a.pministraÇÃo nodivadoanalista...nal do desabafo, ao menos para os que não freqüentam...

2
CARREIRA E TRABALHO A.PMINISTRAÇÃO ••• NO DIVA DO ANALISTA Empresas e executivos sofrem de algumas neuroses tíPicas do fim do milênio: paranóia, depressão, esquizofrenia ... POR THOMAZ WOOD, JR. ÃO 7 DA NOITE DE UMA SEXTA-FEIRA FRIA E CHUVOSA EM UM RESTAURANTE PRÓXI- mo à Avenida Paulista, em São Paulo. O lugar, sempre lotado, é freqüentado por uma fauna variada de executivos, publicitários, atores e burocratas (as categorias às vezes convivem em um mesmo indivíduo). Na frente do estabelecimento, manobristas es- tacionam cuidadosamente os carros em cima da calçada (Volvos e Mercedes têm pre- ferência; BMW s estão nitidamente em declínio, e Audis correm o risco de se tornar popu- lares). Em São Paulo, muitos restaurantes adornam a fachada com carros importados. Sexta-feira é casual day em muitas empresas, e a massa de engravatados celularizados que freqüenta o conhecido restaurante surge à paisana, vestida de forma "diferente': Na sexta-feira, gravatas Gugenheim e sus- pensórios Aramis dão lugar a camisas de xadrez Richards e jeans Armani. No bal- cão de entrada, o barman, que estuda Ad- ministração, prepara margaritas e ma- nhattans. Em volta, executivos trocam monólogos e cultuam um Narciso sem Eco, enquanto a conversa não engata. En- tre derivativos, opções futuras e outras abstrações herméticas, falam de calvície precoce, forma física e comentam cinema nacional. É cool falar de cinema nacional nesta primavera. Vezpor outra a conversa res- vala em cargos e salários, chefes e neuroses. Viver em empresas é navegar em um mar de patolo- gias e sexta-feira é o dia nacio- nal do desabafo, ao menos para os que não freqüentam analis- tas e astrólogos durante a se- mana. De segunda a sexta, o mundo do trabalho é o reino da razão. A noite de sexta-feira é reservada para o acerto de contas com as trevas e a irracionalidade. Ou pelo menos para lembrar que elas existem. As patologias discutidas são as mais diversas: chefes autoritários, colegas desleais, entraves burocráticos, SAPs e ISOs. Não falta lugar na conversa para os personagens arquetípicos de toda empresa: o maligno gerente de RH, a mal-humorada secretá- ria da holding, o audi- tor paranóico, o diretor autista e o presi- dente que passa horas com a assessoria de imprensa, mas não tem 15 minutos para os assuntos importantes. Desde pelo me- nos René Clair (A Naus Ia Liberté, 1931) e Charles Chaplin (Tempos Modernos, 1936), organizações e neuroses são sinô- nimos. Os tempos passaram de moder- 88 .-'/ CARTACAPITAL, 15 DE OUTUBRO

Upload: others

Post on 21-Sep-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A.PMINISTRAÇÃO NODIVADOANALISTA...nal do desabafo, ao menos para os que não freqüentam analis-tas e astrólogos durante a se-mana. De segunda a sexta, o mundo do trabalho é o

CARREIRA E TRABALHO

A.PMINISTRAÇÃO •••NO DIVA DO ANALISTAEmpresas e executivos sofrem de algumas neuroses tíPicasdo fim do milênio: paranóia, depressão, esquizofrenia ...POR THOMAZ WOOD, JR.

ÃO 7 DA NOITE DE UMA SEXTA-FEIRA FRIA E CHUVOSA EM UM RESTAURANTE PRÓXI-

mo à Avenida Paulista, em São Paulo. O lugar, sempre lotado, é freqüentado por umafauna variada de executivos, publicitários, atores e burocratas (as categorias às vezesconvivem em um mesmo indivíduo). Na frente do estabelecimento, manobristas es-tacionam cuidadosamente os carros em cima da calçada (Volvos e Mercedes têm pre-

ferência; BMW s estão nitidamente em declínio, e Audis correm o risco de se tornar popu-lares). Em São Paulo, muitos restaurantes adornam a fachada com carros importados.Sexta-feira é casual day em muitas empresas, e a massa de engravatados celularizados quefreqüenta o conhecido restaurante surgeà paisana, vestida de forma "diferente': Nasexta-feira, gravatas Gugenheim e sus-pensórios Aramis dão lugar a camisas dexadrez Richards e jeans Armani. No bal-cão de entrada, o barman, que estuda Ad-ministração, prepara margaritas e ma-nhattans. Em volta, executivos trocammonólogos e cultuam um Narciso semEco, enquanto a conversa não engata. En-tre derivativos, opções futuras e outrasabstrações herméticas, falam de calvícieprecoce, forma física e comentam cinemanacional. É cool falar de cinemanacional nesta primavera.

Vezpor outra a conversa res-vala em cargos e salários, chefese neuroses. Viver em empresas énavegar em um mar de patolo-gias e sexta-feira é o dia nacio-nal do desabafo, ao menos paraos que não freqüentam analis-tas e astrólogos durante a se-mana. De segunda a sexta, omundo do trabalho é o reinoda razão. A noite de sexta-feira éreservada para o acerto de contascom as trevas e a irracionalidade. Oupelo menos para lembrar que elasexistem. As patologias discutidas sãoas mais diversas: chefes autoritários,

colegas desleais, entraves burocráticos,SAPs e ISOs. Não falta lugar na conversapara os personagens arquetípicos de todaempresa: o maligno gerente de RH, a

mal-humorada secretá-ria da holding, o audi-

tor paranóico, o diretor autista e o presi-dente que passa horas com a assessoria deimprensa, mas não tem 15 minutos paraos assuntos importantes. Desde pelo me-nos René Clair (A Naus Ia Liberté, 1931) eCharles Chaplin (Tempos Modernos,1936), organizações e neuroses são sinô-nimos. Os tempos passaram de moder-

88 .-'/CARTACAPITAL, 15 DE OUTUBRO

Page 2: A.PMINISTRAÇÃO NODIVADOANALISTA...nal do desabafo, ao menos para os que não freqüentam analis-tas e astrólogos durante a se-mana. De segunda a sexta, o mundo do trabalho é o

I

Inos a pós-modernos, mas asneuroses continuam, mais nu-merosas e mais sofisticadas.

QUAL A NEUROSE DE SUA EMPRESA?

SINTOMASPonte patológica. Para mui-

tos especialistas, empresas eneuroses estão ligadas por sóli-da ponte patológica. Se existeum atenuante, este é que asneuroses são plurais (cada em-presa tem a sua, ou as suas) edemocráticas (elas atingem atodos, sem distinção de raça,credo, sexo ou nível hierárqui-co). Manfred F.R. Kets de Vries FANTASIAe Danny Miller são conhecidospesquisadores que se dedicam aesse espinhoso tema. Kets deVries é psicanalista, membro daInternational PsychoanaliticAssociation (IPA) e professordo European Institute of Busi- RISCOSness Administration (Insead).Danny Miller é professor daMcGill University e da HautesÉtudes Commerciales (HEC),no Canadá.

Escreveram juntos The Neu-rotie Organization (São Francisco, Iossey-Bass, 1984) e Unstable at the Top: Insidethe Neurotic Organization (Nova York,Penguin, 1987). No primeiro livro, pro-põem uma tipologia para as organizaçõesneuróticas (veja quadro). No segundo,avaliam como essas neuroses afetam agestão da empresa.

Seu argumento é que, por trás de umafachada esculpida com o zelo dos RPs, asempresas são frequentemente arenas nasquais a racionalidade é limitada, e as neu-roses, corriqueiras. O lado irracional dasorganizações e seus executivos, apesar deimportante, é comumente ignorado.

Os mais ortodoxos talvez imaginem odr. Freud torcendo o nariz para a (exces-siva) liberdade com que esses autores seapropriam de conceitos da psicanálise.Mas suas analogias e metáforas ajudam aentender o que vai por baixo do verniz davida empresarial: os desejos inconfessos,as motivações e os conflitos que fazem gi-rar, ou parar, as empresas.

Os autores acreditam que uma "mãoinvisível" atua nas empresas. Decisões,planos e estratégias são as manifestaçõesvisíveis da entidade. Por trás encontram-se forças psicológicas pouco identificadase pouco compreendidas. Para De Vries eMiller, a abordagem psicanalítica podeajudar a entender essas forças.

Pode, afinal, existir uma organização

Para saber a resDosta. leia a tabelaPARANÓiA COMPULSÃO DRAMATISMO DEPRESSÃO

• Suspeita e • Perfeccionismo e • Expressão • Sentimento dedesconfiança de preocupação em excessiva de culpa e detudo e de todos detalhes triviais emoções inadequação• Hipersensibilidade • Insistência que os • Atenção • Falta dee estado permanente outros se adaptem ao exagerada a si perspectivas ede alerta seu estilo próprio motivação• Reação imediata • Relações de • Preocupação • Sensação de estaràs ameaças dominação-submissão narcísea à mercê dos eventos• Procura permanente • Falta de • Alternância entre • Falta dede motivos espontaneidade e supervalorização e capacidade deescondidos incapacidade de desvalorização pensar claramente• Frieza e relaxar • Falta de capacidade • Inabilidade pararacionalidade • Dogmatismo e de focalização e de experimentar• Ausência de emoção obsessão concentração prazer

• "Alguém lá • "Não se pode estar • "É preciso • "Não adiantafora está nos à mercê dos impressionar as mudar;ameaçando" acontecimentos" pessoas simplesmente• "Não se pode • "É preciso importantes" somosconfiar em controlar tudo o incompetentes"ninguém" que nos afeta"

• Distorção da • Fixação pelo • Superficialidade • Dificuldade emrealidade próprio umbigo • Afastamento da melhorar o• Atitudes • Apego exagerado realidade desempenhodefensivas inibindo a regras e • Reação exagerada • Incapacidade deações espontâneas procedimentos a eventos decidir

• Inflexibilidade secundários • Inabilidade para agir

saudável? Para a professora Sonia MariaRodrigues Calado, da Universidade Federalde Pernambuco, saúde empresarial equiva-le a prosperidade e durabilidade: "Uma or-ganização saudável nega a tendência natu-ral ao declínio e ao desaparecimento':

ESQUIZOFRENIA

• llistJrimeoto enão-envolvimento• Apatia; faltade entusiasmo• Indiferença aelogios oucríticas• Desinteressepelo presenteou futuro• Aparência fria

• "O mundo nãooferece nenhumasatisfação"• "A relação com osoutros só nos causaproblemas. Émelhor ficarafastado"

• Isolamentosocial causandofrustração• Estado deconfusão eagressividade

Empresa-saúde. Além disso, convive emharmonia com o ambien-te; tem bom relaciona-mento com seus colabo-radores, convive pacifica-mente com os sindicatos,é ecologicamente respon-sável e respeita clientes,fornecedores e concor-rentes. Mais: antecipatendências e adapta-se àstransformações. Mas aresposta comporta pelomenos mais uma pers-pectiva: a do indivíduo.Uma empresa bem-suce-dida pode ser considerada saudável, masisso não significa que seus colaboradoressejam saudáveis. Aliás, com desconfortá-vel freqüência organizações neuróticas sãoempresas de sucesso. O inverso também éverdadeiro. Uma empresa em que é agra-dável trabalhar pode não ser uma empre-sa de sucesso.

Para Isabela Baleeiro Curado, da Fun-dação Getúlio Vargas, de São Paulo, a ori-

gem de muitas neuroses organizaeionaisestá no descompasso entre a velocidadede mudanças que as empresas são obri-gadas a desenvolver e a capacidade dosindivíduos de acompanhar essas mudan-ças. Existiria uma receita para a saúde or-ganizacional na perspectiva do indiví-duo? A professora Maria José Toneli,

também da FGV de SãoPaulo, acredita que paratornar uma organizaçãosaudável é preciso cuida-dosa alquimia, com com-ponentes humanistas.Épreciso reconhecer:• A utilidade do traba-lho de cada um.• A inteligência e as com-petências dos indivíduos.• A necessidade de espa-ços de discussão e nego-ciação.• As necessidades mate-

riais e psicológicas dos colaboradores.E conclui: "Como já fomos avisados

que o paraíso não é deste mundo, e con-siderando que o confronto entre os dese-jos individuais e coletivos é inevitável,que milagres não existem e que um bomcozinheiro sabe que boas receitas sãoimpossíveis de repetir sem pequenosajustes, que cada um prepare (ou esco-lha) o seu prato':

A organizaçãosaudável temde antecipartendências eadaptar ..se àstransformações

Adapfallo ae; líets de Voes e Miller.'llIe NeutrJtk Organilaüon

89CARTACAPITAL, 15 DE OUTUBRO DE 1997