apostila corpo(2013) mimica

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    APOSTILA DE SUPORTE AO TRABALHO E PESQUISA

    Parte 1 O corpo, discusses filosficas.

    Introduo --------------------------------------------------------------------------- Pgina 02

    O Corpo que sofre ------------------------------------------------------------------ Pgina 05

    O novo corpo em Espinosa --------------------------------------------------------- Pgina 06

    Introduo do Livro: Corpo, um modo de ser divino --------------------------- Pgina 07

    A Filosofia do Jeito (fragmentos) -------------------------------------------------- Pgina 09

    Dos que desprezam o Corpo -------------------------------------------------------- Pgina 19

    O corpo como fio condutor: para alm dos dualismos ------------------------- Pgina 21

    O Corpo e a tica --------------------------------------------------------------------- Pgina 34

    Reich e o corpo readmitido ----------------------------------------------------------Pgina 44

    Parte 2 Teatro e o corpo.

    As Escolas de Formao de Teatro Fsico e seu papel... ----------------------- Pgina 51

    Tcnica - a possibilidade de articular --------------------------------------------- Pgina 61

    A Arte dramtica e a expresso corporal ------------------------------------------ Pgina 64

    O Ator e a Surmarionnete.------------------------------------------------------------ Pgina 70

    O ator um atleta---------------------------------------------------------------------- Pgina 74

    Corporeal Mime technique----------------------------------------------------------- Pgina 78

    The Roots of Imagery for Alignment--------------------------------------------------- Pgina 86

    (Atualizada em Abril de 2013)

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    INTRODUO

    Na tradio do pensamento ocidental, o corpo, normalmente desprezado, foi

    considerado responsvel por todas as imperfeies do homem, e o seu martrio dentro

    da tradio judaico/crist: uma forma de libertao da alma, o verdadeiro eu (nesta

    tradio), isto , seramos apenas a alma e o corpo uma priso temporria.

    A maior influncia para esse pensamento vem do filsofo grego Plato, que

    colocava a alma como uma substancia independente do corpo, eterna, unindo-se a ele

    de forma temporria e acidental(Fdon), compartilhando assim o ascetismo do corpo

    pregado por Scrates. Plato criou o conceito da mmesis, onde h um mundo ideal e

    perfeito, o mundo das idias e o mundo em que vivemos uma cpia imperfeita do

    mundo ideal, essa cpia imperfeita foi criada por um deus arteso, j que para Plato

    um deus perfeito no poderia ter criado um mundo imperfeito, assim ele imaginou

    uma entidade, o Demiurgo, o responsvel pela criao das cpias fsicas do mundoideal. Esse um princpio chave nos conceitos de Plato, pois hierarquiza o mundo

    material, como sendo uma cpia imperfeita, inferior e o mundo mental (as formas ou

    idias) como algo perfeito e superior; essa perspectiva ser retomada em toda a sua

    filosofia.

    Assim, Plato definiu o homem como composto de corpo e alma. O corpo

    pertence ao mundo imperfeito, enquanto a alma seria o que teramos mais prximo

    perfeio, isto , do mundo inteligvel. Desta maneira, toda a teoria filosfica de Plato

    ir se basear na diviso entre esses dois mundos: o inteligvel da alma e o sensvel docorpo. O que chamado de 'pensamento platnico' essencial para a compreenso de

    toda uma linhagem filosfica que vir depois, na qual valorizado o mundo inteligvel

    em detrimento do sensvel. A alma detentora da sabedoria e o corpo a priso, ou

    seja, a alma dominada por ele quando incapaz de regrar os desejos e as tendncias

    do mundo sensvel.

    Esse pensamento serviu perfeitamente aos ideais dos filsofos cristos

    medievais, que para justificar sua doutrina asctica de desprezo do corpo o retiraram

    como agente de nossa identidade. Em outras palavras, o homem seria somente umaalma e o corpo, no limite, um invlucro passageiro.

    Seguindo essa tradio, o filsofo francs Ren Descartes (1596 -1650), em sua

    obra filosfica, refletiu detidamente sobre essa questo, e assim construiu uma

    metafsica onde ele chama de corpreo (extenso) o que ocupa espao e de

    pensamento o que no ocupa espao, instaurando assim o que foi chamado de

    dualismo substancial, onde existem duas substncias distintas: a mente, ou a

    substncia pensante (res cogitans) e o corpo, ou a substncia extensa (res extensa).

    Forneceu, sem dvida, um pouco mais de espao para o corpo na identidade do

    homem, mesmo afirmando que o pensamento est preso a esse fragmento de

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    extenso (corpo), assume que da mesma forma que a alma move o corpo, pode ser

    influenciado por ele, assim o homem cartesiano: um composto de duas substncias

    corpo e alma, sive mente, mas determinado essencialmente por uma a mente [.]

    (SANTOS, 2009, p.45). Neste sentido, o ponto de aplicao da alma sobre o corpo seria

    a chamada glndula pineal. Mas ele no esclarece, de fato, sobre a unio da alma e docorpo, e sua abordagem ainda coloca de forma hierrquica a alma (mente) sobre o

    corpo.

    [...] pelo prprio fato de que conheo com certeza que existo, e que, no entanto, noto

    que no pertence necessariamente nenhuma outra coisa minha natureza ou minha

    essncia, a no ser que sou uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha

    essncia consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substncia da

    qual toda a essncia ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora talvez (ou,

    antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muitoestreitamente conjugado, todavia, j que, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta

    de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que,

    de outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que apenas uma coisa

    extensa e que no pensa, certo que este eu, isto , minha alma, pela qual eu sou o

    que sou, inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou

    existir sem ele.

    (Meditaes metafsicas, Descartes R. p. 166. v. II.).

    Este dualismo radical de Descartes relega mais uma vez dentro da histria daFilosofia Ocidental o corpo como forma inferior, Descartes inicia a Filosofia moderna,

    carregando conceitos to antigos como a prpria filosofia, o homem um ser

    pensante, sua essncia espiritual, pois repousa sobre a alma, tese defendida por

    Plato (SANTOS, 2009, p.48), concebendo o corpo como apenas um envlucro

    passageiro, e a composio do homem concentrada em sua mente.

    [...] a natureza me ensina, tambm, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc.,

    que no somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas

    que, alm disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido emisturado, que componho com ele um nico todo.

    (Meditaes metafsicas, Descartes R. p.166. v. II.).

    Quando finalmente aparece Baruch de Espinosa (1632-1677), com uma forte crtica

    filosofia cartesiana e com um pensamento inovador em vrios mbitos, mesmo

    aparentemente continuando a defender o corpo e mente como elementos distintos,

    pois Espinosa tambm no v nada de racional na afirmao da alma movendo o corpo

    ou vice versa. (SANTOS, 2000, p.53) ele afirma que estes dois so na verdade atributos

    de uma mesma substncia original, posio pioneira na histria da filosofia, afirmao

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    que iria contra a ideia de hierarquizao da mente como algo superior ao corpo,

    abrindo caminho para uma discusso que ir se aprofundar anos depois de sua morte.

    Em sua metafsica, Espinosa demonstra a existncia de uma causa imanente

    (causa em si), que se autogerae cria todo o universo. Esse deus ou Natureza (natura

    naturans) a nica substncia que existe e compe todo o universo; essa substncia

    infinita e absoluta dotada de infinitos atributos, mas o intelecto humano s pode

    conhecer apenas dois deles: o pensamento e a extenso. Esses atributos so infinitos e

    se manifestam por infinitos modos finitos.

    Assim o homem, como a unio de dois modos finitos de dois atributos infinitos

    de uma substncia nica, a mente e o corpo, no so mais duas substncias diferentes

    e sim dois atributos diferentes da mesma substncia, a saber, deus ou Natureza.

    Espinosa afirma: ... a substncia pensante e a substncia extensa so uma s e a

    mesma substncia, compreendida ora sob um atributo, ora sob outro (EII, prop7,esclio). Por esse modelo, a interao do corpo e da mente necessita de uma nova

    forma, os dois no so mais duas substncias diferentes que interagem entre si, mas

    uma nica substncia manifestando-se em modos diferentes, assim, de agora em

    diante sua relao se dar por meio do que Espinosa chama de paralelismo, a ordem

    e a conexo das idias a mesma que a ordem e a conexo das coisas(EII prop7). Esta

    relao intrnseca do corpo e da mente se d agora em um nvel substancial; ento, o

    que acontecer com o corpo vai necessariamente acontecer com a mente e vice-versa.

    FONTE: A questo do corpo em Espinosa, trabalho de concluso de curso

    bacharelado em filosofia, 2010, Victor de Seixas.

    O corpo que sofre

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    Na tradio do pensamento ocidental o corpo normalmente foi desprezado,

    considerado aquele responsvel por todas as imperfeies do homem, e o seu martrio

    dentro da tradio judaico/crist, uma forma de libertao da alma, que na tradio

    ser o verdadeiro eu, isto , seramos apenas uma alma e o corpo uma priso

    temporria.

    A maior influncia para esse pensamento vem do filsofo grego Plato, que

    compartilhava o ascetismo do corpo pregado por Scrates, Plato criou o conceito da

    mmesis, existe um mundo ideal e perfeito, o mundo das idias e o mundo que

    vivemos, que uma cpia imperfeita do mundo ideal, essa cpia imperfeita foi criada

    por um deus arteso, j que para Plato um Deus perfeito no poderia ter criado um

    mundo imperfeito, assim ele imaginou uma entidade, o Demiurgo, o responsvel pela

    criao das cpias fsicas do mundo ideal. Esse um princpio chave nos conceitos de

    Plato, pois hierarquiza o mundo material como sendo uma cpia imperfeita inferior eo mundo mental (idias) como algo perfeito e superior, isso ir se refletir em toda a

    sua filosofia.

    Assim Plato definiu o homem composto de corpo e alma. O corpo pertence a

    o mundo imperfeito, enquanto a alma seria o que teramos mais prximo a perfeio,

    do mundo inteligvel, toda a teoria filosfica de Plato ir se basear na diviso entre

    esses dois mundos: o inteligvel da alma e o sensvel do corpo. O que chamado de

    pensamento platnico essencial para a compreenso de toda uma linhagem

    filosfica que vir depois, onde valorizado o mundo inteligvel em detrimento do

    sensvel. A alma detentora da sabedoria e o corpo a priso quando a alma

    dominada por ele, quando incapaz de regrar os desejos e as tendncias do mundo

    sensvel.

    Esse pensamento serviu perfeitamente aos ideais dos filsofos cristos

    medievais que para justificar sua doutrina asctica de desprezo do corpo, o retiraram

    como agente de nossa identidade, o homem seria apenas uma alma o corpo apenas

    um invlucro passageiro.

    O corpo foi desprezado e esquecido.

    O filsofo francs Ren Descartes (1596, 1650) em sua obra filosfica elaborou um

    pouco mais essa questo, montou uma metafsica onde ele chama de corpreo o que

    ocupa espao e de pensamento o que no ocupa espao, instaurando o que foi

    chamado de dualismo, onde existem duas substncias distintas, a mente uma

    substncia pensante (res cogitans) e o corpo era substncia extensa (res extensa), deu

    um pouco mais espao para o corpo na identidade do homem, coloca que o

    pensamento est preso a esse fragmento de extenso (corpo) e a alma age sobre o

    corpo e este age sobre ela. (Para Descartes, o ponto de aplicao da alma ao corpo a

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    glndula pineal) Mas ele no esclarece sobre a unio da alma e do corpo, e sua

    abordagem ainda coloca de forma hierrquica da alma (mente) sobre o corpo.

    O novo corpo em Espinosa

    Espinosa continua a tradio de imaginar corpo e mente como elementos distintos,mas inova, afirmando que mesmo distintos, so manifestaes de uma nica

    substncia original, quebrando assim uma longa tradio em hierarquizar a mente

    como algo superior ao corpo.

    Em sua metafsica, Espinosa imagina um Deus pantesta, que se autogera assim

    cria todo o universo, esse Deus ou natureza (natura naturans) a nica substncia que

    existe e compes todo o universo, essa substncia infinita e absoluta dotada infinitos

    atributos, o intelecto humano pode conhecer apenas dois deles: o pensamento e a

    extenso. Esses atributos so infinitos e se manifestam por infinitos modos finitos.

    Assim identidade o homem, somos a unio de dois modos finitos de dois

    atributos infinitos de uma substncia nica, a mente e o corpo no so mais duas

    substncias diferentes e sim dois atributos diferentes da mesma substncia, a saber,

    Deus ou natureza. Espinosa diz a substncia pensante e a substncia extensa so uma

    e a mesma substncia, compreendida ora sob um atributo, ora sob outro. Por esse

    modelo a interao do corpo e mente necessita de uma nova forma, os dois no so

    mais duas substncias diferentes que interagem entre si, mas uma nica substncia se

    manifestando em modos diferentes, assim a sua relao se d atravs do que Espinosachama de paralelismo, a ordem e a conexo das idias a mesma que a ordem e a

    conexo das coisas, esta relao intrnseca do corpo e da mente de d em agora em

    um nvel substancial, ento o que acontecer com o corpo vai necessariamente

    acontecer com a mente e vice-versa.

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    Introduo do Livro: Corpo, um modo de ser divino.

    A Filosofia ocidental marcada por um desconforto em relao ao corpo. Este

    desconforto normalmente considerado, mesmo que no unanimemente, como umlegado de Plato que o trata como algo de inferior alma, aprisionando- a as

    necessidades corriqueiras e sensveis do corpo, impedindo- a de usufruir de toda a sua

    potencialidade em direo ao Bem e ao conhecimento da Verdade. O mundo fsico,

    com todas as suas mudanas e imperfeies, no podia gozar do mesmo estatuto da

    alma, que pertence ao mundo sem devir, imutvel, eterno e imaterial, perfeito e cujo

    acesso pleno nos est impedido por este corpo que prende nossa alma e a submete s

    paixes mais imprprias. O corpo impede a alma de usar de suas aptides ao eterno,

    ao perene, ao estvel, ao imutvel; ao - racional, ao nobre, ao perfeito; em suma, ao

    Bem, ao Supremo Bem. Estabelecida a grande diferena entre um e outro, o que deveser buscado como objeto filosfico, segundo Plato, so as verdades eternas e

    espirituais. Com o advento do Cristianismo, esta tese se solidificou tanto na Europa

    que, j no incio da Idade Mdia, fazia-se diferena entre a Filosofia pag (fictorum ou

    falsorum)-a que trata das questes terrestres e passageiras; e a VerdadeiraFilosofia

    (l/era Philosophiae) - a que trata das questes espirituais e eternas, tais como Deus,

    alma, anjos, demnios, a essncia das coisas e tudo o mais que concerne Fsica

    Celeste; em duas palavras, questes metafsicas.

    EstaVeraFilosofia, tambm denominada Teologia,1voltada radicalmente para oreino celeste, se importa com o corpo humano apenas para domin-lo e subjug-lo aos

    interesses da alma, em vista ao eterno. J no se espera nada de bom do corpo. Este

    desconcentra a alma do espiritual, do perene do eterno, do que realmente vale a pena

    se ocupar. Prega-se, portanto, o desprendimento do corpo e das coisas deste mundo,

    atravs de uma vida voltada para os interesses da alma, visando o seu enobrecimento

    a fim de lhe garantir uma eternidade mais saudvel. A Cincia 2 til a Verdadeira

    Filosofia; ou seja, a Teologia - esta que instrui a alma para uma vida eterna. Ela que

    se incumbe de explicar a existncia humana e de encaminhar a humanidade

    felicidade. Esta felicidade no pode se encontrar no mundo fsico, onde encontramos

    1 Traduo de uma palavra grega originria de duas outras Thos e Logia. EO(T=Deus e logia, de oyoa/v = conhecimento,estudo crtico e sistemtico: cincia. Thos-logon - cincia de Deus e de tudo o que lhe concerne.

    2 Cincia no seu sentido original de conhecimento terico; ou seja, racional, rigoroso e sistemtico e no no sentidocontemporneo de um estudo tambm rigoroso, mas muito mais emprico, ou seja, experimental e observvel. De origemgrega, o termo 'cincia' foi introduzido no mundo ocidental a partir dos textos de Plato. Cincia a traduo das palavrasepisteme, noesis, dianoia, dialtica e at mesmo tcnica (transiiteraes do grego episteme, noesis, dianoia, dialetiica etecnoi). Todos essas variaes em grego denotam um saber no religioso, no mtico, no lendrio e no dxico(de doxa -opinio acrtica e assistemtica; senso comum); que designam um saber racional ou emprico. Assim, historicamente, o termocincia temsido utilizado para designar um tipo de conhecimento preciso e ordenado (seja ele terico ou emprico), em prolde um saber mais perfeito das coisas e o mais distante possvel dos pr-conceitos, crenas e saberes de tradio popular.Cinciacomo saber experimentvel e observvel, especialmente em laboratrios, um sentido bem mais recente.

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    desordem e constantes mudanas; mas no meta-fsico3. nele que se encontra a

    ordem e a essncia das coisas (Plato). Durante a Idade Mdia, os demais

    conhecimentos, para serem aceitos como verdadeiros, deviam repousar sobre a

    verdade divina e exatamente sobre ela, mesmo que com algumas nuanas, que

    Descartes constri sua filosofia.

    Espinosa se posiciona piamente contra a superioridade do mundo espiritual

    sobre o material e explica, com rigor e preciso pouco igualveis na Histria da

    Filosofia Ocidental, o quanto nos enganamos em relao ao mundo fsico. Utilizando-

    se do vocabulrio medieval, escolstico e cartesiano, Espinosa d-lhes todo um novo

    sentido, operando assim uma correo conceituai e abrindo as portas para uma nova

    cincia atravs do estudo do corpo: preciso saber o que pode o corpo."(EIII. 2, esc.).

    Espinosa no apenas valoriza o estudo do corpo, mas inverte a ordem estabelecida por

    Descartes para a nova Cincia que ele se props inaugurar. Ningum podercompreender a Mente humana de maneira adequada; ou seja, distinta, se no

    conhecer primeiramente de maneira adequada a natureza de nosso Corpo."(EII. 13: sc)

    E ainda, "uma idia que contraria a existncia de nosso Corpo no pode existir na nossa

    Mente, mas lhe contrria." (EIII. 10). Isto porque, para nosso filsofo, a Mente a

    conscincia do Corpo (EIII. DGA: expl), o que significa queela "...no se conhece a si

    mesma, seno ao perceber as idias das afeces do Corpo." (EII.22). E ele reincide

    sobre esta importncia do Corpo no inicio da parte em que se prope a falar dos afetos

    que se formam com as afeces:"A Mente no i est sempre igualmente pronta a se

    fixar sobre um mesmo objeto; mas medida que o Corpo se encontra mais disposto aoque a imagem de tal ou tal coisa nele desperta, a Mente se encontra melhor preparada

    para fazer disso objeto de sua contemplao. (EIII.2:sc). Fica claro que Espinosa coloca

    o Corpo como condio de possibilidade de todo e qualquer conhecimento, assunto

    sobre o qual ele insiste muitas vezes na tica, o que coloca Espinosa em situao

    delicada entre os filsofos classificados como racionalistas.

    Fonte: Livro: Corpo, um modo de ser divino de Mrcia Patrizio dos Santos.

    3 Etimologicamente,paraaim dofsico, portanto, estudo das coisas eternas; perenes; imveis e no corruptveis. No entanto,metafsicaganha um sentido mais amplo e, muitas vezes, mesmo diverso, no percurso da Historia Ocidental. Mister ver o sentido que elaadquire em cada poca.

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    RESULTANTES ABSTRATAS DO MOVIMENTO DO CORPO

    O sistema de equilbrio ao mesmo tempo desenvolve e informa sobre as estruturas

    dinmicas e abstratas. A composio vetorial das foras musculares abstrata porque

    no limitada ao desenho anatmico dos componentes do corpo.

    No entanto, de esforos concretos que emergem resultantes abstratas relativamente

    independentes de estruturas determinadas. Abstraes concretas acontecem

    continuamente no nosso sistema motor.

    "A compreenso do sentido, mesmo filosfico, depende da percepo desta resultante

    virtual da composio dinmica das foras do corpo e do mundo, que tambm uma

    possibilidade de ao.

    Assim, a razo no tem uma caracterstica no corprea nem definitiva, nem

    transcendental: um corpo abstrato.

    O JEITO NA FILOSOFIA

    Ningum sai s ruas sem nenhum jeito, mas sempre, de algum jeito. Agir formar, e

    ao formar com o corpo definimos mundos diversos, heterogneos. No existe uma

    subjetividade preservada do corpo na rua, autnoma e auto-suficiente da experincia

    e do contato. Nossos sistemas conceituais esto comprometidos com o corpo, e o

    corpo delineia seus limites.

    Esses limites esto envolvidos com a necessidade de manter posies. Parece um

    argumento ideolgico, mas uma descrio de fato. A maior parte do esforo

    muscular dedicada a manter as posies do corpo, e esse esforo contnuo e

    automtico que garante ao conjunto a possibilidade de fazer qualquer movimento. Por

    isso, pode-se aceitar que a resistncia est enraizada, est presente e necessria em

    cada tensor muscular, em cada fibra conjuntiva, em cada tubrcula ssea" (Gaiarsa,

    1988a p. 59). No entanto, esses limites articulam o corpo ao infinito!

    O VIVO E O MECNICO

    Nossa biomecnica no como uma mquina sem vontades, emprestada s intenes

    de um fantasma que a dirige. E preciso considerar nossa biomecnica para

    compreender o que, quem ou, principalmente, como somos. Esse enraizamento da

    humanidade na biomecnica importante; foi o comprometimento da mecnica do

    corpo com as leis naturais que ameaou a concepo de liberdade. Esse

    comprometimento levou Descartes a identificar o homem com uma razo no

    corprea, como um fantasma dirigindo uma mquina4, mas possvel dizer que a

    mquina que dirige o fantasma!

    4Expresso tornado conhecido pelo filsofo Gilbert Ryle, em O conceito de esprito, 1970

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    O biomecnico condio para a "humanidade" do homem. Isso vai contra uma

    determinada relao de poder: a humanidade incorprea do homem move a mecnica

    do corpo. Ela desemboca em outras, tais como: o pensamento domina o corpo, o

    esprito domina a natureza, o adulto domina a criana, o homem domina a mulher.

    Relaes concebidas numa cosmoviso cuja forma um sistema que se organiza apartir de um ncleo centralizador do poder.

    EXPLICAR ACHAR O JEITO

    A etimologia da palavra "explicar" remete ao sentido de "desfazer uma prega"

    (Gaiarsa, 1988a). Fazer pregas o oposto de explicar: implicar, complicar. Por isso, a

    explicao um movimento que desprega o corpo que estava preso, a percepo que

    estava presa, a ao que estava presa. A explicao uma ao, um movimento, um

    jeito! A etimologia de "resolver" continua na mesma pista: resolver dissolver

    novamente. As duas palavras no remetem, portanto, a um processo incorpreo, masa algo efetivo a ser feito.

    "Para resolver ou explicar preciso achar o jeito. E, se o jeito se acha fazendo, a

    explicao uma ao.

    Os ajustes motores, exigidos pela transformao contnua provocada pelo contato,

    correspondem emergncia da conscincia. A conscincia se forma para explicar, para

    desdobrar o que est dobrado, prendendo e limitando a ateno.

    A palavra vem depois da emergncia espontnea da conscincia e tem comopropsito favorecer a percepo do trnsito das foras entre os corpos: como essas

    foras mudam posies, distncia, forma, dividindo, agrupando, anulando, enfim.

    As explicaes remetem, portanto, ao nosso sistema motor, posto que este realiza

    procedimentos sistemticos, continuamente, para perpetuar e sustentar o movimento.

    O FSICO E O VIRTUAL

    No existimos em nenhum momento fora de qualquer contato. As organizaes do

    corpo ou do ambiente so sempre estruturais e significativas, num mundo que e fsicoe virtual ao mesmo tempo (Deacon, 1997). A relao entre o fsico e o virtual

    evidente no sistema biomecnico, a comear pela noo de significado: a direo de

    um movimento "real quando se executa, virtual quando est implcito numa atitude ou

    numa posio" (Gaiarsa, 1988a, p. 153). Morin (1997, p. 136). Disse que, j no existe

    uma phisis isolada do homem, isto e, isolvel do seu entendimento, da sua lgica, da

    sua cultura, da sua sociedade".

    O entendimento existencial da biomecnica compreende a condio humana no fluxo

    da phisis, a comear pela postura, cujas exigncias estruturais implicam na evidncia

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    bsica de que estamos continuamente em relao ou em contato, ou seja, envolvidos

    com foras abstratas, resultantes da composio dos instantes.

    EU O OUTRO

    A percepo de um objeto no depende exclusivamente dos sinais sensoriaisespecializados nas caractersticas dele, mas tambm de sinais sobre o ajuste do corpo

    com relao ao objeto com o qual se estabeleceu o Contato. Esses sinais sobre o ajuste

    do corpo so fundamentais para a ocorrncia da percepo (Damsio, 2000). Como os

    ajustamentos do corpo so organizados como tenso muscular, o movimento das

    imagens e percepes presentes na conscincia depende do movimento dos msculos.

    Tambm possvel perceber o quanto o eu e o outro esto intimamente ligados,

    fazendo-se reciprocamente. Isso serve para objetos inanimados e animados, como

    uma pessoa. Essa relao um dos fundamentos do processo do conhecimento.

    O conhecimento depende do mapeamento da relao entre sujeito e objeto (Damsio,

    2000). Trata-se de um processo de abstrao que , ao mesmo tempo, objetivo e

    subjetivo.

    A percepo , portanto, a forma elementar da conscincia. E a conscincia resultante

    da sensao muscular pode ser compreendida como "conscincia refletida", conforme

    prope Gaiarsa (1988a, p. 40), porque "no mundo das formas paradas ou vazias,

    constitudas pelas imagens visuais, assim como no mundo das intensidades variveis

    dos sons e dos rudos, s os movimentos produzem transformaesligadas ao personagem, ligadas sua 'vontade' - como lhe diro logo mais", e o eu,

    como personagem, pode ser entendido como "conjunto de esforos coordenados para

    a produo de um certo efeito".

    Portanto o eu no fixo; corresponde a uma composio ao mesmo tempo

    individualizada e profunda (leva fuso), totalmente dinmica (combinao de foras)

    e flutuante, pois os menores movimentos fazem variar as relaes entre eu e o objeto.

    Quanto personalidade, Gaiarsa (1988a, p. 249) repara que "Freud chamou de

    topologia a 'estrutura' da personalidade, representao espacial da sequncia

    temporal [...] O critrio cronolgico-topogrfico merece ser retido: a forma presente

    da personalidade consequncia de todas as experincias passadas, atuando cada

    uma dessas experincias como um golpe de cinzel de um escultor - fazendo e

    desfazendo a forma".

    LIMITES DO EU

    Para Damsio (2000, p. 42), as razes do self encontram-se no "conjunto de

    mecanismos cerebrais que de modo contnuo e inconsciente mantm o estadocorporal dentro dos limites estritos e na relativa estabilidade requerida para a

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    sobrevivncia". Para Atlan (1992, p. 179), "as perturbaes aleatrias podem no

    destruir a organizao, com a simples condio de que a confiabilidade do sistema -

    assegurada por uma redundncia estrutural e funcional - no seja ultrapassada, e de

    que a desorganizao assim produzida passa ser resgatada e recuperada num outro

    estado de organizao/adaptao". Esses limites tambm acontecem as exigncias doequilbrio biomecnico humano, envolvido nos reflexos posturais que impedem a

    queda.

    Nenhuma ao pode ser atribuda a uma subjetividade absoluta, pois tudo que

    fazemos est sujeito aos limites da ortosttica, fora dos quais camos. Os limites das

    suas formas irregulares comandam o desatar de foras que no esto sob controle da

    deliberao consciente. Seu valor absoluto : dentro deste mundo, de p; fora dele, no

    cho (Gaiarsa, 1988a).

    DOBRAS DO INFINITO

    O crebro humano de uma complexidade sem limites inventivos, "cada neurnio faz.

    algo entre mil e dez mil sinapses com outros neurnios. Estas podem desligar ou ligar,

    ser excitatrias ou inibitrias, isto , algumas sinapses liberam o fluido para ativar

    mecanismos, enquanto outras liberam fluidos para acalmar tudo em volta, numa

    dana contnua de complexidade atordoante. Uma poro de seu crebro do tamanho

    de um gro de areia deve conter dez mil neurnios, dois milhes de axnios e um

    bilho de sinapses, todas 'falando' entre si. Dadas essas cifras, calcula-se que o nmero

    de possveis estados cerebrais - o nmero de permutaes e combinaes deatividades teoricamente possveis - ultrapassa o de partculas existentes no Universo"

    (Ramachandran, 2002, p. 31).

    Essa estimativa do infinito com relao aos estados mentais pode ser relacionada com

    o fato de que o corpo no tem forma pronta e determinada. A importncia da

    motricidade e a necessidade de coloca-lo no eixo central do estudo da conscincia

    ainda evidente pelo fato de que uma s clula do cerebelo pode receber duzentas mil

    conexes de muitos outros neurnios; portanto, o cerebelo, que o motor, tem mais

    neurnios do que o restante do crebro. A variabilidade dos movimentos do corpo amesma ou anloga aos possveis estados cerebrais: beirando a noo de infinito.

    Embora as formas na nossa razo sejam limitadas pelo nosso corpo, no precisamos

    negar o corpo para alcanar o infinito, pois o infinito est nas dobras das nossas

    articulaes.

    O FANTOCHE SEM CONTROLE

    Para entender a coordenao motora, Gaiarsa usa metfora do boneco articulado, o

    fantoche. Enquanto este tem umas dez articulaes, o corpo humano tem dez vezesmais.

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    "Para mover este boneco deveras desengonvel, sobretudo para faz-lo parar ou

    mant-lo imvel, atuam sobre ele cerca de 300 mil cordis. Este o nmero das

    unidades motoras. Podemos admitir que nossos tensores elementares podem se

    contrair segundo dez graus de tenso distintos e crescentes. Com isso, elevamos o

    nmero das possibilidades tencionais do corpo a este nmero absurdamenteestarrecedor: trs milhes de tirantes ou cordis ou puxes elementares. [...]

    organizao desta loucura damos o nome de coordenao motora" (Gaiarsa, 1987, p.

    54).

    A metfora do fantoche no se aplica concepo hierrquica que caberia a um

    boneco, que tem uma mo controlando seus movimentos, o que poderia corresponder

    a um crebro que decide o que o corpo vai fazer. Est mais para essa bela imagem

    proposta por Damsio (2000, p. 196): "o crebro a audincia cativa do corpo, pois e

    o contato que libera as foras no movimento. A metfora do boneco serve mais paramostrar o quanto a versatilidade do crebro corresponde a uma versatilidade motora,

    o que equivaleria a dizer que estados cerebrais tm correspondncia com estados

    motores.

    MOVIMENTO DE FORMAS E IDIAS

    Plato acreditava existir um mundo das formas e das ideias perfeitas e imutveis,

    origem e matriz de tudo, que existe no outro mundo, o dos fenmenos e dos sentidos,

    onde estamos, que ele chamou de mundo das sombras. O prprio nome indica que a

    imutabilidade condio para a perfeio das formas e das ideias: so perfeitasporque no mudam. O mundo da sombra o mundo da mutabilidade e da

    imperfeio. Aqui, as coisas so imperfeitas porque degeneradas pela transformao.

    Essa associao de perfeio com imutabilidade e imperfeio com mutabilidade o

    que interessa especialmente, porque possvel assumir a mutabilidade como

    referncia sem abrir mo da perfeio.

    Nossa estrutura ssea e nosso sistema de equilbrio e movimento significam que no

    temos forma fixa e que as transformaes pelas quais o corpo passa correspondem

    evoluo em direo perfeio exigida pela circunstncia, pelo momento. possvelentender a perfeio como a capacidade de continuar em relao, de manter-se vivo

    de prosseguir o caminho, de compor (pr-se com). Nosso cotidiano carrega essa

    possibilidade de transformao e movimento de um modo muito radical, a cada passo.

    TRANSFORMAO E REPETIO EM ARISTTELES

    Uma ideia de transformao do corpo atualizando a perfeio aparece em Aristteles,

    mas nele afirmada a repetio e no a novidade. Para Aristteles, as formas evoluem

    dentro dos limites da sua condio essencial e eterna. Essas essncias realizam-se na

    existncia, por meio de uma interligao na qual cada essncia, quando atualizada nasua perfeio, mobiliza a atualizao de outra essncia, num grande sistema em

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    movimento e perfeio. Exemplo: a atualizao da nuvem em chuva e gua atualiza a

    planta em potencia na semente. O movimento atualiza as essncias. Embora associe

    movimento e perfeio, Aristteles tambm rejeita o valor da novidade que no

    corresponde perpetuao das essncias. E, portanto, tambm bastante

    comprometido com a estrutura do pensamento patriarcal. Aristteles no concordariacom a ideia de que o homem evoluiu do macaco. Para ele, a transformao do corpo

    que no corresponde a perfeio da essncia eterna degenerao, pois "o princpio

    da matria introduz a corrupo e a morte do universo, ele tambm a causa da

    monstruosidade [...] a monstruosidade, propriamente, aplica-se ao caso em que o

    engendrado no da mesma espcie que o gerador, uma simples diferena para

    constituir uma monstruosidade no sentido lato: assim a fmea engendrada no lugar do

    macho um monstro. 'Ela um macho mutilado', o resultado de uma falha do

    princpio macho" (Badinter, 1986, p. 110).

    CARTER GEOMTRICO E DINMICO DA COGNIO

    Para Plato, a cognio tem um carter geomtrico, e para Aristteles, tem um carter

    dinmico. O que se pode analisar numa situao corresponde ou geometria (forma,

    posio, distncia e direo em que esto os vrios objetos relativamente ao sujeito),

    ou dinmica (esforos e movimentos feitos para alcanar, manipular, arrastar e

    afastar os vrios objetos) e "estes dois esquemas so o substrato e o pressuposto de

    qualquer coisa que nos seja dado dizer, pensar, imaginar, conceber, abstrair, julgar ou

    teorizar, em relao situao" (Gaiarsa, 1988a, p. 42).

    Ento, possvel concordar que as explicaes so geomtricas ou dinmicas, mas

    preciso incluir a circunstncia e a novidade, porque aqui as formas no reproduzem

    um modelo, uma essncia a ser perpetuada; o tempo no imita a eternidade.

    No cotidiano, que se apoia em cada passo, o contato provoca foras e modos de

    esforo que no se manifestariam sozinhos, no estavam guardados esperando uma

    iniciativa "interior" que os manifestasse. Talvez estejam mais prximas da concepo

    de caos, ou, como diziam os taostas, do no-ser. Este sucede ao desequilbrio e dele

    emerge a nova forma. Tal caos absolutamente criativo, porque processosautomticos de terminantes so ativados para possibilitar que nova estabilidade se

    forme.

    Ao contrrio de Plato, para o qual as formas imperfeitas do mundo emergem das

    formas perfeitas transcendentais, aqui a forma emerge da no-forma, e sua perfeio

    depende da relao.

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    HABILIDADE E JEITO

    O crebro e o sistema sensrio-motor permitem dizer que as possibilidades mentais

    humanas so infinitas, que qualquer estabilidade provisria e que a novidade pode

    ser atualizada.

    Atualizao da novidade uma boa expresso, porque ao contrrio de Aristteles,

    para quem o contato faz atualizar essncias - o contato nos faz atualizar uma

    potencialidade no comprometida com uma essncia imutvel.

    Atualizamos a habilidade: a capacidade que permite a emerso de uma forma

    absolutamente nova; este processo o jeito.

    EMERGNCIA DA CONSCINCIA NO DESEQUILBRIO

    Organizao s possvel quando h interao; interao significa encontro queprovoca desordem, porque o encontro sempre modifica o que havia antes dele. Em

    termos de motricidade, somente quando os ciclos auto-sustentados do equilbrio so

    perturbados que a conscincia emerge para acertar o que foi desestabilizado,

    reestruturando novas formas e hbitos.

    Trata-se de um tipo de conscincia no restrita a uma deliberao prvia.

    Essa concepo de conscincia familiar a Gaiarsa, Damsio, Lakoff & Johnson,

    Dennett, Deacon, pois "em cincia cognitiva, o termo cognitivo usado para qualquer

    tipo de operao mental ou estrutura que pode ser estudada em termos precisos. A

    maioria destas estruturas e operaes so inconscientes [...] Imagens mentais,

    emoes e a concepo de operaes motoras tm sido estudadas de tal perspectiva

    cognitiva [...] Muito do que ns chamaremos de inconsciente cognitivo no ,

    portanto, considerado cognitivo por muitos filsofos" (Lakoff & Johnson, 1999, p. 11-

    12).

    UM JEITO ENTRE A VONTADE E A MEMRIA

    Descartes compreendeu a vontade como uma espcie de alavanca que movia o corpoa servio de uma deliberao prvia, a mando de uma razo que sabe

    antecipadamente o que faz. Para ele, o conhecimento inteligente aquele cujo

    conhecimento racional antecede o movimento do corpo; implica conhecer antes de

    fazer. Mas possvel compreender uma vontade no sujeita a um conhecimento

    prvio. Quando se trabalha com a emergncia da novidade, o conhecimento prvio s

    pode ser compreendido como conhecimento do passado. Atlan (1992) coloca a

    vontade mais prxima das pulses do corpo, como uma fora auto-organizadora,

    movida para o futuro.

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    O sistema muscular organiza-se com a novidade e prepara o corpo para o futuro. As

    posies e as atitudes do corpo esto comprometidas com a sucesso dos instantes,

    portanto o passo seguinte sempre depende do passo anterior, mas no ,

    necessariamente, consequncia dele.

    VONTADE E MSCULO

    A vontade pode ser entendida como um processo auto-organizador bastante

    inconsciente, ligada auto-regulao contnua do equilbrio. Essa ligao da vontade

    com os msculos sugere que a vontade menos "interna", menos pulsional e mais

    fronteiria. Mesmo Freud (1969, p. 106) percebeu a vontade como um impulso motor:

    "desejos so acompanhados de um impulso motor, a vontade, que est destinada,

    mais tarde, a alterar toda a face da Terra para satisfazer seus desejos. Esse impulso

    motor o princpio empregado para dar uma representao da situao satisfatria,

    de maneira tal que se toma possvel experimentar a satisfao por meio do quepoderia ser descrito como alucinaes motoras".

    UM TRIBUTO A DESCARTES

    Esse vnculo entre a vontade e o sistema biomecnico especialmente interessante,

    porque permite uma compreenso inusitada de Descartes, que entendeu a lgica

    como caracterstica da razo. Os mecanismos de sustentao e equilbrio do corpo

    podem ser entendidos como mecanismos racionais. possvel propor que a

    emergncia na conscincia do nmero, da estatstica e do clculo est relacionada como funcionamento do sistema de equilbrio biomecnico. Este combina esforos muito

    complexos em sequncias precisas quanto fora, direo, sentido e tempo, das quais

    emergem formas organizadas que garantem a eficincia da ao.

    Assim, o sistema muscular tambm um instrumento de conhecimento. Gaiarsa

    (1988a, p. 77) acredita que nele "deve ser procurada a origem subjetiva da fsica e da

    matemtica; nele tambm reside, creio, a lgica silogstica e causal", salientando que

    "no caso de posies - coordenao esttica - as tenses so simultneas - e

    equilibradas; no caso de gestos e aes - coordenao dinmica - as tenses

    so sucessivas, e os impulsos se sucedem em fraes pratica- mente infinitesimais de

    tempo - ser (integral de f no intervalo t1 t0). Os t (tempos) tm um valor que vai

    de dcimos a milsimos de segundo - porque esta a frequncia mxima de emisso

    de influxos nervosos entre os neurnios ativos. fcil imaginar o quanto este modo de

    organizao (f) contribui para a preciso e suavidade dos movimentos, e o quanto

    este tipo de organizao complica a execuo dos movimentos [...] Estes signos

    matemticos figuram concretamente como o clculo. Se no funcionssemos assim,

    no poderamos pensar assim e muito menos inventar esta forma de pensamento. A

    unidade motora o infinitesimal real que permitiu aos homens pensar em clculo

    infinitesimal. Note-se incidentalmente: por que clculo diferencial e integral? Em

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    paralelo com sua funo, seria mais acertado dizer clculo diferenciador e clculo

    integrador" (p. 149).

    A FORA DA VONTADE E A INTELIGNCIA

    Somos um corpo capaz de muita fora, uma fora que no explosiva, mas organizadanum conjunto altamente com- plexo de vetores e tensores. A transformao da fora

    do corpo em movimento um processo inteligente! E possvel aceitar que princpios e

    mtodos intelectuais correspondem aos processos do corpo que desatam, controlam e

    transformam essa fora, como props Gaiarsa (1988a). Ele percebe que a capacidade

    biomecnica de resistir e direcionar os esforos corresponde a uma grande fora fsica,

    pois "se fizermos todos os msculos do corpo se contrarem ao mximo (tetania), e se

    conseguirmos reunir todos estes esforos em um gancho nico, este gancho teria fora

    para levantar no mnimo cinco toneladas" (Gaiarsa, 1984a, p. 47).

    PONDERAR BALANAR

    O pensamento, embora envolvido com a lgica da razo, est mais comprometido com

    as ambiguidades e multiplicidades que emergem das oscilaes, da ponderao. O

    pensamento corresponde aos afetos que balanam e exigem os reajustes da razo.

    No podem ser retirados do acontecimento ou da sucesso dos instantes. Acontecem

    a cada passo.

    CONHECIMENTO E SENSAO

    Importa, ento, compreender a participao das sensaes nos processos cognitivos.

    possvel estar mais ou menos atento s sensaes do corpo, mais ou menos alienado,

    mais ou menos consciente das foras em processo. As sensaes esto ligadas ao

    pensamento; no entanto, as sensaes no so inteiramente reconhecidas na cultura

    patriarcal, na qual estamos mergulhados h pelo menos cinco mil anos, e o mais

    comum que sejam perseguidas.

    Um exemplo perfeito sobre a represso das sensaes so os argumentos dos

    inquisidores contra as bruxas, tidas como carnais demais, o que as tornava vulnerveis

    seduo dos demnios.

    No conseguir sentir o que importa o mesmo que no saber pensar. Sentir

    perceber, pelas sensaes, as foras em curso, no que se transformam e para onde se

    dirigem,.

    UMA QUESTO DE POSIO

    Damsio (2000, p. 190) tambm prope que "tudo que ocorre em sua mente se d em

    um tempo e em um espao relativos ao instante no tempo em que seu corpo se

    encontra e regio do espao ocupada por ele". Lakoff e Johnson (1999, p. 30)

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    tambm dizem que "os conceitos de relaes" espaciais esto no corao do nosso

    sistema conceitual". Parece fazer sentido, ento, a ideia de Roberto Gomes de que

    precisamos reconhecer que estamos no Brasil agora para desenvolvermos um

    pensamento localizado, nossa prpria razo de ser e uma sntese filosfica original.

    Mesmo porque as atitudes so inevitveis, no existe possibilidade de existir semforma, embora seja possvel existir de um modo impostor.

    FONTE: LIVRO: A Filosofia do Jeito, um modo brasileiro de pensar com o corpo de

    Fernanda Carlos Borges, ED. Summus.

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    DOS QUE DESPREZAM O CORPO

    Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinio. O que devem fazer no

    mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu prprio corpo, e, por

    conseguinte, ficarem mudos.

    Eu sou corpo e alma assim fala a criana. E porque sei no h de falar como as

    crianas?

    Mas o que est desperto e atento diz: Tudo corpo, e nada mais; a alma apenas

    nome de qualquer coisa do corpo.

    O corpo uma razo em ponto grande, uma multiplicidade com um s sentido, uma

    guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

    Instrumento do teu corpo tambm a tua razo pequena, a que chamas esprito: uminstrumentozinho e um pequeno brinquedo da tua razo grande.

    Tu dizes Eu e orgulhas-te dessa palavra. Porm, maior coisa que tu no queres

    crer o teu corpo e a tua razo grande. Ele no diz Eu, mas: procede como Eu.

    O que os sentidos apreciam, o que o esprito conhece, nunca em si tem seu fim; mas os

    sentidos e o esprito quereriam convencer-te de que so fim de tudo; to soberbos

    so.

    Os sentidos e o esprito so instrumentos e joguetes; por detrs deles se encontra onosso prprio ser(4).Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos

    do esprito.

    Sempre escuta e esquadrinha o prprio ser: combina, submete, conquista e destri.

    Reina, e tambm soberano do Eu.

    Por detrs dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmo, h um senhor mais

    poderoso, um guia desconhecido, chama-se eu sou. Habita no teu corpo; o teu

    corpo.

    H mais razo no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para que

    necessitar o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?

    O prprio ser se ri do teu Eu e dos seus saltos arrogantes. Que significam para mim

    esses saltos e vos do pensamento? diz. Um rodeio para o meu fim. Eu sou o guia

    do Eu e o inspirador de suas idias.

    O nosso prprio ser diz ao Eu: Experimenta dores! E sofre e medita em no sofrer

    mais; e para isso devepensar.

    http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zara.html#n4http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zara.html#n4
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    O nosso prprio ser diz ao Eu: Experimenta alegrias! regozija-se ento e pensa em

    continuar a regozijar-se freqentemente; e para isso devepensar.

    Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem a

    sua estima. Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade?

    O prprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou a sua alegria e a sua

    dor. O corpo criador criou a si mesmo o esprito como emanao da sua vontade.

    Desprezadores do corpo: at na vossa loucura e no vosso desdm sereis o vosso

    prprio ser. Eu vos digo: o vosso prprio ser quer morrer e se afasta da vida.

    No pode fazer o que mais desejaria: criar superando-se a si mesmo. isto o que ele

    mais deseja; esta a sua paixo toda.

    , porm, tarde demais para isso: de maneira que at o vosso prprio ser querdesaparecer, desprezadores do corpo.

    O vosso prprio ser quer desaparecer: por isso desprezais o corpo! Porque no podeis

    criar j, superando-vos a vs mesmos.

    Por isso vos revoltais contra a vida e a terra. No olhar oblquo do vosso menosprezo

    transparece uma inveja inconsciente.

    Eu no sigo o vosso caminho, desprezadores do corpo! Vs, para mim no sois pontes

    que se encaminhem para o Super-homem!

    Assim falava Zaratustra.

    Fonte: Livro: Assim Falava Zaratustra, Nietzsche

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    O corpo como fio condutor: para alm dos dualismos

    1.1 CORPO E ALMA NA TRADIO METAFSICA E RELIGIOSA

    A noo do "corpo como fio condutor"(Am Leitfaden des Leibes) sintetiza a proposta

    nietzschiana de apresentar uma compreenso singular sobre a condio do homem,aps realizar uma crtica radical das teorias dualistas. 5Partindo do corpo como fio

    condutor, Nietzsche questiona, de forma categrica, a concepo tradicional do

    homem, presente nas filosofias e religies que sustentaram uma viso dicotmica da

    naturezahumana, separando-a em duas substncias heterogneas e inconciliveis: a

    alma e o corpo.

    Como apontei na introduo, Nietzsche questionar a noo de alma, entendida como

    a pretensa unidade interna do homem, vinculada a uma esfera transcendente: ao

    alm. Embora a tradio metafsica e religiosa estabelea uma distino entre ostermos alma (Seele) e esprito (Geist), Nietzsche nega que haja qualquer diferena

    entre ambas as noes; essas so apenas construtos conceituais que aludem a uma

    suposta identidade do homem. O autor contundente ao contestar todo e qualquer

    conceito que sustente essa suposta substancialidade interna no homem. Assim,

    diversos termos - no s alma e esprito so questionados: razo, conscincia, eu

    so interpretados como "fices inutilizveis". Nesse sentido, o corpo constitui-se no

    fio condutor mais confivel para afastar-se das concepes idealistas sobre o homem.

    Neste captulo, abordarei essa crtica aos dualismos, cuja estratgia principal ser

    realizar um questionamento radical das posturas que, conforme a tica nietzschiana,deturpam a compreenso do homem.

    O dualismo metafsico que sustenta a ciso entre "mundo verdadeiro" e "mundo

    aparente" com a conseqente diviso do homem em alma-corpo encontra uma

    primeira formulao em antigas concepes gregas. Essa perspectiva dicotmica teve

    uma vigncia milenar j que foi reformulada, com diversas variantes, ao longo do

    pensamento ocidental.6O objetivo desse trabalho no focalizar de forma detalhada

    essas concepes, portanto me restringirei a esclarecer especificamente a posio de

    Nietzsche sobre duas verses relevantes do dualismo, isto , analisarei exclusivamentesuas crticas que, em geral, vm contestar duas linhas do pensamento dicotmico: o

    pla- tonismo e o cristianismo.7

    5 O corpo entendido como fio condutor interpretativo um conceito central na teoria nietzschiana: ocorpo o ponto de partida para a compreenso do homem e das demais questes filosficas. Opondo- seradicalmente s posturas idealistas, como a de Descartes, que considera a "clareza e distino" daconscincia como uma prioridade cognoscitiva, Nietzsche, ao contrrio, afirma que o corpo umfenmeno muito mais prodigioso, que permite observaes mais exatas. A crena no corpo est bemmelhor estabelecida que a crena no esprito.6J apontei, na introduo, que o dualismo antropolgico surge com as doutrinas msticas rfico-

    pitagricas e continuado, num plano propriamente conceituai e filosfico, pelo platonismo.7O dualismo metafsico tem uma formulao inicial na Grcia, com a teoria dos dois mundosatribuda aParmnides (CARNEIRO LEO, 1991). Para Nietzsche, no entanto, o dualismo, como doutrina acabada

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    O dualismo sustenta a alteridade corporal:8nele, o corpo considerado o "outro" do

    homem, o que no faz parte de sua "natureza". 9Os aspectos orgnicos seriam algo

    alheio quilo genuinamente humano, j a alma seria o prprio, aquilo que define a

    condio do homem. Na concepo platnica, por exemplo, o corpo algo transitrio,

    aleatrio, at mesmo pode ser considerado um empecilho, uma dificuldade, umapriso que se h de suportar at a libertao da alma; libertao que o homem

    alcanaria depois da vida terrena, num alm perfeito, eterno e imutvel.

    O conceito de alma, capital nas concepes dualistas que a identificam com a pretensa

    identidade do homem, severamente criticado por Nietzsche.

    A radicalidade de sua crtica visa contestar no s a dicotomia alma-corpo, mas a

    existncia de substncias. Nietzsche questiona a idia de substncia ou coisa, baseada

    na suposta estabilidade e identidade daconscincia,daalma ou doeu.Todas essas

    noes se eqivalem ao sustentarem que haveria um substrato interno no homem: osseus pensamentos, sentimentos, volies etc., para alm de qualquer mudana no

    tempo, procederiam de um ncleo subjetivo estvel, de uma identidade subjetiva.

    Conforme aponta Nietzsche, em uma anlise relevante deO crepsculo dos dolos,a

    continuidade dos fenmenos subjetivos levou a acreditar na existncia de um

    substrato permanente e supratemporal no homem. Posteriormente, esta fico da

    suposta unidade interna foi transferida, por analogia, aos processos exteriores, in-

    ventando-se a coisa, a substncia: "Esse fetichismo v por toda parte agentes e aes;

    ele cr na vontade enquanto causa em geral; ele cr no 'Eu', no Eu enquanto ser, no Eu

    enquanto substncia, eprojetaessa crena no Eu-subs- tncia para todas as coisas."10

    Diante do dualismo corpo-alma, sustentado por diversas concepes metafsicas e

    teolgicas ocidentais, Nietzsche prope uma perspectiva radicalmente diferente pela

    conceitualmente, remonta ao pensamento de Plato. Lembro que o autor, ao focalizar o dualismo, alm decriticar a teoria de Plato, questiona principalmente a tradio religiosa judaico-crist por ter radicalizadoa dicotomia corpo-alma, cerceando todas as manifestaes corporais. As crticas a essa tradio religiosa

    permeiam todo o pensamento nietzschiano. Na fase final de sua obra, dois livros se destacam pela suaradicalidade no questionamento das principais concepes religiosas da civilizao ocidental:Genealogiada moraleO anticristo.8Nesta nota, apenas com o objetivo de oferecer uma sntese ilustrativa da postura questionada, apresentoum pargrafo que esclarece de forma eloqente a alteridade corporal, sustentada por Plato. EmAkebades, a alma considerada como a caracterstica propriamente humana, enquanto o corpo simplesmente um "instrumento" que no faz parte da "natureza" do homem: "SCRATES: Emconseqncia, o homem distinto de seu corpo? [...] Que , pois o homem? [...] Tu sabes, em todo caso,que quem se serve do seu corpo. [...] Mas quem se serve dele fazendo-se obedecer [...] Ento,conclumos que nem o corpo nem o todo so alguma coisa, necessrio inferir que o homem a alma".(PLATO, 1966, 128 d-130 b-c, pp. 262-3).9Descartes, na Modernidade, apresenta uma outra verso da alteridade corporal com sua doutrina dasduas substncias,na qual o corpo est ligado extenso,res extensa, e no se diferencia em nada dosdemais corpos do mundo, enquanto a alma a coisa pensante, res cogitampropriamente constitutiva dohomem: "Eu era uma substncia cuja essncia ou natureza reside unicamente em pensar e que, paraexistir, no necessita de lugar algum nem depende de nada material, de modo que eu, isto , a alma, pelaqual sou o que sou, totalmente diversa do corpo." (DESCARTES, 1982, IV, p. 62).10 Cl, A "razo" na filosofia, 5. A crtica a todos os conceitos substanciais ser aprofundada noCaptulo II, quando abordarei o questionamento nietzschiano a toda e qualquer compreenso substancialdo corpo.

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    qual o corpo, outrora depreciado, exaltado como constitutivo danaturezahumana.

    Assim, o corpo deixa de ser o seu "outro" para tornar-se o prprio, o seu trao

    distintivo, o fio condutor para a rein- terpretao do homem. 11 Ao adotar o corpo

    como fio condutor, Nietzsche questiona diversos conceitos dicotmicos da tradio

    dualista, tais como alm-mundo, Deus-Natureza, alma-corpo. Ele assume uma atitudeiconoclasta, adotando muitas vezes um estilo categrico e demolidor, para contestar

    noes tradicionalmente aclamadas como alma, esprito, razo, conscincia entre

    outras. Ao longo de sua obra, essas noes fundamentais nas posturas dualistas sero

    consideradas como simples "fices", "ideais", "fantasias". Essas noes ideais so

    geradas pelo homem que pretende estar vinculado a uma ordem transcendente e, por

    isso, acredita-se destinado a superar a contingncia do mundo e a imperfeio do

    corpo. Para aprofundar essas crticas das posturas dualistas analisarei a seguir a

    metodologia nietz- schiana baseada no guia corporal.

    1.2O MTODO NIETZSCHIANO BASEADO NO GUIA CORPORAL

    A reinterpretao nietzschiana do homem, baseada no guia corporal, adota como uma

    das suas principais estratgias a crtica de conceitos e valores que foram essenciais

    para a civilizao ocidental. O autor visa questionar e desmistificar os parmetros que,

    durante sculos, tiveram fundamental importncia para a humanidade. Esses valores

    depreciaram o corpo e a terra, exaltando noes ideais ancoradas em um suposto

    alm-mundo, e na crena em uma pretensa alma de origem transcendente.

    Nietzsche caracteriza sua tarefa crtica como um "filosofar s marteladas", para utilizaruma singular expresso que ele cunha emCrepsculo dos dolos.Nesse livro, o autor

    define o labor do seu "martelo" iconoclasta como a tarefa de auscultar dolos para

    detectar sua inconsistncia, seu "som oco": "Uma outra convalescena, que sob certas

    circunstncias para mim ainda mais desejvel, consiste emauscultar os dolos...H

    que se colocar aqui ao menos uma vez questes com o martelo, e, talvez, escutar

    como resposta aquele clebre som oco, que fala de vsceras intumescidas [...]."12

    Ao mesmo tempo reveladora e demolidora essa crtica adota o corpo como fio

    condutor. A esse "filosofar com o martelo" cabe questionar as teorias e instituiesconsideradas "doenas corporais" e "mal-entendidos" surgidos de "ms-formaes"

    fsicas, tanto de "indivduos quanto de classes inteiras", que guiaram at os nossos dias

    a histria do pensamento ocidental.13Nietzsche se perguntou, emA gaia cincia, se a

    prpria filosofia, mesmo nas "orgulhosas especulaes" da metafsica, no seria mais

    11 Emprego o termo "natureza", "humanidade" destacados, j que, segundo a crtica nietzschiana existncia de substncias ou coisas, no possvel falar de "identidades" ou "naturezas". Esses e outros

    termos sero usados de forma provisria at esclarecermos o que Nietzsche entende por "homem".12 Cf. Cl, Prefcio.13 GC, Prefcio, 2.

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    do que um produto de impulsos mesquinhos, de interessadas necessidades corporais,

    de sintomas fisiolgicos doentios, de tendncias orgnicas mrbidas.14

    O mtodo do guia corporal, tomado como chave para a compreenso dos conceitos

    supremos que guiaram a humanidade ainda no desenvolvido nos primeiros

    escritos de Nietzsche comea a se consolidar a partir da elaborao de Humano,

    demasiado humano e Aurora e, posteriormente, em A gaia cinciaTal primazia

    metodolgica torna-se cada vez mais central e explcita nessa etapa, razo pela qual

    privilegiarei nesta abordagem, os escritos redigidos aps essa poca.15E importante

    salientar que a frmula de corpo como fio condutor data de 1881, quando Nietzsche,

    aps a leitura do Roux, adota a interpretao desse bilogo, sustentando que todas as

    funes orgnicas decorrem de uma luta interna. Conforme essa teoria, todos os

    processos corporais estariam guiados por um confronto de foras, por uma disputa

    entre clulas e rgos, essencial no fenmeno vital.Na fase que se inicia comHumano, demasiado humano,seguida deAuroraeA gaia

    cincia, aprofunda-se o aspecto crtico do mtodo teraputico nietzschiano. Esse

    mtodo permitir que o autor questione os prprios pilares da civilizao ocidental:

    moral, metafsica, religio, arte etc. A teraputica nietzschiana pretende detectar as

    doenas que originaram conceitos basilares do Ocidente. Nessa obra e em A gaia

    cincia apresentam-se, respectivamente, duas metforas complementares, a de

    Trophonius, o "ser subterrneo", e a do mdico da civilizao. Essas imagens, que

    aludem ao mtodo nietzschiano direcionado a acometer a teraputica da civilizao,

    apontam para uma mesma estratgia metodolgica: a adoo do corpo como fio con-

    dutor interpretativo para questionar e demolir dolos da tradio metafsica e religiosa

    ocidental.

    Trophonius, deAurora, o personagem que desce s prprias profundezas para cavar,

    "como uma toupeira", o "subsolo", a face obscura do homem. Atravs desse

    personagem, Nietzsche afirma que os filsofos que desejam desvendar a genuna

    profundidade do ser humano, no a pretensa profundidade ideal da conscincia (como

    mostrou Foucault num comentrio relevante),16devem empreender um mergulho na

    14Ibid." Esses textos so da segunda etapa do pensamento nietzschiano, caracterizado como "cientfico" ou"positivista", conforme os critrios classificatrios de muitos intrpretes. Lembremos que diversoscomentaristas do pensamento de Nietzsche dividem sua obra em trs perodos: o primeiro ainda sob15Nos escritos desta poca, Nietzsche interpreta a dinmica corporal como sendo o resultado de instintosem confronto. Os instintos constituem, praticamente, a "gramtica" nietzschiana a partir da qual sedesenvolve toda a sua filosofia. Nesse sentido, Assoun (1984, p. 77) chega a denomin-la "uma filosofiados instintos". Neste momento no me deterei na anlise dos instintos (Triebe), pois irei abord-los no

    prximo captulo; portanto, utilizarei o termo de forma geral e provisria, entendido comofora corporal.16Foucault (1987) julga que a verdadeiraprofundidadeque Nietzsche tenta atingir no aquela que umatradio filosfica identifica com a inferioridade, com a conscincia, com o pensamento forjado nasuposta intimidade de um sujeito; ao contrrio, trata-se de um movimento de interpretao que se realizanum registro deexterioridade: "H em Nietzsche uma crtica da profundidade ideal, da profundidade daconscincia, que denuncia como um invento de filsofos; [...] necessrio que o intrprete desa, que seconverta, como disse Nietzsche, no 'bom escavador dos baixos fundos'." (pp. 18-19).

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    dimenso obscura do ser humano, devem descer aos seus impulsos recnditos e

    esquecidos:

    Neste livro se acha um "ser subterrneo" a trabalhar, um ser que perfura, que escava,

    que solapa. Ele visto - pressupondo que se tenha vista para esse trabalho na profun-

    deza - lentamente avanando, cauteloso, e suavemente implacvel, sem muito revelar

    da aflio causada pela demorada privao de luz e ar [...].17

    A tarefa do genuno filsofo das "profundezas" consiste em tentar descer s

    motivaes instintivas e inconscientes para depois "retornar superfcie, feito

    novamente homem", e atingir uma nova claridade: uma "nova aurora". Tal descida aos

    supostos baixos estratos do homem permitir a crtica, desde um ponto de vista

    fisiolgico, das iluses ou ideais sustentados longamente pelos mais diversos

    indivduos, raas e povos. Trata-se de um trabalho de "toupeira" a ser realizado por

    aqueles que Nietzsche designa como os pensadores "fundamentais", que penetram"at o fundo das coisas".18

    No prlogo deA gaia cincia escrito em 1886, alguns anos aps a publicao inicial

    dessa obra , Nietzsche vai progredir na consolidao da sua nova metodologia

    filosfica ancorada no corpo como fio condutor inter- pretativo - que leva a

    auscultar os impulsos corporais mais recnditos que participam na produo dos

    pensamentos. Nesse prlogo, ele desenvolve de forma a lapidar a imagem do filsofo

    como "mdico da cultura" ou "mdico da civilizao" (Der Philosoph ais Arzt der

    Kultur),19 cuja tarefa consiste na crtica dos monumentos culturais do Ocidente: afilosofia, a cincia, a religio, a arte, a moral etc. Esse terapeuta da civilizao

    desvenda a procedncia corporal dos conceitos relevantes da humanidade. Ali onde se

    discute a "verdade", ele encontra motivos mais tangveis. Nas construes mais elabo-

    17 A, prefcio, 1.18Ibid., 446. importante esclarecer que os termos empregados emAurorasobre a tarefa do "fil- sofo-toupeira" de penetrar no "fundo das coisas", de auscultar as motivaes profundas do corpo, dedesvendar o mundo subterrneo dos instintos, no implica afirmar que haveria um corposubstancial uma

    unidadeorgnica entendida como causa, natureza ouprincpio.Tal concepo no faria mais do querepetir a interpretao schopenhaueriana de que haveria um em si, uma essncia da realidade. ParaNietzsche, o corpo um fenmeno multplice, um contnuo jogo de foras que fica longe da represen-tao consciente. Por isso, pode ser denominado "mundo subterrneo" (Unterwelt), como aquilo que estoculto aos pensamentos, que fica inicialmente afastado da conscincia. No se trata de causa ou

    princpio, mas, como esclarece Blondel (1985, pp. 285-286), de uminvisvel,de algo que no pode servisto ou enxergado na representao: "O corpo para ele 'um mundo subterrneo' (Unterwelt) de rgosa nosso servio (dienstbar). [...] oUnterwelt, o mundo subterrneo das pulses inconscientes, menosuma causa ou uma natureza do que um invisvel [...]." Na perspectiva de Nietzsche, o corpo no deve serentendido como causa, fundamento, princpio ou substncia. Procurarei mostrar que ele, longe deconstituir-se numa unidade substantiva, um nome para o jogo plural de foras, para a dinmica deinstintos em permanente mudana.

    19 Wotling (1995) assinala que a imagem do "mdico da cultura", que caracteriza a tarefa dofilsofo, conforme a proposta metodolgica nietzschiana, j se encontra na primeira fase de sua obra,

    notadamente em anotaes do inverno de 1872-3: "Desde os seus primeiros textos, o projeto filosfico determinado nitidamente: efetivamente, nas notas do inverno 1872-3 ele define pela primeira vez a tarefaespecfica do filsofo atravs do modelo mdico:'Ofilsofo como mdico da civilizao." (pp. 111-112).

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    radas das diversas filosofias ecoam sintomas fisiolgicos, manifestam-se estados vitais

    dos diversos indivduos e povos:

    Eu espero ainda que ummdico filsofo, no sentido excepcional do termo - algum

    que persiga o problema da sade geral de povo, uma poca, de uma raa, da huma-

    nidade -, tenha futuramente a coragem de levar ao cmulo a minha suspeita e de ar-

    riscar a seguinte afirmao: em todo o filosofar, at o momento, a questo no foi

    absolutamente a "verdade", mas algo diferente, como sade, futuro, poder, cresci-

    mento, vida...'7

    A metfora do mdico-filsofo alude tarefa teraputica daqueles pensadores que se

    propem a esclarecer a relao entre as ideias e as foras corporais que as originaram.

    No pargrafo citado de A gaia cincia, Nietzsche apresenta de forma eloqente a

    metfora de mdico-filsofo, que reaparece ao longo de toda sua obra, aps a

    publicao deHumano, demasiado humano.Assim, a encontramos j delineada, nasegunda parte de Humano..., "O andarilho e sua sombra", onde se assinala a

    necessidade de um mdico que empregue a "farmacologia" para realizar "o

    tratamento dos espritos", apoiando-se em "uma geografia mdica" para "descobrir

    quais degeneraes e enfermidades cada regio da Terra ocasiona", transladando os

    indivduos aos lugares mais propcios "at que sejam dominadas as doenas fsicas

    hereditrias", quando a Terra inteira ser "um conjunto de estaes de sade". 20A

    noo de terapeuta da cultura, exposta integralmente em A gaia cincia, reaparece

    em outros textos publicados. EmGenealogia da moraldestaca-se que toda tbua de

    valor, todo "tu deves", "necessita primeiro uma clarifica- o e interpretao

    fisiolgica,ainda mais que psicolgica; e cada uma delas aguarda uma crtica por parte

    da cincia mdica."21Nos ltimos escritos de Nietzsche so abundantes as referncias

    metfora em questo, que pode ser encontrada emO anticristo,quando denuncia

    os aspectos doentios da piedade crist, surgida de instintos debilitados, sugerindo sua

    extirpao: "Ser mdiconisso,ser implacvelnisso, nissomanejar o bisturi [...]."22J

    Ecce homo apresenta a imagem do fisiologista e cirurgio que deve realizar a

    "extirpao da parte degenerada",23 que est na origem de todas as doenas

    provocadas pelo cristianismo.Os terapeutas da cultura, conforme a interpretao nietzschiana analisam os estados

    corporais que produzem as mais diversas ideias. Em todas as expresses culturais, at

    nas consideradas mais elevadas, manifestam-se motivaes fisiolgicas; nos processos

    considerados puramente intelectuais possvel detectar a presena de impulsos

    orgnicos. Por isso, esse terapeuta da cultura, mais do que discutir o valor lgico ou

    20HdH, II, "O andarilho e sua sombra", 188.21

    GM, I, 17.22AC, 7.23EH, Aurora, 2.

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    formal de ideias que lhe apresentam, deve interpret-las comosintomasde sade ou

    doena daqueles que as conceberam: "[...] desde que se uma pessoa, tem-se

    necessariamente a filosofia de sua pessoa: mas h aqui uma notvel diferena. Num

    homem so as deficincias que filosofam, no outro as riquezas e foras. 24

    Nos processos habitualmente considerados espirituais ou puramente intelectuais

    operam foras corporais. Por detrs desses, produzindo toda idealidade e objetividade,

    agem desconhecidas foras instintivas. Neste sentido, Nietzsche desfere um duro

    golpe s posturas idealistas que esquecem ou negam deliberadamente a

    participao do corpo na gestao das ideias. Lembremos, agora, outras ponderaes

    importantes do prlogo deA gaia cincia,que apresentei j na introduo, quando o

    autor indaga se a filosofia no seria apenas uma interpretao, um mal-entendido do

    corpo:

    O inconsciente disfarce de necessidades fisiolgicas sob o manto da objetividade, daideia, da pura espiritualidade, vai to longe que assusta e frequentemente me per-

    guntei se at hoje a filosofia, de modo geral, no teria sido apenas uma interpretao

    do corpo e umam-compreensodo corpo.

    Vemos surgir, assim, conforme a tica nietzschiana, a imagem do filsofo que "pensa

    com todo o seu ser", pois no possvel uma hipottica supresso dos instintos, dos

    sentimentos, no ato de filosofar. Ao contrrio, a situao concreta de cada pensador -

    seu estado de sade, seu estado corporal inseparvel de sua filosofia, da

    produo de todas as suas ideias. No possvel isolar o homem concreto e o fruto doseu pensamento, j que todas as vicissitudes pessoais, todas as peripcias vitais

    transformam-se em ideias, todas as suas vivncias participam na gestao da sua

    filosofia. Desse modo, o filsofo produz seus pensamentos integrando-os na totalidade

    de sua experincia, soma de pequenos e grandes acontecimentos, mirade de afetos,

    sensaes e estados de prazer e desprazer:

    No somos batrquios pensantes, no somos aparelhos de objetivar e registrar, de en-

    tranhas congeladas temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a

    nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, o corao, fogo, prazer, paixo,tormento, conscincia, destino e fatalidade que h em ns.25

    Nietzsche, ao longo de sua obra, fiel sua proposta metodolgica de adotar o corpo

    como fio condutor, tentou articular tudo aquilo que vivia com os seus pensamentos.

    Um exemplo acabado dessa proposta de integrar o que h de mais pessoal tarefa

    propriamente filosfica encontra-se emEcce homo,sua autobiografia, seu ltimo livro

    escrito em 1888, quando ele realiza uma viso retrospectiva do seu percurso filosfico,

    valorizando detalhes da vida cotidiana que seriam considerados irrelevantes em uma

    24GC, Prefcio, 2.25GC, Prefcio, 3.

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    concepo tradicional das ideias: "[...] essas pequenas coisas alimentao, lugar, cli-

    ma, distraes, toda a casustica do egosmo - so inconcebivelmente mais

    importantes do que tudo o que at agora tomou-se como importante."26

    Nesse depoimento exemplar, vemos uma aplicao especfica da metodologia doguia

    corporal\ cujo objetivo detectar as genunas motivaes dos atos humanos;

    motivaes que so de origem orgnica, isto , decorrentes de processos instintivos.

    Para Nietzsche, o corpo um fio condutor que permite descer s profundezas do

    homem para detectar os impulsos inconscientes que esto na base de todos os

    pensamentos. Conforme essa metodologia, o mdico-filsofo tentar diagnosticar as

    motivaes corporais ou, especificamente, as doenas que geraram a maioria das

    filosofias e religies tradicionais. Os critrios corporais, sade ou doena, permitem

    avaliar todas as atividades do homem: cada uma delas um sintoma de fora ou de

    fraqueza, de plenitude ou diminuio de foras. Seguindo esse mtodo, vou analisaragora de que forma Nietzsche ausculta as patologias que deram origem s crenas

    metafsicas e religiosas.

    Vale lembrar que Nietzsche, j desde a poca da elaborao de Humano, demasiado

    humano, em 1876-77, e posteriormente com Aurora e A gaia cincia, comea a

    esboar um mtodo de interpretao que procura detectar a origem corporal de todos

    os conceitos da tradio, de todas as ideias do homem. As imagens do filsofo

    toupeira e de mdico-filsofo destacam a necessidade de auscultar os impulsos

    inconscientes e os estados de sade que concorrem na produo dos mais diversos

    pensamentos. Em 1881, o autor dir de forma taxativa que o corpo deve ser o fio

    condutor para refletir sobre todas as questes de filosofia. Nas suas diversas obras,

    sempre analisou os pensamentos desde a tica do corpo, tentando delimitar se esses

    eram uma expresso de sade ou, ao contrrio, uma manifestao de doena. Em

    1887, com a publicao de Genealogia da moral,essa proposta metodolgica sofre

    uma inflexo particular, um desdobramento singular. O autor sublinha a necessidade

    de empregar um mtodo genealgico para refletir sobre a procedncia das diversas

    morais, para estabelecer o valor dos mltiplos valores que predominaram na

    civilizao ocidental. Ele prope uma crtica dos valores morais e sustenta anecessidade de determinar"de onde se originamverdadeiramente nosso bem e nosso

    mal".27

    Ora, o mtodo genealgico, focado na avaliao dos valores e das morais tradicionais,

    continua e aprofunda um modelo interpretativo que pretende desvendar as

    motivaes corporais e os estados de sade que deram lugar aos diversos construtos

    culturais. Na produo desses valores e morais manifestam-se estados de sade,

    condies vitais dos indivduos e povos. Por isso, importante indagar:

    26EH, Por que sou to inteligente, 10.27Cf. GM, Prlogo, 2.

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    [...] sob que condies o homem inventou para si os juzos de valor "bem" e "mal"? e

    que valor tm eles? Obstruram ou promoveram at agora o crescimento do homem?

    So indcio de misria, empobrecimento, degenerao da vida? Ou, ao contrrio,

    revela-se neles a plenitude, a fora, a vontade de vida, sua coragem, sua certeza, seu

    futuro?28

    A resposta a essas indagaes pode encontrar-se atravs da anlise das condies e

    circunstncias em que esses valores foram produzidos. E necessrio auscultar quais as

    condies vitais que determinaram essas avaliaes, quais os estados de sade dos

    povos que criaram esses valores:

    [...] necessrio um conhecimento das condies e circunstncias nas quais nasceram,

    sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequncia, como

    sintoma, mscara, tartufice, doena, mal-entendido; mas tambm moral como causa,

    medicamento, estimulante, inibio, veneno), um conhecimento tal como at hojenunca existiu nem foi desejado.29

    O genealogista, conforme aponta Nietzsche, no deve considerar o valor dos valores

    como algo dado, como algo j estabelecido. Nas concepes metafsicas e teolgicas,

    esses parmetros foram considerados intemporais, forjados alm do tempo e do

    espao. Na tradio metafsica oriunda do platonismo e na concepo religiosa

    judaico-crist, os valores foram produzidos alm da histria, procedem de um mbito

    transcendente, portanto, so incondicionados, eternos, imutveis. Mas cabe

    perguntar:

    E se no "bom" houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma seduo, um

    narctico, mediante o qual o presente vivesse como ques expensas do futuro? De

    modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcanasse o supremo

    brilho e potnciado tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo

    dos perigos?30''

    Nietzsche sustenta que podemos avaliar os valores e as diversas morais a partir de sua

    relao com a vida, checando quais as condies vitais que eles suscitam. E necessrio

    esclarecer se promovem a sade e a fora ou, ao contrrio, levam os indivduos e os

    povos fraqueza e doena. Por isso, ser necessrio indagar nas circunstncias em

    que eles aparecem. importante que o genealogista realize uma

    [...] efetiva histria da moral, prevenindo-o a tempo contra essas hipteses inglesas

    que se perdem no vazio. Pois bvio que uma outra cor deve ser mais importante

    28Ibid., 3.29Ibid., 6.30GM, Prlogo.

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    para um genealogista da moral:o cinza, isto , a coisa documentada, o efetivamente

    constatvel, o realmente havido [...].31

    H uma tradio que se perde em hipteses azuis, isto , desconhece os fatores e

    circunstncias sociais e histricas em que surgem os valores, cunhando explicaes

    que ignoram as condies vitais de sua produo (hipteses azuis,como da tradio

    transcendente, celestial, desligada dos fatores terrestres). A genealogia, por sua vez,

    cinza.,pois visa a determinar os fatores concretos, documentados, constatveis que

    foram responsveis pela atribuio da caracterstica de boa ou m a uma ao

    determinada. Essa indagao procura detectar quais as motivaes corporais das

    diversas avaliaes: uma ao ser considerada boa porque, em um determinado

    povo, fomenta a intensificao das condies vitais, o aprimoramento da sade, das

    foras.

    Vemos que na proposta genealgica, que tenciona avaliar os valores pelo fulcro davida, o corpo sempre opera como um fio condutor interpretativo. Nesse aspecto, h

    uma continuidade no mtodo nietzschiano. A tarefa do genealogista se articula com a

    do fisilogo e do mdico: " igualmente necessrio [...] fazer com que fisilogos e

    mdicos se interessem por esse problema (o do valor das valoraes at agora

    existentes) [...]."32Nessa abordagem, devem contribuir outras reas, como a cincia da

    linguagem, a psicologia e "Todas as cincias [...]" para resolver "o problema do valor

    [...]".33

    O mtodo genealgico, desenvolvido claramente em 1887 com a publicao deGenealogia da moral, aprofunda a estratgia interpretativa nietzschiana - que

    questiona todos os dolos do pensamento ocidental - de analisar as ideias conforme a

    sua origem orgnica, considerando-as sintomas de fora ou de sade. Assim, desloca-

    se a discusso dessas ideias de um plano ideal para focalizar o estado vital daquele que

    enuncia o pensamento. Integra-se o filsofo com o produto do seu pensamento. As

    ideias e os valores so oriundos de experincias vividas, de corpos que transfiguram a

    dor ou a alegria em conceitos. Experimentao, doena e sade so conceitos que

    indicam o escopo essencial daquilo que Nietzsche considerou mais singular - na

    contramo de toda a tradio idealista - na sua filosofia: tornar-se um mdico dacivilizao, capaz de diagnosticar e prognosticar quais os rumos do Ocidente, conforme

    os estados vitais que perpassavam suas ideias fundamentais. Para tal, ele sempre

    partiu da anlise dos seus prprios estados vividos, das suas prprias dores e doenas.

    Como aponta Montebello: "A experincia vivida e a experimentao sobre o corpo

    *' Ibid., 7. Quando Nietzsche alude a hipteses inglesas que se perdem no azul, est questionando osutilitaristas ingleses, como Spencer, que sustentavam que os valores procediam da utilidade. Para

    Nietzsche, essa hiptese azul- isto , transcendente, a-histrica - porque no esclarece as condieshistricas em que autilidade teria sido considerada como fator essencial para que uma ao seja con-

    siderada boa ou m.32GM, I Dissertao, 17.33Ibid., 17.

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    sofredor de Nietzsche vai situar-se no primeiro plano, e com eles, a figura do mdico-

    filsofo."34

    Esse comentarista destaca a ntima relao que h entre a tarefa do mdico-filsofo e

    a do genealogista. Nesse sentido, concorda com o que apontei anteriormente sobre a

    continuidade interpretativa desses procedimentos metodolgicos - "medicina da

    cultura" e "genealogia" - oriundos de etapas diversas da obra de Nietzsche, mas que

    coincidem na proposta de considerar o corpo como fio condutor para a anlise de

    todas as questes filosficas. Assim, preciso auscultar o corpo prprio para acometer

    as tarefas de genealogista e de mdico-filsofo. Montebello refora a ideia de que h

    uma sequncia interpretativa no mtodo corporal nietzschiano, no qual a experincia

    do prprio corpo, da prpria sade, da prpria doena, fundamental para avaliar,

    alm do estado de sade individual, a cultura como um todo: "A experimentao do

    corpo prprio do filsofo o eixo da genealogia. Em outras palavras, s o mdico-filsofo, ele mesmo doente, genealogista."35

    importante indagar, agora, a validade de um mtodo que parte do singular, do

    pessoal, para refletir sobre ideias, pensamentos - moral, religio, metafsica e outros -

    que teriam a pretenso de serem vlidas num mbito mais abrangente. O genealogista

    ou mdico-filsofo no ficaria restrito a uma mera anlise de suas prprias condies

    pessoais, subjetivas? A avaliao dos pensamentos a partir do corpo entendido como

    fio condutor no levaria a um psicologismo, a uma reduo das questes tericas, a

    avaliaes meramente individuais ou biogrficas? Tais questionamentos foram di-

    rigidos muitas vezes metodologia nietzschiana baseada no corpo como fio condutor.

    Nesse sentido, Fink tem sido um autor muito incisivo na crtica ao seu mtodo,

    chegando a sustentar que toda sua crtica tradio se reduz a questionamentos

    sofsticos ou psicologizantes:

    Nietzsche formula a sua filosofia por meio da psicologia, logo pela sofistica que lhe

    prpria. [...] Mas o modo particularcomoNietzsche trava este combate [contra a tra-

    dio filosfica] extremamente problemtico. Trata-se de um combate psicolgico.

    [...] A sua refinada, penetrante e prfida psicologia destri a tradio [...] ele no chega

    a vencer os seus opositores, no chega a triunfar da metafsica, antes os tornandosuspeitos [...].36

    Fink critica severamente o mtodo nietzschiano em que o corpo opera como um fio

    condutor interpretativo; esse comentarista questiona a tese nietzschiana que

    interpreta os pensamentos como sintomas, objetando que as categorias de

    fora/fraqueza, sade/doena possam ser aplicadas reflexo filosfica:

    34Montebello (2001a, p. 9).35Ibid., p. 10.36Fink (1983, pp. 49, 131-132).

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    A filosofia para elesintoma. V-a na tica da vida [...] como manifestao de uma

    certa tendncia da vida. [...] A sua filosofia [...]uma sofistica, porquanto faz da psi-

    cologia a instncia decisiva e esta opera com conceitos ambguos de fora e de fraque-

    za, de sade e de doena da vida.37

    As objees de Fink merecem ser levadas em conta. O mtodo nietzschiano, baseado

    no corpo como fio condutor e o mtodo genealgico, poderia ser contestado por

    apelar a argumentos inadequados para o esclarecimento da produo das ideias e dos

    valores. As categorias de sade e de doena, de fora e de fraqueza poderiam ser

    consideradas improcedentes, alheias a uma argumentao propriamente filosfica. A

    tradio sempre focalizou e privilegiou as questes da verdade e falsidade, a coerncia

    ou inconsistncia do pensamento. Nesse sentido, a compreenso das ideias como

    sintomasde determinados corpos pode ser julgada uma interpretao no justificada

    ou arbitrria. Como poderamos falar de sintomas, estados corporais de sade oudoenasem incorrer em conceptualizaes alheias filosofia, em argumentos carentes

    de sustentao no plano terico? Se os sintomas, a sade, a doena so prprios de

    um indivduo, de um homem singular, como poderamos aplicar essas noes a ideias

    que pretendem ter vigncia em um mbito que ultrapassa o individual, que aspiram a

    uma justificao supra-individual, que tencionam ser reconhecidas coletivamente?

    Nietzsche estava ciente de que ao analisar os sintomas de sade ou doena de um

    pensador determinado no se restringia a um mbito puramente individual ou

    subjetivo. Ele questiona filsofos como Scrates, Plato, Kant, dentre outros

    pensadores idealistas. Muitas vezes, o tom de suas crticas parece restringir-se apenas

    a denunciar problemas pessoais, a assinalar questes subjetivas ou psicolgicas dos

    filsofos que pretende questionar. Essas crticas poderiam ser levadas em conta como

    objees aos argumentos propriamente filosficos desses pensadores criticados?

    Lembremos, por exemplo, "O caso Scrates", de Crepsculo dos dolos, quando

    Nietzsche alude feiura de Scrates, a sua "baixa" procedncia, ao seu ressentimento

    etc. Essas caractersticas parecem determinar que o pensador ateniense - por esses

    motivos pessoais -decidiucriar a dialtica,decidiuerigir a Razo como salvadora, em

    detrimento dos instintos. Contudo, essa situao pessoal, conforme a interpretaonietzschiana, espelho, caixa de ressonncia, de foras mais amplas, de tendncias

    mais abrangentes. Scrates foi fundamentalmente o catalisador, o mdium de

    impulsos que ecoavam nesse momento na Grcia:

    [...] nem Scrates, nem seus "doentes" estavam livres para serem racionais. Ser racio-

    nal foide rigueur, foi o seultimoremdio. O fanatismo com o qual toda a reflexo

    grega se lana para a racionalidade trai uma situao desesperadora. Estava-se em

    risco, s se tinha uma escolha: ou perecer, ou serabsurdamente racional...11

    "Fink (1983, p. 131 e segs).

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    O sintoma que detectamos em um pensador, o estado fisiolgico que se revela atravs

    de suas ideias, manifesta um estado mais amplo de foras. No caso especfico de

    Scrates, ele se tornou exageradamente racional conforme a interpretao