apontamentos para uma pedagogia do ator a partir das práticas de jerzy grotowski
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Estudo crítico sobre a formação do ator em grupos e coletivos de atuação, a partir de parâmetros constantes da metodologia e da filosofia de trabalho de Jerzy Grotowski.TRANSCRIPT
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APONTAMENTOS PARA UMA PEDAGOGIA DO ATOR A PARTIR DAS PRÁTICAS
DE JERZY GROTOWSKI
Marcos Coletta1
Resumo
Estudo crítico sobre a formação do ator em grupos e coletivos de atuação, a partir de
parâmetros constantes da metodologia e da filosofia de trabalho de Jerzy Grotowski.
Palavras chaves: Teatro. Pedagogia teatral. Prática de grupo. Jerzy Grotowski. Diretor
pedagogo.
Resumen Estudio crítico sobre la formación de lo actor en grupos y colectivos, partiendo de los parámetros constantes en la metodología y de la filosofía de lo trabajo de Jerzy Grotowski. Palabras clave: Teatro, Práctica de grupo, Jerzy Grotowski, Diretor pedagogo
“No oriente, a transmissão não é interrompida. Não se costuma
pisar sobre o seu antecessor para se auto-afirmar. Também há o que dizem
os tibetanos: é preciso ultrapassar o seu mestre em um quinto, em vinte por
cento, senão a tradição se deteriora. Para mim, a questão da transmissão
hoje é fundamental”. Jerzy Grotowski 2
A pedagogia teatral e a preocupação com uma metodologia para a arte de ator
surgem junto ao nascimento do teatro moderno 3. O século XX acompanha a crise do
1 Licenciando em Teatro pela UFMG e bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) com a pesquisa “A pedagogia do ator a partir das práticas de Jerzy Grotowski”. Orientador: Prof. Dr. Fernando Antônio Mencarelli – EBA/UFMG 2. Entrevista concedida a Jean-Pierre Thibaudat e publicada no jornal Libération (Paris-França) em 26 de julho de 1995.
3. O teatro moderno surge das transformações e revoluções técnicas e estéticas ocorridas a partir das três últimas décadas do século XIX e
se estabelece durante todo o século XX. A partir da década de 1970, novos conceitos epocais e estéticos começam a surgir, como o ‘pós-
moderno’.
2
textocentrismo e do modelo do ator romântico 4, caracterizado por apoiar-se em seu talento
natural e em procedimentos tradicionais de interpretação. Quando a figura da “grande diva”
começa a ser questionada e o recém surgido “encenador” passa a negar o teatro vigente e a
coordenar todos os níveis de criação do espetáculo, inclusive a atuação, a técnica do ator se
torna alvo de estudos, experimentações e teorizações. Como ressalta Jean-Jacques Roubine:
Essa tomada do poder pelo encenador resultou extraordinariamente
favorável ao florescimento e à renovação da arte do ator, mesmo se colocou
em xeque, e acabou sem dúvida arruinando, o status do astro e da vedete. [...]
O século XX permitiu ao ator descobrir verdadeiramente a riqueza e a
variedade dos recursos e dos meios de que ele dispõe. (ROUBINE, 1998:170)
Ao longo da revolução teatral do século XX, muitos contribuíram para o
enriquecimento da arte de ator e do seu aprendizado: Stanislavski, Meyerhold, Brecht,
Grotowski, Barba, etc. Os chamados diretores pedagogos modernos se assemelham na
atitude de negar a representação tradicional e buscar novos caminhos para o ator dentro e
fora de cena. Com o passar do século, a pedagogia teatral passa a envolver não apenas
técnicas e conteúdos a serem aprendidos, mas também todo um comportamento que
perpassa questões filosóficas, ideológicas, pessoais e culturais. Por isso, é impossível, no
teatro moderno, dissociar o desenvolvimento técnico do ator de seu desenvolvimento
humano, principalmente quando nos referimos à prática dos grupos e comunidades teatrais.
A grande revolução técnica e estética do teatro no ocidente não se aplica à cultura
oriental, que há muito cultiva formas tradicionais bem definidas e estruturadas para o
ensino das artes. Na Índia, a criança é acolhida pelo seu guru, “responsável por fazer nascer
o ser artístico do aluno e dar educação às suas habilidades, assumindo o papel de segundo
pai” (BARBA, SAVARESE, 1995:33). Não por acaso, muitos destes diretores pedagogos
foram buscar influências no oriente. Sobre o interesse dado a partir da modernidade ao
ensino teatral, o que resultou na criação de inúmeras escolas de arte dramática, Eugenio
Barba (1995: 26) afirma que naquele momento “as escolas se iniciam para renovar o teatro,
para colocar os alicerces do futuro e para ampliar as perspectivas do futuro do teatro”. 4. O modelo do ator romântico é caracterizado por uma interpretação calcada sobre valores subjetivos como o gênio, o talento, a
inspiração e a emoção, sendo inexistente ou pouco clara a sua técnica de atuação.
3
Este artigo toma como base a figura de Jerzy Grotowski (1933-1999), teatrólogo
polonês criador do Teatro Pobre, para desenvolver estudo e reflexão sobre seu trabalho e
sua influência essa pedagogia do ator.
A trajetória artística do mestre polonês junto aos seus parceiros é densa, diversa e,
ainda hoje, atravessada por equívocos interpretativos. Isso se dá principalmente em
tentativas de estudo generalizantes de Grotowski, como se o seu trabalho fosse linear,
estável e coeso. Porém, sua trajetória perpassa diferentes áreas de atuação, deslocando-se
por diversos momentos e sendo frequentemente revista e autocriticada pelo próprio artista.
A poética do Teatro Pobre, elaborada por ele, enfatiza a importância do trabalho do
ator, colocando em segundo plano ou mesmo excluindo outros recursos técnicos e estéticos
que não estivessem sob domínio e manipulação dos atores. O foco no ator se configura para
Grotowski de maneira cada vez mais intensa, mesmo depois que abandona a produção de
espetáculos.
O presente artigo percorre a trajetória do mestre polonês, delimitando suas diversas
fases e analisando a evolução de seu pensamento sobre o trabalho atoral, na tentativa de
identificar apontamentos para uma pedagogia do ator.
A trajetória
Jerzy Grotowski, um dos principais nomes da revolução teatral do século XX,
exerce grande influência em encenadores, professores e grupos de teatro em todo o mundo.
Seu trabalho norteou as noções de grupo e comunidade teatral e contribuiu para que o teatro
deixasse de possuir um fim em si mesmo, transformando-se em instrumento eficaz de
conhecimento: “actor era simplemente otro modo de decir ser humano” (GROTOWSKI
apud DE MARINIS, 2004: 29)5.
Grotowski iniciou sua carreira na década de 1950. Ao longo de quarenta anos,
elaborou sua ideia sobre teatro, em seu constante processo de revisão e autocrítica. Segundo
DE MARINIS (2004), é possível dividir sua trajetória profissional em cinco fases distintas:
1957 a 1961 – "Teatro de Representação": Grotowski funda o "Teatro das 13 Filas"
e experimenta suas primeiras direções a partir da desconstrução de textos conhecidos. Há
5 “ator era simplesmente outro modo de dizer ser humano” – Tradução Livre.
4
em seu trabalho experimentações estéticas diversas, passando por influências que vão de
Stanislavski e Meyerhold até o Katakhali. A ênfase no trabalho específico do ator ainda não
era um foco claro para Grotowski. Segundo LIMA (2008) “o trabalho do ator era visto
como parte da mise en scène realizada, ela sim, com o intuito de estabelecer novos
parâmetros para a ação teatral e uma nova relação com o espectador.” (p.68)
1962 a 1969 – “Teatro Laboratório”: sua pesquisa e seu nome se consolidam na
Europa e em outros países. A poética do Teatro Pobre se torna conhecida mundialmente. O
livro “Em busca de um teatro pobre” é editado em 1968. A investigação do ator ganha
centralidade na pesquisa do TL, materializando-se em encenações importantes como
"Akropolis” (1962), "O Príncipe Constante" (1965), e “Apocalypsis cum figuris” (1969).
1970 a 1979 – “Parateatral”: período marcado pela interrupção da atividade teatral
propriamente dita para dedicar-se a investigações referentes à intercomunicação entre as
pessoas, sendo o “encontro”, a reunião, o foco central. Grotowski promove grandes
encontros com centenas de pessoas, mas posteriormente critica o “Parateatro”, alegando
que esta prática acabou se transformando numa “sopa emotiva entre as pessoas”.
1980 a 1986 – “Teatro das Fontes”: Grotowski se propõe a recuperar interesses
antropológicos e culturais, dedicando-se ao homem e às suas técnicas de conduta,
especialmente corporais. Trabalhando com um grupo multi-étnico, empenhou-se em
diversas expedições investigativas, perseguindo culturas em todo o mundo. As informações
sobre suas pesquisas se tornam cada vez mais escassas.
1986 a 1999 – O encenador Peter Brook, denominará essa fase como “arte como
veículo”, quando Grotowski dizia já estar na etapa final de sua pesquisa. A “arte como
veículo” trabalhava exclusivamente com o ‘atuante’, não mais chamado de ‘ator’ e buscava
o que Grotowski denominava “verticalidade”. Um treinamento concentrado no rigor, no
detalhe e na precisão criava estruturas chamadas “Actions”. Embora não destinado a
espectadores, este trabalho era aberto de tempos em tempos para “testemunhas”.
No texto “Da Companhia Teatral à Arte Como Veículo” (2007), Grotowski revisita
toda a sua trajetória e ajuda a esclarecer suas mudanças de rumo ao longo da carreira:
5
Normalmente em teatro (vale dizer no teatro dos espetáculos, na arte como
apresentação) trabalha-se sobre a visão que aparece na percepção do
espectador [...] Na outra extremidade da longa cadeia das performing arts
está a arte como veículo, que não procura criar a montagem na percepção dos
espectadores, mas nos artistas que agem. (GROTOWSKI, 2007: 230)
Grotowski considerava suas diferentes fases elos de uma longa cadeia, todas
igualmente necessárias à existência do teatro. Ressaltar as diferentes fases do artista
polonês contribui para a seguinte observação: Jerzy Grotowski não possui uma trajetória
unívoca e, por isso, tanto seu pensamento artístico quanto a forma de trabalhar com seus
atores sofreram inúmeras modificações. Diferentemente de Constantin Stanislavski, que se
tornou seu grande mestre apesar de nunca tê-lo conhecido pessoalmente, Grotowski
procurou não deixar um método para o ator, algo que corresse o risco de se tornar
comercializável, rígido e cristalizado. O mestre polonês resistiu a doutrinações e
teorizações que fixassem “verdades”. Seus escritos são reflexões da prática e perdem seu
verdadeiro sentido quando dissociados dela. Como confirma Ludwik Flaszen:
Grotowski amava repetir – para dizer a verdade com o passar do tempo –
que as palavras e as definições não têm grande importância, que de bom
grado podia substituir uma fórmula ou uma palavra. Porque só a prática, só o
ato conta. (...) Abandonou o propósito de escrever – segundo o modelo do
seu mestre Stanislavski – um manual sobre a arte do ator, para não cair nas
armadilhas inevitáveis em um empreendimento do gênero, dos estereótipos,
que eram a sua verdadeira fobia. (FLASZEN, 2007:18-19)
Evolução do pensamento de Grotowski sobre o trabalho do ator
A partir daqui, passa-se a analisar o trabalho do artista no período compreendido
entre 1959 e 1970, referente à época em que Grotowski trabalhou como diretor de
espetáculos. Segundo DE MARINIS (2004) o que liga as diferentes fases de Jerzy
6
Grotowski é a importância dada pelo artista ao trabalho do ator sobre si mesmo, mesmo
que a forma de ver o ator tenha se modificado durante toda a sua trajetória.
Nos primeiros anos, o artista deteve-se numa busca pela artificialidade e pela
teatralidade do espetáculo. “O termo ‘arte’ é próximo, afim ao termo ‘artificialidade’.
Artístico é aquilo que é construído, portanto artificial”. (GROTOWSKI, 2007: 42-43). Com
isso, influenciado pelo teatro oriental, o diretor trabalhou uma atuação codificada, baseada
em signos: atitudes corporais e vocais, máscaras faciais, elementos acrobáticos e a tensão
física entre opostos: tudo o que fugisse do corpo cotidiano 6. Na criação de um ator
arquetipal, que confrontasse a concepção de ator do teatro burguês, Grotowski defendia
que tudo o que era orgânico e natural não era artístico porque não era artificial. As ações
dos atores deveriam poder ser reduzidas ao cristal do signo, da forma fria e elaborada
(GROTOWSKI, 2007: 130). Nesta época o diretor ainda colocava sua ênfase sobre a
encenação, sendo o ator apenas mais um elemento da cena. Simplesmente se “fugia de uma
interpretação baseada em parâmetros realistas e se buscava a mesma artificialidade, o
mesmo jogo de contrastes, a mesma possibilidade de composição que procurava nos outros
elementos de cena” (LIMA, 2008: 79). Posteriormente, essa busca foi abandonada pelo
próprio Grotowski – “a procura dos signos trazia como consequência a procura dos
esteriótipos” (GROTOWSKI, 2007: 130) – e a organicidade se transformaria em sua
principal perseguição.
É a partir do espetáculo “Sakuntala”, de 1960, que se percebe a importância dada ao
treinamento para a construção de um corpo codificado para o ator. O treinamento consistia
em desafiar o corpo em exaustivos exercícios vocais e físicos, indo do trabalho acrobático
ao yoga, resultando em um acúmulo de habilidades. A virtuose aumentaria o leque de
signos artificiais produzidos pelos atores.
A partir de 1965, já com o Teatro Laboratório, o trabalho de Grotowski com seus
atores muda de rumo e o ator arquetipal passa a ser substituído, paulatinamente, pelo que
mais tarde viria a ser o ator santo. Grotowski se aproxima de Stanislavski e amplia seu
interesse por um processo interior de atuação:
6. A fuga do corpo cotidiano acompanhará Grotowski durante toda a sua carreira, mesmo que tratada de formas diferentes.
7
O efeito do ator, no teatro de que estou falando, é artificial, mas para que
esse efeito seja executado de modo dinâmico e sugestivo é necessária uma
espécie de empenho interior. Não há efeito [...] se a ação não é “sustentada”
pelas próprias pilhinhas psíquicas, pelas próprias baterias interiores.
Evidentemente não estou falando da “revivescência” como imaginava, por
exemplo, Stanislavski. Estou falando antes do “transe” do ator
(GROTOWSKI, 2007: 72)
“Transe” foi a denominação encontrada por Grotowski para se referir ao trabalho
interior do ator. Mais tarde, este termo foi alvo de grandes confusões interpretativas e,
consequentemente, posto de lado. Ao longo dos anos, Grotowski se aproximará cada vez
mais do pensamento de Stanislavski, chegando a afirmar que seu trabalho seria a
continuação do que o diretor russo começou a desenvolver, mas interrompeu com sua
morte. Thomas Richards, principal pupilo de Grotowski, ressalta a aproximação dos artistas
russo e polonês, principalmente no que diz respeito ao trabalho com as ações físicas.
Richards comenta que:
A investigação de Grotowski pode ser erroneamente interpretada como algo selvagem e sem estrutura, em que as pessoas se lançam ao chão, gritam muito e tem experiências pseudocatárticas. Se corre o risco de que a conexão de Grotowisk com a tradição e seus laços com Stanislavski sejam esquecidos completamente e não sejam levados em conta. (RICHARDS, 2005: 18)7
A partir da segunda metade dos anos 1960, o diretor do Teatro Laboratório
distancia-se da artificialidade para se aproximar da organicidade. O termo signo dá lugar
ao termo impulso e surge o processo de autopenetração: o principal objetivo do ator santo.
O ator agredia a si mesmo, formulava interrogações angustiantes, penetrava
no que havia nele de mais tenebroso, violentava os centros nevrálgicos de sua
psique, vivia uma sucessão de feridas íntimas. Falava-se ainda em violação
7 “A investigação de Grotowski pode ser interpretada erroneamente como algo selvagem e sem estrutura, onde o participante se lança ao chão, grita muito e tem experiências pseudocatarticas. Se corre o risco de que a conexão de Grotowski com a tradição e seus laços com Stanislavski sejam esquecidos por completo ou não sejam levados em consideração” – Tradução Livre.
8
do organismo vivo, em exposição levada a um excesso ultrajante e em
sacrifício e exposição da parte íntima de nossa personalidade. Por outro lado,
o processo também era apresentado como um processo de libertação e cura.
(LIMA, 2008: 107-108)
Grotowski utiliza procedimentos que levem o ator a uma confissão e, para isso,
concebe uma série de associações: como a sua visão sobre a personagem, que serviria como
uma espécie de bisturi utilizado para dissecar o ator. Ele diferencia seu ponto de vista:
Não se trata do problema de retratar-se em certas circunstâncias dadas, ou
de “viver” um papel; nem isto impõe um tipo de representação comum ao
teatro épico e baseado num cálculo frio. O fato importante é o uso do papel
como um trampolim, um instrumento pelo qual se estuda o que está oculto
por nossa máscara cotidiana – a parte íntima da nossa personalidade – a fim
de sacrificá-la, de expô-la. (GROTOWSKI, 1992: 32)
No decorrer do percurso de Grotowski, se torna cada vez mais difícil separar o
processo de desenvolvimento do ator do seu desenvolvimento pessoal como ser humano,
culminando, mais tarde, na fusão destes dois (ator e ser humano) no que ele denominará
“atuante”. A linha orgânica passa a ser o seu grande interesse e seu ator realiza um trabalho
não mais voltado para a forma, mas para o “mergulho interior”.
O antigo processo de acúmulo de habilidades se converte na chamada via negativa,
um trabalho de “eliminação” onde ele guia o ator para a “erradicação de bloqueios” físicos
e psíquicos. Totalmente entregue, em ato de doação, o ator deve dissolver a resistência de
seu organismo, diminuindo o tempo entre impulso interior e ação exterior, para que o
impulso interior seja as próprias ação e reação espontâneas. Em “A técnica do Ator”,
transcrição de uma entrevista de 1967, Grotowski afirma que após identificar seus
bloqueios pessoais, os seus atores passam a praticar exercícios que tem por objetivo
eliminar tais obstáculos:
Reside nisso a diferença essencial entre a nossa técnica e os outros
métodos: nossa técnica é negativa, e não positiva. Não estamos atrás de
9
fórmulas, de esteriótipos, que são a prerrogativa dos profissionais. [...] Eu
quero eliminar, tirar do ator tudo o que seja fonte de distúrbio. Que só
permaneça dentro dele o que for criativo. Trata-se de uma liberação. Se nada
permanecer é que ele não era um ser criativo. (GROTOWSKI, 1992: 180)
Neste texto, o artista também defende a exigência de uma disciplina que guie o
trabalho do ator e sua espontaneidade, para que a expressão não mergulhe no “caos”. O
binômio precisão/espontaneidade já se configura para Grotowski como fundamental para a
arte de ator. A organicidade e a tensão entre precisão e espontaneidade permanecerão no
trabalho do diretor com as ações físicas. Thomas Richards (2005) afirma que um dos
grandes pontos em comum entre Stanislavski e Grotowski é a necessidade de uma estrutura
preparada conscientemente que conduza a criatividade.
Para LIMA (2008), a experiência do diretor com o ator Ryszard Cieslak no
espetáculo “O Príncipe Constante”, de 1965, inaugura uma nova noção de ator (e de teatro)
para Grotowski. A experiência com a autopenetração chega ao seu ponto máximo, que se
transforma em ato total. Cieślak construiu sua atuação a partir de memórias psicofísicas
pessoais, tecendo uma linha de impulsos e ações físicas. Para Grotowski, o ator-performer
não mais interpreta, mas realiza um ato real. “Tratava-se, assim, não mais da atuação do
intérprete, mas da reação psicofísica do homem Cieślak.” (p. 153)
Com essa intensa experiência, que transcendeu a relação diretor-ator, a trajetória de
Grotowski tomou novas direções:
A relação com Cieślak marcou, na sequência, uma profunda transformação
em Grotowski como diretor: a maneira de conduzir experiências e ensaios
não foi mais a mesma após PC8 Grotowski passou, paulatinamente, a
rechaçar qualquer resquício de manipulação dos atores, ou de busca por
quaisquer efeitos ou truques relacionados ao trabalho dos atores, e acabou,
por fim, abandonando a própria função de diretor. (LIMA, 2008: 158)
LIMA acredita, ainda, que com essa experiência surge para o artista o conceito de
encontro, um termo chave de seu pensamento:
8. O Príncipe Constante.
10
A essência do teatro é o encontro. O homem que realiza um ato de auto-
revelação é, por assim dizer, o que estabelece contato consigo mesmo. Quer
dizer, um extremo confronto, sincero, disciplinado, preciso e total – não apenas
um confronto com seus pensamentos, mas um encontro que envolve todo o seu
ser, desde os instintos e seu inconsciente até o seu estado mais lúcido. [...]
Encontrar o que está escondido dentro de nós e realizar o ato de encontrar os
outros: em outras palavras, transcender nossa solidão. (GROTOWSKI, 1992:
48-49)
Ao deixar de lado o espectador para se debruçar exclusivamente sobre o ator,
Grotowski rompe a barreira de teatro e o ator passa a ser chamado de “atuante” (doer).
Mais do que nunca, Grotowski renegará de forma incisiva qualquer tentativa de
metodologizar suas experiências. Como pensar, então, numa pedagogia a partir de suas
práticas?
Apontamentos pedagógicos
No caminho de sua busca estético-ideológica para o teatro, Grotowski percebeu que
necessitava de um tipo de ator específico para o seu trabalho. Era preciso reinventar o ator,
não somente em questões técnicas, mas como um ser humano completo. Na realidade,
durante toda a sua vida, o grande interesse de Grotowski esteve na condição humana e no
seu contato com o mundo. Para ele, o teatro foi, dentre tantas possibilidades, uma forma
encontrada para operar uma busca além do teatro, uma busca pessoal.
Grotowski via as várias fases de sua obra unidas por certos desejos e
perguntas consistentes, sublinhando interesses que o fascinavam desde a
infância, muito antes de ele ter sequer pensado em desenvolver um trabalho no
campo do teatro. Na verdade, Grotowski afirmava que foi quase por acaso que
ele escolheu a carreira do teatro. [...] Grotowski sugere que os impulsos por trás
da sua obra teriam sido os mesmos, mesmo que ele tivesse decidido seguir
carreira em outra área. (WOLFORD, 1997:6 – tradução nossa)
11
Grotowski buscou um ator voltado à sua natureza primitiva, despojado de toda e
qualquer máscara, “desvendado”. Esse desvendamento, feito diante do público, e não para
ele, pretendia, num ato de plena sinceridade, abalar o espectador. Livre de seu narcisismo, o
ator se desnuda e faz “ressoar alguma coisa na intimidade mais profunda do espectador”
(ROUBINE, 1998:71).
Grotowski se debruçou tanto na técnica artesanal para o ator quanto em uma
conduta de vida, se aproximando de um verdadeiro sacerdócio. No advento dos teatros
laboratórios e das comunidades teatrais a partir das décadas de 1960 e 70, Jerzy Grotowski,
Eugenio Barba, Tadeusz Kantor, Linving Theatre, Open Theatre, Peter Brook, entre outras
figuras e grupos importantes desta época, comungaram duas exigências: a procura por uma
nova forma de expressão do ator e seu trabalho de formação; e a construção de uma ética
como prioridade do trabalho (ASLAN, 1994:279). Trata-se, portanto da busca por um ator
que desenvolvesse paralelamente seu corpo expressivo e seu corpo íntimo e social.
Jennifer Kumiega, importante pesquisadora de Grotowski, afirma que seu trabalho
podia ser basicamente divido em técnica e ética, sendo a técnica a parte menor, porém
concreta e verificável e a ética como condutora da técnica: “a atitude com a qual vem-se a
descobrir, verificar e realizar é de extrema importância para aqueles que pretendem apanhar
a essência do trabalho de Grotowski” (KUMIEGA apud FERREIRA, 2006: 2)
Em “Declaração de Princípios” (GROTOWSKI, 1992: 210), Grotowski oferece um
verdadeiro tratado sobre os princípios de trabalho por ele defendidos9. Sugere a não
separação entre vida e profissão; propõe uma relação não hierárquica entre diretor e atores;
critica o ritmo da civilização moderna, as máscaras sociais e o cientificismo; concebe sua
visão sacerdotal para o ator e orienta:
O teatro só tem significado se nos permite transcender a nossa visão
estereotipada de nossos sentimentos e costumes convencionais, de nossos
padrões de julgamento [...] tendo já desistido de todas as fugas e fingimentos
diários, num estado de completo e desvelado abandono, descobrir-nos. [...] O
ato de criação nada tem a ver com o conforto externo ou com a civilidade
humana convencional. [...] Vai além do significado de ‘teatro’, e é muito 9. Este texto foi escrito por Grotowski para uso interno no Teatro Laboratório, direcionado aos atores que faziam um aprendizado.
12
mais um ato de viver e um caminho de existência. [...] Qualquer forma de
leviandade em nosso trabalho é totalmente proibida. [...] Este ato não pode
existir se o ator está mais interessado no encanto, no sucesso pessoal, no
aplauso e no salário do que na criação compreendida em seu sentido mais
alto. (op. cit. p. 210-218)
Sem fazer distinção entre teatro e vida, ou ator e ser humano, Grotowski procura,
assim como defende Eugenio Barba, um ambiente de:
Relações humanas nas quais o processo artístico ajude a criar um outro tipo
de sociabilidade. [...] O teatro como a invenção de uma microssociedade. O
trabalho para chegar a uma microssociedade inventada pelo teatro representa
a nostalgia de uma vida mais densa, mais cheia de sentido e mais justa, que
não é a que nos rodeia. (BARBA, 1997: 50)
A ética de trabalho conduz a prática de Jerzy Grotowski como uma micropolítica de
resistência à sociedade moderna – não limitada somente à temática e/ou estética de seus
espetáculos, mas também no cotidiano de trabalho, dentro e fora da sala de ensaio, como
filosofia de vida.
O único lugar nele que intuiu um profundo respeito para com o
ofício de ator foi com Grotowski (...) Alguém cuja ética artística não
foi corrompida por um “negócio” que exigia a necessidade de um
produto comercializável de imediato. Tão somente no trabalho com
Grotowski havia encontrado essa integridade. (RICHARDS, 2005: 54)10
Além de priorizar a ética de trabalho como parte de sua pedagogia, Grotowski deu
importância considerável ao que ele denomina transmissão:
10 “O único lugar em que se havia instituído um profundo respeito para com o ofício de ator foi em Grotowski. Alguém cuja ética artística não havia sido corrompida por um ‛negócio’ que exigisse a necessidade de um produto comercializável de imediato. Somente no trabalho de Grotowski havia encontrado esta integridade” – Tradução Livre.
13
A natureza do meu trabalho com Thomas Richards tem o caráter de
transmissão; lhe transmitir o que alcancei em minha vida: o aspecto
interior no trabalho. (...) No transcurso de um período de
aprendizagem, através de esforços e tentativas, o aprendiz conquista o
conhecimento, prático e preciso, de outra pessoa, seu “teacher”.
(RICHARDS, 2005:12)11
Em entrevista concedida a Jean-Pierre Thibaudat, em 1995, o artista continua:
Se ela [a transmissão] tomar o rumo certo, ajuda bastante. [...] existe na
criação aspectos que são acessíveis unicamente pelas vias práticas, pois há
elementos que são racionais e outros que passam por caminhos menos
conscientes. É preciso evitar todo proselitismo. Há varias técnicas e várias
abordagens eficazes e há também “instrumentos” de investigação que, para
serem plenamente úteis devem entrar numa circulação de coisas quase
anônima. (GROTOWSKI, 1996)
Para que o aprendizado através da transmissão ocorra, deve haver o contato real
entre professor e aluno, e isso anula qualquer possibilidade de aprendizagem à distância, ou
por meio de leituras teóricas. O caráter de transmissão reforça a resistência de Grotowski
quanto à publicação de métodos de ensino para o ator. Mais do que mestre, diretor ou
professor, Grotowski procurou ser artista, parceiro, “researcher”. A transmissão pressupõe
uma via dupla de aprendizagem – prática e silenciosa – em que a presença física é
fundamental. O cotidiano de trabalho constrói a sua ética ao mesmo tempo em que é
conduzido por ela. A grande importância não está em definir aquele que ensina e aquele
que aprende, mas no aprendizado mútuo.
Para o ator, confrontar-se com sua própria vivência, assumir seus limites e
bloqueios, tanto físicos quanto emocionais; para o diretor, fugir dos lugares
11 “A natureza do meu trabalho com Thomas Richards tem o caráter da transmissão; transmitir-lhe o que foi alcançado em minha vida: o aspecto interior do trabalho. (...). No transcurso de um período de aprendizagem, através do esforço e das tentativas, o aprendiz conquista o conhecimento, prático e preciso, da outra pessoa, seu ‛teacher’.” – Tradução Livre.
14
cômodos, abandonar fórmulas e métodos convencionais, se assim for preciso
para se deparar com o novo, sabendo receber e manter vivo o diálogo com o
ator. (FERREIRA, 2006:02).
A resistência de Grotowski a qualquer tipo de verdade absoluta está ligada
diretamente a este aprendizado coletivo. Para ele não poderia existir nenhuma técnica,
exercício ou método de valor absoluto, chegando, em certa ocasião, a interromper o
treinamento de seus atores por questionar sua utilidade naquele momento. Grotowski deixa
claro e comprovado que exercícios e experimentos feitos em sua sala de trabalho foram
criados para as suas necessidades e as necessidades de sua equipe em momentos
específicos:
Por toda parte há sempre essa necessidade e essa falsa esperança em
receitas que possam resolver todos os nossos problemas criativos. Essas
receitas não existem. Há somente o caminho que requer consciência, coragem
e numerosas ações simples – não quero usar a palavra ‘esforço’ – mas ações
simples aplicadas a nós mesmos. (GROTOWSKI, 2007: 168)
O caráter pragmático sempre foi essencial para Grotowski: “se aprende fazendo”.
Thomas Richards relata inúmeras vezes esta característica na pedagogia de Grotowski em
busca de um ator que pudesse libertar seu corpo das amarras da “mente discursiva”.
O primeiro contato de Richards com Grotowski se deu em 1985, muitos anos após a
experiência com Ryszard Cieślak em “O Príncipe Constante”, quando o diretor já se
encontrava em nível avançado de seu pensamento artístico, portanto, Richards foi
testemunha de um Grotowski amadurecido, um mestre formado por uma vasta e intensa
trajetória. Se o diretor escolheu Richards como seu “herdeiro espiritual”, é possível deduzir
que Grotowski transmitiu a ele a síntese do trabalho de toda a sua vida, aquilo que ele
considerou ser o mais essencial.
A partir de Richards, podemos ressaltar algumas características que apontam para
uma pedagogia do ator: 1) o aprendizado é pragmático: o conhecimento é conquistado
através da prática; 2) exige-se um longo período de trabalho; 3) o aprendiz deve ser um
“bom ladrão”, sabendo como roubar o saber ao mesmo tempo em que tenta conquistar a
15
capacidade de fazer; 4) o aprendiz filtra o que aprende e se utiliza daquilo que funciona
para si mesmo, criando o seu próprio método; 5) há necessidade de uma estrutura que
conduza a criatividade espontânea: quanto maior a potência criativa, maior a necessidade
de seu domínio técnico; 6) o trabalho com as ações físicas é a chave do ofício do ator.
Antes de continuar a enumeração, vale explicitar as diferenças essenciais entre a
abordagem de Stanislavski e de Grotowski sobre as ações físicas:
Para Richards, Grotowski continuou o trabalho com as ações físicas de onde
Stanislavski parou devido à sua morte e, portanto, vai além de Stanislavski. A noção de
organicidade é revista pelo mestre polonês:
Para Stanislavski, organicidade significava as leis naturais da vida
“normal”, as quais, por meio da estrutura e composição aparecem
sobre o cenário e se converte em arte; ao mesmo tempo em que para
Grotowisk, organicidade significava algo assim como a potencialidade
de uma corrente de impulsos, uma corrente quase biológica.
(RICHARDS, 2005: 157)12
Richards ainda sugere que para o mestre russo, os impulsos nascem da periferia do
corpo, enquanto que para Grotowski o impulso é um “pulso interior” (in-pulso), que nasce
do interior do corpo e o percorre até a periferia. O impulso sempre nasce antes de cada ação
física genuína e sua exploração depende da concepção de autodescoberta que Grotowski dá
ao trabalho do ator:
O ponto de vista de Grotowisk é que o ator busca uma corrente
essencial de vida; os impulsos estão enraizados profundamente
“dentro” do corpo e depois se estendem para fora. Esta evolução do
trabalho sobre os impulsos é lógica se levarmos em conta que
12 “Para Stanislavski, organicidade significava as leis naturais da vida ‛normal’, as quais, por meio da estrutura e da composição, aparecem na cena e se convertem em arte; contudo, para Grotowski, organicidade significa algo assim como a potencialidade de uma corrente de impulsos, uma corrente quase biológica”- Tradução Livre.
16
Grotowisk busca os impulsos orgânicos num corpo desbloqueado indo
até a plenitude que não é da vida cotidiana. (RICHARDS, 2005: 161)13
Se para um as ações físicas estavam voltadas para o trabalho do ator com seu
personagem, sendo um meio de “viver o papel” de forma realista no espetáculo, para o
outro servia de instrumento para alcançar conhecimento pessoal – conhecimento adquirido
fisicamente através de um corpo-memória: “nos es la mente, sino el cuerpo el que
recuerda” (DE MARINIS, 2004: 64)14
Voltando à enumeração: 7) o ator deve saber repetir a estrutura por ele criada, esta
seria a prova contra o “amadorismo”; 8) não se deve guiar por estados emocionais, mas por
impulsos concretos, físicos; 9) o mestre trabalha pessoalmente com cada aprendiz, de
acordo com suas respectivas necessidades: “no hay método, hay solo lo que funciona y lo
que no funciona en cada caso individual” (RICHARDS, 2005:151)15.
Conclusão
Tais pontos enumerados ajudam a construir, sob o meu ponto de vista, uma possível
pedagogia para o ator a partir das práticas de Jerzy Grotowski. Apesar da impossibilidade
de identificar um “método grotowskiano”, o que o próprio artista nunca o fez, é possível
levantar características claras de seu trabalho na relação com seus atores, principalmente
tendo como base o testemunho de Thomas Richards. Não se trata de idealizar
superficialmente um “ator grotowskiano para os dias atuais”, mas de entender como
Grotowski se deparou com a pedagogia do ator e se relacionou com sua exploração
metodológica. Percebe-se, na leitura de muitos textos do artista, a tentativa em relacionar
suas práticas ao que poderia ser um método, ou uma técnica para o ator, mas como ressalta
LIMA (2008), percebendo a dificuldade residente nesta relação, o “método” de Grotowski
pode ser considerado um “antimétodo”, pois não se configura como “uma relação de
procedimentos. Ele apresentava algumas ‘tendências orientadoras’, ou ‘leis que regulam o 13 “O ponto de vista de Grotowski é que o ator busca uma corrente essencial de vida; os impulsos estão enraizados profundamente ‛dentro‛ do corpo e depois se estendem para fora. Esta evolução do trabalho sobre os impulsos é lógica se levarmos em consideração que Grotowski busca os impulsos orgânicos em um corpo desbloqueado que vai na direção da plenitude que não é a da vida cotidiana”- Tradução Livre. 14 “Não é a mente, mas sim o corpo que recorda”- Tradução Livre. 15 “Não há método, há somente o que funciona e o que não funciona em cada caso individual”- Tradução Livre.
17
trabalho criativo’ ou ‘elementos da arte do ator’ (...) a própria experiência escapava a
qualquer tentativa de método” (p. 254-255).
Diante do que foi apontado neste artigo, concluo que a pedagogia de Grotowski se
aproxima mais do teatro de grupo, e do desenvolvimento do ator dentro deste ambiente, do
que da pedagogia teatral tomada da forma tradicional nas escolas de formação profissional.
Grupos teatrais tendem a ser espaço mais propício ao desenvolvimento de uma ética de
trabalho, de um aprendizado não hierárquico, e da elaboração de técnicas personalizadas e
adaptáveis às necessidades e caminhos tomados por estes, o que representa uma postura de
resistência à padronização do ensino teatral das escolas de teatro, que muitas vezes
direcionam a sua formação para atores que serão absorvidos pelo mercado cultural.
O ator que se desenvolve dentro de grupos e comunidades teatrais constrói uma
formação que é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva, profissional e humana, pois seu
trabalho sobre si mesmo é guiado por uma prática grupal, por uma conduta de vida que
implica uma ética que muitas vezes é contrária às pressões do mercado. Neste contexto, o
ator poderia se dedicar a uma formação mais aprofundada e menos dependente da indústria
cultural, assim como a um processo de aprendizado liberto da tradicional relação
hierárquica professor/aluno. Assim como se identifica em Grotowski:
Isso não significava simplesmente “formar” um discípulo, mas sim
se abrir a outro ser, sair dos esquemas, dos papéis comuns. Não se
pode falar, nesse caso, da habitual relação entre diretor e ator,
tampouco de uma relação erudita do mestre que forma, que ensina,
mas se trata de uma relação de paridade na qual os dois indivíduos
crescem e se descobrem em um contato de profunda colaboração e de
abertura recípocra. (DE MARINIS, 2004: 55)16
Para COPELIOVITCH (2006), o ator performer buscado por Jerzy Grotowski
busca uma técnica que quer dizer a disciplina com que ele “manifesta sua linguagem
16 “Isto não significa simplesmente ‛formar’ um discípulo, mas sim abrir-se a outro ser, sair dos esquemas, dos papéis comuns. Não se pode falar, neste caso, da relação habitual entre diretor e ator, nem tampouco, de uma relação erudita do mestre que forma, que ensina, se trata aqui de uma relação de paridade na qual dois indivíduos crescem e se descobrem num contato de profunda colaboração e de abertura recíproca”- Tradução Livre.
18
através de si mesmo”, mas, sabendo que esta linguagem não está definida, o ator vai
criando a sua própria técnica. Seja pela autonomia da formação ou pela relação horizontal
que se estabelece entre os seus participantes, o teatro de grupo pode possibilitar um
ambiente pedagógico diferenciado, mais afim ao tipo de aprendizado observado na prática
de Grotowski com seus atores.
Um ambiente “pedagógico” no qual a pesquisa da linguagem teatral
perpassa a investigação dos atores. A relação desse tipo de prática com o
ensino de teatro é, por conseguinte, óbvia. Não se trata de “ensinar” stricto
sensu teatro aos atores alunos, mas de orientar um processo poético no qual
se constitua um modo específico de fazer que atenda ao anseio de
compreensão do fenômeno teatral mais do que o acúmulo de técnicas, (...)
[fazendo] da convivência e do fazer teatro um modo de vida. A ideia de uma
condição criativa se desdobra na situação pedagógica, ao mesmo tempo em
que dela surge, como condição de emergência para os sujeitos criarem suas
respectivas identidades teatrais. (ICLE, 2007: 2-3)
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19
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