenuamente,
sem nenhuma refl exão prévia, que podemos conhecer verdadeiramente
tudo. Por quê? Porque aceitamos o fato de não haver nenhum problema
na relação entre sujeito do conhecimento e objeto conhecido. Isso signifi ca
que a postura dogmática não leva em consideração a possibilidade de
nossos sentidos e intelecto possuírem algum limite. Você já pensou
que talvez não possamos conhecer tudo devido às limitações de nosso
intelecto e de nossos sentidos? Se você, um dia, cogitou essa questão,
então você foi “mordido” pela dúvida cética.
Uma dose de ceticismo não faz mal a ninguém, você não acha? Mas
não se esqueça: uma dose apenas. Se você acatar totalmente as premissas
do ceticismo, acabará mergulhado num mar de incertezas e afi rmando
que, por não ser possível conhecer nenhum objeto, não poderemos chegar
a algum acordo sobre alguma coisa.
Terceira questão
Por que conhecemos? Para que conhecemos?
Se concluímos que podemos conhecer,
então, por que conhecemos? Para que
conhecemos? A essas perguntas podemos dar
várias respostas. Com PLATÃO responderíamos
que a admiração nos leva ao conhecimento.
Em seu diálogo Teeteto (11, 155d), explicou
que “esta emoção, esta admiração é própria do
fi lósofo; nem tem a Filosofi a outro princípio além
deste...”. Assim passamos a querer conhecer
um objeto quando sentimos uma emoção,
uma admiração por ele, quando ele nos toca de
alguma forma e nos convida a conhecê-lo.
PL A T Ã O
(427–347 A.C.)
Filósofo grego nascido em Atenas. Em 387 a.C. fundou a Academia para ensinar aos jovens o caminho da Filosofi a. Teve Sócrates como mestre. Cerca de 30 obras suas, escritas sobretudo na forma de diálogos, chegaram até nós. É considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos e, para uma imensa tradição, o marco inicial da razão ocidental. Seus escritos são de uma beleza ímpar. Procure ler Apologia a Sócrates e O banquete, pelo menos. Seu Mito da caverna (Livro VII de A República) é um dos trechos mais comentados de toda a literatura ocidental. Afi rmou, dentre outros aspectos, a imortalidade da alma, a divisão dos mundos em mundo sensível e mundo inteligível (mundo das idéias), a supremacia deste último sobre o primeiro, o conhecimento verdadeiro se dando somente a partir daquilo que nossa razão pode nos levar a conhecer.
aula9_pb.indd 101 5/20/2004, 8:56:17 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
102 C E D E R J
De certo modo, ARISTÓTELES na época
antiga e RENÉ DESCARTES no alvorecer da Idade
Moderna reafi rmaram a admiração, porém a
associaram à dúvida e à pesquisa. Na obra
aristotélica Metafísica (I, 2 982b e seguintes)
podemos ler: “Em vista da admiração, os
homens começaram pela primeira vez a fi losofar
e ainda agora fi losofam; de início começaram a
admirar as coisas que mais suscitavam dúvidas,
depois começaram, pouco a pouco, a duvidar
até das coisas maiores, por exemplo, das
afecções da lua e do que concerne ao sol, às
estrelas, e à geração do universo...”.
Descartes, no século XVI, em As paixões
da alma (II, 53), afi rmou que “quando se nos
depara algum objeto insólito e que julgamos
novo e diferente do que conhecíamos antes ou
supúnhamos que fosse, esse objeto faz com que
nós o admiremos e daí fi quemos surpresos; e
como isso ocorre antes que saibamos se o
objeto nos será útil ou não, a admiração me
parece ser a primeira de todas as paixões...”.
Portanto, para Aristóteles e para Descartes
a admiração acha-se na base da dúvida e da
pesquisa. Quando não conhecemos um objeto
ou um aspecto de algo já conhecido, isso nos
causa surpresa e partimos para tentar conhecer
e explicar o que nos é desconhecido.
AR I S T Ó T E L E S
(384–322 A.C.)
Filósofo nascido na Macedônia (em Estagira) e que passou quase toda a vida em Atenas. O maior de todos os discípulos de Platão e que se equiparou ao próprio mestre ao apresentar um novo olhar investigativo sobre a realidade, que se diferenciava em pontos capitais da proposta platônica. Sua imensa obra abrange campos hoje díspares do conhecimento: Lógica, Física, Biologia, Psicologia, História Natural, Ética, Política, Arte, História da Ciência. Fundou a escola Liceu (em Atenas), em 335. Foi preceptor de Alexandre, o grande, da Macedônia. De família de médicos da corte macedônica, sua refl exão fi losófi ca e científi ca está marcada por uma certa infl uência da observação empírica e um certo distanciamento do racionalismo do tipo matemático, tal como encontramos em Platão. Por isso acreditava, ao contrário de seu mestre, que todo conhecimento tinha início com os sentidos. Sobre os dados oriundos de nossa sensibilidade (isto é: nossa capacidade de sentir com os nossos sentidos) nosso intelecto deveria trabalhar e completar o processo do conhecimento. Assim, nosso intelecto poderia estabelecer conceitos seguros a partir dos dados fornecidos pelos sentidos. Aristóteles afi rmou também que “nada há no nosso intelecto que não tenha passado antes pelos nossos sentidos”. Sua fi losofi a é conhecida como realista, na medida em que recusou a doutrina platônica de o mundo terreno ser cópia imperfeita do mundo das idéias. Para o fi lósofo macedônico, o nosso mundo possuía plena realidade, que poderia ser conhecida por nós.
RE N É DE S C A R T E S
(1596–1650)
Filósofo francês considerado o pai da Filosofi a moderna. Foi também um grande matemático: devemos a ele, por exemplo, as coordenadas cartesianas e a Geometria Analítica. Sua obra, em tom autobiográfi co, fez da dúvida metódica (isto é: a dúvida como método; a dúvida como ponto de partida do conhecimento) sua “alavanca de Arquimedes”. Alinha-se à tradição fi losófi ca racionalista, pois, à maneira de Platão, também acreditou que nossa razão poderia conhecer sem o auxílio de nossos sentidos. Em sua obra se fazem presentes o racionalismo e o mecanicismo que marcarão os rumos posteriores da Modernidade.
aula9_pb.indd 102 5/20/2004, 8:56:18 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 103
Aristóteles escreveu também, logo no primeiro parágrafo da
Metafísica, que todo ser humano naturalmente tem a necessidade de
conhecer. Ou seja, vivemos no mundo e possuímos o instrumental
intelectual e sensitivo que nos permite, naturalmente, conhecer e somos
impelidos para o conhecimento daquilo que somos e do mundo que
nos cerca.
Há também uma tradição que afi rma que o conhecimento é
fruto do nosso medo. Assim, buscaríamos o conhecimento para darmos
conta de nosso medo, uma vez que ele (o conhecimento) nos levaria à
dominação, ao controle do conhecido, à organização da experiência
humana, a fi m de que tivéssemos mais liberdade. G. CANGUILHEM explicou
que “se, pois, o conhecimento é fi lho do medo humano (espanto, angústia
etc.) seria, contudo, pouco clarividente converter tal medo em aversão
irredutível pela situação dos seres humanos que o experimentam em crises
que lhes é preciso superar enquanto vivemos. Se o conhecimento é fi lho
do medo, é para a dominação e a organização da experiência humana,
para a liberdade da vida”. Assim, buscaríamos o conhecimento para
vencer o medo e resolver os problemas práticos.
Já uma outra interpretação dos motivos
pelos quais conhecemos, bem exemplifi cada pelo
fi lósofo espanhol do século XX JOSÉ ORTEGA Y
GASSET, nos indica que não conhecemos somente
para resolver problemas práticos, uma vez que ao
lado do homem biológico e utilitarista encontra-
se um homem “luxuoso e desportista”, que se
compraz em conviver com o “inquieto ser dos
problemas” (ORTEGA y GASSET). Ortega y
Gasset recusou a possibilidade de reduzirmos os
problemas teóricos a problemas práticos e vice-
versa. Isso signifi ca que nos ocupamos igualmente
dos problemas práticos e dos teóricos.
Como você pode ver, há diferentes
possibilidades de respostas às perguntas “Por
que conhecemos?” e “Para que conhecemos?”.
Refl ita sobre cada uma delas e encontre você
mesmo sua própria resposta.
CA N G U I L H E M
Epistemólogo francês (estudioso da Filosofi a e História da Ciência) do século XX.
JO S É OR T E G A Y GA S S E T
Filósofo espanhol do século XX. Entre suas obras mais importantes podemos destacar O que é fi losofi a?; Origem e epílogo da fi losofi a; Meditacão sobre a técnica e outros escritos sobre Filosofi a e Ciência; Em torno a Galileu. Conforme Ferrater Mora, a última fase da refl exão orteguiana é marcada pela razão vital, compreendida como “vida como razão”. Isso não faz de Ortega y Gasset um racionalista estrito e sim alguém que afi rmou a vida humana não como aquela dotada de razão e sim como a que utiliza necessariamente a razão. Assim, o ser humano sempre, em qualquer tipo de vida, necessitará dar conta a si mesmo da maneira como vive. A razão, portanto, não é mais defi nida como uma operação intelectual, mas como algo que emerge com e da vida humana. Para Ortega y Gasset, o ser humano é a realidade radical, uma vez que todas as outras realidades somente são realidade dentro daquela. A vida humana não é uma coisa, mas um puro ‘acontecer’, um faciendum; algo que acontece incessantemente em nossa vida; algo que consiste em fazer-se a si mesmo continuamente.
aula9_pb.indd 103 5/20/2004, 8:56:21 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
104 C E D E R J
Quarta questão
Origem do conhecimento
Se estamos motivados para o conhecimento, qual seria a origem de
nosso conhecimento? Em outras palavras: quais seriam as fontes de nosso
conhecimento? Qual é a origem de nossos conceitos, de nossas idéias? É
a nossa razão, exclusivamente? São os nossos sentidos, exclusivamente?
É a nossa razão associada aos nossos sentidos?
Em relação a essas questões também não há unanimidade. Quando
olhamos para a trajetória do pensamento ocidental, deparamo-nos
majoritariamente com dois posicionamentos fundamentais que, de certo
modo, ganham novas roupagens de tempos em tempos. Essas posições
seriam: o racionalismo e o empirismo.
O RACIONALISMO é um termo EQUÍVOCO, e não UNÍVOCO. Isso signifi ca
que ele vem sendo empregado de diferentes modos na história do
pensamento ocidental. Entretanto, um aspecto permanece comum
nessas maneiras diversas de o racionalismo se apresentar, e diz respeito
ao supremo valor dado à razão humana.
Aqui estamos entendendo o racionalismo como a doutrina que
afi rma sua crença e confi ança exclusiva no poder da razão humana
como o meio efi caz de nos levar a alcançar o conhecimento verdadeiro
acerca da realidade que nos rodeia. Em contrapartida, os sentidos são
encarados como instrumentos que nos induzem ao erro; os dados que
nos chegam pela experiência sensorial são vistos como motivos de
confusão e, portanto, não são confi áveis em matéria de conhecimento
verdadeiro. Por exemplo: mergulhe um bastão numa bacia d’água. Ele lhe
parecerá quebrado, apesar de estar inteiro. E aí? Você confi ará naquilo
que seus olhos estão ‘falando’ para você e afi rmará que o bastão está
quebrado? Ou não? Pense em outros exemplos do seu dia-a-dia que
possam corroborar a tese racionalista.
Por isso Descartes considerava que deveríamos apenas nos deixar
convencer pela evidência de nossa razão e esquecer os sentidos.
RA C I O N A L I S M O
Termo derivado do latim ratio, traduzido por razão, que, por sua vez, é a tradução mais amplamente usada da palavra grega lógos.
EQ U Í V O C O
Termo que pode ser usado em mais de um sentido.
UN Í V O C O
Termo que admite um único sentido.
aula9_pb.indd 104 5/20/2004, 8:56:21 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 105
De acordo com o racionalismo, somente a razão humana, por
meio de princípios lógicos e de um encadeamento sensato de argumentos
a partir de AXIOMAS, pode atingir o conhecimento universalmente
verdadeiro.
Em geral, encontramos no racionalismo a admissão de que o
ser humano possui, de forma inata (isto é: desde nosso nascimento;
de maneira não adquirida pela experiência), os princípios lógicos
fundamentais necessários, no cotidiano, para a obtenção do conhecimento
verdadeiro mediante a razão.
O EMPIRISMO, por sua vez, é a doutrina
que estabelece que todas as nossas idéias têm
origem na percepção dos sentidos. Aristóteles
já explicava que “nada há no intelecto que
não tenha passado antes pelos sentidos”. John
Locke, pensador empirista inglês (1632-1704),
atualizou as palavras aristotélicas ao dizer
“nada vem à mente que não tenha passado
pelos sentidos”. Ambos têm a mesma posição
quanto à importância dos sentidos para o
conhecimento verdadeiro. Para eles os sentidos
não são fonte de ilusão e não há como descartar os dados da percepção
sensorial que chegam à nossa mente.
Aristóteles afi rmou que cabe ao nosso intelecto construir os
conceitos e averiguar e consertar, quando for o caso, as informações dos
dados sensoriais. A verdade e o erro não estão no nível dos sentidos e sim
no juízo, que é responsabilidade do intelecto. Portanto, para Aristóteles
não são os sentidos os responsáveis pelo erro e sim o intelecto, que não
cumpriu bem a parte do conhecimento que lhe cabia.
O empirismo recusa o INATISMO ao
entender que o ser humano, ao nascer, é uma
folha em branco. Isso signifi ca que nascemos sem
nenhuma idéia preestabelecida. Sobre essa folha,
no transcorrer da vida humana, serão escritas
as idéias, os conceitos. Assim, a experiência é a
fonte de nossas idéias e nosso conhecimento.
AX I O M A
Na Matemática são os princípios
indemonstráveis mas evidentes. Aristóteles
(nos Analíticos Posteriores I, 10,
76b; I, 2, 72 a 15) defi niu os axiomas
como “as proposições primeiras de que parte
a demonstração...” e ainda “os princípios
que devem ser necessariamente
possuídos por quem queira aprender o que
quer que seja...”
EM P I R I S M O
Termo derivado do grego empeiria e que signifi ca experiência sensorial. É muito comum o empirismo vir associado estritamente à corrente de pensamento inglesa dos séculos XVII e XVIII conhecida como empirismo inglês.
IN A T I S M O
Doutrina que afi rma que existem no ser humano conhecimentos ou princípios práticos anteriores à experiência.
aula9_pb.indd 105 5/20/2004, 8:56:22 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
106 C E D E R J
Será que racionalismo e empirismo sempre estiveram em lados
opostos e irreconciliáveis? Será que nunca foi tentada uma síntese entre
essas duas perspectivas?
Certamente, sínteses foram construídas. Merece ser destacada, até
pela importância que ainda tem em nosso tempo, o apriorismo ou criticismo
desenvolvido pelo fi lósofo iluminista de língua alemã IMMANUEL KANT.
Para Kant, o conhecimento tem início com a experiência, mas
ela sozinha não é capaz de nos fornecer todo o conhecimento. É
necessário que o sujeito organize os dados oriundos da experiência.
Conforme a análise kantiana do ser humano,
este tem em si, de maneira A PRIORI, determinadas
estruturas que possibilitam a experiência e o
conhecimento. Essas estruturas são chamadas
por ele de condições de possibilidade, e estão
presentes tanto na nossa sensibilidade (isto é, na
nossa capacidade de ter sensações) quanto no nosso entendimento (no
nosso intelecto). A experiência fornece a matéria do conhecimento (os
conteúdos do nosso conhecimento) e nosso entendimento, ao organizar
esse conteúdo conforme suas próprias formas a priori (no dizer kantiano:
categorias do entendimento), nos dá a forma do conhecimento.
Assim, todo ser humano estaria igualmente marcado por uma
idêntica estrutura que permite ter sensações e formular conceitos.
Essa estrutura é aplicada no dia-a-dia e a partir dela nos movemos,
experimentamos, sentimos e entendemos o mundo.
Kant concilia empiristas e racionalistas na medida em que, com
os primeiros, afi rma o valor da experiência e que todo conhecimento
tem início com ela; com os racionalistas, concorda que possuímos uma
estrutura a priori. Daí o nome apriorismo.
Quinta questão
A relação ignorância/verdade/falsidade
Por meio do conhecimento pretendemos conhecer verdadeiramente
um objeto. Isso signifi ca que temos a pretensão de sair da ignorância em
relação a ele e passar a ter segurança naquilo que afi rmamos sobre ele.
A difi culdade que essa questão levanta diz respeito aos cri-
térios que tomamos para estabelecer o que é verdade e falsidade.
IM M A N U E L KA N T
(1724-1804)
Um dos maiores fi lósofos de todos os tempos. Nasceu e morreu em Königsberg. De formação protestante, dedicou-se, sobretudo, às ciências da natureza. Sua obra divide-se em dois períodos: pré-crítico e crítico. O segundo é marcado por sua saída do ‘sono dogmático’ por meio do ceticismo do empirista inglês David Hume. A partir daí empreendeu umas das mais importantes tarefas da modernidade: a avaliação crítica do conhecimento humano, que ainda hoje ecoa no nosso mundo, seja quando é afi rmada, seja quando é negada. Suas principais obras são Crítica da razão pura; Crítica da razão prática; Crítica do juízo do gosto; A religião nos limites da simples razão; O que é o iluminismo?; Fundamentação da metafísica dos costumes; Da paz perpétua, dentre outras.
A P R I O R I
Antes da experiência, de modo inato; opõe-se a a posteriori, ou após
a experiência.
aula9_pb.indd 106 5/20/2004, 8:56:22 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 107
Na Aula 12, Estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento,
você verá, de um modo mais aprofundado, alguns desses critérios e
maneiras diferentes de a verdade e a falsidade serem concebidas. Aguarde
mais um pouco para saciar sua curiosidade.
RECAPITULAÇÃO DOS PONTOS ESSENCIAIS QUE VOCÊ DEVE TER FIXADO:
• em todo conhecimento é necessário que haja um sujeito que conhece e um objeto conhecido. Se não houver essa relação, não haverá conhecimento;• para poder conhecer um objeto é necessário que respondamos satisfatoriamente ao ceticismo, vencendo, assim, a dúvida cética;• diferentes maneiras de responder às perguntas “por que conhecemos?”, “para que conhecemos?”; • diferentes possibilidades de conceber a origem de nosso conhecimento;• em todo conhecimento há a relação entre verdade e falsidade do nosso julgamento sobre o que é verdadeiro e falso em um objeto.
!
TIPOS DE CONHECIMENTO
No início desta aula vimos que há diferentes modos de conhecer
a realidade. Demos o exemplo da frase “A porta é de madeira”. Agora
chegou o momento de desenvolvermos o tema dos diferentes tipos de
conhecimento: arte, senso comum, ciência, mito e fi losofi a.
1) Arte
“A arte foi feita para perturbar. A ciência, para assegurar”
(BRAQUE).
Quando pensamos em arte, vários aspectos nos vêm à cabeça.
Pinturas que estão em museus, nos livros de arte e até mesmo em
calendários. Divisão da “arte” em períodos históricos (arte antiga e
arte contemporânea, por exemplo). Discos, CDs, apresentações de
orquestras e bandas de rock. Romances, fi cções escritas. Arquiteturas
de igrejas. Quadros “com rabiscos” que qualquer criança faria e que
valem milhares de dólares. Pense em outros exemplos.
Você certamente está se perguntando: diante de tantos casos, o
que é, afi nal, arte? Assim como esses exemplos acima nos mostram que
podemos nos aproximar da arte de várias maneiras, também devemos
pensar que há modos diversos de conceber a arte.
Segundo um deles, afirmamos que a arte é um meio pelo
qual o ser humano se posiciona no mundo e, ao criar os objetos
artísticos, está construindo uma interpretação do mundo tão válida
quanto os discursos da Ciência, da História ou do senso comum.
Foto da catedral medieval gótica
Quadro de Volpi (série das bandeirinhas
juninas)
aula9_pb.indd 107 5/20/2004, 8:56:23 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
108 C E D E R J
Ou seja: por meio dessa interpretação do mundo, nós conseguimos dizer
o que é o mundo e ainda como ele poderia ser.
A arte e os objetos artísticos, então, são também uma representação
simbólica do mundo humano. Como representação simbólica, neles
encontramos o sentido atribuído pelo homem à realidade que nos cerca.
Como nós, seres humanos, somos criaturas que vivemos em sociedade, o
sentido e a interpretação do mundo presentes nos objetos artísticos são
também construídos social e historicamente. Por isso nos deparamos, na
arte de qualquer período histórico (por exemplo: a arte renascentista),
com aspectos que são comuns aos objetos artísticos daquele momento.
Sobretudo a partir do século XIX, a arte se desvencilhou da tarefa
de ter unicamente de apresentar a realidade “tal como ela é” e pôde,
então, deixar claro que além de dizer à realidade “como ela é”, os objetos
artísticos teriam também a condição de apresentar a realidade como ela
poderia ser. Ou seja: a arte nos abre à compreensão das várias outras
possibilidades do real. Você já pensou que talvez o real pudesse ser de
outra forma? Se não é, por que não é?
Essas duas perguntas nos colocam questões interessantes. O ato
de o artista (o criador) poder construir e apresentar a realidade de uma
outra forma recorda-nos sempre que também nós podemos construir e
apresentar a realidade de uma outra maneira. Por quê? Porque a realidade
não é algo pronto e acabado que recebemos, mas algo que estamos
sempre construindo, em meio a várias difi culdades e barreiras. Esse tópico
será abordado com mais profundidade em Fundamentos IV, quando
abordarmos a parte de Estética. Por isso, se você sentiu difi culdades em
entender as idéias contidas neste parágrafo, não se angustie em demasia,
porque voltaremos a elas mais tarde.
As obras de arte nos atingem por meio de nossos sentidos (nossa
sensibilidade) e de nosso intelecto. Assim, nós experimentamos, sentimos,
percebemos essas obras e também refl etimos sobre e a partir delas. A fi m
de melhor perceber e pensar os objetos artísticos, é necessário que nossa
sensibilidade e nosso intelecto sejam educados para tanto. Daí a importância
de museus, bibliotecas, livros, arte, galerias, apresentações musicais e teatrais
de qualidade, videotecas, fi lmotecas e da proteção, sobretudo por parte do
Estado, do patrimônio cultural que pertence a todos nós.
aula9_pb.indd 108 5/20/2004, 8:56:24 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 109
Porém, de nada adiantarão esses elementos se cada
um de nós não perceber que é necessário freqüentar e
experimentar as obras artísticas. Ou seja: devemos
deixar a preguiça de lado ou ainda preconceitos que
nos impedem de nos aproximar das obras de arte. Você
já pensou nos seus próprios preconceitos em relação à
arte? Você já pensou ou falou algo do tipo: “esse rabisco
qualquer criança faz”; “como embrulhar uma ponte pode
ser arte?”; “eu não escuto BACH, pois me dá sono!”.
Assim, temos de ter disponibilidade para as obras
de arte, para que elas possam nos emocionar e ainda nos
fazer refl etir sobre nosso mundo. Essa disponibilidade nos
conduz, então, à educação de nossa sensibilidade e de
nosso intelecto. Voltaremos a esses temas em Fundamentos
IV, onde os analisaremos com mais densidade.
2) Senso comum
Nós pedimos com insistência. Não digam nunca: isso é
natural! Diante dos acontecimentos de cada dia. Numa
época em que reina a confusão. Em que corre sangue, em
que se ordena a desordem, em que o arbitrário tem força
de lei, em que a humanidade se desumaniza. Nunca digam
nunca: isso é natural! (PEIXOTO, 1979).
Pare para pensar no seu cotidiano. De preferência, esqueça o que
você aprendeu na escola. Olhe para o sol, por exemplo. Ele nasce e se
põe diariamente. Se você não conhecesse a teoria heliocêntrica, não lhe
pareceria óbvio que o sol gira em torno da Terra? Você sabe que a água
ferve. Afi nal, você gosta de um cafezinho e todo dia prepara um, não é
mesmo? O fogo esquenta a água, ela ferve, você acrescenta o pó e depois
‘passa’ o café. Veja sua família. Pai, mãe, fi lhos, tios, avós, interdição do
incesto. Tenho a certeza de que você pensa que toda família, de toda e
qualquer cultura e época, se forma desse modo. Pois é. No nosso dia-a-dia
temos tantas certezas e com elas respondemos rapidamente às perguntas
que nos são feitas. Quais certezas você tem? Você saberia dizer quais
seriam os fundamentos delas? Pense nisso. Discuta com seus colegas de
pólo essas suas certezas.
JOHANN SEBASTIAN BACH
(1685–1750)
Compositor alemão do período barroco. Pertenceu a uma tradicional família de músicos profi ssionais. Considerado um dos maiores compositores de todos os
tempos. Sua obra é um resumo brilhante da arte musical polifônica dos séc. XVI, XVII e início do XVIII. Igualmente, sua música é considerada o fundamento da
música posterior, apesar de Bach ter sido esquecido até o século XIX, quando
foi redescoberto por Mendelssohn, que regeu, em Berlim, em 1824, a primeira
exe cução pública da Paixão Segundo S. Mateus. Desde então, a música de Bach
voltou a ser tocada e apreciada. Hoje, ele é um dos mais populares compositores da grande música. Em sua imensa obra encontramos, dentre outras peças, 198
cantatas, concertos (os de Brandenburgo são os mais conhecidos), corais e
oratórios (como as Paixões segundo S. João e S. Mateus), missas, motetos,
sonatas, suites, A arte da fuga, O cravo bem-temperado (considerado a bíblia do pianista), fantasias, tocatas e fugas
(como a famosa Fuga em ré menor), a popularíssima Passacaglia em dó
menor, a Oferenda musical, Variações de Goldeberg.
aula9_pb.indd 109 5/20/2004, 8:56:25 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
110 C E D E R J
Nós podemos nomear o conjunto dessas certezas de senso comum.
O senso comum é um conhecimento espontâneo, racional no mais das
vezes, construído pelos indivíduos de uma sociedade. Nós recebemos
esse conhecimento por herança e com ele nos situamos cotidianamente
no mundo. Ele é a nossa primeira leitura da realidade e por isso nos é
imprescindível. A partir dele construímos fi losofi as e ciências, uma vez
que estas, ao não nascerem do nada nem partirem do zero, precisam das
informações mínimas que o senso comum fornece a elas.
Podemos, então, dizer que o senso comum é um conhecimento
proveniente da necessidade que temos de responder e resolver os problemas
cotidianos; é transmitido de geração em geração; é superfi cial na medida
em que não se ocupa com os fundamentos presentes nos eventos e nos
fenômenos; ele não é sistemático (ou seja: não tem a sistematização
que encontramos na Ciência e na Filosofi a. Por isso, não acharemos
nele a defi nição de campos de saberes e objetos de conhecimento nem a
formulação de hipóteses ou teorias consistentes acerca do real.
Hoje em dia, pela facilidade de acesso à informação
(jornais, rádios, internet, televisão, revistas especializadas
ou não etc.), várias idéias científi cas e fi losófi cas estão,
com mais rapidez, sendo incorporadas ao senso comum.
Contudo, ele as absorve de maneira limitada, muitas vezes
de forma incompleta e até beirando o erro.
3) Ciência
O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz
o comportamento e inibe o pensamento. Este é um dos resultados
engraçados e (trágicos) da ciência. Se existe uma classe especializada
em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos
são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o
que os cientistas mandam (ALVES).
Se o senso comum não estabelece as relações necessárias entre
os fenômenos nem age de modo metódico e sistemático, o mesmo não
acontece com a Ciência.
O cientista busca conhecer a realidade que nos cerca de maneira
mais fundamentada, procurando as causas, os porquês e como as coisas
acontecem e, para tanto, lança mão de MÉTODOS rigorosos que garantam
uma certa objetividade. Em sua busca, o cientista procura saber e entender
quais são as relações necessárias presentes nos fenômenos, a fi m de que
seu conhecimento possa proporcionar um controle da realidade.
Isso não significa que o senso comum seja um falso conhecimento. Apenas signifi ca que ele, como um conhecimento superficial, não se preocupa com as relações necessárias presentes nos eventos.
!
MÉ T O D O S
Termo de origem grega. Meta+ hódos. Meta = por meio de/ através de; Hódos = caminho. Ou seja: a etimologia nos indica que o método é o caminho que devemos usar para alcançar o que pretendemos. No caso do conhecimento, o método é o bom caminho que utilizamos para atingir o conhecimento verdadeiro.
aula9_pb.indd 110 5/20/2004, 8:56:25 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 111
Em toda atividade científi ca encontramos um método científi co.
Mas o que é um método científi co? Ele é um conjunto de procedimentos
lógicos, de observação e formulação de hipóteses e de verifi cação.
Nos métodos científicos temos: enunciado do problema;
formulação de hipótese; experimentação; conclusão ou generalização.
a) Enunciado do problema: o cientista enuncia um problema. Isso
signifi ca que ele retira da realidade um problema, que se transforma em
objeto de sua investigação. O cientista deve enunciar com clareza o seu
problema, ou seja, ele deve falar claramente sobre seu objeto.
b) Formulação de hipóteses: a hipótese é uma resposta prévia que
o cientista dá ao seu problema e que será posta à prova e avaliada ao
longo da análise científi ca. Assim, a hipótese é uma resposta ainda sem
comprovação que deverá ser testada cientifi camente.
c) Experimentação: nessa fase, o cientista testa a sua hipótese,
averiguando sua validade. Os testes experimentais da hipótese se dão
em um ambiente controlado pelo cientista.
d) Conclusão: é o momento da conclusão da investigação
científi ca em que o cientista averigua, corrigindo ou não, sua hipótese.
Se a hipótese tiver validade, ela se transformará em teoria comprovada.
Nela encontramos a generalização. Ou seja: nesse momento, o cientista
conclui sua investigação, e suas conclusões, a partir de então, poderão ser
aplicadas às situações semelhantes às testadas.
O cientista procura, portanto, entender e explicar os fenômenos
regulares que ocorrem no nosso cotidiano. Suas investigações resultam
em leis científi cas. Essas leis são proposições ou enunciados gerais das
relações necessárias e constantes presentes nos fenômenos. Na medida em
que essas leis abrangem uma grande quantidade de fenômenos regulares,
elas nos permitem ter uma visão global da realidade. Por outro lado, esse
conhecimento nos permite também poder prever acontecimentos, a fi m
de que possamos controlá-los. Assim, temos a grande meta: prever para
controlar, controlar para prover, que é bem resumida no pensamento de
Francis Bacon: “Saber é poder”. As relações entre saber e poder serão
analisadas em uma aula futura.
aula9_pb.indd 111 5/20/2004, 8:56:25 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
112 C E D E R J
4) Filosofi a
Há uma história ligada ao fi lósofo e geômetra Euclides que
afi rma que ele escutou de um discípulo a seguinte pergunta:
“Mestre, o que ganharei aprendendo Geometria?” O
mestre respondeu, ordenando a um escravo: “Dê a ele
uma moeda, uma vez que precisa ganhar algo, além do
que aprende.”
Existe uma outra história que gira em torno de Tales
de Mileto, o pai da Filosofi a. Dizem que ele estava andando,
olhando para o céu e observando as estrelas até que caiu
num buraco e se machucou. No geral, essa história é contada
como “gozação” aos fi lósofos: eles andam tanto com a
cabeça nas nuvens, ou acima delas, que nem enxergam um
simples buraco.
Uma outra história encontra-se imortalizada na
comédia de ARISTÓFANES. As nuvens, em que ele satiriza
o fi lósofo Sócrates, que aí foi apresentado como um
SOFISTA e um corruptor de jovens, por cultuar divindades
estranhas ao olímpico panteão grego, tais como o éter, o
ar, a persuasão. Essa peça é uma crítica à educação nova,
proposta por SÓCRATES e também pelos sofi stas, e que
na opinião de Aristófanes estaria destruindo os valores
religiosos e morais tradicionais.
Outra história acha-se também associada a Sócrates,
que foi condenado, em 399 a.C., por um governo tirano,
a beber cicuta. Não seria interessante para o Governo dos
Trinta Tiranos que alguém, questionador como Sócrates,
andasse às soltas por Atenas.
SÓ C R A T E S
(470–399 A.C.)
seu interlocutor deixasse para trás suas velhas opiniões, constatando, então, que nada sabia. A partir daí, ele, ajudado por Sócrates, poderia “partejar” novas idéias. Devemos a ele a noção de conceito.
AR I S T Ó F A N E S
(450–385 A.C.)
O mais brilhante expoente da comédia clássica. Conservador, apoiou em Atenas o partido aristocrático porque testemunhou o fi m da grande Atenas e ainda o papel nocivo dos demagogos que arruinaram militar, cultural e economicamente sua cidade. Nas peças de sua primeira fase (Comédia Antiga) temos, por isso, a crítica sarcástica e corrosiva contra os aspectos socioculturais e as pessoas que julgou responsáveis pela derrocada de Atenas. Usou o teatro para satirizar inovadores do pensamento, como Sócrates, do teatro, como Eurípides, e generais corruptos, como Cleon. Com a derrota de Atenas para Esparta, o partido aristocrático assumiu o poder e decretou a censura às peças teatrais. Essa proibição fez com que Aristófanes revisse sua posição. De sua primeira fase temos: Os cavaleiros (satiriza Cleon), As nuvens (satiriza Sócrates e os sofi stas), As rãs (satiriza Eurípedes), Lisístrata. Da segunda fase temos Pluto e Assembléia de Mulheres. Platão colocou Aristófanes como um dos personagens de seu diálogo O banquete.
SO F I S T A
Do grego sophós, sábio. Sofi sta tornou-se sinônimo de mentiroso e “enrolador” graças aos ataques que um grupo de pensadores sofreu por parte de Platão. Platão possuía uma concepção de fi losofi a e de verdade. Por isto criticou severamente algumas posições que se distanciavam de seu projeto. Ao propor Sócrates como modelo de sábio e ao distanciá-lo de um determinado grupo de pensadores, Platão estava, em verdade, defendendo uma certa postura em relação à realidade. A partir de Platão, sofi sta passou a designar um certo tipo de ‘sábio’, que não alcançaria a verdade por deliberadamente conviver com a mentira e com o falar sobre as coisas de uma forma sem fundamento. Sofi sta passou a designar aquele que não sabe e fi nge que sabe, graças ao seu jogo de palavras.
aula9_pb.indd 112 5/20/2004, 8:56:25 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 113
A partir da primeira história, a de Euclides, podemos perceber que
a Filosofi a é um caminho que não conduzirá necessariamente a ganhos
materiais. Qual o ganho que podemos ter com ela?
A história de Tales nos leva a pensar que a Filosofi a não tem uma
utilidade prática imediata. Mas a que ela nos levará? Às nuvens?
A terceira história nos revela que a atitude pedagógico-fi losófi ca
crítica de Sócrates incomodava os conservadores de Atenas. O que a
Filosofi a nos ensina?
A última história nos indica que os poderosos de então temeram o
questionamento socrático e que por isso Sócrates foi processado e condenado
à morte. Por que incomodava aquele que fi losofava? Por que a Filosofi a
incomoda tanto?
Pense nessas questões. Como você as responderia?
Respondendo a elas, estaremos nos aproximando do horizonte
da Filosofi a.
Vamos iniciar nossa refl exão investigando previamente a etimologia
da palavra Filosofi a. Esse vocábulo é formado por dois termos gregos:
Filo (ser amigo de, ser amante de), Sophia (sabedoria). Assim, Filosofi a
seria a perspectiva e o caminho daquele que procura o conhecimento e
que, por isso, se põe como amigo/amante da sabedoria. Segundo Platão, é
Eros (deus do Amor) que nos conduz por essa senda e por essa atividade.
Temos, pois, o amor pelo conhecimento a nos guiar em nossa tarefa de
conhecer, e é ele quem nos faz amantes do conhecimento e da verdade.
Nesse sentido, a Filosofia é o amoroso convite (o caminho, a
perspectiva) à refl exão crítica da realidade, a partir de uma fundamentação
racional, na qual procuramos conhecer, por um lado, o mundo em suas
estruturas íntimas e últimas e, por outro, nosso próprio modo de conhecer
(as condições e princípios do nosso conhecimento verdadeiro) sem lançarmos
mão da experimentação, da tecnologia e, ainda, da fé. O aparato racional e
sensível (relativo aos sentidos) é o instrumental empregado dentro de uma
coerência de raciocínio.
Marilena Chauí comenta a Filosofi a como pensamento sistemático:
“O que signifi ca isso? Signifi ca que a Filosofi a trabalha com enunciados
precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre enunciados,
opera com conceitos e idéias obtidos por procedimentos de demonstração
e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado.
Somente assim a refl exão fi losófi ca pode fazer com que nossa experiência
cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas.
aula9_pb.indd 113 5/20/2004, 8:56:26 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
114 C E D E R J
Não se trata de dizer ‘eu acho que’, mas de poder
afi rmar ‘eu penso que’” (Chauí, p. 15).
Retomando as perguntas anteriores. Qual o
ganho que teremos com esse amoroso convite? A
que ele nos levará? O que ele nos ensina e propõe?
Por que ele incomoda tanto, a ponto de muitas
vezes ser perseguido e SER PROIBIDO?
A possibilidade de pensarmos criticamente
a realidade, eis o principal ganho. O que signifi ca
isso? Que, por meio da atitude crítica, podemos,
em primeiro lugar, dizer não ao que o senso
comum estabeleceu como ‘certo e verdadeiro’,
aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos jargões
corriqueiros de nossa experiência cotidiana.
Em segundo lugar, podemos questionar o
que as coisas, os valores, os fatos, os compor-
tamentos, os eventos são. Segundo NIETZSCHE,
nós estaríamos nos libertando do rebanho que o
status quo quer que sejamos. Se você achar que
isso vale mais do que o saco de moedas de ouro
que Euclides poderia lhe dar, então você começou
a percorrer o caminho fi losófi co.
A Filosofi a não nos pede que renunciemos ao
mundo e que passemos a viver nas nuvens. A imagem
do fi lósofo apartado de tudo e de todos, isolado nas
nuvens ou ainda em sua torre de marfi m contraria
completamente a atividade fi losófi ca. A pergunta
fi losófi ca por excelência – “o que é uma coisa?” – é
dirigida às coisas do mundo, à realidade que nos
cerca. Nada mais mundano que a Filosofi a.
Contudo, na medida em que o fi lósofo
busca conhecer o seu entorno, ele acabará
se afastando dos pré-conceitos e do jargão
do senso comum, pois procura ver, de
modo mais fundamentado e sistemático, a
realidade para além das meras aparências.
SE R P RO I B I D O
Na História recente do Brasil, após o golpe militar de 1964, consumou-se a retirada da Filosofi a (bem como da Sociologia) dos currículos do Ensino Médio. As faculdades de Ciências Humanas, em especial os cursos de Filosofi a e Sociologia, estiveram na linha de frente dos que sofreram interdições e invasões. Foi muito recentemente que a Filosofi a e a Sociologia voltaram aos currículos do Ensino Médio, e mesmo assim apenas durante um ano cada.
FRIEDRICH W. NIETZSCHE
(1844–1900)
Filósofo alemão que empreendeu uma consis-tente crítica à civili-zação ocidental como um todo. Para muitos é considerado o filósofo que abriu os
novos rumos da fi losofi a posterior. Já em A origem da tragédia, indicou o início do triunfo do mundo abstrato do pensamento e da ruína da reconciliação entre embriaguez e forma, presente na tragédia grega. A partir daí, o mundo ocidental teria tomado um caminho apenas racional, provocando a separação dos princípios apolíneo (clareza, ordem, harmonia) e dionisíaco (embriaguez, desordem, música), que seriam complementares. Foi ferrenho combatente da metafísica e retirou do mundo supra-sensível sua efi ciência. Essa oposição tem sentido ontológico (lutou contra a teoria das idéias, a separação do mundo em mundos supra-sensível e sensível, a valoração do primeiro e o esquecimento do segundo) e moral (combateu o cristianismo, pois este ao ver o mundo como vale de lágrimas causou seu desprestígio e esquecimento em prol do além-mundo, considerado como o mundo autêntico e verdadeiro). O cristianismo seria uma espécie de ‘platonismo para o povo’ que impôs, dentre outras coisas, uma moral de escravos e fez da renúncia e da resignação virtudes. O cristianismo teria horror a tudo o que é matéria, sentidos, felicidade, beleza e por isso seria vontade de aniquilamento e hostilidade à vida. Propôs, por isso, em sua obra, a transvaloração dos valores ocidentais cristãos. Destacamos as obras: A genealogia da moral; Para além do bem e do mal; Assim falou Zaratrusta; Aurora.
aula9_pb.indd 114 5/20/2004, 8:56:27 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 115
Por isso, ele terminará por estabelecer determinadas categorias de análise
e todo um linguajar técnico próprio à Filosofi a.
Em geral, para quem está fora do caminho da Filosofia, esse
procedimento parece ‘coisa de maluco’ ou ‘de quem não tem mais nada o que
fazer’. Esse é um julgamento apressado e, no mais das vezes, preguiçoso.
Não se esqueça de que o fi lósofo percebeu que é possível ver a
realidade de uma outra maneira. Você se lembra do ganho da questão
anterior? Pois é. O fi lósofo compreendeu o valor de conhecer a realidade
de maneira mais fundamentada, sistemática e completa. A Filosofi a nos
dirige, pois, à realidade do mundo.
Mergulhada nessa mundaneidade, a Filosofia nos propõe o
caminho do pensar criticamente a realidade. Ou seja, ela nos joga em um
outro olhar lançado sobre a realidade. Sócrates e outros foram atacados
por Aristófanes, naquele momento de Atenas, porque eles ousaram ver
a realidade por meio do lógos e não mais dos mitos e da tradição, que
eram as óticas do status quo (do senso comum). A percepção crítica
da realidade incomoda tanto o senso comum (como vimos na questão
anterior) quanto os poderosos, que geralmente invocam e usam o senso
comum a favor da manutenção de seu poder.
Chegamos à última pergunta. Por que a Filosofia incomoda
tanto? Justamente por provocar o senso comum, por desalojar as
certezas cotidianas de seu pedestal, por mostrar o uso ideológico dessas
certezas na manutenção de poderosos e das visões de mundo majoritárias
(hegemônicas). Por isso Sócrates foi condenado: ele ousou ver diferente.
A Filosofi a é um convite. Qualquer um pode aceitá-lo ou não.
Quando aceitamos, passamos a viver criticamente nossa realidade. Para
tanto basta deixar para trás o pensar ingênuo e fragmentado do senso
comum. Está nas suas mãos esse convite. Você vai abri-lo e aceitá-lo?
aula9_pb.indd 115 5/20/2004, 8:56:28 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
116 C E D E R J
5) Mito
O que é mito?
Você já deve ter escutado a pergunta: quem é seu mito? Ou
em outra ocasião já deve ter ouvido alguém falar em mitos do cinema
(Marilyn Monroe, por exemplo), do esporte (Pelé, Ayrton Senna),
da televisão, do teatro, fi guras míticas (Gandhi, Madre Teresa de
Calcutá), e de mitos gregos (que são os mais conhecidos em nossa
cultura ocidental). Você já escutou com certeza os nomes de Zeus,
Atenas, Afrodite/Vênus, Hércules. Além dos mitos gregos há ainda os
de outros povos, como por exemplo, Adão e Eva (nomes ligados ao
mito da criação aceito por judeus e cristãos); Thor e Odin, da mitologia
germânica; Gilgamesh, da mitologia sumeriana.
Você já deve ter percebido também que muitas vezes mito aparece
como sinônimo de lenda, como uma fi cção, ou como algo sem lógica. Se
alguém nos fala: “ah! Isso é mito!”, essa frase está querendo nos alertar:
“não se preocupe com bobagens, relaxe, pois isso não existe”.
Assim, em torno do termo mito circulam muitas idéias: tradições
religiosas antigas (algumas até desaparecidas), grandes fi guras que se
sobressaíram em suas atividades, fi cção, falta de lógica, irracionalidade,
mentira, inexistência.
No século XX, graças a estudos de mitólogos e historiadores da
religião, o mito passou por uma reabilitação. Por isso, hoje ganhamos
a compreensão do mito como uma narrativa sagrada verdadeira de
um acontecimento passado nos tempos primordiais, fora da História,
que apresenta a criação total ou parcial de algo por parte de seres
sobrenaturais ou de apenas um ser sobrenatural, que é aceita por um
determinado povo.
Entretanto, essa reabilitação teórica do mito ainda não alcançou
todos os círculos intelectuais nem atingiu o senso comum. Isso explica
o fato de o mito continuar a ser apresentado, no mais das vezes, como
sinônimo de lenda.
aula9_pb.indd 116 5/20/2004, 8:56:28 AM
AU
LA 9
MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 117
R E S U M O
A arte é um meio pelo qual nos situamos e interpretamos o mundo.
A arte é também uma representação simbólica do mundo. O sentido que aí
encontramos é construído socialmente.
A arte nos recorda que podemos construir a realidade de modos diferentes.
As obras de arte nos atingem por nossos sentidos e razão. Daí a importância da
educação de nossa sensibilidade e de nosso intelecto.
O senso comum é a nossa primeira leitura da realidade. É um conhecimento
espontâneo, fragmentado, superfi cial e não sistemático, mas isso não signifi ca
que ele seja um conhecimento falso.
O conhecimento científi co procura as relações necessárias entre os fenômenos.
É um conhecimento metódico, sistemático e fundamentado.
O conhecimento científi co explica os fenômenos regulares e resulta em leis
científicas que explicam as relações necessárias e constantes presentes nos
fenômenos.
A Ciência procura prever acontecimentos futuros para melhor controlá-los.
A Filosofi a é uma refl exão crítica da realidade, que investiga o mundo em suas
estruturas íntimas e últimas e ainda o próprio conhecimento, sem utilizar a
experimentação, a tecnologia e a fé.
A Filosofi a é um conhecimento sistemático que opera com enunciados precisos
e conceitos encadeados logicamente por meio de demonstração e prova.
Esse conhecimento exige uma fundamentação racional do que é pensado e
enunciado.
A Filosofi a é um conhecimento que incomoda porque provoca nossas certezas
cotidianas e por mostrar o uso ideológico dessas certezas para a manutenção do
status quo.
Mito é uma história sagrada que narra a criação de algo por seres sobrenaturais.
Os eventos narrados aconteceram fora da História, no início dos tempos.
Em torno do vocábulo mito, circulam as idéias de lenda, fi guras míticas, tradições
religiosas antigas, falta de lógica, fi cção.
No século XX, o mito começou a ser reabilitado teoricamente.
aula9_pb.indd 117 5/20/2004, 8:56:29 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os diferentes tipos de conhecimento
118 C E D E R J
EXERCÍCIOS
1. Por que o pressuposto básico do conhecimento é a relação sujeito-objeto?
2. Por que para haver conhecimento é necessário responder ao Ceticismo?
3. Comente as posições platônica e de Ortega Y Gasset quanto à questão “Por
que e para que conhecemos?”.
4. Aponte as diferenças entre Racionalismo e Empirismo quanto à origem do
conhecimento.
5. Explique a diferença entre o senso comum, a Ciência e a Filosofi a.
6. Por que o Mito e a Arte também são formas de conhecimento? Explique-as.
AUTO–AVALIAÇÃO
Esta aula permitiu a você conhecer os principais problemas envolvidos no conhe-
cimento? Quais seriam eles? Ela também lhe permitiu conhecer e distinguir os
diferentes tipos de conhecimento? O que você poderia dizer sobre o conhecimento
da Filosofi a, do Mito, do Senso Comum, da Ciência e da Arte? Está tudo certo? Então,
você pode continuar tranqüilamente sua viagem. A próxima parada é a Estação da
Ciência da História. Continue a fazer uma viagem saborosa pelo mundo do saber.
aula9_pb.indd 118 5/20/2004, 8:56:30 AM
10A Ciência na História
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Mostrar as diferentes concepções sobre a ciência, na História.
• Refl etir, criticamente, sobre a produção científi ca nos diferentes contextos históricos.
au
la
OBJETIVOS
aula10_pb.indd 119 5/20/2004, 9:06:03 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História
120 C E D E R J
INTRODUÇÃO
Continua a nossa viagem; avistamos
uma nova paisagem da janela de nosso
trem. Conhecemos os diferentes tipos
de conhecimento; percebemos que o
conhecimento científi co é considerado uma
importante produção do saber humano, que
tem possibilitado transformar, às vezes
profundamente, a realidade; por isso,
precisamos conhecer como a Ciência vem
se transformando ao longo da História.
O poder de dominar a matéria e de fazer coisas, da
ciência, acarreta nos não-iniciados uma atitude de
submissão. É por isso que ela exerce sobre muitos
um poder quase mágico... Os cientistas são vistos
como se fossem os proprietários exclusivos do saber
(JAPIASSU, 1975).
Atualmente o conhecimento científi co parece ser um conhecimento
que está acima do bem e do mal, porque quando queremos afi rmar que
algo é verdadeiro, freqüentemente recorremos à Ciência. Por que tomamos
essa atitude? Como podemos caracterizar esse conhecimento? A ciência
nasce como um conhecimento racional que busca compreender a realidade
profundamente, investigando as causas dos fenômenos que constatamos em
nosso cotidiano. Por exemplo: a partir de nossas observações cotidianas,
poderíamos, aliás, pensar que a Terra é imóvel e o sol se moveria ao seu
redor, uma crença que durou séculos. No entanto, COPÉRNICO, no século
XVI, formulou a teoria heliocêntrica, na qual a Terra e os demais planetas
giravam em torno do sol.
O CONHECIMENTO COMUM é pleno de certezas e verdades que
nem sempre nos revelam a causa, a origem ou a constituição de um
determinado fenômeno. A Ciência deve desconfi ar das verdades e certezas
de nosso cotidiano. A curiosidade e a busca devem ser os guias daquele
que faz investigação científi ca. Devemos problematizar, libertar-nos das
superstições e das certezas absolutas.
NICOLAU COPÉRNICO
Veja informações na
Aula 4.
CONHECIMENTO COMUM OU SENSO COMUM
Veja informações na
Aula 9.
aula10_pb.indd 120 5/20/2004, 9:06:17 AM
AU
LA 1
0 MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 121
O conhecimento científico se caracteriza por ser: rigoroso,
objetivo, generalizador e, também, buscar a regularidade e a constância
dos fenômenos e estabelecer as relações causais entre fatos. Mas essas
características não devem ser vistas de modo rígido, porque a Ciência
lida com múltiplos objetos ou fenômenos na sua investigação. Podemos
escolher como objeto de investigação uma planta, um animal, um
planeta, a mente humana, uma comunidade etc. Como faríamos a nossa
investigação? Com o mesmo método, utilizando os mesmos caminhos
de investigação? Será que não deveríamos observar a especifi cidade do
objeto investigado, para escolher como deveríamos conhecê-lo? Um
fenômeno humano deve ser visto do mesmo modo que um fenômeno
da Botânica? Essas questões têm atravessado a História e preocupado
aqueles que buscam compreender mais profundamente por que tal fato,
fenômeno ou prática acontece.
A Ciência se renova e se modifi ca a cada momento; seus modelos
mudam devido aos avanços do conhecimento. A razão humana se
transforma através dos tempos; por isso, precisamos conhecer como o
conhecimento científi co se apresenta nos diferentes períodos históricos.
Será que a Ciência, ao longo da História, foi sempre vista da mesma
maneira? Será que o mundo antigo concebeu esse tipo de conhecimento
do mesmo modo que o mundo moderno? Se houver diferença, será que
a Ciência antiga é mais ou menos científi ca do que a que fazemos hoje?
Pense nessas questões.
Para melhor respondermos a essas perguntas, teremos que
investigar como a Ciência vem sendo produzida, ao longo da História,
no mundo ocidental.
aula10_pb.indd 121 5/20/2004, 9:06:22 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História
122 C E D E R J
A CIÊNCIA GRECO-ROMANA E MEDIEVAL
É evidente, então, que necessitamos adquirir a ciência das causas
primeiras (pois dissemos que sabemos cada coisa, quando cremos
conhecer a causa primeira).
ARISTÓTELES
No contexto das civilizações antigas, a grega foi a que desenvolveu
um tipo de reflexão e de conhecimento racional desvinculado do
CONHECIMENTO MÍTICO, que acabou por desembocar no surgimento da
Filosofi a, no século VI a.C.
Os pensadores que primeiro se aventuraram na procura de
respostas diferentes daquelas dadas pelos mitos são hoje mais conhecidos
como pré–socráticos ou, ainda, como pensadores originários.
A contribuição dos pré-socráticos
No alvorecer da Filosofi a, a Natureza foi o objeto de estudo por
excelência. A preocupação dos primeiros fi lósofos girava em torno do
conhecimento do cosmos ou da PHYSIS. Eles começaram a investigar qual
ou quais princípios estariam presentes em todas as coisas existentes no
cosmos ou na physis. Passaram a investigar a arché da physis. Daí essa
Filosofi a ser conhecida como Cosmologia.
A Cosmologia – o modo pelo qual a Filosofi a emergente se
apresentou – consiste na explicação racional do cosmos: o mundo
ordenado a partir da determinação de um princípio racional e originário,
fonte de todas as coisas e da ordenação presente nelas. Por meio da
Cosmologia, a Filosofi a buscava ser a explicação racional sobre as coisas,
um pensamento que conferia ordem à realidade.
Esses pensadores perceberam que toda a multiplicidade e diferença
existentes no nosso mundo (por exemplo: várias árvores, mares, pessoas,
animais, estrelas etc.) deveriam estar fundamentados em um ou alguns
princípios que seriam as causas e os fundamentos de tudo que existia.
As respostas foram variadas e diferentes. Vejamos algumas, encontradas
pelos pré–socráticos para essas questões:
ARISTÓTELES
Ver Aula 9.
CONHECIMENTO MÍTICO
Veja informações na Aula 9.
PHÝSIS
Esse termo grego foi traduzido pelos latinos por natura (Natureza). Assim, os pré-socráticos foram os primeiros estudiosos da Natureza. Aristóteles os chamou de fi siologoi (físicos). O termo phýsis deve ser entendido, no mundo antigo, em três sentidos: processo de nascimento, de produção; disposição natural de cada existência, o modo de ser de cada existência; a força criadora de todos os seres.
aula10_pb.indd 122 5/20/2004, 9:06:22 AM
AU
LA 1
0 MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 123
TALES DE MILETO (fi ns do séc. VII e início do séc. VI a.C.), considerado
o pai da Filosofi a, afi rmou que o princípio era a água, pois percebeu
que sem a umidade nada sobrevivia. Empédocles de Agrigento (484–
421 a.C.), por sua vez, explicou que tudo era constituído pelos quatro
elementos – água, terra, fogo, ar – que entravam na constituição das
coisas em dosagens diferenciadas. O amor e o ódio eram as forças que
associavam e dissociavam os elementos.
Os atomistas, por sua vez, pela primeira vez intuíram e afi rmaram
que as coisas eram compostas pela reunião de um derradeiro elemento:
o átomo. Demócrito de Abdera (cerca de 460–400 a.C.) e Lucrécio de
Mileto (cerca de 500 a.C.) afi rmaram que o atomismo signifi cava a
erradicação do medo diante da morte e da superstição, porque, com
a separação dos átomos, haveria o fi m, e depois desse não haveria nem
penas e nem recompensas. Assim, por que temer a morte?
Os pré–socráticos foram os primeiros que construíram uma
imagem da Natureza a partir da própria Natureza. Como eles fi zeram
isso? Simples. Eles aboliram as metáforas simbólico–alegóricas (presentes
nos mitos) e naturalizaram o mundo. Dentro dessa idéia de Natureza, os
deuses e suas infl uências foram desaparecendo até sumirem por completo.
Com os pré–socráticos, portanto, a physis passou a ser pensada não
mais por meio das explicações e imagens mitológicas, mas por meio de
explicações racionais.
Por que eles fi zeram isso? Porque eles olharam de uma maneira
diferente para a realidade que os cercava e propuseram um novo caminho
para conhecermos essa realidade, que não mais se realizava a partir das
lentes dos mitos e sim do lógos fi losófi co–científi co. Isso signifi ca que as
respostas dadas pelos mitos e pela religião não estavam mais respondendo
satisfatoriamente a todos.
Você sabia que esses fi lósofos, no geral, foram uma mescla de
fi lósofos, astrônomos, matemáticos, físicos? Por quê? Porque as áreas
de conhecimento ainda estavam sob as asas da Filosofi a. Ou seja: elas
ainda não tinham se emancipado e se tornado áreas de conhecimento
distintas e específi cas.
A Cosmologia pré–socrática instaurou questionamentos que têm
atravessado séculos. Qual é a origem de tudo? Como o idêntico a si
mesmo engendra o diferente? Como o uno gera o múltiplo? Como o
imutável e eterno cria o mutável e perecível? Como um único princípio
origina a multiplicidade? Como o múltiplo retorna ao uno?
TALES DE MILETO
Filósofo pré-socrático.
aula10_pb.indd 123 5/20/2004, 9:06:23 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História
124 C E D E R J
Algumas características que nasceram no pensamento pré-socrático
vão se desenvolver no período antigo e marcarão, por exemplo, Platão,
Aristóteles, Ptolomeu e Arquimedes. A refl exão que os fi lósofos/cientistas
do mundo antigo empreenderam sobre o cosmos esteve essencialmente
marcada pela especulação racional, pela falta de aplicação prática dos
conhecimentos, pela não-utilização do experimento e de um instrumental
técnico e pela não-utilização de uma linguagem matemática.
São essas características que predominaram na Ciência produzida
nos períodos greco–romano e medieval. Por isso, podemos apresentá-las
como aspectos norteadores do conhecimento construído nesses períodos.
Vamos a elas!
CARACTERÍSTICAS GERAIS DA CIÊNCIA GRECO-ROMANA E MEDIEVAL
Não-utilização da técnica (pouco desenvolvimento de um instrumental técnico) e do experimento
No mundo antigo, as "ARTES liberais" (os conhecimentos dignos
do homem livre e que diziam respeito estritamente à vida intelectual)
tiveram prestígio maior do que as artes mecânicas, uma vez que as
atividades manuais eram executadas pelos escravos e/ou pelas camadas
mais pobres da sociedade.
Além disso, a concepção de Natureza e a postura humana frente a
ela contribuíram também para o desprestígio do mecânico. Os antigos,
no geral, perceberam a Natureza como algo divino e isso impediu que
eles lançassem mão amplamente do experimento e de um instrumental
técnico para o conhecimento da physis.
Você sabia que praticamente até o século XVII persistiu um certo
recato frente às interferências técnicas na Natureza, porque ela era
compreendida ainda como uma ordenação divina? Pois é. O rompimento
dessa tradição se deu com a técnica e as Ciências modernas, a partir da
elaboração de um novo conceito de Natureza e da destruição das noções
de mundo e de homem, criados na Antigüidade clássica.
ARTES
No contexto antigo, esse termo não signifi cava somente as belas-artes, tal como hoje. O vocábulo arte é a tradução do termo latino ars que traduziu, por sua vez, o complexo vocábulo grego téchne, que está na origem da nossa palavra "técnica".
TÉCHNE
Termo grego que designava “aquilo que o homem entendia acerca de algo, especialmente ao que ele podia elaborar ou fabricar”, e não especifi camente às máquinas e às ferramentas. Téchne era um tipo de conhecimento, pois aquele que possuía uma téchne conhecia algo de algum modo. Assim, a medicina era uma téchne que dava ao médico o conhecimento sobre a saúde e a doença. A olaria era uma téchne que dava ao oleiro o conhecimento sobre a fabricação de tijolos.
aula10_pb.indd 124 5/20/2004, 9:06:23 AM
AU
LA 1
0 MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 125
Especulação racional
O modo antigo de interrogar e conhecer a physis se deu de maneira
diversa da que encontramos na perspectiva científi ca moderna, pois a
Ciência antiga parte de princípios diferentes dos utilizados por nós para
o conhecimento da Natureza.
O conhecimento científi co daquela época estava essencialmente
ligado à Filosofi a, que determinou a abordagem teórica (especulativa)
dos ENTES. Isso proporcionou uma apreensão qualitativa dos entes, uma
vez que ela se dava a partir da análise dos aspectos e propriedades
intrínsecas dos entes, ou seja, esse conhecimento foi construído a partir
da investigação das essências das coisas.
E, como você sabe, não dá para pesar e medir a essência de algo.
Mas podemos pensar sobre ela. Pois é; foi isso que os antigos fi zeram.
Passaram a conhecer os entes a partir da especulação racional, da refl exão
acerca das essências presentes nas coisas. Por isso, dizemos que esse tipo
de conhecimento era mais qualitativo do que quantitativo.
O que você acha desse modo antigo de conhecer a realidade? Será
que ele é ingênuo e menos científi co ou apenas diferente do que nós,
hoje, fazemos? Pense nisso.
Falta de aplicação prática dos conhecimentos
Na medida em que a atividade intelectual era contemplativa, a
fi nalidade da Ciência visava mais à contemplação e ao conhecimento
qualitativo do ente em sua totalidade do que à aplicabilidade prática
dos conhecimentos.
Pense nos dias de hoje. Soa natural, para nós, o fato de o
conhecimento, necessariamente, ter de desembocar na criação de
uma nova máquina ou de um novo remédio, por exemplo. Os antigos
achariam muito estranha essa nossa necessidade de aplicação prática dos
conhecimentos. Do mesmo modo, nós também tendemos a considerar
esquisitos, para não dizer inúteis, os conhecimentos que não se mostram
aplicáveis na prática. Dessa forma, por exemplo, conhecimentos como
os da Filosofi a são desprestigiados na nossa época, porque geralmente
as pessoas não percebem nela nenhuma utilidade prática imediata.
Você consegue imaginar a possibilidade de construirmos algum
conhecimento que não tenha aplicabilidade? Pense nisso com carinho.
ENTE
Do latim ens. Signifi ca o que existe. A mesa é um ente. A camisa é um ente. A planta é um ente. A música
é um ente. O ser humano é um ente.
aula10_pb.indd 125 5/20/2004, 9:06:23 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História
126 C E D E R J
Não-utilização da linguagem matemática
No mundo antigo não encontramos a necessidade da utilização
da linguagem matemática e de suas fórmulas no conhecimento. Isso se
deve ao fato de a EPISTEME antiga fazer uso de premissas que desconheciam
a perspectiva da quantifi cação e da matematização da Natureza, pois
seu programa teórico procurava conhecer o ente em sua totalidade e
não apenas nos aspectos que podiam ser pesados, medidos e ditos numa
linguagem matemática.
A linguagem matemática se torna imprescindível a partir do
século XVII, que revolucionou o modo como o Ocidente passou a
conhecer a realidade.
Portanto, por mais que a razão fosse um horizonte privilegiado de
acesso ao conhecimento do que existe, na Ciência antiga os entes ainda
não eram apreendidos e conhecidos a partir de uma única instância
reguladora do conhecer (o método científi co quantitativo experimental),
tal como na Modernidade, instaurada a partir do século XVII. No período
antigo estávamos nos primórdios da escalada racional humana, que era
direcionada por uma interpretação de mundo que distanciava o técnico
do pensador, que desconhecia a percepção unicamente quantitativa da
physis; em que o conhecimento científi co se via inserido no contexto
especulativo antigo.
A CIÊNCIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
(..) o tempo antigo passou, e agora é um tempo
novo. Logo a humanidade terá uma idéia clara
de sua casa, do corpo celeste que ela habita. O
que está nos livros antigos não lhe basta mais.
Pois onde a fé teve mil anos de assento, sentou-se
agora a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos
livros, mas agora nós queremos ver com nossos
olhos (BRECHT, 1977, p. 25).
Como vimos anteriormente, a Ciência greco-romana e medieval
apresentava as seguintes características: não utilizava a técnica e o
experimento; especulava racionalmente os fenômenos humanos e da
natureza; não se preocupava em aplicar de modo prático o conhecimento;
não aplicava a linguagem matemática na investigação científi ca.
BERTOLD BRECHT
(1898-1956)
Dramaturgo e poeta alemão.
EPISTEME
Termo grego que signifi ca conhecimento verdadeiro do tipo científi co.
aula10_pb.indd 126 5/20/2004, 9:06:24 AM
AU
LA 1
0 MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 127
Mas, a partir dos séculos XVI e XVII, o mundo passa por
mudanças signifi cativas, como já discutimos na Aula 4; o homem
torna-se o centro do universo, abrindo novas perspectivas no campo
sócio-cultural, político e econômico. Podemos caracterizar esse período
com os seguintes aspectos:
• nascimento de um novo modo de produção –
o capitalismo;
• desenvolvimento da navegação, do comércio e da
manufatura;
• descoberta de novos mundos – chegada às Américas;
• diminuição da infl uência religiosa sobre as idéias culturais
e políticas;
• implantação de uma visão antropocêntrica (o homem é
o centro do universo);
• questionamento do pensamento e dos dogmas
católicos;
• intensa produção intelectual e artística, com uma nova
leitura da cultura greco-latina.
Esses aspectos provocam mudanças no plano das idéias e na
maneira de conhecer a realidade. Surge, nesse período, uma nova forma
de racionalidade que cria procedimentos que possam intervir e agir na
natureza. Nesse ambiente nasce a Ciência moderna, que se fundamenta
no conhecimento racional e na experimentação (observação racional
e controlada da realidade). Essa nova Ciência procura investigar e
compreender a Natureza, assim como dominá-la e transformá-la. De
acordo com DESCARTES, por meio do conhecimento científi co devemos nos
tornar senhores da Natureza. Mas quais seriam as características da Ciência
moderna e contemporânea? A seguir, discutiremos essas características.
DESCARTES
Ver informações na Aula 4.
aula10_pb.indd 127 5/20/2004, 9:06:25 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História
128 C E D E R J
FRANCIS BACON
(1561 – 1626)
Filósofo do período moderno que pertence à tradição empirista. Afi rma que o saber confere poder ao homem. De acordo com Bacon, o saber não é de caráter teórico, mas prático; uma espécie de guia da ação. Por isso, precisa-se de um novo método para conhecer melhor a realidade.
CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
A ciência moderna e contemporânea inaugura um novo modo de
conhecer o mundo. Há uma preocupação em conhecer profundamente
a Natureza, como também em agir sobre ela. Vejamos quais são as
principais características dessa ciência:
• Saber ativo – busca-se conhecer por
que e como os fenômenos acontecem. Ela
não especula racionalmente apenas a causa
ou a essência dos elementos ou fenômenos da
Natureza; procura descrever com precisão como
esse fenômeno ocorre e, se possível, propõe uma
intervenção na Natureza, transformando-a ou
criando algo que tenha aplicabilidade. Há uma
aliança entre o saber e a técnica. Por exemplo:
Pascal e Torriceli revelam a existência da
pressão atmosférica e criam o BARÔMETRO.
• Valorização do método – embora o
método tenha sido discutido pelos fi lósofos na
Antigüidade e na Idade Média, os pensadores
modernos priorizaram a questão: como posso
conhecer verdadeiramente a realidade? Vários
pensadores (DESCARTES, BACON, LOCKE, HUME,
entre outros) responderam que somente
através de um método rigoroso e claro poder-
se-ia conhecer efetivamente a realidade.
Esses pensadores decidiram investigar a
origem do conhecimento verdadeiro e quais
os caminhos que deveríamos trilhar para
conhecer a realidade. Eles abandonaram
o princípio da autoridade e a especulação,
utilizados pelos pensadores do mundo greco-
romano e medieval, e aceitaram como fonte
do conhecimento a experiência e a razão.
JOHN LOCKE
(1623-1704)
Filósofo empirista, que busca a origem
e o valor do conhecimento. Ele defende que todo
conhecimento tem origem com e pela
experiência.
DAVID HUME
(1711-1776)
Filósofo empirista, que questiona
qual é a validade do conhecimento.
Acredita que todas as idéias nascem das impressões sensíveis.
BARÔMETRO
Instrumento destinado a medir a pressão atmosférica.
EMPIRISMO
Corrente fi losófi ca, segundo a qual o conhecimento tem origem na experiência.
aula10_pb.indd 128 5/20/2004, 9:06:25 AM
AU
LA 1
0 MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 129
Surgem novos métodos, com base nessas fontes, para investigar a
realidade. Entre esses métodos destacamos o método experimental, que
representa um marco para a Ciência moderna.
• Método experimental – exige inicialmente a observação
de um determinado fenômeno. Essa observação poderá
ser feita por meio dos nossos sentidos ou com algum
instrumento de precisão (microscópio, telescópio,
termômetro etc.). Depois, o cientista formula hipóteses
sobre o que foi observado e, em seguida, verifi ca essas
hipóteses. Ele testa essas hipóteses realizando um processo
de experimentação, podendo repetir os fenômenos, variar
as condições da experiência, testar os fenômenos em
outros ambientes etc. Quando confi rma a sua hipótese,
o cientista faz generalizações, criando, em alguns casos,
leis. No método experimental, o uso da Matemática é
imprescindível, porque a Matemática permite medir e
quantifi car determinados fenômenos; por isso, afi rmamos
que a ciência moderna privilegia a quantidade e não a
qualidade, como a ciência greco-romana e medieval. Por
exemplo: para Aristóteles, cada corpo tem um “lugar
natural”, conforme a sua essência; sendo assim, a terra e a
água são corpos pesados, e o fogo e o ar são corpos leves.
Por isso, o lugar natural da terra e da água é embaixo e
o do fogo e do ar é em cima; sendo assim, cada corpo,
de acordo com a qualidade que possui, busca seu lugar
natural. Para a ciência moderna, esse tipo de explicação
seria inaceitável, porque seria necessário investigar as
propriedades da terra, da água, do fogo e do ar, descrever
como são o movimento e a trajetória desses elementos,
produzir explicações (hipóteses) que descrevessem os
movimentos desses corpos, produzir verifi cações, através
da experimentação, que checassem a trajetória desses
corpos, para, somente então, chegar às conclusões que
demonstrassem o movimento dos mesmos.
aula10_pb.indd 129 5/20/2004, 9:06:26 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A Ciência na História
130 C E D E R J
• A linguagem matemática – outro aspecto importante da
ciência moderna e contemporânea é o uso da Matemática;
a linguagem matemática possibilita medir e verifi car com
notável precisão os fenômenos observados pelos cientistas.
A Matemática auxilia a execução da experimentação.
Essas características marcam o pensamento científi co moderno e
contemporâneo; mas, no século XIX, aparecem as Ciências Humanas,
que provocam de imediato o seguinte questionamento: é possível
existir uma ciência cujo objeto de estudo é o homem? Podemos usar
nas Ciências Humanas a mesma metodologia das Ciências da Natureza
(Física, Química, Biologia, Astronomia etc.)?
Além disso, até o século XIX, o homem era estudado exclusivamente
pela Filosofi a, que apresenta uma metodologia de pesquisa diferente da
Ciência. Outro fator a considerar era que as Ciências da Natureza já
haviam defi nido seus métodos de investigação da realidade, mostrando
o caminho da pesquisa científica. Nesse contexto, a princípio, as
Ciências Humanas tendem a copiar o modelo científi co das Ciências da
Natureza, mas os cientistas esbarram na complexidade de seu objeto
de estudo, o homem, que não podia ser tratado como “uma coisa” ou
“um fenômeno” investigado exclusivamente através da experimentação;
além disso, as relações humanas e sociais não podiam ser tratadas como
algo a ser experimentado ou compreendidas por meio da Matemática.
Surgiam questões importantes: como poderíamos observar/experimentar
uma determinada sociedade? Como estabelecer leis para o que é subjetivo,
por exemplo, o psiquismo humano? As Ciências da Natureza não
trabalham com o subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo etc., mas
os homens possuem tais características.
A partir dessas indagações, inicia-se a busca de um método científi co
que possa dar conta do estudo científi co do homem e das relações humanas.
Essa busca possibilita novos caminhos para a inves-tigação científi ca. As
Ciências Humanas trabalham com as interpretações, a HERMENÊUTICA.
Freqüentemente une as metodologias científi ca e fi losófi ca; rompe com a
verdade absoluta. As Ciências Humanas têm como fi nalidade conhecer,
de modo sistemático e profundo, aspectos sociais, históricos, culturais,
políticos, econômicos e psíquicos da vida humana. Na verdade, as Ciências
Humanas promovem uma ruptura com as Ciências da Natureza, criando
um novo modelo de investigação científi ca.
HERMENÊUTICA
Método de interpretação dos sentidos das palavras.
aula10_pb.indd 130 5/20/2004, 9:06:26 AM
AU
LA 1
0 MÓ
DU
LO 2
C E D E R J 131
R E S U M O
Nesta aula vimos como os pensadores concebiam a Ciência na Antigüidade e
nos períodos Medieval, Moderno e Contemporâneo. A Ciência greco-romana
e a medieval caracterizaram-se pela especulação racional, a não-utilização do
método experimental e da linguagem matemática e a falta de aplicação prática
dos conhecimentos. A Ciência moderna e contemporânea estabeleceu uma nova
forma de fazer ciência, usando o método experimental e a linguagem matemática,
produzindo um saber ativo que interfere na Natureza, agindo sobre ela, procurando
aplicabilidade para o conhecimento. No século XIX, surgem as Ciências Humanas,
que buscam investigar, de modo sistemático e profundo, aspectos sociais, históricos,
culturais, políticos, econômicos e psíquicos da vida humana, criando uma nova
metodologia científi ca.
EXERCÍCIOS
1. Discuta as características da Ciência greco-romana e a medieval, mostrando por
que elas diferem da Ciência Moderna e Contemporânea.
2. Aponte os fatores que possibilitaram o aparecimento da Ciência Moderna.
3. Por que a Ciência Moderna e Contemporânea une o saber e o poder?
4. As Ciências Humanas podem usar o método experimental? Por quê?
AUTO-AVALIAÇÃO
Este texto possibilitou o conhecimento de diferentes visões sobre a Ciência ao
longo da História. Você conseguiu fazer a distinção entre as Ciências produzidas na
Antigüidade e Idade Média e a do Mundo Moderno e Contemporâneo? Percebeu
que suas fi nalidades e métodos eram qualitativamente diferentes? Constatou a
especifi cidade e complexidade das Ciências Humanas? Se sim, você está apto a
prosseguir a nossa viagem.
aula10_pb.indd 131 5/20/2004, 9:06:27 AM
CEDERJ
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
133
AU
LA 5
11Paradigma da Ciência moderna au
la
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Compreender a noção de paradigma.
• Identifi car os fundamentos teórico-práticos da Ciência moderna.
do modelo experimental-indutivo na Matemática e na Física.
OBJETIVOS
Newton
Descartes
J. Locke
D. Hume
Copérnico
Da Vinci
Galileu
aula11_pb.indd 133 5/19/2004, 2:43:28 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna
134 C E D E R J
Nas duas estações
passadas analisamos os diferentes tipos de
conhecimento (Aula 9) e a Ciência na História (Aula 10). Vimos que a
Ciência é um dos tipos de conhecimento e acompanhamos seu desenvolvimento
ao longo de três situações históricas do mundo ocidental.
Ainda dentro do assunto Ciência, como você responderia às seguintes perguntas?
Por que nos diferentes períodos históricos e nas diferentes culturas existem
modos diferentes de conceber e fazer Ciência? Em outras palavras, por que
a Ciência do mundo antigo é diferente da Ciência moderna e da Ciência
contemporânea? Será que entre elas haveria uma relação de continuidade,
sendo que a Ciência de um momento posterior seria a evolução da Ciência
anterior? Ou haveria, pelo contrário, uma relação de quebra entre elas e aí a
Ciência posterior partiria de princípios completamente diferentes daqueles que
regeram a Ciência anterior? Pense nessas questões, pois é a partir delas que
vamos desenvolver esta aula.
Para responder a essas perguntas utilizaremos aqui um referencial teórico que
admite a concepção de descontinuidade e rupturas entre as diferentes maneiras
de conceber e fazer Ciência. Ou seja, estamos aceitando o fato de que, em
determinadas épocas, todo um modo de explicar cientifi camente a realidade
é deixado para trás porque já não responde mais às questões colocadas. Isso
signifi ca que as respostas que as pessoas davam em relação à pergunta mais
básica – "o que é esta COISA?" – perdem credibilidade e força explicativa.
Por causa disso, torna-se necessário inventar, mais uma vez, um modo
consistente de olhar para a realidade e responder satisfatoriamente o que são
os fenômenos, os eventos, os acontecimentos; enfi m, o que vem a ser esta
realidade que se apresenta para nós. Vamos dar um exemplo.
INTRODUÇÃO
CO I S A
Poderia ser "por que a pedra cai?", ou "por que chove" ou "por que nascemose morremos?" ou "oque é o homem?", por exemplo.
aula11_pb.indd 134 5/19/2004, 2:43:41 PM
AU
LA 1
1 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 135
Por que a pedra cai? Aristóteles, no século IV a.C., respondeu a esta pergunta
a partir da teoria da queda dos CORPOS PESADOS, que se associava à Teoria dos
Lugares Naturais e à composição da pedra. Os corpos caíam para chegarem ao
seu lugar natural. Uma vez que a pedra possuía mais o elemento terra em sua
formação, naturalmente ela iria para seu lugar natural junto ao elemento terra
e por isso cairia e não subiria. Essa explicação vigorou por séculos e somente
teve uma resposta à altura com a Física de Newton, no século XVIII, que utilizou
a Lei da Gravitação Universal para explicar a queda da pedra.
De acordo com o marco referencial descontinuísta, é ilusória a compreensão da
Ciência como um processo linear, estabelecido como o somatório progressivo
e acumulativo de descobertas científi cas. Então, como a Ciência se daria?
Ciência: uma construção teórica
Por meio desses exemplos queremos dizer que a Ciência de cada
época “olha” para a realidade a partir de uma determinada ótica, fazendo
com que os fenômenos e suas relações sejam explicadas historicamente
de maneiras diferentes. Elas se diferenciarão devido aos princípios
explicativos, aos modelos, aos métodos de abordagem e às técnicas
científi cas que cada período histórico elegerá como os mais corretos e
seguros para conduzir à verdade.
Você já parou para pensar que talvez o discurso científi co não seja a
fotografi a exata do que vem a ser a realidade, mas uma construção tal como
a do FOTÓGRAFO? Se aceitarmos a imagem da Ciência como uma construção
fotográfi ca, estamos acatando a idéia de que a explicação científi ca é uma
elaboração teórica da realidade. Assim, é errônea a imagem do cientista
"clicando" um instantâneo e depois apenas lendo e anotando aquilo que
viu. A melhor analogia para a tarefa do cientista é a do tecelão: como um
tecelão, ele tece uma maneira de olhar a realidade e, nessa tessitura, o
cientista estabelece uma certa ordenação e explicação dos fatos.
Nesse sentido, a Ciência é uma produção teórica, um discurso
construído a partir de determinados parâmetros aceitos historicamente
como válidos. As teorias científi cas são, portanto, soluções temporárias
para os problemas cotidianos que, em cada época, promovem a
compreensão racional dos fenômenos naturais e sociais. Como podemos
entender esses parâmetros?
CO R P O S P E S A D O S
Corpos pesados ou “graves”, daí o termo gravidade. Aristóteles
acreditava que quanto mais pesado fosse um
corpo (quanto mais elemento terra ele
tivesse), mais rápido ele chegaria ao chão.
FO T Ó G R A F O
Escolhe o ângulo,as cores, o tipo defi lme para retratar
a realidade. Assim,sua atividade é uma
construção.
aula11_pb.indd 135 5/19/2004, 2:43:45 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna
136 C E D E R J
Ciência: uma construção teórica a partir de paradigmas
No pensamento EPISTEMOLÓGICO de THOMAS KUHN, dois conceitos
caminham paralelamente: o de paradigma e o de comunidade
científi ca.
Paradigmas seriam as realizações científicas modelares,
universalmente aceitas e reconhecidas por uma comunidade científi ca
de determinado período, que oferecem a estrutura conceitual e os
instrumentos para as soluções de problemas. Como nos explica Kuhn:
“paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham
e, inversamente, uma comunidade científi ca consiste em homens que
partilham um paradigma”. A comunidade científi ca seria a produtora
e a legitimadora do conhecimento científi co.
Todo paradigma, ao estabelecer as condições de cientifi cidade
do conhecimento, acaba por determinar também quais conhecimentos
e práticas serão considerados científi cos e verdadeiros em um período
histórico.
Para Kuhn, o cientista defende a tradição que o formou e em
que acredita e, por isso, tenderá a resistir a mudanças conceituais e
práticas que alterem o trabalho científi co. A defesa e a resistência se
devem ao fato de o paradigma fornecer à comunidade científi ca a
base de seu trabalho e ainda a conseqüente adesão dessa comunidade
ao paradigma, que é fortalecida pelos sucessos obtidos.
A grande novidade presente na interpretação de Thomas Kuhn
sobre a Ciência está em sua afi rmação segundo a qual as mudanças
paradigmáticas não se devem tanto à própria lógica interna do
desenvolvimento da Ciência, ou seja, a critérios e aspectos teóricos
de cientifi cidade, mas muito mais a fatores históricos, sociológicos e
psicológicos que contribuem para a escolha do paradigma emergente
entre os paradigmas alternativos presentes numa dada época.
Quando os resultados que um paradigma não previa começam
a ser acumulados; quando cresce o número de incongruências que
os cientistas não conseguem solucionar à luz do paradigma; quando
o próprio paradigma existente passa a ser percebido como a causa
última dos problemas e das incongruências; então, já está se
insinuando uma situação de crise de conhecimento, que propiciará
as condições necessárias a uma revolução paradigmática.
TH O M A S SA M U E L KU H N
(1922-1996)
Famoso fi lósofo americano da Ciência. Físico de formação, dedicou-se aos estudos de Filosofi a e História da Ciência. Lecionou em Harvard, Universidade da Califórnia-Berkeley, Princeton e no Massachussets Institut of Technology. Tornou-se conhecido com a obra A estrutura das revoluções científi cas, que escreveu ainda como estudante de Física de Harvard e que assumiu, posteriormente, a forma de livro. Nessa obra, questionou a concepção tradicional do progresso científi co como cumulativo e propôs a noção descontinuísta da Ciência, que estaria fundada nas noções de comunidade científi ca e de paradigma.
EP I S T E M O L O G I A O U TE O R I A D O
CO N H E C I M E N T O
Parte da Filosofi a que investiga a origem e o valor do conhecimentohumano em geral e ainda os princípios quefundamentam as Ciências Humanas e Físicas, oscritérios de verifi cação e de verdade e o valor dos sistemas científi cos.
aula11_pb.indd 136 5/19/2004, 2:43:45 PM
AU
LA 1
1 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 137
Uma mudança paradigmática ocorre após um período de crise
no conhecimento e implica a construção de um novo paradigma e a
substituição do anterior por este. Tal substituição não acontece de
modo rápido e a fase de transição pode ser bastante longa. Ao fi m da
transição e da mudança, o paradigma emergente adquire o estatuto de
paradigma dominante, que passa a ditar os rumos do desenvolvimento
da Ciência.
Após essa explicação do que vem a ser paradigma, vamos estudar
alguns aspectos do paradigma que caracterizou a Ciência moderna.
CIÊNCIA ATIVA
Desde o Renascimento, pouco a pouco começou a ser processada a
substituição da Ciência contemplativa e especulativa aristotélico-medieval
pela Ciência ativa moderna ou prática, a partir da crença na capacidade
de o conhecimento racional humano poder transformar a realidade
natural e social. Isso acabou por promover um grande desenvolvimento
de técnicas e de instrumental que permitissem aumentar a capacidade
das forças produtivas.
Na Ciência moderna assistimos à mudança de uma explicação
qualitativa e fi nalística, tal como se apresentava na CIÊNCIA DE CUNHO
ARISTOTÉLICO-MEDIEVAL, para uma explicação quantitativa e mecanicista.
Isso signifi ca que, no geral, a Ciência aristotélico-medieval procurou
conhecer a realidade natural levando em consideração as diferenças
qualitativas entre as coisas (o grande, o pequeno, o localizado
abaixo ou no alto, o leve, o pesado, o natural e o artifi cial) e ainda as
causas fi nais ou fi nalidades que fariam com que os eventos naturais
acontecessem de um determinado modo. Com a passagem da Ciência
aristotélico-medieval para a moderna passou a vigorar a noção segundo
a qual os acontecimentos naturais ocorrem devido a relações mecânicas
de causa e efeito, que são regidas por leis necessárias e universais,
válidas para todos os fenômenos e que não possuem nenhuma fi nalidade
manifesta ou oculta.
A Mecânica como a nova Ciência da Natureza, que estudamos no
segundo grau como Mecânica Clássica, passou a ser o grande modelo
para a Ciência. Você se lembra certamente de Isaac Newton.
CI Ê N C I A A R I S T O T É L I C O–
M E D I E V A L
Para maiores informações, releia
a aula anterior.
aula11_pb.indd 137 5/19/2004, 2:43:46 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna
138 C E D E R J
Tal conhecimento parte da compreensão de que todos os fenômenos
naturais (humanos e não-humanos) podem ser conhecidos a partir
do estabelecimento de leis necessárias de movimento e repouso que
afetam, conservam ou transformam a fi gura e a grandeza das coisas
que percebemos, uma vez que modifi cam ou conservam a grandeza e a
fi gura das partículas, que por sua parte constituem todos os corpos.
A visão do universo presente nessa Ciência afi rma que ele funciona
como uma grande máquina, que se comporta de maneira previsível e que
pode ser conhecida pelas causas. Paralelamente à interpretação MECANICISTA
do universo como um grande relógio, fi rmou-se a noção da realidade
como uma máquina e ainda a idéia segundo a qual bastaria apertar os
botões certos para que a máquina continuasse a funcionar bem. Faz
parte ainda do mecanicismo a crença na possibilidade de decompormos
essa máquina em partes menores, a fi m de conhecê-la melhor. Assim,
na medida em que separamos suas peças, podemos compreender como
cada parte funciona e como as partes estão relacionadas umas com as
outras para entendermos a máquina como um todo.
A atitude científi ca moderna acabou gerando, por um lado, a
presunção de que a efi cácia e a universalidade dos critérios mecanicistas
seriam a única maneira válida para descrever e conhecer a realidade;
por outro, estabeleceu também a visão cientifi cista, que afi rmou a via
da Ciência como a única capaz de alcançar e dizer a verdade presente na
realidade. Não é à toa que ainda hoje a palavra da Ciência sobre algum
objeto é considerada a única verdade sobre ele.
Nessa nova Ciência foi determinado também o projeto de
dominação da Natureza, que até hoje vigora em nosso mundo, tendo
como base o princípio de Francis Bacon “Saber é Poder”. (As relações
entre saber e poder serão analisadas mais adiante neste curso.)
ME C A N I C I S M O
Doutrina que procura explicar arealidade a partir domovimento espacialdos corpos. Já estavapresente no MundoAntigo, por exemplo no Atomismo. Contudo, ganhou maior visibilidade no mundo moderno. Descartes e Newtonsão grandes exemplos de mecanicistas.O mecanicismoé caracterizado essencialmente pela negação de qualquer ordem fi nalística na natureza e pelodeterminismo (acrença na existênciade uma causa necessária paratodos os fenômenosnaturais).
aula11_pb.indd 138 5/19/2004, 2:43:46 PM
AU
LA 1
1 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 139
AFIRMAÇÃO DE UMA VISÃO NATURALISTA E HUMANISTA DO CONHECIMENTO HUMANO
Em relação à fundamentação do saber, houve a passagem de uma
perspectiva teocêntrica para uma visão naturalista e humanista. Isto
signifi ca que, no paradigma moderno, a Consciência de Si Refl exiva
adquiriu importância capital. O que quer dizer isso? Tão somente que
os modernos, partindo da consciência do ato de ser consciente, passaram
a se reconhecer como sujeito e objeto primeiro do conhecimento e como
condição de verdade desse conhecimento.
Em outras palavras: o conhecimento moderno, fundamentando-se
sobre a refl exão (ou seja: o dobrar-se ou o voltar da consciência sobre si
mesma), fez da Consciência de Si o primeiro objeto do conhecimento. Isto
é: antes de ser construído qualquer conhecimento sobre a realidade seria
necessário conhecer a própria capacidade humana de e para conhecer.
Essa atitude moderna tornou-se possível porque partiu-se do suposto que
o próprio ser humano seria o fundamento e a condição do conhecimento.
Daí a necessidade de, previamente, ser analisada a capacidade humana
de e para conhecer.
A partir de então, Deus deixou de ser a condição do conhecimento, isto
é, o fundamento último do conhecer, e foi substituído pelo ser humano.
Esse processo é conhecido como o
do estabelecimento da Subjetividade, que
representou a constituição da idéia de um
sujeito do conhecimento. Compõe esse processo
a compreensão de que todos os seres humanos,
por serem racionais e conscientes, possuem o
mesmo direito ao pensamento e à verdade.
Esse reconhecimento acabou por contribuir
para o soterramento do PRINCÍPIO DE AUTORIDADE,
para a crítica a toda censura ao pensamento e
para o fortalecimento da noção de que todas
as pessoas, igual e livremente, podiam alcançar
a verdade.
PR I N C Í P I O D E A U T O R I D A D E
Princípio presente naCiência aristotélico-medieval segundo oqual a investigaçãosobre o mundonatural, social eceleste deveria estar de acordocom as análises decertos estudiosos,reconhecidos como asgrandes autoridades, tais como Aristótelese outros pensadores gregos e romanos, os Padres (do período da PATRÍSTICA).
PA T R Í S T I C A
Período dopensamento
ocidental que vai,aproximadamente,do século I ao VII.
O nome tem origemna referência aopensamento dosPadres da Igreja,
que começaram aestabelecer a teologia
cristã católica e afi losofi a medieval. Omaior representante
da Patrística foi SantoAgostinho, bispo de
Hipona.
aula11_pb.indd 139 5/19/2004, 2:43:47 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna
140 C E D E R J
O MÉTODO CIENTÍFICO
Destacaremos dois elementos essenciais ao método científi co
moderno: a matematização da representação da natureza e o método
experimental.
A matematização da representação da natureza
Na forma de conhecimento estabelecida no mundo moderno,
a matematização da natureza adquiriu relevância capital. Isso não
signifi ca que temos de utilizar necessariamente números, fórmulas,
Geometria, Álgebra, por exemplo. Porém, o método científi co moderno,
ao utilizar a matematização, visa, por um lado, ao ideal matemático, ou
seja, por meio dele procura-se atingir o conhecimento completo e totalmente
dominado pela inteligência. Por outro, que ele possua duas características
essenciais ao conhecimento matemático: a ordem e a medida.
Mediante a ordem somos capazes de encontrar e conhecer o
encadeamento interno e necessário presente entre as coisas que são
comparadas e relacionadas quando conhecemos. Assim, quando
relacionamos, medimos e conhecemos as coisas por meio da noção de
ordem, na realidade estamos estabelecendo quais coisas se relacionam
necessariamente com outras numa seqüência ordenada. Nessa ordenação
encontramos também o ideal de um mundo geometrizado, ordenado e
regulado como peças de uma máquina.
A Matemática, portanto, seria capaz de revelar o mundo tal como
ele é em sua ordem, medida e inteligibilidade. Ela passou a ser usada para
descrever e para explicar o funcionamento do mundo físico. Galileu Galilei,
René Descartes, a pedagogia dos jesuítas e Isaac Newton certamente foram
os principais artífi ces da matematização da natureza.
Galileu Galilei (1564-1642) pode ser considerado um dos pais da
revolução científi ca moderna, pois adotou a Matemática na quantifi cação
das evidências produzidas pela experimentação e ainda aceitou a
Matemática como a garantia da verdade científi ca.
aula11_pb.indd 140 5/19/2004, 2:43:47 PM
AU
LA 1
1 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 141
A principal contribuição de Galileu não está tanto na
determinação da Lei Geral da Queda dos Corpos, mas, conforme
John Harry, em A revolução científi ca e as origens da ciência
moderna, “na exemplificação da utilidade e do sucesso da
abordagem matemática à natureza. Em seus escritos, Galileu
ensina repetidamente por meio de exemplos, mostrando como a
prática matemática pode nos ajudar a compreender a natureza
do mundo, mesmo naqueles casos em que a adequação entre a
análise matemática e a realidade física é apenas aproximada, sendo a
Matemática baseada numa circunstância idealizada irrealizável” (A
revolução científi ca e as origens da ciência moderna, pp. 30-31).
Para José Carlos Köche, Galileu estabeleceu “a nova ruptura
epistemológica que desenvolve a idéia de se traçar um caminho do
fazer científi co – método quantitativo-experimental – desvinculado
do caminho do fazer fi losófi co-empírico-especulativo-racional. (...)
Galileu tomou como pressuposto que os fenômenos da natureza
se comportavam segundo princípios que estabeleciam relações
quantitativas numericamente determinadas. (...) Caberia então
à razão apresentar para essa natureza, organizada geométrica e
matematicamente, suas perguntas inteligentes, manifestadas através
de hipóteses quantitativas, para que ela lhe respondesse quando
forçada por um experimento” (2001).
O sistema fi losófi co de Descartes, por seu turno, começou a ser
elaborado a partir da necessidade do fi lósofo e matemático francês, de
conhecer o mundo físico em termos matemáticos, ou seja, a partir do
ideal de conhecer completamente a totalidade do mundo pela inteligência
(razão), em termos de ordem e medida.
No sistema de ensino dos jesuítas, por sua vez, a Matemática era
disciplina importante do Ratio Studiorum (Ordem dos Estudos). Ela era
ensinada no último ou no penúltimo ano de estudos, junto com a Física ou
a Metafísica e não como matéria propedêutica ou preliminar, ministrada
nos primeiros anos. A importância da Matemática na grade curricular do
Ratio Studiorum jesuíta contribuiu para mostrar a importância dela para
a compreensão do mundo. Descartes estudou
em colégio jesuíta, bem como M. MERSENNE,
outro importante matemático contemporâneo
do pensador francês.
MARIN MERSENNE
(1588-1648)
Matemático e frade da Ordem dos Mínimos. Via a Matemática como o tipo de conhecimento mais verdadeiro e também o que mais se aproximaria do conhecimento divino. À sua volta construiu um importante núcleo de intelectuais modernos.
aula11_pb.indd 141 5/19/2004, 2:43:47 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna
142 C E D E R J
Isaac Newton marcou o ápice da matematização da representação
do mundo natural porque, partindo do princípio de que não se deve
aceitar hipóteses infundadas, APRIORÍSTICAS, que não estejam embasadas na
repetição de fenômenos sistematicamente observados e mensurados em
experimentos, sistematizou o método científi co, que defi niu o modelo
da Ciência moderna.
Newton consolidou o fundamento matemático como instrumento
privilegiado do conhecimento científi co e como modelo de representação
da própria estrutura da matéria. Daí resultaram desdobramentos que
marcaram profundamente a atitude de conhecer como quantifi car. O rigor
científi co passou a não poder ser aferido fora das medições. Nas palavras
de Boaventura Santos: “o que não é quantifi cável é cientifi camente
irrelevante” (SANTOS, 1997).
Dentre suas contribuições, destacamos a comprovação que é a
mesma lei que faz uma maçã cair e os planetas continuarem a girar
em torno do Sol, a demonstração matemática das verdades das leis de
Kepler sobre o movimento planetário e a importância da Matemática
para entendermos as dimensões terrestre e celeste.
O sucesso da mensuração ou quantifi cação do mundo na explicação
e descrição do mundo físico fez com que a racionalidade matemática
fosse defendida como garantia de cientifi cidade e de verdade.
O método experimental
Se método é o caminho tomado para chegarmos a um fi m, então
o método científi co seria o caminho utilizado pelo cientista quando
procura as "verdades científi cas". Nessa afi rmação encontramos sempre
as perguntas: "o que é Ciência?"; "o que é o cientista?"; "o que são
verdades científi cas?"
Quando pensamos em método científi co na época moderna, temos
de vê-lo dentro do recorte da Ciência moderna.
Esse método científi co seria o conjunto de regras e procedimentos
que conduzem as ações intelectuais e práticas dos que procuram conhecer
as coisas pelo viés da Ciência. Tal conjunto permite alcançar a verdade
científi ca sobre a realidade natural e social.
AP R I O R Í S T I C A
De modo a priori, isto é, antes daexperiência.
aula11_pb.indd 142 5/19/2004, 2:43:48 PM
AU
LA 1
1 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 143
As regras e os procedimentos necessitam ser adotados segundo
uma determinada seqüência pelos pesquisadores, para que possam
estabelecer hipóteses, confi rmar dados, efetuar a generalização e fi xar
leis e teorias capazes de explicar como os fenômenos ocorrem.
As etapas básicas do método científi co seriam:
1) observação dos elementos que compõem um evento;
2) estabelecimento de hipótese capaz de explicá-lo;
3) produção de experimentos controlados para comprovar ou não
a hipótese, ou seja, teste experimental das hipóteses;
4) conclusão: generalização dos resultados em leis que permitam
prever, explicar e descrever fenômenos semelhantes.
O método científico moderno permite o acompanhamento
objetivo e detalhado dos saberes produzidos e do modo utilizado
para chegar a eles. Ele também favorece que o conhecimento seja
amplamente compartilhado, transmitido e verifi cado. Isso signifi ca que
a hipótese é comprovada a partir dos dados experimentais, que podem
ser reproduzidos em qualquer lugar, desde que as mesmas condições
sejam obedecidas.
No nosso cotidiano costumamos usar as etapas do método
científi co. Você quer saber como? Toda vez que você procura comprovar
o que um amigo lhe disse e para tanto observa os fatos, analisa e
interpreta as informações que você possui, então você de certa maneira
está empregando, no seu dia-a-dia, etapas do método que o cientista
utiliza em suas pesquisas.
O paradigma da Ciência moderna é mais conhecido como
"paradigma newtoniano" ou ainda como "paradigma cartesiano-
newtoniano".
Podemos afi rmar ainda que ele gerou uma ideologia cientifi cista
que triunfou soberanamente até meados do século XX. Ela está baseada
nos sucessos das explicações do mundo físico proporcionadas pela
Matemática, pela Física e por outras ciências que também utilizaram
o método científi co.
Nessa ideologia podemos detectar a presença de uma
racionalidade, apoiada no desenvolvimento da Ciência e da técnica
modernas, que proporcionou bem-estar social, uma vez que a aplicação
das Ciências modernas contribuiu para a Revolução Industrial, para o
desenvolvimento do capitalismo e para os benefícios que ele gerou.
aula11_pb.indd 143 5/19/2004, 2:43:49 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna
144 C E D E R J
Entretanto, essa ideologia trouxe também “um modelo autoritário, na
medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento
que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas
regras metodológicas” (SANTOS, 1997).
Mesmo reconhecendo todas as imensas desigualdades e injustiças
sociais criadas pelo capitalismo e pela Ciência moderna, não é possível
negar que houve também uma melhoria na vida das pessoas. Basta pensar,
por exemplo, no boom da Medicina (a invenção de vacinas, de remédios,
de práticas cirúrgicas, por exemplo), do sanitarismo (melhorias na
qualidade da água, no sistema de esgoto), dos aparelhos eletrodomésticos;
na luz elétrica, nas melhorias nas formas de comunicação humana
(estradas, avião, telefone, meios de comunicação de massa, internet,
satélites etc.).
Justamente esses benefícios, aliados aos sucessos explicativos do
mundo físico, foram e ainda têm sido fontes da adesão da comunidade
científi ca e do senso comum ao paradigma moderno.
Entretanto, hoje assistimos à quebra da hegemonia desse
paradigma. Cresce a certeza de que o tipo de desenvolvimento propor-
cionado pela Ciência moderna está na raiz dos problemas ecológicos,
econômicos, sociais de nosso tempo. A incerteza quanto à nossa forma
de conhecer é tão grande que vivemos com a incômoda impressão de
que não sabemos mais qual é a verdade sobre as coisas, sobre o que é
a verdade e quais os valores que devem reger a nossa vida em todas as
suas dimensões.
aula11_pb.indd 144 5/19/2004, 2:43:49 PM
AU
LA 1
1 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 145
R E S U M O
Conforme a interpretação descontinuísta da Ciência, essa não é concebida nem
como um processo linear e nem como um somatório progressivo e acumulativo
de descobertas científi cas. Ela é compreendida como uma construção teórica
historicamente realizada a partir de paradigmas.
Paradigmas: realizações científi cas modelares aceitas pela comunidade científi ca de
uma determinada época, que fornecem a estrutura conceitual e os instrumentos para
a solução dos problemas. Os paradigmas estabelecem os critérios de cientifi cidade
de conhecimento, determinando quais conhecimentos e práticas serão consideradas
científi cas e verdadeiras em um determinado período histórico.
Os paradigmas entram em crise devido ao acúmulo de resultados não – previstos e
de incongruências não – explicadas pela Ciência. O questionamento dos próprios
paradigmas indicam o ápice da crise paradigmática, que provocará a construção
de novo paradigma e a substituição do anterior pelo novo.
Alguns paradigmas da Ciência moderna: ciência ativa; afi rmação de uma visão
naturalista e humanista do conhecimento humano; o método científi co.
Ciência ativa: substituiu a ciência contemplativa e especulativa de cunho
aristotélico-tomista. Parte da crença de o conhecimento racional humano poder
transformar a realidade natural e social. Provocou grande desenvolvimento de
técnicas e instrumentos. Está baseada em uma explicação quantitativa e mecanicista
da realidade.
Visão naturalista e humanista do conhecimento humano: estabelecimento da
subjetividade moderna a partir da passagem da fundamentação teocêntrica do
conhecimento para uma visão naturalista e humanista. Antes de ser construído
qualquer conhecimento da realidade tornou-se necessário avaliar previamente a própria
capacidade humana de e para conhecer. Isto é: estabelecer previamente quais são os
limites do conhecimento humano e quais são suas condições de possibilidade.
Método científi co: analisado a partir da matematização da representação da
natureza e do método experimental.
Matematização da representação da natureza: a Matemática como ideal de
conhecimento. O conhecimento da realidade se dá a partir da mensuração e da
quantifi cação das coisas do mundo físico.
Método experimental. Suas etapas são: observação dos elementos do evento;
estabelecimento de hipótese capaz de explicá-lo; experimentos controlados para
comprovar ou não a hipótese; conclusão.
aula11_pb.indd 145 5/19/2004, 2:43:49 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Paradigma da Ciência moderna
146 C E D E R J
EXERCÍCIOS
1. O que são paradigmas?
2. Explique a relação existente entre a descontinuidade da Ciência e o conceito
de paradigma.
3. Explique o fundamento que fez da Ciência moderna uma Ciência ativa?
4. O que signifi ca afi rmar que o conhecimento moderno privilegia a mensuração
e a quantifi cação?
AUTO–AVALIAÇÃO
Redija sua refl exão sobre o processo da Ciência que hoje resulta na clonagem e
considere indagações como:
• Há uma relação entre Ciência e Ética?
• A Ciência deve contribuir para alargar os horizontes na construção do bem-estar
de todos os homens e da solidariedade humana?
aula11_pb.indd 146 5/19/2004, 2:43:49 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
5
12As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento a
ul
a
OBJETIVOS Pré-requisito
Rever os conceitos fundamentais da Aula 9.
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Conceituar estratégias de validação do conhecimento.
• Caracterizar os diferentes tipos de verdade.
• Reconhecer nas correntes fi losófi cas a possibilidade de conhecimento da verdade.
aula12_pb.indd 147 5/19/2004, 2:57:59 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento
148 C E D E R J
Eis que chegamos, nesta estação, ao estudo do tema relativo à verdade como
forma de estratégia de validação do conhecimento.
AS ESTRATÉGIAS DE VALIDAÇÃO DOS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO
Há uma dimensão da vida que pode ser entendida como a vida
cotidiana, em que a vida fl ui e os acontecimentos sucedem-se na dinâmica
da realidade. O estudo sistemático do cotidiano pelo conhecimento
científi co leva à elucidação e à alteração desse cotidiano
pelo exercício da refl exão.
O cotidiano e o conhecimento científi co que
temos da realidade aproximam-se e afastam-se:
1. aproximam-se porque a ciência se refere ao
real;
2. afastam-se porque a ciência abstrai a
realidade para compreendê-la, transfor-
mando-a em objeto de investigação.
Isso permite a construção do
conhecimento científi co sobre o real.
Como exemplo, pense na abstração–
distanciamento e refl exão – que Newton teve de
fazer para, partindo da fruta que caía da árvore
(fato do cotidiano), formular a lei da gravidade
(fato científi co).
INTRODUÇÃO
Nosso problema da crise nos leva a mostrar como
nossa época moderna, que, durante séculos, pôde
vangloriar-se de seus sucessos teóricos e práticos,
mergulha fi nalmente num mal-estar crescente,
devendo até experimentar sua situação como uma
situação de desamparo (HUSSERL, 1976).
aula12_pb.indd 148 5/19/2004, 2:58:09 PM
AU
LA 1
2 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 149
PL A T Ã O
(427-348 O U 347 A.C.)
Filósofo grego, discípulo de Sócrates, pertencia a uma das mais nobres famílias de Atenas. Seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido a sua constituição física recebeu a alcunha de Platão, que vem do grego plato e signifi ca de ombros largos. Suas principais obras incluem O banquete e A república.
O conhecimento científi co tem como objetivo fundamental tornar
o mundo compreensível, proporcionando ao homem os meios de exercer
controle sobre a natureza.
Contrariamente ao senso comum, cujos conhecimentos estão
freqüentemente marcados pela incoerência e pela fragmentação, o
conhecimento científi co propõe-se a atingir conhecimentos coerentes,
precisos e abrangentes. Isso não signifi ca que os conhecimentos científi cos
sejam inquestionavelmente corretos, coerentes e infalíveis.
Segundo KUHN (1996), a história das ciências nos revela várias
teorias científi cas que, no passado, foram consideradas pela comunidade
científi ca como sólidas e corretas e atualmente foram substituídas ou
modifi cadas por outras teorias. Como exemplo, temos a substituição da
teoria geocêntrica de Ptolomeu pela teoria heliocêntrica de Copérnico.
Todavia, por que nesta estação estamos discorrendo sobre essas
questões referentes à ciência e ao senso comum? Qual a relação dessas
questões com o nosso tema de aula?
A resposta é a seguinte: os diferentes tipos de conhecimento (senso
comum, científi co, mítico, artístico e fi losófi co), estudados na oitava
estação, são modos de explicação e de compreensão do mundo, cujas
estratégias de validação se dão sob a forma de verdade.
As estratégias de validação dizem respeito aos tipos de verdade
presentes nas diversas formas de conhecimento.
O que é a verdade? Eis a pergunta fundamental e a cuja resposta
dedicaram-se os mais diferentes estudiosos na história das civilizações.
Entre as diferentes respostas fi losófi cas apresentadas para a
pergunta – o que é a verdade? – destacamos as seguintes:
1. A verdade como correspondência
Nos fi lósofos gregos, como PLATÃO e Aristóteles, o conceito de
verdade aparece como a exata correspondência de um enunciado com a
realidade da coisa por ele referida, ou seja, um determinado enunciado
é verdadeiro se estabelece correspondência entre o que diz e aquilo sobre
o que fala (MORA, 1996).
Para Aristóteles, a verdade como propriedade de certos enunciados
pode ser assim formulada: “Dizer do que é que não é, e do que não é que é, é
o falso; dizer do que é que é, e do que não é o que não é, é o verdadeiro”.
TH O M A S KU H N (1922-1996)
Filósofo norte-americano cuja preocupação fundamental na Filosofi a e história das ciências é demonstrar um novo enfoque epistemológico (referente à teoria do conhecimento) sobre a evolução da ciência. Uma das suas principais obras é: A estrutura das revoluções científi cas (1962).
aula12_pb.indd 149 5/19/2004, 3:01:06 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento
150 C E D E R J
AR I S T Ó T E L E S
(384-322 A.C.)
Filósofo grego, discípulo de Platão, nasceu em Estagira, na Macedônia. Preceptor de Alexandre Magno. Construiu um grande laboratório, graças à amizade com Filipe e seu fi lho Alexandre. Aos cinqüenta anos, funda sua própria escola, o Liceu, perto de um bosque dedicado a Apolo Licio. Entre seus livros destacam-se Retórica e Ética a Nicômaco.
Para ARISTÓTELES, a verdade é defi nida em função da adequação do
intelecto ao real e constitui uma propriedade dos juízos, que tanto podem
ser verdadeiros ou falsos à medida que dependam da correspondência
entre aquilo que afi rmam ou aquilo que negam e a realidade daquilo que
falam (JAPIASSU; MARCONDES, 1991).
Segundo Aristóteles, no processo de busca da verdade há
necessidade de se percorrer quatro degraus fundamentais:
• ignorância: é o estado considerado de completa ausência de
conhecimento do Sujeito em relação ao Objeto. Ignorar é desconhecer.
• dúvida: é o estado no qual determinado conhecimento é tido
como possível; porém, as razões para afi rmar ou negar alguma coisa
estão em equilíbrio.
• opinião: é o estado no qual o Sujeito julga possuir um
conhecimento provável do Objeto, ou seja, afi rma conhecer, mas com
temor de se equivocar.
• certeza: é o estado no qual o Sujeito tem plena fi rmeza de seu
conhecimento em relação ao Objeto, ou seja, o conhecimento emerge
como algo evidente.
O conceito de verdade como correspondência fi cou celebrizado
pela defi nição de São Tomás de Aquino: adequatio rerum et intellectus
(a verdade é a adequação do pensamento à coisa real).
Embora fundamentando várias correntes fi losófi cas, a defi nição de
verdade como correspondência traz consigo o problema de como alcançar
essa verdade através da adequação entre o pensamento e a realidade.
2. A verdade como revelação
O conceito de verdade revelada pode ser encontrada entre os
empiristas e os teólogos.
Os EMPIRISTAS defendem que a verdade representa aquilo que,
imediatamente, se revela ao homem; consiste na sensação, no sentimento
que temos de um fenômeno.
Já os teólogos afi rmam que a verdade é a evidência manifestada
nas coisas; e o princípio verdadeiro de todas as coisas é Deus.
O critério de verdade apontado aqui também é problemático.
São muitos os fatos que, num primeiro exame, nos parecem verdades
evidentes, mas que, logo em seguida, são refutados a partir de uma
análise mais ampla e profunda.
EM P I R I S T A S
Grupo de teóricos ligados ao empirismo, que constitui-se numa teoria do conhecimento segundo a qual todo conhecimento humano deriva da experiência sensível.
aula12_pb.indd 150 5/19/2004, 3:01:10 PM
AU
LA 1
2 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 151
Como exemplo, podemos trazer à luz a substituição
da TEORIA GEOCÊNTRICA pela TEORIA HELIOCÊNTRICA: grande
parte dos homens medievais acreditava ser evidente
que o Sol girava em torno da Terra; essa evidência, no
entanto, se desfez a partir da comprovação científi ca da
teoria heliocêntrica de Copérnico.
3. A verdade como utilidade
Os fi lósofos PRAGMATISTAS estabeleceram íntima
relação entre a verdade e o uso dessa verdade.
Assim, uma noção é verdadeira se provar sua
efetiva utilidade em algum setor do interesse humano.
Um dos expoentes desse tipo de verdade é WILLIAM
JAMES. Para James, a verdade está relacionada com as
conseqüências práticas, bem como está vinculada à
investigação. Isso significa que a verdade deve ser
verifi cada porque diz respeito à praticabilidade ou à
possibilidade de funcionamento no campo das idéias
(MORA, 1996).
4. A verdade como processo
Conforme MARX (1983), a verdade pode ser
compreendida como a qualidade pela qual um conhe-
cimento é produzido historicamente, revelando sua força
transformadora (êxito).
Assim sendo, a verdade é produzida numa relação
concreta e, portanto, prática, que se estabelece entre o
pensamento e a realidade. Nessa perspectiva se apresenta
o problema da objetividade da verdade.
Segundo Schaff (1991), a afi rmação da verdade
objetiva pressupõe o entendimento de que o conhecimento humano é
cumulativo, ou seja, ele se desenvolve numa temporalidade acompanhada
por uma mudança das verdades produzidas como síntese desse
conhecimento.
A verdade equivale a um juízo verdadeiro ou a uma proposição
verdadeira e significa também um conhecimento verdadeiro à
proporção que vai reunindo no tempo (história) as verdades parciais.
KA R L MA R X
(1818-1883)
Filósofo alemão. Sua obra teve grande impacto em sua época e na formação do pensamento social e político contemporâneo. Esses trabalhos estendem-se em múltiplas direções, incluindo não só a Filosofi a, como a Economia, a Ciência Política, a História etc. Entre seus livros destacam-se: O Capital (3 vols.), A ideologia alemã, Crítica da economia política.
PRAGMATISTAS
Grupo de teóricos ligados ao pragmatismo, que constitui-se numa concepção fi losófi ca que defende o empirismo no campo da epistemologia e o utilitarismo no campo da moral. Valorizam mais a prática que a teoria e consideram que devemos dar mais importância às conseqüências e efeitos da ação do que a seus princípios e
pressupostos.
WILLIAM JAMES
(1842-1910)
Filósofo e psicólogo norte-americano, é considerado o pai do pragmatismo.
TEORIA GEOCÊNTRICA
A Terra como centro do universo.
TEORIA HELIOCÊNTRICA
O Sol como centro.
aula12_pb.indd 151 5/19/2004, 3:01:11 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento
152 C E D E R J
A verdade é um devir que, no processo de acumulação das verdades
parciais, torna permanente o movimento de suas correlações e das suas
transformações no tempo.
Já que estamos na estação da verdade, de que forma somos
capazes de conhecer esta verdade? Afi nal, quais são as possibilidades
do conhecimento humano?
Como resposta, há duas correntes básicas e antagônicas na história
da fi losofi a: o ceticismo e o dogmatismo gnoseológico.
O ceticismo defende nossa impossibilidade de conhecer a verdade.
O dogmatismo gnoseológico defende nossa possibilidade de
conhecer a verdade.
O Ceticismo
Segundo Hessen (1987), o ceticismo pode ser compreendido a
partir de duas vertentes, conforme o grau de negação das possibilidades
do conhecimento.
Se a negação for total, teremos a vertente do ceticismo absoluto.
Se a negação for parcial, teremos a vertente do ceticismo relativo.
Ceticismo absoluto
O ceticismo absoluto consiste em negar de forma total a nossa
possibilidade de conhecer a verdade. Isso quer dizer que, para o ceticismo
absoluto, o homem nada pode afi rmar, nada pode conhecer.
Estudiosos como Hessen apontam o
fi lósofo grego PIRRÓN de Élida como o fundador
do ceticismo absoluto. Pirrón defendia ser
impossível ao homem conhecer a verdade das
coisas devido a duas fontes principais de erro:
• os erros dos sentidos: nossos conhe-cimentos provêm dos sentidos
(visão, audição, olfato, tato, paladar), que não são dignos de confi ança. Na
ilustração podemos observar um erro induzido pela percepção visual.
• os erros da razão: as diferentes opiniões contraditórias mani-
festadas pelos homens sobre os mesmos assuntos revelam os limites de
nossa inteligência. A superação constante das teorias científi cas por outras
mostra que todo o nosso conhecimento é provisório. Jamais alcançaremos
certeza de qualquer coisa.
PI R R Ó N
(365-275 A.C.)
Filósofo grego e fundador do ceticismo.
aula12_pb.indd 152 5/19/2004, 3:01:11 PM
AU
LA 1
2 M
ÓD
ULO
2
C E D E R J 153
Essa vertente afi rma que não é possível chegar a uma interação do
sujeito com o objeto, pois a consciência cognoscente não consegue apreender
seu objeto; logo, não existe conhecimento nem juízo verdadeiros.
Ceticismo relativo
Em vez de negar radicalmente nossas possibilidades de
conhecimento, o ceticismo relativo nega parcialmente nossa capacidade
de conhecer a verdade.
Existem várias modalidades de ceticismo relativo; destacamos
as seguintes:
• fenomenalismo: esse termo deriva de fenômeno, que signifi ca
a manifestação de um fato, a aparência de um objeto qualquer. O
fenomenalismo defende que só podemos conhecer a aparência dos seres,
tal como eles se apresentam à nossa percepção sensorial e intelectual.
Não podemos conhecer a essência das coisas. O fenomenalismo deriva
das teorias de Kant, segundo as quais nosso conhecimento é incapaz de
penetrar na “coisa em si” (número). Temos acesso, apenas, à “coisa para
nós”, isto é, só podemos conhecer a exteriorização das coisas, captada
pela sensibilidade e trabalhadas pela inteligência.
• probabilismo: defende que nosso conhecimento é incapaz de
atingir a certeza total das coisas. O que podemos alcançar é uma verdade
provável. Essa probabilidade pode ser digna de menor credibilidade, mas
nunca chegará ao nível da certeza plena, da verdade absoluta.
Dogmatismo gnoseológico
O dogmatismo GNOSEOLÓGICO defende nossa possibilidade de
conhecer a verdade. No interior do dogmatismo, podemos distinguir
duas vertentes: o dogmatismo ingênuo e o dogmatismo crítico.
Dogmatismo ingênuo
Constitui-se na crença predominante no senso comum, e consiste
em acreditar, plenamente, nas possibilidades do nosso conhecimento.
O dogmatismo ingênuo não vê problemas na relação Sujeito
conhecedor (COGNOSCENTE) e Objeto conhecido (cognoscível). Afi rma
que, sem grandes difi culdades, percebemos o mundo tal como ele é.
Dogmatismo crítico
Constitui-se na crença em nossa capacidade de conhecer a
verdade mediante um esforço conjugado de nossos sentidos e de nossa
inteligência.
GNOSEOLÓGICO
Diz respeito à teoria do conhecimento
que tem por objetivo buscar a origem, a
natureza, o valor e os limites da faculdade
de conhecer.
CO G N O S C E N T E
Aquilo que se pode conhecer.
aula12_pb.indd 153 5/19/2004, 3:01:11 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | As estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento
154 C E D E R J
O dogmatismo crítico confi a em que, através de um trabalho
metódico, racional e científi co, o homem torna-se capaz de decifrar a
realidade do mundo.
Dentro dessa vertente, encontram-se os pragmáticos, que vêem o
conhecimento como resultado de uma operação de pesquisa e investigação
na qual o homem busca solucionar problemas por ele enunciados.
De acordo com Hessen, a corrente dogmatista não compreende
que o conhecimento é essencialmente uma relação entre Sujeito e Objeto.
Acontece desse mesmo modo no que se refere ao conhecimento dos
valores. O fato de que os valores implicam uma consciência avaliadora
constitui um desconhecimento, assim como o fato de que o objeto do
conhecimento implica uma consciência cognoscente.
R E S U M O
Na aula de hoje você aprendeu que o conceito de estratégias de validação do
conhecimento diz respeito ao conceito de verdade. Partindo da indagação sobre
essa verdade, você estudou algumas respostas fi losófi cas, entre elas, a verdade
como correspondência, a verdade como revelação, a verdade como utilidade e a
verdade como processo. Prosseguindo no estudo da verdade, você aprendeu que
existem duas correntes antagônicas que defendem a questão da possibilidade do
conhecimento: o ceticismo (absoluto e relativo) e o dogmatismo gnoseológico
(ingênuo e crítico).
EXERCÍCIOS
1. O que você entende por estratégias de validação do conhecimento?
2. Caracterize os tipos de verdade apresentados na aula de hoje.
3. O que há de comum e de diferente no que concerne aos ceticismos absoluto e relativo?
4. Descreva o dogmatismo gnoseológico.
AUTO-AVALIAÇÃO
Você conseguiu responder sem difi culdades os quatro exercícios acima?
Excelente! Pode imediatamente passar para a aula seguinte. Se conseguiu resolver
com alguma difi culdade, você precisa fazer mais uma leitura atenta antes de
prosseguir para a próxima Estação.
aula12_pb.indd 154 5/19/2004, 3:01:12 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
13au
la
OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Destacar os principais aspectos que pontuaram as aulas que versaram sobre o tema "conhecimento".
• Sintetizar os aspectos mais signifi cativos sobre o conhecimento.
Pensando o conhecimento
aula13.indd 7 6/29/2004, 11:59:48 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento
CEDERJ8
INTRODUÇÃO Vamos parar numa estação para analisarmos com mais vagar tudo que
aprendemos sobre o conhecimento. Precisamos refl etir sobre os diferentes tipos
de conhecimento, a importância da Ciência na história, os paradigmas da ciência
moderna e as estratégias de validação do conhecimento, com o intuito de elaborar
uma síntese desses temas que estudamos nas Aulas 9,10,11 e 12.
OS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO
O homem precisa compreender o sentido e o signifi cado das coisas
e pessoas que o cercam; por isso problematizamos tudo que está à nossa
volta, pois queremos saber o sentido e a origem das nossas ações, das coisas
naturais e sobrenaturais, de nossas intenções, do belo e do feio, do bom e
do mau etc. Sendo assim, o homem questiona vários aspectos do processo
do conhecimento e também constrói diferentes tipos de conhecimento. As
principais questões que estão presentes no conhecimento são: a relação
sujeito-objeto; a possibilidade de conhecimento; por que conhecemos;
para que conhecemos; a origem do conhecimento e a relação ignorância/
conhecimento e verdade. Essas questões sempre apareceram quando os
fi lósofos problematizaram o conhecimento.
Em toda relação de conhecimento precisamos estabelecer uma
relação entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido; este é o
pressuposto fundamental do conhecimento. Além disso, precisamos saber
se é possível ou não conhecer alguma coisa. Esta questão foi elaborada
pelo CETICISMO, que colocava em dúvida a possibilidade do conhecimento.
Quando aceitamos o fato de que podemos conhecer verdadeiramente
alguém ou um objeto, isso signifi ca que rompemos com o ceticismo e
estamos aceitando a possibilidade efetiva de conhecer o mundo. Outra
questão importante é: Por que e para que conhecemos? Há diferentes
respostas para esta questão.
De acordo com PLATÃO, a admiração diante do mundo nos leva
a desejar conhecê-lo, ou seja, o mundo nos toca de alguma forma, nos
convida a conhecê-lo. ARISTÓTELES e DESCARTES também falam da admiração
como um impulso que leva ao conhecimento. Para CANGUILHEM, o
conhecimento é fruto do nosso medo, ou seja, buscamos o conhecimento
para vencer o medo e resolver os problemas práticos. Assim, encontramos
diferentes respostas para a pergunta: Por que e para que conhecemos?
PL A T Ã O
Veja a nota na Aula 9.
AR I S T Ó T E L E S E DE S C A R T E S
Veja a nota nas Aulas 4 e 9.
CA N G U I L H E M
Veja a nota na Aula 9.
CE T I C I S M O
Veja a nota na Aula 9.
aula13.indd 8 6/29/2004, 12:00:04 PM
CEDERJ 9
AU
LA 1
3 M
ÓD
ULO
3
Quanto à origem de nosso conhecimento, ou seja, qual é a fonte de
nosso conhecimento, encontramos três tendências clássicas: o RACIONALISMO,
o EMPIRISMO e o CRITICISMO de KANT. Para o racionalismo, somente a razão
humana, por meio de princípios lógicos e de encadeamento coerente de
argumentos, pode atingir o conhecimento verdadeiro.
Segundo o empirismo, as nossas idéias vêm por meio dos nossos
sentidos. Aristóteles, na Antigüidade, e John Locke, no período moderno,
eram seguidores do empirismo. De acordo com eles, ao nascermos somos
uma folha em branco; assim, no transcorrer da vida, serão escritas as idéias
em nosso intelecto. A fonte de nossas idéias e conceitos é a experiência;
esta se efetiva por meio da relação entre os nossos sentidos e o mundo.
O criticismo de Kant é uma síntese do racionalismo e do empirismo.
De acordo com Kant, o conhecimento inicia-se com a experiência, mas
a experiência por si só não é capaz de elaborar todo o conhecimento, o
sujeito precisa organizar os dados que vêm pela experiência usando a
sua racionalidade; o ser humano possui determinadas estruturas A PRIORI
que possibilitam a experiência e o conhecimento. Assim, a experiência
fornece os conteúdos de nosso conhecimento e o nosso entendimento
organiza esses conteúdos, dando-lhes a forma do conhecimento. Kant
concilia a visão empirista e racionalista, pois mostra a importância da
experiência e concorda, assim como os racionalistas, que possuímos uma
estrutura a priori, ou seja, algo que antecede a experiência.
Outra questão importante para o conhecimento é a relação
ignorância/verdade/falsidade, que veremos mais adiante, ao abordarmos
as estratégias de validação dos diferentes tipos de conhecimento. Mas
como poderíamos caracterizar os diferentes modos de conhecer a
realidade? Falaremos aqui da arte, do senso comum, da ciência, do
mito e da fi losofi a.
A arte é um meio pelo qual o homem se situa no mundo; ele
constrói uma interpretação do mundo. A arte e os objetos artísticos são
uma representação simbólica do mundo; cada um tem a capacidade de
apresentar uma visão de mundo e expressá-la por meio de uma pintura,
música, escultura etc. A cultura brasileira apresenta uma enorme riqueza
no campo artístico, por exemplo as músicas de Villa-Lobos, de Chico
Buarque ou um samba de Cartola; cada uma dessas expressões artísticas
apresenta uma visão diferente de mundo e todas são signifi cativas.
IM M A N U E L KA N T
Veja a nota na Aula 9.
RA C I O N A L I S M O, EM P I R I S M O E
CR I T I C I S M O
Veja a nota na Aula 9.
A P R I O R I
Veja a nota na Aula 9.
aula13.indd 9 6/29/2004, 12:00:04 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento
CEDERJ10
A arte não tem obrigação de ser uma mera reprodução da realidade; na
verdade ela é uma leitura do mundo, que expressa a vivência de cada
um, no seu mundo cultural.
Procure comparar uma expressão artística de sua região com a de
outra região e veja como há diferentes formas de representar o mundo.
Para entender melhor o senso comum, pesquise aspectos que são
comuns na sua região, como por exemplo ervas medicinais e costumes
populares.
O senso comum é um conhecimento espontâneo, fundamentado
nas experiências cotidianas, é uma primeira leitura do mundo. É um
conhe-cimento que responde às necessidades imediatas do dia-a-dia, não
apresenta uma sistematização e um método mais sofi sticados, como a
ciência e a fi losofi a; por isso ele é superfi cial.
O conhecimento científi co apresenta características diferentes do
senso comum, busca conhecer mais profundamente a realidade, estabelece
relações necessárias entre os fenômenos e utiliza um método de investiga-
ção que garante a objetividade. As Ciências da Natureza, como a Física,
a Química e a Biologia, usam uma metodologia científi ca que trabalha
com um conjunto de procedimentos lógicos: a observação, a formula-
ção de hipóteses e a verifi cação. Para investigar cientifi camente algum
aspecto da natureza, o cientista precisa seguir um método que enuncia
um problema, formula hipótese, experimenta e chega a uma conclusão
ou generalização. A pesquisa científi ca começa pela enunciação de um
problema, ou seja, o pesquisador levanta um problema sobre uma deter-
minada realidade e o transforma em objeto de sua investigação. Depois
formula uma hipótese para responder a questões sobre o seu problema
de investigação, testa suas hipóteses por meio da experimentação e chega
a conclusões ou generalizações.
Esse caminho de investigação é bastante usado nas Ciências da
Natureza, enquanto as Ciências Humanas elegem um problema, levantam
hipóteses, mas não usam a experimentação para formular suas conclusões
ou generalizações. O conhecimento científi co busca entender fenômenos
regulares que ocorrem no cotidiano.
aula13.indd 10 6/29/2004, 12:00:04 PM
CEDERJ 11
AU
LA 1
3 M
ÓD
ULO
3
A Filosofi a, assim como a Ciência, é um conhecimento racional,
que refl ete criticamente a realidade. Na Aula 9 aprendemos que a palavra
Filosofi a vem de dois termos gregos: Filos (ser amigo e ser amante de) e
Sophia (sabedoria). O fi lósofo é movido por EROS, uma força amorosa
e criativa, por isso sempre está numa busca amorosa e constante do conhe-
cimento. A Filosofi a é um conhecimento sistemático e rigoroso, que
trabalha com enunciados precisos e logicamente encadeados, buscando
compreender criticamente a realidade.
O conhecimento fi losófi co não aceita os fatos do cotidiano como
óbvios; na verdade questiona o mundo que nos rodeia, buscando com-
preender o signifi cado de tudo que está à nossa volta. O interrogar e o
duvidar são posturas fundamentais para a refl exão fi losófi ca. A Filosofi a
leva à formação da consciência crítica, por isso supera o senso comum.
Outro conhecimento importante para a nossa cultura é o mito, uma
narrativa que usa os feitos de deuses, semideuses e heróis, ou seja, entes
que se tornam sobrenaturais. O mito, muitas vezes, é considerado lenda,
fábula, algo que está além da história, que perpetua símbolos que são
importantes numa determinada cultura. Por exemplo: O mito de Narciso,
um belo homem que ao ver seu rosto refl etido num lago apaixonou-se
perdidamente por ele mesmo. Esse mito grego explica a excessiva vaidade
humana. Atualmente elegemos vários símbolos. Por exemplo: no esporte
temos Garrincha e mais recentemente Guga; na moda, Gisele Bündchen,
entre outros. O mito é uma forma de conhecimento que elege símbolos
que marcam uma cultura e, muitas vezes, lhe serve de parâmetro.
Os conhecimentos aqui analisados brevemente são criações dos
homens que buscam dar sentido e signifi cado à sua existência. Mas entre
esses conhecimentos há um que tem se destacado ao longo da história:
o conhecimento científi co; por isso veremos a seguir uma breve síntese
de como a ciência vem se construindo e se transformando nos diferentes
períodos históricos.
A CIÊNCIA NA HISTÓRIA
Ao longo da história a Ciência vem se renovando e se modifi cando,
seus modelos ou paradigmas mudam devido aos avanços do conhecimento;
por isso veremos aqui uma breve síntese de como vem sendo construída
no mundo ocidental.
ERO S
Na mitologia grega, representa o Deus do
Amor.
aula13.indd 11 6/29/2004, 12:00:04 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento
CEDERJ12
A ciência produzida no mundo ocidental nasceu na Grécia, com
o aparecimento da Filosofi a, no século VI a.C. Os primeiros fi lósofos
gregos, denominados pré-socráticos, começaram a investigar o cosmos,
procurando saber qual era a origem do Universo. Eles começaram a
pesquisar o princípio ou os princípios que estariam presentes em todas
as coisas existentes no cosmos ou na PHYSIS. Esses fi lósofos criaram a
Cosmologia, que consiste na explicação racional do cosmos, ou seja,
o mundo possui uma ordenação dada por um princípio racional.
A Cosmologia pré-socrática instaurou questionamentos que têm
atravessado séculos. Qual é a origem do mundo? Como um único
princípio dá origem a multiplicidade? Podemos dizer que esse é o início
da investigação científi ca no Ocidente.
Outro fato a destacar é que os fi lósofos, geralmente, foram
uma mescla de fi lósofos, astrônomos, matemáticos e físicos. Assim,
os conhecimentos produzidos pelos pensadores da Antigüidade eram
classifi cados como conhecimentos fi losófi cos, porque ainda não tinham se
emancipado e se tornado áreas de conhecimento distintas e específi cas.
Os fi lósofos-cientistas do mundo antigo trabalhavam com a
especulação racional e não utilizavam a experimentação para fazer a
verifi cação de suas conclusões. Essas características de investigação
predominaram também nos períodos greco-romano e medieval.
A ciência produzida no mundo greco-romano e medieval
apresentava as seguintes características: a) não utilizava um instrumental
técnico e a experimentação; b) fazia a especulação racional, por isso
a filosofia era imprescindível; c) não havia aplicação prática dos
conhecimentos; d) não era utilizada a Matemática. Assim, a ciência
produzida no mundo greco-romano e medieval não tinha como fi nalidade
a aplicação de seus conhecimentos, havia uma distância entre aquele que
produzia a técnica e o intelectual. A especulação racional permanece
como fi nalidade primordial da investigação científi ca. Esse modelo
científi co muda profundamente a partir do século XVII, com o advento
do mundo moderno.
A partir dos séculos XVI e XVII o mundo passa por
mudanças signifi cativas. Com a instauração do modo de produção
capitalista, questionam-se os dogmas católicos e começa, grada-
tivamente, uma mudança cultural, econômica, política e social.
PH Y S I S
Veja a nota naAula 10.
Procure assistir ao fi lme Giordano Bruno, que discute o aparecimento de uma nova postura na investigação científi ca. No fi lme, Giordano discute os modelos de investigação impostos pela Igreja Católica.
Outro fi lme importante é O ponto de mutação, que discute o confronto entre diferentes modelos para conhecer a realidade, a Ciência, a Filosofi a e a Poesia.
aula13.indd 12 6/29/2004, 12:00:09 PM
CEDERJ 13
AU
LA 1
3 M
ÓD
ULO
3
Constrói-se uma concepção ANTROPOCÊNTRICA de mundo, ou seja, o homem
agora é o centro do Universo. Com essa nova mentalidade, precisa-se
de um novo caminho para investigar a realidade; surge, então, uma
nova forma de racionalidade que cria procedimentos que possam
intervir e agir na natureza. Nesse cenário nasce a Ciência Moderna,
que se fundamenta no conhecimento racional e na experimentação;
essa nova Ciência procura investigar e compreender a natureza, assim
como dominá-la e transformá-la. Esse modo de investigar permanece na
Ciência Contemporânea.
As principais características da Ciência Moderna e Contemporânea
são: a) saber ativo; b) valorização do método; c) método experimental;
d) utilização da Matemática. Essas características marcam a investigação
científi ca das Ciências da Natureza (Astronomia, Biologia, Física,
Química etc.). Mas, no século XIX, aparecem as Ciências Humanas,
que provocaram a indagação: Podemos investigar o homem da mesma
forma que investigamos a natureza? A princípio, os intelectuais
utilizaram nas Ciências Humanas os mesmos métodos aplicados nas
Ciências da Natureza, mas perceberam que o homem é um objeto de
pesquisa complexo, por isso seria necessário trilhar um outro caminho
de investigação. A fi nalidade das Ciências Humanas é conhecer de modo
sistemático e profundo os aspectos sociais, históricos, culturais, políticos,
econômicos e psíquicos da vida humana.
OS PARADIGMAS DA CIÊNCIA MODERNA E AS ESTRATÉGIAS DE VALIDAÇÃO DOS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO
Mas além das diferenças entre Ciências da Natureza e Ciências
Humanas nos defrontamos com outra discussão importante: os
paradigmas da Ciência Moderna. O que a Ciência Moderna elegeu como
seus modelos ideais para a investigação? Como vimos anteriormente, a
Ciência, no mundo moderno, transformou signifi cativamente seu método
de investigação. Os símbolos dessa mudança de paradigma foram BACON,
GALILEU, GIORDANO BRUNO, Descartes, NICOLAU COPÉRNICO e NEWTON. Esse novo
paradigma elege a experimentação, a utilização da linguagem matemática,
a formulação de hipóteses e a formulação de generalizações ou leis e sua
aplicabilidade, aspectos que já discutimos anteriormente.
NI C O L A U CO P É R N I C O
Veja a explicação na Aula 4.
IS A A C NE W T O N
Veja a Aula 11.
GI O RD A N O BR U N O
Sacerdote do século XVI que contesta a
Igreja, afi rmando que a ciência e a verdade
estão acima da religião.
BA C O N
Veja a nota nas Aulas 4 e 11.
GA L I L E U
Veja a nota na Aula 11.
ANTROPOCÊNTRICO
Veja nota na Aula 4.
aula13.indd 13 6/29/2004, 12:00:09 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento
CEDERJ14
Os novos paradigmas da Ciência Moderna e Contemporânea, com
a ênfase na aplicabilidade, na possibilidade de averiguação e a formulação
de leis gerais sobre a natureza, deram ao homem um grande poder. Agora
ele pode intervir e transformar a natureza. Esse novo paradigma faz com
que o homem creia que é poderoso e liberto dos laços da religião. Agora
ele pode decidir, por meio da sua racionalidade, o destino do mundo.
Exemplos dessa potência humana são, atualmente, as mudanças genéticas e
a clonagem. O homem agora pode criar seres inteiramente modifi cados.
Mas, apesar de todo o poder que a Ciência Moderna e Contempo-
rânea confere ao homem, ao longo da história os diferentes tipos de
conhecimento precisaram criar estratégias para validar suas afi rmações.
Como vimos na Aula 9, os diferentes tipos de conhecimento — o senso
comum, a arte, a fi losofi a, a ciência e o mito — apresentam formas
diferentes para explicar e interpretar o mundo, construindo diferentes
caminhos para atingir a verdade.
Alcançar e defi nir a verdade foram os desafi os dos pensadores.
Para Platão e Aristóteles, a verdade é a correspondência de um enunciado
com a realidade, ou seja, uma afi rmação é verdadeira se estabelece a
correspondência entre o que penso e a realidade. Este tipo de concepção
de verdade atravessou a Antigüidade e a Idade Média.
Outra concepção é a verdade como revelação, aceita pelos
teólogos e fi lósofos empiristas. Esses intelectuais acreditam que a verdade
representa aquilo que, imediatamente, se revela ao homem. No caso dos
empiristas, por meio dos sentidos (audição, tato, olfato, paladar e visão);
para os teólogos, por meio da evidência manifestada nas coisas, sendo
que Deus é a maior evidência e critério máximo de verdade.
A verdade como utilidade é a concepção defendida pelos
pragmatistas. Algo é verdadeiro se provamos sua utilidade. No século
XIX, Marx defende a verdade como processo, ou seja, é verdadeiro
o conhecimento produzido historicamente. A verdade é um devir,
transforma-se na história de acordo com as condições materiais de
existência. A verdade é produzida numa relação com a realidade, há
uma relação dialética entre pensamento e realidade.
aula13.indd 14 6/29/2004, 12:00:10 PM
CEDERJ 15
AU
LA 1
3 M
ÓD
ULO
3
R E S U M O
A discussão sobre a verdade e o conhecimento aponta para
duas correntes fi losófi cas que discutem a possibilidade de existência do
conhecimento verdadeiro: o ceticismo e o dogmatismo gnoseológico. O
ceticismo pode ser absoluto ou relativo. De acordo com o ceticismo absoluto,
é impossível conhecer a verdade, porque tanto os nossos sentidos quanto a
nossa razão não têm condições de fornecer conhecimentos verdadeiros. Para
o ceticismo relativo, podemos conhecer a verdade parcialmente.
O dogmatismo gnoseológico apresenta duas vertentes: o dog-
matismo ingênuo e o dogmatismo crítico. Para o dogmatismo ingênuo,
podemos conhecer a verdade plenamente porque o sujeito que conhece
pode imediatamente estabelecer uma relação verdadeira com o que
pretende conhecer. Esta crença está no senso comum. O dogmatismo
crítico acredita que podemos conhecer a verdade por meio de um esforço
conjugado de nossos sentidos e nossa inteligência. Assim, com o uso
de nossa razão, de um método bem estruturado e de procedimentos
científi cos, podemos atingir a verdade.
Nesta estação fi zemos uma breve síntese do que foi estudado nas
Aulas 9, 10, 11 e 12. Refl ita com calma sobre esta síntese dos principais
aspectos que discutem as diferentes características dos conhecimentos,
a trajetória histórica e os paradigmas da ciência e as estratégias de
validação dos conhecimentos.
Analisamos de modo sintético os conhecimentos: comum, artístico, fi losófi co,
científi co e mítico e as características da ciência na Antigüidade, na Idade Média,
no mundo moderno e contemporâneo. Apontamos também os paradigmas da
Ciência Moderna e as estratégias de validação dos conhecimentos.
aula13.indd 15 6/29/2004, 12:00:10 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando o conhecimento
CEDERJ16
EXERCÍCIOS
1. Podemos aproximar a ciência da arte? Por quê?
2. O que caracteriza a Ciência Moderna e Contemporânea?
3. É possível alcançarmos a verdade no senso comum?
4. Como os pragmáticos validam o conhecimento?
AUTO-AVALIAÇÃO
Nesta síntese, você conseguiu distinguir as diferentes características do conhecimento
comum, artístico, fi losófi co, científi co e mítico? Percebeu as diferenças que existem
entre a ciência produzida na Antigüidade, na Idade Média, na Idade Moderna
e Contemporânea? Conseguiu compreender os principais paradigmas da Ciência
Moderna? Compreendeu as estratégias de validação do conhecimento? Então,
pode prosseguir a sua viagem.
aula13.indd 16 6/29/2004, 12:00:10 PM
Aula_14.1indd.indd 17 6/30/2004, 3:06:47 PM
C E D E R J18
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem
Tanto o sucesso/insucesso como o acerto/erro podem ser utilizados
como fonte de virtude em geral e como fonte de virtude na
aprendizagem escolar.
Chegou o momento, prezado aluno, de fazermos uma nova parada nesta
nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”. O Sol descamba no
horizonte, a noite chega de mansinho, enquanto nosso trem vai, lentamente,
parando numa estação especial.
Mas o que haverá de tão especial nesta estação? Nela, caro aluno, você estará,
daqui a pouco, descendo do trem e se dirigindo a uma grande sala no fi nal
da plataforma.
INTRODUÇÃO
Sua bagagem poderá fi car no vagão. Porém, você deverá levar consigo todos os
textos lidos até aqui em nosso curso, além da memória destas nossas conversas,
bem como todos os dados e informações que tiver obtido nas mais variadas
fontes de consulta e nos estudos complementares que houver feito, seguindo
as recomendações constantes nas várias aulas.
Prepare-se, pois, para saltar. Mas não morra de curiosidade! É simples o que
vai ser feito. Simples, porém importantíssimo para ajudá-lo a prosseguir, com
segurança e proveito, nesta viagem em que está adquirindo conhecimentos
fundamentais no campo da Educação.
Aula_14.1indd.indd 18 6/30/2004, 3:07:07 PM
C E D E R J 19
AU
LA 1
4 M
ÓD
ULO
3
Naquela sala, no fi nal da plataforma, que podemos denominar
“Sala de Avaliação”, você vai dialogar, com interlocutores atenciosos
e interessados, sobre tudo o que aprendeu até este momento em nosso
curso; vai ter a oportunidade de avaliar sua viagem. E isto, claro, é
muito importante.
Como em toda viagem, a nossa, imaginária, pela "Terra dos
Fundamentos da Educação", tem lugares aonde chegar, ou seja, objetivos
a alcançar, como você viu indicados em cada uma das aulas. E, a esse
nosso trajeto, correspondem também idéias, noções, teorias, dados e
informações que, colhidas das mais diversas fontes, de variados autores,
irão contribuindo para que você, com seu senso crítico, capacidade de
observação, assimilação e interpretação, forme suas próprias idéias.
Em suma, tudo isso tem como propósito oferecer-lhe a possibilidade de
aprendizagem dos fundamentos da Educação.
Esta é a primeira parada em nossa viagem imaginária destinada
à avaliação. Por isso, prezado aluno, vale a pena você inteirar-se da
proposta e das modalidades de avaliação previstas no Projeto do Cederj,
a instituição que promove, juntamente com a UERJ e a UNIRIO, este
nosso Curso de Pedagogia na modalidade a distância.
Entre os princípios que regem os cursos promovidos pelo Cederj,
está aquele que prevê a:
manutenção de processos de avaliação contínua, considerando
o desempenho dos alunos e a ação pedagógica, com vistas ao
constante aperfeiçoamento dos currículos (Projeto Cederj, p. 5).
Em outra passagem, lê-se, no texto do projeto que:
a avaliação de cada disciplina é parte integrante dos processos de
ensino e aprendizagem e pode variar em função das orientações
dos professores conteudistas e dos professores responsáveis pela
disciplina, ou de necessidades contextuais vigentes no momento da
sua implantação. O processo avaliativo de uma disciplina deve ser
composto por, no mínimo, exercícios avaliativos, duas avaliações
a distância, duas avaliações presenciais e, quando necessário, uma
avaliação suplementar presencial... (Projeto Cederj, p. 18).
Aula_14.1indd.indd 19 6/30/2004, 3:07:18 PM
C E D E R J20
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem
Estão previstas também, no projeto do Cederj, as várias
modalidades de avaliação, que são as seguintes:
Exercícios avaliativos (EA) – São exercícios pertinentes às unidades
didáticas. A cada unidade haverá, no fi nal do caderno didático
correspondente, um conjunto de EA. A idéia fundamental é que
o aluno do Cederj possa se auto-avaliar no acompanhamento da
disciplina (testes sem notas). O Cederj deve disponibilizar softwares
especiais para isso.
A interatividade dos alunos entre si próprios e com os tutores deve
ser fortemente estimulada na realização dos exercícios avaliativos,
visando a implementar um processo de ensino e aprendizagem
de sucesso. Nos pólos regionais, deve-se incentivar os alunos a
trabalhar em grupo, utilizando os microcomputadores disponíveis,
de modo a promover sua interação com os tutores a distância.
Avaliações a distância (AD) — São essencialmente de caráter
formativo e devem ser realizadas, basicamente, nos fi nais do
primeiro e do terceiro meses.
As avaliações a distância devem atribuir notas. Sugere-se que o peso
de cada avaliação a distância corresponda a 10% (dez por cento)
da nota fi nal do aluno na disciplina. Assim, a soma dos resultados
nas AD corresponderia a 20% (vinte por cento) da nota fi nal.
Sempre que possível, essas avaliações devem conter trabalhos ou
questões a serem resolvidas por grupos de alunos, estimulando o
processo autoral de caráter cooperativo.
Avaliações presenciais (AP) — Devem ser aplicadas, basicamente,
nos fi nais do segundo mês e do período letivo (fi m do quarto mês).
Essas avaliações têm, no entanto, planejamento temporal rígido.
Realizadas nos pólos regionais ou nas universidades consorciadas,
devem ocorrer em dias e horários preestabelecidos, dentro dos
Períodos de Avaliações Presenciais (PAP) do Cederj, sendo duas
por semestre letivo, com duração aproximada de uma semana
cada, planejadas e incluídas no calendário escolar (publicado no
Manual do Aluno Cederj). Recomenda-se não haver qualquer outra
atividade letiva durante os PAP.
Tais avaliações devem seguir o rigor próprio dos exames presenciais
realizados pelas Universidades Consorciadas, tanto no que se refere
à fi scalização, quanto à elaboração, aplicação e correção das provas.
O padrão de excelência do Cederj corresponderá à qualidade de
suas AP. Sugere-se que o peso de cada avaliação presencial (AP)
seja de 40% (quarenta por cento) do total da nota fi nal. Assim, as
avaliações presenciais, somadas, corresponderiam a 80% (oitenta
por cento) da nota fi nal do aluno (Projeto Cederj, p. 20).
Aula_14.1indd.indd 20 6/30/2004, 3:07:19 PM
C E D E R J 21
AU
LA 1
4 M
ÓD
ULO
3
Dada sua importância, também o projeto da disciplina Fundamentos
da Educação contempla a questão da avaliação, como se pode ver no trecho
a seguir transcrito:
Longe de constituir-se em uma proposta para medir a quantidade
de informações assimiladas, estratégia própria da função
classifi catória, que serve apenas para a conservação da sociedade,
através da domesticação dos alunos, pretende-se, na implementação
da avaliação na disciplina Fundamentos, estabelecer um processo
avaliatório capaz de determinar a natureza e a quantidade de
mudanças efetuadas no comportamento dos alunos, em função
dos objetivos defi nidos e das estratégias planejadas, constituindo-se
num instrumento auxiliar da melhoria dos resultados.
Para atingir tal objetivo, é fundamental a prática da avaliação
diagnóstica, que torna-se assim um momento dialético do processo
de avanço no desenvolvimento da ação, do crescimento para a
autonomia e do compromisso para a competência.
Sabe-se que a avaliação é um processo permanente, capaz de
sustentar o desempenho do aluno, buscando caracterizar o
compromisso educativo, e deve estar diretamente relacionada
com os objetivos que se deseja atingir.
No caso do projeto mais amplo do curso, a área denominada
Fundamentos pretende encaminhar o aluno para uma
profi ssionalização comprometida com a cidadania ativa, na medida
em que suas ações cotidianas constituirão um espaço aberto à
renovação de estruturas e à modifi cação de papéis sociais assimilados,
ao longo do tempo, pelo tempo/espaço político brasileiro.
O modelo de avaliação ora proposto para a disciplina Fundamentos
deve permitir ao aluno:
• direcionar o conhecimento pelas diferentes Estações;
• efetuar paradas, mais rápidas ou mais demoradas, em cada
uma das Estações;
• dispor de outros caminhos para que possa sanar difi culdades;
Aula_14.1indd.indd 21 6/30/2004, 3:07:20 PM
C E D E R J22
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem
• prosseguir a “viagem”, tirando as suas dúvidas nas estações
de monitoria;
• utilizar todo o material disponível: textos literários, poesias, letras
de música, links, hipertexto;
• realizar a avaliação com função diagnóstica, de modo a
determinar o grau de progresso em relação aos objetivos, durante
todo o transcorrer da viagem;
• participar de avaliações presenciais que sirvam como instrumento
dialético de diagnóstico, preocupado com a transformação social.
Neste sentido, o rigor técnico e científi co garantirá que a avaliação
terá como objetivo maior a tomada de decisão, a partir de um
mínimo necessário de compreensão, que o aluno deverá demonstrar
em relação a cada um dos diferentes fundamentos.
Acredita-se que a reorientação do aluno é obrigação do projeto,
para que o aluno atinja ou ultrapasse esse mínimo e tenha
garantido o acesso aos conhecimentos necessários à formação de
uma consciência crítica que o liberte da fragilidade e da impotência
diante do poder e da dominação (Projeto Político-Pedagógico da
Disciplina Fundamentos, pp. 6-7).
Agora que já está informado sobre a proposta de avaliação
estabelecida para nosso curso, prezado aluno, você já pode prosseguir,
saltando do trem e dirigindo-se à Sala de Avaliação.
Aula_14.1indd.indd 22 6/30/2004, 3:07:21 PM
C E D E R J 23
AU
LA 1
4 M
ÓD
ULO
3
Lembra-se da primeira aula de nosso curso, intitulada “Uma
Viagem pela Terra dos Fundamentos”? Pois bem, volte a ela, releia-a
e você encontrará os “mapas”, nome com que, em nossa linguagem
metafórica, denominamos as ementas correspondentes à nossa disciplina
de Fundamentos. Esses mapas sintetizam tudo o que já vimos e veremos
no curso. É aos tópicos ali contidos que você poderá se reportar neste
momento em que a parada na presente estação convida-o a avaliar todo
o trabalho feito até aqui.
Naquela sala, lá ao fundo da estação, você receberá a ajuda
inestimável de uma avaliação. Esse procedimento é que poderá revelar
seu progresso, as inegáveis conquistas em termos de conhecimento que
já fez e também as difi culdades que porventura enfrente. Somente assim,
nós, os professores e seus companheiros de viagem, poderemos ajudá-lo
a prosseguir na viagem.
Para essa avaliação, prezado aluno, lhe serão feitas perguntas,
apresentados questionamentos, solicitadas comparações, interpretações
e análises. Tudo isso, não custa repetir, tem como fi nalidade ajudá-lo
a levar a bom termo sua aprendizagem. É neste sentido que, neste
curso, entendemos “avaliação”: uma parte indispensável do processo
de aprendizagem; um recurso pedagógico que possibilita rever pontos
importantes, consolidar saberes adquiridos, dirimir dúvidas e estimar o
que eventualmente deverá ser revisto e estudado novamente, até que você
tenha dominado por completo esses fundamentos da Educação.
Feita essa avaliação, você receberá ajuda para prosseguir.
E certamente sentir-se-á mais seguro, mais confi ante e ainda mais
preparado para cumprir as demais etapas de nossa viagem, ou seja, de
nosso curso.
Prepare-se, pois, caro aluno, para desembarcar e viver essa nova e
importante experiência em nosso curso. Porém, como ainda há bastante
tempo até sua entrevista, vamos apresentar-lhe, a seguir, o conjunto de
questões dentre as quais serão mais tarde escolhidas aquelas que serão
formuladas na Sala de Avaliação. Leia cada uma delas com a máxima
atenção; tente entender completamente o que está sendo solicitado ou
perguntado; em seguida, volte ao texto de cada uma das aulas estudadas
até aqui e tente localizar a origem de cada uma das questões; fi nalmente,
tente preparar sua resposta. Com isso, certamente, você estará muito
mais preparado no momento da avaliação.
Aula_14.1indd.indd 23 6/30/2004, 3:08:02 PM
C E D E R J24
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem
As questões contidas na presente aula correspondem a uma das
partes do Mapa I. Dentro desta primeira ementa, a avaliação constante
desta aula corresponde aos seguintes tópicos:
• Conhecimento: produção, formas e estratégias de
validação; saber e poder.
• Homem: visões histórica, fi losófi ca, socioantropológica
e psicológica.
Podemos pôr mãos à obra? Muito bem. Veja as questões a
seguir.
AUTO-AVALIAÇÃO
• Explique:
a) A partir da visão fi losófi ca, o que é o ser humano e em que ele se distingue
dos outros seres.
b) As principais características de cada uma das primeiras abordagens na Psicologia
científi ca — a funcionalista, a estruturalista e a associacionista — comparando-as,
em seguida, com as da visão sócio-histórica.
c) As práticas pedagógicas — tradicional, escolanovista, tecnicista ou escolanovista:
indique a que você considera a mais importante para o desempenho da educação,
justifi cando sua escolha.
d) O que, a seu ver, pode ser considerado “verdade”, no campo científi co, tendo
em conta que, ao longo do tempo, muitas têm sido as características do que se
denomina conhecimento verdadeiro.
e) O papel que pode ser desempenhado na Educação por pelo menos dois dentre os
seguintes tipos de conhecimento: Arte, Senso Comum, Ciência, Filosofi a e Mito.
Aula_14.1indd.indd 24 6/30/2004, 3:08:03 PM
C E D E R J 25
AU
LA 1
4 M
ÓD
ULO
3
• Responda:
a) Que princípios fundamentam a concepção de homem no mundo medieval?
b) Se você tivesse de preparar uma aula sobre as etapas básicas do método
científi co, com que exemplos apresentaria cada uma delas a seus alunos?
c) Quais os principais elementos contidos, respectivamente, nas teorias de Piaget
e de Vygotsky sobre a construção do conhecimento e que pontos de divergência
podem ser estabelecidos entre elas?
d) O que signifi ca, em ciência, a noção de “paradigma”?
e) Qual o principal objeto de estudo da Psicologia e a partir de que fatores se
constitui a identidade dessa ciência?
f) Por que a instrução tornou-se fundamental para o homem no mundo con tem-
porâneo?
g) Qual a importância de o professor exercer uma escuta cuidadosa no cotidiano
das suas aulas?
h) Por que a Educação pode ser considerada uma ciência?
• Refl ita:
Imagine-se um professor preocupado com determinada conduta de seu aluno,
como, por exemplo, a difi culdade de relacionar-se num grupo de trabalho em
sala de aula. Tente explicar essa conduta, em primeiro lugar segundo a visão do
Behaviorismo; depois, analise-a de acordo com a Gestalt.
• Cite:
a) As cinco áreas principais da Antropologia e descreva cada uma delas.
b) As principais características do fenômeno denominado “conhecimento”.
c) Algumas das características que fazem com que a ciência moderna se diferencie
das visões de ciência existentes na Antiguidade e na Idade Média.
Aula_14.1indd.indd 25 6/30/2004, 3:08:04 PM
C E D E R J26
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Avaliando a viagem
Aí estão, prezado aluno, as questões dentre as quais serão
escolhidas aquelas que serão utilizadas em sua entrevista de avaliação.
Depois de relê-las e de buscar sua relação com as aulas estudadas, dirija-se à
Sala de Avaliação. Lá estarão professores e tutores, cuja tarefa é ajudá-lo a
prosseguir em sua viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”.
Depois de tantos quilômetros percorridos em nosso trem
imaginário, é hora de saltar, esticar as pernas, relaxar e seguir tranqüilo
para essa importante tarefa.
Terminado o trabalho na Sala de Avaliação, tenha certeza de que
você poderá seguir viagem com mais segurança, depois de conhecer sua
própria capacidade, seus limites e de consolidar os muitos conhecimentos
que já adquiriu.
Como a avaliação deve ser contínua e subjacente a todo bom
processo de ensino e aprendizagem, você terá mais adiante, ainda com
relação ao Mapa I, outra parada numa estação para avaliação. Com isso,
terá recebido uma boa ajuda desse processo avaliatório para encetar mais
uma etapa da nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos da Educação”,
seguindo então o Mapa II.
Os vagões da composição ferroviária serão limpos agora; nossa
velha porém confi ável “Maria Fumaça” passará por uma rápida revisão
e manutenção; nós faremos uma refeição, repondo as energias antes de
seguir viajando.
Aula_14.1indd.indd 26 6/30/2004, 3:08:05 PM
C E D E R J 27
AU
LA 1
4 M
ÓD
ULO
3
Ainda temos um longo e prazeroso caminho a percorrer nesta
nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação". Muito
conhecimento nos aguarda pelo caminho; muitas surpresas nos estão
reservadas; o horizonte do saber se abre, claro e luminoso, diante de
nossa vontade, de nossa curiosidade, de nosso empenho.
Boa sorte!
Aula_14.1indd.indd 27 6/30/2004, 3:08:09 PM
Poder e saber au
la
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Refl etir sobre as relações entre saber e poder.
• Refl etir sobre a historicidade das relações entre saber e poder.
• Refl etir sobre as concepções foucaultianas de saber e poder.
OBJETIVOS
15
Aula_15pb.indd 29 6/29/2004, 12:10:41 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber
CEDERJ30
Continuando nossa viagem, estamos chegando à Estação em que vamos parar
para conhecer e pensar os saberes e suas relações com os poderes.
Vimos, sobretudo nas Aulas 8, 9 e 10, que a Ciência se faz na história, como
qualquer outra atividade humana. Isto signifi ca que os saberes (científi cos ou
não) têm uma historicidade, pois eles são construídos por mulheres e homens
historicamente situados em determinado contexto tempo–espacial para explicar
aquilo que a realidade é. Daí esses saberes serem suscetíveis de mudanças.
Nossa aula vai abordar as históricas relações existentes entre os saberes e os
poderes, a partir das considerações de MICHEL FOUCAULT. Essa perspectiva de
análise não é a única possível e/ou a mais válida. Contudo, devido à importância
da obra de Foucault para o desenvolvimento posterior das refl exões acerca do
poder e do saber, tal caminho foi o escolhido.
Você certamente já deve ter escutado afi rmações tais como: “quem sabe
faz a hora e não espera acontecer”, “quem sabe mais pode mais”, “é mais
importante saber o porquê das coisas do que apenas saber como as coisas
funcionam”. Estas frases trazem embutidas a constatação de que saber e
poder estão intimamente ligados e, mais ainda, de que saber é poder. Daí a
importância da educação para um povo, pois um povo com formação e com
informação tem mais condições de se autodeterminar, porque a educação é um
dos meios privilegiados para desenvolver uma compreensão mais fundamentada
do que é a realidade.
SABERES E PODERES
Discursos e formações discursivas
Para Foucault, a produção dos discursos, isto é, dos enunciados
que emitimos sobre a realidade, sejam eles científi cos ou não, obedece
a certos procedimentos que controlam nossas falas, legitimando umas e
outras não. Esse processo de legitimação se dá por meio das instituições
e conforme as contingências históricas.
INTRODUÇÃO
MICHEL FOUCAULT (1926-1984)
Filósofo francês. Suas refl exões sobre a formação da subjetividade moderna, sobre a historicidade dos saberes e sobre as relações saber/poder desafi aram as convicções modernas tradicionais sobre as prisões, os hospícios, o cuidado dos doentes mentais, as escolas, a polícia, os direitos das minorias, por exemplo. Dentre suas obras podemos destacar: História da loucura, História da sexualidade vols. I, II, III, Vigiar e punir, As palavras e as coisas, Arqueologia do saber, Microfísica do poder, A ordem do discurso.
Aula_15pb.indd 30 6/29/2004, 12:11:09 PM
CEDERJ 31
AU
LA 15
M
ÓD
ULO
Em geral, não temos consciência desses procedimentos, uma vez
que nascemos já lançados em uma dada FORMAÇÃO DISCURSIVA.
Em A ordem do discurso, Foucault apresenta os procedimentos
externos de exclusão de discursos que permitem dominar os seus poderes;
os procedimentos internos, que impedem o aparecimento dos discursos
ao acaso; e os que vão proporcionar o seu funcionamento.
Nessa obra encontramos a descrição do ‘ser’ do discurso
e a explicação de como os complexos saber-poder, presentes nas
construções sociais, funcionam no âmbito social. Isso nos leva a
compreender, como veremos ao longo desta aula, que todo discurso,
presente nas formas de saber-poder, está marcado por relações de força
(poder), e a verdade (presente no pólo ‘saber’) acha-se profundamente
assinalada por essas relações.
Foucault parte da hipótese de que “em toda sociedade a produção
do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório...”
(FOUCAULT, 2002, p. 9).
Para dominar os poderes dos discursos, destacamos alguns dos
procedimentos apresentados por Foucault:
a) interdição: aquilo que pode ou não ser dito a qualquer
momento. Assim, não podemos falar tudo, a qualquer momento, em
qualquer circunstância. Exemplos de interdições: o tabu do objeto, o
direito privilegiado ou mesmo exclusivo do sujeito que fala.
Em todas as culturas há os objetos sobre os quais as pessoas não
podem falar sob o risco de acarretar desgraças ou ainda que somente podem
ser falados em certas circunstâncias e/ou por pessoas autorizadas. Um
exemplo é o termo YAHWEH (Javé). Em hebraico, na cultura judaica,
é o tetragrama que representa o nome de Deus e o nome de Deus não
deve ser pronunciado. Na cultura cristã, por sua vez, há o preceito de
que não se deve pronunciar em vão o nome de Deus.
Quanto ao privilégio e/ou exclusividade do sujeito que fala,
podemos exemplifi car com o discurso do médico sobre doenças e saúde,
que nossa sociedade aceita como válido, em detrimento aos discursos de
leigos e mesmo de curandeiros.
FO R M A Ç Ã O D I S C U R S I V A
Espaços sócio-históricos
institucionalizados de enunciação. Isto
signifi ca que o fato de pertencermos a uma cultura nos joga em
uma teia de enunciados previamente já
dada. Esta rede de enunciados ou
formação discursiva condiciona e controla
o que podemos/não podemos, devemos/não devemos falar,
perceber, pensar, conhecer nos diferentes
contextos, como por exemplo: científi co,
religioso, senso comum, familiar, na
roda de amigos.
Aula_15pb.indd 31 6/29/2004, 12:11:19 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber
CEDERJ32
b) separação entre loucura e razão: a separação entre a
palavra válida daqueles que não são loucos e a palavra
não-válida. Durante séculos, na Europa, a palavra do louco
ou não era validada (não era ouvida) ou era escutada como
uma palavra portadora da verdade, pois nesse caso o louco
era visto como alguém especialmente tocado pelo sagrado.
Mas a palavra do louco não existia de fato e por isso não
era recolhida ou ouvida. Antes do século XVIII, nenhum
médico procurou ouvir o que era dito, como e por que era
dito. Hoje a palavra do louco não é mais considerada algo
que esteja do lado “de lá”. Nós buscamos nela um sentido;
porém, de algum modo, a separação ainda existe.
c) oposição entre o verdadeiro e o falso: as sociedades, em
situações históricas diferentes, estabelecem a separação
entre a Verdade e a Falsidade.
Para Foucault, é possível detectar a VONTADE DE VERDADE, ou seja, o
tipo de separação entre Verdade e Falsidade (regime de verdade) presente
na vontade de saber, isto é, nos saberes de uma sociedade em uma
dada época. Essa separação é historicamente construída, e as grandes
modifi cações científi cas (as mudanças paradigmáticas) podem ser lidas
como o surgimento de novas formas de vontade de verdade.
Na PROPOSIÇÃO, dentro do discurso, a separação entre o falso
e o verdadeiro não é arbitrária ou aleatória, uma vez que resulta de
uma construção histórica. Tal distinção aparece claramente nos nossos
enunciados científi cos ou não, pois toda vontade de verdade é apoiada pelo
suporte institucional – como a escola – e reforçada por práticas – como a
pedagógica – e pela maneira como os saberes são distribuídos, aplicados,
valorizados em uma sociedade.
Portanto, cada regime de verdade historicamente estabelecido em
uma sociedade representa o que pode ser ENUNCIADO (o que pode e deve
ser conhecido e dito sobre o real), percebido, delimitado, conhecido,
nomeado, reconhecido.
As mudanças no modo de ver a realidade estão condicionadas ao
aparecimento/desaparecimento de regimes de verdade.
VO N T A D E D E V E RD A D E M O D E R N A
Entre os séculos XVI e XVII, conforme Foucault, teria aparecido uma nova vontade de verdade baseada no papel determinante do sujeito cognoscente, em um novo domínio de objetos (que passaram a ser mensuráveis, quantifi cados, observados experimentalmente), no uso do aparato técnico para a experimentação e verifi cação do conhecimento.Toda vontade de verdade é apoiada pelo sistema institucional e reforçada pela maneira como uma sociedade valoriza, distribui e aplica os conhecimentos.
PRO P O S I Ç Ã O
Enunciado declarativo ou ainda o que é declarado/expresso por um enunciado.
EN U N C I A D O
Expressão lingüística de sentido completo, que pode ser verdadeiro ou falso e duvidoso.
Aula_15pb.indd 32 6/29/2004, 12:11:20 PM
CEDERJ 33
AU
LA 15
M
ÓD
ULO
d) disciplinas: uma disciplina é defi nida por um domínio
de objetos, pelo conjunto de métodos, de proposições
consideradas verdadeiras, de defi nições, de técnicas e por
um aparato instrumental. As disciplinas, internamente,
reconhecem suas proposições verdadeiras, mas expulsam
como ‘monstruosas’ as que não aceitam. Os ‘monstros’
mudam com a história do saber. Assim, a disciplina Física
Moderna aceita como verdadeira a proposição "é impossível
um corpo fora do espaço" e rejeita a proposição “a pedra
cai devido ao seu lugar natural, que é junto à terra”, que a
Física aristotélica acataria. Por isso, Foucault afi rma que,
quando estamos no verdadeiro, obedecemos às “regras de
uma ‘polícia’ que devemos reativar em cada um de nossos
discursos” (idem, p. 35).
e) sociedades de discursos: cabem a estas sociedades produzir
ou conservar os discursos, fazê-los circular em espaço
restrito, distribuí-los segundo regras estritas. Para este
autor, vivemos hoje numa ‘sociedade de discurso’ mais
difusa, mas igualmente coercitiva.
f) doutrinas: se em uma sociedade do discurso o número de
falantes é limitado e somente entre eles o discurso circula, a
doutrina tende à difusão. O pertencimento a uma doutrina
é dado pela aceitação de regras e pelo reconhecimento das
mesmas verdades, que associam os indivíduos a certas
enunciações e lhes proíbem outras.
A partir do que foi exposto, podemos considerar que:
• É uma ilusão considerar o sujeito fonte exclusiva de
seu discurso (seus enunciados), pois em verdade ele está
empregando signifi cados preexistentes já dados em uma
formação discursiva. Isto se deve ao fato de nascermos
numa formação discursiva, que implica, por sua vez, uma
certa constituição de mundo (ou realidade). Assim, quando
falamos/percebemos/pensamos/conhecemos/agimos,
estamos utilizando o instrumental teórico–prático presente
na nossa sociedade.
Aula_15pb.indd 33 6/29/2004, 12:11:20 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber
CEDERJ34
• A aparente ‘neutralidade’ dos signifi cados das palavras vem
de sua institucionalização e do trabalho da ideologia.
• As instituições acabam por regular as interpretações,
dispondo sobre o quê, como, quem interpreta e em quais
condições. Assim, o sujeito (cada um de nós) é constituído/
interpelado pelas redes de interpretação.
• A forma de interpretação é historicamente modalizada
pela formação discursiva em que se dá, e a interpretação
é a relação entre os sujeitos e os signifi cados. Portanto,
há relação necessária entre o nosso dizer e as condições
históricas de produção desse dizer, pois para que nossas
palavras façam sentido é necessário que elas tenham algum
sentido. Tal sentido é estabelecido pela formação discursiva
que determina o que pode ser dito ou não a partir de um
lugar historicamente situado em um dado contexto.
Regimes de verdade, formações discursivas e discursos
Fez parte das intenções de Foucault, no nível da ARQUEOLOGIA DO
SABER, elucidar o aparecimento de novos saberes, o que corresponde ao
surgimento de um novo regime de verdade no discurso, que se dá por
meio de rupturas.
Um domínio de saber é constituído por um conjunto de enunciados,
falados e escritos. Quando investigamos a gênese destes enunciados, logo,
de um saber, temos condições de compreender como foi possível que
determinados enunciados aparecessem e outros não. Por exemplo, na
História da loucura, Foucault investigou o nascimento da Psiquiatria
apresentando as condições de possibilidade de seu aparecimento, a partir
dos estudos dos saberes e das práticas sobre a loucura em diferentes
épocas. Por sua análise, percebemos que o saber da Psiquiatria afi rma
e legitima idéias que não havia antes do século XIX, como a categoria
de doença mental.
ARQ U E O L O G I A D O S A B E R
A história arqueológica, proposta por Foucault, fundamenta-se sobre a análise do discurso, visto como o conjunto de enunciados que segue os princípios de regularidade de uma mesma formação discursiva. Nela temos o deslocamento da investigação sobre a ciência para o saber, o que signifi ca o fi m do privilégio da verdade científi ca no âmbito dos estudos do conhecimento. A arqueologia responde à questão ‘como os saberes surgem e se transformam’. Ela privilegia as inter-relações entre os discursos e ainda suas relações com as práticas institucionais (hospital, justiça, escola, família etc.).
Aula_15pb.indd 34 6/29/2004, 12:11:21 PM
CEDERJ 35
AU
LA 15
M
ÓD
ULO
Este exemplo nos leva a ver, por um lado, que os saberes e os
regimes de verdade surgem para responder às históricas necessidades
de conhecimento de cada época. Por outro, que os saberes, tal como o
da Psiquiatria, ao legitimarem certas concepções, acabam por positivar
determinadas realidades, como a da doença mental.
Cada formação discursiva desenvolve um regime de verdade
próprio, que legitimará alguns saberes como verdadeiros, na medida
em que estes estiverem de acordo com as premissas presentes no
regime de verdade. Por conseguinte, o regime de verdade tem força de
normatização, isto é, tem poder de normatização. Este poder acaba
validando os saberes que se fazem de acordo com o regime de verdade
vigente. Por meio dos saberes e de suas práticas, das instituições e suas
relações com a verdade, o poder entra difusamente nas nossas vidas.
Assim, começamos a tocar no tema de nossa aula de modo
contundente, pois já temos condições de afi rmar que o saber e o poder se
relacionam nos discursos – sejam eles fi losófi cos, científi cos, literários,
religiosos, políticos, econômicos, do senso comum –, em instituições e
em práticas sociais, que sempre estão vinculadas aos saberes.
Saber-Poder
Você já parou para pensar sobre o que é o poder? Como alguém
exerce poder sobre outra pessoa? O poder somente é político e sempre
parte de um centro? O poder somente é negativo, coercitivo, repressivo,
limitador? Os saberes não exercem poder? Como? Onde? Os saberes
estão apenas nas escolas, nos livros, nas bibliotecas e afi ns?
Dentre as inovadoras investigações de Foucault, interessa-nos
aqui apresentar as que relacionam saber e poder, ou seja, a história
genealógica que analisa os complexos saber-poder.
Em 1975, com a publicação de Vigiar e punir, ele modifi cou
a forma de análise dos modos de exercício de poder, na medida em
que propôs uma concepção relacional de poder que se contrapõe à
de poder enquanto domínio dos macrossujeitos (Estado, rei, ditador,
classe/ideologia dominante).
Toda sociedade tem seu regime de verdade ou sua ‘política geral da verdade’, ou seja,
em toda sociedade encontramos: a)
discursos que ela aceita como verdadeiros;b) mecanismos por meio dos quais os enunciados falsos são separados dos
verdadeiros;c) o modo como ela
sanciona uns e proíbe outros;
d) as técnicas e os procedimentos que são acolhidos e instituídos como os que garantem a obtenção da verdade;
e) o estatuto daqueles que podem dizer aquilo
que funciona como verdadeiro.
GE N E A L O G I A D O P O D E R
A história genealógica estabelecida por Foucault
busca responder à questão do ‘porquê’ dos
saberes, de sua ‘origem’ e de suas transformações.
Portanto, o poder é analisado em sua relação com o saber. Isto signifi ca
que estamos submetidos pelo poder à produção
da verdade e ao próprio regime de verdade e ainda que somente
exercemos o poder por meio da verdade. Se a história arqueológica
permite o deslocamento da ciência como o lugar
da verdade para os saberes, a genealogia
permite a fuga da noção da ideologia como o
lugar do poder e do erro.
Aula_15pb.indd 35 6/29/2004, 12:11:21 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber
CEDERJ36
Foucault defi niu o poder como relação de forças. Poder é poder de
afetar algo e que, por isso, atravessa os saberes. Nesta inovadora forma
de conceber o poder, este passou a ser compreendido como relacional,
imanente (intrínseco) ao espaço social e difuso (não parte somente de
um ponto central).
Ele desconstruiu a concepção tradicional de poder, qual seja, a
que postula o poder como tendo exclusivamente um centro soberano
(o príncipe, o rei, o Estado, a classe dominante) e como sendo exercido
do centro para a periferia e de cima para baixo. Assim, ele não aborda
o poder como emanando de uma entidade concreta, que poderia estar
situada num lugar específi co ou acoplado a uma pessoa (rei ou presidente,
por exemplo).
Por isso, o poder, considerado relações de diferentes forças, atinge
todo o tecido social.
Nesse sentido, Foucault pôde afi rmar que o discurso não é o que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, “mas aquilo por que, pelo
que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”(FOUCAULT,
2002, p. 10).
Um aspecto central da interpretação foucaultiana é o que afi rma
que o poder não apenas normatiza, mas tende a ser constituinte, isto é,
instituidor de domínios de objetos, logo, da realidade que conhecemos
e onde vivemos. Por isso não devemos descrever o poder somente em
termos negativos.
É certo que o poder exclui, reprime, censura, recalca, mas,
sobretudo, ele é positivo na realidade que institui, na medida em que
ele produz objetos e regimes de verdade. Por isso Foucault pôde declarar
que “a verdade não existe fora do poder ou sem poder” (FOUCAULT,
2002, p. 12).
No tecido social, pois, podemos detectar uma imensa rede de
relações saber-poder. Nela temos, por um lado, as verdades estabelecidas
que agem como axiomas reguladores de nossos comportamentos, de
nosso modo de ver e entender o mundo, assim como de nos ver nele; por
outro, um poder que não está ‘localizado’ numa entidade, numa pessoa
ou numa instituição, ou na forma jurídica da lei, mas que está imbricado
nas relações sociais e que são expressos pelos saberes.
Portanto, saber e poder se relacionam nos discursos, sejam eles
fi losófi cos, científi cos, literários, religiosos etc. nas instituições e nas
práticas sociais.
Foucault concebeu o poder como uma rede de relações múltiplas, móveis, exercida a partir de vários pontos em toda a sociedade.Por conseguinte, o poder não é somente algo apropriado pela classe dominante, ou por um presidente ou mesmo por um ditador. Mas sim estratégias materializadas em discursos, em práticas, em técnicas, em instituições, em formas de disciplinarização, que permeiam a estrutura social.
Esse microfísico poder é validado, por sua vez, pelo regime de verdade (logo, pelos saberes), que tem força (isto é, poder) de coerção e de coesão.
Aula_15pb.indd 36 6/29/2004, 12:11:22 PM
CEDERJ 37
AU
LA 15
M
ÓD
ULO
R E S U M O
• A produção dos discursos obedece a certos procedimentos que controlam os
enunciados, legitimando uns e outros não.
• Via de regra, quando o sujeito fala, não se dá conta dos mecanismos de
assujeitamento aos quais está submetido. Ele não percebe que emite enunciados pré-
construídos e toma por suas as signifi cações validadas pelo regime de verdade.
• Os saberes e o pensamento em suas relações com a verdade têm uma história.
Quando a verdade em cada época é problematizada, isto é, o modo como as
pessoas entendem o que verdadeiramente é real, de fato estamos problematizando
os conhecimentos que dizem o que as coisas são e também o ‘peso’ (o poder) que
tais conhecimentos têm na sociedade.
• Por meio do que se fala (e do que não se pode falar), nós entendemos como os
saberes se constituem e como um regime de verdade é estabelecido pela sociedade
de modo a responder a uma urgência histórica.
• Todo regime de verdade tem poder de coerção e de coesão; nele temos os saberes/
discursos e práticas produzidas e validadas como verdadeiras por cada sociedade.
• Os saberes são considerados peças de relações de poder que podem perpetuar/
modifi car o poder.
• O poder, por sua vez, é visto como um instrumento que consegue explicar o
nascimento/permanência/morte dos saberes.
• O poder está materializado em discursos, técnicas, práticas, instituições, formas
de disciplinarização. Por isso, ele se estende pela teia social.
• Os discursos atingem a vida dos homens/mulheres promovendo hábitos
alimentares, tabus, normas, ritmos de trabalho, isto é, promovendo valores.
• Esses discursos/conhecimentos/ciência acham-se intimamente associados aos
elementos não-discursivos (instituições, prédios/formas arquitetônicas, por
exemplo). Daí Foucault não dissociar, em sua análise, o regime de verdade
‘pura’ (discursos/conhecimentos/ciência) das relações de poder sustentadoras das
instituições, da sociedade, do Estado.
• Aquilo que somos, em cada período histórico e em cada cultura, é moldado
na dependência dos regimes de verdade, das relações de poder e das formas
de individualização.
• Quando consideramos a associação saber-poder, passamos a atentar para as
relações entre as diferentes formas de saber e os poderes que as formas de saber
implicam. Por sua vez, as confi gurações de saber estão inscritas no jogo do poder.
Aula_15pb.indd 37 6/29/2004, 12:11:22 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Poder e saber
CEDERJ38
EXERCÍCIOS
1. A nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases) estabeleceu que todos os professores
deverão concluir curso de nível superior. Refl ita sobre esta mudança usando o
referencial teórico saber-poder de Foucault.
2. Refl ita sobre a questão curricular articulando saber e poder, a partir da
perspectiva foucaultiana.
AUTO-AVALIAÇÃO
• Comentar a historicidade dos saberes.
• Explicar os procedimentos que controlam a produção dos discursos.
• Explicar a concepção foucaultiana de poder.
• Explicar os complexos saber-poder.
Aula_15pb.indd 38 6/29/2004, 12:11:23 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
16au
la
OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Compreender a distinção entre saber e sabedoria, estabelecendo as relações e inter-relações entre essas duas noções.
• Identifi car os diferentes saberes que os alunos trazem, valorizando-os como conhecimentos importantes no processo ensino-aprendizagem.
• Refl etir, no cotidiano da prática docente, sobre a importância do saber e da sabedoria como elementos necessários ao processo ensino-aprendizagem.
Saber e sabedoria
Pré-requisito
Para a compreensão desta aula recomenda-se o estudo das aulas “Pensando o conhecimento” e “Saber e poder”.
aula16pb.indd 39 6/29/2004, 1:17:21 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria
CEDERJ40
Entretidos, olhando a bela paisagem à margem da linha férrea,
percebemos agora que nosso trem vai parando lentamente. Como
imaginamos estar viajando com uma “Maria Fumaça” – locomotiva
antiga movida a vapor – observamos que se trata de uma parada
estratégica para abastecer a máquina com lenha e o reservatório com
água que, sob o fogo da caldeira, logo se transformará em vapor.
Parados, notamos próximo da linha um rio caudaloso. Num
atracadouro, vemos uma BALSA. Como em muitos rincões do Brasil, balsas
como essas servem para permitir que pessoas, animais e veículos cruzem
rios, prosseguindo a viagem na outra margem, onde a estrada continua.
Essa visão do rio e da balsa nos traz à memória uma história que
serve para ilustrar bem a distinção mais superfi cial que quase todos fazemos,
muitas vezes sem se aperceber, entre saber e sabedoria. Eis a história.
Um homem muito sábio, detentor de muitos títulos, mestre em
muitos conhecimentos, erudito capacitado a ensinar disciplinas em
muitos campos de saber, para continuar sua viagem tem de atravessar
um rio muito largo e caudaloso. As águas barrentas e revoltas dão medo.
Preferível seria o conforto de uma estrada. Mas não há jeito: o único
caminho existente exige a travessia do rio utilizando a balsa.
O sábio aproxima-se do balseiro e, com certa difi culdade, consegue
que aquele homem simples se disponha a ajudá-lo na travessia. Acertado
o pagamento, a balsa é desatracada e, manobrada com muita habilidade
por aquele pobre e iletrado homem, inicia a travessia do perigoso rio.
Reparando na habilidade do homem da balsa, que lhe infunde
confi ança, o sábio fi ca mais relaxado e começa a gostar da travessia, que é
lenta mas proporciona uma visão privilegiada do rio, de suas margens, sobre
as quais grandes árvores se debruçam, de um pôr-de-sol que se desenha no
horizonte e dos sons de pássaros vindos da mata cortada pelo rio.
Com a travessia vagarosa, nosso sábio – homem acostumado à vida
agitada das cidades e à rotina dos gabinetes e das salas de aula – começa
a fi car um tanto melancólico, lamentando que não haja transporte mais
rápido que o leve logo ao encontro de seu compromisso numa cidade
ainda distante, na qual poderá dar uma palestra com o brilho, entusiasmo
e reconhecimento costumeiros.
Onde está a sabedoria que perdemos
no conhecimento? (T.S. Eliot)
A invenção da máquina a vapor é atribuída ao escocês James Watt, que a patenteou em 1769. Entre 1801 e 1814, o norte-americano Robert Fulton desenvolveu barcos com essa mesma força motriz que, mais tarde, geraria as locomotivas.
BA L S A
É uma embarcação, geralmente mon-tada de forma muito rudimentar, formada por um aglomerado de troncos, toros ou tábuas. Balseiro é aquele que conduz a balsa.
aula16pb.indd 40 6/29/2004, 1:17:40 PM
CEDERJ 41
AU
LA 1
6 M
ÓD
ULO
3
Depois de olhar para o céu, em que as primeiras estrelas começam
a despontar depois do ocaso, e para afastar o tédio que começa a invadi-
lo, o sábio puxa conversa com o balseiro.
— Meu caro homem – diz com sua voz empostada –, você sabe
o que é a Astronomia?
— Não, sinhô, num sei não.
— Pois saiba que a Astronomia é a ciência que estuda os astros do
céu, as estrelas, os planetas. Por não saber o que é a Astronomia, você
perdeu metade da sua vida. E a Botânica, sabe você o que é?
— Sei não, sinhô – diz o balseiro.
— A Botânica, meu pobre homem ignorante, é a ciência que
estuda as plantas, todo o reino vegetal, essas belas árvores que vemos à
margem do rio. Não sabendo o que é a Botânica, você perdeu metade
da sua vida.
E assim, enquanto a balsa avançava em meio às águas perigosas
em direção à outra margem, o sábio foi fazendo perguntas sobre a
Medicina, a Filosofi a, a Geologia, a Política e acerca de muitos outros
conhecimentos, enquanto o humilde balseiro só coçava a cabeça e
arregalava os olhos vendo como era sábio seu passageiro.
Lá pelas tantas, quando a balsa se encontrava no ponto mais
perigoso, no meio do rio, onde as águas eram mais fundas, o balseiro
indagou:
— Discurpe, seu sábio, mas o sinhô sabe nadá?
Assustadíssimo, o sábio respondeu que não. Então, o balseiro,
levantando-se, jogando fora o remo, e antes de pular no rio e afastar-se
para a segurança da margem com braçadas vigorosas, gritou:
— Me adiscurpe, seu sábio, então o sinhô perdeu sua vida toda,
porque o barco bateu numa pedra, tá cum buraco no fundo e vai afundá!
E lá se foi o sábio, com todo o seu conhecimento, para o fundo
do rio!
Você já deve ter percebido, caro aluno, que essa história nos dá
uma boa idéia da distinção entre o saber, como conhecimento, como
erudição, como acúmulo e entendimento de informações teóricas, e
a aplicação prática que a gente pode fazer das coisas. Além disso,
podemos ver que existe uma “escola da vida”, que acaba por nos dotar
da sabedoria necessária para enfrentar e resolver problemas.
aula16pb.indd 41 6/29/2004, 1:17:40 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria
CEDERJ42
Estudando neste Curso de Licenciatura, que se destina à sua formação
com professor, você estará posicionado como um mediador, ou seja,
estará entre esse mundo de saber formal, teórico, intelectual e um mundo
de saberes igualmente profundos, ensinados pela própria vida e que
caracterizarão a sabedoria.
Essa distinção, tomada em sentido mais profundo, tem sido
estudada ao longo dos séculos, especialmente pela Filosofi a. O saber
é, com freqüência, comparado ao conhecimento. É nesse sentido,
por exemplo, que falamos do saber científi co, um tipo de saber que
trata predominantemente das coisas objetivas, trabalhadas de forma
sistematizada, utilizando procedimentos e métodos. Saber, assim
considerado, significa uma maneira determinada de apreender a
realidade e de lidar com ela. Esse saber é utilizado para a realização
de coisas práticas – como, por exemplo, quando as teorias científi cas
se convertem nas aplicações que denominamos “tecnologia”. Além
disso, o saber é fi xado e transmitido, transformando-se num modelo
a ser seguido. Porém, com o passar do tempo, esses modelos – que são
denominados PARADIGMAS – vão se transformando, por não atenderem
mais às exigências e necessidades da sociedade, surgindo outros modelos.
A isso se denomina “quebra de paradigma”.
Quebrar paradigma é, em suma, buscar um novo olhar. No caso
desta aula, signifi caria o professor valorizar não apenas o conteúdo
expresso nos programas, nos livros didáticos, nas exigências apresentadas
nos documentos legais, mas buscar sentimentos, emoções, vivências que
estão presentes na vida dos alunos, que são esquecidos, abandonados
em nome de um conhecimento racional, experimentado, comprovado,
tido como verdade. Retomando o que já dissemos aí acima, caro aluno,
trata-se de valorizar os saberes que compõem o “currículo” informal
do que aprendemos, cotidianamente, desde que nascemos, em todos os
lugares e em todas as relações que estabelecemos, na família, no trabalho,
no ambiente religioso que porventura freqüentarmos etc.
Importa, nessa mudança de olhar, nesse novo paradigma, dialogar
com a incerteza, com o não-estabelecido que faz parte da cultura dos
alunos. Esta cultura é aquela que se aprende na “escola da vida”, em
seus múltiplos sentidos.
Essa riqueza que a vida nos oferece pode trazer o reencantamento
do aluno pela sala de aula, considerando-se que ele terá vez e voz para
apresentar os seus saberes impregnados de sabedoria.
PA R A D I G M A
Pode ser entendido como um modelo capaz de guiar uma investigação, sem imposições; ou como uma mudança de olhar; ou, ainda, o estabelecimento de diferentes formas de olhar, procurando dar conta de uma faceta, de uma nova realidade.
aula16pb.indd 42 6/29/2004, 1:17:40 PM
CEDERJ 43
AU
LA 1
6 M
ÓD
ULO
3
Desprezando o saber que traz dentro de si, impomos o saber vindo
de fora, e acabamos por não enxergar a sabedoria que o aluno possui.
Preocupados com saberes, acabamos por perder de vista a
sabedoria, que também costuma ser denominada “sapiência”.
Uma educação que valoriza os saberes e a sabedoria permitirá ao
aluno sentir-se como sujeito importante do processo, na medida em que
tanto a cultura científi ca – os saberes – como a cultura das humanidades
– a sabedoria – podem ser mobilizadas.
O aluno deixaria de se sentir um “estranho no ninho”, com saberes
abstratos, e passaria a dialogar, também, com os saberes acumulados
pela vivência do dia-a-dia.
Os saberes do nosso “sábio” – aprendido na escola – e a sabedoria
do balseiro – aprendida na vida – certamente gerarão um saber com
sabor: a sapiência.
Era certamente ao tipo de conhecimento como “saber” que perten-
ciam as coisas mencionadas ao balseiro pelo sábio da nossa história.
Mas, caro aluno, será que todos podemos ser sábios nesse sentido?
Será que nossa vida não depende também de saberes menos objetivos,
saberes que dependem de nossa subjetividade, de nosso “sentir” o
mundo? Uma observação mais atenta demonstra que dependemos
muito de um saber do tipo “comum” ou “vulgar”, que aprendemos no
que já denominamos “escola da vida”. Foi esse saber que salvou nosso
balseiro da morte certa.
Dada a sua complexidade, a questão dos saberes tem sido objeto
inclusive de classifi cações. SCHELER, por exemplo, fala de: “saber técnico”,
aquele que é motivado pela necessidade; “saber culto”, suscitado pela
curiosidade; e “saber de salvação”, um tipo de saber que tem vinculação
com a motivação religiosa.
Outro tipo de classifi cação é feito segundo a natureza do saber.
Assim teríamos o já mencionado “saber comum ou vulgar”, o “saber
científi co” e o “saber fi losófi co”.
Desde a Grécia Antiga havia uma preocupação em distinguir saber
de sabedoria. Esta última já era considerada uma espécie de inteligência
prática, uma arte capaz de permitir o discernimento e a habilidade
necessários para agir e resolver problemas, uma forma de pensamento
ou de ação vinculada à capacidade de julgar.
MA X SC H E L E R, F I L Ó S O F O A L E M Ã O
(1874-1928)
Além de estudos sobre valores e sobre o Ho-
mem, propondo um campo de estudos
fi losófi cos que veio a denominar-se “Antro-
pologia Filosófi ca”, investiga a questão dos tipos de saber, em seus
trabalhos de Sociologia da Cultura.
aula16pb.indd 43 6/29/2004, 1:17:41 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria
CEDERJ44
Nesse sentido, sabedoria vincula-se menos a uma capacidade de saber
das coisas do mundo, e de buscar uma “verdade” científi ca, do que se
relaciona com a capacidade de agir com prudência, moderação, utilizando
a experiência e a maturidade.
Simplifi cando, talvez pudéssemos afi rmar que uma coisa é ser sábio
para, por exemplo, conhecer o que é a justiça, com sua leis e códigos;
outra é ter sabedoria para exercer de fato a justiça.
Há um exemplo terrível que pode nos ajudar a pensar mais um
pouco sobre essa distinção que é o tema de nossa aula. Trata-se do
episódio ocorrido ao fi nal da Segunda Guerra Mundial, em que foram
lançadas bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e
Nagasaki. Não há dúvida de que muito saber foi desenvolvido até que
aqueles artefatos fossem aperfeiçoados. Porém, podemos indagar: houve
sabedoria na utilização dessa capacidade científi ca e técnica?
Outro exemplo: a Ciência já está quase atingindo o ponto de
saber como clonar seres humanos. Mas, será preciso muita sabedoria,
muita capacidade de julgar corretamente para utilizar essas inegáveis
conquistas do saber humano em benefício da humanidade.
Nenhum de nós tem dúvida de que vivemos hoje num mundo em
que a racionalidade impera, isto é, valem mais do que quaisquer outros
os saberes fundados na Razão. A Ciência é o saber predominante; ser
sábio é, pois, fundamental, nesse sentido de dominar um saber que
explica tudo, que permite fazer coisas, especialmente construir artefatos
que dão conforto e comodidade à nossa vida. Quando adoecemos, por
exemplo, geralmente buscamos a ciência sob a forma da Medicina que,
inegavelmente, nos traz alívio ou mesmo cura nossas doenças.
Mas será que isso é simples assim, caro aluno? Será que na maioria
das vezes não recorremos também à sabedoria contida nos remédios
caseiros, e eles nos trazem alívio? Por que será que isso acontece? A
resposta puramente científi ca, fundada naquele saber experimental e
de racionalidade em que se funda a ciência paradigmática de nosso
tempo, será certamente de que isso “tem apenas valor psicológico”. Será
realmente isso, ou será que falta realmente sabedoria em nossa vida?
Entender a origem do signifi cado das palavras, o que se denomina
“etimologia”, nos ajuda muito. Se fi zermos isso com a palavra “saber”,
veremos que tem a mesma raiz do termo “sabor”, como já mencionamos
antes nesta aula.
aula16pb.indd 44 6/29/2004, 1:17:42 PM
CEDERJ 45
AU
LA 1
6 M
ÓD
ULO
3
Isso provavelmente se deve ao fato de que os homens, desde épocas
remotas, perceberam que nosso contato com o mundo é um contato
integral: aprendemos sobre as coisas não somente entendendo-as com
a utilização de nosso intelecto, de nossa razão; aprendemos com todo
o nosso ser; aprendemos com a mente e igualmente com o corpo; com
a razão e com a emoção. Desse modo, é fácil perceber que aquele
conhecimento intelectual, de que falava o sábio de nossa história, não
dá conta de tudo; traz-nos saber, que é indispensável, mas não nos
garante a sabedoria, inclusive para a melhor utilização do saber, como
fi cou demonstrado nos exemplos que demos acima.
A Ciência é, portanto, um saber muito mais limitado do que
pen samos. Numa analogia com a culinária, o educador Rubem Alves
afi rma:
A ciência, à semelhança das vacas, tem um estômago especializado
que só é capaz de digerir um tipo de comida. Se eu oferecer à ciência
uma comida não-apropriada ela a recusará e dirá: ‘Não é comida’.
Ou, na linguagem que lhe é própria: ‘Isso não é científi co’. Que é a
mesma coisa. Quando se diz: ‘Isso não é científi co’ está-se dizendo
que aquela comida não pode ser digerida pelo estômago da ciência
(ALVES, 1999, p. 90).
Edgar Morin, socioantropólogo francês, também pode nos ajudar
nesse esforço para entender a distinção entre saber e sabedoria. Esse
autor nos diz que o homem ocidental tem sido defi nido em termos de
sua razão, ou seja, ele é o homo sapiens. Morin afi rma que, no entanto,
é preciso considerar que somos, em verdade, o homo sapiens-demens,
isto é, somos também “demência”, quer dizer, uma dimensão mais ampla
que escapa à racionalidade. Diz Morin:
Se se define homo unicamente como sapiens, oculta-se dele a
afetividade, disjuntando-a da razão inteligente. Quando retroagimos
para aquém da humanidade, surpreendemo-nos pelo fato de que o
desenvolvimento da inteligência entre os mamíferos (capacidade
estratégica de conhecimento e ação) encontra-se estreitamente
correlacionado com o desenvolvimento da afetividade (1998, p. 52).
aula16pb.indd 45 6/29/2004, 1:17:42 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria
CEDERJ46
Vemos, pois, que nossa relação com o mundo, com as coisas e
os outros seres humanos exige de nós a consideração de toda a nossa
potencialidade. Em outra passagem, Morin afi rma:
Assim, na copulação mecânica entre sapiens e demens tem-se
criatividade, invenção, imaginação… mas também criminalidade
e maldade (ibid., p. 54).
Você não acha, caro aluno, que isso fala muito de perto a nós,
professores? No dia-a-dia da sala de aula, desejamos que nossos alunos
apreendam o saber, mas que também desenvolvam sabedoria, isto é,
criatividade, capacidade inventiva para resolver problemas, muitos dos
quais, já vimos, não vão poder ser solucionados apenas com a ajuda do
saber, ou seja, com o lado razão de nosso aluno.
Para que isso ocorra, é necessário que o seu olhar recaia sobre o
horizonte da vida, que é similar a este horizonte que você pode apreciar da
janela do nosso trem. Uma natureza benfazeja, com árvores centenárias,
pássaros que, voando, dividem conosco esta atmosfera: pequenas fl ores do
campo, singelas, puras, tocáveis pela brisa do vento e pelo beija-fl or que
lhes rouba o néctar; o sol, que aquece e traz nova vida; e o entardecer,
que nos presenteia com um céu róseo.
Apreciar a natureza que está no nosso entorno é uma grande
sabedoria que os homens têm desprezado por causa da labuta do dia-a-
dia. Despertar no seu aluno tal sabedoria é ensinar-lhe sobre a condição
humana, que você já estudou na aula “Homem: Visão Filosófi ca”.
Mas, a condição humana, para ser ensinada, precisará que os saberes
não sejam compartimentalizados, fragmentados em disciplinas díspares.
Para tanto, importa formar homens capazes de organizar seus conhe ci-
mentos, em vez de apenas armazená-los, por uma acumulação de saberes.
Sabemos que é imenso o universo do conhecimento, mas sabemos
também que esse universo só tem sentido se for signifi cativo para o aluno,
isto é, se fi zer sentido em sua vida.
O professor de uma disciplina – seja Matemática, Física, Biologia
ou qualquer outra – precisa ter em mente que a cabeça do seu aluno
não é formada por silos que guardam saberes, depósitos dos quais, na
medida da necessidade, o aluno iria abrindo cada uma das torneirinhas
e recolhendo o saber ali acumulado. Concordar com isso seria uma
atitude reducionista por parte do professor.
aula16pb.indd 46 6/29/2004, 1:17:42 PM
CEDERJ 47
AU
LA 1
6 M
ÓD
ULO
3
WE R N E R K. HE I S E N B E R G
(1901-1976)
Cientista que lançou as bases da
Teoria Quântica, formulou também o famoso Princípio da Incertezas, segundo
o qual, se não se pode determinar com exatidão as condições iniciais de um sistema,
então também não é possível prever
seu comportamento futuro. Porém, é
possível estabelecer a probabilidade de que um fenômeno venha
a ocorrer.http://geocities.yahoo.com.br/saladefi sica9/
biografi as/heisenberg.htm
AL B E R T E I N S T E I N
(1879-1955)
foi um dos mais importantes cientistas
de nosso tempo, aquele que formulou a Teoria
da Relatividade. Ele também merece uma
pesquisa feita por você.
Para tal visão, caro aluno, importa ministrar suas aulas numa
dimensão transdisciplinar, que abarque a Ciência e as instâncias sociais,
a estética e a política.
Não queremos, a partir destas aulas – como companheiro em
nossa viagem pela “Terra dos Fundamentos” fazer de você um super-
homem ou um superprofessor, mas sim alguém comprometido com a
transformação do homem, no planeta, na medida em que você desloca
a sua missão do campo exclusivo da sua área de conhecimento, o seu
domínio cognitivo para os demais domínios.
Você não deixará de fazer valer o seu conhecimento, mas estará
sempre articulando esse saber com outros saberes; buscará a interação
entre duas ou mais disciplinas, podendo ir da simples comunicação das
idéias até a integração mútua dos conhecimentos, da epistemologia, da
metodologia, dos procedimentos, buscando a unidade do saber.
A ciência clássica – o olhar CARTESIANO –, que considerou a razão
como o mito unifi cador, explica os fatos isoladamente, enquanto a Nova
Ciência, que envolve a Teoria da Relatividade e a mecânica quântica, faz
surgir a realidade indeterminada, uma probabilidade onde tudo pode
acontecer. A probabilidade assume o lugar da certeza.
Por outro lado, Einstein redimensiona esse impasse, ao afi rmar
que a simultaneidade de acontecimentos não pode ser verifi cada, pode
tão somente ser defi nida, relativizando verdades.
Além de EINSTEIN tem-se HEISENBERG, que apresenta o conceito de
probabilidade. A função da probabilidade combina entre si os elementos
objetivos (conseqüência da descrição, independente do observador),
subjetivos (se referem ao nosso conhecimento incompleto do mundo) e
as incertezas (nunca vemos as coisas realmente como são). Veja como a
história que lhe contamos no início desta aula é pertinente!
Diante disso, que, em Filosofia da Ciência, se denomina
“corte epistemológico”, como continuar ministrando conhecimentos
fragmentados, fechados em seus “casulos”?
Observe nesta viagem o mundo rico de saberes que você está
adquirindo rico em cada estação, em cada parada de nosso trem.
Acreditamos, parafraseando Edgar Morin, que estejamos
contribuindo para que você tenha uma cabeça bem-feita, e não apenas
uma cabeça cheia.
O termo “cartesiano” refere-se ao fi lósofo
René Descartes (1596-1650), muito importante para o
pensamento ocidental, para a Ciência
moderna e para a Filosofi a. Entre com
esse nome na Internet e faça uma busca sobre
esse pensador.
aula16pb.indd 47 6/29/2004, 1:17:43 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria
CEDERJ48
Tente fazer isto com os seus alunos: use seu saber, mas use também
a sua sabedoria, e você estará transmitindo saberes que certamente
despertarão a sabedoria.
Isto implica, antes de mais nada, fazer a “religação dos saberes”,
termo cunhado por Morin, que é o grande desafi o do século XXI e que
signifi ca não separar os objetos de seu meio e as disciplinas uma das outras,
uma vez que “a inteligência que só sabe separar espedaça o complexo
do mundo em fragmentos desconjuntados, fraciona o problema (...) e a
inteligência se torna cega e irresponsável” (MORIN, 2002, p. 14).
Quando, mais acima nesta aula, fi zemos uma citação de Morin em
que ele menciona a criminalidade e a maldade – ingredientes infelizmente
muito presentes na realidade brasileira –, isso nos faz refl etir novamente
sobre a distinção já mencionada nesta aula: uma coisa é saber o que
são a justiça ou a bondade, outra é dispor da sabedoria necessária
para vivenciá-las, para aplicá-las efetivamente em nossa vida. Como
professores, além da missão de ajudar os alunos a adquirir saberes, é
necessário termos sensibilidade para levá-los a adquirir sabedoria.
É ainda Morin quem pode nos ajudar a pensar mais um pouco sobre
o tema desta aula, sobretudo quando menciona o papel dos professores.
Embora se refi ra especifi camente aos que lidam com a Filosofi a, cremos
que essas palavras podem se aplicar a qualquer professor, a você mesmo,
na sua relação com seus alunos:
Eu veria o esforço da sabedoria em outro lugar, eu o veria no
esforço da auto-ética. A auto-ética implica inicialmente evitar a
baixeza, evitar ceder às pulsões vingativas e maldosas. Isto supõe
muita autocrítica, auto-exame, aceitação da crítica do outro. Diz
respeito, também, aos universitários e aos professores de fi losofi a,
que não são melhores do que ninguém, mesmo que a despeito dos
manuais de fi losofi a. A auto-ética é, antes de mais nada, uma ética
da compreensão. Devemos compreender que os seres humanos são
seres instáveis, nos quais há a possibilidade do melhor e do pior, uns
possuindo melhores possibilidades do que outros (ibid., p. 61).
aula16pb.indd 48 6/29/2004, 1:17:43 PM
CEDERJ 49
AU
LA 1
6 M
ÓD
ULO
3
Nosso trem põe-se novamente em marcha, já abastecido de lenha
e água; a locomotiva resfolega conduzindo-nos em nossa viagem pela
“Terra dos Fundamentos da Educação”.
Antes, porém, imaginemos uma cena bem ilustrativa do tema
de nossa aula. Olhando pela janela, observamos que há um menino
vendendo deliciosas cocadas feitas com doce-de-leite. Lá está ele, cercado
de passageiros querendo comprar as cocadas. O menino não tem mãos
a medir: embrulha as cocadas, recebe o dinheiro, faz o troco… E tudo
isto muito rápido; os passageiros não podem esperar, pois nosso trem
está prestes a partir.
Apesar da pressa e do assédio dos passageiros, o menino não
erra no troco. Ele, portanto, sabe operar com os números corretamente.
E isto ele aprendeu na “escola da vida”, que lhe possibilitou adquirir
essa sabedoria prática, cujo domínio é ditado pela necessidade.
Não nos surpreenderíamos, caro aluno, se esse menino fosse seu
aluno e não conseguisse ir bem na hora de tentar aprender o saber formal
contido no conhecimento estudado na escola. Ele poderia atrapalhar-
se com a teorização, com os procedimentos e todos os conhecimentos
exigidos pelo saber entendido como o conhecimento formal, sistemático,
que a escola tem para lhe oferecer.
Você, prezado aluno, é aquele mediador de que falamos acima.
Sua tarefa é conduzir o aluno nesse novo campo do saber escolar.
A inteligência ele tem, isso nós vimos ao observá-lo lidar com os números
para fazer o troco e vender as cocadas; a sabedoria, também, para lidar
com a aritmética e ao mesmo tempo relacionar-se adequadamente com
os passageiros que se apresentam com fregueses. Resta, caro aluno,
compatibilizar e articular a sabedoria com o saber. Nisto, você, como
professor terá papel decisivo.
Instalados em nosso vagão, podemos conversar sobre o que vimos
até este momento nesta aula.
Nosso objetivo, não esqueçamos, era estabelecer a distinção
entre saber e sabedoria. E começamos a percebê-la quando vimos que a
dimensão do conhecimento, por si só, não é sufi ciente para enfrentarmos
nossos problemas, como fi cou ilustrado com a história do sábio que
acabou no fundo do rio, talvez afundando mais rapidamente com o peso
de sua erudição. Esta, sem a sabedoria para a escolha e aplicação, vale
menos do que se imagina.
aula16pb.indd 49 6/29/2004, 1:17:43 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber e sabedoria
CEDERJ50
Você já deve ter observado que tem vários alunos que, embora
enfrentando difi culdades de assimilar o conteúdo dado em sala de aula,
dispõem da sabedoria prática. Este é o caso, por exemplo, do aluno que
é reprovado porque não consegue captar os “mistérios” da Aritmética,
mas que jamais se engana no troco quando suas condições de vida o
obrigam a vender frutas ou balas no sinal de trânsito.
A Ciência também foi objeto de nossa refl exão. Vimos de que
maneira ela acaba por se estabelecer como modelo ou paradigma de
saber, mas que sua conversão em ações práticas nem sempre é louvável
e benefi cia a vida humana. Muitas decisões importantes em nossa vida
pessoal, ou relativas ao mundo onde vivemos, ultrapassam a capacidade
da Ciência, isto é, escapam à dimensão do intelecto e exigem nosso
envolvimento integral: de nosso corpo, de nossa mente, de nossos
conhecimentos, mas também de nossa sensibilidade, de nossa emoção.
Fomos alertados também que “saber” e “sabor” têm a mesma
origem ETIMOLÓGICA. Isso pode nos levar a refl etir sobre o papel do
professor e sobre o tipo de saber que está levando o aluno a adquirir.
Que tal, caro aluno, provocar essa discussão em sala de aula, para que
se possa verifi car até que ponto o conhecimento “comum” ou “vulgar” é
rico e pode se constituir numa base pedagógica interessante para que os
alunos ultrapassem esse patamar e ingressem no mundo do conhecimento
científi co? Mas, em verdade, sempre sugerindo que voltem às origens,
às fontes de sabedoria popular onde bebem tais saberes.
Olhando o mundo em que vivemos, talvez não reste dúvida
sobre outro ponto discutido nesta aula: o ser humano é sapiens mas é
igualmente demens. Isso já deve nos levar a pensar, inclusive em nosso
papel como educadores.
Eis algumas sugestões que poderão ajudá-lo a aprofundar o tema
desta aula:
• Na próxima vez em que for trabalhar algum conteúdo programático com seus alunos,
tente estabelecer um paralelo entre esse saber estabelecido e a sabedoria contida em sua
vivência do dia-a-dia.
• Discuta com seus colegas professores a questão dos saberes contidos no material
didático e no próprio discurso do professor, tentando aproximar essa discussão do que
foi tratado nesta aula.
ET I M O L O G I A
Termo derivado do grego etymología, signifi ca a ciência que investiga as origens próximas e remotas das palavras e a sua evolução histórica.
aula16pb.indd 50 6/29/2004, 1:17:44 PM
CEDERJ 51
AU
LA 1
6 M
ÓD
ULO
3
• Tente, com a ajuda de seus alunos, trazer à escola alguém da comunidade que possa relatar experiências de vida a partir das quais se possa observar o que se considere “sabedoria”.
• Monte, com seus alunos, na sala de aula, um painel com fi guras consideradas “sábias”
na história da humanidade. Em seguida, ajude-os a tentar distinguir, entre os retratados,
aqueles que são respeitados por sua sabedoria, nos termos da distinção estabelecida na
presente aula.
Nosso trem segue em sua marcha. A linha férrea atravessa a mata, cruza pontes e avança
por longos campos verdejantes, permitindo-nos contemplar a exuberância da natureza brasileira.
Aproveite a paisagem, caro aluno, enquanto aguarda a próxima etapa da viagem, que vai tratar
de saber popular e saber erudito.
AUTO-AVALIAÇÃO
• Alguma vez, em minha vida, vivenciei uma história semelhante à apresentada
no início desta aula?
• Após o estudo desta aula, compreendi a sutil diferença entre saber e
sabedoria?
• Preciso rever algumas aulas anteriores para dominar melhor o tema em
estudo?
• Percebi que valorizar o saber e a sabedoria requer uma mudança de olhar – um
novo paradigma?
• Necessito de orientação do tutor para melhor compreender esta aula?
aula16pb.indd 51 6/29/2004, 1:17:44 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
17au
la
OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Analisar criticamente a possibilidade de existência de um saber popular.
• Comparar o saber popular com o saber erudito, mostrando a importância de ambos.
Saber popular e saber erudito
Aula_17.indd 53 6/30/2004, 3:09:27 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito
CEDERJ54
INTRODUÇÃO Avistamos uma nova paisagem da janela de nosso trem. Observamos pessoas
cantando e dançando de um modo diferente; é interessante ver como temos
diferenciados costumes, crenças e conhecimento do mundo. Por isso, vamos
continuar discutindo as questões relativas ao saber. Existe um saber popular e
um saber erudito? Como podemos caracterizar esses saberes?
EXISTE UM SABER POPULAR?
A vida aqui só é ruim
Quando não chove no chão
Mas se chover dá de tudo
Tomara que chova logo
Tomara, meu Deus, tomara
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara.
(Venâncio, Corumbá e José Guimarães)
Observe a música de Venâncio, Corumbá e José Guimarães, três
poetas da música popular. Nessa letra simples está contida uma postura
de resistência e de consciência da importância de sua terra natal. Por isso,
precisamos inicialmente perguntar se as camadas populares produzem
um saber, pois geralmente conceitua-se o conhecimento comum como
algo pleno de ambigüidades, contradições, erros e que não apresenta
sistematização tal como os conhecimentos científi co e fi losófi co.
Mas os homens são seres que travam relações sociais dinâmicas
e contraditórias e vivem experiências que precisam ser explicadas. Essas
explicações, muitas vezes, apresentam uma sistematização e uma lógica
distintas do saber erudito, ou seja, existe um modo diferente de entender,
ver e valorar o mundo.
As diferentes classes sociais, de acordo com a sua posição, buscarão
as explicações de suas experiências vividas de forma diferente. Segundo
Lefebvre, “antes de elevar-se ao nível teórico, todo conhecimento começa
pela experiência, pela prática” (LEFEBVRE, 1975, p. 49).
Partimos da idéia de que o saber é construído; por isso, “os
homens pensam tendo como base aquilo que fazem e o modo como
se relacionam nesse fazer; e agem conforme seu modo de pensar e suas
relações sociais” (CARDOSO, 1979, p. 25). Há uma relação entre
prática e saber; por isso, nas camadas populares o saber aparecerá de
Aula_17.indd 54 6/30/2004, 3:10:45 PM
CEDERJ 55
AU
LA 1
7 M
ÓD
ULO
3
forma diferenciada, porque dependerá do tipo de experiência que é vivida
no seu grupo social e com os outros grupos dentro de um determinado
contexto social e histórico. Sendo assim, podemos entender e explicar a
riqueza e a complexidade do saber popular quando conhecemos “o que
aqueles homens fazem, em qual contexto cultural e como se relacionam
nesse fazer” (MUÑOZ, 1983, p. 17).
Precisamos entender que existem visões de mundo diferentes, que
nasceram num contexto cultural diferente do que vivemos e, por isso,
devem ser conhecidas e merecem ser divulgadas e respeitadas. Pare e faça
uma refl exão sobre a letra da música O morro não tem vez.
O morro não tem vez
O morro não tem vez
E o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar.
Morro pede passagem,
Morro quer se mostrar,
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar.
É um, é dois, é três, é cem, é mil a batucada
O morro não tem vez
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar.
(Vinicius de Moraes e Tom Jobim)
Nesta música, Vinicius de Moraes e Tom Jobim mostram que
há uma especifi cidade cultural do morro que precisa ser conhecida
e entendida; aqueles que não pertencem a esse mundo cultural
freqüentemente não compreendem o que é produzido nesse universo.
O saber popular se constrói no interior das lutas diárias das
camadas populares, buscando satisfazer as necessidades vitais e
elementares, como moradia, saúde, educação, trabalho mais bem
remunerado etc. São estabelecidos valores e prioridades, descobrem-se
estratégias, cria-se uma nova lógica para explicar o mundo.
Aula_17.indd 55 6/30/2004, 3:10:47 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito
CEDERJ56
Devemos considerar que os grupos sociais são heterogêneos:
trabalhadores do campo, operários de indústria, domésticas, trabalhadores
do comércio etc. Então questionamos: existe algo que una o saber produzido
por esses diferentes grupos sociais? Ou melhor: existem elementos ou um
núcleo comum que una essas diferentes experiências de vida?
Podemos afi rmar que o elemento comum aos diversos grupos das
camadas populares é a sua situação de classe; a dominação que sofrem
acaba sendo um elo unifi cador das camadas populares. No seu dia-a-dia
elas vivem uma situação de exploração e dominação devido à divisão
social do trabalho.
A fala desse camponês ilustra como, muitas vezes, as camadas
populares têm consciência do elo que as une:
Pensando certo ou errado, eu defi no tudo da seguinte maneira: a
classe pobre é a indústria. Como toda fábrica funciona por seção,
tem a seção dos trabalhadores do campo, a seção dos operários da
indústria e das fábricas, operários das cidades, seção política, seção da
seca, seção do comércio e muitas outras, até que forma um conjunto
de seções que signifi ca uma indústria, tendo na classe pobre tudo o
que for necessário para a engrenagem dessa indústria.
Como tem que existir classe pobre, no nordeste e no sul, para
sustentar a classe rica do país... lá no Sul foi bolado um sistema de
dominação que causa a mesma pobreza que nem aqui no Ceará e
no Nordeste. Só é diferente o sistema por causa da região, mas os
pobres de lá só se obrigam a se sujeitar aos patrões, ricos e políticos
por causa das necessidades. E, assim, a vida da classe pobre é a
mesma, aqui no Ceará, no Nordeste e no Sul, ou em todo o mundo
(NOVA, 1982, pp. 92-93).
Nessa fala constatamos que, no seio das camadas populares,
frutifi ca um saber consciente que analisa, com lógica própria, a situação
de seu grupo social num determinado contexto social e histórico. Esse
saber foi gerado a partir das experiências e lutas da vida diária, da
observação das contradições vividas no dia-a-dia e de discussões
promovidas por grupos de educadores que se propõem a fazer um
trabalho de educação popular.
Os grupos das camadas populares que têm consciência da sua
situação de exploração constroem o seu saber a partir da relação prática/
refl exão. Esse saber “se constitui no interior de lutas muito concretas
e de relações contraditórias” (MUÑOZ, 1983, p. 28) e, por isso, pode
se transformar numa força/poder de transformação da sociedade.
No início da década de 1960, surgem, no Brasil, diversos movimentos de educação popular preocupados com o processo de conscientização das camadas populares. A ênfase é colocada na alfabetização ou na educação de base, buscando difundir e preservar a cultura popular. Destacamos alguns desses grupos: o Movimento de Cultura Popular (MCP), onde Paulo Freire criou seu método de alfabetização; o Centro Popular de Cultura (CPC); o MEB (Movimento de Educação de Base), criado pela CNBB, que adotou o método Paulo Freire. Esses movimentos foram extintos ainda na década de 1960. Na década de 1970, surgiu o Nova, uma organização não- governamental que pesquisa, assessora e avalia educação, principalmente a educação popular.
Aula_17.indd 56 6/30/2004, 3:10:49 PM
CEDERJ 57
AU
LA 1
7 M
ÓD
ULO
3
O Movimento dos Sem-Terra é um exemplo recente de movimento
social que apresenta essa força/poder. No interior desse movimento social
construiu-se um novo corpo de idéias pedagógicas, e atualmente podemos
afi rmar que existe uma PEDAGOGIA DO MOVIMENTO DOS SEM-TERRA.
Esse saber, construído nos movimentos sociais, é regido por lógica
e interesses próprios, buscando caminhos diferentes e estabelecendo um
novo espaço de luta. Esse espaço, freqüentemente, não é reconhecido
pelo poder e saber dominantes. O saber popular, construído a partir das
lutas sociais, apresenta estratégia de resistência ao que lhe é imposto
diariamente através dos meios de comunicação, da escola de visão
tradicional, dos discursos ofi ciais etc.
Mas devemos também perguntar: o saber popular, construído
nesse espaço de lutas sociais, é homogêneo? Esse saber está livre de
contradições? Ou seja, basta ele nascer no seio de um movimento social
para fi car isento de erros?
O SABER POPULAR É HOMOGÊNEO?
Devemos tomar cuidado com uma visão que idealize o saber
construído no interior de lutas sociais, porque podemos cair no erro de
considerar que basta existir um movimento social que necessariamente
haverá a produção de um conhecimento correto, puro, verdadeiro e
homogêneo. Corremos o risco de assumir uma visão “espontaneísta”
que pode considerar que, se um conhecimento nasce do povo, ele tende
a ser autêntico e verdadeiro. Essa seria uma postura ingênua em relação
à construção de um saber.
Na verdade, é necessário criar um espaço para pensar, porque o
cotidiano de exploração das camadas populares difi culta a abertura de um
espaço para a troca e a refl exão. A luta pela sobrevivência, a exploração
do trabalho, a programação ideológica, as normas e disciplinas que são
introjetadas impossibilitam o exercício da refl exão crítica. Esses versos
de cordel, por exemplo, mostram um certo conformismo:
CANÇÃO DO LENÇO
Minha vida é um romance
De tristeza e ilusão
Parece que o destino
Foi que fez traição
Minha esperança é perdida
Quando eu canto a minha vida
Dói em qualquer coração.
(Severino Pelado)
CANÇÃO DO LENÇO
Versos de cordel, de Severino Pelado. In: Brandão, Carlos
Rodrigues. A questão política da educação popular. SP,
Brasiliense, 1987.
ROSELI SALETE CALDART
Escreveu o livro Pedagogia do
Movimento Sem Terra, narrando a construção de um novo saber
pedagógico no interior do Movimento dos
Sem-Terra, que criou as bases de um novo
tipo de educação e de escola.
Aula_17.indd 57 6/30/2004, 3:10:50 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito
CEDERJ58
No entanto, os versos do cordel de Patativa do Assaré refl etem
uma consciência de exploração:
CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ
Você é muito ditoso
Sabe ler e sabe escrever
Pois vá cantando seu gozo
Que eu canto meu padecer
Enquanto a felicidade
Você canta na cidade
Cá no sertão eu enfrento
A fome, a dor, a miséria
Pra ser poeta de vera
Precisa ter sofrimento
Podemos constatar que o saber popular, comumente, traz
ambigüidades. Nele está contido o saber do dominante e o saber do
dominado, porque esse saber nasce no interior de relações contraditórias.
É necessário aprender a ouvir e entender a visão das camadas
populares, abrindo espaços de refl exão sobre as contradições vividas
no cotidiano. Geralmente, no interior de um movimento social há
um ambiente que propicia uma maior refl exão sobre as contradições
que um determinado grupo social vive e, por isso, na trajetória dessa
luta, um grupo social pode vislumbrar melhor a sua situação de classe,
reconhecendo a exploração a que está submetido. Nas lutas sociais as
camadas populares defi nem seus interesses, construindo a sua autonomia
no dizer e no fazer.
Podemos afi rmar que a construção de um novo saber necessita de
um espaço de refl exão que possibilite construir um distanciamento crítico
que possa revelar “os mecanismos que instituem dominantes e dominados
e os confi rmam mutuamente nestas posições” (BRANDÃO, 1987, p. 95).
Ter espaço para refl etir signifi ca a possibilidade de fortalecimento para
decidir e realizar mudanças signifi cativas no cotidiano.
Mas qual seria o papel do saber erudito na construção desse espaço
de refl exão? Os conhecimentos científi co e fi losófi co, que representam
o saber erudito, podem auxiliar na construção do saber popular? Ou
eles são incompatíveis?
CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ,
De Patativa do Assaré, versos encontrados no interior de Goiás, em um papel mimeografado. In: Brandão, Carlos Rodrigues. A questão política da educação popular. SP, Brasiliense, 1987.
Aula_17.indd 58 6/30/2004, 3:10:53 PM
CEDERJ 59
AU
LA 1
7 M
ÓD
ULO
3
O SABER ERUDITO
Freqüentemente o saber erudito é identifi cado com os conheci-
mentos científi co e fi losófi co. Na Aula 8 você conheceu os diferentes
tipos de conhecimento e pôde verifi car o rigor, a sistematização, o
uso do método e outras características dos conhecimentos científi co
e fi losófi co. Tais conhecimentos buscam, através de procedimentos
racionais: a coerência, o rigor das explicações, a verdade sobre uma
determinada realidade.
A Filosofi a questiona a realidade com a intenção de conhecer como
e por que determinados fatos ou fenômenos acontecem, buscando o sentido
profundo de seus diferentes aspectos. A Filosofi a é uma postura diante do
mundo, uma refl exão crítica, sistemática e rigorosa que procura superar o
que é aparente e superfi cial. Ela pode escolher diferentes objetos de estudo:
a realidade social, a política, a religião, a arte, a moral, a educação etc.
A Filosofi a não é um conjunto de conhecimentos prontos e acabados,
mas uma busca constante de conhecimento que duvida e questiona os
diversos aspectos da realidade. A postura fi losófi ca é incompatível com o
DOGMATISMO, ou seja, o fi lósofo não deve recusar o diálogo nem acreditar
que possui a verdade absoluta. O saber fi losófi co pode impulsionar o
homem a romper com a aparência, buscando a compreensão do mundo
que o cerca.
A Ciência procura também, através de procedimentos racionais,
conhecer as relações necessárias e universais entre os fenômenos. Como
já vimos anteriormente, até o século XVII a refl exão fi losófi ca fazia parte
da investigação científi ca, ou seja, Filosofi a e Ciência estavam vinculadas,
produzia-se uma investigação científi ca qualitativa, não experimental e
especulativa. A partir do século XVII, surge uma nova concepção de saber,
um saber ativo que utiliza a Matemática em seus métodos para descobrir
com rigor, precisão e objetividade as causas de um determinado fenômeno.
Essa nova concepção de saber confere muito poder ao homem porque
possibilita não somente encontrar resultados precisos sobre diversos
aspectos da realidade como também pode mudar e interferir nessa
realidade. Com essa nova forma de utilizar a racionalidade, o homem
cria tecnologias que mudam a natureza e as potencialidades humanas.
A racionalidade e a lógica dos conhecimentos fi losófi co e científi co,
pelas possibilidades e poder que apresentam, tornaram-se o parâmetro
RELEIA A AULA 8.
DOGMATISMO
Que não aceita discussão. Adesão
a princípios considerados indiscutíveis.
Aula_17.indd 59 6/30/2004, 3:10:54 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito
CEDERJ60
de saber por excelência, o que fez com que os outros tipos de saber
fossem relegados a segundo plano, principalmente o saber produzido
pela experiência cotidiana das camadas populares.
Precisamos refl etir sobre a possibilidade de intercâmbio entre as
diferentes formas de saber. O saber erudito é incompatível com o saber
popular? Ou pode existir um encontro entre saber erudito e saber popular?
A POSSIBILIDADE DE ENCONTRO ENTRE O SABER POPULAR E O ERUDITO
Sabemos que as formas de produção dos saberes popular e erudito
são distintas, porque o saber popular nasce da experiência cotidiana
acumulada e da refl exão sobre essa experiência, principalmente no
interior dos movimentos sociais, enquanto o saber erudito nasce
nas academias por meio da educação formal, ou seja, a erudição é
imprescindível à construção deste saber. Por isso, ele exige métodos de
investigação rigorosos e uma linguagem não raras vezes sofi sticada e
precisa. Tanto o saber popular quanto o saber erudito buscam conhecer
efetivamente a realidade das diferentes formações sociais e da natureza,
mas com linguagens, métodos e lógicas diferentes.
O maior problema que surge no encontro desses saberes é que
freqüentemente a academia e a escola não reconhecem como válido
e consistente o conhecimento que nasce com a experiência cotidiana,
porque desconhecem a lógica que rege o saber popular. A academia
desconsidera que, no embate das diferentes experiências de vida, pode-se
coletivamente construir uma nova visão de mundo, uma nova linguagem
e uma nova racionalidade.
Tomemos como exemplo os versos do compositor popular PERCIVAL,
na Canção do Carreiro:
Na canga do boi de carro
Tem gente amarrada lá,
Gente não é boi de carro
Pra carro de boi puxar.
Gente tem mente que gira
Mente que pode girar,
Gira a mente do carreiro
A canga pode quebrar
PERCIVAL
Violeiro compositor popular, e líder de trabalhadores rurais em Goiás. Os versos aqui citados estão na página 126 do livro A questão política da educação popular, organizado por Carlos Rodrigues. Brandão.
Aula_17.indd 60 6/30/2004, 3:10:55 PM
CEDERJ 61
AU
LA 1
7 M
ÓD
ULO
3
Com uma linguagem própria e uma racionalidade que se expressa
de modo diferente daquela utilizada na academia, o compositor popular
mostra a questão da dominação do homem e a possibilidade de superação
dessa dominação. Esses versos demonstram que Percival tem consciência
de classe e política, mas se expressa de um modo diferente de uma pessoa
que passou pela erudição e pela escolaridade formal. Ele demonstra que
tem conhecimento dos problemas sociais de sua comunidade e pode,
inclusive, ter tido contato com teorias sociais e políticas que falam da
dominação, mas a sua forma de expressão é peculiar à sua cultura e ao
seu modo de ver a vida.
A mesma consciência pode ser expressa pelo saber erudito dos
versos de AGOSTINHO NETO:
Inexoravelmente, como uma onda que ninguém trava
vencemos,
o povo tomou a direção da barca.
Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam – vamos lutar.
Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
Ou para ganharmos a liberdade
E ter pra nós o que criamos?
Na mesma barca nos encontramos.
Quem há de ser o timoneiro?
Ah as tramas que eles teceram!
Ah as lutas que aí travamos!
Mantivemo-nos fi rmes: no povo
Buscáramos a força e a razão...
Assim como o violeiro e compositor Percival, Agostinho Neto,
intelectual respeitado mundialmente, fala também da libertação da
dominação em seus versos, mas com uma outra linguagem, usando
expressões reconhecidas pela cultura erudita. Observamos que a
lógica dos versos de Agostinho Neto é diversa daquela encontrada nos
versos de Percival, mas ambas são importantes e significativas.
AGOSTINHO NETO
Intelectual que foi líder do Movimento
Popular pela Libertação de Angola
(MPLA). Esse país africano conquistou
sua independência de Portugal em 1975 e o
MPLA foi reconhecido e assumiu o governo
provisório. Agostinho Neto tornou-se
presidente de Angola em 1975 e morreu em
1979. Além de ser uma importante liderança
política, Agostinho Neto é um grande
poeta, e os versos aqui citados são de seu livro
Do povo buscamos a força. Poemas de
Angola.
Aula_17.indd 61 6/30/2004, 3:10:57 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber popular e saber erudito
CEDERJ62
Na verdade, o saber erudito e o saber popular são imprescin-
díveis. Precisamos respeitar as diferenças entre esses saberes e fazê-
los dialogar. Porque acreditamos que as teorias presentes no saber
erudito são fundamentais para a análise dos diferentes contextos
sociais e históricos, assim como as experiências de vida são
necessárias para alimentar nossas análises e até possibilitar questio-
namentos às teorias. Por isso, o encontro entre o saber erudito e
o saber popular possibilitará uma compreensão mais profunda e
fidedigna da realidade social.
Finalizamos solicitando uma refl exão sobre os versos da música
Velha cicatriz:
Velha cicatriz
Nós convidamos essa massa aí
Para ser feliz ao menos uma vez
Para escolher a sua direção
E obedecer somente ao coração
Nós convidamos essa massa aí
Para de uma vez tomar o seu lugar
E nunca mais deixar escapulir
O tempo de sorrir, o tempo de cantar
Nós convidamos essa massa aí
Para esquecer a velha cicatriz
E entoar bem forte esta canção
Soltar de vez a força da paixão
Nós convidamos essa massa aí
Para defender as emoções reais
Plantar a paz, para colher amor
Deixar crescer a fl or dos nossos ideais.
(Ivor Lancellotti e Délcio Carvalho)
R E S U M O
Esta aula discutiu a possibilidade de existência de um saber popular, mostrando
as suas principais características: um saber que nasce da experiência de vida, a
partir das lutas travadas nas relações sociais. Constata-se que o saber popular
não é homogêneo, pois é construído na diversidade. Analisam-se brevemente
as características do saber erudito, que é identifi cado com os conhecimentos
fi losófi co e científi co. Por fi m, discute-se a possibilidade e a necessidade do
encontro e do intercâmbio entre o saber popular e o saber erudito.
Aula_17.indd 62 6/30/2004, 3:11:10 PM
CEDERJ 63
AU
LA 1
7 M
ÓD
ULO
3
EXERCÍCIOS
1. Caracterize o saber popular e o saber erudito. Dê um exemplo para cada
saber.
2. É possível o intercâmbio entre saber popular e saber erudito? Por quê?
3. Apresente um exemplo de um saber popular da sua cidade e mostre a
importância desse saber para a sua região.
AUTO-AVALIAÇÃO
Pense sobre o saber popular produzido na sua região e refl ita sobre as contribuições
que esse saber pode oferecer ao seu mundo cultural. Compare o saber popular
com o saber erudito. Você compreendeu quais as principais características dessas
duas formas de saber? Percebeu como o saber popular e o saber erudito podem
fazer um intercâmbio? Então, pode seguir adiante para discutir outros aspectos
da produção do saber.
Aula_17.indd 63 6/30/2004, 3:11:13 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
18au
la
OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Caracterizar os tipos de saber denominados "instituído" e "instituinte".
• Compreender a importância do saber "instituído" – estabelecido pelo sistema educacional – e do saber "instituinte" – presente na vida cotidiana do aluno.
• Diferenciar as normas, as leis etc. dos fatos diários que em conjunto tecem a cultura.
• Identifi car o papel das instituições e a trama que se estabelece, em seu interior, entre o "instituído"– as
Saber instituído e saber instituinte
Pré-Requisito
• Para a compreensão desta aula recomenda-se o estudo das aulas "Pensando Conhecimento", "Saber e poder" e "Saber e sabedoria".
aula18.indd 65 6/29/2004, 1:30:34 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte
CEDERJ66
INTRODUÇÃO Envergonho-me de pensar quão facilmente capitulamos em face
de insígnias e nomes, de sociedades e instituições mortas (...) Uma
instituição é a sombra alongada de um homem... (EMERSON,
Ensaios, pp. 40 e 47).
Lá vamos nós, caro aluno, em nossa viagem pela Terra dos
Fundamentos da Educação. O dia luminoso descortina uma bonita
paisagem ao se olhar pelas janelas de nosso trem imaginário. Cada
montanha avistada ao longe, as plantações, as estradinhas de terra
cortando a linha férrea, os povoados às margens da ferrovia, cada uma
dessas coisas representa uma informação, algo aprendido, signifi ca,
enfi m, a construção de nosso saber, a efetivação da aprendizagem.
Porém, assim como não basta lançar à paisagem apenas um
olhar indiferente, também não é sufi ciente receber as informações. É
necessário processá-las em nossa mente, de forma crítica e, além disso,
trabalhá-las em interação com as outras pessoas, partilhando com elas
o que se vai aprendendo. Isto signifi ca que a construção do saber é uma
obra coletiva.
Em nossa viagem, essa interação é representada por nossa
conversa no interior do vagão. Uma conversa animada, que às vezes
se transforma até numa discussão acalorada. Desse modo, vamos
relativizando nosso ponto de vista, renunciando às nossas “verdades”
quando somos convencidos por outros de que estamos equivocados.
De repente – imaginemos – nossa conversa é interrompida pelo
agente da estrada de ferro, que entra no vagão fazendo a conferência de
nossos bilhetes de viagem.
Observemos esse funcionário. Uniformizado, cortês, mas consciente
de suas obrigações, recebe os bilhetes, confere-os atentamente e depois se
afasta com um sorriso gentil.
Saiba, prezado aluno, que esse homem é um agente do que está
“instituído”. Em outras palavras: representa a instituição denominada
“Estrada de Ferro tal e qual”.
Uma ferrovia é uma instituição, assim como um banco, um
hospital, uma igreja.
Mas, caro aluno, há instituições de natureza diferente dessas já
mencionadas. O casamento, por exemplo, também é uma instituição, ou
seja, é uma forma de união entre pessoas – a denominada união conjugal.
aula18.indd 66 6/29/2004, 1:30:44 PM
CEDERJ 67
AU
LA 1
8 M
ÓD
ULO
3
E sabemos que esse relacionamento obedece a uma série de determinações
legais, bem como impõe ao casal uma série de procedimentos, de
comportamentos, de obrigações, além de garantir igualmente muitos
direitos. E tudo isso encontra-se estabelecido, isto é, instituído.
As instituições são lugares onde reina, se não um consenso perfeito,
pelo menos um acordo, sufi ciente para levar adiante uma obra coletiva.
Tomando-se em conjunto as visões de Enriquez (1991) e de
Bleger (1991), pode-se perceber que a instituição está agrupada num
conjunto de normas, regras, atividades impregnadas de valores e
funções sociais.
Muitos autores, quando tratam da sociedade, usam imagens
para retratá-la, em sua diversidade e complexidade. Para Karl Marx,
por exemplo, a sociedade, em sua organização e funcionamento, seria
como uma espécie de edifício, com dois níveis: uma infra-estrutura e
uma superestrutura. Como em qualquer construção, o que está acima do
solo depende do que está abaixo, isto é, dos alicerces, que poderíamos
considerar, usando essa imagem, a infra-estrutura do edifício. Na
sociedade, as relações de produção, isto é, as relações mantidas pelos
seres humanos num determinado sistema econômico, fariam parte da
infra-estrutura desse sistema. Segundo esse entendimento, no capitalismo
– sistema econômico criticado por esse autor –, as relações de produção
são determinadas pelas relações estabelecidas entre o capital e o trabalho.
Num dos pólos da relação estaria o capital, ou seja, o dinheiro e os
demais meios empregados para produzir; de outro, estaria a capacidade
produtiva, ou seja, a força de trabalho que o trabalhador dispende para
que a produção seja feita. Em tal sistema, o capitalista compra a força de
trabalho, isto é, paga o salário do trabalhador.
Porém, um edifício não é composto apenas de sua infra-estrutura.
Usando essa imagem para comparar com a sociedade, há, sobre essa
infra-estrutura, uma superestrutura composta por tudo aquilo que
não se pode enquadrar no nível infra-estrutural da produção material.
A cultura, por exemplo, com toda a sua complexidade, estaria situada
tanto no nível da superestrutura como no nível da infra-estrutura, vez
que fornece os conhecimentos, valores, símbolos que orientam e guiam
a vida das pessoas. A Educação é um dos produtos resultantes das
relações superestruturais estabelecidas na sociedade, e que acaba por
gerar novos estilos de vida.
aula18.indd 67 6/29/2004, 1:30:44 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte
CEDERJ68
Uma instituição é um conjunto complexo, que está presente em
ambos os níveis – o infra – e o superestrutural. Assim, pode-se pensar,
por exemplo, nas instituições educativas, como a escola, nesses termos.
Lapassade (1977) não considera a instituição, em seu todo, como
integrante da superestrutura. Afi rma esse autor que o que se encontra
na superestrutura de um sistema é apenas o aspecto institucionalizado
da instituição, como a lei, o código, a regra escrita etc. Porém, existem
coisas não-visíveis que também fazem parte da instituição, a qual se
caracteriza como um encontro desses dois níveis – o visível e o invisível.
Portanto, a instituição apresenta uma signifi cativa abrangência,
no momento em que envolve o Estado, o grupo, as pessoas e, com
elas, as normas, as ideologias, os ritos, os mitos e os valores, isto é,
o instituído e o instituinte – para usar a terminologia proposta por
Castoriadis (1982) –, o patente e o latente.
Vejamos novamente esse ponto importante, caro aluno. O que há
numa escola? Há um ou mais prédios, mobiliário, professores, alunos etc.
Porém, há outras coisas sem as quais uma escola não seria uma escola. Não
há escola sem que, por detrás dela, exista todo um sistema e uma rede de
ensino; estes, por sua vez, são organizados segundo leis, decretos, normas.
Há, ainda, numa escola, todo um conjunto complexo de relações que não se
pode ver ou tocar, toda uma “ambiência”, que caracteriza uma escola.
Ora, tudo isso que forma o que consideramos uma escola está
instituído. Quer dizer, são, como já vimos, coisas existentes ou estabelecidas.
Porém, podemos pensar também numa escola que ainda não é,
mas pode vir a ser, ou seja, uma escola diferente da que temos. Em
outras palavras: podemos imaginar que, com idéias e ações, podemos
mudar o que se encontra instituído. Tudo isso que fi zermos para
transformar a instituição podemos denominar instituinte.
Mantendo a imagem que utilizamos no início desta aula, nosso
personagem que confere os bilhetes representa a Estrada de Ferro;
você, caro professor, representa a sociedade, ou seja, é um agente
dessa mesma sociedade, incumbido da transmissão de conhecimentos e
saberes existentes e da construção de novos saberes; ajuda, pois, tanto
a promover o instituído como a introduzir o instituinte, isto é, o novo,
o transformador. Para tanto, pense bastante no conteúdo desta aula e
veja como as idéias sobre os saberes instituído e instituínte podem ser
considerados no dia-a-dia de suas aulas.
aula18.indd 68 6/29/2004, 1:30:44 PM
CEDERJ 69
AU
LA 1
8 M
ÓD
ULO
3
Nesta aula, o que desejamos, também, como maquinistas que
levam você ao encontro dos fundamentos da Educação, é refl etir sobre
os saberes que você transmite aos seus alunos. Além desses, há os
saberes que não fazem parte deste rol, mas que se encontram presentes
no cotidiano da sua prática docente.
Esses documentos compõem o que podemos denominar
“currículo ofi cial”, elaborado a partir de uma cultura dominante, com
signifi cados geralmente distanciados da vida do aluno, cujo sentido não
é percebido por eles, sendo muitas vezes estranho à sua realidade.
O fato é que o aluno, diante desta falta de sintonia com a realidade
que ele vivencia, acaba por não apreender determinados conteúdos
instituídos, mas, com freqüência, demonstra ser capaz de captar outros
que encontram lugar na sua experiência de vida.
Olhemos para fora, prezado aluno e companheiro de viagem.
Vejamos como é rica e diversifi cada a paisagem contemplada pela
janela de nosso trem imaginário. Assim também, diversifi cados, são
os saberes; não podemos reduzi-los àqueles estabelecidos, instituídos.
O próprio aluno, ao chegar à escola e no decorrer de seu processo
educativo, é possuidor de saberes. É, portanto, necessário que o
professor, em sua prática diária permita a construção de uma rica,
diversifi cada e bela tessitura de saberes, integrados e complementares
– saberes instituídos e saberes instituintes.
Os saberes instituintes são tecidos através das emoções, das
brincadeiras, das relações com o Outro. Unidos aos saberes instituintes,
podem favorecer o crescimento dos alunos.
Afi nal, como lembra Durkheim (apud MORIN, 1999, p. 47) na
obra A cabeça bem-feita, o objetivo da Educação não é o de transmitir
conhecimentos sempre mais numerosos aos alunos, mas o de criar um
estado interior e profundo, uma espécie de polaridade de espírito que
o oriente em um sentido defi nido, não apenas durante a infância, mas
também por toda a vida. É que se necessita ensinar a viver, e para isso
são precisos não só os conhecimentos, mas também o esforço para
a transformação, no próprio ser mental do aluno, do conhecimento
adquirido em sapiência.
Os alunos trazem dentro de si uma infi nidade de saberes.
Os meios de comunicação fi zeram com que as informações ganhassem
uma nova dimensão, intervindo no trabalho que o professor desenvolve.
aula18.indd 69 6/29/2004, 1:30:45 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte
CEDERJ70
A internet, por exemplo, é um desses novos meios de informação que
está, muitas vezes, confrontando tanto a forma quanto o conteúdo
trabalhados em sala de aula.
Para dar conta de todos esses saberes, é importante que o professor
refl ita sobre a sua prática. Você, como educador, deve preocupar-se
em pensar sobre o seu trabalho como dizendo respeito a saberes que
necessitam tomar por base os múltiplos saberes dos alunos.
Valorizar os saberes que o aluno traz consigo implica exercitar
o que Maffesoli (1984) denomina “ouvir o barulho da relva crescer”,
enxergando o lado “de sombra”, perceptível através de uma “pedagogia
da escuta” (PAULA CARVALHO, 1990). Ouvindo seus alunos, dando
crédito a seus relatos – por mais distanciados dos saberes instituídos que
possam parecer – você abrirá espaço para que a dimensão instituinte
se instaure e, com ela, a possibilidade de invenção, de renovação, de
transformação.
Como sua denominação indica, essa pedagogia da escuta implica,
dentre outros aspectos, ouvir os pequenos saberes que o aluno traz da
sua casa, da sua vivência nas ruas, e em seus grupos de amigos; prestar
atenção e transformar em objeto de estudo e de discussão as letras das
músicas que ele canta; comentar e debater os programas de TV que ele
assiste; indagar, dos que possuem acesso à internet, quais os tipos de
páginas pelas quais eles navegam e o conteúdo delas.
Atuando assim, caro professor, você perceberá que tais saberes
não estão instituídos nos programas e nos currículos das escolas. Por
isso, deverão ser trazidos para a dimensão instituinte e trabalhados em
consonância com alguns princípios fundamentais, como o respeito ao
universo dos alunos, a realidade local e o modo de pensar, sentir e agir
de cada grupo de estudantes.
Agindo desse modo, você, caro aluno, estará levando em conta os
Pilares da Educação, resumidos em quatro princípios gerais resultantes
de um importante e abrangente estudo realizado pela Unesco com
vistas a defi nir o que seja a Educação para o século XXI: aprender a
conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.
aula18.indd 70 6/29/2004, 1:30:45 PM
CEDERJ 71
AU
LA 1
8 M
ÓD
ULO
3
Vale a pena transcrever a síntese desses princípios contida no
documento resultante da pesquisa promovida pela Unesco (DELORS,
2000, pp. 89-102):
“Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral,
sufi cientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em
profundidade um pequeno número de matérias. O que também
signifi ca: aprender a aprender, para benefi ciar-se das oportunidades
oferecidas pela Educação ao longo da vida.
Aprender a fazer, a fi m de adquirir, não somente uma
qualifi cação profi ssional, mas também, de uma maneira mais ampla,
competências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas
situações e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer,
no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que
se oferecem aos jovens e adolescentes, quer espontaneamente,
fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente, graças ao
desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho.
Aprender a viver juntos, desenvolvendo a compreeensão
do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos
comuns e preparar-se para gerir confl itos – no respeito pelos valores
do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua per so -
nalidade e estar à altura de agir com cada vez maior capa cidade
de auto nomia, de discernimento e de respo nsabilidade pessoal.
Para isso, não negligenciar na Educação nenhuma das poten-
cialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido
estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se”.
Você, prezado aluno, que atuará diretamente com os estudantes
do segundo segmento do Ensino Fundamental e com alunos do Ensino
Médio, tem uma tarefa importante e difícil de ser realizada. Trata-se
da busca pela religação entre os saberes. Essa religação deve dar-se não
somente entre os saberes instituídos e os instituintes, mas também no
interior dos saberes instituídos, que são apresentados aos alunos de
forma fragmentada e compartimentalizada. Diferenciar e religar saberes
é, para Morin (2002), a arte de organizar o pensamento. Como fazer
isto? Usando métodos, instrumentos e conceitos capazes de favorecer
a reunião de saberes. Isto signifi ca dizer que a simples transmissão do
saber considerado ofi cial, instituído, deverá estar vinculada aos demais
saberes transmitidos por seus colegas nas outras disciplinas.
aula18.indd 71 6/29/2004, 1:30:46 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte
CEDERJ72
Em suma, segundo Morin (2002) seria:
...favorecer a aptidão natural do espírito humano a
contextualizar e a globalizar, isto é, a relacionar cada informação
e cada conhecimento a seu contexto e conjunto. Trata-se de
fortifi car a aptidão a interrogar e a ligar o saber à dúvida,
de desenvolver a aptidão para integrar o saber particular em sua
própria vida, e não somente a um contexto global, a aptidão
para colocar a si mesmo os problemas fundamentais de sua
própria condição e de seu tempo (2002, p. 21).
Atuando nessa dimensão, você poderá atender aos princípios
estabelecidos pela Unesco que, em linhas gerais, são: formar homens
capazes de organizar seus conhecimentos em vez de armazená-los por
uma acumulação de saberes; ensinar a condição humana; e ensinar a
viver e a refazer uma Escola que forma para a cidadania.
Lá se vai nosso trem imaginário percorrendo a Terra dos
Fundamentos da Educação. Segue em sua marcha, conduzindo-nos
pelos caminhos de novos saberes. A locomotiva lança aos céus sua
fumaça branca que se perde no horizonte. Daqui de nosso vagão,
voltemo-nos para trás, como essa fumaça, e vejamos agora o que esta
aula, como uma etapa da viagem, nos proporcionou.
aula18.indd 72 6/29/2004, 1:30:47 PM
CEDERJ 73
AU
LA 1
8 M
ÓD
ULO
3
R E S U M O
• Vimos que o saber é uma construção, uma obra coletiva, resultado de nossa
interação com os outros.
• Aprendemos que existem saberes instituídos e saberes instituintes. As instituições
puderam ser percebidas como os lugares onde os saberes são dados, estabelecidos,
ordenados, normatizados.
• Pudemos observar que há muitos tipos de instituição, e não necessariamente
apenas as que podemos observar como tal em sua existência concreta, com prédios,
coisas e pessoas. Muitas são de natureza simbólica, como uma escola, por exemplo,
na qual um professor se vê a braços com o que está instituído, e que ele mesmo,
o professor, é um representante da sociedade que institui, como o conferidor de
bilhetes de passagem em nosso trem imaginário representa a ferrovia.
• Vimos, também, que as instituições são complexas, podendo estar situadas em níveis
estruturais ou superestruturais, ou mesmo estarem permeando, isto é, percorrendo e
constituindo esses níveis, indistintamente.
• Este trecho de nossa viagem acentuou para nós a importância de abrirmos espaços
para a dimensão instituinte, representada, em nosso caso, como professores, pela
importância de ouvir o aluno, de abrir espaço para a bagagem que ele traz consigo
obtida na família, entre os amigos, na comunidade.
• A seguir, aprendemos que é possível aproximar os saberes instituintes dos saberes
instituídos existentes na legislação ou nas normas.
Por fi m, fomos apresentados aos Quatro Pilares da Educação, que tentam sintetizar
uma Educação para o novo século, uma forma completa e abrangente, resumida
nas quatro formas de aprender: a conhecer, a fazer, a viver juntos e a fazer.
aula18.indd 73 6/29/2004, 1:30:48 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Saber instituído e saber instituinte
CEDERJ74
EXERCÍCIOS
O que você, professor, poderia fazer, em sala de aula, com seus
alunos, para vivenciar essas idéias e princípios, relacionados com as
dimensões instituída e instituinte? Aqui vão algumas sugestões.
Proponha a seus alunos a montagem de um mural. Os alunos
seriam divididos em dois grupos que pesquisariam e colecionariam
fi guras, notícias, fotografi as etc., tudo o que pudesse representar o saber
instituído e o saber instituinte,tal como apresentados aqui. Em seguida,
depois de uma boa discussão, e ouvidos todos os alunos – com aquele tipo
de escuta de que fala Maffesoli e comentamos nesta aula – seria montado
um mural, tendo, de um lado, o correspondente ao instituído; de outro,
o equivalente ao instituinte.
Evidentemente, caro professor, que essa não será uma tarefa fácil.
Por vezes, vai ser difi cílimo distinguir uma dimensão da outra. Isto será
ótimo; levará os alunos a pensar, e esse esforço contribuirá para tornar
mais clara a visão dos dois diferentes tipos de saberes que foram objeto
de estudo neste nosso trecho da viagem.
Uma atividade interessante também será transformar a citação
de Emerson, que abre esta aula, num tema de discussão centrado na
pergunta: qual a importância do ser humano em face das instituições?
Outra atividade possível seria retomar a aula "Saber e sabedoria"
e observar como os saberes instituídos e instituintes podem auxiliar
na busca de uma melhor Educação, não imposta de cima para baixo,
mas respeitando o universo do aluno, que é dotado de criatividade,
inventividade, curiosidade, espírito de cooperação, e observar como
tudo isso pode realmente favorecer a formação de um cidadão crítico,
pensante, atuante e capaz de transformar a sociedade.
aula18.indd 74 6/29/2004, 1:30:49 PM
Os tipos de poder esua relação com o saber a
ul
a
19
Aula_19.indd 75 6/29/2004, 1:38:43 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber
CEDERJ76
Para esta viagem, que entrará no perigoso território do poder e do saber,
você precisará de apetrechos especiais, como Indiana Jones. Com essa
informação na bagagem, predisponha-se a uma aventura que, com toda
certeza, valerá muito a pena.
Consideramos que MICHEL FOUCAULT é um companheiro
imprescindível nesta jornada, pois foi um dos teóricos que mais se
dedicou ao estudo das relações de poder no campo do conhecimento e
da sociedade.
Podemos estabelecer desde já que, para entender como o poder
funciona, precisamos pensar nos mecanismos (ou dispositivos, como
afi rma Foucault) que foram criados para sua ampla utilização, em
forma de rede, por toda a sociedade e por um longo período de tempo.
Podemos considerar, por exemplo, como o conhecimento médico
através da Psiquiatria pôde estabelecer o que era normalidade e,
portanto, quem tinha direito a viver em sociedade e quem era louco e
deveria viver confi nado em um manicômio. Esse saber médico conferiu
a seus profi ssionais um poder imenso sobre a sociedade e aterrorizou
muitas pessoas, como os artistas que não se encaixavam nos padrões de
normalidade estabelecidos pelo conhecimento psiquiátrico.
Por sua vez, o conhecimento psiquiátrico necessitou de dispositivos
legais para confi nar nos hospícios os cidadãos que, por força da lei
(mecanismos jurídicos criados para fortalecer e legitimar o que a
Medicina estava afi rmando), tiveram seus direitos confi scados pelo
Estado jurídico. Quantas fortunas foram tomadas de seus verdadeiros
donos porque estes foram rotulados como insanos!
Se recuarmos mais ainda na História, antes do
tempo do grande enclausuramento nos hospitais,
veremos a loucura sendo exaltada e podendo
conviver pacifi camente na sociedade e, mais do
que isso, sendo até aplaudida (em espetáculos
destinados ao entretenimento das pessoas
a que se dirigiam) em praças públicas, na
forma de uma companhia de loucos que
encenava suas (também loucas) peças.
INTRODUÇÃO
MI C H E L FO U C A U L T
Filósofo francês, lecionou no Collège de France de janeiro de 1971 até sua morte, em junho de 1984. O título de sua cátedra era: História dos sistemas de pensamento. É autor de diversos livros, frutos de seu trabalho como pesquisador no campo da genealogia das relações saber/poder. Para a construção deste texto foram consultados os livros: Microfísica do Poder; Vigiar e Punir e História da Loucura.
Aula_19.indd 76 6/29/2004, 1:39:31 PM
CEDERJ 77
AU
LA 1
9 M
ÓD
ULO
3
Foucault comenta:
“A loucura é no essencial experimentada em
estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do
cenário e da linguagem comuns, é para cada
um uma experiência cotidiana que se procura
mais exaltar do que dominar. Há na França, no
começo do século XVII, loucos célebres com
os quais o público culto, gosta de se divertir;
alguns como Bluet d′ Arbère escrevem livros
que são publicados e lidos como obras de lou-
cura. Até cerca de 1650, a cultura ocidental foi
estranhamente hospitaleira a essas formas de
experiência” (FOUCAULT, 1994, p. 78).
Nos meados do século XVII, brusca mudança: o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da
exclusão. Criam-se (e isso em toda a Europa) estabelecimentos para internação que não são
simplesmente destinados a receber loucos, mas toda uma série de indivíduos bastante diferentes
uns dos outros, pelo menos segundo nossos critérios de percepção. Encerram-se os inválidos
pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de
doenças venéreas e libertinos de toda espécie... Em resumo, todos aqueles que, em relação à
ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de “altercação”.
O internamento toma então uma nova signifi cação: torna-se medida de caráter médico.
Pinel na França, Tuke na Inglaterra e, na Alemanha, Wagnitz e Riel ligaram seus nomes
a essa reforma. E não há história da Psiquiatria e da Medicina quem não descubra nestes
personagens os símbolos de um duplo advento: o de um humanismo e o de uma Ciência
fi nalmente positiva.
Pinel, Tuke, seus contemporâneos e sucessores não romperam com as antigas práticas do
internamento; pelo contrário, eles as estreitaram em torno do louco. Foi reconstituído, em
torno da loucura, todo um encadeamento moral e o asilo virou uma instância perpétua de
julgamento.
Foucault analisa o nascimento da Ciência psicológica a partir da loucura.
“Dir-se-á que todo saber está ligado a formas essenciais de crueldade. Mas, sem dúvida, esta
relação é no seu caso singularmente importante. Porque foi ela inicialmente que tornou pos-
sível uma análise psicológica da loucura; mas, sobretudo, porque foi ela que secretamente
fundou a possibilidade de toda a Psicologia. Não se deve esquecer que a Psicologia “obje-
tiva”, “positiva” ou “científi ca” encontrou sua origem histórica e seu fundamento numa
experiência patológica. Foi uma análise dos desdobramentos que ocasionou uma Psicologia
da Personalidade; uma análise dos automatismos da consciência que fundou uma Psicologia
da Consciência; uma Psicologia dos Défi cits que desencadeou uma Psicologia da Inteligência.
Ou seja, o homem só se tornou uma espécie psicologizável, a partir do momento em que
sua relação com a loucura permitiu uma psicologia, quer dizer a partir do momento que sua
relação com a loucura foi defi nida pela dimensão exterior da exclusão e do castigo, e pela
dimensão interior da hipoteca moral e da culpa” (FOUCAULT, 1994, p. 84).
!
Aula_19.indd 77 6/29/2004, 1:39:50 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber
CEDERJ78
Portanto, um saber como o da Psiquiatria liga-se a uma série de
instituições, de exigências econômicas imediatas, de urgências políticas e
de regulamentações sociais. A rede se formou, tecida com pontos fi rmes;
depois de pronta, não dá mais para saber onde está o ponto inicial.
A recém-nascida Psicologia também vai se alimentar desse
saber psiquiátrico para estabelecer um discurso científi co acerca do
desenvolvimento humano e da aprendizagem, postulando regras
de normalidade para cada etapa da existência. Nasce a criança na
Ciência psicológica. Não uma criança qualquer, mas um belo exemplar
científi co gerado em seus laboratórios experimentais, contendo tempos
cronometrados para sua maturação. Qualquer transgressão a esses tempos
estipulados pela Ciência evolucionista é considerada uma anormalidade.
Numa Ciência jovem como a Psicologia, que precisou se submeter
às regras metodológicas de outras Ciências mais antigas, principalmente
aquelas ditadas pelas ciências exatas, temos um certo tipo de discurso
cujas lentas transformações (50 a 70 anos) romperam não somente com
as proposições do senso comum (daquilo que o povo conhecia há anos
sobre a criação de fi lhos) que até então puderam ser formuladas, porém
mais profundamente com as maneiras de falar e ver e com toda uma série
de práticas que serviam de suporte à Pedagogia cotidiana.
Todo um conjunto de informações científi cas começou a circular
na sociedade mais ampla, e não somente nos cursos de formação de
professores ou de psicólogos, determinando qual era a nova regra para
se criar crianças e adolescentes emocionalmente saudáveis.
Nessa época nascem também, com muito vigor, os testes
psicológicos que revolucionam o mundo escolar e social ao determinar,
por exemplo, os diferentes níveis de capacidade intelectual das pessoas.
É o famoso QI (quoefi ciente intelectual), uma descoberta científi ca que
abala o mundo, estabelecendo uma nova geração de seres humanos que
passa agora a ser defi nida em categorias distintas através dos escores
obtidos em testes. Assim, o discurso psicológico da medição cria novos
modelos de homem: os superdotados, os medianamente dotados (aqueles
que possuem uma inteligência média ou normal) e os subdotados.
Aula_19.indd 78 6/29/2004, 1:39:53 PM
CEDERJ 79
AU
LA 1
9 M
ÓD
ULO
3
Na escola, esse modelo quantitativo da inteligência humana promove
o surgimento de classes especiais, que são constituídas para atender os
subdotados, cujo destino social já está, de antemão, prescrito através dos
pontos obtidos no teste. Todo um conjunto de normas pedagógicas passa a
regulamentar as aprendizagens que esses alunos especiais poderão alcançar
e como poderão fazê-lo. Estipula-se que seu desenvolvimento mental não
ultrapassará determinada etapa cognitiva – a do pensamento concreto – e
é assim que esses alunos só poderão tornar-se trabalhadores manuais, já
que lhes foi negada cientifi camente a intelectualidade.
O discurso psicológico serve de base teórica para que se estabeleçam
políticas educacionais que legitimarão currículos diferenciados para
alunos distintos. Em outras palavras, a medição promovida pela
Psicologia serve de combustível científi co para o fortalecimento dos
dispositivos de exclusão que passam a agir no interior das escolas.
Um poder e tanto, porque legitimado pelo saber científi co e,
por isso mesmo, difícil de ser combatido. E os testes continuam a
surgir e a medir o homem de todas as formas possíveis: sua capacidade
perceptiva, sua atenção, sua memória, suas emoções, seus sentimentos,
suas aspirações, suas expectativas etc.
Coleções variadas de testes são montadas com o nome de baterias,
um verdadeiro arsenal com poder de fogo capaz de abalar a estrutura psi-
cológica de qualquer cidadão do mundo. Criam uma nova ordem: a seleção.
A partir de agora, não mais se contrata nenhum trabalhador, nem para
nenhum tipo de trabalho, que não tenha sido testado. Indústrias de grande
e pequeno porte, no mundo inteiro, globalizado pelo discurso científi co,
adotam baterias de testes para selecionar seus futuros funcionários. Uma
nova prática social que certamente permite o surgimento de um novo
profi ssional: o de Recursos Humanos.
Na escola, sente-se a necessidade de se criar um novo serviço:
Orientação Educacional. A partir daí, assistimos ao nascimento dos
especialistas em Educação, pessoas dotadas de um conhecimento tão
especial que vão poder prever os destinos dos alunos através do oráculo
dos testes, agora também vocacionais. É isso mesmo! As baterias de testes
se sofi sticaram tanto que passam a determinar as escolhas profi ssionais
de toda uma população escolarizada. Vira-se o homem pelo avesso,
expondo as suas entranhas psicológicas para poder localizar com precisão
a sua vocação.
Aula_19.indd 79 6/29/2004, 1:39:54 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber
CEDERJ80
No ano de 1904, o Ministério francês de Educação Pública constituiu uma comissão para elaborar
um projeto de educação especial. Binet, que fez parte dessa comissão, recebeu o encargo de
elaborar um instrumento que permitisse distinguir, com grau mínimo de erro possível, os atrasos
escolares atribuídos a défi cits intelectuais que pudessem ser devidos a fatores ambientais ou a uma
escolarização prévia defi ciente. No ano seguinte, em um artigo publicado no Anée Psychologique,
com o título de "Méthodes nouvelles pour le diagnostique du niveau intellectuel des anormaux",
Binet e Simon dão a conhecer uma primeira versão do instrumento elaborado.
O teste de Binet-Simon concebe o desenvolvimento intelectual como a aquisição progressiva
de mecanismos intelectuais básicos, de tal maneira que a criança com atraso é aquela que não
adquiriu os mecanismos intelectuais que correspondem à sua idade cronológica. Comparando a
idade mental com a idade cronológica, a escala métrica permite quantifi car os anos de avanço
ou de atraso no desenvolvimento intelectual. Em 1912, William Stem enriquece o teste de Binet-
Simon com a introdução do Quociente Intelectual (QI), que é o resultado da divisão da idade
mental pela idade real e da multiplicação do resultado por 100; dessa forma, proporciona uma
medida única de inteligência (SALVADOR, 2000, p. 28).
A elaboração de provas psicométricas não se limita ao âmbito do desenvolvimento intelectual,
abrangendo, também, o campo da personalidade e do rendimento escolar. Assim, por exem-
plo, Thorndike constrói provas para medir o rendimento escolar em Matemática e na Escrita;
e Claparède, em diversas áreas escolares. Em resumo, até 1920 uma parte considerável dos
trabalhos e das pesquisas em Psicologia da Educação direciona-se à construção de instrumentos
de medida objetiva das capacidades intelectuais, dos traços de personalidade e do rendimento
escolar (SALVADOR, 2000, p. 28).
A refl exão crítica sobre a utilidade real dos conhecimentos psicológicos para melhorar efetiva-
mente a educação tem sido uma das armas fundamentais para o desenvolvimento da Psicologia
da Educação e da Psicologia do Ensino, como demonstra o seguinte acontecimento, relatado por
Charles H. Judd, um dos primeiros e mais infl uentes psicólogos educativos dos EUA:
“Lembro-me de uma vez em que fazia uma conferência (...) para um grupo de professoras da
cidade de Nova York, que queriam incrementar seus conhecimentos escutando-me, quando um
de meus ouvintes, de cabelos brancos, interrompe-me com esta pergunta: Professor explica-nos
como podemos usar este principio para melhorar o nosso ensino para a meninada. Lembro-me
dessa pergunta, à qual não tive uma resposta. Decidi, então, que deveria dedicar-me a aprender
mais sobre a escola” (...)
Em coerência com essa proposição, os trabalhos e as pesquisas de Judd passaram a girar em torno de
duas grandes temáticas que, de acordo com o seu parecer, são decisivas para melhorar a educação
de sua época (década de 20): o currículo e a organização escolar (SALVADOR, 2000, p. 31).
Enquanto isso, na Europa, a Psicologia da Educação, seguindo Alfred Binet e Edouard Claparède,
identifi ca-se praticamente com a Psicologia do Desenvolvimento Infantil e continua direcionando
os movimentos de renovação pedagógica da “escola nova” ou “escola ativa”. Dessa maneira,
e contrariamente ao que ocorreu nos EUA e no mundo anglo-saxônico, onde as fi guras mais
destacadas da Psicologia da Educação são quase sempre fi guras destacadas da Psicologia da
Aprendizagem, na Europa e sobretudo na França e nos países da sua área de infl uência (inclu-
indo o Brasil), os autores mais destacados em Psicologia da Educação são, em geral, fi guras
relevantes da Psicologia Infantil, da Psicologia do Desenvolvimento ou da Psicologia Genética
(SALVADOR, 2000, p. 32).
!
Aula_19.indd 80 6/29/2004, 1:39:54 PM
CEDERJ 81
AU
LA 1
9 M
ÓD
ULO
3
Obviamente os meios de comunicação de massa se agitam com
as descobertas científi cas contidas nos testes psicológicos, e toda uma
nova espécie mais popular de testagem começa a surgir nas revistas
compradas nos jornaleiros. Testa-se de tudo, até a capacidade de ser
sensual, sexy, glamourosa, amiga etc. E eles continuam a exercer um
imenso poder de fascínio entre as pessoas de diferentes classes sociais,
exatamente porque é um poder, como nos diz Foucault, que curiosamente
todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fi zesse
outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? Pois
é, a idéia básica de Foucault é mostrar que as relações de poder não se
passam fundamentalmente nem ao nível do direito, nem da violência;
são basicamente contratuais, nem unicamente repressivas. Nosso
companheiro de viagem, particularmente em seus livros Vigiar e Punir
e A Vontade de Saber, está alegremente querendo demonstrar que é falso
defi nir o poder como algo que diz não, que impõe limites, que castiga.
Foucault opõe ou acrescenta a uma concepção negativa,
que identifi ca o poder com o Estado e o considera
essencialmente como aparelho repressivo (no
sentido em que seu modo básico de intervenção
sobre os cidadãos se daria em forma de
violência, coerção, opressão), uma concepção
positiva de poder que pretende dissociar os
termos dominação e repressão.
O que suas análises querem nos mostrar é
que, por exemplo, a dominação capitalista não
conseguiria se manter exclusivamente baseada na
repressão. É preciso levar em consideração, também,
a força criadora dos micropoderes junto com seus saberes que estão
continuamente sendo gestados como formas de resistência e de luta. Por
essa razão é que novos saberes podem se contrapor às teorias científi cas
instituídas como verdades absolutas, possibilitando novos caminhos e
outras práticas. Esse foi o caso da Psiquiatria: um movimento chamado
AntiPsiquiatria pode alterar o rumo dos acontecimentos científi cos
criando um saber diferente junto com um tratamento mais respeitoso para
os ditos loucos. Uma outra forma de compreender a loucura foi instituída.
Aula_19.indd 81 6/29/2004, 1:39:56 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber
CEDERJ82
O mesmo aconteceu dentro da Psicologia: saberes discordantes em
relação à Psicometria se insurgiram contra o excesso de quantifi cação
do homem e uma nova maneira de compreender os processos psicológicos
foi tecida, tornando-se não só uma prática de avaliação positiva desses
processos como uma nova epistemologia.
Assim é que o aspecto negativo do poder – sua força destrutiva – não
é tudo e talvez não seja o fundamental: ao menos é preciso refl etir sobre
o seu lado positivo, isto é, produtivo, transformador. É preciso parar de
sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele exclui, ele
reprime, ele recalca, ele censura, ele abstrai, ele mascara, ele esconde. Não
porque o poder ignore essas ações e não as execute, mas, fundamentalmente,
porque o poder também produz: ele produz o real; produz domínios de
objetos e rituais de verdade. O poder possui uma efi cácia produtiva, uma
riqueza estratégica, uma positividade.
Não se explica inteiramente o poder quando se procura
or sua função repressiva. O que lhe
sicamente não é expulsar os homens
da social, impedir o exercício de suas
dades, e sim gerir a vida dos homens,
rolá-los em suas ações, para que seja
ível e viável utilizá-los ao máximo,
veitando suas potencialidades e
ando um sistema de aperfeiçoamento
ual e contínuo de suas capacidades. Um
vo ao mesmo tempo econômico, político
gico: aumento do efeito do seu trabalho,
os homens força de trabalho, dando-lhes
uma qualifi cação e uma utilidade econômica máxima.
Assim, o fundamental nesta viagem analítica é chegar à estação
onde saber e poder se relacionam e se implicam mutuamente: não há
relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também,
reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de
exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber.
Aula_19.indd 82 6/29/2004, 1:40:00 PM
CEDERJ 83
AU
LA 1
9 M
ÓD
ULO
3
É assim que o hospital não é apenas local de cura, uma espécie
de máquina de curar, mas também instrumento de produção, acúmulo
e transmissão do saber. Do mesmo modo que a escola não é só o lugar
para confi nar crianças e adolescentes por um longo período de tempo,
mas um território social onde a grande aventura do conhecimento pode
ter um início e uma vida fecunda.
Em contrapartida, como todo saber assegura o exercício de um
poder, cada vez mais se impõe a necessidade do poder de se tornar
competente. Uma competência que é construída à medida que vamos nos
apoderando dos instrumentos do saber e podemos analisá-los, criticá-
los, usá-los ou não. Já que esses saberes se tornaram nossos, podemos
decidir o uso que faremos deles. Assim como podemos decidir o uso de
qualquer objeto ou do dinheiro de que dispomos. É aqui que reside uma
força poderosa. Como diz Caetano Veloso, no trecho da música Sampa:
“A força da grana que ergue e destrói coisas belas...”
A relação entre saber e poder permeia toda a História do Pensamento e, talvez de forma mais evidente,
na pretensão de Platão de colocar o homem mais sábio na direção da República. Nos tempos de hoje, os
tecnocratas reatualizaram essa versão – o que permanece é que a proposta é sempre proveitosa a quem
propõe, é claro!
Em contrapartida, os “governados” também percebem essa relação (e sua falácia). O diálogo entre Alice e
Humpty Dumpty (Alice no País das Maravilhas) é bastante signifi cativo para ilustrar a relação saber/poder:
“Quando uso uma palavra – disse Humpty Dumpty em tom de escarninho – ela signifi ca exatamente aquilo
que eu quero que signifi que... nem mais nem menos.
– A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
– A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso”.
!
Aula_19.indd 83 6/29/2004, 1:40:05 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Os tipos de poder e sua relação com o saber
CEDERJ84
AUTO-AVALIAÇÃO
Por considerar que toda auto-avaliação é uma forma de refl etirmos criticamente
sobre nossas ações no mundo, incluindo nossos relacionamentos com os outros,
acredito ser pertinente propor que você reveja:
• Quais os critérios que você utiliza em sala de aula para avaliar o rendimento
escolar de seus alunos.
• Como você percebe que seus alunos realizaram aprendizagens signifi cativas.
• Quais estilos de ensino favorecem aprendizagens duradouras e quais estilos
promovem uma memorização mecânica.
• O que pode ser feito para transformar desinteresse pelos conteúdos em prazer
de aprender.
• Como você pode se relacionar com seus alunos sem recorrer ao uso do poder
docente de punir e reprovar.
Vimos como a Psicologia deve parte de sua herança como Ciência à Psiquiatria
e à loucura. Nessa gestação científi ca várias manifestações do Poder estiveram
atuantes na sociedade e dentro do campo das Ciências. A mensuração do homem
foi uma exigência para que a Psicologia pudesse ser considerada uma Ciência de
verdade. Nascem dessa exigência: a Psicometria e os mais variados testes, dentre
eles o famoso Quoefi ciente intelectual. Os testes entram na escola e as avaliações
educacionais passam a incorporá-los na seleção de alunos e na constituição das
turmas. A Psicologia da Educação ganha status e seu prestígio aumenta como
a única responsável por um diagnóstico do rendimento escolar do alunado.
Hoje, a Psicologia da Educação, sem negar seu passado, busca outros caminhos
e formas para garantir a aprendizagem signifi cativa dos alunos e colaborar com
os professores na criação de estilos de ensino adequados à clientela atendida
pelas escolas.
R E S U M O
Aula_19.indd 84 6/29/2004, 1:40:05 PM
Escola, saber e poder
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Compreender como escola, saber e poder se relacionam.
• Perceber as relações entre saber e poder na produção do fracasso escolar.
• Conhecer abordagens teóricas sobre a relação entre escola, saber e poder.
OBJETIVOS
au
la
20
Aula_20.indd 85 6/29/2004, 1:47:39 PM
C E D E R J86
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as
massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente,
claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem.
Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse
discurso e esse saber (FOUCAULT, 2001, p. 71).
Seguindo nossa metáfora do trem, convido todos os
passageiros deste curso a uma viagem inadiável. Ao mesmo
tempo sombria e libertadora. Sombria porque nos fará ver
da janela do trem que a escola ainda é um sistema de poder
que barra a expressão do saber dos alunos. Libertadora
porque nos fará criar e modifi car essa educação.
Durante a viagem é bom a gente ir se perguntando: Por
que a escola tem tornado a aquisição do saber escolar
um mito, particularmente para um determinado grupo social, as camadas
de baixa renda? Por que os mais altos índices de exclusão escolar atingem as
crianças populares? Elas são menos capazes do que as crianças pertencentes
a outros meios socioculturais mais abastados? Como se relacionam escola,
saber e poder?
DEPOIMENTO DE UM PAI
Há o depoimento indignado de um pai que revela de maneira clara
os efeitos da relação que se estabelece entre escola, saber e poder. A força
da sua indignação dá o tom desta viagem que nos levará a responder às
questões anteriormente colocadas.
“Eu sei lá, eu tenho tanto prazer de ver fi lho estudar, eu acho tão bonito uma criança chegar tudo assim na escola, cada um escrevendo... De tanto achar bonito que eu num posso pôr meus fi lho, né. De tanto eu tenho vontade! Tenho vontade de ver meus fi lho tudo estudando, pra depois ter uma boa profi ssão, né, se não fi ca um bando de criança sem estudá, né, e que profi ssão vai ter? Não vai ter profi ssão nenhuma. Num sabe nem fazê o seu nome. Num dá alegria ver meus fi lho dentro de casa, tudo sem estudar."
Bem-vindo!
Você está convidado(a) a ler sábios
depoimentos de pessoas comuns e
posicionamentos valiosos de teóricos
muito sintonizados com o tratamento
do tema desta aula.
INTRODUÇÃO
O texto desta aula conta com a colaboração da professora Rosa Maria Lepak Milet, da UFF, pesquisadora do tema em pauta: escola, saber e poder. Depoimentos de pessoas comuns e articulações teóricas aqui presentes são contribuições desenvolvidas em sua pesquisa.
Aula_20.indd 86 6/29/2004, 1:47:58 PM
C E D E R J 87
AU
LA 2
0 M
ÓD
ULO
3
O desabafo desse pai anônimo faz parte da história de muitos
pais que vivem pelo Brasil afora. Representam as camadas mais pobres
da população e vêem a escola como único lugar de acesso ao saber
valorizado socialmente. Acreditam que, dominando esse saber, podem
“subir na vida”, ter poder nem que seja para exercer o direito de escolha
sobre o tipo de trabalho que desejam buscar. Afi nal, aspirar ao poder
é o sonho de todos aqueles que não o detêm. Para o povo em geral, ser
bem-sucedido nos estudos representa a chance de diminuir as diferenças
econômicas, de prestígio, de posição social e de poder.
Vejamos, então, na escola a relação saber e poder e tomemos o
fracasso escolar como um de seus efeitos. Para iluminar nosso percurso,
contemos basicamente com a abordagem de autores como Michel
Foucault e Paulo Freire, sobre o modo como concebem essa relação.
"É porque mais tarde eles não sofre, eles não perece como eu tô perecendo. Eu pereço nesse ponto, tô perecendo porque não tenho estudo. Se eu tivesse estudo, não tava perecendo."
"Quem não tem estudo não tá no serviço sufi ciente. Anda aí sendo faxineiro, lidando com essas coisas de serviço assim bruto. Eu queria que meus fi lho estudasse, pegasse um serviço limpinho, que eles chegasse e se trabalhasse e se pudesse se comparecê perto de quarqué pessoa. Aí dá gosto a pessoa, né?” (CECCON, 1982, pp.18-19)
Aula_20.indd 87 6/29/2004, 1:48:00 PM
C E D E R J88
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder
O FRACASSO ESCOLAR E A RELAÇÃO EDUCAÇÃO, SABER E PODER
Sabe-se que as camadas de baixa renda são as que encontram mais
difi culdades para ingressar e permanecer na escola ao longo dos anos.
Nem todas as crianças têm acesso à escola, e aquelas que conseguem
apresentam freqüentemente logo de início um fraco desempenho.
(O próprio governo reconhece que cerca de 1 milhão de crianças
continuam fora da escola, o equivalente a 4% da população em idade
de escolarização obrigatória.) Depois de uma série de reprovações (a
chamada taxa de escolarização líquida, que é de 33,4% da população
de 14 a 17 anos, também é reconhecidamente baixa segundo dados
apresentados pelo INEP/MEC na reunião com a Unesco em fevereiro/
2000), os alunos vão perdendo o interesse e o estímulo e, sentindo-se
incapazes, concluem que a escola não foi feita para eles.
Diante de tantos fracassos, são levados a abandoná-la, pressionados
pela necessidade de fazer algo em que sejam de fato úteis, como contribuir
com o sustento da família. Assim, muito cedo ingressam no mercado de
trabalho informal, marcados pelo sentimento de que são menos inteligentes
e capazes do que os outros e de que não levam jeito para o estudo.
Essas crianças aprendem a se sentir inferiores em relação àquelas
que têm bons resultados escolares. São levadas a acreditar que sua falta
de aptidão e mérito são as causas do seu insucesso escolar. Acrescenta-se
ao fracasso escolar o fracasso social que as crianças pobres vêm incutindo
desde pequenas, quando se vêem diante da marginalização causada pelas
difi culdades de acesso aos serviços básicos como saúde, educação, habitação
etc. Por tudo isso, em lugar de se constituir em um espaço de produção
de saber, de circulação de idéias, de formação da cidadania, a escola vem
se aprimorando na produção e na manutenção de fracassos.
Aula_20.indd 88 6/29/2004, 1:48:06 PM
C E D E R J 89
AU
LA 2
0 M
ÓD
ULO
3
O PODER GERA SABERES E O SABER GERA PODERES
Em seus estudos, o fi lósofo francês MICHEL FOUCAULT trata da questão
do poder em sua relação com o saber. Segundo ele, conhecimento/saber
e poder estão estreitamente ligados. Há uma constante articulação do
poder com o saber e do saber com o poder, de modo que o poder gera
saberes e o saber gera poderes.
Para Foucault, o poder não existe em um determinado lugar, ou se
origina em um determinado ponto. Não se confunde com o Estado nem
se localiza em um ponto específi co da estrutura social. Está, na verdade,
pulverizado por toda parte.
Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu
titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção,
com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem
o detém; mas se sabe quem não o possui (...)
(FOUCAULT, 2001, p. 75).
O poder, continua o fi lósofo francês, se expressa em relações de
poder, isto é, em relações sociais que atravessam a sociedade em todas
as suas dimensões. Todo saber, por sua vez, tem sua fonte original em
relações de poder. Onde há exercício do poder criam-se objetos de
saber, assim como todo saber faz aparecer novas relações de poder. Há,
portanto, uma constante conexão do poder com o saber e do saber com
o poder.
De que maneira o pensamento de Foucault sobre saber e poder
ajuda a aprofundar a compreensão dos processos de seletividade,
presentes na escola? Como já afi rmamos, na perspectiva foucaultiana o
poder não se manifesta explicitamente, não é algo externo e está sempre
engendrando saber, que por sua vez faz emergir poder. É justamente no
bojo dessa reciprocidade que currículo e poder se vinculam.
Assim, para identifi car o modo como se expressam as relações de
poder no currículo escolar, é preciso investigar os critérios de seleção
de conhecimentos adotados, assim como os princípios utilizados para
organizá-los e distribuí-los no currículo.
MICHEL DE FOUCAULT
(1926-1984)
Veja mais informações sobre Michel Foucault
na Aula 15.
Aula_20.indd 89 6/29/2004, 1:48:07 PM
C E D E R J90
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder
O modo como o saber se dispõe no currículo está intimamente
vinculado ao poder. Isso signifi ca que o poder se inscreve nos próprios
procedimentos empregados para determinar os conhecimentos
contemplados no currículo e na maneira de apresentá-los. A seleção
dos conhecimentos que serão ou não priorizados é o que irá determinar
as divisões entre indivíduos e grupos sociais. Isso é o poder propriamente
dito. Dessa maneira, para compreender o modo como o poder se
expressa, precisamos verifi car quais conhecimentos estão incluídos e
quais conhecimentos estão excluídos do currículo.
Como conseqüência dessas divisões, quais grupos sociais estão
incluídos e quais grupos sociais estão excluídos? Que divisões sociais de
classe são geradas ou fortalecidas com as opções feitas? Quais os saberes
que a escola elege como sendo saberes legítimos e que constituem o corpo
de conhecimentos que a escola veicula como sendo o currículo ofi cial?
Vejamos como acontece esse processo de seleção de conhecimentos e de
expressão ou exercício de poder no ensino formal.
A cada ano a escola recebe um novo contingente de crianças que
já trazem consigo atitudes, valores, hábitos e experiências adquiridas
desde os primeiros anos de suas vidas. O modo de ser, de pensar e de se
comportar refl ete a cultura de sua família e de seu meio social. As crianças
desenvolvem sua personalidade, sua inteligência e sua afetividade a partir da
cultura apreendida no cotidiano do ambiente social em que convivem.
Mas a escola toma como referência determinados padrões de ser
e de viver familiares somente a um determinado grupo social, o grupo
dominante, deixando de lado o contexto cultural dos segmentos mais
pobres da população. O modo como a escola se organiza, os saberes
que privilegia, os modelos de comportamento que procura inculcar em
seus alunos, a linguagem que valoriza estão sintonizados com a cultura
da classe dominante.
Desde pequenas as crianças das classes mais abastadas convivem
com a cultura que a escola requer. Mostram familiaridade com a
linguagem escrita, com livros e jornais, sentem-se à vontade com as
regras e os rituais escolares. Para elas a escola é uma continuidade do
seu universo familiar.
Aula_20.indd 90 6/29/2004, 1:48:24 PM
C E D E R J 91
AU
LA 2
0 M
ÓD
ULO
3
Ao contrário, as crianças das classes menos favorecidas sentem
difi culdades em corresponder às exigências da escola. As normas, os
valores e a linguagem utilizados são estranhos às vivências e ao seu
ambiente social de origem. A escola não valoriza os saberes que essas
crianças trazem, discrimina seu jeito de ser e de falar. Não leva em conta
suas experiências vividas em família e em comunidade.
O depoimento de um ex-aluno de escola pública situada na periferia
do Rio de Janeiro revela o sentimento que a escola lhe provoca:
“Sinto como se a escola colocasse a gente num ônibus e levasse pra
Copacabana.”
A queixa desse aluno comprova que o rico universo
de situações vividas pelos alunos populares fora da escola
é desconsiderado em sua programação pedagógica.
Crianças que sabem quanto os pais ganham, quanto custa
o pão, o café e o feijão. Crianças que estão habituadas a
dividir o alimento, a dividir o pequeno espaço onde moram, e na escola não
conseguem resolver operações de divisão, porque estas são apresentadas
de modo que em nada lembram as concretas e verdadeiras situações de
dividir e de partilhar amplamente praticadas em seu dia-a-dia.
Tais evidências apontam a escola como componente de uma rede
de relações que mostra a sua estreita ligação com o poder. A escola
privilegia as classes que já são privilegiadas, e que detêm o poder.
A escola não é neutra, ela responde às expectativas da sociedade onde
se insere. Numa sociedade como a nossa, dividida em classes sociais,
com realidades de vida diferentes e necessidades e interesses também
divergentes, a escola coloca os saberes que veicula a serviço da reprodução
dessa divisão, de modo a favorecer os interesses dos grupos sociais que
detêm o poder.
Aula_20.indd 91 6/29/2004, 1:48:24 PM
C E D E R J92
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder
Para essas crianças as vivências de sala de aula lhes deixam
perdidas e confusas. Sentem-se num ambiente desconhecido e reagem
demonstrando difi culdades de aprender e mau comportamento, que
revelam seu desinteresse e ausência de motivação diante da falta de sentido
e utilidade imediata dos deveres escolares. Suas vivências cotidianas de
trabalhar vendendo chicletes ou fazendo carreto na feira, por exemplo,
não são consideradas bagagem cultural. Tampouco são enfatizados os
conhecimentos de Matemática, adquiridos por essas crianças que sabem
fazer troco, mesmo antes de aprender a ler e escrever.
Os saberes adquiridos pelos alunos populares em suas apren-
dizagens cotidianas não são levados em conta nas práticas escolares.
Pelo contrário, são desqualifi cados, rotulados de ingênuos e de baixo
nível. O que se verifi ca nesse processo é a separação entre um saber
considerado científi co e outro saber considerado hierarquicamente
inferior, ressaltando-se a supremacia de um sobre o outro.
Foucault pretende justamente alertar para a necessidade de
combater os efeitos de poder que são peculiares ao discurso considerado
científi co e que desqualifi cam outros saberes por julgá-los incompetentes
e pouco elaborados. É o que o autor chama de conhecimento subjugado.
Sobre isso declara:
Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualifi cados,
não legitimados, contra a instância teórica unitária que
pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome
de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma
ciência detida por alguns. As genealogias não são portanto retornos
positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas
anticiências. Não que reivindiquem o direito lírico à ignorância
ou ao não-saber; não que se trate da recusa de saber ou de ativar
ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata não ainda
captada pelo saber. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto
contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência,
mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os
efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e
ao funcionamento de um discurso científi co organizado no interior
de uma sociedade como a nossa (1979, p. 171).
Ou seja, o poder se exerce através de um processo de controle e
regulação, para melhor atuar sobre a conduta dos grupos dominados.
Aula_20.indd 92 6/29/2004, 1:48:30 PM
C E D E R J 93
AU
LA 2
0 M
ÓD
ULO
3
De acordo com ele, o que distingue as mais recentes formas de governo,
compreendido em seu sentido político de regulação e controle, é a
necessidade de vir a conhecer a população a ser governada. Para isso
não pode prescindir do auxílio das ciências humanas, que desenvolvem
conhecimentos sobre o homem e seus processos de desenvolvimento, com
o objetivo de conhecê-los para controlá-los e melhor governar.
Para que sejam de fato proveitosos, esses conhecimentos sobre
os indivíduos e a população a ser governada devem traduzir o modo
como pensam e vivem o mundo, exprimindo-o tal como se apresenta
concretamente em sua realidade existencial. Tais informações podem
ser adquiridas através de questionários, exames, inquéritos etc. Depois,
mapeados em quadros estatísticos, diagramas, gráfi cos. Se é possível
conhecer, mapear, calcular, é possível governar.
EDUCAÇÃO PARA A LIBERTAÇÃO
O pensador e educador PAULO FREIRE afi rma, como idéia central
em sua obra, a necessidade e a importância de se criar uma educação
como prática da liberdade, uma Pedagogia que venha a possibilitar aos
oprimidos se libertarem da violência dos opressores. Em sociedades como
a nossa, que se caracterizam pela presença contraditória de interesses
distintos, em que determinadas classes sociais promovem a dominação
de consciências de outras, a Pedagogia que predomina é a Pedagogia
das classes dominantes.
Na visão de Freire quem tem o poder é a classe dominante, a quem
interessa uma educação que venha a encobrir a realidade dos fatos em
lugar de desvelá-las, mistifi cando-as. Uma educação que tem a primazia
de ocultar verdades, ao invés de desocultá-las. É o que o autor denomina
de concepção “bancária” da educação, que age como instrumento da
opressão. Os educandos são tratados como se fossem seres “vazios”,
como se fossem “vasilhas”, recipientes em que o educador deposita
conhecimentos que os alunos precisam memorizar e repetir.
PAULO FREIRE (1921-1997)
www.paulofreire.org
Aula_20.indd 93 6/29/2004, 1:48:30 PM
C E D E R J94
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder
Na visão "bancária" da educação, o "saber" é uma doação dos
que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que
se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da
opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que
chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se
encontra sempre no outro (FREIRE, 1979, p. 67).
Na ótica de Freire, a educação refl ete a estrutura do Poder, e
a concepção “bancária” não só retrata em sua prática a dicotomia
opressor-oprimido, através da relação que estabelece entre educador
e educando, como também alimenta a sua manutenção. Afi nal, cultiva
a passividade, a adaptação, o silêncio, a subordinação e a ingenuidade
dos educandos, negando o diálogo. Tais atitudes e comportamentos por
parte dos alunos se apresentam como um terreno fértil para o professor
desempenhar sua função de
disciplinar a entrada do mundo nos educandos, ‘encher’ os alunos
de conteúdos, fazer depósitos de comunicados – falso saber – que ele
considera como verdadeiro saber (FREIRE, 1979, p. 72).
Se o saber que a escola transmite numa prática “bancária”
serve para dissimular, esconder, velar e portanto difi cultar aos alunos
a ampliação da sua compreensão do mundo e das relações que aí se
engendram, certamente esse saber não serve à superação de sua condição
de oprimido e de marginalizado.
A educação como prática da liberdade se distingue daquela que
exerce o domínio e impede a emancipação das classes populares, pois
propõe a refl exão sobre o homem concreto, situado no seu tempo, em
suas relações com o mundo, ao contrário daquela educação que serve
à opressão e que considera o homem um ser abstrato e desligado do
mundo em que vive, assim como concebe o mundo como se nele não
houvesse a presença dos homens.
Para Freire é preciso postular uma “pedagogia do oprimido”,
mas uma Pedagogia que o tenha como sujeito e que seja construída a
partir dele e não para ele. Uma Pedagogia que tenha como fundamento
princípios de uma educação voltada para a libertação, de modo que
através dela o oprimido possa desenvolver uma atitude refl exiva sobre si
próprio enquanto indivíduo e enquanto presença atuante no mundo.
Aula_20.indd 94 6/29/2004, 1:48:56 PM
C E D E R J 95
AU
LA 2
0 M
ÓD
ULO
3
Ao apropriar-se refl exivamente de si mesmo, no mundo em que
vive junto aos outros homens, o educando estará se percebendo na sua
condição de sujeito histórico, tornando-se capaz de participar ativamente da
construção de seu destino, e de assumir as rédeas de sua própria história.
A proposta pedagógica apresentada por Paulo Freire como
sendo capaz de realizar esse papel é a que se baseia na concepção
problematizadora da educação. Nessa proposta, cabe ao educador
tomar como desafi o o despertar constante de seus educandos para uma
atitude refl exiva sobre o mundo e suas relações com ele, mas o mundo
concebido em seu movimento, em seu processo de transformação, e não
como algo estático.
Nesse processo, a aquisição do saber escolar deixa de ser um mito
para as camadas de baixa renda, uma vez que pressupõe em sua essência a
presença participativa dos alunos, que são permanentemente incentivados
a trazer para o universo escolar seu universo sociocultural.
Essa atitude de respeito, de aceitação e de valorização de suas
experiências certamente gera nos educandos populares um sentimento
de autoconfi ança, capaz de reverter a história de fracasso escolar que
os atinge particularmente.
Você poderia perguntar se, na perspectiva freireana, o currículo
escolar é constituído exclusivamente por temas ligados à realidade da
sociedade em que vivemos. A essa questão o autor responde indagando:
Pode haver uma séria tentativa de escrita e leitura da palavra sem
a leitura do mundo? (FREIRE, 1992, p. 135)
E afi rma com convicção,
(...) a escola de que precisamos urgentemente é uma escola em que
realmente se estude e se trabalhe. Quando criticamos, ao lado de
outros educadores, o intelectualismo de nossa escola, não preten-
demos defender posição para a escola em que se dilu íssem disciplinas
de estudo e uma disciplina de estudar, de aprender mais do que
hoje. De aprender a ler, a escrever e a contar. De estudar História,
Geografi a. De compreender a situação ou as situações do país. O inte-
lectualismo combatido é precisamente esse palavreado oco, vazio,
sonoro, sem relação com a realidade circundante, em que nascemos,
crescemos e de que ainda hoje, em grande parte, nos nutrimos.
Aula_20.indd 95 6/29/2004, 1:48:56 PM
C E D E R J96
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Escola, saber e poder
Temos de nos resguardar desse tipo de intelectualismo como
também de uma posição chamada antitradicionalista que reduz o
trabalho escolar a meras experiências disso ou daquilo e a que falta
o exercício duro, pesado, do estudo sério, honesto, de que resulta
uma disciplina intelectual (FREIRE apud FREIRE, 1992, p. 114).
Aqui, Paulo Freire deixa claro que a atitude intencional de se
debruçar sobre o mundo para desvendá-lo deve se articular com os
conhecimentos científi cos produzidos nos diferentes campos do saber.
O acesso aos saberes acumulados historicamente pela humanidade,
em confronto com os saberes produzidos na busca de compreender o
mundo, fazem nascer conhecimentos novos, de outra qualidade, já que
são criados para responder às interrogações originais acerca do mundo em
que vivemos, feitas por educadores e educandos em situações pedagógicas
também originais.
Além disso os efeitos da conexão entre esses diferentes tipos de
conhecimentos servem à instrumentalização tanto dos alunos como dos
professores, já que aprofunda a sua consciência acerca dos antagonismos
e das injustiças presentes na sociedade em que vivemos.
Mas, para se realizar esse trabalho, é preciso que seja superada
a dicotomia educador-educando, professor-aluno, e se crie uma relação
de diálogo em que,
ninguém educa ninguém, tampouco ninguém se educa a si mesmo:
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo (FREIRE,
1979, p. 79).
Para Paulo Freire, somente com base nesses procedimentos
podemos avançar no desafi o de construir uma educação de fato popular,
que venha a ampliar os horizontes pedagógicos, sociais, políticos e
culturais de todos os que estão envolvidos no processo educativo.
O empenho na compreensão de como funciona a sociedade em que
vivemos pode vir a acionar em cada uma das pessoas participantes e em
todas conjuntamente o anseio de lutar por uma sociedade mais justa,
mais democrática, mais solidária e mais feliz.
Aula_20.indd 96 6/29/2004, 1:48:57 PM
C E D E R J 97
AU
LA 2
0 M
ÓD
ULO
3
AUTO-AVALIAÇÃO
!Você pode agir só, se preferir, mas vai a sugestão: procure
parcerias com integrantes do curso para realizar essas atividades
em colaboração, em co-criação.
• De que maneira você experimenta a relação
saber e poder em sua vida escolar, seja como
estudante, seja com professor? Descreva um
ou mais fatos vividos.
• Procure refl etir sobre a infl uência da relação
entre saber e poder na produção do fracasso
escolar e analise os índices de evasão e
repetência presente em sua escola ou numa
escola de seu bairro.
• Explicite como se dá a relação entre escola,
saber e poder segundo a abordagem de cada
um dos autores apresentados. Comente cada
abordagem.
• Escolha um dos autores trabalhados e
apresente uma proposta pedagógica de
atuação em sala de aula que possa contribuir
para o sucesso escolar dos alunos que estão
fracassando.
Aula_20.indd 97 6/29/2004, 1:48:58 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
21au
la
OBJETIVOAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Rever concepções, conceitos e noções estudados nas aulas anteriores, utilizando como tema principal das reflexões o saber, o poder e suas inter-relações.
Pensando sobre saber e poder
aula21pb.indd 99 6/29/2004, 1:50:36 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder
CEDERJ100
INTRODUÇÃO Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, e o máximo de
sabor...
(BARTHES apud ALVES, 1999, p. 35).
A manhã primaveril é linda. Raios de sol, ainda tímidos, atravessam a névoa,
como se representassem uma resistência da madrugada, que não deseja ir
embora, com seu silêncio e suas sombras.
Enquanto o trem está parado na estação, para que um dos vagões de carga
receba uns engradados enormes, olhamos a cena, com a certeza de que é
sempre possível aprender alguma coisa.
A discussão que presenciamos há pouco, por exemplo, observada com atenção
e relembrada agora, dará ensejo a nossas refl exões na aula de hoje.
Com grande esforço físico, dois carregadores tentavam erguer duas caixas
muito grandes e muito pesadas, com o objetivo de embarcá-las no vagão. O
chefe do trem, esbaforido e preocupado com um possível atraso, chegou-se
a eles, dizendo:
aula21pb.indd 100 6/29/2004, 1:50:54 PM
CEDERJ 101
AU
LA 2
1 M
ÓD
ULO
3
aula21pb.indd 101 6/29/2004, 1:50:54 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder
CEDERJ102
O tema das aulas, caro aluno, objeto desta aula-síntese, é a questão
do saber e do poder, vistos em suas inter-relações. E o diálogo imaginário
reproduzido anteriormente ilustra bem tal tema.
De saída, observamos a prepotência do chefe do trem, um
sujeito normalmente bem-educado que, pressionado pelos problemas
no trabalho, lança mão do exercício de seu poder de chefe para tentar
resolver a situação.
Podemos observar também as referências que tanto um dos
carregadores quanto o chefe do trem fazem à questão do saber.
O carregador fala dos “sabidos do escritório”; o chefe do trem, além
de defender a “sabedoria” dos colegas do escritório, ainda critica o
carregador, relacionando sua condição de trabalhador braçal com a
falta de estudo.
As seis aulas anteriores a esta, prezado aluno, tratam do tema
saber/poder sob vários enfoques.
Na primeira delas, você pôde estudar a questão a partir do ponto
de vista do fi lósofo Michel Foucault. Aí, logo de saída, afi rma-se que
saber é poder. E se acentua a importância, para a Educação, do estudo
das inter-relações entre o saber e o poder.
Nessa mesma aula, estudou-se a seguir a questão do que Foucault
denomina “formação discursiva”, isto é, aquilo que é falado, aquilo em
que consistem os discursos sobre a realidade, bem como a relação que
isso guarda com as fontes e com a manutenção do poder. Além disso,
destacou-se a questão das condições concretas, históricas e culturais,
nas quais esses discursos têm sua origem e se sustentam, como suporte
das manifestações de poder.
Em seguida, você estudou, nessa aula, a questão do que as socie-
dades consideram “loucura”, bem como viu expostas as características
das formações discursivas, aí incluídas a interdição, a separação entre
loucura e razão, a separação entre o verdadeiro e o falso, as sociedades
de discursos e as doutrinas.
Logo depois, você pôde ver mais detalhadamente a questão das
relações entre o poder e o saber, a partir da visão de Michel Foucault,
sobretudo quando constata que o poder não está presente apenas no
discurso e nas práticas da classe dominante; o poder permeia todo o tecido
social, constituindo o que Foucault denomina “poder microfísico”.
aula21pb.indd 102 6/29/2004, 1:50:59 PM
CEDERJ 103
AU
LA 2
1 M
ÓD
ULO
3
A aula seguinte foi dedicada à questão do saber e da sabedoria.
A partir da curiosa história do barqueiro, você pôde ver que há uma
enorme diferença entre o saber como conhecimento, como erudição,
como acúmulo de informações teóricas e de conceitos, e a sabedoria
prática, exercitada na “escola da vida”. Despertar no seu aluno esta
sabedoria é ensinar a condição humana, e esta, para ser ensinada,
precisará que os saberes não sejam compartimentalizados, fragmentados
em disciplinas díspares.
Para tanto, importa formar homens capazes de organizar seus
conhecimentos, em vez de apenas armazená-los, por uma acumulação
de saberes.
Vale a pena, prezado aluno, atentar para a seguinte preocupação
expressa nos Parâmetros Curriculares Nacionais: é hora de retomar e
atualizar a educação, através de uma organização escolar e curricular
baseada em princípios estéticos, políticos e éticos (Ministério da Educação.
Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Brasília: 1999, p. 285).
Em seguida, caro aluno, prosseguindo na viagem pela Terra dos
Fundamentos da Educação, nosso trem imaginário atravessou o trecho
dedicado à questão do saber científi co como saber paradigmático, isto é,
como referência, exemplo e norma, como um verdadeiro poder exercido
por esse campo de saber sobre os demais.
Depois, o tema abordado foi o saber “comum” ou “vulgar”,
sendo analisadas suas características e sua importância.
A questão seguinte, nessa aula, foi relativa à classifi cação dos
saberes, com suas várias denominações: “saber técnico”, “saber culto”,
“saber de salvação”, de acordo com a classifi cação feita pelo fi lósofo Max
Scheler. E uma outra classifi cação muito usada também foi examinada:
“saber comum ou vulgar”, “saber científi co” e “saber fi losófi co”.
“Saber” foi estudado, também, em termos etimológicos, isto é,
segundo a origem da palavra, e aí constata-se sua relação de parentesco
com “sabor”. Recorrendo-se ao pensamento do fi lósofo e educador Rubem
Alves, analisou-se a questão dos limites éticos que devem ser impostos
ao saber científi co, numa visão que remete à importância que deve haver
tanto na construção quanto, sobretudo, na utilização dos saberes, de tal
modo que eles sirvam da melhor maneira aos seres humanos.
aula21pb.indd 103 6/29/2004, 1:51:00 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder
CEDERJ104
Em seguida, com a ajuda do pensamento de Edgar Morin,
examinou-se o fato de que não somos somente “sapiência”, ou seja,
racionalidade, mas somos igualmente “demência”, isto é, uma dimensão
criativa, uma sabedoria e uma inventividade absolutamente necessárias
à vida humana.
Essa aula se encerrou com refl exões acerca da importância do tema
“saber e sabedoria” para nós, professores, que devemos sempre indagar
que tipo de saber e que tipo de sabedoria desejamos para nossos alunos.
Na aula seguinte, caro aluno, você pôde examinar com detalhes os
saberes popular e erudito. Aprendeu que os saberes não são absolutos
e independentes do contexto em que são produzidos; ao contrário,
emergem desse contexto e o refl etem. Assim, diferentes classes sociais e
distintos meios culturais produzem saberes com características diferentes.
Considerando isso é que devem ser examinados o saber denominado
“erudito” e o saber chamado “popular”.
Lançando mão da genialidade de uma composição musical de
Vinicius de Moraes e Tom Jobim, essa aula tratou das especifi cidades do
saber popular e da necessidade de que seja considerado e respeitado.
Em seguida, ressalta-se que o saber produzido no interior das lutas
sociais – o saber popular – não deve ser idealizado nem considerado com
ingenuidade, como se fosse inerentemente verdadeiro e homogêneo. Esse
saber exibe ambigüidades, contradições e mesmo muitos ingredientes
do saber dominante.
A aula examinou também, prezado aluno, o saber erudito,
especialmente no que se identifi ca com os saberes científi co e fi losófi co,
os quais acabaram por impor-se como os saberes referenciais,
paradigmáticos, os saberes por excelência.
Em seguida, a aula destaca a questão: como conciliar o saber
popular com o saber erudito? O que se constata aí, no centro dessa
refl exão, nos interessa muito de perto, como professores: o problema da
difi culdade, por parte da escola e da academia, em reconhecer a validade
e a importância do saber popular. Seu aluno chega à escola imerso nesse
saber. Então, como transmitir-lhe os saberes formais e estabelecidos
– como, por exemplo, o saber científi co – sem uma rejeição à base de
saber popular com que já chega à escola?
A conclusão é que ambos os saberes, o popular e o erudito, são
imprescindíveis, e é necessário fazê-los dialogar, em prol de uma formação
completa e consciente do aluno.
aula21pb.indd 104 6/29/2004, 1:51:00 PM
CEDERJ 105
AU
LA 2
1 M
ÓD
ULO
3
A aula seguinte tratou de outras duas modalidades de saber: o
“saber instituído” e o “saber instituinte”.
Começou-se por caracterizar o que seja uma “instituição”, tanto
em termos concretos, como, por exemplo, a dimensão material de uma
escola, com suas salas, carteiras, pessoas etc., quanto em sua dimensão
simbólica, como o casamento. Viu-se, a partir daí, que uma instituição
traduz-se num conjunto de normas, regras e atividades impregnadas de
valores e funções sociais.
Nessa aula, acentuou-se que a escola é uma instituição, tanto em
termos materiais quanto simbólicos. E, como todas as instituições, apresenta
as dimensões “instituída”, isto é, estabelecida, estratifi cada, já dada, e a
“instituinte”, aquela que está por se constituir, por se estabelecer, o espaço
onde podem surgir as modifi cações e as transformações. Essas duas dimensões
foram estudadas também utilizando as denominações usadas por Cornelius
Castoriadis, ou seja, como as dimensões “patente” e “latente”.
A dimensão latente ou instituinte é, portanto, exatamente aquela
em que ocorre a dinâmica do vir-a-ser, ou seja, onde as mudanças podem
ocorrer, onde as idéias acerca de mudança têm seu espaço de apresentação
e de ação transformadora.
aula21pb.indd 105 6/29/2004, 1:51:01 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder
CEDERJ106
Nessa aula, caro aluno, você viu em seguida que o papel do
professor abrange essas duas dimensões, a instituída e a instituinte. O
professor é responsável tanto pelos saberes instituídos, que necessitam
ser transmitidos, quanto pelos saberes instituintes, quer dizer, aqueles
que trarão o novo, o que institui, o que modifi ca, o que transforma.
A preocupação com as inovações tecnológicas, como a
informatização e a robótica, deve estar presente nas aulas, de modo
que os objetivos de formação no nível do Ensino Médio priorizem a
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico.
Agindo assim, caro professor, você estará atendendo aos princípios dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, que prevêem:
• que os estudantes desenvolvam competências básicas que lhes
permitam criar a capacidade de continuar aprendendo;
• que a educação deve cumprir um triplo papel: econômico,
científi co e cultural, e alicerçada em quatro pilares: aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser.
Em seguida, com a ajuda do pensamento de Émile Durkheim,
Edgar Morin e Michel Maffesoli, a aula destacou a importância
de que a escola, além de representar o saber instituído, represente
fundamentalmente o saber instituinte, aquele que ensina a viver e que
pode transformar o saber em “sapiência”.
Com Maffesoli, a aula acentuou a importância de exercitar-se uma
“pedagogia da escuta”, ou seja, ouvir o aluno, a manifestação de tudo o
que ele traz consigo antes de ingressar na escola, expondo-se à dimensão
do saber estabelecido, ou seja, instituído. Essa escuta abre espaço para
a manifestação da dimensão instituinte, na qual estão presentes as
possibilidades de invenção, de renovação, de transformação.
Então, prezado aluno, o que você está achando das várias e
interessantes facetas apresentadas pelo problema do saber e de suas
relações com o poder? Daqui a pouco, nosso trem da imaginação vai
reiniciar sua marcha, continuando a percorrer a Terra dos Fundamentos
da Educação. Vamos, enquanto isso, permanecer aqui, ao lado da estação,
e aproveitar para relembrar um pouco mais do que você aprendeu nas
últimas seis aulas.
A aula seguinte tratou do poder e de sua produção e conseqüências,
relacionando-as com o saber. Mas, uma vez lançando mão das idéias de
aula21pb.indd 106 6/29/2004, 1:51:04 PM
CEDERJ 107
AU
LA 2
1 M
ÓD
ULO
3
Michel Foucault, observou-se o poder do ponto de vista da Psicologia, bem
como da Psiquiatria. Demonstrou-se como o conhecimento médico avalizou
a aplicação de instrumentos de poder, inclusive de poder excludente, como
no caso da loucura e da separação dos loucos, com seu confi namento.
A ciência da Psicologia vai pôr-se a serviço do poder também
quando desenvolve mecanismos mensurativos, como forma de avaliar
o desenvolvimento humano e sua capacidade de aprendizagem. Nessa
aula discorreu-se, então, sobre os famosos testes, a partir dos quais se
estabeleceram mecanismos de seleção, com as conseqüentes discriminação
e exclusão. Sobre esses, caro aluno, você já deve ter ouvido falar, por
exemplo, dos testes de estabelecimento dos coefi cientes de inteligência,
o famoso “QI”, até hoje ainda bastante aplicados, não é mesmo?
aula21pb.indd 107 6/29/2004, 1:51:07 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder
CEDERJ108
Como você pôde aprender nessa aula, prezado aluno, nasce aí a
criança da Psicologia, uma criança cuja “normalidade”, cujo desenvolvimento
“saudável” é determinado por essas regras mensurativas nascidas do novo
saber-poder oriundo da Psicologia. Nasce aí, como conseqüência, o aluno
“especial”, “diferente”, que requer tratamento especial, separado.
Essa aula explicou a você também, caro aluno, como e por que
nasce a necessidade de se criar, em Educação, a Orientação Educacional.
A partir daí, todo o desenvolvimento, aí incluídos a maturação emocional
e o desenvolvimento cognitivo, passa a ser monitorado e controlado por
essa nova visão apoiada em parâmetros científi cos. A própria “vocação”
passa a ser determinada por testes psicológicos. Veja como se tornou
imenso o poder desse tipo de saber!
Você, que irá educar adolescentes, precisa ter em mente que esse
período de vida é, indiscutivelmente, no atual contexto, um fato social,
uma atitude cultural, com importância inegável para o desenvolvimento
político, social e cultural de nosso tempo. A adolescência abre a porta
para um mundo novo, de mudanças, não apenas na própria imagem do
indivíduo e na maneira de interagir com seus iguais e com o resto das
pessoas, mas também se estende a novas formas de pensamento.
A adolescência é também uma fase que se caracteriza por crises,
rupturas, transformações corporais e psicológicas, às quais você, como
professor, precisa estar atento, sabendo usar o seu poder com autoridade,
mas sem autoritarismo.
A aula se encerrou chamando a atenção para o fato de que o
poder não se apresenta somente sob seu aspecto negativo, repressivo; há
também um outro aspecto, positivo, que, ao invés de excluir as pessoas
da vida social, busca incluí-las, tornando-as produtivas e, ao mesmo
tempo, controlando suas ações e procurando aproveitar ao máximo
suas potencialidades.
Ao fi nal, prezado aluno, você pôde aprender nessa aula que
saber e poder estão inevitavelmente relacionados; que as relações de
poder constituem campos de saber; e que os campos de saber geram,
necessariamente, relações de poder.
A última das seis aulas aqui sintetizadas foi dedicada às relações
entre a escola, o saber e o poder. Evidentemente, caro aluno, que
compreender como essas relações se estabelecem, se perpetuam e,
eventualmente, se modifi cam é fundamental para nós, professores.
aula21pb.indd 108 6/29/2004, 1:51:40 PM
CEDERJ 109
AU
LA 2
1 M
ÓD
ULO
3
A escola se apresenta como um sistema de poder, segundo você
pôde ver nessa aula. Um poder que barra a expressão dos alunos; que
torna a escola o âmbito do saber escolarizado, sistematizado, um mito,
especialmente para os alunos das classes populares. Se ingressar na escola
e, através dela, galgar uma boa posição na vida, é o que almejam os
integrantes das classes populares, o mito cai por terra, sobretudo quando
se constatam os altos índices de evasão; quando se observa a cruel realidade
do fracasso escolar nessa camada da população. A escola, em verdade,
como você pôde estudar nessa aula, ao invés de erradicá-lo, vem se
constituindo num espaço da produção e da manutenção do fracasso.
Articulando-se com a aula precedente, essa aula retoma a visão de
Michel Foucault acerca da relação entre o saber e o poder. E examinou
essa relação recíproca, sobretudo do ponto de vista do currículo escolar e
de como sua construção e manutenção expressam a relação saber-poder.
Estudando atentamente essa aula, você viu como a determinação do
que deve ou não estar incluído no currículo serve ao propósito do exercício
do poder. Que saberes são incluídos na grade curricular e considerados
“legítimos”? Serão os saberes engendrados e praticados no âmbito das classes
populares? A aula o convidou a refl etir sobre isso, prezado aluno.
Em verdade, conforme fi cou demonstrado nessa aula, o currículo
escolar expressa tanto o conteúdo quanto a organização dos saberes
que interessam à classe dominante. As crianças das classes populares,
da camada desfavorecida da população, se sentem, conseqüentemente,
desconfortáveis nesse ambiente inóspito, estranho à sua vivência real, o
que acaba por levar à rejeição e ao fracasso escolar.
Tal situação, como se esclareceu nessa aula, acaba por fazer da escola
um instrumento de aprofundamento dessa divisão social em classes.
Recorrendo mais uma vez a Michel Foucault, a aula exibiu
novamente a constatação de que os saberes populares são, como afi rma
aquele pensador, expressão de um “conhecimento subjugado”, em face,
sobretudo, do saber científi co, formal, paradigmático, “verdadeiro”.
Em seguida, a aula apresentou as idéias do educador Paulo Freire
sobre o que considera uma educação libertadora.
aula21pb.indd 109 6/29/2004, 1:51:41 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder
CEDERJ110
Ao contrário desta, uma Educação promovida e controlada pela classe
dominante, segundo seus próprios interesses, torna-se uma educação
aprisionadora, fazendo dos alunos seres passivos, simples receptáculos
de saberes que não dizem respeito à sua verdadeira condição de vida, à
sua classe social. Trata-se da famosa concepção “bancária” da Educação,
de que falava Freire.
Seguindo o pensamento de Paulo Freire, a aula apresentou a idéia
de uma Educação libertadora, de uma “pedagogia do oprimido”, feita
não para o sujeito, mas a partir dele. Desse modo, a Educação deixa
de ser um mito, para as classes populares, as quais podem trazer para
a escola seu próprio universo sociocultural. Isso gera autoconfi ança e a
conseqüente redução do fracasso escolar.
A aula, ainda apoiada nas refl exões de Paulo Freire, destacou
que os conhecimentos acumulados – representados pelo saber formal,
especialmente pelo saber científi co – confrontam-se com os conhecimentos
produzidos pela leitura do mundo, pela busca de sua compreensão. Daí
nasce um conhecimento novo, que leva inclusive à conscientização acerca
dos antagonismos e das injustiças presentes na sociedade.
O último ponto abordado nessa seqüência de aulas foi aquele segundo
o qual, na visão paulofreireana, deve ser superada a relação “professor-
aluno”, “educador-educando”, e ser substituída por uma relação dialógica,
em que os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.
aula21pb.indd 110 6/29/2004, 1:51:43 PM
CEDERJ 111
AU
LA 2
1 M
ÓD
ULO
3
Desse modo, prezado aluno, você pôde aprender e refl etir sobre
as relações entre o saber e o poder, suas características e sua presença
no universo educativo. Agora, provavelmente, você terá condições de
avaliar melhor aquela discussão descrita no início desta aula-síntese,
tentando responder a indagações como as seguintes:
• Como deve se comportar o professor em face da relação entre
o saber e o poder?
• É o saber um poder? Em caso afi rmativo, como se manifesta
tal poder?
• Quais as características apresentadas pela relação saber-poder
no âmbito da escola?
• Estaria o poder presente em todas as esferas da instituição escolar
manipulando todos os envolvidos no processo educacional?
• Há várias modalidades de exercício do poder nas relações sociais?
• Seria a participação um mecanismo de ação capaz de exercer
alguma infl uência sobre o poder?
• Dentre os teóricos apresentados, qual despertou em você maior
interesse em conhecer mais suas idéias?
aula21pb.indd 111 6/29/2004, 1:51:48 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre saber e poder
CEDERJ112
AUTO-AVALIAÇÃO
• Com o estudo desta aula, você conseguiu aprender mais e consolidar o que havia
aprendido sobre a diferenciação entre saber e poder?
• Certifi cou-se de que há vários tipos de saberes?
• Compreendeu que há saberes que fazem parte da norma, da lei, enquanto há
outros que fazem parte da vida?
• Notou a grande quantidade de teóricos que têm estudado a questão do poder
e do saber?
• Percebeu que esta aula é um termômetro para avaliar seus conhecimentos e
que, nesse sentido, serve para você diagnosticar o seu desempenho nas diferentes
aulas até aqui estudadas?
• Caso tenha sentido difi culdade em qualquer dos tópicos aqui apresentados,
volte à aula específi ca do tema e faça uma releitura. Queremos vê-lo, caro aluno,
dominando estes conhecimentos que fazem parte do mundo dos “Fundamentos
da Educação”.
O trabalho de carregamento já foi completado. É hora de embarcar
novamente para prosseguir nossa viagem pela Terra dos Fundamentos.
O trecho seguinte da viagem será muito interessante e vai iniciar-se
com uma aula destinada a abordar as relações entre Estado, Sociedade
e Escola.
Reembarquemos, pois o maquinista do nosso trem da imaginação
já deu o último apito avisando que vai partir.
aula21pb.indd 112 6/29/2004, 1:51:49 PM
A relação Estado, sociedadee escola 1 a
ul
a
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Analisar as formas pelas quais a escola é envolvida em uma variedade de forças e necessidades confl itantes.
• Compreender os papéis diferenciados que o Estado pode representar em seu relacionamento com os diversos segmentos da sociedade e com a escola.
OBJETIVOS
22
Aula_22.indd 113 6/22/2004, 11:00:53 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1
CEDERJ114
Na medida em que nos encaminhamos para vislumbrar mais uma paisagem
nesta nossa viagem, insistem em me vir à mente as palavras do sociólogo
Manuel Castells: “a sombra da crise estende-se pelo mundo”.
Os pontos de vista tradicionais sobre a relação entre sociedade
e escola enfatizam, sempre, o papel que a educação desempenha na
alteração das características individuais e na posição ocupada pelos
indivíduos nas estruturas econômica, social e política. O foco de tais
perspectivas é fi xado em uma instituição (a escola) e em suas relações com
o indivíduo. Isso não signifi ca que o aluno seja tratado como um caso
individual; ao contrário, os indivíduos, em sua coletividade, estão imersos
em um contexto universal, e a Ciência Social e a Pedagogia tentam
encontrar normas e regras universais, através das quais possam entender
a relação entre a instituição e o indivíduo naquele contexto. Assim,
constata-se a existência de um indivíduo universal, sujeito a padrões de
comportamento derivados da cultura, da posição social e ocupacional,
e, ao mesmo tempo, separado, cada pessoa sendo responsável por si
mesma neste momento da História, separada da História passada, da
cultura passada e das interações passadas.
Há um confl ito em tal análise. Por serem separados, os indivíduos
lutam uns contra os outros. No entanto, essas lutas são resolvidas por
regras e regulamentos universalmente aceitos porque são imparciais e
justos: os confl itos econômicos são resolvidos pelo sistema de mercado,
particularmente pelo sistema de preços e salário; e os confl itos sociais
e políticos são resolvidos pelo sistema legal, em vigor no Estado
democrático. E as mudanças nesses sistemas são atingidas através
do consenso democrático, o voto. A educação – também um elemento do
Estado – é, assim, uma expressão consensual da tônica social, também
sujeita a confl ito, mas um confl ito que é trabalhado no contexto da
escolha individual e da democrática, decisão que cada um toma a respeito
do tipo e da quantidade de educação e treinamento a receber.
A perspectiva marxista é diferente. É histórica e centrada
nas classes sociais. O comportamento individual é entendido como
produto de forças históricas, enraizadas em condições materiais.
INTRODUÇÃO
“Na produção social de suas vidas, os homens estabelecem relações defi nidas que são indispensáveis e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a determinado estágio de desenvolvimento de suas forças de produção material. A soma total dessas relações constitui a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o qual se ergue uma estrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção das condições de vida material condiciona o processo geral da vida intelectual, política e social. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”
Aula_22.indd 114 6/22/2004, 11:01:14 AM
CEDERJ 115
AU
LA
MÓ
DU
LO 3
22
Quando as condições materiais mudam, através da luta de classes,
alteram-se também as relações entre os indivíduos nas diferentes
posições sociais. Tais posições são determinadas pela organização social
da produção e pela relação de cada pessoa com a produção.
Assim, a organização da produção – a formação social – e seu
desenvolvimento histórico são centrais na abordagem marxista, porque
é nessa organização que encontramos as relações da vida humana, o
signifi cado e o valor das características individuais e os determinantes
do poder político e da hierarquia social. Na produção capitalista, os
capitalistas (e, mais recentemente, os empresários) controlam e acumulam
capital e são capazes, no contexto da luta constante com a classe
trabalhadora, de dar forma ao processo de desenvolvimento da sociedade,
inclusive à moral social e à formação cultural. Tanto a consciência do
capitalista como a consciência do trabalhador são formadas através de
suas relações com a produção; é essa mesma relação que condiciona o
desenvolvimento social do indivíduo e os modos de vida. Os indivíduos
e as instituições são, assim, produtos de desenvolvimento da formação
social e das relações de produção.
Nessa abordagem, o confl ito não é passível de resolução através
de regras universais, porque tais regras têm sua base em classes sociais;
elas servem a interesses particulares – os interesses da classe dominante.
Assim, o sistema de mercado e o Estado, longe de serem consensuais, são
produtos da dominação de classe e da luta de classes.
A classe capitalista, através de seu poder político, é
também capaz de explorar a classe trabalhadora
(aqueles que possuem somente sua força de
trabalho), como criar um modo de vida que
serve aos interesses capitalistas e tornar os
trabalhadores alienados e oprimidos.
A única solução para o conflito
inerente a esse sistema de produção
é a sua substituição por outro, no
qual a classe trabalhadora tenha o poder
político para reorganizar a produção e
desenvolver um modo de vida diferente.
Aula_22.indd 115 6/22/2004, 11:01:14 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1
CEDERJ116
Isso nos coloca diante do problema da reprodução e de seu
contrário, a mudança social. Uma vez que a abordagem marxista
considera a sociedade capitalista organizada de acordo com o interesse
dos capitalistas e dirigentes, como são reproduzidas, de geração a geração,
as relações de produção, a divisão do trabalho e as classes sociais?
Na presente versão do “tradicional” ponto de vista liberal
(pluralismo), a reprodução acontece através da seleção dos líderes
(vereadores, deputados, senadores etc.), os quais, de alguma forma,
refl etem as necessidades e desejos do eleitorado, pelo menos daquela
parte do eleitorado que está interessada em participar da política e da
mudança social. De acordo com essa perspectiva, a atual estrutura da
sociedade capitalista e de seu complemento político – a democracia
representativa – é aceitável para a massa de cidadãos. A mudança ocorre
através da competição entre os grupos de elite que têm interpretações
diferentes sobre como alcançar o maior bem, dentro de objetivos
geralmente aceitos.
Na abordagem marxista, esse “consenso” sobre a estrutura da
sociedade não existe; ainda assim, o capitalismo continua prevalecendo
como modo de produção.
Teorias marxistas ortodoxas argumentam que a reprodução é
grandemente desempenhada pelos capitalistas no próprio setor produtivo,
por uma série de táticas que tornam a mão-de-obra temerosa de qualquer
tentativa de se organizar contra os empregadores, mantendo-se assim a
divisão do trabalho dentro dos limites de classe. Essas teorias argumentam
que o Estado capitalista é o aparelho repressivo da burguesia, que mantém
os trabalhadores em seus lugares através do sistema jurídico, do exército
e da polícia.
Análises marxistas mais recentes, entretanto, dão grande ênfase
à superestrutura no processo de reprodução. É nesse ponto que a
escolarização é considerada, porque é nesse processo que a reprodução
se reveste de sua forma mais organizada: as crianças, desde tenra
idade, freqüentam a escola e são-lhes sistematicamente inculcadas
as habilidades, os valores e a ideologia que se adaptam ao tipo de
desenvolvimento econômico adequado à continuação do controle
capitalista. Argumenta-se que, através da escola e de outras instituições
superestruturais, a classe capitalista reproduz as forças de produção
(mão-de-obra, divisão do trabalho e divisão do conhecimento) e as
Aula_22.indd 116 6/22/2004, 11:01:20 AM
CEDERJ 117
AU
LA
MÓ
DU
LO 3
22
relações de produção – estas últimas predominantemente através da
manutenção e do desenvolvimento de uma ideologia “legítima” e de um
conjunto de padrões de comportamento (cultura).
A reprodução, no interesse de uma classe social particular,
automaticamente implica a existência de antagonismo de classe e de
potencial para a luta de classes. É essa noção de luta de classe, inerente
a todos os aspectos do desenvolvimento capitalista e das instituições
capitalistas, estrutura e superestrutura, que forma a base de uma teoria
marxista de mudança social. A necessidade capitalista de organizar
instituições para a reprodução signifi ca que há resistência ao conceito
capitalista de desenvolvimento e ao necessário controle capitalista desse
desenvolvimento. Outra vez, uma análise marxista da escolarização,
nesse contexto de transformação, é fundamentada nessa permanente
luta de classes.
Por razões práticas, qualquer estudo sobre Estado, sociedade
e escola precisará se debruçar sobre o sistema educacional e, para
compreender esse sistema, impõe-se uma análise implícita ou explícita
dos propósitos e do funcionamento do setor governamental. Desde
que o poder se expressa, pelo menos parcialmente, através do sistema
político de uma sociedade, qualquer tentativa de desenvolver um
modelo educacional (ou um modelo de mudança educacional) deve
ter atrás de si uma cuidadosa refl exão sobre o funcionamento do
governo, o que chamamos de uma Teoria do Estado. Por outro lado,
mesmo que não acreditássemos que um sistema educacional tenha algo
a ver com o poder na sociedade, ainda assim seríamos compelidos a
discutir o sistema governamental para entender a educação formal:
nos séculos XIX, XX e, agora, entrando no século XXI, a educação
tem-se tornado, crescente e primariamente, uma função do Estado.
Acerca do potencial transformador (ou modelador) da educação oferecida
pelo Estado às classes desfavorecidas economicamente, uma carta enviada
pelos índios norte-americanos, em meados de 1700, em resposta ao
convite para enviar seus fi lhos à Universidade de Mary e William, ilustra
como as consciências sociais podem diferir:
Aula_22.indd 117 6/22/2004, 11:01:20 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1
CEDERJ118
(...) Nós estamos convencidos, portanto, de que os senhores
desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas
aqueles que já são sábios reconhecem que diferentes nações têm
concepções diferentes das coisas, e sendo assim não fi carão os
senhores ofendidos ao saber que sua idéia de educação não é a
mesma que a nossa... Muitos dos nossos bravos foram formados
nas escolas do Norte e aprenderam toda a sua ciência, mas
quando eles voltaram para nós eram maus corredores, ignorantes
da vida da floresta e incapazes de suportar o frio e a fome.
Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma
cabana e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto,
totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores
ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela
sua oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar nossa
gratidão, oferecemos aos nobres senhores da Virginia que nos
enviem alguns de seus jovens que lhes ensinaremos tudo o que
sabemos e deles faremos homens (apud LEITE, 1979).
A carta-resposta dos índios é exemplar por nos mostrar a
percepção deles sobre o potencial modelador da escola e a sua negativa de
cair no que consideram um embuste, na armadilha generosa do inimigo.
Podemos encontrar esse mesmo tipo de percepção em uma camponesa
cearense de nossos dias:
(...) o exemplo do lar vale mais que a instrução escolar. Isso
não é querendo dizer que os fi lhos não saibam ler. Que devem
saber alguma coisa para não ser um analfabeto mais de acordo
de suas condições e de suas posses. Porque vendo o interesse de
nossa classe pobre os sacrifícios que fazem para querer formar
os fi lhos. Assim como faz o rico que tem tudo para o conforto
dos fi lhos, tirando das costas do pobre para fazer o fi lho dele
crescer. O que eu vejo é a nossa classe pobre mandar o fi lho
para classe rica; desejo de um dia seu fi lho virar um tubarão para
engolir a sua própria família; ou melhor, a sua própria classe.
Eu nunca me preocupei com essa educação nem para mim e nem
para meus fi lhos, esta educação de cultura e ciência, pois tive a
oportunidade de quem me desse gratuitamente mas nunca tive
vontade de ser grande, minha preocupação maior foi sempre de
ser o que eu sou, de ser pequena e imitar os meus pais, ter segurança
no meu pouquinho de consciência e procuro cada vez mais me
assegurar, e me perguntar todas as vezes se estou cumprindo com
as minhas responsabilidades, consciente no meu trabalho e na
minha família, principalmente com os meus fi lhos, se estou de
Aula_22.indd 118 6/22/2004, 11:01:20 AM
CEDERJ 119
AU
LA
MÓ
DU
LO 3
22
fato sendo companheira amiga dos mesmos; de todas as horas;
é sempre uma revisão que gosto de fazer porque não é fácil, os
fi lhos sempre procuram imitar os pais, nós todos temos os nossos
defeitos, que ninguém é perfeito; sempre temos um lado negativo;
também temos um lado positivo, deixamos o negativo de lado; e
reforçamos o positivo mostrando para nossos fi lhos o que seus pais
são: ou seja, agricultor ou operário ou rendeira ou bordadeira, que
eles vão querendo ser o mesmo (GARCIA, 1980).
Nesse depoimento fi ca explícita a aceitação da escola como meio
de evitar que os fi lhos fi quem analfabetos (que os fi lhos não saibam ler).
Por outro lado, existe também o desejo de evitar a mudança de classe,
a transformação do fi lho em “tubarão que engole a própria família; ou
melhor, a própria classe”.
Você pode estar considerando tais depoimentos como exemplos
da ignorância do povo, mas a Educação Popular defi ne essas falas como
uma resistência do saber popular em confronto com o saber dominante
representado pela escola – aparelho ideológico do Estado.
O fato é que a escola no meio rural e no meio urbano (mesmo
quando pouco freqüentada) marca de forma distinta ambos os
saberes, tendo infl uências diferenciadas nos alunos pertencentes a
esses meios – o cerne dessa diferença reside, ainda em nosso país,
na necessidade (ou não) do aprendizado escolar para o
desempenho no trabalho. E sabemos o quanto o trabalho
infantil e juvenil é necessário para a sobrevivência de uma
família de camponeses em estado de miséria. Da mesma
forma vemos como são escassas as escolas existentes
nas zonas rurais e, geralmente, formadas por uma
classe multisseriada. A bolsa-escola federal tem,
como missão principal, fazer retornar para essas
escolas os alunos delas retirados por suas famílias.
Aula_22.indd 119 6/22/2004, 11:01:20 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1
CEDERJ120
A título de exercício, Pedro Demo levanta algumas esferas de poder cujo abuso determina a fabricação
de vítimas no sentido político:
a) Poder econômico. Um dos abusos palpáveis do poder econômico se dá nas fraudes de compras, em
que o consumidor é lesado na quantidade (fraude no peso, no tamanho, na consistência), na qualidade
(fraude na especifi cação do produto, diferença de conteúdo, efeitos colaterais), no preço, no contrato de
compra, na garantia e assim por diante.
b) Poder político. A burocratização do Estado é, por exemplo, forma típica de abuso de poder político,
pois favorece a clássica estruturação das vantagens: oligarquização do poder, concentração de privilégios,
imposição da impunidade, mordomias, corrupção em geral etc. As duas formas mais típicas do abuso do
poder político são o estado de privilégio, e o estado de impunidade ou de exceção. O estado de privilégio
caracteriza-se pela situação de concentração de vantagens, entendida como direito de exploração. Aos
desiguais, somente deveres; aos privilegiados, todos os direitos.
O estado de impunidade caracteriza-se pela capacidade de produzir a fraude sem ser molestado pela
vítima, porque a esta se nega o direito de reagir. É, certamente, a situação mais drástica de prepotência
política, porque é concebida e exercida de modo ilimitado. O poder impune necessariamente se corrompe,
pois a impunidade é a forma máxima de sua corrupção.
c) Poder da informação. Faz parte dos conteúdos mais legítimos da democracia a transparência da informação,
evitando processos administrativos vedados ao conhecimento do público. Foi por falta dessa transparência
que em épocas passadas o governo tomou decisões escondidas, elaboradas no âmbito de umas poucas
pessoas, que se criam capazes de representar a maioria sem a consultar. Quando menos se esperava, a
sociedade se viu diante de uma dívida externa incontrolável...
Ao mesmo tempo, a censura, o controle dos órgãos de comunicação ou seu monopólio, a indústria cultural,
a moral, a cívica atuavam como instrumentos de manipulação, através dos quais se pretendia “fazer a
cabeça” da maioria, em favor de vantagens para a minoria.
É fato marcante de nossa época que os sistemas de comunicação e informação são fonte relevante de
poder. Sua infl uência cotidiana já é avassaladora e tende a crescer indefi nidamente.
d) Poder político. O saber especializado é também fonte de poder, sobretudo na versão tecnológica.
Além de fonte, o saber pode estar a serviço do poder. É o caso da tecnocracia, que tem como uma de
suas marcas colocar a serviço do poder o saber especializado de que dispõe. O abuso do poder aparece
de inúmeras formas, por vezes muito criativas: a construção de uma linguagem ininteligível ao público,
a título de superioridade; os planejamentos inefi cientes e inefi cazes, que servem à lógica dinâmica do
poder; a montagem de mandar inatos da pretensa inteligência; a tecnologia subserviente ao lucro, à
exploração, à destruição do meio ambiente e da qualidade de vida; as políticas sociais que fabricam
sobretudo formas de controle social e de desmobilização dos desiguais; o desconhecimento da sabedoria
popular. E Demo ainda enfatiza que: “sem qualquer pretensão de exaustividade, aí estão algumas for-
mas de abuso do poder, que produzem vítimas no espaço da coibição do exercício da cidadania. É mister
levar em conta que tal situação é crônica, pois é uma forma de opressão que encontrou, para além dos
traços próprios da organização econômica e social, traços culturais de forte consolidação na população”.
(DEMO, 1988, pp. 26-32).
!
Aula_22.indd 120 6/22/2004, 11:01:22 AM
CEDERJ 121
AU
LA
MÓ
DU
LO 3
22
O Estado parece acreditar e tenta, através de uma propaganda maciça
veiculada pela mídia através da “boa imagem” angariada pela professora
Rute, personagem de uma novela da Rede Globo, nos convencer de que
a fabulosa quantia de quinze reais por mês oferecida às famílias por
criança (e para um máximo de três fi lhos, que provavelmente deverão ser
selecionados no interior de cada família) irá resolver o grave problema
da evasão escolar. Um problema que tem suas raízes fi rmemente fi ncadas
na miséria social que vitima milhares de brasileiros.
Outra distinção é feita entre os saberes do professor e os do
aluno; os professores detêm o saber dominante (legítimo e superior), e
os alunos, o saber popular (ilegítimo e inferior). A expressão escola da
vida denota esse aspecto do saber popular e, por isso, distingue-se o que
se aprende na escola e fora dela. Ou, como disse Noel Rosa:
“o samba não se aprende na escola”.
Em depoimentos de camponeses, a escola aparece
como tendo a função explícita de ensinar a ler, a escrever e
a contar. Algumas vezes essa função limita-se apenas
ao aprendizado de assinar o nome.
No meio rural, portanto, a relação
do camponês com a escola é mais ou menos
homogênea. Extrai dela muito pouco e o raio de
ação dessa instituição ainda é pequeno. Isso não signifi ca
que o camponês prescinda da escola, apenas que ele a
utilizará na medida de suas necessidades e de sua
consciência. Não se poderia afi rmar o mesmo
para aquelas pessoas que são donas de fazendas
e vivem nas zonas rurais; seus fi lhos extraem
muito mais das escolas que freqüentam e, via de
regra, prosseguem seus estudos nas grandes cidades,
dentro e fora do País.
Aula_22.indd 121 6/22/2004, 11:01:22 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 1
CEDERJ122
Já no meio urbano, a questão torna-se muito mais complexa,
porque o nível de escolaridade (qualifi cação) interfere diretamente no
valor da força de trabalho. A corrida por vagas nas universidades é
emblemática do valor que a sociedade brasileira confere aos diplomas
de nível superior, ainda considerados passaportes sociais para o sucesso
profi ssional. Todos os anos assistimos às homenagens prestadas aos
novos heróis das olimpíadas intelectuais: os que receberam medalhas
de ouro por terem passado nas maratonas que são os vestibulares para
os cursos mais concorridos das universidades públicas. A cultura da
“sadia” competição escolar é um disfarce para o álibi da “educação para
todos”; através dessa máscara social as relações de força dissimulam a
verdade objetiva de sua dominação.
Aula_22.indd 122 6/22/2004, 11:01:25 AM
CEDERJ 123
AU
LA
MÓ
DU
LO 3
22AUTO-AVALIAÇÃO
• Analise como o Estado mostra-se presente no dia-a-dia de sua sala de aula.
• Seus alunos são diferentes socialmente e culturalmente de você? Em que aspectos
essas diferenças são mais marcantes?
• Como a cultura e o saber dominantes podem ser apresentados aos seus alunos
sem desmerecer a cultura e o saber que eles possuem?
• Como é possível promover a construção de conhecimentos no dia-a-dia escolar
tendo como ponto de partida a cultura popular já enraizada em seus alunos?
Vimos nesta aula duas concepções diferentes sobre a relação entre Estado,
sociedade e escola: uma concepção que enfatiza a existência de um indivíduo
universal e de uma sociedade organizada através do consenso. A segunda
concepção (marxista) centra-se nas classes sociais e em suas trajetórias históricas,
sem esquecer o signifi cado e o valor das características individuais. Classes sociais
diferentes possuem interesses divergentes; os confl itos são inevitáveis e, portanto,
as soluções para os mesmos passam por exaustivas negociações.
A escola pode ser entendida também como uma das diversas arenas de negociação
entre diferenças de classe, como é o caso das diferenças entre cultura dominante
e cultura popular, entre saber dominante e saber popular.
Por ser a educação uma função do Estado, o poder para transformá-la ou
conservá-la está em suas mãos, já que todo o fi nanciamento da educação pública
é administrado pelo poder governamental.
Contudo, é no dia-a-dia da sala de aula que a educação se realiza e, nesse
microcontexto social, os professores são os administradores e gestores do ensino.
Para o bem ou para o mal, a favor das classes mais desfavorecidas economicamente
ou a favor das elites. A escolha é inevitável.
R E S U M O
Aula_22.indd 123 6/22/2004, 11:01:28 AM
A relação Estado, sociedadee escola 2 a
ul
a
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Analisar à luz da Psicologia como a relação Estado, sociedade e escola se concretiza em programas educacionais.
OBJETIVOS
23
Aula_23.indd 125 6/22/2004, 11:03:06 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2
CEDERJ126
INTRODUÇÃO Na Estação anterior vimos essa mesma temática com cores de uma
macroestrutura do Estado e da sociedade, como essa relação repercutia na
escola e, mais especifi camente, na educação popular com suas resistências e
submissão ao poder estatal. Agora, a macroestrutura vai virar pano de fundo
das cenas escolares. A escola nossa de todo dia ganha relevo e o nosso aluno
popular recebe destaque, assim como os professores, que são, também,
protagonistas da ação pedagógica. Dessa forma, prepare seu coração para mais
uma viagem nesta jornada de conhecimento, porque o serviço meteorológico
das teorias prevê chuvas e trovoadas pelo caminho. Coloque em suas malas
guarda-chuvas, casacos e botas, mas como São Pedro pode nos benefi ciar,
roupas leves e sandálias são imprescindíveis.
O aumento da demanda social por escola nos países industriais
capitalistas da Europa e da América e, como conseqüência, a expansão
dos sistemas educacionais de ensino trouxeram consigo dois problemas
para os educadores: a necessidade de explicar as diferenças de rendimento
da clientela escolar e, segundo, justifi car o acesso desigual dessa clientela
aos graus escolares mais avançados. Além de ter que solucionar esses
dois problemas, os educadores não podiam ferir o princípio essencial
da ideologia liberal, segundo a qual o mérito pessoal é o único critério
legítimo de seleção educacional e social.
No âmbito da liberal-democracia, é bastante plausível que haja
preocupação com a superdotação e sua contrapartida: a subdotação
intelectual; essas duas categorias de conceito foram, justamente, a
principal atividade da Psicologia nos setenta anos após a publicação da
primeira obra de Galton. Se as aparências já possibilitavam crer que as
oportunidades estavam igualmente ao alcance de todos – pois é inegável
que, ao compararmos a nova ordem social com a estática sociedade
feudal, agora tínhamos mobilidade social – a Psicologia ajudou na
sedimentação dessa visão de mundo na medida (exata?) em que os
resultados nos testes de inteligência, favorecendo quase sempre os mais
ricos, reforçavam a impressão de que os mais capazes ocupavam os
melhores lugares sociais.
As idéias de Galton a respeito da inteligência herdada marcaram época na Psicologia; sua infl uência sobre o movimento dos testes mentais que se desencadeou na última década do século XIX foi marcante: basta dizer que Cattell, pioneiro na criação de testes psicológicos nos EUA, estava entre seus alunos.
Os objetivos de Galton, contudo, iam mais longe do que a mera comprovação do caráter genético das capacidades psíquicas individuais; estava em seus planos interferir nos destinos da humanidade através da eugenia, ciência que visava a controlar e dirigir a evolução humana, aperfeiçoando a espécie através do cruzamento de indivíduos escolhidos especialmente para esse fi m.
Aula_23.indd 126 6/22/2004, 11:03:24 AM
CEDERJ 127
AU
LA 2
3 M
ÓD
ULO
3
A explicação das dificuldades de aprendizagem escolar é
construída em cima de duas vertentes. A primeira vertente, formada
pelas Ciências Biológicas e pela Medicina do século XIX, recebeu uma
visão organicista das aptidões humanas, carregada de pressupostos
racistas e elitistas. A segunda vertente é constituída pela Psicologia e
pela Pedagogia da passagem do século, herda uma concepção menos
HEREDOLÓGICA da conduta humana – ou seja, mais atenta às infl uências
ambientais – e mais comprometida com os ideais liberais democráticos.
A ambigüidade imposta por essa dupla origem será uma característica
do discurso sobre os problemas de aprendizagem escolar e da própria
política educacional nele baseada, nos países capitalistas no decorrer de
todo o século XX.
Muitos psicólogos empenharam suas vidas, nesses dois séculos,
na pesquisa de instrumentos que pudessem verifi car se por trás do
rendimento bruto um indivíduo era intelectualmente mais apto que
outro. Em outras palavras, muitos se dedicaram com afi nco a tentativas
de medir com objetividade e precisão as verdadeiras aptidões das pessoas,
independentemente das infl uências ambientais, entre elas as de natureza
socioeconômica. Por isso, para não sermos injustos com esses muitos
pesquisadores que, da última década do século XIX aos trinta primeiros
anos do século XX, se debruçaram sobre as questões da mensuração
das aptidões, da orientação e da seleção profi ssional, é lícito afi rmar
que em suas investigações estavam imbuídos de ideais democráticos e
compartilharam da esperança de que era chegado o tempo da sociedade
igualitária, livre e fraterna.
Não eram, portanto, pessoas de má-fé que defendiam
conscientemente os interesses do capital, mas humanistas equivocados
que ingenuamente sonhavam o que a história capitalista tem mostrado ser
impossível: justiça numa ordem social estruturalmente injusta. Por essa
razão, esses muitos psicólogos acabaram, sem o desejar, fortalecendo a
crença na possibilidade de oportunidades iguais que tentavam viabilizar
através de dois recursos: o uso de instrumentos que queriam infalíveis
na mensuração das verdadeiras disposições naturais e a expansão e o
aprimoramento do sistema escolar.
Logo após a Primeira Grande Guerra, vários países engajam-se
numa nova cruzada social: identifi car os super e os subdotados na
população infantil, de modo a lhes oferecer condizente educação escolar.
Os primeiros especialistas que se ocuparam de
aprendizagem escolar foram os médicos. O fi nal do século
XVIII e o século XIX foram de grande desenvolvimento
das ciências médicas e biológicas,
especialmente da Psiquiatria. Datam
dessa época as rígidas classifi cações dos
anormais e os estudos de Neurologia,
Neurofi siologia e Neuropsiquiatria
conduzidos em laboratórios anexos
a hospícios. Quando os problemas de
aprendizagem escolar começaram a tomar corpo, os progressos
da nosologia já haviam recomendado a criação de pavilhões
especiais para os duros da cabeça ou
idiotas, anteriormente confundidos com os
loucos; a criação dessa categoria facilitou o trânsito do conceito
de anormalidade dos hospitais para as
escolas.
HE RE D O L Ó G I C A
Refere se à herança genética.
Aula_23.indd 127 6/22/2004, 11:03:24 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2
CEDERJ128
Desde então, os testes psicológicos ingressaram nas escolas e passaram
a fazer parte de seu cotidiano nos países capitalistas centrais. É a partir
dessa época que, nos países dependentes (como o Brasil), educadores
mais progressistas sofrem forte INFLUÊNCIA do que se passa nos meios
educacionais da Europa e da América do Norte e começam a lutar pela
introdução da Psicometria e da Pedagogia nova em seus países.
A avaliação dos ANORMAIS ESCOLARES tornou-se, durante os primeiros
trinta anos do século XX, praticamente sinônimo de avaliação intelectual,
pois nessa época os testes de QI adquiriram um grande peso nas decisões
dos educadores a respeito do destino escolar de grandes contingentes
de crianças que, na Europa e na América, conseguiam ter acesso à
escola. No entanto, a incorporação de alguns conceitos psicanalíticos
veio modifi car não só a visão dominante de doença mental como as
concepções correntes sobre as causas das difi culdades de aprendizagem.
A consideração da infl uência ambiental sobre o desenvolvimento da
personalidade nos primeiros anos de vida e sobre a importância atribuída
à dimensão afetivo-emocional na determinação do comportamento e
seus desvios provocaram uma mudança terminológica no discurso da
Psicologia Educacional: de anormal, a criança que apresentava problemas
de ajustamento ou de aprendizagem escolar passou a ser chamada de
criança-problema.
LO U RE N Ç O F I L H O
O livro Introdução ao estudo da escola nova, publicado em 1927, é um caso exemplar dessa infl uência e desse objetivo.
AV A L I A Ç Ã O D O S A N O R M A I S E S C O L A RE S
Hoje sabemos que desse expressivo movimento das décadas de 1920 e 1930 restou a prática de submeter a diagnósticos médico-psicológicos as crianças que não respondem às exigências escolares. Nos anos 40, essa proposta já se transformara, em vários países, numa rotina quantifi cadora.
Aula_23.indd 128 6/22/2004, 11:03:26 AM
CEDERJ 129
AU
LA 2
3 M
ÓD
ULO
3
Amplia-se, assim, o espectro de possíveis problemas presentes
no aprendiz que supostamente explicam seu insucesso escolar: as
causas agora vão desde as físicas até as emocionais e de personalidade,
passando pelas intelectuais. A nova palavra de ordem é a higiene mental
escolar e, com intenções preventivas, as clínicas de higiene mental e de
orientação infantil disseminaram-se no mundo a partir da década de
1920, propondo-se a estudar e corrigir os desajustamentos infantis. O
mais interessante é que essas clínicas serviam (e muitas ainda existem)
diretamente à rede escolar através do diagnóstico, o mais precocemente
possível, de distúrbios de aprendizagem.
Embora tenham nascido com intenções mais amplas, que abrangiam um trabalho permanente de orientação
de pais e professores, essas clínicas ortofrênicas transformaram-se rapidamente em fábricas de rótulos.
E os mais prováveis destinatários serão, mais uma vez, as crianças provenientes de segmentos das
classes trabalhadoras dos grandes centros urbanos, que tradicionalmente integram em maior número
o contingente de fracassados na escola.
!
Esse movimento gera, também, preocupação com a higiene
mental do professor e com a possibilidade de seus distúrbios emocionais
interferirem negativamente na saúde mental de seus alunos e, por fi m,
orienta uma série de medidas pedagógicas destinadas à correção dos
desajustes revelados pela clientela escolar, como, por exemplo, as
classes fracas, que mais tarde gerará uma outra modalidade escolar:
as classes especiais.
Nessa época, o peso atribuído à hereditariedade e à raça na
determinação do comportamento já havia diminuído. Contudo, diante
da recorrência de dados que apontavam os negros e os trabalhadores
pobres como os detentores dos resultados sistematicamente mais baixos
nos testes psicológicos, a explicação começa a se modifi car, em vez de ser
racial, no sentido biológico do termo, passa a ser cultural. A Psicologia
Diferencial assimilou muito dos conhecimentos acumulados pela
Antropologia Cultural e os utilizou para explicar o menor rendimento
obtido por grupos e classes sociais mais pobres na escola e nos
instrumentos de medida das capacidades psíquicas. Entretanto, como
as armadilhas da ideologia estavam presentes na substituição do conceito
de raça pelo de cultura, os juízos de valor centrados no modo de viver e
de pensar dos grupos dominantes tingem as pesquisas dos antropólogos
Aula_23.indd 129 6/22/2004, 11:03:40 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2
CEDERJ130
culturalistas, que freqüentemente consideram primitivos, atrasados e
rudes grupos humanos (e até classes sociais) que não participam e/ou
participam parcialmente da cultura dominante.
A infl uência dessa maneira de pensar atravessou as pesquisas
que investigaram as relações familiares e as práticas de criar crianças
em diferentes segmentos sociais e, assim, tornou visível, desde o
início do século, os discursos que apontavam a ausência, nas classes
dominadas, de normas, padrões e hábitos e práticas presentes nas
classes dominantes – ausência que foi considerada indicativa de atraso
cultural desses grupos e que os aproximava do estado primitivo dos
grupos étnicos de origem. Daí foi um pequeno passo para afi rmar
a existência de culturas inferiores ou diferentes. A Psicologia pega
carona nessa explicação e apela para o conceito de grupos familiares
patológicos e de ambientes sociais atrasados que gerariam crianças
desajustadas e problemáticas.
Essa versão dos fatos cientifi camente produzidos atinge seu clímax
nos anos 60, quando é elaborada a teoria da carência cultural. Não é difícil
localizar nos milhares de textos que integram essa teoria o preconceito
social e, muitas vezes lado a lado com o preconceito racial, as alusões
aos adultos das classes subalternas como mais agressivos, relapsos,
desinteressados pelos fi lhos, inconstantes, viciados e imorais. Assim, a
forte e tradicional tendência social de ver o pobre como um termo do
meio entre o selvagem e o civilizado atravessa as pesquisas científi cas e
mostra-se presente na mentalidade de muitos pesquisadores.
Em 1951, a psicóloga norte-americana Esther Milner publicou um
estudo experimental cujos resultados encontram-se entre as afi rmações-
chave da teoria da carência cultural que serviram de base a inúmeros
programas de intervenção desenvolvidos no decorrer dos anos 60.
Seu objetivo foi estudar as relações entre a prontidão para a leitura
na primeira série e padrões de interação pais-fi lhos. Suas conclusões
evidenciaram, nitidamente, a marca da visão social etnocêntrica e
preconceituosa que se tem das camadas mais pobres da população. Eis
um pequeno trecho:
Quando de seu ingresso na escola, a criança de classe baixa parece ressentir-se principalmente de duas vantagens que a criança de classe média tem. A primeira é uma atmosfera familiar afetuosa e positiva; a segunda, um padrão de relação com adultos que está sendo cada vez mais reconhecido como um requisito de motivação para qualquer tipo de aprendizagem controlada por adultos.
Aula_23.indd 130 6/22/2004, 11:03:41 AM
CEDERJ 131
AU
LA 2
3 M
ÓD
ULO
3
A segunda vantagem é descrita como ampla oportunidade de
interagir verbalmente com adultos. Esse segundo ponto é ilustrado pela
pesquisadora por atmosferas radicalmente diferentes encontradas nas
refeições. Nas casas das crianças que apresentaram elevados escores
nos testes (as de classe média), havia conversação mais espontânea
durante as refeições. Já as crianças de classe baixa, no estudo de Milner,
percebiam o adulto como hostil e, nos lares desse grupo, as conversas
eram desencorajadas na hora das refeições entre adultos e crianças.
O que salta aos olhos nesse tipo de pesquisa é a difi culdade dos
pesquisadores de perceber a própria precariedade dos instrumentos de
avaliação utilizados e como o contexto em que suas observações estão sendo
realizadas pode ser o responsável pelos resultados negativos encontrados.
A relação estabelecida entre pesquisador e pesquisada também é
ignorada na análise dos resultados. Não leva em conta que a presença
de um pesquisador à mesa de refeições possa influenciar tanto o
comportamento dos pais de classe média, fazendo-os agir de acordo
com o que aprenderam ser a relação socialmente valorizada entre pais e
fi lhos, quanto promover efeitos inibidores nos comportamentos de pais
e crianças das classes mais baixas.
Gerada no calor dos movimentos reivindicatórios das minorias
latinas e negras norte-americanas, era de se esperar que a teoria da
carência cultural e as conclusões de suas pesquisas fossem expressão,
mesmo que de forma sutil, da crença arraigada na inferioridade de
negros, índios e mestiços, inferioridade esta que justifi cava os seus baixos
rendimentos na escola, ou seja, seus fracassos escolares.
Pulando para o Brasil, vemos a partir dos anos 70 a teoria da
carência cultural explicando os distúrbios de desenvolvimento das crianças
pobres e a relação desses distúrbios com o baixo rendimento alcançado
em suas aprendizagens e, o que é pior, seduzindo muitos psicólogos
educacionais e pedagogos. As malhas ideológicas dessa teoria aprisionaram
muitos educadores e não foi tarefa fácil desmantelar a impropriedade dos
termos-chave dessa tese, como: privação, carência ou defi ciência cultural
que sugeriam equivocadamente a idéia de ausência de cultura, idéia essa
que não encontra sustentação alguma dentro da Antropologia.
Aula_23.indd 131 6/22/2004, 11:03:42 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2
CEDERJ132
Um cartum do humorista Feiffer, que mostra um monólogo de
uma pessoa proveniente das camadas populares, ilustra como os termos
usados pelas teorias ganham signifi cados:
Eu pensava que era pobre. Aí, disseram que eu não era pobre, eu
era necessitado. Aí, disseram que era autodefesa eu me considerar
necessitado, eu era defi ciente, aí, disseram que defi ciente era uma
péssima imagem, eu era carente. Aí, disseram que carente era um
termo inadequado. Eu era desprivilegiado. Até hoje eu não tenho
um tostão, mas tenho já um grande vocabulário.
Pois é, o vocabulário da discriminação social, econômica e
educacional já é bem grande e a marginalização das classes populares
em nada é alterada pelas teorias e propostas educacionais voltadas para
as defi ciências culturais dessas classes ou para as diferenças culturais
entre elas e as classes socialmente privilegiadas. Diferenças com sinais
positivos para as crianças provenientes das camadas altas e médias da
sociedade e com sinais negativos para as crianças pobres.
A Psicologia diferencial norte-americana tratou de resolver
o problema dos sinais aliando-se ao combate à pobreza, vista
como uma doença social que acabava por debilitar profundamente
o desenvolvimento emocional e intelectual das crianças pobres.
Os programas de educação compensatória, que chegaram ao Brasil por
volta dos anos 80, propunham uma intervenção precoce na educação da
criança (educação infantil, sobretudo), com o objetivo de prepará-la para
a escola, prevenindo, assim, futuros problemas de aprendizagem e de
adaptação. Essa preparação para a escola está voltada, principalmente,
para submeter a criança a atividades de socialização, partindo do
pressuposto de que a socialização que ela vivencia em seu contexto
familiar e cultural é pobre e defi ciente. Assim, o objetivo é substituir (ou
compensar a criança pobre) pelo processo de socialização considerado
rico e adequado, entendendo-se que somente através desse processo a
criança poderá desenvolver o raciocínio, adquirir capacidade de atenção
e concentração, ampliar seu vocabulário, enriquecer sua sintaxe etc.,
tudo isso a partir das carências que a ideologia da defi ciência cultural
atribuiu à população infantil pobre. É também proposta de programas
compensatórios de educação infantil despertar atitudes favoráveis em
relação à escola e à aprendizagem, sob o falso argumento de que as
Aula_23.indd 132 6/22/2004, 11:03:44 AM
CEDERJ 133
AU
LA 2
3 M
ÓD
ULO
3
camadas populares menosprezam escola e aprendizagem formal; e, ainda,
criar bons hábitos e comportamentos sociais adequados, considerando
sempre que bons hábitos e comportamentos adequados são aqueles
próprios das classes dominantes e economicamente privilegiadas.
O dogmatismo teórico, com toda a sua prepotência de ciência
norte-americana, apela agora para uma ampla reciclagem dos professores
envolvidos com Educação Infantil. Afi nal, é preciso também que eles
aprendam comportamentos pedagogicamente adequados para treinar
bem as crianças selvagens (sem cultura) que freqüentam as escolas.
E, desde então, as atividades de treinamento (colar por colar; recortar por
recortar; levar o patinho para o lago) e toda uma série de trabalhinhos
mimeografados têm invadido o espaço escolar. As editoras rapidamente
perceberam que um veio de ouro estava à sua espera e, assim, livros
didáticos voltados para o treinamento de crianças apareceram no
mercado, com apoio do Governo Federal, comprados com o dinheiro
dos impostos (ou seja, nosso dinheiro!), entraram pela porta da frente de
nossas escolas, escolhidos pelos próprios professores. Livros de péssima
qualidade que vinham (e ainda é assim) com manuais para professores,
explicando como deveriam ser utilizados e como as crianças deveriam
ser avaliadas. O negócio deu tão certo, em termos fi nanceiros para as
editoras, que novos pacotes de livros didáticos foram criados para os
demais segmentos do ensino. Estado e editoras deram as mãos nessa
cruzada e o Governo faturou mais votos para sua perpetuação.
Entretanto, a onda teórica da carência cultural passou e nos anos 80,
anos que assistiram ao fi m da ditadura militar, à abertura política, à anistia
“total e irrestrita” e à volta dos exilados, trouxe para o cenário acadêmico
brasileiro as teorias crítico-reprodutivistas da Europa, mais especifi camente
da França. As idéias de Althusser (1974), Bourdieu (1974), Passeron
(1975) e Establet e Baudelot (1971), autores que passaram a freqüentar
assiduamente a bibliografi a de algumas publicações brasileiras de
vanguarda, introduziam em nosso campo educacional a possibilidade
de se pensar o papel da escola no âmbito de uma concepção crítica de
sociedade. Esses autores nos forneceram as ferramentas conceituais
para análise das instituições sociais como lugares nos quais se exerce
a dominação cultural, a ideologização a serviço da reprodução das
relações de produção. Dessa forma, como a escola, em suas práticas
cotidianas, embaça a visão de exploração imposta pelo capital, segundo
Aula_23.indd 133 6/22/2004, 11:03:45 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2
CEDERJ134
estas teorias, principalmente pela veiculação de conteúdos de ensino
ideologicamente encharcados e do privilégio concedido aos estilos de
pensar e falar próprio das classes dominantes. É assim que o sistema
de ensino torna-se um instrumento a serviço da manutenção daqueles
já privilegiados educacionalmente, ou seja, daqueles que detêm o poder
econômico e o capital cultural.
A apropriação dessas novas idéias lado a lado com a ainda
convincente teoria da carência cultural, aliada a uma concepção
positivista de produção de conhecimentos, resultou em inúmeras
distorções conceituais e descaminhos teóricos perigosos para a já tão
fragilizada escola pública. Um exemplo dessa distorção foi o conceito de
dominação – contrapartida cultural da exploração econômica inerente
a uma sociedade de classes regida pelo capital – que passou a ser usado
muito freqüentemente com o mesmo sentido a-histórico presente na
literatura educacional norte-americana dos anos 60: imposição da cultura
da maioria a grupos minoritários ou por imposição dos valores da classe
bem-sucedida à classe malsucedida no contexto urbano, por intolerância,
moralismo ou inadvertência da primeira para com a existência de
subculturas distintas da sua na sociedade inclusiva.
Assim, os resultados das pesquisas norte-americanas sobre
características psicológicas das pessoas das “classes baixas” acabaram
convivendo com uma linha de raciocínio que se queria crítica. Esse foi o caso
do imediatismo e do viver sem regras – duas características freqüentemente
atribuídas, nesta literatura, às populações carentes – tomadas acriticamente
por pesquisadores brasileiros como características da clientela das escolas
de periferia; como conseqüência, o trabalho pedagógico, nessas escolas,
foi defi nido como um trabalho dirigido a crianças que não poderiam ter
outras características de personalidade senão serem: rebeldes, malcriadas,
carentes de afeto, apáticas, ladras, doentes, sujas e famintas. Da mesma
forma, suas famílias eram vistas, nada mais e nada menos, como:
desestruturadas, ignorantes, desinteressadas, não havendo como fugir
dessa situação cultural. Como esperar que esse bando de bárbaros infantis
pudesse aprender algo? As explicações do fracasso escolar dos rebeldes
alunos pobres voltam-se, então, para o despreparo dos professores que,
ao esperar encontrar em suas salas de aula alunos ideais, limpos, sadios,
disciplinados e inteligentes, todos fi lhos de famílias bem estruturadas e
interessadíssimas com o rendimento escolar de seus fi lhos, das camadas
Aula_23.indd 134 6/22/2004, 11:03:47 AM
CEDERJ 135
AU
LA 2
3 M
ÓD
ULO
3
médias e altas da sociedade, enfi m, frente a uma realidade diferente daquela
que aprenderam em seus cursos de formação, os professores também
fracassavam em suas ações pedagógicas.
Mas, enquanto isso, outras teorias psicológicas tentavam penetrar
na escola e nos cursos de formação de professores. Piaget e sua Psicologia
Genética já estavam presentes no Brasil desde os anos 60, embora
pouco estudados pelos professores da Educação Infantil e da Educação
Fundamental. Quando muito, só é mostrada sua teoria dos estágios, pois
ao descrever uma série de etapas de desenvolvimento correspondentes
às capacidades e à maneira de atuar mais representativa de crianças de
diferentes idades, Piaget oferece um instrumento bastante tentador para
a prática educativa, porém perigoso. Tentador por permitir situar um
aluno, dentre muitos em sala de aula, de acordo com o seu estágio de
desenvolvimento, em um certo nível de competência e apreciar o que
é capaz ou incapaz de fazer e de aprender. Nesse sentido, Piaget pode
servir para delinear programas e tarefas escolares e para avaliar as
aprendizagens que acontecem na sala. Porém, pelo fato de a Psicologia
Genética ter sido reduzida tão-somente aos estágios, tornou-se um
instrumento perigoso por oferecer, pura e simplesmente, indicações de
uma capacidade cognitiva geral que nem sempre tem repercussões em
aprendizagens específi cas.
Efetivamente, não interessa a Piaget saber em que idade
aparece tal e tal capacidade cognitiva, ou em que idade se manifesta
com mais intensidade tal ou tal erro de raciocínio. Por essa razão, o
psicólogo suíço sempre dá idades aproximativas para situar os estágios
de desenvolvimento. O seu interesse teórico recai sobre a ordem de
sucessão desses estágios, sobre o que representa passar de um estágio a
outro nível cognitivo e sobre a explicação desse processo. Além do mais,
Piaget não quis estabelecer um instrumento de diagnóstico sobre o nível
cognitivo das pessoas de acordo com sua idade. O que lhe interessava
era identifi car as mudanças cognitivas mais gerais – que acontecem com
todas as pessoas – em um caráter universal, sempre associadas à espécie
humana. Enfi m, a prudência impõe-se na hora de extrapolar os dados
relativos aos estágios de Piaget na prática educativa. E, assim como a
teoria crítico-reprodutivista teve que conviver com a teoria da carência
cultural e ver seus conceitos boiarem na sopa ideológica das políticas
educacionais, Piaget teve o mesmo destino, da mesma forma que Emília
Aula_23.indd 135 6/22/2004, 11:03:49 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2
CEDERJ136
Ferreiro. Livros didáticos construtivistas choveram nas escolas e cartilhas
inspiradas na Psicogênese da Língua Escrita apareceram nas instituições
educacionais de todo o país.
Tão grave ou mais do que esses episódios educativos foi a disputa
teórica que se estabeleceu entre seguidores de Piaget e de Vygotsky. A
briga foi acirrada, mais parecida com a ocupação da faixa de Gaza: os
bombardeios eram constantes.
As teses de Vygotsky referentes à origem dos processos psicológicos
superiores (por exemplo, a formação da consciência) manifestam-se no
que ele denominou lei geral do desenvolvimento cultural – a lei da dupla
formação dos processos psicológicos superiores. De acordo com essa lei,
os processos da linha social e cultural do desenvolvimento originam-
se sempre entre pessoas, isto é, têm sua raiz inicialmente no plano da
relação com os outros e depois surgem no plano estritamente individual.
Decorre dessa lei, a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) que se
apresenta como a região dinâmica em que se pode realizar a transição
desde o funcionamento intermental (entre pessoas) até o intramental,
isto é, a internalização.
Assim como a teoria de Piaget transformou-se em uma caricatura: os
estágios e, fi cou perdida na distância entre sua vasta obra e sua transposição
apressada para as práticas educacionais, Vygotsky também não fi cou imune
às distorções em nome de sua teoria. A zona de desenvolvimento proximal
virou vedete e desfi lou nos carros alegóricos das escolas de forma vulgar
e leviana. Elevado à categoria de salvador da educação brasileira e mal
ensinado nos cursos de formação de professores, suas idéias não têm
resistido às investidas ideológicas e permanecem, quando muito, restritas
ao meio acadêmico.
O que fazer então, já que as ideologias estão sempre surgindo
com novas caras, roupas e linguagens e invadindo o território escolar?
Respondo como psicóloga educacional e clínica. Transformar um
conhecimento em uma prática profi ssional é uma tarefa à qual temos
nos dedicado. Inicialmente, nos parecia uma tarefa urgente, porém
ainda difícil. No entanto, aos poucos, fomos nos dando conta de que
nosso pensamento teórico se tornara possível por desenvolvermos, já há
alguns anos, uma prática em Psicologia Educacional que não precisava
ser reinventada. Estava lá, constituída; o que precisávamos, e ainda
precisamos fazer, é sistematizar os princípios desse fazer.
Aula_23.indd 136 6/22/2004, 11:03:51 AM
CEDERJ 137
AU
LA 2
3 M
ÓD
ULO
3
A intervenção de um profi ssional deve ser vista, acima de tudo,
como trabalho – emprego de energia de forma intencionada para produzir
transformações no meio. Por isso, entendo que trabalhar é transformar.
O que transformamos em Psicologia Educacional? Transformamos,
porque nele interferimos, o processo psicológico das pessoas. Para tanto,
é preciso que nos posicionemos sobre o que surge como o momento atual
e o que se apresenta como fi nalidade de intervenção. A questão ética
desse processo é que, ao planejar nossa intervenção, consideramos não
só nossos conhecimentos teóricos (referências e padrões fornecidos pela
teoria adotada) e valores pessoais, mas, em primeiro plano, as condições,
necessidades, vontades e projetos das pessoas para as quais prestamos
nosso serviço. Enfi m, uma prática profi ssional que se explicita em termos
de sua intencionalidade e de sua fi nalidade. Uma prática profi ssional que
se expõe e quer se afi rmar como transformadora, sempre.
Acredito que os professores desejam o mesmo em suas práticas
profi ssionais: criar sentidos e projetos de vida para seus alunos e não
lhes fornecer como destino o fracasso. A vida escolar é muito longa,
percorre toda a infância, adolescência e chega até a vida adulta, por isso
é mais do que necessário que esta vida possa valer a pena ser vivida.
Aqueles alunos que desistem da escola por se considerarem incapazes
de aprender serão, muito provavelmente, aniquilados pela sociedade
capitalista, e aos que conseguem sobreviver resta a esperança de escalar
toda a pirâmide educacional e entrar na universidade – ápice da ascensão
social. Uma escalada e tanto. Como eles precisam de equipamento para
começar a subir, cabe aos educadores fornecer os instrumentos e apontar
os melhores caminhos.
Aula_23.indd 137 6/22/2004, 11:03:54 AM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação Estado, sociedade e escola 2
CEDERJ138
Acabamos de ver como a Psicologia, como qualquer ciência humana, pode ser
vítima da ideologia, já que seus pesquisadores e cientistas também estão inseridos
na História e na sociedade, portando as idéias dominantes nos tempos que viveram
(ou que ainda vivem), fazem parte de seus ideários e idealismos pessoais. Seus
sonhos são o combustível de suas pesquisas, e suas crenças nas aptidões humanas
conduzem suas teorias. O conceito de quociente intelectual (QI) nasceu para provar
ao mundo o que a inteligência humana era capaz de realizar. Provavelmente
esse bebê-teórico teve um nascimento prematuro e não se desenvolveu de forma
sadia. É o que a história da Psicologia e da Pedagogia vem demonstrando. Muitas
deformações nas práticas escolares foram produzidas através de diagnósticos
“fechados” no QI dos alunos e, lamentavelmente, os alunos mais pobres foram
os mais prejudicados.
À medida que as décadas foram se sucedendo, novos bebês-teóricos surgiram
no mundo da Psicologia e seus nascimentos repercutiram também nas políticas
educacionais, gerando diferenciações nos tratamentos escolares entre crianças
pobres e ricas. A Pedagogia, alimentada pelas novas teorias psicológicas,
comportava-se também de forma diferenciada no que se referia à educação dos
alunos provenientes das camadas populares.
Entramos no século XXI dispostos a romper com essa herança, que julgamos
negativa e preconceituosa, e munidos de outras ciências humanas e sociais
pretendemos educar todos os alunos aproveitando todos os saberes que eles
trazem para a escola.
R E S U M O
Aula_23.indd 138 6/22/2004, 11:03:55 AM
CEDERJ 139
AU
LA 2
3 M
ÓD
ULO
3
AUTO-AVALIAÇÃO
• Depois da leitura do texto refl ita sobre os exercícios diários que você passa em
sala de aula e como dever de casa. Tente separá-los em dois grandes conjuntos:
os que acrescentam algo para os alunos e os que são, apenas, treinamento.
Lembre-se de que a inteligência não é um músculo que precisa malhar em uma
academia de ginástica, ela é uma energia criadora que precisa de criatividade
para se expandir.
• Quantos alunos na escola em que você trabalha são rotulados como incapazes
para aprender? O que eles fi zeram para merecer essa etiqueta de incapazes?
• Do mesmo modo, pense nos alunos considerados inteligentes e capazes. Por
que são considerados assim?
• Na sua escola qual é o profi ssional da Educação que julga o rendimento escolar
dos alunos? Quais os critérios usados para esses julgamentos?
• O que você pode fazer, em sala de aula, pelos alunos que demoram mais tempo
para aprender?
• Da mesma maneira, refl ita sobre o que pode ser feito pelos alunos que aprendem
rápido demais e incomodam os demais, gerando brigas e confusões.
Aula_23.indd 139 6/22/2004, 11:03:55 AM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
24au
la
OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Analisar historicamente a instituição da escola no mundo moderno.
• Refletir criticamente sobre o significado da escola para a sociedade da Idade Moderna.
A instituição da escola no mundo moderno
Aula_24.indd 141 6/29/2004, 2:01:07 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno
CEDERJ142
FRANÇOIS RABELAIS
(1494-1553)
Frade beneditino e médico francês. Valoriza o saber greco-latino e os estudos científi cos. Representa o Humanismo presente no Renascimento. Seus romances Gargântua e Pantagruel descrevem, com bastante ironia, suas idéias educacionais.
INTRODUÇÃO Surge uma nova paisagem na janela de nosso trem; no cenário anterior
refl etimos sobre a relação entre o Estado, a sociedade e a escola, mas agora
precisamos pensar por que a escola tornou-se uma instituição importante a
partir da Idade Moderna.
BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA IDADE MODERNA E O PAPEL DA EDUCAÇÃO
Meu fi lho, exorto-o a empregar a sua juventude no progresso
dos estudos e da virtude. Você está em Paris, com seu preceptor
Epistemon... Entendo e quero que aprenda as línguas, primei-
ramente a grega, como quer Quintiliano; secundariamente, a
latina; depois a hebraica, por causa das santas epístolas; a caldaica
e arábica pela mesma razão... Das artes liberais, Geometria,
Aritmética e Música... Quanto aos conhecimentos dos fatos da
natureza, quero que se adorne cuidadosamente deles; que não haja
mar, ribeiro ou fonte dos quais não conheça os peixes; todos os
pássaros do ar, todas as árvores e todos os arbustos e frutos das
fl orestas, todas as ervas da terra, todos os metais escondidos no
ventre dos abismos, as pedrarias do Oriente e do Sul, nada lhe
seja desconhecido. (Rabelais)
Nesta citação de RABELAIS podemos perceber uma mudança de
mentalidade com relação às idéias educacionais; há uma ênfase no estudo
da ciência, a busca de um conhecimento mais profundo da natureza;
existe uma procura de ERUDIÇÃO. No início da Idade Moderna começa-se
a valorizar uma visão de mundo humanista, o homem torna-se o eixo
central das discussões.
O mundo moderno começa a ser
construído a partir de alguns marcos
históricos importantes: o HUMANISMO; a
ascensão da burguesia, com a consolidação
do modo de produção capitalista; a
Reforma e a Contra-Reforma. A partir do
fi nal do século XV e início do século XVI,
observamos uma gradativa mudança de
mentalidade: busca-se valorizar o homem.
RABELAIS, François. Pantagruel. In: Rosa, Maria da Glória. A História através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 125.
Volte à Aula 4 e leia o primeiro item.
ERUDIÇÃO
Instrução vasta e variada.
HU M A N I S M O
Doutrina ou atitude que se coloca
numa perspectiva antropocêntrica.
Movimento renascentista voltado
especialmente para as línguas e literatura
greco-romanas.
Aula_24.indd 142 6/29/2004, 2:01:39 PM
CEDERJ 143
AU
LA 2
4 M
ÓD
ULO
3
Surge um movimento cultural denominado RENASCIMENTO, que procura
romper com o mundo medieval, compreender o mundo dos homens e
valorizar a cultura greco-romana. Começa a se consolidar o Humanismo,
que tem como meta a construção de uma nova imagem de homem, a
valorização da literatura greco-romana e a busca de ampliação dos
conhecimentos. Nesse período procura-se superar o TEOCENTRISMO,
enfatizando-se os valores ANTROPOCÊNTRICOS, ou seja, o homem passa a
ser considerado o centro do universo.
Nesse mundo de novos princípios, o homem precisa de erudição;
por isso o colégio passa a ser um local importante, que possibilita o
acesso aos conhecimentos. Nele, os fi lhos da pequena nobreza e da
burguesia estudariam e se preparariam para os novos desafi os do
mundo moderno. Nesses novos tempos, o homem não devia ser um
mero espectador do mundo; ele precisava conhecer mais profundamente a
realidade à sua volta. Mesmo porque, de acordo com MONROE (1969),
a educação humanista da Renascença tinha como fi nalidade formar o
“homem perfeito, apto a participar das atividades das instituições sociais
dominantes”. Um homem livre que, através de seus estudos, atingiria a
virtude e a sabedoria, desenvolvendo os dotes do corpo e do espírito.
No contexto cultural europeu, a visão humanista não se
apresenta de modo homogêneo; dessa concepção surgiram duas
vertentes importantes que fundamentaram o contexto educacional
dos séculos posteriores à criação do movimento humanista. Ao sul da
Europa, o humanismo enfatizava a educação liberal, que possibilitava
o desenvolvimento pessoal; ao norte, predominava a transmissão de um
saber que poderia fornecer subsídios para reformar as mazelas sociais,
frutos da ignorância.
Dessa segunda vertente, nasce o movimento da Reforma, que
utiliza princípios do humanismo para questionar as crenças e práticas
religiosas da Igreja Católica Apostólica Romana. Era preciso observar,
comparar, criticar, ou seja, usar a visão racional para contestar os
princípios da Igreja Católica. De acordo com Lutero, principal expoente
da Reforma, o que contraria a razão contraria também Deus. Por isso,
cada homem deveria interpretar as Sagradas Escrituras de acordo com
a sua consciência. Essas afi rmações de LUTERO apontavam para uma
mudança cultural que vinha sendo gerada a partir da instalação da
visão humanista de mundo.
RENASCIMENTO
Movimento científi co e artístico dos
séculos XV e XVI, que valorizava a
cultura greco-latina e preconizava uma
visão humanista. O centro irradiador
desse movimento foi a Itália.
TEOCENTRISMO
Veja a explicação na Aula 4.
ANTROPOCENTRISMO
Veja a explicação na Aula 4.
MONROE, PAUL
História da Educação. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1969,
p. 153.
MARTINHO LUTERO
(1483-1546)
Volte à Aula 4 para obter informações
sobre ele.
Aula_24.indd 143 6/29/2004, 2:01:40 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno
CEDERJ144
Reconhecemos que as práticas racionais ainda não estavam
disseminadas e efetivadas nas diferentes instâncias da sociedade européia,
mas não podemos deixar de registrar que a racionalidade preconizada
pelo movimento humanista, somada às transformações no campo
econômico, político e social, possibilitou uma mudança signifi cativa
nas propostas educacionais.
Era necessário mudar a linha cultural da educação, porque
vinha surgindo lentamente um homem que precisava mudar o modo
de trabalhar; passava-se da produção artesanal para a manufatura; a
política deveria ser conduzida não apenas por aqueles que herdavam o
poder por laços de sangue, mas também por aqueles que demonstrassem
astúcia e sagacidade na arte de comandar. A ignorância começa a ser
vista como um mal que devia ser sanado, porque a prosperidade de um
país dependia de homens instruídos.
A educação devia se expandir às necessidades do novo mundo que
estava sendo construído na Europa. Nesse sentido, a Reforma constitui
um avanço em direção à "publicização" e disseminação da educação
formal. O povo não deveria ser somente depositário da catequese e da
evangelização; ele precisava da instrução para que se efetivasse um novo
projeto político, econômico e cultural.
Lutero, por exemplo, tinha propostas educacionais arrojadas para
sua época. Ele reivindicava:
• uma reforma educacional em todos os níveis de ensino, do
elementar à universidade;
• uma educação que não fosse monacal, antimundana e rígida;
• um sistema de ensino estatal;
a obrigatoriedade do ensino, que teria como ponto central a
formação religiosa.
Lutero, Melanchton, criador das bases da educação secundária
humanista, e outros reformadores foram responsáveis, na Alemanha,
assim como nos demais países protestantes, pela divulgação de uma
concepção que valorizasse a utilidade social da instrução, considerando
que a educação deveria ser LAICA e estatal.
Não era difícil constatar que o movimento de disseminação da escola
elementar e pública se efetivou, principalmente, nos países protestantes.
Os pressupostos defendidos pelos protestantes tornaram-se facilitadores
de uma cultura pedagógica que estava, de certa forma, em consonância
com o novo homem demandado pelo modo de produção capitalista.
MAQUIAVEL
Maquiavel, na obra O príncipe, defi ne as qualidades do soberano da Idade Moderna: astúcia, sagacidade e saber comandar, qualidades que não caracterizavam, necessariamente, aqueles que mantinham laços de sangue com a nobreza.
LAICA
Desvinculada de qualquer religião.
Aula_24.indd 144 6/29/2004, 2:01:43 PM
CEDERJ 145
AU
LA 2
4 M
ÓD
ULO
3
Não queremos estabelecer uma relação simplista e mecanicista entre
idéias protestantes e visão de mundo capitalista; porém, ao valorizar o
trabalho, ao relacionar escola/cidade, instrução/governo, o protestantismo
apontou o caminho que a educação formal devia trilhar para a sua
institucionalização nessa nova conjuntura econômica, política e social.
Para se contrapor à Reforma Protestante surge a Contra-Reforma,
realizada pela Igreja Católica Apostólica Romana. A Igreja Católica
precisava restaurar o seu prestígio e propor uma concepção educacional
à altura da educação protestante. No Concílio de Trento (1545-1563),
foram discutidas as novas diretrizes da doutrina católica. Propuseram a
disseminação de seminários para a formação do clero, surgiram novas
ordens religiosas que deveriam se espalhar pelo mundo para consolidar
a evangelização católica.
Nesse contexto, uma ordem se destacou: a Companhia de Jesus,
fundada por Inácio de Loyola em 1534 e aprovada pelo Papa Paulo III
em 1540; vinculava-se diretamente à autoridade papal, não seguindo
a hierarquia tradicional da Igreja. A Companhia de Jesus tinha uma
missão pedagógica dupla: fortalecer a HEGEMONIA pedagógica da Igreja,
espalhando colégios para formar os nobres e a alta burguesia, e também
fazer um trabalho de catequese. Os jesuítas eram padres que tinham a
missão de divulgar os preceitos da Igreja Católica para combater os
heréticos e infi éis, propagando a fé. Espalharam-se pelos quatro cantos
do mundo: América, África, Ásia e Europa. Pretendiam doutrinar os
povos e formar o homem educado segundo uma formação humanista
aliada à VISÃO ARISTOTÉLICO-TOMISTA.
A Reforma e a Contra-Reforma foram importantes para os rumos
da educação no mundo moderno e a institucionalização da escola. Esses
movimentos contribuíram para a ampliação e a “publicização” do ensino
elementar, o que facilitou o crescimento da discussão sobre a necessidade
de universalizar a escola.
Devemos salientar que a Reforma, a Contra-Reforma e os movi-
mentos culturais ocorridos nesse período foram fundamentais para a
consolidação do modo de produção capitalista, assim como um novo
modo de fazer política. O capitalismo nascente precisava de pessoas
instruídas que soubessem lidar com a manufatura e o comércio, e a
escola tornou-se um local importante para fornecer essa formação; por
isso veremos no próximo item como se consolidou esse processo de
institucionalização da escola.
HEGEMONIA
Preponderância de concepções de um
grupo social sobre os outros.
VISÃO ARISTOTÉLICO-
TOMISTA
Uma visão de mundo baseada na
interpretação que Santo Tomás de
Aquino fez do fi lósofo Aristóteles. Esta era
a concepção fi losófi ca adotada pela Igreja Católica Apostólica
Romana no fi nal da Idade Média.
Aula_24.indd 145 6/29/2004, 2:01:44 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno
CEDERJ146
PHILIPP MELANCHTON (1497-1560)
Humanista, colaborador de Lutero, foi denominado “Preceptor da Alemanha”, pois reorganizou as escolas da Saxônia e as universidades protestantes. O trecho citado aqui está na obra In laudem nova scholae, de 1526. Esta citação foi tirada da obra de Manacorda, Mario A. História da Educação. São Paulo: Cortez, 1997, p.198.
A INSTITUIÇÃO DA ESCOLA NO MUNDO MODERNO
Antes de tudo, uma cidade bem ordenada precisa de escolas,
onde as crianças que são o viveiro da cidade sejam instruídas:
engana-se gravemente, de fato, quem pensa que sem instrução
possa adquirir-se uma sólida virtude, e ninguém é sufi cientemente
idôneo para governar as cidades sem o conhecimento daquelas
letras que contêm o critério do governo de todas as cidades.
(MELANCHTON)
A institucionalização da escola na Idade Moderna tem como fatores
determinantes as mudanças socioculturais, econômicas e políticas que
ocorreram a partir do século XVI, com a implantação do modo de produção
capitalista, a Reforma Protestante, a Contra-Reforma feita pela Igreja
Católica Apostólica Romana e a instauração da visão humanista. Diante
dessas mudanças, a educação devia expandir-se devido às necessidades do
novo mundo que estava sendo construído na Europa. O povo precisava
da instrução para que se efetivasse um novo projeto econômico, político e
cultural. Há um grande interesse pela educação no Renascimento; nesse
período há uma proliferação de colégios e manuais didáticos para alunos e
professores. Educar, numa instituição escolar, tornou-se uma exigência para
a consolidação de uma nova concepção de homem. De acordo com a obra
Cortesão, de Castiglione, publicada em 1528, enquanto os fi lhos da alta
nobreza estudavam com preceptores em seus castelos, os fi lhos da pequena
nobreza e da burguesia eram educados em colégios, no sentido de prepará-
los para a liderança, a administração da política e dos negócios.
Além disso, foi se construindo gradativamente uma nova imagem
da infância e da família. A criança não poderia ser considerada um
adulto em miniatura, ela precisava ser educada moral e intelectualmente,
por isso dever-se-iam criar instituições que separassem as crianças do
mundo adulto, formando-as por meio de uma disciplina rigorosa,
dosando os valores e os saberes que seriam ministrados. A partir do
século XV, os colégios passam a ensinar com uma hierarquia rígida
e autoritária; inclusive esse modelo também foi adotado em escolas
católicas, protestantes e leigas. Podemos afi rmar que o colégio que
se institucionaliza no mundo moderno é uma instituição de ensino
complexa, que exerce uma rigorosa disciplina e vigilância, enquadrando
seus alunos na nova ordem da civilização moderna.
Aula_24.indd 146 6/29/2004, 2:01:45 PM
CEDERJ 147
AU
LA 2
4 M
ÓD
ULO
3
A partir dos séculos XV e XVI, a instituição escolar começou a se
preocupar com a divisão por idade nas classes; na Idade Média, as classes
misturavam alunos de todas as idades numa mesma sala de aula. Podíamos
encontrar numa classe alunos que variavam de sete a dezoito anos, porque
não se distinguiam os conteúdos programáticos por idade, considerava-se
que todos podiam aprender qualquer conteúdo, não importando a idade
do aluno. De acordo com ARIÈS, no período medieval,
assim que ingressava na escola, a criança entrava imediatamente
no mundo dos adultos. Essa confusão tão inocente que passava
despercebida era um dos traços mais característicos da antiga
sociedade, e também um de seus traços mais persistentes, na medida
em que correspondia a algo enraizado na vida. Ela sobreviveria a
várias mudanças de estrutura.
Nas escolas medievais praticava-se o método da simultaneidade
e da repetição.
As mudanças na instituição escolar estão diretamente vinculadas
a uma mudança na mentalidade sobre a questão das diferenças das
idades e no olhar em direção à infância. A partir da Idade Moderna
começou-se a considerar que era necessário dar às crianças e aos jovens
um modo de vida particular, principalmente no que se refere à educação
moral. Sendo assim, o colégio passou a ser a instituição que ofereceria
as condições para educar crianças e jovens. A divisão por idade foi um
processo lento, que começou no século XV. A princípio, todos fi cavam
no mesmo espaço, com professores diferentes; depois, as classes e seus
professores foram isolados em salas especiais. A divisão não muito rígida
por idade nas classes persistirá ao longo dos séculos e, somente no século
XIX, ela se defi ne completamente, quando a idade das crianças para
uma determinada classe torna-se fundamental.
A partir do século XVI, segundo Ariès,
o colégio modificou e ampliou seu recrutamento. Composto
outrora de uma pequena minoria de clérigos letrados, ele se abriu
a um número crescente de leigos, nobres e burgueses, mas também
a famílias mais populares. O colégio tornou-se uma instituição
essencial da sociedade.
Nesse período há uma expansão do humanismo e uma maior
possibilidade de ampliação dos conhecimentos, por isso os colégios
tornam-se mais necessários. Houve uma evolução quantitativa da instrução
exigida pelo desenvolvimento econômico e social e cresce a preocupação
com o como e o quanto instruir, principalmente para quem produz.
ARIÈS, PHILIPPE
História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC,
1981, p. 168.
Aula_24.indd 147 6/29/2004, 2:01:47 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno
CEDERJ148
A ignorância e a pobreza são vistas como entraves para o desenvolvimento
humano, como ilustra este trecho de Alciato, citado no livro de
MANACORDA:
A direita segura uma pedra, a outra mão sustenta as asas; enquanto
uma me levanta, o grave peso da outra me submerge. Com o talento
poderia ter voado nos altos do céu, se a invejosa pobreza não me
prendesse cá embaixo.
A difusão da instrução começou a ser vista como fundamental
devido a vários motivos: para os protestantes, todas as pessoas deviam
ler e interpretar a Bíblia sem a mediação do clero; para os capitalistas,
era preciso empregados com um mínimo de instrução para que as tarefas
fossem mais bem executadas na manufatura e também no comércio.
Por isso, nos países não-católicos surgirá uma maior iniciativa para a
implementação de novos modelos de instrução popular. Ainda no século
XVI, algumas cidades da Alemanha já reivindicavam um sistema de
instrução popular. Lutero será um dos responsáveis pelo impulso prático e
político no sentido de efetivar um novo sistema escolar na Alemanha.
Enquanto isso, nos países com o domínio da Igreja Católica
Apostólica Romana, a Contra-Reforma reorganizou as escolas nos
mosteiros, conventos e igrejas. Foram criados seminários para a
formação do clero e, em 1599, foi publicada a Ratio Studiorum, que
era um conjunto de normas que regulamentava o ensino das escolas
dirigidas pelos jesuítas, estabelecendo a organização em classes, os
horários, os programas e a disciplina. Mesmo dentro da Contra-Reforma,
realizada pela Igreja Católica, observamos a importância que passou a
ser dada à escola, pois a publicação da Ratio Studiorum demonstrava
a necessidade de preservar e controlar a institucionalização da escola
no mundo moderno.
A partir do século XVII, cresce o movimento para estabelecer a
escola pública. Começa a surgir, em alguns países, a preocupação em
consolidar a escola como uma instituição pública, vinculada ao Estado.
Com o advento do modo de produção capitalista, o estabelecimento
do trabalho livre e a necessidade do desenvolvimento da manufatura,
não se concebe mais um trabalhador sem escolaridade básica. Nesse
contexto, surgem propostas para a universalização do ensino elementar
público e gratuito.
MANACORDA, MARIO A.
História da Educação. São Paulo: Cortez, 1997, p. 194
Aula_24.indd 148 6/29/2004, 2:01:48 PM
CEDERJ 149
AU
LA 2
4 M
ÓD
ULO
3
Os melhores resultados em prol da educação pública estão na
Alemanha; por exemplo: o Ducado de Weimar, em 1619, regulamenta
a obrigatoriedade escolar para todas as crianças de 6 a 12 anos.
A França também possibilita alguns avanços em prol da educação pública
e, no século XVII, foram fundadas, nesse país, várias escolas gratuitas
para crianças pobres. Na passagem do século XVII para o século XVIII,
amadurecem as idéias e as condições para que se efetivem em vários
países europeus as escolas públicas.
De acordo com Manacorda, a Revolução Industrial, no século
XVIII, gera as condições para a consolidação da moderna instituição
escolar pública. Fábrica e escola nascem juntas, “as leis que criam a
escola estatal vêm juntas com as leis que suprimem a aprendizagem
corporativa”. No século XVIII, não somente os intelectuais reivindicavam
a educação pública, mas também as camadas populares começam a
reivindicar mais instrução e educação pública. Assim, podemos afi rmar
que a partir do século XVIII a escola está institucionalizada e cresce a
necessidade de intervenção do Estado na educação.
Nos séculos XVIII e XIX constatamos a consolidação da escola
como uma instituição imprescindível à sociedade contemporânea, um
local onde se passariam os valores da sociedade capitalista, preparando
as pessoas para as atividades necessárias ao modo de produção capitalista
e também formando o cidadão “civilizado”, de acordo com os novos
padrões da civilização contemporânea.
Aula_24.indd 149 6/29/2004, 2:01:49 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A instituição da escola no mundo moderno
CEDERJ150
R E S U M O
Nesta aula analisamos o processo de institucionalização da escola a partir do mundo
moderno. Constatamos que a Reforma e a Contra-Reforma foram fundamentais
para os rumos da educação no mundo moderno e a institucionalização da escola.
Esses movimentos contribuíram para a ampliação e a “publicização” do ensino
elementar, o que facilitou o crescimento da discussão sobre a necessidade de
universalizar a escola. A Reforma, a Contra-Reforma e os movimentos culturais
ocorridos nesse período foram fundamentais para a consolidação do modo de
produção capitalista. Esse modo de produção precisava de pessoas instruídas que
soubessem lidar com a manufatura e o comércio, por isso a escola tornou-se um
local importante para fornecer essa formação. A partir dos séculos XVIII e XIX,
constatamos a consolidação da escola como uma instituição imprescindível à
sociedade contemporânea, um local que transmite os principais valores da sociedade
capitalista, preparando as pessoas para as atividades necessárias a esse modo de
produção, com a missão de formar o cidadão “civilizado”, de acordo com os novos
padrões da civilização contemporânea.
EXERCÍCIOS
1. Por que a Reforma e a Contra-Reforma foram importantes para a institu ciona-
lização da escola no Mundo Moderno?
2. Podemos dizer que tanto na Idade Média quanto na Idade Moderna educava-se
a criança do mesmo modo? Por quê?
3. Discuta, a partir do que você leu nesta aula, a importância da escola para o
modo de produção capitalista.
AUTO-AVALIAÇÃO
Você conseguiu compreender a importância do movimento cultural do
Renascimento, da Reforma e da Contra-Reforma para o processo de
institucionalização da escola no mundo moderno? Observou como o modo de
produção capitalista criou caminhos para a consolidação da instituição escolar e a
importância que esta ganhou ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX? Percebeu o
papel que a escola assume no mundo moderno e contemporâneo? Se a resposta for
afi rmativa, você pode conseguir a sua viagem até a próxima aula, que versará sobre
"A sociologia do consenso: o otimismo e o pessimismo pedagógicos".
Aula_24.indd 150 6/29/2004, 2:01:49 PM
A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o
pessimismo pedagógico
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Identifi car os projetos, programas e discursos educacionais que estão assentados na Sociologia do Consenso.
• Analisar as ações educacionais que usam em seus pressupostos a Sociologia do Consenso.
• Compreender os porquês do otimismo pedagógico e do pessimismo pedagógico.
OBJETIVOS
au
la
25
Aula_25.indd 151 6/29/2004, 2:04:44 PM
C E D E R J152
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico
Durante a parada que fi zemos na Estação 23, vimos como a
relação Estado, sociedade e escola pode propiciar o surgimento de
teorias que explicam o fracasso escolar de alunos provenientes das
camadas populares, imputando as causas desse fracasso ao próprio
aluno, isentando a escola. Vimos, também, como essas explicações têm
apoio em algumas correntes e pesquisas da Psicologia e, como nenhuma
ciência está imunizada contra o vírus da ideologia dominante, que pode
ter sido gestada já contaminada.
De maneira geral, podemos afi rmar que, embora os sistemas
educacionais e os movimentos educativos infl uenciem a sociedade em
que estão inseridos, os dois também refl etem basicamente as condições
sociais, econômicas e políticas dessa sociedade. É por esse motivo que a
educação e a orientação do ensino evidenciam o seu caráter histórico.
A maneira como os movimentos sociais se refl etem na educação
pode ser evidenciada no início de um período de transformações e o
SISTEMA EDUCACIONAL VIGENTE (ou ainda em formação) já não atende mais
às novas demandas criadas, sendo necessária uma ampliação urgente
ou a formação de movimentos paralelos que preencham as lacunas
deixadas pelo que as características dos diversos períodos da História
da Educação de um país acompanham seu movimento histórico, suas
lutas pelo poder político e suas transformações econômicas e sociais.
Toda educação provém, assim, de uma situação social determinada e as
metas educacionais, de uma política do ensino atual.
Embora as condições socioeconômicas e políticas atuem sobre
os movimentos educativos de uma sociedade, fatores de origem
externa, assim como fatores especifi camente educativos devem ser
igualmente levados em consideração. Esse é o caso dos recentes acordos
internacionais feitos pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com
o FMI, que resultaram em uma política educacional marcada pelo lema:
toda criança na escola. Mais especifi camente na escola fundamental.
Em contrapartida, a mesma política ignora as universidades públicas e
seus centros de formação de professores.
Mas, voltando ao estreito vínculo do movimento educativo
com a sociedade como um todo, vemos como a partir dessa
vinculação surge o problema crucial dos limites e das possibilidades
da educação como instrumento de conservação e de MUDANÇA SOCIAL.
INTRODUÇÃO
SISTEMA EDUCACIONAL VIGENTE
A justifi cativa elaborada para a criação de movimentos educativos ou para a ampliação e/ou transformação dos sistemas existentes varia com as condições políticas, sociais e econômicas vividas em um dado momento. No Brasil, elas determinaram, por exemplo, não somente o desencadeamento da luta pela ampliação das oportunidades educacionais, mas também o sentido dessa luta.
MUDANÇA SOCIAL
Reconhece-se que a educação pode servir também aos objetivos de mudança social, tanto àqueles relativos a mudanças dentro das estruturas vigentes quanto à própria mudança de estruturas numa nação.
É relevante ressaltar a importância do poder constituído para que a educação não seja apenas uma força a serviço da conservação social.
Aula_25.indd 152 6/29/2004, 2:05:39 PM
C E D E R J 153
AU
LA 2
5 M
ÓD
ULO
3
Não há dúvidas de que o sistema educacional cumpre uma função
relevante de conservação social. É através dele que são difundidos
os postulados ideológicos que servem de sustentação à ordem vigente
(política, social, econômica) – de forma explícita, através das campanhas
educacionais exibidas pela televisão, ou de forma indireta, através dos
conteúdos dos programas, da natureza dos currículos e dos métodos
utilizados nas escolas – como sua própria estrutura serve a fi nalidades
do sistema social global.
O problema é que o sistema de ensino, quando não pertence ao
Estado, liga-se às classes dominantes, a grupos cujos interesses coincidem
freqüentemente com os daqueles que detêm de forma hegemônica o
poder político. O sistema preserva-se, portanto, através da educação e
as possibilidades de conservação e/ou mudança prendem-se diretamente
à vida política, mais do que a qualquer outra instância da vida social.
E é por isso mesmo que o movimento educativo, por si só, não transforma
a sociedade.
A História da educação nos mostra que, sempre que as CRISES
aparecem, a educação das massas adquire importância especial e os
grupos comprometidos na luta política lançam-se ao campo educacional
com a esperança de fortalecerem suas posições. Assim, por exemplo, em
períodos de expansão da economia, nos quais os discursos governamentais
estão pautados na modernização, é enfatizada a necessidade de
formação de quadros mais adequados à sociedade em transformação
e, dessa forma, surgem ofertas e oportunidades para a reformulação
dos sistemas educativos ou para movimentos que buscam promover
mudanças através da educação. Nesse caso, trata-se de reformulações
do sistema educativo ou de promover movimentos de educação que
visam ao aperfeiçoamento do sistema e à consolidação dos aspectos mais
fundamentais das estruturas em uso.
A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO como instrumento ideológico já foi
cantada em verso e prosa, mas nunca é demais sublinhar o quão poderosa
é a ideologia tanto para os que detêm o poder quanto para aqueles que
pretendem disputá-lo. A diferença entre esses dois grupos está colocada
na utilização da ideologia: os detentores do poder político se encarregam
de determinar a política educacional a ser seguida os programas a serem
promovidos ou estimulados e seus conteúdos ideológicos. Já para os que
disputam o poder, a educação é um instrumento somente quando as
CRISES
Hook afi rma que os passos decisivos (para
a transformação do sistema educacional)
dependem de crises que não vêm preparadas pela educação, mas
pelo desenvolvimento da economia que a
sustenta, da tecnologia existente e das
eventualidades de guerra.
Contudo, quando as crises surgem ou se anunciam e, por
conseguinte, uma grande luta pelo poder político se desenvolve,
um novo movimento educativo surge,
lutando pela difusão do ensino e, assim, a reformulação dos
métodos educacionais tende a se estabelecer.
Por exemplo, uma luta entre os grupos
dominantes pela hegemonia pode
conduzir a movimentos em favor da instrução
popular. Mas uma instrução que se fará
sem modifi cações dos pressupostos
ideológicos do sistema.
IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO
Para Vanilda Paiva, o grau de importância
atribuído ao setor educativo como instrumento de
mudança social só pode ser encontrado
em sociedades onde a instrução
popular ainda não se generalizou, onde o sistema educacional
vigente não absorveu toda a demanda real e
potencial por educação fundamental.
Aula_25.indd 153 6/29/2004, 2:05:40 PM
C E D E R J154
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico
contradições do sistema, as crises ou o clima de efervescência ideológica
chegaram a um clímax tal que os programas educacionais podem vir a
ser controlados pelos opositores da ordem vigente.
O ENTUSIASMO PELA EDUCAÇÃO
Muitos movimentos educativos ou de mobilizações em favor da
educação para o povo são agrupados em suas características e argumentos
pelo batismo entusiasmo pela educação.
A bem da verdade, a educação para as massas só começou a ser
um valor como um processo sistemático quando a Revolução Industrial
aconteceu na Europa. Um maior número de pessoas passou a exigir o domínio
das técnicas de leitura e de escrita e, coincidentemente, o desenvolvimento
do capitalismo percebeu as EXIGÊNCIAS POPULARES POR ALFABETIZAÇÃO como
fundamentais para a consolidação da nova ordem social.
No Brasil, ainda no século XIX, as idéias relativas à importância da
educação das massas populares difundiram-se entre a intelectualidade por
estarem associadas à idéia de progresso do país. Mas a forma mais bem
defi nida do fenômeno caracterizado como entusiasmo pela educação só é
desenhada na segunda década do século XX. Durante a Primeira Guerra
Mundial, surge no país uma onda de nacionalismo que tem como foco
de suas preocupações a desnacionalização da infância no sul do Brasil,
através das escolas germânicas. Na mesma época divulga-se nos EUA
uma estatística sobre analfabetismo no mundo, onde o Brasil aparece
em primeiro lugar, o que compromete o orgulho nacional. Era preciso
combater com urgência a chaga do analfabetismo, que, além de nos
envergonhar, nos impedia de pertencer ao grupo das nações cultas.
As preocupações que caracterizavam o entusiasmo pela educação
eram eminentemente quantitativas em relação à difusão do ensino e
visavam à eliminação imediata do analfabetismo através da expansão
dos sistemas educacionais existentes ou da criação de parassistemas
(de iniciativa ofi cial ou privada), abstraindo os problemas relativos à
qualidade do ensino ministrado.
EXIGÊNCIAS POPULARES POR ALFABETIZAÇÃO
Os socialistas tomaram a alfabetização do povo como bandeira de luta, vendo nessa aprendizagem um instrumento capaz de facilitar a conscientização das massas e a disputa do poder político, assim como a maximização da produção de bens e serviços que pudessem permitir a elevação do padrão de vida do povo.
Nesse momento não existiam ainda os profi ssionais da educação: nem no sentido mais geral, nem no terreno estritamente pedagógico. Foram os políticos que realmente se encarregaram de promover a luta em prol da ampliação de oportunidades de educação elementar para as massas, como de teorizar sobre o assunto.
O surgimento desses profi ssionais da educação como fenômeno educacional coincide com o progresso da industrialização no país na década de 1910 e parece estar ligado, também, ao problema da ampliação das bases eleitorais, através do aumento do número de votantes proporcionado pela ampliação das oportunidades de instrução.
Aula_25.indd 154 6/29/2004, 2:05:41 PM
C E D E R J 155
AU
LA 2
5 M
ÓD
ULO
3
MIGUEL COUTO
Com ele, o preconceito contra o analfabeto
atinge sua forma mais extrema:
“Analfabetismo é o cancro que aniquila o nosso organismo,
com as suas múltiplas metástases, aqui a
ociosidade, ali o vício, além do crime. Exilado dentro de si mesmo como em um
mundo desabitado, quase repelido para fora da espécie pela sua inferioridade, o analfabeto é digno de pena e a nossa
desídia indigna de perdão enquanto
não acudirmos com o remédio do ensino
obrigatório.”
Nesse discurso estão misturados
os preconceitos contra o analfabeto
e sentimentos nacionalistas e
patrióticos.
Contudo, um dos aspectos mais importantes desse fenômeno é a
supervalorização da educação, agora concebida como capaz de resolver
todos os problemas nacionais. Uma vez resolvido o problema da educação
do povo, todos os demais problemas teriam solução. Por outro lado,
todas as DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO PAÍS são atribuídas à ignorância
de nossa população, e o preconceito social contra o analfabeto nasce,
forte e robusto.
O maior teórico dessa posição foi MIGUEL COUTO. Como médico,
associava o problema do ensino com o da higiene e nele colocava toda
a culpa pelos problemas do país. Defendia a difusão do ensino (em
geral) e o ensino primário compulsório, participando de campanhas
privadas para a ampliação de oportunidades educacionais. Segundo
afi rmava, “ocupava-se da ignorância, por a considerar não somente
uma doença, mas a pior de todas, porque a todas conduz: e quando se
instala endemicamente, como na nossa terra, assume as proporções de
verdadeira calamidade pública. É ela que reduz nosso homem a meio
homem, a um quarto de homem, e a nossa população à metade ou quarto
da realidade: ela, e só ela, é a responsável pelo relativo atraso da nossa
pátria, que não pode sofrer o confronto com as outras”.
O entusiasmo pela educação perpetuou-se em nossa História de
educação para as massas. Se a princípio foi defendido por políticos e diletantes
da educação, depois passa a existir, também, nos MEIOS TÉCNICOS quando estes
surgem com a criação do Ministério da Educação,
os cargos técnicos foram preenchidos, em muitos
casos, por pessoas sem formação específi ca no
campo pedagógico.
Mas não só por esse motivo o
entusiasmo pela educação se fortaleceu, sua
fama maior se deve ao fato de que desde a
segunda década do século XX, com a luta
pela difusão do ensino elementar, firma-
se a idéia de que não ser entusiasta da
educação era sinônimo de antinacionalista.
Entusiasmar-se pela educação ligou-se,
assim, à demonstração de sentimentos huma-
nitários e à preocupação com o bem público.
DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO
PAÍS
A ênfase colocada na educação como
responsável por todos os problemas
nacionais tem a virtude de chamar a atenção
para a necessidade de universalizar a
educação elementar, mas tem também
o grave defeito de mascarar a análise da realidade, deslocando
da economia e da formação social a
origem dos problemas nacionais.
MEIOS TÉCNICOS
Essa tecnifi cação do terreno pedagógico, por ter perdido de vista a perspectiva externa que acompanhou seu desenvolvimento a partir dos anos 20, conduziu os pedagogos à abstração da realidade social como fator determinante da estrutura e da história da educação brasileira. A ênfase na modernização do sistema deixou de lado a consciência de sua função como instrumento de conservação ou de transformação da sociedade.
Aula_25.indd 155 6/29/2004, 2:05:42 PM
C E D E R J156
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico
A armadilha ideológica montada com essa associação de idéias garantiu
a sobrevivência desse fenômeno educacional até nossos dias, agora
não mais com a pureza e a ingenuidade de um Miguel Couto, mas
com a esperança de muitos de obter um lugar de direção nos quadros
educacionais ofi ciais e/ou de justifi car sua presença nesses cargos.
O OTIMISMO PEDAGÓGICO
Surge na década de 1920, com o aparecimento dos primeiros
profi ssionais da educação e suas preocupações com a qualidade do
ensino e contrários à difusão quantitativa imediata de instrução de
baixa qualidade. Seus representantes têm se dedicado aos problemas
de administração do ensino, preparação de professores, reformulação
e aprimoramento de currículos e métodos. Para os defensores dessa
abordagem, a questão principal é preparar adequadamente o número
de pessoas que o sistema educacional pode atender, dentro de padrões
considerados aceitáveis, para as tarefas sociais. Não estão voltados para as
conseqüências políticas da preparação de um maior números de votantes.
Em sua maioria são técnicos que defendem seu campo de trabalho da
intervenção de políticos e diletantes, isolando-se no tratamento de
problemas concernentes aos aspectos pedagógicos do ensino. Por terem
se fi xado numa perspectiva unilateral da educação, os pedagogos dessa
corrente reforçaram a função do sistema educativo como instrumento
de conservação das estruturas socioeconômicas e políticas da sociedade.
Essa unilateralidade no tratamento das questões educacionais pode ser
considerada a principal marca do otimismo pedagógico: a desvinculação
entre o pensamento pedagógico no Brasil e a refl exão (imprescindível)
sobre as questões sociais. Uma marca tão profunda que reinou de forma
quase absoluta até os anos 60 e, até hoje, pode ser encontrada nos meios
educacionais brasileiros.
Aula_25.indd 156 6/29/2004, 2:05:43 PM
C E D E R J 157
AU
LA 2
5 M
ÓD
ULO
3
REALISMO EM EDUCAÇÃO – UMA CONJUGAÇÃO DAS PERSPECTIVAS EXTERNAS E INTERNAS
A categoria denominada REALISMO EM EDUCAÇÃO refere-se à
abordagem dos problemas educacionais sem unilateralidade; assim, ao
aliar as duas perspectivas, trata das questões educativas sem perder de
vista a qualidade do ensino e leva em consideração, também, o papel
desempenhado por outros movimentos educacionais (como é caso de
muitas Organizações Não-Governamentais que atuam no país) na
sociedade como um todo e suas conseqüências sobre a ordem vigente
nos planos político, social e econômico.
Os realistas em educação formam um grupo bem diferenciado e
nele encontramos posições muito antagônicas no que se refere às posições
políticas. Assim, conservadores e revolucionários estão agrupados sob
a mesma bandeira realista por manterem uma abordagem do fenômeno
educativo em suas várias dimensões e procurarem objetividade no
tratamento das questões educacionais.
Sua ação tem se evidenciado na promoção de programas de
massa ou de movimentos em favor da expansão dos sistemas educativos
existentes, associada à busca de métodos efi cazes em relação aos objetivos
propostos para o programa educacional promovido pelo seu grupo.
Paiva (1987) aponta para a existência de quatro grupos, bastante
diferenciados entre si, sob a égide do realismo. O primeiro e mais antigo
é formado por profi ssionais da educação liberais que, embora tenham
concentrado a maior parte de suas preocupações com a educação
brasileira nas questões relativas à QUALIDADE DO ENSINO e à reforma do
sistema educativo, não absolutizaram essas questões e não perderam de
vista a perspectiva externa em suas análises e ações.
O segundo grupo é composto por defensores de posições educativas
ligadas às esquerdas marxistas que procuraram analisar a forma como a
atuação educativa poderia contribuir para a transformação da sociedade
e para a revolução proletária. Dessa forma estavam comprometidos
também com os ideais educacionais tradicionais, defendidos pelos
liberais, por considerá-los parte da luta por melhores oportunidades
de vida para as classes populares. Por isso, dentro do conjunto de suas
reivindicações, encontramos o apelo pela difusão quantitativa do ensino.
REALISMO EM EDUCAÇÃO
De uma maneira geral, os representantes
do grupo Realismo em Educação estão
interessados pela qualidade do ensino
como requisito fundamental para
a preparação do homem para tarefas específi cas: sociais,
econômicas e políticas. Preocupam-se, também
com a produtividade, rendimento e efi ciência
do ensino ministrado e com a expansão do
sistema e a criação de movimentos educacionais de
natureza expansiva.
Anísio Teixeira pode ser considerado um dos representantes
desse primeiro grupo. Como participante
do movimento reformista, sempre
esteve atento aos problemas colocados
entre educação e democracia.
QUALIDADE DO ENSINO
A idéia da qualidade do ensino não é estranha ao
pensamento marxista: era preciso
preparar homens e prepará-los bem. E o método adotado
nessa preparação poderia promover
o surgimento da consciência crítica
acerca das condições de funcionamento da
sociedade. Embora tivessem preocupações
qualitativas, os marxistas estavam
imunes ao otimismo pedagógico, porque
eram movidos pelo desejo de
transformação social.
Aula_25.indd 157 6/29/2004, 2:05:43 PM
C E D E R J158
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico
Contudo, os primeiros educadores marxistas (década de 1920), compro-
metidos com o movimento renovador das escolas, estavam ligados aos
aspectos qualitativos do ensino. Paschoal Lemme se destaca entre os
educadores que adotaram essa posição como participante da reforma
educativa no Distrito Federal entre 1933 e 1935 e como atuante no campo
educacional brasileiro até meados dos anos 60.
AS ESQUERDAS NÃO-MARXISTAS, segundo Paiva, compõem o terceiro
grupo, que surge do intercâmbio ideológico entre cristãos e marxistas
como conseqüência da evolução do pensamento social no seio da
Igreja Católica.
Esse grupo atribui uma maior importância à cultura e à educação
como fatores indispensáveis para a mudança social. Entendiam que a
revolução social só seria possível se os homens que dela participassem
fossem conscientes de suas ações e capazes de interpretar objetivamente
as condições às quais estavam submetidos, na sociedade em que estavam
inseridos. A educação deveria vir antes da revolução e não depois;
portanto, era necessário desenvolver métodos de ensino adequados que
propiciassem a promoção do homem. O principal teórico desse grupo
é Paulo Freire.
Esses três grupos mantiveram uma visão integrada dos problemas
educacionais, sem perda da perspectiva interna e externa e apresentam
algumas características em comum:
• preocupação humanista – educação como meio para a
realização do homem;
• defesa da educação – obrigatória e gratuita para todos;
• preocupação em promover a participação popular nas
decisões políticas tanto o caráter dessa participação
quanto a forma de sua promoção variam de um grupo
para o outro.
O quarto e último grupo valoriza a educação como fator capaz de
contribuir para o crescimento econômico. É formado pelos TECNOCRATAS
DA EDUCAÇÃO, provenientes principalmente do campo da economia e seu
aparecimento deve-se à tecnifi cação do território educacional.
AS ESQUERDAS NÃO-MARXISTAS
Se aproximam, em seu enfoque, do grupo anterior. A diferença entre as duas abordagens está nas ênfases colocadas pelos dois grupos. O grupo marxista sublinha a base econômica, e o não marxista dá maior relevo à cultura e à educação. É importante ressaltar, também, que os cristãos foram levemente infl uenciados pelos entusiastas da educação, na medida em que lutavam por uma ampliação das oportunidades educacionais.
TECNOCRATAS DA EDUCAÇÃO
Surgem na década de 60, buscando ajustar a oferta de educação à demanda de mão-de-obra qualifi cada e, mais tarde, indicando os níveis e tipos de ensino onde o investimento educacional seria mais rentável, com base no cálculo dos diferenciais de rendimento individual determinado pela educação adicional.
Aula_25.indd 158 6/29/2004, 2:05:44 PM
C E D E R J 159
AU
LA 2
5 M
ÓD
ULO
3PIÈRRE BOURDIEU
Sociólogo francês. Atualmente leciona
na Escola Prática de Altos Estudos, em Paris. Além de
seus trabalhos sobre Etnologia e de suas
investigações teóricas sobre Sociologia,
Bourdieu dirige, com Jean-Claude Passeron, o Centro de Sociologia
Européia, que pesquisa os problemas
da educação e da cultura na sociedade
contemporânea.
Esse grupo está comprometido politicamente com a ordem vigente e
interessa aos seus membros saber de que modo podem fazer do sistema ou
dos movimentos educacionais instrumentos efi cazes de modernização, de
funcionamento adequado das estruturas socioeconômicas vigentes e
de fortalecimento dos grupos políticos dominantes. Garantir efi cácia
e rentabilidade na educação é o seu lema, e este como um curinga
no jogo de cartas, vale para qualquer um dos aspectos educacionais:
ampliação das oportunidades educativas; melhoria qualitativa do ensino;
reforma administrativa, curricular e metodológica das redes escolares
em funcionamento etc.
O PESSIMISMO PEDAGÓGICO
As teorias crítico-reprodutivistas já mencionadas na Aula 23 foram
acusadas como as responsáveis pela onda de pessimismo pedagógico que
invadiu principalmente as universidades no fi nal da década de 1980. O
que elas apresentam em comum, segundo Saviani (1985), é uma cabal
percepção da dependência da educação em relação à sociedade. Entretanto,
como na análise que desenvolvem chegam invariavelmente à conclusão de
que a função própria da educação consiste na reprodução da sociedade em
que ela se insere, foram denominadas teorias crítico-reprodutivistas. Nessa
nomeação e em que pesem as diferenças, e a maior repercussão no Brasil, as
teorias que alcançaram maior grau de elaboração foram: teoria do sistema
de ensino enquanto violência simbólica (BOURDIEU e PASSERON, 1975);
teoria da escola enquanto Aparelho Ideológico do Estado (Althusser,1976)
e a teoria da escola dualista (BAUDELOT e ESTABLET, 1971). Vejamos,
de maneira sucinta, cada uma delas.
TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO ENTENDIDA COMO VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
O ponto de partida teórico é a análise da relação entre o sistema de
ensino e o sistema social. Para BOURDIEU, a origem social marca de maneira
inevitável e irreversível a carreira escolar e, depois, a vida profi ssional
dos indivíduos. Primeiro, a origem social produz o fenômeno da seleção:
a simples estatística das possibilidades de ascender ao ensino superior.
Depois, a categoria social de origem mostra que o sistema escolar elimina
de maneira contínua um número signifi cativo de crianças provenientes
das classes populares.
Aula_25.indd 159 6/29/2004, 2:05:45 PM
C E D E R J160
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico
No entanto, para os pesquisadores franceses, é um equívoco
explicar tanto o sucesso quanto o fracasso escolar apenas pela origem
social. Outras causas, por eles designadas de herança cultural, estão em
jogo no destino educacional das crianças. Entre as inúmeras vantagens
que os herdeiros possuem, a linguagem reina. A seleção escolar vai intervir
quando a linguagem é insufi ciente (menor domínio, uso de socioletos,
gírias e palavrões) para o aproveitamento do aluno. E sabemos como esse
fenômeno atinge prioritariamente as crianças de origem social mais baixa.
As que têm êxito escolar são as que resistiram, por diversos motivos, à
laminagem progressiva da seleção. Mantendo-se no sistema de ensino,
esses alunos provaram ter adquirido um domínio da linguagem igual ao
dos estudantes saídos das classes superiores.
E, para fi nalizar, a cultura das classes superiores estaria tão
próxima da cultura da escola que a criança originária de um meio social
inferior não poderia adquirir senão a formação cultural que é dada aos
fi lhos da classe culta. Assim sendo, para uns, a aprendizagem da cultura
escolar é uma conquista sofrida e duramente obtida; para outros, é uma
herança “básica”, que inclui a reprodução das normas. Ou seja, conforme
a classe de origem os caminhos a trilhar na escola são diferentes.
TEORIA DA ESCOLA ENQUANTO APARELHO IDEOLÓGICO DO ESTADO
O conceito de Aparelho Ideológico de Estado (AIE) deriva da tese:
“a ideologia tem uma existência material”, ou seja, a ideologia existe
sempre radicada em práticas materiais reguladas por rituais materiais
defi nidos por instituições também materiais. Em suma, a ideologia se
materializa em aparelhos – Aparelhos Ideológicos de Estado.
Como AIE dominante, é válido afi rmar que a escola constitui
o instrumento mais acabado de reprodução das relações de produção
de tipo capitalista. Para tanto, a escola toma para si todas as crianças
de todas as classes sociais e lhes inculca, durante anos, o fi o da audiência
obrigatória: saberes práticos envolvidos na ideologia dominante.
Uma grande parte dessas crianças (operários e camponeses)
cumpre a escolaridade básica e é colocada no mercado produtivo.
Outras avançam no processo de escolarização, mas acabam tendo que
interromper e passam a integrar os quadros médios – são os pequenos
burgueses de toda espécie.
LOUIS ALTHUSSER
Nasceu em 16 de outubro de 1918 em Birmmandreis, na Argélia. Foi normalista em 1939. Prisioneiro na Alemanha de 1940 a 1945. Licencia-se em 1948, data em que adere ao Partido Comunista Francês e permanece na Escola Normal Superior, onde se torna o preparador de concurso para os normalistas da Escola. Marxista convicto e fi lósofo estruturalista, suas teorias marcam a história do estruturalismo na França e no resto do mundo.
Aula_25.indd 160 6/29/2004, 2:05:58 PM
C E D E R J 161
AU
LA 2
5 M
ÓD
ULO
3
CHRISTIAN BAUDELOT E ROGER ESTABLET
São professores de Sociologia da
Educação na França.
Enfi m, uma pequena parte atinge o vértice da pirâmide escolar e,
vai ocupar os lugares próprios dos agentes de exploração (no sistema
produtivo), dos agentes de repressão (nos Aparelhos Repressivos de
Estado) e dos profi ssionais de ideologia (nos Aparelhos Ideológicos
de Estado). Em todos os casos trata-se de reproduzir as relações de
exploração capitalista.
TEORIA DA ESCOLA DUALISTA
Elaborada por CHRISTIAN BAUDELOT E ROGER ESTABLET em 1971, essa
teoria aponta que a escola, embora aparente ser unitária, está dividida em
duas grandes redes, que correspondem à divisão da sociedade capitalista
em duas classes fundamentais a burguesia e o proletariado.
Os autores desenvolveram, também, os temas da divisão,
segregação e antagonismo que condicionam os resultados fi nais do aluno,
os conteúdos e as práticas escolares. A divisão social do trabalho é a
responsável pelo insucesso escolar em massa da imensa maioria que inicia
a escolaridade mas não consegue prosseguir. Para Baudelot e Establet, a
escola, o professor e o aluno deixam de ser os responsáveis pelo fracasso
e os réus para se tornarem vítimas desse processo social. Portanto, é
impossível compreender a escola sem relacioná-la com a divisão da
sociedade. Impossível ignorar que a escola está dividida.
As três teorias expostas tiveram o grande mérito de evidenciar o
comprometimento da educação com os interesses dominantes mas, por
outro lado, contribuíram, na mesma proporção, para disseminar entre os
educadores um clima de pessimismo e de desânimo que tornou ainda mais
remota a possibilidade de articular os sistemas de ensino com os esforços
de superação do problema da marginalização e da exclusão escolar.
Aula_25.indd 161 6/29/2004, 2:06:17 PM
C E D E R J162
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A sociologia do consenso: o otimismo pedagógico e o pessimismo pedagógico
R E S U M O
A aula trata de movimentos educativos que surgiram ao longo da História da
Educação e retratam os discursos a favor de mudanças e/ou consolidação dos
aspectos mais fundamentais das estruturas educacionais em uso.
As diferentes denominações – Entusiasmo pela Educação, Otimismo Pedagógico,
Realismo em Educação e Pessimismo Pedagógico – além de evidenciarem momentos
históricos distintos, realçam os postulados ideológicos que dão sustentação à ordem
educacional vigente.
Finalizando, vemos a contribuição da Sociologia ao analisar a relação entre o sistema
de ensino e o sistema social, no que se refere à origem social dos alunos, suas
trajetórias dentro e fora da escola. A pirâmide escolar mostra sua engenhosidade
arquitetônica e nos convida a lhe fazer uma visita teórica e existencial.
AUTO-AVALIAÇÃO
• Em qual destas categorias você poderia encaixar suas idéias educacionais e seus
discursos sobre Educação?
• Faça a mesma refl exão para a escola em que você trabalha situando seus colegas
nas diferentes categorias analisadas.
• Pense agora nas famílias dos alunos e em suas expectativas e demandas para a
educação de seus fi lhos. Em qual (ou em quais categorias) essas famílias podem
ser situadas?
• Como podemos desconstruir a pirâmide educacional?
• A marginalização e a exclusão escolar têm solução? Como resolvê-las?
Aula_25.indd 162 6/29/2004, 2:06:19 PM
Sociologia do confl ito: visão crítica
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
•OBJETIVOS
au
la
26
Aula_26.indd 163 6/30/2004, 3:16:07 PM
C E D E R J164
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
A crítica não arranca das cadeias as fl ores
ilusórias para que o homem suporte as sombrias
e nuas cadeias, mas para que se desembarace delas
e brotem fl ores vivas.
Karl Marx
Neste momento, chegamos à Estação da crítica, lugar onde se tecem os
confl itos, as contradições e as ambigüidades presentes no mundo da sociedade.
Para que possamos desfrutar dos conhecimentos relacionados com esta
Estação, vamos recorrer a algumas teorias que, no campo da Sociologia, são
denominadas de confl itualistas.
Segundo Petitat (2002), a oposição existente entre as teorias do consenso
e as teorias do confl ito ainda constitui um dominante debate intelectual no
campo da Sociologia. O debate entre essas teorias coloca em questão a seguinte
contradição: enquanto as teorias do consenso estão centradas na problemática
da integração social e do equilíbrio, as teorias do confl ito colocam os confl itos
de classe no cerne da explicação da realidade social, na qual se circunscreve o
espaço da educação.
Portanto, o conjunto dessas teorias apresenta diferentes interpretações da
sociedade como um todo. Para as teorias do consenso, a sociedade é concebida
como um sistema integrado ou em vias de integração de elementos que são
complementares. Já para as teorias do confl ito, a sociedade é concebida como
uma unidade confi gurada por elementos contraditórios cuja estabilidade é
garantida pela manutenção das relações de dominação. Para as primeiras
teorias (as do consenso), o conceito-chave é o de ordem, enquanto para as
teorias do confl ito é o de controle. Assim sendo, a oposição existente entre o
conjunto dessas teorias é bastante profundo e refl ete no modo de interpretação
da escola, de sua gênese, de suas funções e de suas relações com a sociedade
como unidade contraditória de elementos.
No interior da corrente confl itualista há diferentes posições teóricas; todavia,
destacaremos nesta aula três posições, a saber: 1) a reprodução social; 2) a
teoria da correspondência; 3) a reprodução cultural. Iniciaremos nosso passeio
examinando as concepções marxistas de Louis Althusser e de Bowles-Gintis; em
seguida examinaremos a teoria de Bourdieu-Passeron.
INTRODUÇÃO
Aula_26.indd 164 6/30/2004, 3:16:38 PM
C E D E R J 165
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
LOUIS ALTHUSSER (1918-1990)
Filósofo marxista francês que
desenvolveu uma interpretação original
do pensamento de Marx a partir
da abordagem estruturalista. Suas
obras principais são: A favor de Marx (1965),
Lênin e a fi losofi a (1969) e Aparelhos
ideológicos de Estado (1969).
A REPRODUÇÃO SOCIAL
LOUIS ALTHUSSER, no seu trabalho Ideologia e aparelhos ideológicos
de Estado, publicado pela primeira vez em 1969, apresenta-nos uma
interpretação da instituição escolar claramente política e, mais
concretamente, marxista. O seu meritório trabalho propõe um modelo
explicativo do modo como se reproduzem as relações de produção nas
sociedades capitalistas.
Todas as formações sociais devem, ao mesmo tempo que produzem,
e precisamente para poderem produzir, reproduzir as condições da sua
produção. Necessitam, por isso, reproduzir as forças produtivas e as
relações de produção existentes. Althusser vai concentrar mais atenção
na última questão, na reprodução das relações de produção.
Althusser (1989) concebe a forma de articulação de uma sociedade
constituída por duas instâncias: a infra-estrutura ou base econômica; e a
superestrutura, composta por sua vez por dois níveis, o jurídico-político
(o direito e o Estado) e a ideologia (as diferentes ideologias: religiosa,
moral, jurídica, política etc.). E, para isso, não hesita em recorrer a uma
metáfora especial, a de comparar a sociedade com um edifício com
diversos andares, na base, a infra-estrutura, e sobre esta dois andares,
a superestrutura, mostrando assim uma considerável rigidez conceitual,
pois, segundo as suas próprias palavras, “os andares superiores não
poderiam sustentar-se no ar por si próprios, se não se apoiassem,
precisamente, sobre a sua base” (p. 77). Pressupõe, dessa forma, um
total determinismo, em última instância, por parte da base econômica;
a superestrutura não teria, por conseguinte, qualquer autonomia, não
desempenharia qualquer papel de relevo como motor de transformação
da sociedade.
Na superestrutura, a diferenciação dos dois níveis atrás referidos (o
jurídico-político e o ideológico) vai ter também duas funções diferentes.
Assim, os aparelhos repressivos de Estado (o governo, o ministério, a
polícia, os tribunais, as prisões etc.) ocupar-se-ão em conservar o poder de
uma forma mais direta e visível; “funcionam mediante a violência – pelo
menos em última instância (já que a repressão, por exemplo administrativa,
pode revestir-se de formas não físicas)” (ALTHUSSER, 1989, p. 84).
Aula_26.indd 165 6/30/2004, 3:16:38 PM
C E D E R J166
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
Por outro lado, os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) são
integrados pelo conjunto das seguintes instituições:
1º – AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas);
2º – AIE escolar;
3º – AIE familiar;
4º – AIE jurídico (este pertence simultaneamente aos
aparelhos repressivo e ideológico de Estado);
5º – AIE político (o sistema político com os diferentes
partidos políticos);
6º – AIE sindical;
7º – AIE da informação (imprensa, rádio, televisão etc.);
8º – AIE cultural (as belas-artes, desportos, literatura etc.).
Todos os aparelhos acima funcionam em primeiro lugar mediante a
ideologia e em segundo lugar também através da repressão. Os aparelhos
repressivos de Estado nem sempre funcionam apenas mediante a violência,
antes deixando também um pequeno espaço à ideologia, embora esta seja
neles muito secundária. Na realidade, a diferença entre os dois aparelhos
está no peso diferente que atribuem à violência e à repressão.
Também é diferente o peso de cada um dos diversos Aparelhos
Ideológicos de Estado de acordo com o período histórico vigente; assim,
na etapa pré-capitalista era a Igreja o principal, uma vez que concentrava
não só as funções religiosas, mas também as escolares e grande parte
da função de informação e de cultura. Pelo contrário, nas sociedades
capitalistas desenvolvidas é a escola o principal AIE.
A escola como Aparelho Ideológico de Estado, segundo a
teorização de Althusser, passa a desempenhar uma função prioritária
na manutenção das relações sociais e econômicas existentes. A instituição
educativa é, de todos os aparelhos ideológicos de Estado, aquele que
cumpre a função dominante na reprodução das relações de exploração
capitalistas, já que é, além disso, o que dispõe de mais anos de audiência
obrigatória e, inclusivamente, gratuita para a totalidade das crianças e
jovens da sociedade.
Aula_26.indd 166 6/30/2004, 3:16:44 PM
C E D E R J 167
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
A importância da escola, segundo Althusser, ser-nos-ia dada por
características como as seguintes: recebe as crianças de todas as classes
sociais, obrigando-as a freqüentarem indefectivelmente as suas instalações
durante um considerável número de anos, e prepara-as e classifi ca-as
para desempenharem na sociedade diferentes tipos de funções. Destas,
as principais seriam:
1. a função de explorados (com consciência profi ssional,
moral, cívica, nacional e a política altamente desenvolvida);
2. a função de agentes da exploração (saber dirigir e falar
aos operários);
3. a função de agentes da repressão (saber mandar e fazer-
se obedecer ou saber utilizar a demagogia da retórica dos
dirigentes políticos);
4. a de profi ssionais da ideologia (sabendo tratar as consci-
ências com a demagogia oportuna, acomodando-se ao
discurso da Moral, da Virtude, da Transcedência, da
Nação etc.).
Esta função seria levada a cabo tanto com as novas metodologias
pedagógicas como com as mais tradicionais, e boa parte do êxito dever-se-ia
ao fato de as escolas trabalharem com crianças precisamente durante os anos
em que estas são mais vulneráveis, dependendo ainda do aparelho de Estado
familiar. A instituição acadêmica tem, assim, como tarefa fomentar o
desenvolvimento de diversas competências imersas na ideologia
dominante. Na escola aprendem-se técnicas e conhecimentos, mais
ou menos rudimentares ou profundos, de cultura científi ca ou literária
diretamente utilizáveis nos diferentes postos da produção (uma instrução
para operários, outra para os técnicos, uma terceira para os engenheiros,
uma última para os quadros superiores).
Ao mesmo tempo que faz essa aprendizagem, o conjunto
dos estudantes adquire, na instrução acadêmica, as regras do bom
comportamento, isto é, da atitude adequada que deve observar, de acordo
com o posto para o qual está destinado. A educação moral, a instrução
cívica e a fi losofi a seriam as disciplinas que, de forma mais direta, estariam
encarregadas de socializar ideologicamente os alunos.
Aula_26.indd 167 6/30/2004, 3:16:45 PM
C E D E R J168
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
É através da reprodução das qualifi cações e da reprodução da
submissão às regras da ordem estabelecida, ou seja, à ideologia dominante,
que se consegue a reprodução da força de trabalho.
Todos os materiais e práticas que estruturam a vida cotidiana de
professores e estudantes na instituição escolar contribuem para reforçar
as relações de poder existentes em cada sociedade específi ca.
No pensamento althusseriano, a escola é vista como uma “caixa
negra” onde na realidade não se passa nada; tudo segue uma linearidade
perfeita; não existem verdadeiras possibilidades de analisar e modifi car
esses objetivos e conteúdos da educação. A escola, como tal, não
pode contribuir em nada na luta pela transformação das estruturas de
produção e das relações sociais existentes. Isto quer dizer que a ideologia
tem de distribuir os indivíduos pelos diferentes postos da divisão do
trabalho e convencê-los da justeza e da inevitabilidade dessa mesma
distribuição. Neste sentido, em Althusser, é muito difícil o aparecimento
de um pensamento e de práticas contra-hegemônicas. O pensamento
althusseriano cai assim num determinismo de base econômica.
Autores como Gramsci (1990) e Poulantzas (1990) criticam o
economicismo e a idéia de que a economia é, em última instância, o fator
condicionante e determinante, pois atribuem um papel prioritário à luta
política e ideológica em diversos níveis dentro do Aparelho Ideológico
de Estado.
O estruturalismo althusseriano tem a grande vantagem de
plasmar a vinculação causal existente entre as relações e as práticas
sociais nas diversas instituições com as ideologias. No entanto, o seu
modelo apresenta uma série de inconvenientes, pressupõe uma política
de conspiração por parte do Governo e dos responsáveis da política
educativa com vista a planifi car de antemão o sucesso e o insucesso
escolar dos diferentes membros da comunidade estudantil. Professores e
estudantes são concebidos como pessoas obedientes e, no fundo, passivas,
dominadas por ideologias que atuam de maneira tão inconsciente que
é quase impossível desvendá-las e submetê-las a uma análise refl exiva.
Parece que a reprodução ideológica não é suscetível de apresentar
falhas facilmente. De igual modo, em nenhum momento, se explica de
que forma tanto os alunos como o coletivo docente poderiam alterar a
situação estabelecida.
Aula_26.indd 168 6/30/2004, 3:16:46 PM
C E D E R J 169
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
A TEORIA DA CORRESPONDÊNCIA
Um passo à frente para desvendar o interior dessa “caixa negra”
que é a instituição escolar na perspectiva da reprodução é dado por
Samuel Bowles e Herber Gintis com a sua elaboração da teoria da
correspondência (1981), a partir de uma fundamentação teórica com
fortes semelhanças com a althusseriana.
Bowles e Gintis realizam uma descrição claramente politizada
da vida cotidiana das salas de aula, captando imediatamente a crucial
importância política do currículo oculto, especialmente da forma do
currículo como recurso para a reprodução, coesão e estabilidade das
relações sociais de produção e distribuição.
As indagações de Bowles e Gintis, embora totalmente dominadas
pelo quantitativismo, destinam-se a procurar de modo prioritário pontos de
união entre o âmbito escolar e outras esferas e lugares sociais, em especial
com as estruturas derivadas dos modelos econômicos de caráter capitalista
e, mais concretamente, com as necessidades dos grupos sociais nos quais
reside uma maior concentração do poder e do controle. Como resultado
disso, os seus estudos vão provocar uma viragem muito signifi cativa nas
teorias pedagógicas existentes até o momento, viragem que tem entre as
suas peculiaridades a defesa de um maior radicalismo político.
Tal radicalismo vai levá-los a duvidar de posicionamentos mais
reformistas e a não aceitar estratégias destinadas a conseguir mudanças
parciais ou progressivas como meio de fazer frente aos numerosos
problemas sociais de sociedades como a dos Estados Unidos. Consideram
que a política de remendos é inaceitável, dado que, no caso de ser posta
em prática, vai levar necessariamente ao fracasso e, inclusivamente, irão
muitas vezes existir fortes pressões e obstáculos que impossibilitarão a
sua entrada em vigor.
O radicalismo teórico defendido por ambos os investigadores
força-os a adotarem e a comprometerem-se com vias de transformação
prática. Desta forma, como dedução dos seus diagnósticos, concluem
que apóiam o desenvolvimento de um movimento socialista
revolucionário nos Estados Unidos por considerar uma alternativa
socialista capaz de proporcionar o único acesso a um futuro progresso
real em termos de justiça, libertação pessoal e bem-estar social.
Aula_26.indd 169 6/30/2004, 3:16:46 PM
C E D E R J170
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
As mudanças revolucionárias, segundo Bowles e Gintis (1981), mesmo
as violentas, desencadearam forças progressistas maciças no passado.
O desenvolvimento e a articulação da visão de uma alternativa socialista,
assim como a capacidade de enfrentar necessidades humanas concretas
atuais, para os autores, exigem um partido fundamentado nas massas,
capaz de ajudar nas lutas diárias dos trabalhadores e empenhado numa
transformação revolucionária da economia estadunidense.
Para Giroux (1986), uma especifi cação tão clara desse compromisso
pode, de fato, vir a ter efeitos contraditórios e acabar por servir para
reforçar as estruturas escolares atuais à espera de outros tempos e de outros
ventos. É possível que chegue a provocar nos professores uma sensação
de inutilidade no trabalho que desenvolvem cotidianamente nas escolas,
ou é provável que crie neles a sensação de estarem a serviço das forças
opressoras da classe capitalista. Com isso, teoricamente, as modalidades
de ação através de um trabalho profi ssional são anuladas.
As suas análises funcionalistas das relações entre o sistema educativo
e a economia levam-nos a pensar por alto o papel das pessoas, ao considerá-
las como seres passivos, incapazes de fazer frente a um destino irremediável.
A base econômica determina inexoravelmente a superestrutura.
Bowles e Gintis, no momento de realizar a sua proposta teórica da
correspondência, recorrem a um teste de confrontação e validação como
é o de comparar as mudanças nas instituições educativas através dos
tempos com as transformações na estrutura da produção e distribuição de
cada sociedade concreta. A importância dessa estratégia metodológica de
caráter comparativo é óbvia, uma vez que podemos constatar que quase
metade da sua obra-chave, A instituição escolar na América capitalista,
é dedicada a esse assunto.
Ambos os autores chegam ao seu modelo teórico após terem analisado
aquilo que podemos denominar como a tradição do pensamento liberal
educativo. Essa teoria liberal vinha e vem atribuindo um papel determinante
ao sistema educativo como motor de transformação da sociedade;
a escolarização como caminho para uma sociedade mais humana, uma
sociedade em que as relações de exploração não tenham lugar.
Aula_26.indd 170 6/30/2004, 3:16:47 PM
C E D E R J 171
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
A partir do Iluminismo, vai-se generalizar a atribuição de um papel
preponderante à educação como motor de transformação e avanço da
produção e da hominização.
O debate escolar vai se concentrar à volta de duas tendências liberais:
por um lado, o pensamento de Dewey e o movimento da Escola Democrática,
e, por outro, o derivado da economia neoclássica e do funcionalismo, a que
tem sido chamada Escola Tecnocrática e Meritocrática.
Essas tendências vão defender o pressuposto de que todos
somos iguais por nascimento, que a herança genética não tem grande
importância porque, de qualquer forma, pode ser compensada, e que
é possível também compensar os condicionantes sociais e econômicos.
Portanto, é o esforço pessoal, os sucessos de cada indivíduo e, portanto,
os níveis educativos alcançados que determinam em última instância os
horizontes das aspirações individuais. São os méritos individuais, fruto
do esforço pessoal, que vão decidir o acesso à estrutura ocupacional.
Assim sendo, as diferenças sociais são fruto da diferente dedicação
ao estudo por parte de cada pessoa. Deste modo, seguindo este
posicionamento teórico, se desejarmos uma sociedade mais igualitária
teremos de nos preocupar em garantir a igualdade de oportunidades;
neste caso, oferecer a possibilidade, ou melhor, a obrigatoriedade da
educação a todos os cidadãos.
Por conseguinte, do ponto de vista do modelo tecnocrático
e meritocrático, as desigualdades econômicas são fruto das escolhas
individuais ou de insufi ciências pessoais, e não o resultado de determinada
estrutura econômica e das relações sociais vigentes.
Bowles e Gintis constatam o fracasso da política liberal e dos
modelos educativos dela derivados. Servindo-se de uma ampla variedade
de fontes estatísticas, descritivas e históricas, conseguem confi rmar que
a educação nas sociedades capitalistas atuais é uma das principais
estratégias que se utilizam para a reprodução deste modelo de sociedade
e, portanto, da desigualdade.
Assim, segundo os representantes da teoria da correspondência,
a desigualdade econômica e os níveis educativos de desenvolvimento
alcançados por cada homem ou mulher são desde logo condicionados e
defi nidos em primeira instância pelo mercado, pela propriedade e pelas
relações de poder que defi nem o sistema capitalista.
As críticas que esta posição teórica recebe ao cair num excessivo
Aula_26.indd 171 6/30/2004, 3:16:47 PM
C E D E R J172
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
PIERRE BOURDIEU
(1930-2002)
Sociólogo francês, foi diretor de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor no Collège de France. Seu nome constitui uma das grandes referências no campo das ciências sociais. Algumas obras: Esquisse d’une théorie de la pratique (1972), La distinction (1979), Les sens pratique (1980), Homo academicus (1984) e La noblesse d’Etat (1989).
reducionismo economicista vão ser bastante numerosas. Ainda que em
diversos momentos de sua obra pareçam optar por estabelecer certas
relações entre a base e a superestrutura, em termos marxistas, no fundo
acabam por cair numa posição mais próxima das teorias funcionalistas.
Em momento algum se apresentam claras possibilidades de contestar
e, portanto, de criar grandes contradições ao sistema de produção e
distribuição capitalista que conduzam ao seu desaparecimento.
A REPRODUÇÃO CULTURAL
Outro modelo que também pretende explicar a função da instituição
escolar como reprodutora da ordem social e cultural estabelecida é o de PIERRE
BOURDIEU. Inclusivamente, uma das suas obras mais importantes, realizada
em colaboração com Jean-Claude Passeron, tem por título A reprodução.
Ambos os autores se dedicam nesse trabalho a elaborar uma teoria do
funcionamento do sistema educativo e a explicar de que forma este
desempenha um papel decisivo na perpetuação da sociedade capitalista,
do seu modo de produção e da sua estratifi cação social.
A análise teórica que realizam parte do pressuposto de que as
sociedades humanas estão divididas de forma hierárquica em classes
e que esta hierarquização se mantém e perpetua através daquilo que
denominam a violência simbólica. Este termo, segundo especifi cam
ambos os investigadores, indica expressamente a ruptura com todas
as representações espontâneas e concepções espontaneístas da ação
pedagógica como ação não violenta e a sua incorporação como parte
de uma teoria geral da violência, mas da violência legítima. Daí que a
sua proposta teórica seja conhecida também por outros autores como
teoria da violência simbólica (SAVIANI, 1990).
Esta teoria tem como pretensão compreender e dar resposta a
três questões decisivas:
1. Como é que a educação garante que alguns grupos sociais
possam manter uma posição dominante;
2. Por que é que só determinados grupos sociais podem
participar na defi nição da cultura dominante;
Aula_26.indd 172 6/30/2004, 3:16:48 PM
C E D E R J 173
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
JONH DEWEY
(1859-1952)
Filósofo e educador norte-americano.
Desenvolveu o pragmatismo de
William James aplicando-o à
lógica e à ética, bem como defendendo
o experimentalismo na teoria da ciência. Fundador da escola
ativa. Principais obras: Escola e
sociedade (1889), A criança e o currículo (1902), Democracia e educação (1916),
Experiência e educação (1938) e Ensaios de lógica experimental
(1954).
3. Através de que mecanismos a natureza arbitrária de
certas normas, costumes, conteúdos e valores obtém
um forte grau de consenso e, por conseguinte, a sua
legitimação, condicionando decisivamente, desta forma,
os processos de socialização, em especial das gerações
mais jovens.
Desde a década de 1960 que a instituição escolar vem sendo objeto
de análises diversas, coincidentes ao apontar, por um lado, que o insucesso
escolar e o abandono das instituições de ensino afetam em porcentagens
muito superiores as crianças de determinadas classes e grupos sociais, as
que na estrutura hierárquica de cada sociedade ocupam os escalões de
menor poder e prestígio; e, por outro lado, que o conjunto de estudantes
que chegam aos níveis superiores do sistema educativo e às especialidades
mais prestigiosas dos estudos universitários é descendente das famílias
que gozam de maior poder e prestígio social. No respeitante à França, no
momento em que Bourdieu constrói a sua proposta teórica, os trabalhos
de Baudelot e Establet (1976) vieram dar um grande contributo com
dados decisivos de caráter quantitativo.
Não devemos esquecer a permanência na cultura francesa e,
em geral, em todas as sociedades ocidentais, de uma ideologia que
denuncia as desigualdades de oportunidades de que são alvo muitos
grupos sociais, mas, por sua vez, deposita uma excessiva confi ança nas
instituições escolares como compensadoras dessas desigualdades sociais.
Na opinião de Bourdieu, esta é uma das razões que nos impedem de ver
a educação institucionalizada como conservadora e realmente injusta,
ainda que de um modo formal se mostre equitativa. Desta forma, embora
nos encontremos perante uma ideologia que aparentemente critica um
modelo de sociedade e o seu sistema político, no fundo os seus resultados
não fazem outra coisa senão legitimá-los. Os produtos das reformas
educativas que essas políticas levam a cabo, por mais de uma vez,
continuam sem modifi car de forma decisiva os valores que as instituições
acadêmicas fomentam; os conteúdos culturais que impõem, os métodos
pedagógicos que adotam, os critérios de seleção e controle, os processos
de orientação etc. contribuem para que se continue a benefi ciar os grupos
sociais mais favorecidos e a prejudicar os mais desfavorecidos.
Aula_26.indd 173 6/30/2004, 3:16:52 PM
C E D E R J174
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
A equidade formal do sistema de ensino traduz-se numa falsa
neutralidade da escola ao tratar todos os membros do corpo estudantil como
iguais em direitos e deveres, apesar das desigualdades de fato. A teoria da
violência simbólica tem procurado uma explicação para esta desigualdade
nos êxitos e fracassos nas instituições educativas. Pretende investigar através
de que processos objetivos os estudantes das classes e grupos sociais mais
desfavorecidos são negativamente sancionados e vão sendo continuamente
excluídos do sistema de ensino.
A formulação dessa teoria, cuja apresentação é excessivamente
formalista, consta de cinco proposições principais, com numerosas
subproposições e escólios. Tudo isso estruturado de forma hierárquica
e unidirecional, tal como indica o próprio plano elaborado pelos autores.
Para Bourdieu e Passeron (1982), as proposições são as seguintes:
Proposição 0: refere-se à defi nição de violência simbólica;
Proposição 1: refere-se à ação pedagógica;
Proposição 2: refere-se à autoridade pedagógica;
Proposição 3: refere-se ao trabalho pedagógico;
Proposição 4: refere-se ao sistema de ensino.
Esta teoria considera que as divisões em classe e grupos sociais e
as confi gurações ideológicas e materiais sobre as quais elas se apóiam
são transmitidas e reproduzidas através da violência simbólica (0).
Ou seja, o poder detido por uma classe social é utilizado para impor
uma defi nição de mundo, para defi nir signifi cados e apresentá-los como
legítimos, dissimulando o poder que essa classe tem para o fazer e
escondendo, além disso, que essa interpretação da realidade coincide
com os seus próprios interesses de classe. Assim, a violência simbólica
reforça com o seu próprio poder as relações de poder nas quais ela se
apóia e contribui, dessa forma, como sublinha Weber (1989), para a
domesticação do dominado. A cultura encontra-se, portanto, dominada
pelos interesses de classe.
Aula_26.indd 174 6/30/2004, 3:17:00 PM
C E D E R J 175
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
A violência simbólica vai exercer-se muito diretamente através
da ação pedagógica (1). De fato, Bourdieu e Passeron declaram
de forma explícita que toda ação pedagógica é objetivamente uma
violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de
uma arbitrariedade cultural. Dentro da concepção de ação pedagógica
entram todas as tentativas de instrução, quer as que são levadas a cabo
pela própria família e outros grupos da sociedade que não têm intenção
expressa de educar, quer a que se desenvolve no quadro da educação
escolar. Esta ação é rotulada como violenta, visto que se exerce numa
relação de comunicação em que as inter-relações são do tipo desigual;
existe uma classe ou grupo social que tem maior poder e que o utiliza
para realizar uma seleção arbitrária que vai precisar de recorrer a uma
maior ou menor coação, uma vez que os signifi cados que impõe não
correspondem a princípios universais.
Dado que estamos perante uma situação definida como de
imposição, é preciso, por isso mesmo, tratar de a dissimular. Entre as
estratégias válidas para levar a cabo o trabalho de ocultação está a de
lançar mão do conceito de autoridade. Se a ação pedagógica quiser ter
êxito na distribuição do capital cultural terá de recorrer à autoridade
pedagógica (2). O reconhecimento da legitimidade de inculcar vai
condicionar a recepção da informação nos seus destinatários, ou seja, a
possibilidade de transformar essa informação em formação. Em virtude
da autoridade pedagógica, qualquer agente ou instituição pedagógica
surge automaticamente como digno de transmitir aquilo que transmite
e, portanto, fi ca autorizado a impor a sua recepção e a controlar a sua
mensagem mediante um sistema de recompensas e sanções que goza da
aprovação dessa coletividade. Mas também é preciso não esquecer em
momento algum que a autoridade pedagógica é fruto de uma delegação
de autoridade; dispõe desta na qualidade de mandatária das classes ou
grupos sociais cuja arbitrariedade cultural impõe.
Uma vez que se trata de um trabalho de inculcar, a ação pedagógica
implica também um trabalho pedagógico (3), com uma duração temporal
sufi ciente para produzir nos destinatários uma formação capaz de deixar
marcas persistentes.
Aula_26.indd 175 6/30/2004, 3:17:01 PM
C E D E R J176
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
Segundo Bourdieu (1992), esse processo de socialização vai criar
em cada pessoa um habitus. Este é produto de uma interiorização de
princípios da cultura dominante, das suas categorias de percepção e
de apreciação da realidade e vai ter efeitos reprodutores. Através das
práticas dele derivadas perpetua-se a arbitrariedade cultural de que é
fruto e o modelo social do qual depende a ação pedagógica. O habitus
se constrói através de um processo educativo e constitui a garantia da
sobrevivência de uma cultura, pois é equivalente, no âmbito da cultura,
à transmissão do capital genético no âmbito da Biologia.
Não obstante, o trabalho pedagógico contribui para produzir
e reproduzir a integração intelectual de uma sociedade. É assim que
podemos explicar, segundo Bourdieu (1990), que cada cultura detenha
um código comum e que os utilizadores desse código possam associar
o mesmo sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos
e às mesmas obras. Cada cultura pressupõe pontos de convergência,
problemas similares e maneiras comuns de abordar esses problemas.
O trabalho pedagógico não só contribui para dar referências sobre
como deve ser interpretada a realidade como também defi ne itinerários,
formas e métodos de resolução de problemas que se colocam às pessoas
que possuem um mesmo habitus.
Uma condição fundamental para que este habitus se forme é a de
que o trabalho pedagógico que lhe vai dar origem seja contemplado como
legítimo pelos seus destinatários; isso facilitará não só a construção de
um habitus duradouro mas também um interesse crescente pelo consumo
dessa arbitrariedade cultural. É desta forma que se legitima a cultura
dominante e que os dominados a interiorizam, lhe conferem o seu
reconhecimento e que, simultaneamente, aprendem a não conferir valor
a outras formas culturais diferentes ou incompatíveis com a legítima.
Os próprios setores sociais cuja cultura é marginalizada ou desprezada
convertem-se em aliados dos seus inimigos. Tudo aquilo que não se
identifi car com a arbitrariedade cultural que a ação pedagógica impõe
fi ca automaticamente excluído, vê negada a sua existência.
Por conseguinte, é preciso que o sistema de ensino (4) se auto-
reproduza, para o que é necessário contar com profi ssionais ou agentes
da reprodução, formados e qualifi cados para garantir um trabalho
pedagógico específi co e regulamentado, ou seja, um trabalho escolar.
Aula_26.indd 176 6/30/2004, 3:17:01 PM
C E D E R J 177
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
Os próprios profi ssionais da reprodução escolar necessitam receber uma
formação homogênea a fi m de serem dotados de instrumentos e técnicas
que facilitem o seu futuro trabalho de homogeneizadores das populações
a seu cargo. Além disso, o fato de se lhes conceder um reconhecimento
público por este tipo de capacitação – converte-os, por exemplo, em
funcionários públicos do sistema de ensino – leva a que não necessitem de
conquistar e confi rmar continuamente a sua autoridade pedagógica.
A teoria da reprodução cultural não explica de forma clara como
o capital cultural com o qual se sai do sistema educativo é negociado nos
próprios locais de trabalho; em que condições é que o habitus concreto
– uma vez que a pessoa se afasta do sistema escolar – sofre variações ou
mudanças profundas, fruto de outras experiências refl exivas na práxis
social; ou de que modo é que as disfunções na esfera da produção podem
provocar contradições que levem à transformação ou, inclusivamente, à
substituição desse modelo de produção e distribuição, apesar dos sistemas
de ensino vigentes.
A teorização que Bourdieu leva a cabo, segundo autores
como Giroux (1986) e e McLaren (1997), cai na rigidez das teorias
estruturalistas e funcionalistas da socialização e da reprodução, nas quais
não é fácil ver possibilidades de resistência e de contestação por parte
dos estudantes ou do professorado. No entanto, não podemos deixar
de destacar a importante contribuição que Bourdieu realiza no âmbito
da educação institucionalizada ao colocar em destaque a relevância dos
sistemas simbólicos no momento de considerar, analisar e planifi car os
sistemas escolares.
E, assim, chegamos ao fi nal desta Estação. Desejamos que todos
tenham desfrutado dos ensinamentos aqui apresentados. Antes de
passarmos à próxima Estação, convém examinarmos sumariamente as
questões estudadas nesta aula.
Aula_26.indd 177 6/30/2004, 3:17:02 PM
C E D E R J178
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Sociologia do confl ito: visão crítica
R E S U M O
Denomina-se teoria do confl ito, no campo da Sociologia da Educação, o conjunto
de teorias que concebe a sociedade e a realidade social a partir das contradições
de classe e de suas relações com a reprodução da dominação e da ideologia.
As teorias do confl ito diferem das teorias do consenso porque estas centram suas
análises na problemática da integração social e na reprodução do equilíbrio.
Entre as teorias do confl ito destacamos três posições, a saber: a reprodução social,
a teoria da correspondência e a reprodução cultural.
Insere-se no interior da teoria da reprodução social a análise de Louis Althusser
denominada Aparelhos Ideológicos de Estado. Segundo Althusser, a manutenção
do atual sistema de produção e das relações de poder depende tanto do uso da
força quanto do uso da ideologia. Assim, a produção das condições de produção
baseia-se na produção de valores que sustentam as relações de produção, no uso
da força e da ideologia, que apóiam as classes dominantes em todos os espaços
de controle e na produção do conhecimento e das habilidades importantes para
as formas específi cas de trabalho.
A teoria da correspondência, postulada por Bowles e Gintis, parte do argumento
de que os padrões hierarquicamente estruturados de valores, normas e habilidades,
característicos das sociedades capitalistas, refl etem-se na dinâmica social do
cotidiano da escola. As relações sociais estabelecidas na escola inculcam nos
estudantes as atitudes e disposições necessárias para a ocultação dos imperativos
da lógica do capital.
A teoria da reprodução cultural, elaborada por Bourdieu e Passeron, começa com o
pressuposto de que a estratifi cação das sociedades e as confi gurações ideológicas e
materiais nas quais elas se sustentam estão mediadas e são reproduzidas através do
que eles chamam de violência simbólica. Assim, a educação é concebida como uma
relevante força social e política no processo de reprodução das classes, já que se
coloca como transmissora neutra dos benefícios da cultura dominante, permitindo
que as escolas promovam a desigualdade em nome da justiça e da objetividade.
Aula_26.indd 178 6/30/2004, 3:17:03 PM
C E D E R J 179
AU
LA 2
6 M
ÓD
ULO
3
EXERCÍCIOS
1. Quais são as interpretações da sociedade colocadas pelas teorias do consenso
e pelas teorias do confl ito?
2. Qual é o conceito-chave dado pelas teorias do consenso e pelas teorias do
confl ito?
3. Qual é o principal representante da teoria da reprodução social?
4. Quais são os autores que elaboraram a teoria da correspondência?
5. Quais são os representantes da teoria da reprodução cultural?
6. Faça uma breve síntese das três posições teóricas que habitam a corrente
confl itualista, tentando enfatizar o papel da escola em cada uma delas.
AUTO-AVALIAÇÃO
Caso você tenha respondido às questões sem apresentar qualquer difi culdade,
signifi ca que poderá prosseguir viagem até a próxima Estação. Todavia, se alguma
difi culdade foi apresentada durante a consecução do exercício, é importante fazer
mais uma leitura atenta e minuciosa desta aula antes de prosseguir a viagem.
É importante frisar que as duas primeiras questões mostram a diferença existente
entre as teorias do consenso e as teorias do confl ito; já as questões de número 3, 4
e 5 apenas tentam fi xar os nomes dos autores que elaboraram as teorias aqui em
debate, enquanto a última questão é a que demanda maior esforço intelectual,
pois exige o destaque dos elementos principais enunciados pelas teorias.
Aula_26.indd 179 6/30/2004, 3:17:03 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
27au
la
OBJETIVOSAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Analisar os conceitos de ideologia, hegemonia e poder.
• Refletir sobre a relação entre os conceitos de ideologia, hegemonia e poder e a educação, mostrando como esses conceitos são fundamentais
A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1
aula27_pb.indd 181 6/30/2004, 3:40:51 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1
CEDERJ182
Avistamos uma nova paisagem da janela de nosso trem. Na aula passada,
você analisou sociologicamente a educação, agora precisamos discutir alguns
aspectos políticos da educação; por isso vamos tratar de hegemonia, ideologia e
poder. Como esse tema é complexo, nós o veremos em dois momentos distintos.
Assim sendo, tanto a Aula 27 quanto a Aula 28 tratarão do mesmo tema.
IDEOLOGIA
A escola como universo preservado, ilhéu de pureza – à porta da
qual se deteriam as disparidades e as lutas sociais – esse milagre
não existe: a escola faz parte do mundo.
GEORGES SNYDERS
O conceito de ideologia é freqüentemente usado em vários textos
que discutem a relação entre a educação e o contexto histórico, ou seja, de
onde vêm as idéias e os valores usados na educação. Por isso precisamos
explicar com clareza esse conceito, mostrando como ele é utilizado por
diferentes autores e quais os aspectos essenciais para compreendê-lo.
O signifi cado moderno do termo ideologia originou-se no grupo
de SAVANTS no período da Revolução Francesa, em 1789; a esse grupo
foi confi ada a fundação de um Centro de Pensamento Revolucionário,
no Institute de France, iniciativa que se efetivou a partir da Convenção
de 1795, na França. Os savants eram os porta-vozes das idéias
revolucionárias na França e o principal objetivo do grupo era a liberdade
de pensamento e expressão.
Os savants pretendiam cumprir dois propósitos: mostrar a
relação entre história e pensamento e promover algumas idéias que
seriam verdadeiras em qualquer conjuntura histórica, ou seja, os
savants pensavam que algumas idéias eram tão importantes que seriam
signifi cativas e imprescindíveis em qualquer contexto histórico. Por
exemplo: as idéias de igualdade, liberdade e fraternidade, que foram
o lema da Revolução Francesa, teriam efi cácia em qualquer contexto
histórico e poderiam transformar qualquer realidade, tal a força
revolucionária que traziam. Na verdade, os savants buscavam, através das
idéias, transformar substancialmente a realidade, por isso se propuseram
a fazer uma investigação sobre a relação história/pensamento.
DESTUTT DE TRACY foi o primeiro teórico a usar a expressão
“ideologia”, na obra intitulada Projet D’Eléments D’Ideologie (1801-
ANTOINE DESTTUT DE TRACY
(1756-1836)
Aristocrata que se tornou um dos mais combativos representantes da burguesia revolucionária na França, no fi nal do século XVIII e início do século XIX. Entre 1801 e 1815 escreveu a obra Projet D’Eléments D’Ideologie.
INTRODUÇÃO
GEORGES SNYDERS
(1916)
Educador francês contemporâneo que defende uma pedagogia não-autoritária. Segue o pensamento de Gramsci, mostrando que a escola é um local de confronto de interesses de classes antagônicas.
SA V A N T Sábio, intelectual.
aula27_pb.indd 182 6/30/2004, 3:41:00 PM
CEDERJ 183
AU
LA 2
7 M
ÓD
ULO
3
1815), composta de vários volumes. Ele preocupou-se com a elaboração
de uma ciência sobre a origem e as leis de formação das idéias, queria
explicar a relação entre o corpo humano e o meio ambiente, mostrando
como essa relação constrói idéias. Ele pretendia revelar a materialidade
das idéias, acreditando que essa revelação produzisse um conhecimento
verdadeiro e universal da natureza humana. O principal objetivo dos
ideólogos do século XVIII e início do século XIX era construir um mundo
racional e, para tal, recorreram ao empirismo de JOHN LOCKE, acreditando
que as idéias derivavam das sensações. A ideologia nasce no interior de
um materialismo que considera que as operações do intelecto humano
são previsíveis como qualquer lei da Física.
Outro autor que trata do conceito de ideologia é AUGUSTO COMTE.
Sua obra Curso de Filosofi a Positiva analisa a ideologia sob dois ângulos:
primeiro como uma atividade fi losófi co-científi ca, que estuda a formação
das idéias, observando as relações entre o corpo humano e o meio
ambiente, por meio das sensações; segundo, como o conjunto de idéias
de uma época, ou melhor, o conjunto de opiniões de uma época ou das
idéias dos pensadores de uma época. Podemos observar que a primeira
concepção de Comte assemelha-se à visão de Desttut de Tracy, ou seja,
ele concebe a ideologia como um conjunto de idéias que decorrem das
sensações oriundas das relações entre a mente humana e o meio ambiente,
defendendo uma visão empirista e materialista de conhecimento. Mas
Augusto Comte não se preocupa com a relação história e pensamento,
tal como pensavam os savants; em suas refl exões sobre ideologia não
há conotação política.
ÉMILE DURKHEIM também discutirá o conceito de ideologia, sua
intenção é fi rmar a Sociologia como ciência, e para atingir tal propósito
trata a ideologia como uma pré-noção, uma concepção pré-científi ca.
De acordo com Marilena Chauí, Durkheim afi rma que a ideologia é um
conjunto de “noções vulgares ou fantasmas que o pensador acolhe porque
fazem parte de toda a tradição social onde está inserido” (CHAUÍ, 1981,
p. 30). Durkheim coloca a ideologia no terreno da subjetividade, uma
mera conjectura pessoal; logo, quem pretende fazer ciência não pode se
fundamentar em ideologias. Sendo assim, o cientista social deve seguir
três regras para não correr o risco de cair na ideologia: primeiro, tomar
distância da sociedade que vai estudar; segundo, deve ir sempre dos fatos
às idéias e não vice-versa; terceiro, deve usar conceitos precisos.
JO H N LO C K E
(1632-1714)
Veja as informações sobre esse fi lósofo na
Aula 10.
AU G U S T O CO M T E
(1798-1857)
Intelectual francês, fundador
do Positivismo, considerado o pai da
Sociologia, ou seja, aquele que tratou os estudos da sociedade como ciência, tendo
como modelo a Física e a Matemática,
consideradas ciências com métodos exatos, precisos e rigorosos.
ÉM I L E DU R K H E I M (1858-1917)
Intelectual francês, seguidor de Augusto
Comte, que se dedicou principalmente ao
estudo da Sociologia. De acordo com sua visão, a Sociologia
determinaria os fi ns da educação. Concebia a
educação como uma ação das gerações
adultas sobre as gerações mais jovens.
aula27_pb.indd 183 6/30/2004, 3:41:01 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1
CEDERJ184
Mas, ao longo do século XIX, surgem outras refl exões signi-
fi cativas sobre ideologia. Gostaríamos de lembrar que a discussão sobre
ideologia implica refl exão sobre a relação efetiva que existe entre as
idéias produzidas pelos homens e a realidade social e histórica. Cremos
que dois autores nos auxiliam muito na compreensão da discussão sobre
ideologia: HEGEL e MARX.
Hegel preocupa-se em discutir a relação entre as idéias e a história,
entre o conhecimento e o mundo. Sua questão fundamental era a relação
entre o real e o racional; Hegel quis romper com a separação entre o
conhecimento das coisas realizado pelas categorias mentais e as coisas em
si mesmas. Instaura o conceito contemporâneo de dialética, ou seja, admite
que o contexto social e histórico está sempre em transformação, procura
superar a separação entre conhecimento/realidade, idéia/história. Assim,
a razão dialética alcança um conhecimento verdadeiramente universal, em
um momento representa a objetivação do ESPÍRITO na história, em outro
momento a apropriação da história no espírito. De acordo com Hegel, a
consciência, por ser dialética, dá movimento à realidade.
Marx, como discípulo de Hegel, retoma a noção de dialética,
mas afi rma que as transformações não são um processo fornecido à
realidade pela consciência, mas a própria realidade é dialética, ou seja,
se transforma. Afi rma que a consciência dos homens é determinada
pelas relações sociais. Esta discussão é muito importante para entender
as refl exões de Marx sobre ideologia. Marx explica, na obra Ideologia
Alemã: “a produção de idéias, de concepções e da consciência liga-se, a
princípio, direta e intimamente, à atividade material (...) a consciência
jamais pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens
é o seu processo de vida real” (MARX e ENGELS, 1985:21). Sendo
assim, Marx conclui: “Não é a consciência que determina a vida, mas é
a vida que determina a consciência”.
Marx diz que devemos considerar a historicidade de nossa
consciência e das idéias, mostrando que as produções da consciência
estão vinculadas, mesmo que indiretamente, à produção material. Essa
proposição básica era uma resposta ao idealismo alemão, principalmente
a Hegel, que via o pensar conceitual como a verdadeira essência do ser
humano, ou seja, o mundo conceitual era a única realidade. Na obra
Ideologia Alemã, Marx descreve a consolidação da ideologia dominante
e como ela torna-se a força espiritual dominante de uma época.
HE G E L
(1770-1831)
Filósofo alemão, representante do Idealismo, que propõe a identidade entre a razão e a realidade. Considera que: “tudo que é real é racional; tudo que é racional é real”.
KA R L MA R X
(1818-1883)
Filósofo alemão, fundador do materia-lismo dialético e histórico. Marx fez profundas críticas ao modo de produção capitalista. Participou intensamente do movimento proletário internacional, fundando as bases do comunismo contemporâneo.
ES P Í R I T O
Para Hegel é a razão humana.
aula27_pb.indd 184 6/30/2004, 3:41:01 PM
CEDERJ 185
AU
LA 2
7 M
ÓD
ULO
3
Para tornar-se essa força, esse conjunto de idéias cria mecanismos de
convencimento e inversão da realidade, e através desses mecanismos cria
uma consciência que não corresponde à realidade histórica.
Segundo Marx, nas diferentes formações sociais há luta de classes.
Por exemplo: na sociedade medieval, encontrávamos o senhor feudal e o
servo; na sociedade capitalista, o proletariado e a burguesia. Essas classes
tinham interesses diferentes e confl itantes; cada um de nós está inserido
numa determinada classe social, por isso formamos nossas idéias, crenças
e valores de acordo com a nossa origem de classe. Além disso, no embate
de interesses entre as classes, aquela que está no poder procura impor as
suas concepções de mundo a toda a sociedade.
No prefácio à Contribuição à crítica da economia política, Marx
revela que as formas de consciência e, conseqüentemente, as ideologias
são veículos EPISTE MOLÓGICOS importantes para que conheçamos a realidade
histórica, por isso não podemos defi nir a ideologia simplesmente como
falsa consciência.
GRAMSCI seguirá essa interpretação do pensamento marxista, ou
seja, não considerará a ideologia como falsa consciência. Para Gramsci, a
ideologia está inserida no complexo INFRA-ESTRUTURA/SUPERESTRUTURA (bloco
histórico). Assim sendo, o conjunto da estrutura com a superestrutura
forma um bloco histórico, que representa a síntese de relações sociais e
históricas. No interior dessa síntese produzimos idéias, valores e normas
para atuar na prática social. Gramsci acreditava que uma ideologia pode
contribuir para a consolidação ou transformação de uma estrutura, e
ela não pode ser encarada simplesmente como “falsa consciência”. Ele
afi rma que as ideologias não são julgadas segundo o critério de verdade ou
falsidade, mas de acordo com a sua função e efi ciência em reunir classes
ou frações de classes em posições de domínio ou subordinação.
Para Gramsci, a ideologia é uma forma de conhecimento do
mundo. Como modo de conhecer a realidade, a ideologia tem uma
participação ativa e efetiva numa formação social, apresentando efi cácia
na explicação ou ocultamento de uma determinada realidade. De acordo
com a inserção social, produzem-se ideologias diferentes; por isso, cada
classe social constrói uma concepção específi ca de mundo, porque as
condições concretas de vida são profundamente diferentes. Mesmo
vivendo sob o mesmo modo de produção, a construção da consciência
não será semelhante nas diferentes classes sociais. Assim, a especifi cidade
de cada classe e a relação entre classes diferentes, numa mesma realidade
social, é o ambiente onde se constroem as ideologias.
AN T O N I O GR A M S C I
(1881-1937)
Veja as informações sobre este intelectual
italiano na Aula 3.
MA R X, K. E EN G E L S, F.
A Ideologia Alemã. RJ, Zahar, 1985.
EP I S T E M O L Ó G I C O
A palavra episteme em grego significa
conhecimento verdadeiro do tipo
científico, como vimos na Aula 10. O epistemológico
significa o que trabalha com o conhecimento.
IN F R A-E S T R U T U R A/
S U P E RE S T R U T U R A
Conceitos que explicam a estrutura
das sociedades, na teoria marxista.
A infraestrutura é o conjunto das relações
de produção que corresponde a uma
etapa das forças produtivas de uma
sociedade, ou seja, é a estrutura econômica
de uma sociedade. A superestrutura é
o conjunto político, jurídico, religioso,
científi co, artístico, educacional e
fi losófi co de uma determinada
sociedade.
aula27_pb.indd 185 6/30/2004, 3:41:06 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1
CEDERJ186
A ideologia dominante elabora os fundamentos e os objetivos de
como manter e expandir o seu domínio, enquanto as classes dominadas,
dependendo das condições objetivas, podem elaborar concepções que
questionam os fundamentos e objetivos traçados pela classe dominante
para manter o seu domínio numa determinada realidade social. Nesse
sentido, encontramos, numa determinada conjuntura social, ideologias
dominantes exercendo a função de direção e domínio e ideologias
dominadas que lutam para se impor. Por exemplo: atualmente, no
Brasil, podemos perceber o embate entre duas ideologias: a ideologia
de ocupação de terras, do Movimento dos Sem-Terra (MST) e a ideologia
do Incra. O aparato jurídico dá, freqüentemente, respaldo ao Incra e não
aos sem-terra, ou seja, o MST trabalha com uma ideologia que não é a
dominante e, por isso, luta para se impor perante a sociedade.
De acordo com Gramsci, sempre escolhemos uma concepção de
mundo para orientar a nossa ação. Essa escolha não é um fato puramente
intelectual, mas algo complexo, que implica uma opção política. A política é
um instrumento importante nas relações entre infra-estrutura e superestrutura,
porque é ela que permite a passagem da infra-estrutura para a superestrutura.
A verdade de uma ideologia está justamente na sua capacidade de mobilização
política e sua realização na História.
Dialogando com o pensamento de Gramsci, surge ALTHUSSER. Ele
propõe uma nova visão do “todo social” ou da formação social, criando a
METÁFORA DO EDIFÍCIO, comparando a sociedade a um edifício com seus pilares
e diferentes andares. Os pilares compõem a infra-estrutura e os andares
superiores, a superestrutura. A ideologia e a política são consideradas níveis
da superestrutura de uma formação social. Há uma relação hierárquica
entre os níveis, o econômico determina, em última instância, os níveis
político e ideológico. Mas é necessário lembrar que a superestrutura não
é simplesmente um refl exo da infra-estrutura, a primeira, na verdade, é a
condição necessária de existência da segunda.
Para Althusser, a ideologia é um nível importante à vida das
formações sociais e, em todo contexto histórico, a ideologia tem um
papel a desempenhar, porque as relações ideológicas ocultam as relações
reais de uma formação social, mas a ideologia não deve ser vista como
uma mera ilusão. Na verdade, a ideologia é uma relação vivida entre os
LO U I S AL T H U S S E R (1918-1990)
Filósofo francês, que segue a tendência marxista. Faz uma análise crítica da sociedade capitalista. Acredita que qualquer modo de produção precisa assegurar mecanismos para a sua reprodução, por isso cria os conceitos de Aparelhos Repressivos do Estado (ARE) e Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE).
A METÁFORA DO EDIFÍCIO de Althusser foi mencionada também na Aula 26.
aula27_pb.indd 186 6/30/2004, 3:41:07 PM
CEDERJ 187
AU
LA 2
7 M
ÓD
ULO
3
homens e o seu mundo. Na ideologia os homens exprimem “a maneira
pela qual vivem a relação entre eles e suas condições de existência: isto
pressupõe tanto uma relação real como uma relação imaginária vivida”
(Da Ideologia, 1980, p. 111). A ideologia é uma representação da relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência.
A função social da ideologia não é possibilitar um conhecimento
verdadeiro da estrutura social, mas inserir os sujeitos nas suas atividades
práticas que sustentam a estrutura social. Por isso, Althusser afi rma
que a ideologia oculta as contradições reais e reconstitui um discurso
imaginário que explica a realidade. A ideologia tem três funções: coesão,
inversão e mistifi cação.
Para explicar os mecanismos de reprodução na sociedade,
Althusser cria dois conceitos: Aparelhos Repressivos do Estado (ARE)
e Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Althusser acreditava que a
burguesia precisava de mecanismos para assegurar a estabilidade e
a continuação da dominação. As escolas, as igrejas, os meios de
informação (jornais, revistas, rádios, canais de televisão etc.), a família,
a cultura etc. são Aparelhos Ideológicos do Estado. Estes aparelhos têm
como função submeter as classes sociais dominadas ao poder da classe
dominante. Para Althusser, a ideologia está estreitamente vinculada ao
problema do poder do Estado e da dominação de classe. Sendo assim,
a ideologia, em Althusser, é unidimensional e sempre nos fará ver a
realidade social pela ótica dominante, ocultando as contradições da
realidade.
Observe que a concepção de ideologia de Althusser difere daquela
defendida por Gramsci. De acordo com Althusser, a ideologia oculta
as relações reais de uma formação social, por isso não possibilita o
conhecimento da realidade, enquanto em Gramsci a ideologia não deve
ser julgada de acordo com o critério de verdade ou falsidade, porque,
de acordo com a sua origem de classe, ela pode ocultar ou desvelar uma
determinada realidade, pois a ideologia é uma forma de conhecimento
do mundo que nasce no embate de diferentes classes sociais.
Como podemos constatar neste item, a ideologia é um conceito
fundamental para explicar que as idéias não são auto-sufi cientes e as suas
raízes estão em algum lugar. A questão de fundo da ideologia é saber qual
a relação efetiva que existe entre as idéias produzidas pelos homens e a
realidade social e histórica. A discussão sobre ideologia nos leva também
aula27_pb.indd 187 6/30/2004, 3:41:15 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1
CEDERJ188
a discutir a consciência que temos da realidade que está à nossa volta.
Além disso, quando discutimos ideologia, somos levados a refl etir sobre
a dominação, a direção, ou seja, como as idéias de uma determinada
classe social dirigem um determinado contexto social e histórico e, por
isso, essa classe tem a direção da sociedade e o poder.
HEGEMONIA, PODER E EDUCAÇÃO
Toda prática educativa contém inevitavelmente uma dimensão
política.
Toda prática política também contém, por sua vez, inevitavelmente
uma dimensão educativa.
A educação é, assim, uma relação de hegemonia alicerçada... na
persuasão (consenso, compreensão).
DERMEVAL SAVIANI
O conceito de hegemonia foi utilizado
inicialmente por LÊNIN. Ao longo do processo
revolucionário que se instalou na Rússia, no
início do século XX, Lênin discute a questão
da liderança do proletariado, como essa classe
construiria mecanismos que possibilitassem
alcançar a direção do movimento revolucionário.
Com a vitória da Revolução Bolchevique,
em 1917, Lênin retoma a discussão sobre a
hegemonia do proletariado, refl etindo sobre
três aspectos: a direção de classe, a direção de classe que se exerce por
meio de uma política de alianças e a construção da hegemonia através
da luta entre classes.
A discussão sobre hegemonia gira em torno da questão do
domínio e da direção política num contexto social e histórico. Lênin
abre uma discussão fundamental para compreendermos a construção e
a consolidação do poder político. Devemos prestar atenção ao fato de
que Lênin e depois Gramsci não vão discutir somente o papel da classe
dominante, ou seja, da classe que atingiu a hegemonia e está no poder,
mas todo o processo de construção do poder político.
VL A D I M I R I L I C H LÊ N I N
(1870-1924)
Intelectual russo, fundou o comunismo bolchevista, o partido
comunista da URSS e o primeiro Estado
socialista do mundo. Foi um dos principais líderes da Revolução
Bolchevique de 1917, na Rússia.
SA V I A N I , DE R M E V A L
Onze teses sobre educação e política. In: Escola e Democracia. SP, Cortez e Autores Associados, 1984, pp. 92-93.
aula27_pb.indd 188 6/30/2004, 3:41:16 PM
CEDERJ 189
AU
LA 2
7 M
ÓD
ULO
3
Gramsci vem retomar a discussão realizada por Lênin na obra
Cadernos do Cárcere. No fragmento 44 do Caderno 1, ele explica: “Podemos,
portanto, distinguir dois modos de dominação de classe: uma dominação
em que a organização ideológica complementa a força que domina, e uma
dominação-direção (hegemônica, nesse caso), que é acompa nhada de
consenso”. E complementa no Caderno 3, no fragmento 34, “se a classe
dominante perde o consenso, ela não é mais dirigente, mas exclusivamente
dominante, detentora da coerção pura”. Então, a hegemonia é ao mesmo
tempo o conjunto de domínio e direção exercido por uma classe social.
Assim, podemos perceber que para realizar a hegemonia é
necessário o consenso, o convencimento, e, portanto, a ideologia
é fundamental no processo de construção de hegemonia. Quando
uma classe social domina apenas na base da coerção, da repressão,
ela é dominante, mas não hegemônica. Por isso, Gramsci afirma:
“A hegemonia política pode e deve existir antes de se chegar ao governo;
não se deve contar somente com o poder e a força-material que ele dá,
para exercer a direção ou hegemonia política” (BUCCI-GLUCKSMANN
– op. cit., p. 87). Sendo assim, uma classe social pode chegar ao poder
como dirigente e dominante. A classe que pretende ser dirigente precisa
ter, além de uma direção política, uma direção intelectual e moral sobre
as demais. A discussão sobre hegemonia nos permite trabalhar com a
questão da direção cultural e política envolvendo as classes sociais de
um contexto social e histórico.
A luta pela hegemonia é fundamental porque permite a consolidação
do poder efetivo de uma classe social dentro de um determinado contexto
social e histórico. Devemos lembrar que a hegemonia é construída no
embate entre as diferentes classes sociais; há uma luta para que algumas
concepções de mundo prevaleçam, tornem-se consenso; por isso é
necessário saber a favor de quem e de quais interesses determinadas
idéias e valores são veiculados. Por exemplo: muitos afi rmam que “a
mulher é frágil, sensível e intuitiva”. Será que podemos generalizar? Em
todas as culturas as mulheres são assim? Percebemos que nessa frase são
veiculados valores que expressam um determinado interesse cultural.
Este trecho da obra Cadernos do Cárcere,
de Gramsci, está em Buci-Glucksmann,
Christinne. Gramsci e o Estado. RJ, Paz e
Terra, 1980, p.80.
aula27_pb.indd 189 6/30/2004, 3:41:16 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1
CEDERJ190
Como vimos anteriormente, a hegemonia trabalha com a persuasão,
por isso é necessário estabelecer mecanismos e estratégias na sociedade que
permitam construir a hegemonia. A classe dominante tende a imprimir uma
direção cultural e ideológica no contexto sociocultural; seus intelectuais
elaboram um sistema de idéias que tem um forte poder de convencimento;
assim, é fundamental que as classes dominadas organizem e sistematizem a
sua visão de mundo para que não permaneçam desestruturadas e passivas.
Elas devem lutar para construir uma nova hegemonia.
De acordo com Gramsci, há dois aspectos fundamentais para
a mudança qualitativa do poder: a criação de um novo senso comum
e a elevação cultural das massas. É necessária uma profunda reforma
intelectual e moral, ou seja, uma revolução cultural para que se entenda
a política sob novos parâmetros.
Os meios de comunicação, a instância jurídica, os partidos
políticos, a escola, entre outras instâncias, são fundamentais para
consolidar a hegemonia de uma classe social. A escola, para Gramsci,
será um dos principais aparelhos de hegemonia na sociedade capitalista
contemporânea: “A cultura é um privilégio. A escola é um privilégio.
E nós não queremos que seja assim. Todos os jovens deveriam ser iguais
perante a cultura.” Assim, não devemos subestimar o papel da educação
na construção de uma hegemonia e de um novo tipo de poder, pois na
escola são veiculados valores, crenças e normas que formam aquele que
atuará num determinado contexto social e histórico. Sabemos que as
escolas, os sindicatos, as organizações sociais, os partidos são instâncias
importantes para construir uma nova consciência social.
A escola deve superar a dicotomia entre trabalho intelectual e
trabalho social, cultura erudita e cultura popular para construir uma
democracia real da cultura e do saber. Para Gramsci, a escola deve ser
única, ou melhor, unitária, e o seu princípio norteador deve ser o trabalho.
Ela precisa fortalecer a criatividade, a autodisciplina e a autonomia.
No processo educativo, o professor tem um papel fundamental, pois tem
como função possibilitar a socialização do saber. A escola e as demais
instâncias sociais podem abrir caminho para a construção de uma nova
hegemonia, uma nova direção cultural e política da sociedade, mesmo
porque devemos nos lembrar sempre destas palavras de Paulo Freire:
“Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social
de que tomamos parte” (1995, p. 79).
Bucci-Glucksmann, Christinne. Gramsci e o Estado. RJ, Paz e Terra, 1980, p.89.
Freire, Paulo. Política e Educação. SP, Cortez, 1995.
aula27_pb.indd 190 6/30/2004, 3:41:17 PM
CEDERJ 191
AU
LA 2
7 M
ÓD
ULO
3
R E S U M O
Analisamos, nesta aula, os conceitos de ideologia e hegemonia, mostrando a
importância desses conceitos para a refl exão sobre a educação. Discutimos o
conceito de ideologia de acordo com os seguintes autores: Destutt de Tracy,
Comte, Durkheim, Marx, Gramsci e Althusser. Constatamos que o estudo sobre
a ideologia tem como eixos fundamentais a relação entre as idéias produzidas
pelos homens e o contexto social e histórico e o grau de consciência que temos da
realidade que está a nossa volta. O conceito de hegemonia versa sobre a questão
da direção e do domínio político num determinado contexto social e histórico;
para discutir esta questão, nos baseamos nos pensamentos de Lênin e Gramsci.
Concluímos que na construção e manutenção da hegemonia está presente uma
determinada ideologia e o processo educacional é fundamental para manter ou
construir uma nova hegemonia.
EXERCÍCIOS
IDEOLOGIA
(Cazuza e Frejat)
Meu partido é um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah! Eu nem acredito
E aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Freqüenta agora as festas do grand monde
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder estribilho
Ideologia, eu quero uma pra viver
aula27_pb.indd 191 6/30/2004, 3:41:17 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 1
CEDERJ192
O meu prazer agora é risco de vida
Meu sexo and drugs não tem nenhum rock and roll
Eu vou pagar a conta de um analista
Para nunca mais ter que saber quem eu sou
Saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro
1. Descreva o contexto social narrado na música acima e mostre a ideologia que
o sustenta.
2. Qual o signifi cado que os compositores dão para o termo ideologia?
3. Mostre a importância da educação para a manutenção ou transformação da
hegemonia.
AUTO-AVALIAÇÃO
Você conseguiu compreender os diferentes modos de conceituar a ideologia e
percebeu que a discussão central sobre este conceito gira em torno da questão da
relação entre a produção das idéias pelos homens e o contexto social e histórico?
Observou que quando discutimos ideologia estamos pensando no grau de
consciência que os homens têm de sua realidade social e histórica? Entendeu
que o conceito de hegemonia refere-se à questão da direção e domínio político?
Percebeu a importância da educação para o processo de hegemonia? Então, você
está apto a prosseguir a discussão sobre a relação entre hegemonia, ideologia e
poder na educação, na Aula 28.
aula27_pb.indd 192 6/30/2004, 3:41:17 PM
28A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2 a
ul
a
Ao fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Examinar as dimensões do processo ideológico e as suas relações com a legitimidade do discurso social e do contradiscurso.
• Visitar o conceito de hegemonia ideológica em suas relações com as dimensões econômicas, políticas e morais.
OBJETIVOS
Aula_28.indd 193 6/29/2004, 2:17:40 PM
C E D E R J194
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2
(...) los intelectuales pueden confrontar la microfísica del poder y
el trabajo, construyendo esferas públicas de oposición conectadas
a la producción de la vida cotidiana y a más amplias esferas
institucionales de poder.
Peter MacLaren
Esta Estação é um desdobramento da Estação anterior (Aula 27) e representa
um momento específi co para refl etir sobre a complexidade do fenômeno
ideológico e de sua materialidade no campo educativo. Insistimos mais uma
vez no tratamento das questões ideológicas porque nossa preocupação como
educadores é o desenvolvimento de uma modalidade de pensamento sobre
a construção e a defi nição das práticas educativas a partir das formas sociais
concretas de nossa existência cotidiana, de forma que o ensino seja concebido
como um espaço cultural e político que encarna um projeto de regulação e
transformação.
O conceito de ideologia é talvez um dos conceitos mais polêmicos
no âmbito das Ciências Sociais. Este termo foi criado imediatamente após
a Revolução Francesa, em 1797. O seu criador foi Antoine DESTUTT DE
TRACY, um dos responsáveis pelo Instituto de França, entidade que tinha
como missão difundir os ideais do Iluminismo. Na sua obra Eléments
d’Ideologie, escrita entre 1801 e 1815, defende a necessidade de uma
nova ciência das idéias, uma ideo-logia, que seria a base de todas as
outras ciências. A necessidade deste novo conceito anda a par com a
necessidade de explicar a forma como se constroem as nossas idéias.
Perante concepções inatistas das idéias, como as idéias que a religião,
principalmente, vinha defendendo, o conceito de ideologia propunha-
se, agora, facultar outro tipo de explicações, do tipo não determinista
(LÖWY, 1989).
Antoine Destutt de Tracy defende que as nossas idéias se baseiam
em sensações físicas, pelo que podem ser estudadas de forma empírica,
com os métodos próprios da ciência, com o que as parcialidades e as
idéias preconcebidas poderiam ser eliminadas. É através da investigação
que podemos fi car a saber que essas idéias têm origem nas necessidades
e nos desejos humanos. Essas necessidades e, conseqüentemente, essas
idéias deverão constituir o fundamento da estrutura das leis reguladoras
da sociedade.
DESTUTT DE TRACY (1754-1836)
Era um nobre ofi cial da Corte Francesa que aderiu à Revolução. Criador da palavra “ideologia”. O que ele denominou inicialmente de ciências ideológicas posteriormente foi denominado de ciências morais e políticas e atualmente de ciências humanas.
INTRODUÇÃO
Aula_28.indd 194 6/29/2004, 2:17:59 PM
C E D E R J 195
AU
LA 2
8 M
ÓD
ULO
3
Embora no princípio o próprio Napoleão Bonaparte apareça como
patrocinador do Instituto de França, ele considera de modo pejorativo a
nova ciência da ideologia. Os ideólogos, segundo Napoleão, são todos
os intelectuais que não dão aval a seus planos políticos e que carecem de
sentido prático e realista, ou seja, ideologia são as opiniões defendidas
pelos adversários.
A filosofia alemã vai, também ela, dedicar-se a aprofundar
amplamente este conceito. HEGEL (1990) explica como são relativas as
idéias dominantes numa determinada época, porquanto dependem de
situações históricas e, tal como estas, estão sujeitas a modifi cações. Marx
(1984), como discípulo de Hegel, vai colocar uma ênfase especial em
demonstrar que as idéias sociais e políticas se transformam, dependendo
das dinâmicas que promovem as relações entre as classes sociais de
cada país.
Para Marx, a ideologia é um sistema elaborado de representações
ou de idéias da vida em sociedade que se manifesta de forma invertida.
As idéias da vida em sociedade representam a consciência dos homens.
Porém, essas idéias aparecem invertidas, de cabeça para baixo, porque
elas não representam a consciência da maioria das pessoas, mas de uma
classe social predominante. Dessa forma, as relações dos homens com o
mundo aparecem como ilusão, como mentira, como sonho, porque elas
estão em oposição ao mundo real, às condições materiais da vida.
Com muita freqüência, pensa-se que a consciência do homem é
superior e anterior à realidade que busca conhecer. Nesse sentido, as
idéias moveriam o mundo e a História poderia ser explicada pela ação
dos grandes homens. Marx inverte o processo, mostrando que as idéias
surgem a partir das condições históricas reais vividas pelos homens ao
estabelecerem as relações de produção, isto é, consistem na maneira pela
qual eles se organizam por meio da divisão social do trabalho. Assim, toda
atividade intelectual (mito, religião, moral, fi losofi a, literatura, ciência
etc.) passa a ser compreendida como derivada das condições materiais
de produção da existência.
Para Marx a ideologia vincula-se ao conceito de consciência falsa
e de alienação. A consciência falsa não é um processo inconsciente, mas,
ao contrário, o pensador realiza conscientemente. O que ocorre, no
entanto, é que o sujeito desconhece as verdadeiras forças motrizes que
põem em ação o seu pensamento. Por isso é que tal processo é por ele
denominado de ideológico.
HEGEL, F.
(1770-1831)
É considerado o mais importante fi lósofo do
idealismo alemão. Suas principais obras são:
Propedêutica fi losófi ca, Fenomenologia do
espírito e Princípios de Filosofi a do Direito.
Aula_28.indd 195 6/29/2004, 2:18:00 PM
C E D E R J196
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2
Chauí (1985), baseada em Marx, defi niu o conceito de ideologia
da seguinte forma:
A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente
de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de
conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o
que devem pensar e como devem pensar; o que devem valorizar e
como devem valorizar; o que devem sentir e como devem sentir;
o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo
explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos)
de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos
membros de uma sociedade, dividida em classes, uma explicação
racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais
atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir
das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da
ideologia é a de apagar as diferenças entre as classes e de fornecer
aos membros da sociedade o sentimento da identidade social,
encontrando certos referenciais, identifi cadores de todos e para
todos como por exemplo: a humanidade, a liberdade, a igualdade,
a nação ou o Estado.
Em síntese, a ideologia tem aqui o sentido de mascaramento da
realidade ou deformação da realidade. Nem sempre o trabalhador percebe
com clareza a situação em que se encontra, e é a ideologia que faz com
que não perceba a exploração de que é vítima. Como um conjunto de
representações, idéias e normas de conduta, a ideologia determina, a
partir dos interesses da classe dominante, o que o homem deve pensar,
sentir e agir.
A defi nição da ideologia fez correr rios de tinta desde Destutt
de Tracy. Quase todos os fi lósofos, em maior ou menor grau, se têm
esforçado por limar ou elaborar uma defi nição de ideologia.
Este conceito vai receber, desde o início, signifi cações muito
diversas, desde os que lhe conferem uma valoração negativa, capaz de
deformar a realidade e de criar uma falsa consciência, até aos que lhe
atribuem um signifi cado mais positivo.
Como você já percebeu na Aula 27, a função da ideologia é manter
e justifi car as estruturas sociais existentes.
Aula_28.indd 196 6/29/2004, 2:18:03 PM
C E D E R J 197
AU
LA 2
8 M
ÓD
ULO
3
A função da ideologia na sociedade humana centra-se principalmente
na constituição e aperfeiçoamento de formas sob as quais as pessoas vivem
e constroem signifi cativamente a sua realidade, os seus sonhos, desejos
e aspirações.
As ideologias, segundo Therborn (1997), submetem e qualifi cam
os indivíduos, dizendo-lhes, fazendo-lhes reconhecer e relacionando-
os com:
1. o que existe, e o seu corolário, o que não existe; quer dizer,
contribuem para nos tornar conscientes da idéia de quem somos,
do que é o mundo e de como são a natureza, a sociedade, os
homens e as mulheres;
2. o que é bom, correto, justo, belo, atraente, agradável, assim
como todos os seus contrários. Isto ajuda, por conseguinte, na
normalização dos nossos desejos e aspirações;
3. o que é possível e impossível. Conhecendo ambas as dimensões,
defi nimos as possibilidades e o sentido da mudança, assim como
as suas conseqüências. As nossas esperanças, ambições e temores
fi cam assim contidos dentro dos limites das possibilidades
concebíveis.
O discurso da manutenção de uma sociedade, de defesa da ordem
estabelecida, joga, portanto, com estas três dimensões do processo ideológico.
Em função delas, os intelectuais orgânicos que estão a serviço de determinado
modelo social podem elaborar diversas modalidades de discurso:
a) Em primeiro lugar, podem centrar-se em sublinhar unicamente
as parcelas ou traços existentes daquela realidade que reforça
os interesses do poder dominante.
b) Dado que, muitas vezes, a realidade é difícil de ocultar, pode
optar-se por uma segunda via, a de disfarçar essa realidade,
rotulando-a de tal modo que proporcione uma razão explicativa
segundo a qual a culpa será unicamente da mesma realidade.
Aula_28.indd 197 6/29/2004, 2:18:03 PM
C E D E R J198
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2
c) Uma terceira opção consiste em defender a impossibilidade de
uma mudança diferente da projetada, ou em procurar convencer
a sociedade de que, de momento, não é possível modifi car esse
estado de coisas, numa tentativa de arredar a solução dos
problemas para um futuro inexeqüível.
A ideologia traduz, em nosso entender, uma visão do mundo,
uma perspectiva sobre as coisas, acontecimentos e comportamentos,
mas estamos ao mesmo tempo conscientes de que esta concepção do
mundo é uma construção sócio-histórica (BERGER, 1990), sendo,
por conseguinte, relativa, parcial, e necessitando de uma reelaboração
permanente para evitar cair num absolutismo que impeça a refl exão e
favoreça a dominação dos homens.
Todas as fi losofi as e todas as sociedades democráticas precisam
ter consciência de que existem ideologias e de que é necessário conhecer
como explicam a realidade. É também conveniente saber que cada
ideologia tem, por assim dizer, as suas liturgias, as suas técnicas e as
suas táticas.
Esta concepção do mundo traduzida pela ideologia dota os
cidadãos que dela compartilham de um sentido de pertença e de
identidade, torna-os conscientes das possibilidades e limitações
de seus atos, estrutura e normaliza os seus desejos e, ao mesmo tempo,
proporciona uma explicação das transformações e das conseqüências das
mudanças. A ideologia implica assunções sobre o próprio ser individual
e a sua relação com outros agrupamentos humanos e com a sociedade
em geral.
Tal signifi cado do conceito de ideologia permite, segundo Kemmis
(1998), a criação de estruturas partilhadas de interpretação, valor e
signifi cação que, no caso de não se ter consciência do seu relativismo,
da relação dialética entre a consciência individual e as estruturas sociais,
podem funcionar como cosmovisões criadoras de condutas irracionais e
promotoras de alienação. Isto quer dizer que cada ideologia pode chegar
inclusivamente a criar entre os membros que a partilham uma espécie
de senso comum que, por sua vez, tem uma tradução na prática através
dos seus comportamentos individuais e coletivos.
Aula_28.indd 198 6/29/2004, 2:18:03 PM
C E D E R J 199
AU
LA 2
8 M
ÓD
ULO
3
A função da ideologia é ocultar as diferenças de classe, facilitando
a continuidade de dominação de uma classe sobre a outra. A ideologia
assegura a coesão entre os homens e a aceitação sem críticas das tarefas
mais penosas e pouco recompensadoras, em nome do dever moral ou
simplesmente como decorrentes da ordem natural das coisas.
Um exemplo comum de ideologia é a frase “o trabalho dignifi ca
o homem”. Não queremos dizer que a afi rmação seja falsa, pois, de
fato, o trabalho faz com que o homem se torne homem. A frase torna-se
ideológica quando considerada independentemente do contexto histórico
concreto em que os homens trabalham, o que tende a mascarar a situação
de exploração.
Torna-se ideológica quando se apresenta de forma abstrata,
universal ou com lacunas, ou seja, “vazios”, onde alguma coisa se acha
oculta. Explicando melhor:
a) trata-se de uma abstração quando o trabalho é apresentado
como sendo a idéia de trabalho, independentemente da análise
histórica concreta das condições em que certos tipos de trabalho
brutalizam o homem ao invés de enobrecê-lo;
b) trata-se de um conceito universal quando é considerado
indistintamente para todos os homens, descuidando-se de que
as relações de dominação existentes estabelecem diferenças de
fato entre os diversos membros da sociedade;
c) existe uma lacuna, isto é, um ocultamento, pela maneira como
surge o trabalho assalariado. Descobrimos a mais-valia, ou seja,
o trabalho não pago pelo empregador. Esse ocultamento, essa
lacuna e a mais-valia levam o homem à alienação e à diferença
de condições de vida das pessoas na comunidade;
d) é caracterizada pela inversão que faz sobre a realidade. Exemplo:
se o fi lho de um operário não consegue melhorar o padrão de
vida, isto é creditado à sua incompetência, quando, na verdade,
ela é o resultado daquilo que lhe foi negado pela sociedade.
Aula_28.indd 199 6/29/2004, 2:18:04 PM
C E D E R J200
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2
Outra inversão própria da ideologia é a maneira pela qual se
estabelecem as relações entre teoria e prática, colocando a teoria como
superior à prática, porque a antecede e a “ilumina”. Essa divisão
hierárquica entre o pensar e o agir encontra-se também na divisão da
sociedade, que tem um segmento dedicado ao trabalho intelectual e outro
ao manual. Uma classe “sabe pensar” (controla as decisões e manda);
a outra “não sabe pensar” (executa e obedece).
Neste sentido, cabe à crítica da ideologia desmascarar os processos
de formação de idéias e de pensamentos mostrando as suas raízes e causas
histórico-sociais. A crítica da ideologia nada mais seria do que o processo
pelo qual se passaria da consciência falsa para a consciência verdadeira,
isto é, o reconhecimento de que a consciência é resultante das condições
histórico-sociais objetivas da existência dos homens. Do ponto de vista
do conhecimento, a ideologia seria a forma de uma consciência falsa que
possibilitaria a compreensão do processo de formação de juízos falsos ou
incorretos. É importante frisar que não se trata de consciência individual
e sim de consciência de classe.
Outro ponto importante a ser considerado na questão do debate
ideológico é a crescente signifi cação política que o termo adquire na
sociedade atual e a afi rmação subseqüente de que todas as ciências humanas
e sociais não são neutras, mas portadoras de uma certa visão do mundo
que se organiza em torno das ideologias, uma vez que seus conhecimentos
são dependentes das condições sociais a que estão submetidas.
Gramsci (1990) utiliza o conceito de hegemonia ideológica para
aprofundar este último aspecto, para compreender a unidade existente em
cada agrupamento social concreto. Considera que a ideologia dominante
numa situação histórica e social pode organizar os hábitos e signifi cados
do chamado senso comum. O que quer dizer que a ideologia impõe aos
seus seguidores, de maneira sutil, signifi cados e possibilidades de ação,
de tal modo que até mesmo as formas de organização e de atuação
de uma sociedade que contribuem para manter situações de injustiça
chegam a ser entendidas como inevitáveis, naturais, sem possibilidade
de modifi cação.
Aula_28.indd 200 6/29/2004, 2:18:04 PM
C E D E R J 201
AU
LA 2
8 M
ÓD
ULO
3
O domínio de uma classe sobre outra gera-se de uma maneira
mais efi caz quando é levado a cabo através de um processo de hegemonia
ideológica, mediante a criação dessa consciência e de um consentimento
espontâneo nos membros da classe social submetida. A classe dominadora
serve-se, para isso, do apoio que lhe confere o seu controle do Estado.
O objetivo da hegemonia é reproduzir no plano ideológico as condições
para a dominação de classe e para a perpetuação das relações sociais de
produção e distribuição.
Gramsci distingue três momentos no desenvolvimento da
hegemonia ideológica:
1. o primeiro é a fase estritamente econômica, na qual os
intelectuais orgânicos expõem os interesses da sua classe;
2. no segundo momento, o político-econômico, a totalidade das
classes, mais ou menos, apóia as exigências da economia;
3. e o terceiro é a etapa hegemônica, que implica que os objetivos
econômicos, políticos e morais de uma classe concreta sejam
assumidos pelas classes restantes e grupos sociais utilizados
pelo Estado para determinar modelos de atuação e de relações
de produção e distribuição consonantes com esses objetivos.
O conceito de hegemonia ideológica não signifi ca que as classes
e grupos sociais não dominantes sejam totalmente manipulados, sem
possibilidade de gerar uma contra-hegemonia. Antes, pelo contrário, a
hegemonia pode ser contida e rejeitada, tal como sublinha Gramsci, por
meio das tendências compensadoras resultantes da posição estrutural
da classe operária no processo de trabalho e nos demais processos.
As contradições capazes de pôr em causa esse senso comum surgem,
fundamentalmente, na medida em que as relações sociais que se
estabelecem no interior das instituições, nas quais participam os cidadãos,
são muito diferentes das existentes nos locais de trabalho.
Averiguar como trabalham as ideologias em determinada sociedade
e num momento histórico concreto requer que as contemplemos como
processos sociais em curso. O estudo das formas de atuação ideológica,
ao oferecer-nos diferentes informações acerca de como é e de que
modo funciona o mundo no qual nos desenvolvemos, quem, por que e
Aula_28.indd 201 6/29/2004, 2:18:04 PM
C E D E R J202
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2
como somos, até que ponto e de que maneira podemos transformar a
realidade, poderá revelar a existência de diversos modos alternativos de
compreender e atuar; assim como também poderá dar-nos a compreensão
dos confl itos gerados entre elas quando as suas divergências são mais
ou menos grandes.
A ideologia que, num momento histórico concreto, funciona como
hegemônica vai ser gradualmente reformulada ou substituída através
da confrontação com outras tradições intelectuais. A confrontação
entre ideologias é, por conseguinte, uma realidade. Mas, por seu turno,
cada uma delas sofre transformações em algum grau na medida em que
coexistem, competem e se confrontam umas com as outras; além disso,
vão também sobrepor-se, infl uenciar-se e contaminar-se umas às outras,
especialmente nas sociedades abertas e complexas dos nossos dias.
As ideologias constroem-se, funcionam e transmitem-se em
situações sociais concretas, circunscritas a espaços e a tempos específi cos,
mediante determinadas práticas e meios de trabalho de comunicação.
É assim que se pode ver o seu grau de efi cácia e a necessidade ou não da
sua alteração, transformação ou substituição.
O fato de as sociedades se caracterizarem por determinada
ideologia predominante, por uma hegemonia ideológica, torna patente
o resultado de toda uma série de batalhas travadas entre as diferentes
classes ou grupos sociais em momentos cruciais de crise e contradição.
A sua reprodução subseqüente será fruto, em primeiro lugar, da adequada
reprodução dessa ideologia mediante discursos textuais e simbólicos,
protegidos, por sua vez, por todo um conjunto organizado de enunciados,
proposições, classifi cações, regras e métodos que procuram impedir
possíveis desvios, e, em segundo lugar, das suas práticas e formas não
discursivas coerentes com o conjunto já referido.
Em todas as sociedades, as classes sociais e/ou grupos que detêm
o poder procuram impor e legitimar o seu domínio e organizar a sua
reprodução através desses dois meios, nos diferentes cenários em que
se desenvolve a atividade humana, contando para isso com a ajuda
imprescindível do Estado.
Um desses cenários é a instituição escolar, instituição que Althusser
(1989) denominou, conforme já estudado em aulas anteriores, de
Aparelho Ideológico de Estado, afi rmando que desempenha, em todos os
seus aspectos, a função dominante dentre os outros aparelhos ideológicos
de Estado.
Aula_28.indd 202 6/29/2004, 2:18:05 PM
C E D E R J 203
AU
LA 2
8 M
ÓD
ULO
3
R E S U M O
O termo ideologia foi criado por Destutt de Tracy na sua obra Eléments d’Ideologie.
Nessa obra, defende a necessidade de uma ciência das idéias.
Para Marx, o conceito de ideologia vincula-se ao conceito de consciência falsa e
de alienação e constitui um sistema elaborado de representações ou de idéias da
vida em sociedade que se manifesta de forma invertida.
As ideologias submetem e qualifi cam os indivíduos, relacionando-os com o que
existe e o que não existe, com o que é bom, correto, justo e com o que é possível
e o que é impossível.
Cabe à crítica da ideologia desmascarar os processos de formação de idéias e de
pensamentos, mostrando as suas raízes e causas histórico-sociais.
Para Gramsci, o conceito de hegemonia ideológica possui três momentos: o
econômico, o político-econômico e os objetivos políticos, econômicos e morais.
Aula_28.indd 203 6/29/2004, 2:18:05 PM
C E D E R J204
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | A relação hegemonia, ideologia e poder na educação 2
EXERCÍCIOS
1. Como surge o conceito de ideologia?
2. Por que as idéias da vida em sociedade, que representam a consciência do
homem, aparecem de forma invertida?
3. Comente o conceito de ideologia elaborado por Chauí (1985).
4. Cite uma função da ideologia.
5. Qual é o papel da crítica da ideologia?
6. Comente o conceito de hegemonia ideológica elaborado por Gramsci.
AUTO-AVALIAÇÃO
É importante que você consiga fazer todo o exercício sem manifestar difi culdade
alguma, pois tal empreendimento pode sinalizar a garantia para prosseguir viagem
até a próxima Estação. Todavia, se aparecer alguma difi culdade, é importante
refazer a leitura atenta desta aula, tentando destacar os principais aspectos por ela
abordados. Lembre-se de que as três primeiras questões do exercício referem-se ao
conceito de ideologia. A quarta é um desdobramento do conceito de ideologia. Já
a quinta questão destaca o aspecto crítico atribuído à ideologia e a última questão,
também de caráter conceitual, refere-se ao conceito de hegemonia ideológica.
Aula_28.indd 204 6/29/2004, 2:18:06 PM
A refl exão teórica em relação com a prática cotidiana
AU
LA 5
29au
la
OBJETIVOAo fi nal desta aula, você deverá ser capaz de:
• Rever concepções, conceitos e noções estudados nas aulas anteriores, dedicadas a reflexões sobre a escola, o Estado e a sociedade e às relações estabelecidas entre eles.
Pensando sobre escola, Estado e sociedade
aula29.indd 205 6/30/2004, 3:22:19 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ206
INTRODUÇÃO A igualdade de oportunidades manifesta-se pelo direito à educação e pela continuidade do sistema de educação, organizado de forma a que todos, em igualdade de condições, possam dele participar e nele continuar até os níveis mais altos (TEIXEIRA, 1977, p. 179).
Até aqui, nesta viagem pela “Terra dos Fundamentos”, quando
olhamos através das janelas, nosso olhar tem repousado em campos
cultivados, pastagens e em pequenas cidades e vilas. No trecho que
estamos percorrendo hoje, esse cenário muda radicalmente: estamos
atravessando uma grande cidade.
Veja, caro aluno, quantos prédios imensos; quantas fábricas,
lojas comerciais e igrejas. Observe as imensas avenidas asfaltadas e o
emaranhado de ruas, que cruzamos facilmente em nosso trem, muitas vezes
livres do tráfego pesado e dos engarrafamentos pela utilização de viadutos
e túneis que permitem ao nosso trem de ferro a passagem livre.
Esse cenário vem bem a calhar para a aula de hoje. Nesta aula-
síntese, vamos abordar as seis últimas aulas que você estudou, dedicadas
fundamentalmente a refl etir sobre a escola, o Estado, a sociedade e as
relações entre eles.
Uma grande cidade, esse imenso conglomerado urbano, é um
fenômeno relativamente recente; como fenômeno generalizado, data do
século XX, especialmente a partir de sua segunda década. Isto é verdade,
inclusive aqui no Brasil.
Os grandes prédios industriais e comerciais que vemos através
das janelas de nosso trem são as instituições que expressam a maneira
moderna de conviver e, sobretudo, de produzir e consumir. Para tanto, a
sociedade criou as instituições e as organizações. E criou, vale acentuar, o
Estado e o governo, para organizar e gerir as relações dos cidadãos entre
si, destes com as próprias instituições, com o aparato produtivo, com
as instituições culturais, judiciais, políticas etc. Dentre tais instituições,
interessa-nos, particularmente, como professores, estudar a Escola e suas
relações com todas as demais instituições.
Toda essa gama de informações é fundamental para você, caro
aluno, que atuará como docente no Ensino Médio, convivendo com
alunos que estão recebendo parte desses conhecimentos nas aulas de
Sociologia, Antropologia, Política e Filosofi a.
Já que estamos
falando em
instituições,
aproveite para reler
a Aula 18, que
trata do “saber
instituído” e do
“saber instituinte”.
!
aula29.indd 206 6/30/2004, 3:22:27 PM
CEDERJ 207
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
Para você ter idéia da importância destas aulas, saiba que os seus
alunos estarão refl etindo acerca da relação entre indivíduos e sociedade,
a partir da infl uência da ação individual sobre os processos sociais, assim
como sobre o processo inverso: a dinâmica social, pautada em processos
que envolvem a manutenção da ordem ou a mudança cultural.
Como dialogar, com seus alunos do Ensino Médio, sem respaldo
teórico?
O trabalho do professor dessa etapa, assim como das demais, deve
ser pautado numa visão interdisciplinar. Não se ensina Física, Biologia,
Matemática ou outra disciplina sem uma leitura do mundo, da realidade
que nos cerca.
A tarefa do educador comprometido vai além da simples
transmissão do saber acumulado. Ele é co-responsável pela construção
da identidade social e política do aluno, na medida em que favorece a
formação do cidadão pleno, atuando, efetivamente, de modo a obter uma
reciprocidade de direitos e deveres entre o poder público e o cidadão, e
entre os diferentes grupos que compõem a sociedade.
Portanto, estude os temas contidos na etapa do nosso curso
sintetizada na presente aula, pois eles propiciarão, com certeza, um dos
canais de diálogo entre você e o seu aluno do Ensino Médio.
Na primeira das aulas aqui sintetizadas, caro aluno, você começou
estudando as relações entre a sociedade e a escola de um ponto de vista
tradicional. Segundo tal visão, existe um indivíduo universal, que deve ser
submetido, pela Educação, aos padrões igualmente universais, derivados
da cultura, da posição social etc; um indivíduo cuja socialização, isto
é, o ingresso na sociedade dependerá da assimilação de tais padrões e
regras universal e formalmente estabelecidos. Isto implica, você pode
perceber, um “desenraizamento” desse indivíduo em relação às condições
concretas socioculturais em que vive, bem como às condições e aos
momentos históricos.
Em seguida, e em contraponto à visão tradicional, é apresentado
o ponto de vista marxista. Este enfatiza o condicionamento histórico e
social dos indivíduos, agrupamentos humanos e instituições; a divisão
da sociedade em classes sociais, decorrentes do modo de produção
capitalista, é a chave para que se entendam as relações sociais; a ideologia,
pode-se afi rmar, é o elemento catalisador de relações de dominação
assentadas na alienação.
aula29.indd 207 6/30/2004, 3:22:27 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ208
Diferentemente da visão tradicional, tal abordagem não
crê na possibilidade de que os confl itos sejam resolvidos mediante
regras e padrões universais; ao contrário, a solução só pode advir de
transformações na própria estrutura social e na adoção de um outro
modo de produção, fundado numa visão socialista do mundo.
A sociedade tem um problema de natureza prática: é necessário,
além de estabelecer, também reproduzir as condições de estruturação
e de funcionamento da própria sociedade, em termos produtivos,
socioculturais, políticos, fi losófi cos etc. Esse papel é confi ado à Escola,
a qual, segundo a crítica marxista da sociedade capitalista e da economia
política liberal, transformou-se no que o fi lósofo Althusser denominou
“um aparelho ideológico do Estado” capitalista.
Nessa aula, prezado aluno, você pôde aprender sobre essa
denominada “Teoria da Reprodução”, que, em certo momento,
foi predominante nas análises críticas da Escola e dos fenômenos
educacionais em geral.
A aula levou você a refl etir sobre o fato de que não há como estudar
o sistema educacional sem estudar o funcionamento do Governo e das
políticas deste para a Educação, o que remete à necessidade do estudo do
próprio Estado, sua formação, funcionamento e propósitos. Isto inclui
a necessidade de compreender a cidadania como participação política.
Esse conhecimento que você acaba de receber vai permitir que, nas suas
aulas do segundo segmento da Escola Fundamental e no Ensino Médio,
você possa conscientizar os seus alunos acerca do exercício de direitos
e deveres políticos, civis e sociais, adotando atitudes de solidariedade,
cooperação e repúdio às injustiças sociais, respeitando o Outro e exigindo
para si o mesmo respeito.
Em seguida, a aula examinou o tipo de Educação que é oferecido
às classes desfavorecidas economicamente. Isso fi cou bem ilustrado com
a história da carta enviada, em 1700, por índios norte-americanos ao
governo daquele país, a propósito do convite feito para que enviassem
seus fi lhos à escola.
Na aula seguinte, prezado aluno, você continuou estudando as
relações entre a escola, o Estado e a sociedade, só que, agora, do ponto
de vista da Psicologia, no que diz respeito a programas educacionais e às
questões envolvendo a aprendizagem e aos estereótipos que a envolvem.
aula29.indd 208 6/30/2004, 3:22:27 PM
CEDERJ 209
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
A aula começou por referir-se à herança recebida pelas teorias
da aprendizagem, oriundas das Ciências Biológicas do século XIX, bem
como da Psicologia e da Pedagogia do início do século XX, afi nadas com
ideais liberais democráticos. Isso resultou nas inúmeras tentativas de
medir as aptidões e capacidades dos alunos, muitas delas levadas a efeito
por educadores humanistas que, embora bem-intencionados, acabaram
ajudando a reforçar uma ordem política e socioeconômica capitalista, cujo
discurso de igualdade e premiação do “mérito” apoiava-se, não obstante,
numa sociedade estruturalmente injusta. As difi culdades resultantes dessa
ordem social e econômica acabavam por ser justifi cadas em termos de
diferenças e incapacidades individuais, com o auxílio da Psicologia.
Nas três primeiras décadas do século XX, seguiu-se, nos meios
educativos, um grande esforço para identifi car alunos sub e superdotados,
por intermédio dos cada vez mais sofi sticados e disseminados testes de
inteligência e de aptidão.
Você viu em seguida, nessa aula, a evolução na abordagem e na
terminologia adotadas em relação aos alunos e à sua aprendizagem. Sobre
isso, na aula, foram sendo apresentados conceitos como “aluno anormal”,
“criança-problema”, “higiene mental escolar” e “desajustamentos
infantis”, até culminar com idéias como “classes fracas” e, muito depois,
a durante muito tempo utilizada denominação “classes especiais”.
A seguir, você pôde ver as referências feitas à substituição paulatina
do conceito de “raça” pelo de “cultura”, e de como a Psicologia Cultural,
assimilando idéias oriundas da Antropologia Cultural, cooptada pela
visão da cultura dominante, passou a trabalhar com concepções que
consideravam “atrasados”, “rudes” ou “primitivos” aqueles grupos que
não participavam dessa cultura hegemônica. Como conseqüência, foram
postas em prática noções como as de “culturas inferiores ou diferentes”
e de “grupos familiares patológicos”.
Em outra passagem importante, a aula tratou da denominada
“teoria da carência cultural”, uma das várias abordagens que revestiram
de fundamentação científi ca discursos ideológicos que acabavam por
atingir as camadas mais pobres da população e justifi car rotulações como
a de “inferioridade”, que supostamente explicariam o fraco desempenho,
causado em última análise, por privação, carência ou defi ciência cultural,
ou pela simples ausência de cultura.
aula29.indd 209 6/30/2004, 3:22:28 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ210
Partindo dessa visão oriunda da Psicologia Diferencial norte-
americana, você pôde estudar, prezado aluno, os refl exos desse tipo de
abordagem nos programas de Educação compensatória implementados
no Brasil nos anos 80, visando a preparar as crianças para a escola e
evitar futuros problemas de aprendizagem e de adaptação.
Em seguida, a aula tratou da introdução, no cenário educacional
brasileiro, dos fundamentos das teorias crítico-reprodutivistas, bem como
da visão que concebe a denominada “dominação cultural”.
No rastro das teorias que têm por base a “dominação”, foram
sendo levadas a efeito ações, no âmbito da Educação, em que a cultura
da maioria foi sendo inculcada nas minorias, bem como impostos valores
dos “bem-sucedidos” aos “malsucedidos”.
Tais teorias, como você viu nessa aula, acabaram pondo a
Psicologia e a Pedagogia a serviço de visões discriminatórias em relação
às classes desfavorecidas da população, com suas crianças tachadas, na
escola, de “rebeldes”, “malcriadas”, “carentes de afeto”, “apáticas”,
“ladras”, “doentes”, “sujas” e “famintas”, sendo suas famílias rotuladas
como “desestruturadas”, “ignorantes” e “desinteressadas”.
A aula apresentou ainda outras visões, que representam avanços
consideráveis nessas abordagens acerca das teorias da aprendizagem, e
de a ação ser desenvolvida pelos professores, com respaldo na Psicologia.
Você deve se lembrar das duas últimas concepções apresentadas: a de
Piaget e a de Vygotsky.
Piaget, caro aluno, é muito justamente uma referência obrigatória
para educadores e psicólogos envolvidos com a Educação. A aula destacou
a importância da Psicologia Genética piagetiana para o estabelecimento
dos estágios de desenvolvimento das crianças e as conseqüentes
implicações para a aprendizagem. Porém, a aula, numa abordagem
crítica, acentuou o perigo da redução da visão a essa questão dos estágios,
o que, embora indicando capacidades cognitivas gerais, poderia não ser
tão apropriado em relação a aprendizagens específi cas.
Finalizando, prezado aluno, a aula dedicou-se a Vygotsky,
começando por assinalar os embates entre os partidários desse teórico
e os defensores de Piaget. Em seguida, foram apresentadas suas idéias
sobre a origem dos processos psicológicos superiores, manifestados no
que ele denominou “lei geral do desenvolvimento cultural”.
aula29.indd 210 6/30/2004, 3:22:29 PM
CEDERJ 211
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
Adiante, você pôde aprender, nessa aula, acerca do que Vygotsky
denomina “Zona de Desenvolvimento Proximal”, que é a região onde se
realiza a transição entre as dimensões intermental, ou seja, entre pessoas,
e intramental, que consiste na internalização.
Veja lá, caro aluno, pela janela de nosso trem imaginário, aquele
prédio grande, de paredes brancas e janelas azuis: é uma escola. Aí está
ela, nesta rua de um subúrbio atravessado pela linha de nosso trem.
A aula seguinte estudada por você tratou exatamente da Escola e da
consolidação de sua importância no mundo moderno.
Essa aula começou por contextualizar a escola a partir do século XV,
apresentando como pano de fundo a ascensão da burguesia, o Humanismo,
o modo de produção capitalista, a Reforma, a Contra-Reforma e todo o
movimento cultural do Renascimento. Nessa quadra histórica, a escola
passa a atender os ideais humanistas antropocêntricos.
A escola assume um novo papel nesse mundo moderno. Educar
não signifi ca mais adquirir um “verniz” de formalidades para ingresso nos
salões da nobreza; nesse novo mundo predominantemente burguês, ser
educado signifi ca conhecer a realidade à sua volta; e signifi ca preparar-se
para participar das atividades desenvolvidas pelas classes dominantes.
A nova visão de mundo possibilitada pelo Humanismo, somada à
Reforma, mudará a visão acerca do papel da Educação. Esse movimento,
ANTROPOCÊNTRICO
Signifi ca o que tem o Homem como centro.
Anthropos signifi ca homem.
aula29.indd 211 6/30/2004, 3:22:29 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ212
que teve à frente Martinho Lutero, com sua crítica à Igreja Católica e
com a defesa da racionalidade no exame de todas as questões, produziu
um avanço no processo educativo. Isso será reforçado em face das
transformações de ordem socioeconômica: os instruídos, e não aqueles
que herdassem suas posições na sociedade, deveriam ser os detentores do
poder; a ignorância era um mal a combater, pois somente assim se poderia
construir mundo novo, em termos políticos, culturais e econômicos.
Você pôde ver nessa aula, prezado aluno, que a proposta
educacional oriunda da Reforma, tendo em conta a utilidade social da
instrução, previa uma reforma educacional, desde os níveis elementares à
universidade, com uma Educação laica e de responsabilidade do Estado.
E observou que essa visão protestante ajustava-se às necessidades do
novo modo de produção – o capitalista.
A Igreja Católica, reagindo à Reforma Protestante, levou a efeito
o movimento denominado Contra-Reforma, o qual, no que diz respeito
à Educação, criou ordens religiosas destinadas a espalhar pelo mundo
a visão de mundo do catolicismo, aliando uma ação evangelizadora – o
catequismo – à ação educativa. Entre essas ordens religiosas, destacou-se
a Companhia de Jesus, cujos integrantes, os jesuítas, estiveram à frente
da Educação no Brasil durante 210 anos, no Período Colonial.
Nessa aula, caro aluno, fi cou demonstrado que tanto a Reforma
quanto a Contra-Reforma contribuíram decisivamente para a instituciona-
lização da Escola e para ampliar e tornar público o ensino elementar. A escola
se afi rma, em contraposição ao antigo modelo, que ensinava no interior dos
castelos, com preceptores. O espaço escolar é freqüentado
pelos fi lhos da pequena nobreza e da burguesia, com
vistas a prepará-los para assumir seu lugar
na administração, na política, nos postos
de comando dos aparatos produtivos.
aula29.indd 212 6/30/2004, 3:22:30 PM
CEDERJ 213
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
Em seguida, a aula tratou da nova visão sobre a família e sobre a
infância, deixando a criança de ser considerada um adulto em miniatura,
passando a ter seu mundo à parte e freqüentando colégios onde imperava
uma educação moral e intelectual baseada na disciplina, numa hierarquia
rígida e em métodos de ensino autoritários.
Veja, caro aluno, como essa visão histórica permite a você entender
melhor a escola e as transformações por que passou essa instituição que
aí está, nos dias de hoje, funcionando em prédios como aquele casarão
branco que acabamos de observar olhando pela janela de nosso trem
imaginário. A escola é, portanto, um organismo vivo, dinâmico, cujas
transformações correspondem às das sociedades em que está inserida e
ao momento histórico vivido.
A divisão dos alunos em classes, prezado aluno, surgiu lá por
volta dos séculos XV e XVI. Releia essa aula e saiba como e por que
isso aconteceu. A diferença por idades, você pôde ver, foi um processo
lento, só completamente consolidado no século XIX.
A escola foi, aos poucos, tornando-se uma instituição essencial
para a sociedade, ampliando-se quantitativamente e melhorando
qualitativamente.
Em seguida, prezado aluno, você aprendeu que, a partir do
século VII, surgem as iniciativas em favor da escola pública e gratuita,
como decorrência, especialmente, da evolução do modo de produção
capitalista, com o trabalho livre e o desenvolvimento da manufatura,
o que exigiu trabalhadores com escolaridade básica. No século XVIII,
como decorrência da Revolução Industrial, são geradas as condições
para a consolidação da escola pública, processo que se fortalecerá, no
século XIX, tornando a instituição escolar imprescindível na preparação
das pessoas para atuação no modo de produção capitalista e para a
transmissão dos valores e dos padrões de civilidade da época.
Então, caro aluno, com as aulas e com a presente síntese, estão
fi cando mais claras para você as informações sobre a instituição escola,
sua consolidação, características e relações com o Estado e a sociedade?
Prossigamos, então, revendo os tópicos principais das aulas que se
seguiram nesse trecho de nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos
da Educação". Elas tratam das denominadas “Sociologia do Consenso”
e “Sociologia do Confl ito”.
aula29.indd 213 6/30/2004, 3:22:31 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ214
Na primeira dessas aulas, você pôde ver demonstrado, caro aluno,
que os sistemas educacionais e os movimentos educativos refl etem as
condições socioeconômicas e políticas de uma sociedade, embora também
exerçam infl uência sobre essas condições.
Em seguida, viu como se estabelecem os vínculos entre a Educação
e a sociedade, bem como surgem daí os limites e possibilidades do
movimento educativo como instrumento de conservação ou de
transformação sociais. E aprendeu que, quando não pertence ao Estado,
a Educação fi ca à mercê dos interesses políticos hegemônicos, que tendem
à conservação, e não à transformação. Além disso, pôde observar que,
em épocas de crise ou de transformações socioeconômicas, as propostas
e ações políticas se voltam para a Educação e para sua possibilidade de
concorrer para mudanças.
Depois disso, caro aluno, você deve ter aprendido como tanto
aqueles que estão no poder quanto os que pretendem alcançá-lo
se servem da ideologia para seus intentos, ambos procurando utilizar-se
da Educação.
A seguir, a aula tratou do que se denominou “entusiasmo pela
Educação”, quando são depositadas todas as esperanças em movimentos
educativos voltados para a Educação das massas. Remontando às origens
dessa forma de abordar a Educação, na Revolução Industrial, a aula
demonstrou que, a partir da segunda década do século XX, o entusiasmo
pela Educação se defi ne mais claramente, no Brasil, numa versão preocupada
com a dimensão quantitativa do oferecimento do ensino e aliada a uma visão
nacionalista preocupada com a erradicação do analfabetismo e a inserção
do país entre as consideradas “nações cultas”.
Nesse momento histórico, como você pôde ver nessa aula, caro
aluno, tudo era atribuído à Educação, tanto as mazelas quanto a salvação
do País.
Ainda nas duas primeiras décadas do século XX, surgem os
primeiros profissionais da Educação no Brasil, preocupados não
somente com a expansão quantitativa do ensino, mas, sobretudo, com
sua qualidade.
Você viu a seguir, prezado aluno, que esse “otimismo pedagógico”,
por centrar-se nos aspectos técnicos, propriamente pedagógicos, do
ensino, acabou por reforçar o papel da Educação como instrumento de
conservação das estruturas socioeconômicas e políticas da sociedade.
aula29.indd 214 6/30/2004, 3:22:31 PM
CEDERJ 215
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
Em seguida, foi abordado o denominado “realismo em Educação”,
o qual, sem perder de vista a necessidade de expansão do ensino, exige sua
conciliação com a qualidade. E, mais que isso, essa abordagem considera
importantes todas as ações educativas, inclusive as levadas a efeito por
organizações não-governamentais.
Você deve lembrar, prezado aluno, de que essa aula apresentou, em
seguida, as quatro principais correntes em que se dividem, no Brasil, os
realistas em Educação: os profi ssionais de Educação liberais, os educadores
ligados às esquerdas marxistas, os vinculados às esquerdas não-marxistas
e os tecnocratas da Educação. Aproveite esta oportunidade para rever essa
aula e relembrar as características de cada uma dessas correntes.
Mas não somente de visões otimistas viveu a Educação. A aula
apresenta também o denominado “pessimismo pedagógico”, resumido
em três correntes que são geralmente reunidas sob o título de “teorias
crítico-reprodutivistas”: a teoria do sistema de ensino entendido como
violência simbólica, a teoria da escola como Aparelho Ideológico de
Estado e a teoria da escola dualista.
Estudando essa aula, caro aluno, você pôde aprender que, para a
teoria do sistema de ensino entendido como violência simbólica, a origem
social e a herança cultural são determinantes para a carreira escolar e
para a vida profi ssional dos indivíduos, registrando-se como parâmetro
a cultura das classes superiores.
Para a teoria da escola como Aparelho Ideológico de Estado, como
você pôde ver, prezado aluno, que o sistema escolar é apresentado como o
instrumento de reprodução das relações de produção do sistema capitalista.
Finalmente, a teoria da escola dualista, você viu, caro aluno,
sustenta que há duas escolas, correspondentes às duas classes fundamentais
existentes na sociedade capitalista: a burguesia e o proletariado.
Visto o ponto de vista do consenso, a aula seguinte foi dedicada
à sociologia do confl ito. E, ao contrário da visão consensualista, que
enfatizava a questão da integração social e do equilíbrio, as denominadas
“teorias confl itualistas” põem no centro do debate os confl itos de classe
existentes na sociedade que, por conseqüência, envolvem a Educação.
Nessa aula, caro aluno, você teve a oportunidade de ver
estabelecidas comparações entre essas teorias. Enquanto, para os
consensualistas, a sociedade é um sistema integrável, ou em vias de
integração, com base em complementaridades, para os confl itualistas a
aula29.indd 215 6/30/2004, 3:22:32 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ216
sociedade é uma unidade composta de elementos contraditórios. Para
a teoria do consenso, o elemento central é a ordem; para a teoria do
confl ito, no centro de tudo está o controle.
A seguir, a aula apresenta as três principais teorias em que se
situam os teóricos do confl itualismo, ou seja, as da reprodução social,
da correspondência e da reprodução cultural.
Sobre a teoria da reprodução social, você já viu sua formulação,
quando foi abordada em outra aula e nesta aula-síntese, a proposta,
fundada no pensamento de Althusser, da escola como Aparelho Ideológico
de Estado. Nesta condição, o sistema escolar garantiria a manutenção
e a reprodução das relações sociais e econômicas existentes no seio do
sistema capitalista. Relendo essa aula, caro aluno, você poderá rever, em
detalhes, como se dá esse processo de reprodução e as funções a serem
desempenhadas na sociedade pela escola e pelos educandos.
Em seguida, você pôde estudar a teoria denominada da
correspondência, a qual, embora guardando grande semelhança com
a da reprodução, radicaliza a crítica e politiza fortemente o debate.
Seus representantes, Bowles e Gintis, apresentados na aula, defendem
mudanças drásticas e a implantação do sistema socialista. E como a
aula descreve os principais fundamentos teóricos da visão liberal acerca
da Educação, e de seu papel na sociedade, você pôde estabelecer o
contraponto com essa proposta alternativa socialista, que combate
sobretudo o papel reprodutivista da escola no sistema capitalista,
concebido a partir da visão liberal.
A Teoria da Reprodução Cultural, apresentada em seguida,
prezado aluno, permitiu seu contato mais detalhado com o pensamento
de Pierre Bourdieu, especialmente no que diz respeito à questão de a
escola praticar o que se denomina “violência simbólica”.
Segundo essa teoria, as divisões em classes, a ideologia e as relações
de produção materiais que as sustentam são transmitidas e reproduzidas
através da violência simbólica, da qual o sistema escolar é agente.
Na aula que ora sintetizamos, caro aluno, você pôde ver
detalhadas as cinco proposições sobre as quais se baseia a ação
educativa apoiada na violência simbólica: a) defi nição de violência
simbólica; b) ação pedagógica; c) autoridade pedagógica; d) trabalho
pedagógico; e) sistema de ensino.
aula29.indd 216 6/30/2004, 3:22:32 PM
CEDERJ 217
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
Reveja essa aula tendo em conta as proposições indicadas acima,
e refl ita, pensando se, no cotidiano de nossas escolas, estão presentes
os ingredientes que confi gurariam a violência de natureza simbólica de
que fala a teoria.
E a viagem pela "Terra dos Fundamentos da Educação" prossegue,
com nosso trem andando em velocidade reduzida, ainda cruzando
esta grande cidade. Enquanto isso, vamos continuar conversando
sobre a escola, o Estado e a sociedade, bem como acerca das relações
estabelecidas entre eles.
Duas das aulas que você estudou e que examinaremos a seguir
foram dedicadas a discutir a hegemonia, a ideologia e o poder,
relacionando-os com a Educação. E o primeiro e importantíssimo
conceito examinado foi o de ideologia.
Como você pôde ver, caro aluno, a palavra, o conceito e as idéias
correspondentes a ideologia surgiram no século XIX, por ocasião da
Revolução Francesa, signifi cando, então, um conjunto de idéias que
corresponderiam a verdades com validade universal, ou seja, que não
mudariam ao longo da História, e que, além disso, teriam origem
material, surgindo da relação do ser humano com o meio ambiente,
tendo origem nas sensações.
Depois disso, você aprendeu que Augusto Comte, o fundador do
Positivismo, tratou do conceito de ideologia, tomando-o como o conjunto
de idéias ou de opiniões de uma época.
Também Émile Durkheim, junto com Comte considerado um dos
fundadores da Sociologia, tratou da ideologia, considerando-a uma pré-
noção, um conjunto de idéias falsas, fantasiosas, a serem evitadas pelos
que pretendem fazer ciência.
Porém, prezado aluno, o conceito de ideologia, tal como é discutido
e utilizado ainda hoje, foi estudado e sistematizado por dois pensadores
dos mais fundamentais para a Filosofi a e as Ciências Humanas e Sociais:
Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Karl Marx.
Hegel examina a questão das idéias e da superação entre sua
produção e a realidade do mundo, ou seja, entre o real e o racional,
estabelecendo ainda uma correlação com a História, sendo esta a
realização do que Hegel denomina “Espírito Absoluto”.
Vale a pena reler, prezado aluno, essa aula, prestando atenção
também no conceito hegeliano de “dialética”, hoje tão utilizado sem que
muitas vezes se saiba com propriedade de que se está falando.
aula29.indd 217 6/30/2004, 3:22:32 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ218
Para Hegel, a consciência determina a realidade, em termos
dialéticos. Marx retoma essas idéias, mas afi rma que a própria realidade é
que é dialética, isto é, as condições concretas, materiais, sociais, históricas
e econômicas em que se vive, em sua dinâmica de transformação, é que
dão origem à consciência. Diferentemente de Hegel, um idealista, Marx
se apresenta como materialista-histórico, ou seja, entende a realidade
como dependente das condições materiais da existência e, sobretudo,
das relações de produção existentes concretamente na sociedade, num
dado momento histórico.
Você viu assim, caro aluno, como Marx concebe o conceito de
ideologia, que, para ele, se constitui num conjunto de idéias que cria
mecanismos de convencimento e de inversão da realidade, os quais,
considerando-se a luta de classes, que compõe a estrutura da sociedade
e das relações entre os seres humanos, constituirão as idéias (ideologia)
dominantes, correspondendo ao interesse da classe dominante.
Outro pensador importante, que pode ajudá-lo a entender o que
seja a ideologia, é Antonio Gramsci. Releia, por isso, prezado aluno, o
trecho da aula em que se explica que Gramsci, partindo da concepção
de Marx, considera a ideologia uma forma de conhecimento do mundo,
um modo de conhecer a realidade, tendo uma participação ativa e efetiva
na explicação ou no ocultamento dessa mesma realidade.
E cada classe social produz seu discurso ideológico, de
acordo com seus interesses.
Em seguida, caro aluno, você viu também como
Althusser, outro pensador marxista relevante, concebe
a ideologia utilizando a metáfora de um edifício, no
qual os pilares compõem a infra-estrutura – a dimensão
socioeconômica da produção material da existência – e a
superestrutura – a dimensão onde se encaixam a cultura,
a política e a própria ideologia como produção das idéias.
A relação entre essas dimensões tem natureza dialética,
ou seja, determinam-se uma à outra.
Ainda segundo o pensamento de Althusser, você
pôde estudar as três funções da ideologia: coesão,
inversão e mistifi cação.
Em continuação, caro aluno, você teve uma nova
e detalhada apresentação dos denominados “Aparelhos
aula29.indd 218 6/30/2004, 3:22:32 PM
CEDERJ 219
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
Ideológicos de Estado”, os quais, segundo Althusser, agem como
mecanismos que asseguram a continuação do poder por parte da classe
dominante em relação às classes dominadas.
O próximo conceito estudado foi o de hegemonia, que diz respeito
à questão do domínio e da direção política num contexto social e histórico.
Nas mãos de quem, representando que interesses e de que forma se apresenta
na sociedade aquele poder de que temos falado desde o início desta aula?
É disto que se trata quando se discute a hegemonia, desde que foi discutida
pelo político e revolucionário Lênin, na Rússia, no início do século XX.
Já agora, caro aluno, não se está discutindo um poder que se impõe
pela força; para tornar-se hegemônico, o poder precisa do convencimento,
necessita estabelecer o consenso, e nisto o que vimos acima, e se denomina
ideologia, desempenha um papel essencial.
Pode-se perceber, quão fundamental é a luta travada entre as classes
sociais em busca do poder hegemônico. Este faz com que determinados
valores, visões de mundo e concepções culturais prevaleçam, prevalecendo
com elas interesses bem determinados.
Como é dependente da persuasão, isto é, do convencimento,
o poder necessita fi rmar-se hegemonicamente, e para tal constrói um
conjunto de idéias e práticas culturais que sirvam ao seu propósito. Daí
o empenho da classe dominante em uma determinada sociedade para
obter e manter a hegemonia em relação às classes dominadas, e com isso
ganhar e perpetuar o poder.
Para o estabelecimento da hegemonia, você aprendeu que são
fundamentais os meios de comunicação, a instância jurídica, os partidos
políticos e outros recursos e instituições. Entre estas últimas – anote isto – a
escola é uma instituição fundamental para a consolidação da hegemonia de
uma classe social, conforme bem o assinalou Gramsci.
Desse modo, prezado aluno, situando-se em lugar de destaque na
construção e manutenção da hegemonia, a escola pode servir à construção
de uma nova consciência social.
A escola deve buscar a superação da dicotomia entre trabalho
manual e trabalho intelectual, cultura erudita e cultura popular,
possibilitando a instauração de uma nova hegemonia em favor das
classes até aqui dominadas. Fortalecendo a criatividade, a autonomia
e a autodisciplina em seus alunos, o professor torna-se elemento
imprescindível nesse processo de transformação.
aula29.indd 219 6/30/2004, 3:22:33 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ220
Na última das aulas aqui sintetizadas, caro aluno, dá-se
prosseguimento ao exame da hegemonia, da ideologia e do poder,
relacionando-os com a Educação.
Você deve ter observado que, dada a importância do conceito de
ideologia, voltou-se a ele nessa aula, razão pela qual você pôde consolidar
o que já havia estudado sobre esse conceito, seu surgimento numa dada
época histórica, suas várias interpretações e seu papel no que se relaciona
com as estruturas sociopolítica e econômica. Além disso, nessa aula foram
apresentados vários exemplos de concepções ideológicas, como a que
sustenta uma suposta superioridade da teoria em relação à prática, ou a
que sobrepõe o pensar ao fazer, justifi cando, conseqüentemente, as posições
de quem “sabe pensar” e controla as decisões e tem poder de mando, e de
quem “não sabe pensar”, só lhe restando obedecer e executar.
A aula destacou, em seguida, a necessidade de ser desenvolvida
a crítica da ideologia, desmascarando os processos de formação das
idéias e exibindo suas raízes histórico-sociais. Desse modo, ao invés de
uma consciência falsa, atingir-se-ia uma consciência verdadeira, com o
cuidado de atentar para o fato de que não se trata de uma consciência
individual, mas de uma consciência de classe.
A seguir, recorrendo mais uma vez ao pensamento de Gramsci,
você aprendeu que existe uma “hegemonia ideológica”, que procura
exercer seu poder mediante a criação de uma falsa consciência entre os
integrantes das classes dominadas, os quais acabam até por aceitar como
inevitáveis e “naturais” situações de injustiça, que não seriam passíveis
de modifi cação, como sustenta o discurso ideológico.
Relendo essa aula, prezado aluno, você se lembrará de que ela
abordou os três momentos que, na visão de Gramsci, se apresentam na
construção da hegemonia ideológica: a fase estritamente econômica,
em que os intelectuais orgânicos expõem os interesses de sua classe;
o momento político-econômico, em que a totalidade das classes, mais
ou menos, apóia as exigências da economia; e a etapa hegemônica,
que implica que os objetivos econômicos, políticos e morais de uma
classe concreta sejam assumidos pelas classes restantes e grupos sociais
utilizados pelo Estado para determinar modelos de atuação e de relações
de produção e distribuição consoantes com esses objetivos.
Essa aula se encerrou, caro aluno, lembrando que existe a
possibilidade de uma contra-ideologia, ou seja, que a hegemonia
aula29.indd 220 6/30/2004, 3:22:34 PM
CEDERJ 221
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
ideológica pode ser contida e rejeitada mediante a mobilização no interior
das classes dominadas. Esse confronto de ideologias levará à possibilidade
de transformação da estrutura da sociedade e de seu funcionamento.
Finalmente, a aula demonstrou que o estudo da ideologia, de suas
manifestações e dos meios contra-ideológicos de enfrentá-la conduzirá
à consciência de que existem formas alternativas de compreender a
realidade e de nela atuar.
A instituição escolar é um dos lugares onde se desenvolvem os
esforços das classes dominantes para impor e legitimar seu domínio,
bem como para garantir sua reprodução. Por isso, caro aluno, importa
refl etir acerca da ideologia, da hegemonia e do poder exercidos por essas
classes, que se utilizam inclusive do Estado para tais fi ns.
Neste ponto, prezado aluno, chegamos ao fi m da síntese das
últimas oito aulas. Esperamos que a presente aula tenha ajudado você
a rever o que estudou e a consolidar o que aprendeu.
TÓPICOS PARA AUTO-AVALIAÇÃO
• Depois de estudar esta aula-síntese, você é capaz de dizer o que é a escola, para que
serve, qual o seu papel na sociedade e que determinações incidem sobre as relações
estabelecidas entre a escola, o Estado e a sociedade?
• Você concorda com a afi rmativa segundo a qual a chance de que a escola cumpra sua
função educativa depende em grande parte da competência, bem como da consciência
e do compromisso político dos educadores que atuam nela e sobre ela?
• Você acredita que uma Educação, ainda que boa para todos, resolverá sozinha
todos os problemas da sociedade?
• Você defenderia o argumento de alguns educadores para os quais a função social
da escola deve ser elevar o nível cultural de toda a população?
• Você compreendeu que a Educação é um bem público, pertencente à sociedade,
sendo direito de todos e dever do Estado?
• Você percebeu que há Educação também fora da escola, mas esta é um lugar
privilegiado para realizar o direito dos cidadãos à Educação?
Caso você não tenha compreendido alguns desses itens, retome as aulas
anteriores.
aula29.indd 221 6/30/2004, 3:22:34 PM
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Pensando sobre escola, Estado e sociedade
CEDERJ222
Não se esqueça, prezado aluno, de que, em nosso curso, você dispõe de outros
meios para uma melhor compreensão dos saberes necessários à sua formação.
Você pode recorrer a outras fontes de informação, como a livros que tratam dos
temas aos quais foram dedicadas as aulas resumidas nesta aula-síntese, entre
os quais se destacam a relação entre a escola a sociedade e o poder, a questão
da ideologia, o problema da hegemonia e as visões de otimismo, pessimismo e
realismo pedagógicos.
Vá à biblioteca, caro aluno, e faça uma busca partindo desses temas. Saiba que
nada substitui uma boa pesquisa – atenta, paciente e ampla – quando se trata de
complementar os conhecimentos adquiridos em sala de aula.
Outra fonte importante hoje disponível é a internet. Recorra a ela, usando também,
nos motores de busca, os temas indicados.
Não se esqueça, porém, de exercer seu senso crítico em relação ao que obtiver
em suas pesquisas. A comparação entre idéias, concepções e teorias revela suas
convergências e divergências, permitindo que você relativize o que aprender.
Lembre-se de que, como pôde aprender nesta e nas aulas aqui sintetizadas, os
discursos ideológicos se insinuam como verdades!
aula29.indd 222 6/30/2004, 3:22:34 PM
CEDERJ 223
AU
LA 2
9 M
ÓD
ULO
3
Olhando pelas janelas deste trem imaginário em que
fazemos nossa viagem pela "Terra dos Fundamentos da
Educação", vemos que acabamos de parar numa grande
estação central da cidade em que nos encontramos. Aqui,
caro aluno, você deverá saltar e se apresentar numa grande
sala situada no fi nal da plataforma central. Nesse lugar,
prezado companheiro de viagem, será feita uma avaliação
do que você fez durante o percurso até esta estação. Isso tem
como objetivo ajudá-lo a prosseguir viagem sem problemas.
Para tanto, será solicitado a você que demonstre o que
conseguiu aprender até este ponto; o que viu ao longo da
viagem; e que signifi cados têm as idéias, conceitos, teorias,
exemplos estudados ao longo das aulas.
Prepare-se agora, caro aluno, para desembarcar e
apresentar-se no local indicado. E aplique-se no trabalho a
ser desenvolvido, em seu benefício, na próxima aula, uma
aula inteiramente dedicada à avaliação.
aula29.indd 223 6/30/2004, 3:22:36 PM
30Como vai nossa viagem? au
la
Aula_30.indd 225 6/29/2004, 2:22:39 PM
C E D E R J226
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Como vai nossa viagem?
INTRODUÇÃO De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o
discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade
mas impor ao educando a vontade arrogante do mestre (FREIRE,
1999, p. 69).
Prezado aluno, nosso trem imaginário começa a reduzir sua marcha. A velha,
porém confi ável locomotiva expele vapor; suas engrenagens transmitem força
às rodas de aço, que rangem nos trilhos; aos poucos, a composição, com seus
vários vagões de madeira e bancos confortáveis forrados com palhinha, vai
entrando no pátio de manobras de uma grande Estação.
Esta não é uma Estação comum, como várias em que paramos até
aqui. É uma Estação terminal, situada num ENTRONCAMENTO. Em nossa
forma metafórica de expressão, estamos chegando ao fi nal da primeira
etapa, correspondente ao primeiro mapa, ou seja, à primeira ementa de
nosso curso.
Nesta Estação, novamente a parada será um pouco mais demorada.
Nela, você terá, caro aluno, mais uma entrevista na Sala de Avaliação.
Desta feita, são os seguintes os tópicos contemplados:
• Educação e sociedade: concepções e confl itos.
• Estado e Educação: ideologia, cidadania e globalização.
A exemplo da outra aula de avaliação que você já leu, esta também
tem a fi nalidade de ajudá-lo a prosseguir em nossa viagem pela “Terra
dos Fundamentos da Educação”.
Para nós, seus professores e companheiros nesta viagem, como
já dissemos, a avaliação integra o processo de ensino e aprendizagem;
deve ser contínua e subjacente a toda boa relação educativa. Portanto,
caro aluno, sua entrevista daqui a pouco na Sala de Avaliação tem
como objetivo auxiliá-lo a rever o que já estudou, consolidar o que foi
aprendido e demonstrar até que ponto assimilou conceitos, habilitou-se
a discutir idéias, noções e propostas, enfi m, tudo o que integra os tópicos
constantes do Mapa I.
ENTRONCAMENTO
É o ponto de junção de dois ou mais caminhos. No entroncamento ferroviário, encontram-se várias linhas de trem, que partem para vários lugares ou chegam de inúmeros deles. É aí que os passageiros fazem baldeação, ou seja, trocam de trens, em busca de variados destinos.
Aula_30.indd 226 6/29/2004, 2:22:57 PM
C E D E R J 227
AU
LA 3
0 M
ÓD
ULO
3
Na Sala de Avaliação, você encontrará atenciosos e dedicados
amigos que o ajudarão na importante tarefa prevista nesta aula. Para
tanto, vão lhe fazer perguntas, apresentando-lhe questões que possibilitem
concretizar esta etapa do processo avaliatório.
Como já aconteceu na primeira aula de avaliação, prezado aluno,
na página seguinte você encontrará as questões, dentre as quais estão as
escolhidas para a realização da avaliação. Estude-as. Tente dar resposta a
elas. Para tanto, utilize o texto das aulas; releia-os, estude-os novamente.
Consulte também as anotações que fez ao longo de toda etapa da nossa
viagem percorrida até aqui. Se necessário, recorra a outras fontes, como
livros ou a internet.
O importante, caro companheiro, nesta viagem em busca do
conhecimento, é que você faça um esforço para obter respostas para
as questões. Tente sempre acertar, mas lembre-se: errar é uma etapa
simplesmente indispensável no processo de aprender. Ninguém aprende
sem errar; aprendemos muito mais com nossos erros do que com
nossos acertos.
Preparado? Então, pegue o texto de suas aulas, desça do vagão e dirija-
se à Sala de Avaliação. Veja, na próxima página, as questões propostas.
Aula_30.indd 227 6/29/2004, 2:22:58 PM
C E D E R J228
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Como vai nossa viagem?
AUTO-AVALIAÇÃO
• Explique:
a) O que vêm a ser as dimensões “instituída” e “instituinte”, tomando a escola
como objeto de análise.
b) O que vem a ser o conceito de “hegemonia” e como vem sendo estudado do
ponto de vista da educação.
c) De que maneira mecanismos de mensuração e avaliação psicológicas, como os
testes de QI, contribuem para o processo de exclusão escolar.
d) Em que consiste e quais são os principais ingredientes da “teoria da corres pon-
dência”, de Bowles e Gintis.
e) O que se deve entender por “saber popular” e quais as principais características
que esse tipo de saber apresenta.
f) Em que consistiu o denominado “otimismo pedagógico”, surgido no Brasil nas
duas primeiras décadas do século XX.
• Responda:
a) Tendo em conta as características que permitem a distinção entre esses dois
conceitos, de que maneira o professor, em sua prática cotidiana, deve lidar com
o "saber" e a "sabedoria"?
b) Que problemas o aumento da demanda social por escola e a expansão dos
sistemas educacionais nos países capitalistas da Europa e da América trouxeram
para os educadores?
c) O saber popular nasce das experiências cotidianas. Por isso, podemos afi rmar
que ele é sempre coerente e verdadeiro? Por quê?
d) Com base no pensamento de Paulo Freire, o que signifi ca conceber uma peda-
gogia a partir do oprimido e não para ele?
e) Quais as duas vertentes sobre as quais é construída a explicação das difi culdades de
aprendizagem escolar e como elas explicam as diferenças de rendimento escolar?
f) Por que deve ser considerada não apenas a concepção negativa, mas também
a concepção positiva do poder?
Aula_30.indd 228 6/29/2004, 2:22:58 PM
C E D E R J 229
AU
LA 3
0 M
ÓD
ULO
3
g) Em que medida, dadas as suas características e potencialidades, os saberes
instituídos contribuem para a relação ensino/aprendizagem em geral e, em
particular, para a compreensão do Outro por parte do aluno?
h) Que papel a educação representa dentro da abordagem tradicional sobre a
relação Estado, sociedade e escola?
i) Como deve proceder um professor interessado em contribuir para o encontro
e articulação entre os saberes "popular" e "erudito"?
j) Como a educação é concebida na perspectiva marxista, segundo a qual a relação
Estado, sociedade e escola é histórica e centrada nas classes sociais?
• Refl ita:
a) O fracasso escolar das classes de baixa renda da população pode ser examinado
à luz das relações entre escola, saber e poder. Faça uma análise disso, tendo em
conta que "saberes geram poderes".
b) A Companhia de Jesus foi de soberana importância na educação brasileira.
Tendo isso em conta, apresente o contexto histórico e sociopolítico em que foi
criada e se desenvolveu essa instituição.
c) "Saber" tem sua raiz etimológica em "sabor". Partindo dessa premissa, explique
como um professor consciente, interessado e criativo pode trabalhar com a questão
do seu próprio conhecimento e o dos seus alunos.
d) Eis o trecho de uma carta de Martinho Lutero, divulgada em 1524:
“Não obstante, sabemos ou deveríamos saber o quanto é necessário, útil e agradável a Deus
que um príncipe, senhor ou conselheiro seja instruído e capaz de viver cristãmente segundo sua
condição” (LUTERO apud MANACORDA, 1997 p. 197).
A partir da visão aí contida sobre a instrução, explique por que a Reforma Protestante
foi importante para a institucionalização da escola no mundo moderno.
e) De acordo com Michel Foucault, cada formação discursiva desenvolve um regime
de verdade próprio, que legitimará alguns saberes como verdadeiros, assim como
condenará outros como falsos. Levando em conta tal visão, explique o papel do
professor como representante, em sala de aula, dessa produção de “verdades”.
Aula_30.indd 229 6/29/2004, 2:22:59 PM
C E D E R J230
Fundamentos da Educação 1 para Licenciatura | Como vai nossa viagem?
• Cite:
a) As principais características do chamado “realismo em educação” e descreva as
visões dos quatro grupos que integram essa corrente.
b) Os procedimentos que, segundo Foucault, a sociedade utiliza para produzir,
controlar, selecionar, organizar e redistribuir os discursos.
c) As principais concepções de “ideologia”, desde seu surgimento, na época da
Revolução Francesa, até as visões de Gramsci e de Althusser.
d) As principais características do que, em Paulo Freire, se considera uma educação
para a libertação.
e) Os três momentos da “hegemonia ideológica”, segundo Gramsci, procurando,
em seguida, relacioná-los com o papel reservado, na sociedade, à instituição
escolar.
f) As formas distintas mediante as quais a escolarização é concebida e apropriada
pelas visões liberal e marxista.
g) As três posições teóricas existentes no interior do denominado “confl itualismo”
em Educação, apresentando os principais pontos de vista de cada uma delas.
h) Estabeleça uma análise comparativa e crítica entre os principais elementos
relativos à aprendizagem contidos na Psicologia diferencial norte-americana e
nas visões de Piaget e de Vygotsky.
Então, caro aluno, gostou da atividade feita na Sala de Avaliação?
Esperamos que sim. E muito menos pelo resultado mensurável alcançado
do que pelo processo avaliatório em si, que o levou a rever o que estudou,
a descobrir como superar as eventuais difi culdades que tenha enfrentado
e a consolidar o que aprendeu.
Enquanto a avaliação acontecia, nossa “Maria Fumaça” foi
abastecida e os encarregados da manutenção e da limpeza trabalharam
no trem, para que possamos enfrentar, sem percalços, as próximas,
importantes e interessantes etapas de nossa viagem pela “Terra dos
Fundamentos da Educação”, começando pelo Mapa II.
Apressemo-nos para subir ao vagão. O trem da imaginação já
deu o último apito!
Aula_30.indd 230 6/29/2004, 2:23:00 PM