aplicabilidade das diretivas antecipadas de … · 7 o dia mais belo? hoje; a coisa mais fácil?...
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SILVANA BASTOS COGO
APLICABILIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE:
NOVO OLHAR ACERCA DA MORTE E DA RELAO COM A VIDA
RIO GRANDE
2016
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE (FURG)
ESCOLA DE ENFERMAGEM
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ENFERMAGEM
DOUTORADO EM ENFERMAGEM
APLICABILIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE:
NOVO OLHAR ACERCA DA MORTE E DA RELAO COM A VIDA
SILVANA BASTOS COGO
Tese apresentada ao Programa de Ps Graduao
em Enfermagem, da Escola de Enfermagem -
Universidade Federal do Rio Grande (FURG),
como requisito para obteno do ttulo de
Doutora em Enfermagem rea de
Concentrao: Enfermagem e Sade. Linha de
Pesquisa: tica, Educao e Sade.
Orientadora: Dra. Valria Lerch Lunardi
RIO GRANDE
2016
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Aos meus filhos, Eduarda e Lucas, que transformaram as
minhas angstias e preocupaes em momentos leves e
inspiradores para a construo do pensamento para a
realizao da tese. A eles, a fora para persistir e
acreditar que tudo possvel quando somos regados
pelo verdadeiro amor.
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AGRADECIMENTOS
Enumerar os agradecimentos me parece muito complicado, considerando as inmeras
pessoas que contriburam para que conclusse o doutorado. No entanto, primeiramente,
gostaria de agradecer aos meus pais que me concederam a vida. Agradeo, sempre, terem me
oportunizado estudar, me apoiarem em minhas escolhas, me incentivarem a acreditar que tudo
possvel quando estamos dispostos a realizar o que desejamos. Agradeo ao exemplo e por
serem atuantes e participativos em minha vida.
Agradeo imensamente a minha orientadora, Dra
Valria Lerch Lunardi, que aceitou
me orientar e incansavelmente dedicou sua ateno na construo da tese. Alm de sempre me
ajudar e tranquilizar diante das minhas angstias, inquietaes e dvidas, sempre com uma
palavra de incentivo e motivao. As palavras no traduziriam a imensa gratido pela
confiana e disponibilidade que dispensou em me auxiliar na construo desse trabalho.
Agradeo aos membros da banca que foram escolhidos pela sua competncia,
comprometimento e admirao por suas atuaes profissionais. Agradeo as contribuies
realizadas que indispensavelmente foram importantes para a efetivao deste trabalho.
Ao meu esposo Gustavo, pela dedicao e empenho que incansavelmente me
acompanhou, desde as longas viagens semanais, juntamente com nossa filha Eduarda, at as
horas adicionais dedicadas ao cuidado dos nossos filhos. Obrigada por ser meu verdadeiro
companheiro e por ser a pessoa que s.
Aos meus filhos, que nasceram e cresceram com o doutorado, minhas maiores fontes
de inspirao e fora para seguir em frente.
Aos meus irmos. Juliano e Cristiano, agradeo o incentivo e cuidado.
Ao meu sogro, Eduardo, e minha sogra Nanci, agradeo por me incentivarem e me
auxiliarem com palavras de motivao, alm do cuidado dispensado aos meus filhos.
Aos meus colegas do doutorado, que me acolheram e sempre me ajudaram.
Universidade Federal de Rio Grande, pela oportunidade de ser aceita na instituio.
A coordenao do PPGEnf/FURG, pela oportunidade da qualificao profissional.
Aos professores do PPGEnf/FURG, por contriburem e possibilitarem meu
aperfeioamento profissional, a partir das suas contribuies e instigaes.
Aos participantes desta pesquisa, que concederam parte de suas experincias e do seu
tempo para participar nessa tese.
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Universidade Federal de Santa Maria e aos meus colegas do Departamento de
Cincias da Sade do Centro de Educao Superior Norte do RS, Campus de Palmeira das
Misses, por me conceder a oportunidade de afastamento realizao do doutoramento.
Ao meu colega e amigo Marcio Rossato Badke, por compartilhar e vivenciar, desde a
graduao, momentos de conquista, alm de ser um grande ouvinte das angstias e
preocupaes. Agradecida por ser um amigo fiel.
Agradeo imensamente a todos que embora no tenham sido citados contriburam para
a construo e efetivao desta tese.
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O dia mais belo? hoje; A coisa mais fcil? errar; O maior obstculo? o
medo; O maior erro?; o abandono; A raiz de todos os males? o
egosmo; A distrao mais bela? o trabalho; A pior derrota? o
desnimo; Os melhores professores? as crianas; A primeira
necessidade? comunicar-se; O que mais lhe faz feliz? ser til aos
demais; O maior mistrio? a morte; O pior defeito? o mau humor; A
pessoa mais perigosa? a mentirosa; O sentimento mais ruim? o rancor;
O presente mais belo? o perdo; O mais imprescindvel? o lar; A rota
mais rpida? o caminho certo; A sensao mais agradvel? a paz
interior; A proteo efetiva? o sorriso; O melhor remdio? o otimismo;
A maior satisfao? o dever cumprido; A fora mais potente do
mundo? a f; As pessoas mais necessrias? os pais; A mais bela de
todas as coisas? o amor...
Madre Tereza de Calcut
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RESUMO
COGO, Silvana Bastos.Aplicabilidade das diretivas antecipadas de vontade: novo olhar
acerca da morte e da relao com a vida. 2016. 192f. Tese (Doutorado em Enfermagem) -
Escola de Enfermagem, Programa de Ps-Graduao em Enfermagem, Universidade Federal
do Rio Grande, Rio Grande.
As diretivas antecipadas de vontade (DAV) constituem o direito do paciente deixar
previamente manifestado os tratamentos a que deseja, ou no, ser submetido diante de sua
incapacidade. Inseridas recentemente no cenrio nacional, representam uma alternativa
plausvel de manuteno de autonomia do paciente, contribuindo na reduo de conflitos
ticos entre profissionais da sade, familiares e pacientes sobre as decises que envolvem
tratamentos e cuidados em final de vida. Nessa perspectiva, partindo do pressuposto que
autonomia do paciente fator determinante na aplicabilidade das DAV, o referencial terico
que embasa esta tese foi ancorado em Beauchamp e Childress, considerando os conceitos
utilizados na teoria principialista referentes autonomia, beneficncia e no-maleficncia.O
objetivo geral desse estudo foi: compreender como enfermeiros, mdicos e familiares de
doentes terminais entendem a aplicabilidade das diretivas antecipadas de vontade para as
situaes de terminalidade, defendendo-se como tese que a aplicabilidade das diretivas
antecipadas de vontade no ambiente hospitalar requer o seu conhecimento e capacitao pelos
enfermeiros, mdicos e cuidadores familiares de doentes terminais, demonstrando o respeito
autonomia pessoal dos pacientes e familiares. O percurso metodolgico adotado foi de uma
pesquisa qualitativa, conduzida pela realizao de entrevistas semiestruturadas com oito
enfermeiros, sete mdicos residentes e sete cuidadores familiares de doentes terminais, de um
hospital universitrio do sul do Brasil. Mediante a anlise textual discursiva dos dados,
emergiram sete categorias: conflitos na assistncia ao doente terminal: implicaes prtica
das DAV; o respaldo dos familiares e dos profissionais mediando o respeito a autonomia do
paciente: vantagens aplicabilidade das DAV; dificuldades e limitaes na implementao
das DAV: desafios prtica hospitalar; o medo das DAV e o respeito a autonomia: desejos
pessoais de cuidado dos profissionais remetidos a doena terminal; desejos dos cuidadores
familiares diante da situao de terminalidade; responsabilidade da famlia no cuidado ao
doente terminal; e o respeito a autonomia do doente terminal pelos familiares: o medo da
verdade. Os achados permitiram constatar que a aplicabilidade das DAV est intimamente
relacionada ao direito do indivduo de que sua autonomia seja respeitada. O reconhecimento
desse direito foi enfatizado constantemente, entretanto muitas nuances circulam em torno da
possibilidade de que as DAV possam de fato garantir esse direito, alm de que persistem
medos e receios para que efetivamente as manifestaes sobre os tratamentos a serem
utilizados numa situao de incapacidade possam ser implementados. Neste contexto, os
achados relacionados a aplicao das DAV suscitam a necessidade dessa temtica ser
frequentemente discutida no ambiente de assistncia sade, enfocando o ser humano que se
encontra em processo de morte, a fim de garantir o respeito autonomia pessoal e dignidade
humana.
Descritores: Diretivas antecipadas. Enfermagem. Biotica. Doente terminal. Autonomia
Pessoal.
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ABSTRACT
COGO, Silvana Bastos. Applicability of advance directives of will: a new look about death
and the relationship with life. 2016. 192 sheets. Thesis (Doctorate in Nursing) - School of
Nursing, Nursing Postgraduation Program, Federal University of Rio Grande, Rio Grande.
The advance directives of will (DAV) are entitled to leave the patient previously expressed
the treatments he wants, or not, to be submitted before his failure. Recently entered the
national scene, represent a plausible alternative for the patient's autonomy maintenance,
contributing to the reduction of ethical conflicts between health professionals, family
members and patients about decisions involving treatment and care at end of life. From this
perspective, assuming that patient autonomy is a determining factor in the applicability of the
DAV, the theoretical framework that supports this thesis was anchored in Beauchamp and
Childress, considering the concepts used in principlism related to autonomy, beneficence and
non-maleficence. The general objective of this study was: understanding how nurses, doctors
and family members of terminally ill understand the applicability of early-willed policies to
the terminal situations if defending a thesis that the applicability of the advance directives of
will in the hospital environment requires their knowledge and training nurses, doctors and
family members of terminally ill caregivers, demonstrating respect for personal autonomy of
patients and families. The methodological approach adopted was a qualitative research,
conducted by carrying out semi-structured interviews with eight nurses and seven medical
residents seven family caregivers of terminally ill patients of a university hospital in southern
Brazil. By discursive textual data analysis, seven categories emerged: conflicts in assisting the
terminally ill: implications to the practice of DAV; the support of family and professional
mediating respect for patient autonomy: advantages to the applicability of the DAV;
difficulties and limitations in implementing the DAV: challenges to hospital practice; fear of
DAV and respect the autonomy: personal desires of care professionals remitted to terminal
illness; the wishes of family caregivers on the terminally ill; family responsibility in the care
to the terminally ill; and respect to the autonomy of the terminally ill by family members: the
fear of the truth. The findings allowed to verify the applicability of the DAV is closely related
to the right of the individual that his autonomy to be respected. The recognition of this right
was emphasized constantly; however many nuances circulate around the possibility that the
DAV can actually guarantee this right, as well as persisting fears and regrets to effectively
demonstrations on the treatments to be used on incapacity can be implemented. In this
context, the findings related to the implementation of DAV raise the need for this theme often
be discussed in the health care environment, focusing on the human being who is in the dying
process, to ensure respect for personal autonomy and human dignity.
Descriptors: Advance Directives; Nursing; Bioethics; Terminally Ill; Personal Autonomy.
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RESUMEN
COGO, Silvana Bastos. Aplicabilidad de las directivas anticipadas de voluntad: nueva
mirada sobre la muerte y la relacin con la vida. 2016. 192 hojas. Tesis (Doctorado en
Enfermera) - Escuela de Enfermera, Programa de Postgrado en Enfermera de la Universidad
Federal de Ro Grande, Ro Grande.
Las directivas anticipadas de voluntad (DAV) tienen derecho a dejar al paciente previamente
expresado los tratamientos que desea o no ser presentada antes de su incapacidad.
Recientemente entr en la escena nacional, representan una alternativa plausible para el
mantenimiento de la autonoma del paciente, lo que contribuye a la reduccin de los
conflictos ticos entre los profesionales de salud, familiares y pacientes sobre las decisiones
que implican el tratamiento y la atencin al final de la vida. Desde esta perspectiva, en el
supuesto de que la autonoma del paciente es un factor determinante para la aplicabilidad de la
DAV, el marco terico que apoya esta tesis fue anclado en Beauchamp y Childress, teniendo
en cuenta los conceptos utilizados en principialismo relacionados con la autonoma,
beneficencia y no maleficencia. El objetivo de este estudio fue: para entender cmo los
enfermeros, los mdicos y los familiares de los enfermos terminales a entender la
aplicabilidad de las polticas de principios de voluntad a las situaciones terminales, si la
defensa de una tesis de que la aplicacin de las directivas anticipadas de voluntad en el
ambiente hospitalario requiere su de conocimiento y de formacin enfermeras, mdicos y
miembros de la familia de los cuidadores con enfermedades terminales, el respeto que
demuestra por la autonoma personal de los pacientes y las familias. El enfoque metodolgico
adoptado fue una investigacin cualitativa, llevada a cabo mediante la realizacin de
entrevistas semi-estructuradas con ocho enfermeras y siete mdicos residentes siete
cuidadores familiares de pacientes terminales de un hospital universitario en el sur de Brasil.
Por el anlisis de datos textual discursiva, siete categoras emergieron: conflictos en la
asistencia a los enfermos terminales: implicaciones para la prctica de la DAV; El apoyo de la
familia y el respeto de mediacin profesional para la autonoma del paciente: ventajas la
aplicabilidad de la DAV; dificultades y limitaciones en la aplicacin del DAV: desafos para
la prctica hospitalaria; miedo de DAV y respetar la autonoma: deseos personales
profesionales del cuidado remitidos a la enfermedad terminal; los deseos de los cuidadores
familiares delante a los enfermos terminales; la responsabilidad de la familia en el cuidado de
enfermos terminales; y respetar la autonoma de los enfermos terminales por miembros de la
familia: el miedo a la verdad. Los resultados permitieron verificar que la aplicabilidad de la
DAV est estrechamente relacionada con el derecho de la persona que se respete su
autonoma. El reconocimiento de este derecho se enfatiz constantemente, sin embargo
muchos matices circulan en torno a la posibilidad de que el DAV realmente puede garantizar
este derecho, as como los temores y pesares persistentes de manera efectiva demostraciones
sobre los tratamientos que se utilizan en la incapacidad puede implementar. En este contexto,
los resultados relacionados con la aplicacin de DAV plantean la necesidad de que este tema
suele ser discutido en el entorno de la atencin de la salud, centrada en el ser humano que est
en el proceso de la muerte, para garantizar el respeto de la autonoma personal y la dignidad
humana.
Descriptores: Directivas Anticipadas; Enfermera; Biotica; Enfermos Terminales;
Autonoma Personal.
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SUMRIO
APRESENTAO 12
1 INTRODUO 14
2 REFERENCIAL TERICO 19
2.1O SURGIMENTO DA BIOTICA 19
2.2A BIOTICA PRINCIPIALISTA 22
2.2.1 Autonomia 23
2.2.2 No-maleficncia 26
2.2.3 Beneficncia 31
2.2.4 Justia 34
3REVISO DE LITERATURA 36
3.1REVISANDO CONCEITOS 36
3.1.1 As Diretivas Antecipadas de Vontade / Testamento Vital no contexto
mundial
36
3.1.2 Conceituando Diretivas Antecipadas de Vontade 40
3.1.3 Legislao do Conselho Federal de Medicina acerca das Diretivas
Antecipadas de Vontade
42
3.1.4 Ortotansia e as Diretivas Antecipadas de Vontade 46
3.2O RESGATE DA PRODUO CIENTFICA INTERNACIONAL E
NACIONAL DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
48
3.2.1 Estudantes e profissionais frente s Diretivas Antecipadas de Vontade 48
3.2.2 A enfermagem e as diretivas antecipadas de vontade 54
3.2.3 Receptividade dos pacientes s diretivas antecipadas de vontade 56
3.2.4 Questes familiares diante das diretivas antecipadas de vontade 62
4 PERCURSO METODOLGICO 66
4.1 DESENHO DO ESTUDO 66
4.2 O CENRIO DO ESTUDO 66
4.3 PARTICIPANTES DA PESQUISA 68
4.4 COLETA DOS DADOS 70
4.5 ANLISE DOS DADOS 71
4.6 CONSIDERAES TICAS 74
5 RESULTADOS E DISCUSSO 5.1 ARTIGO 1 Assistncia ao doente terminal: vantagens na aplicabilidade das
diretivas antecipadas de vontade no contexto hospitalar
5.2 ARTIGO 2 Dificuldades e limitaes na implementao das diretivas
antecipadas: desafios prtica hospitalar
5.3 ARTIGO 3 Diretivas antecipadas de vontade: desejos dos profissionais da
sade e cuidadores familiares quando remetidos a doena terminal
76
77
92
110
6 CONSIDERAES FINAIS 130
REFERNCIAS 137
APNDICES 145
ANEXOS 151
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12
APRESENTAO
A temtica da tese ora apresentada adveio de inquietaes oriundas da prtica
profissional, alm dos resultados obtidos na dissertao de mestrado, concluda em 2008, que
teve como propsito analisar as representaes sociais de enfermeiros e mdicos, atuantes em
uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), diante da prtica da ortotansia1 e como essas
representaes influenciavam a sua atuao profissional. A prtica da ortotansia havia sido
aprovada, em 2006, por meio de uma Resoluo2 do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Ao analisar as representaes dos enfermeiros e dos mdicos, foi possvel perceber
dificuldades relacionadas ao reconhecimento da iminncia da morte e a possibilidade de
vivenciar esse processo. A construo das representaes estava relacionada possibilidade
de no realizar a reanimao cardiorrespiratria (RCR), como alternativa de excluso de
sofrimento dos doentes terminais. Contudo, muitas discusses apareciam interpostas, como a
no participao da famlia nos processos decisrios, discordncias entre as condutas dos
mdicos que repercutiam diretamente na assistncia que a enfermagem prestaria ao paciente,
anseios, dvidas e medos quanto s punies legais frente a limitao de tratamento, e
indefinies de sua aplicabilidade frente ao doente terminal (COGO, 2008).
Ao ingressar no doutorado, optou-se por uma proposta aderente aos anseios da
pesquisadora, e coerente ao desenvolvido nas pesquisas realizadas pelo Ncleo de Estudos e
Pesquisas em Enfermagem e Sade (NEPES) da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). Assim desenvolveu-se uma pesquisa relacionada aplicabilidade das Diretivas
Antecipadas de Vontade (DAV), que se trata do direito do paciente exercer sua autonomia,
expondo a quais tratamentos gostaria, ou no, de se submeter, se algum dia estiver incapaz de
manifestar sua vontade, seja por estar inconsciente ou em um estado terminal (BOMTEMPO,
2012).O assunto recente no Brasil e prope um novo olhar acerca da morte e sua relao
com a vida, coadunando-se prtica da ortotnasia, alm de ser uma temtica que traz
preocupaes acrescidas prtica da enfermagem, considerando o cumprimento das vontades
manifestas, alm das dvidas relacionadas s questes legais e ao amparo profissional.
Assim, a estrutura da tese apresenta-se da seguinte maneira: introduo, referencial
terico, reviso de literatura, percurso metodolgico, resultados e discusso e consideraes
finais, alm das referncias, apndices e anexos.
1A ortotansia consiste em deixar o paciente morrer naturalmente, sem o uso de aparelhos que prolonguem a
vida artificialmente e propiciem vida puramente vegetativa. Trata-se de no empregar os meios artificiais de
prolongamento intil da vida humana (NOGUEIRA, 1995). 2Resoluo n 1805/2006, do CFM que regulamenta e autoriza a prtica da ortotansia (BRASIL, 2006).
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Na Introduo, primeiro captulo, apresenta-se a temtica das DAV, a
problematizao da sua aplicabilidade, justificando sua abordagem nessa tese, alm da
descrio da questo de pesquisa, da tese proposta e dos objetivos do estudo. No segundo
captulo, segue o Referencial terico fundamentada em Beauchamp e Childress, a partir da
teoria principialista, explorando os conceitos de autonomia, beneficncia e no maleficncia
que auxiliam na defesa da presente tese.
No terceiro captulo, a Reviso de literatura abrange as questes conceituais das
DAV e o testamento vital (TV), sua insero no contexto mundial as legislaes existentes
sobre a temtica; alm do resgate da produo cientfica internacional e nacional. No quarto
captulo, Percurso metodolgico, descreve-se o desenho e o cenrio do estudo, os
participantes da pesquisa, como se procedeu na coleta e anlise dos dados, alm das
especificaes relacionadas s consideraes ticas.
No quinto captulo, Resultados e discusso, constam trs artigos oriundos dos
resultados obtidos da tese: o primeiro, denominado Assistncia ao doente terminal:
vantagens na aplicabilidade das diretivas antecipadas de vontade no contexto
hospitalar objetivou conhecer vantagens relacionadas aplicabilidade das DAV no contexto
hospitalar, na perspectiva de enfermeiros, mdicos residentes e cuidadores familiares. O
segundo artigo intitulado Dificuldades e limitaes na implementao das diretivas
antecipadas: desafios prtica hospitalar teve como objetivo conhecer dificuldades e
limitaes relacionadas implementao das DAV no contexto hospitalar. O ltimo artigo
objetivou conhecer o entendimento de enfermeiros, mdicos e cuidadores familiares quando
remetidos possibilidade de se tornarem doentes terminais sobre a aplicabilidade das DAV,
intitulado Diretivas antecipadas de vontade: desejos dos profissionais da sade e
cuidadores familiares quando remetidos a doena terminal.
O sexto captulo, Consideraes finais, apresenta-se a sntese dos resultados oriundos
da pesquisa, associada confirmao da tese proposta, bem como a demonstrao da
necessidade de ampliar estudos sobre a temtica, encerrando a apresentao dessa pesquisa.
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1 INTRODUO
Os recursos tecnolgicos avanam com desmedida velocidade e repercutem em
diferentes setores da sociedade. Na rea da sade, pode-se dizer que os tratamentos
disponveis capazes de curar as diversas enfermidades elevaram a expectativa de vida,
incidindo com o prolongamento do tempo de vida saudvel das pessoas. Entretanto, tambm
aumentaram a busca pelos servios de sade, a fim de obter a cura, mesmo quando as
tecnologias disponveis so ineficazes e as possibilidades curativas j no so mais possveis.
Desse modo, com a tecnologia disponvel, a sensao de que realmente se est fazendo
algo pode ser confundida, assim como h o risco de perder o bom senso perante um doente
terminal, prolongando, assim, seu processo de morrer, em vez de lhe proporcionar mais vida
(NEVES, 2013). Sem dvida, a unio da medicina com a tecnologia trouxe novidades em
nvel de opes pela qualidade de vida, mas tambm implicaes ticas, uma vez que a
mesma tecnologia que prolonga a vida de uma pessoa pode simplesmente prolongar o
processo de morrer da outra (PESSINI, BARCHIFONTAINE, 2012).
Na viso de Nunes (2012), a utilizao excessiva de tecnologia sofisticada contribuiu
decisivamente para a desumanizao da prestao de cuidados de sade, em virtude da
utilizao desproporcional de meios de tratamento em doentes terminais, ou seja, aquilo que
se designa por obstinao teraputica ou distansia, uma prtica difcil de ser alterada em
virtude da disponibilizao abusiva de novas tecnologias biomdicas. Complementa-se, ainda,
o fato de que a cultura medicalizadora da vida impe que se continue a adiar seu momento
final (BUSSINGUER; BARCELLOS, 2013).
Entretanto, neste contexto, tem-se percebido uma preocupao, tanto por parte de
profissionais da rea da sade, dos operadores do direito, quanto dos cidados, com a questo
do morrer (MOREIRA, 2013). Ademais, no futuro, o aumento da amplitude das intervenes
tcnico-cientficas sobre a vida humana e a doena ser uma realidade, mas, ao mesmo tempo,
os doentes e os profissionais de sade estaro mais conscientes das necessidades de
determinar quando e como essas intervenes so benficas para as pessoas, considerando o
direito morte digna, bem como o respeito pela autonomia dos pacientes (NEVES, 2013).
nessa perspectiva que surgem as DAV3 que, conforme Nunes (2012) permitem uma
3 Ser adotado o termo Diretivas Antecipadas de Vontade, considerando a nomenclatura estabelecida pela
Resoluo do CFM. No entanto, existem diferentes proliferaes vocabulares tratadas como sinnimos, como
por exemplo: manifestao explcita da prpria vontade, testamento vital, testamentos em vida, biotestamento,
testamento biolgico, diretivas avanadas, vontades antecipadas, declarao prvia da vontade, entre outras.
Ressalta-se que o termo Testamento Vital ser citado, pois existem referncias que o tratam como sinnimos.
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pessoa, devidamente esclarecida, recusar determinado tipo de tratamento que no seu quadro
de valores inaceitvel, ou seja, reforam a possibilidade do exerccio da sua liberdade de
autodeterminao, possibilidade que a sociedade vem concedendo progressivamente aos
cidados. Alm disso, de acordo comPautex, Herrmann e Zulian (2008), as DAV ajudam os
profissionais da sade a entender os valores e desejos dos pacientes, mas, alm disso, atuam
como veculos para discusses aprofundadas e permanentes entre profissionais de sade,
pacientes e familiares. Assim, as DAV propem um desafio de reconhecimento da autonomia
dos pacientesnos processos decisrios dos tratamentos querepercutem diretamente nas
relaes entre mdico e paciente, mdico e famlia dopaciente, e mdico com a equipe
assistencial (ALVES; FERNANDES; GOLDIM, 2012).
Face ao exposto e diante de um cenrio de ausncia normativa jurisprudencial, no
Brasil, o CFM promulgou a Resoluo n1.995/2012 que dispe, em trs artigos, a
possibilidade de aplicao das DAV. certo que tal Resoluo est longe de encerrar as
vrias polmicas que permeiam esse assunto, relacionadas sua aplicabilidade; expectativa
que a vontade das pessoas corresponda deciso final; insero do profissional de sade no
processo das DAV e se esse pode ou tem capacidade para alterar a deciso do paciente, alm
de outras dvidas. Contudo, h que se destacar que essa prtica est vigente no Brasil e a
preocupao com os procedimentos mdicos a serem realizados no fim da vida ou em
situaes de estado terminal fez crescer a procura por testamentos vitais.
Partindo do exposto, o aumento da expectativa de vida no Brasil e, consequentemente,
da ocorrncia de doenas incapacitantes e neurodegenerativas, alm do maior acesso
informao, constituem razes significativas para o aumento do interesse pelas DAV. Assim,
Cambricoli (2015) destaca que, segundo levantamento realizado pelo Colgio Notarial do
Brasil Seco So Paulo (CNB- SP), entre 2009 e 2014, o nmero de documentos do tipo de
testamento vital registrados em cartrio cresceu 2000%. O balano indicou que em 2009
foram registrados 26 testamentos vitais; em 2011, foram 68; em 2012, o nmero subiu para
167; em 2013, foram 477 e em 2014 o nmero passou para 542. O Estado de So Paulo o
que registrou o maior nmero de documentos em 2014: 374, seguido de Mato Grosso (MG)
com 86 e Rio Grande do Sul (RS) com 53.
No cenrio internacional, onde a prtica das DAV vigente h dcadas, constatando-
se que, embora a temtica ainda suscite certas dificuldades de aplicao, ela bem aceita pela
populao, pacientes e profissionais da sade (BARNES et al., 2007; PAUTEX;
HERRMANN; ZULIAN, 2008; HU et al., 2010; VAN et al., 2010; WILSON; SEYMOUR;
PERKINS, 2010; FRANCO; SILVA; SATURNO, 2011; EVANS et al., 2013; KEAM et al.,
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2013; CUCALN-ARENAL et al., 2013). Entretanto, algumas reservas devem ser feitas ao
generalizar os resultados de pases que autorizam a prtica das DAV, porque diferenas na
legislao e sistemas de cuidados de sade, assim como diferenas culturais, podem ter
grande influncia sobre os processos de tomada de deciso (RONDEAU; SCHMIDT, 2009).
No cenrio brasileiro, as contribuies sobre as DAV, em geral, envolvem anlises
tericas de natureza filosfica e jurdica (RIBEIRO, 2006; PENALVA, 2009; ALVES;
FERNANDES; GOLDIM, 2012; BOMTEMPO, 2012; ALVES, 2013; BUSSINGUER;
BARCELLOS, 2013; DADALTO, 2013a; DADALTO, 2013b; ROCHA et al., 2013), com
apenas uma pequena percentagem de artigos relatando resultados de pesquisas empricas
realizadas com seres humanos (PICCINI et al., 2011; STOLZ et al., 2011; CAMPOS et al.,
2012; DADALTO; TUPINAMBS; GRECO, 2013; CASSOL; QUINTANA; VELHO, 2015;
CHEHUEN NETO, et al., 2015; SILVA, et al., 2015), destacando-se que diversas pessoas,
mesmo do meio cientfico, ainda no a conhecem. Para Xavier (2013), abordar essa temtica
importa tangenciar as mais delicadas crenas e convices, uma vez que possibilita que as
prprias pessoas realizem escolhas importantes acerca do rumo de suas vidas, ampliando-as
ou as abreviando.
Desse modo, embora se saiba sobre a realidade internacional que, h dcadas, realiza
discusses sobre a temtica, diferentemente do Brasil, considera-se que preciso entender
como as DAV so percebidas por uma parcela da populao para quem o tema ainda recente
e gerador de dvidas, destacando-se a importncia de novas investigaes para explorar seu
processo de aplicabilidade e aceitabilidade de planejamento. Assim, a fim de implementar
uma prtica de diretivas antecipadas com sucesso, supe-se que seja preciso entender de
forma abrangente atitudes em relao as DAV, alm de construir uma estratgia adequada
com base nesses resultados.
H que se destacar a relevncia de explorar pontos de vista dos enfermeiros e mdicos
que atuam no contexto hospitalar, alm dos familiares de doentes considerados terminais com
relao ao planejamento da assistncia, podendo ajudar os profissionais da sade que atuam
com doentes terminais no planejamento de cuidados ao fim da vida, bem como aos seus
familiares que, por vezes, so os protagonistas nos processos decisrios em fim de vida. A
abordagem em relao declarao das DAV requer que sejam empreendidas novas aes
que visem proposta fundamental da prpria declarao: a garantia de respeito vontade do
doente terminal (ROCHA et al., 2013).
Partindo do pressuposto que a autonomia do paciente fator determinante na
aplicabilidade das DAV, o referencial terico que embasa essa tese est ancorada nas ideias
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de Beauchamp e Childress (2002), considerando os conceitos utilizados na teoria
principialista referentes autonomia, beneficncia, no-maleficncia e justia. Para esses
autores, a autonomia requer mais que a obrigao de no interveno em assuntos pessoais,
porque inclui a obrigao de manter a capacidade de escolha autnoma em pessoas que
estejam com receios e outras condies que debilitam ou interrompam a ao autnoma.
Nessa perspectiva, acredita-se que desvelar o entendimento atribudo pelos
profissionais da sade s DAV, prioritariamente enfermeiros e mdicos, auxiliar na
assistncia aos pacientes. A enfermagem, por atuar diretamente com o paciente, e por diversos
momentos ser por eles solicitada, dever ser conhecedora dessa opo das DAV e, alm disso,
assumir o papel de informar, respeitar, acompanhar e cuidar o doente terminal, no podendo
ser alheia ao processo de planeamento, concepo e cumprimento das DAV (NEVES, 2013).
Assim, parte-se do pressuposto de que os benefcios das diretivas antecipadas no so
exclusividade do paciente, que ter sua vontade assegurada, mas tambm oferecem respaldo
aos profissionais da sade que disporo de uma maior segurana para agir, uma vez que
amparados na vontade expressa do paciente. Destaca-se, tambm, a to almejada resoluo de
problemas ticos e morais, perante os quais os profissionais da sade so submetidos, quando
os pacientes perdem sua capacidade autnoma (RAJO, 2013).
Diante dos apontamentos elencados, com a finalidade de sensibilizar os profissionais
da sade sobre essa temtica e contribuir para a reflexo sobre as questes ticas do final de
vida, contribuindo com estudos sobre as DAV com evidncias cientficas na rea da prtica
dos cuidados em sade, justamente por ainda no se possuir regulamentao legal no Brasil, e
pela carncia de especificaes detalhadas sobre sua aplicabilidade pelos profissionais da
sade e familiares de doentes terminais, delineou-se como questo de pesquisa: Qual o
entendimento da aplicao das diretivas antecipadas de vontade para os enfermeiros, mdicos
e familiares de doentes terminais?
Desse modo, considerando-se que as DAV auxiliam na manuteno da dignidade
humana, da autonomia do paciente, na reduo de conflitos ticos dos profissionais da sade e
familiares diante das situaes de terminalidade, buscou-se defender e sustentar a seguinte
tese: a aplicabilidade das diretivas antecipadas de vontade no ambiente hospitalar
requer seu conhecimento pelos enfermeiros, mdicos e familiares de doentes terminais,
demonstrando o respeito autonomia dos pacientes e familiares.
Nessa perspectiva, por ser um tema recente no mundo e principalmente no Brasil e,
portanto, possivelmente ainda pouco debatido, a fim de defender a referida tese, definiu-se o
seguinte objetivo geral para essa pesquisa: compreender como enfermeiros, mdicos e
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familiares de doentes terminais entendem a aplicabilidade das diretivas antecipadas de
vontade para as situaes de terminalidade. A fim de complementar, os objetivos especficos
dessa pesquisa incluem:
Conhecer o entendimento de enfermeiros, mdicos e cuidadores familiares quando
remetidos possibilidade de se tornarem doentes terminais sobre a aplicabilidade das
Diretivas Antecipadas de Vontade.
Conhecer vantagens, dificuldades e limitaes elencadas pelos enfermeiros, mdicos e
cuidadores familiares relacionadas a aplicabilidade dasDiretivas Antecipadas de
Vontade no contexto hospitalar.
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2 REFERENCIAL TERICO
O referencial terico da presente tese, apresentada neste captulo, debrua-se nas ideias
compartilhadas por Beauchamp e Childress, a partir da teoria principialista que aborda os
conceitos da beneficncia, no-maleficncia, autonomia e justia. Nesta tese, sero exploradas
e direcionadas as discusses aos trs primeiros conceitos, considerando serem os que melhor
ilustram a aplicabilidade das DAV. Assim, inicialmente, ser apresentada a contextualizao
histrica do surgimento da biotica e, logo aps, a teoria principialista com seus conceitos.
2.1O SURGIMENTO DA BIOTICA
A tica mdica foi desenvolvida a partir dos trabalhos de Hipcrates e seus seguidores.
A atitude do mdico perante o paciente, desde ento, baseava-se no modelo da beneficncia,
ou seja, a deciso tanto diagnstica quanto teraputica era mdica, cabendo, ao paciente,
somente cumprir as decises. Assim, a autoridade mdica, reforada e legitimada pela
conquista do monoplio profissional, se incorporou aos cdigos de tica dos sculos passados,
que tinham em comum a defesa do privilgio e da responsabilidade profissional na arte de
curar. O modelo paternalstico concebia o mdico como o maior responsvel e como aquele
que, de fato e de direito, decidia pelos pacientes, sendo esses considerados incapazes de
participar das decises (ALMEIDA, 1999).
O primeiro movimento no sentido de validar a representao moral do paciente na
participao das decises mdicas veio dos tribunais norte-americanos que reconheceram o
direito da pessoa autodeterminao. No ano de 1957, surgiu o termo "consentimento livre e
esclarecido" que, no ambiente clnico, significou a passagem do modelo da beneficncia para
o modelo da autonomia por meio da informao e do consentimento esclarecido. O
deslocamento do modelo mdico paternalstico para a representao moral do paciente pode
ser considerado o primeiro passo para o desenvolvimento da biotica (ALMEIDA, 1999).
No final da dcada de 60 e da de 70, escndalos ocorridos no mbito da assistncia e
da pesquisa biomdica repercutiram nos meios cientficos e na mobilizao da opinio pblica
que assumiu uma forte dimenso moral, exigindo regulamentao tica.Um dos primeiros
dilemas, que impulsionou para um realinhamento de valores no mundo da medicina em 1962,
refere-se ao acontecimento em torno da dilise em Seattle, ou seja, a escolha de pacientes que
participariam do programa de hemodilise (CALLAHAN, 2012). Em 1966, outra situao
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escandalosa referente s implicaes ticas oriundas da realizao de pesquisas biomdicas,
que aconteciam, quase que exclusivamente, com indivduos vulnerveis como prisioneiros,
doentes mentais, soldados ou minorias tnicas (ALMEIDA, 1999).
Em 1972, se expuseram, publicamente, casos paradigmticos necessidade de impor
limites prtica cientfica. Dentre esses, trs, particularmente, marcaram a conscincia
pblica sobre abusos cometidos pela comunidade cientfica: considerado uma das maiores
vergonhas da medicina norte-americana, o "Estudo Tuskegee de Sfilis No-Tratada em
Homens Negros"; o segundo caso tinha por objetivo desenvolver uma vacina para a hepatite B
e os mdicos infectaram, propositadamente, com o vrus da hepatite B, cerca de 700 a 800
crianas mentalmente retardadas; no terceiro caso, pesquisadores injetaram clulas hepticas
cancergenas em vinte e dois pacientes idosos e senis (REICH, 2012).
Nesse contexto, formado pelos abusos da cincia e da despersonalizao da assistncia
mdica, terreno sobre o qual a desconfiana nas relaes mdico-paciente cresceu, surge a
biotica que, de acordo com a origem grega, significa bios (vida) e tica (costumes e valores),
proveniente de dois lugares: em Madison, Wisconsin e em Washington. Quem cunhou o
neologismo "biotica" foi o mdico oncologista Van Rensslaer Potter, da Universidade de
Wisconsin, no livro Bioethics: bridge to the future, publicado em 1971; Andre Hellegers, na
Universidade de Georgetown, foi quem primeiro o usou num contexto institucional, para
designar a rea de pesquisa ou campo de aprendizagem que hoje se celebra (REICH, 2012).
A proposta de Potter era a de estabelecer uma ponte entre as cincias biolgicas e os
valores morais, em vista de fundar uma nova tica baseada no escopo da sobrevivncia
humana num ambiente saudvel. Entretanto, alguns meses aps Potter haver introduzido o
novo termo, alguns estudiosos da Georgetown University, tendo o mdico obstetra,
fisiologista fetal e demgrafo Andr Hellegers frente, utilizaram o mesmo neologismo, mas
com um sentido diferente (REICH, 2012).
A biotica, segundo o "modelo Georgetown", seria um campo interdisciplinar da
prpria filosofia moral (e no entre cincia e filosofia como era para Potter), que deveria tratar
de dilemas biomdicos concretos, restritos a trs reas: "a) os direitos e deveres dos pacientes
e dos profissionais de sade; b) os direitos e deveres na pesquisa envolvendo seres humanos;
e c) a formulao de umguideline para a poltica pblica, o cuidado mdico e a pesquisa
biomdica" (REICH, 2012).
Na Universidade de Georgetown, foi criado, em 1971, o Kennedy Institute for Study of
Human Reproduction and Bioethics com o objetivo especfico de introduzir eticistas em
laboratrios e em reas clnicas, onde decises de vida e de morte seriam realizadas (REICH,
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2012). A biotica, portanto, nasce de duas concepes, aparentemente inconciliveis. De um
lado, a concepo de Potter vinculando a duas formas de conhecimento, distintas desde o final
do sculo XIX por Wilhelm Dilthey, como Cincias Naturais e Cincias do Esprito,
fundando duas tradies disciplinares diferentes e legtimas, cada uma no seu campo de
pertinncia e de aplicao especfico (CALLAHAN, 2012).
Por outro lado, a concepo do Instituto Kennedy a considerava uma disciplina
pertinente ao campo da filosofia aplicada aos dilemas biomdicos. Com o desenvolvimento da
biotica, foi ficando cada vez mais patente a distino de abordagem metodolgica dessas
duas vises. Enquanto Potter defendia o desenvolvimento de uma tica geral e normativa para
a sade global, com base nos mtodos das cincias naturais, o Instituto Kennedy buscava
inscrever a nova disciplina no campo da filosofia moral, sem recorrer s ferramentas
cientficas, mas sim a certos princpios da tica normativa aplicados aos emergentes
problemas da biomedicina (ALMEIDA, 1999).
Vagarosamente, os pesquisadores comearam a perceber e o pblico comeou a exigir
que os estudos deveriam ser conduzidos de tal forma que no levassem em conta somente o
avano cientfico, mas protegessem os direitos e o bem estar das pessoas. O congresso
americano criou uma comisso nacional para proteo de questes humanas de pesquisa
biomdica e comportamental, a fim de recomendar regras que guiariam os pesquisadores no
estabelecimento de uma pesquisa tica. Tal comisso, que atuou de 1974 a 1978, procurou
ajuda de uma variedade de especialistas de vrias disciplinas, consultando a opinio pblica
em muitas questes (CALLAHAN, 2012). Desse modo, foi publicado o Relatrio Belmont
(Belmont Report), no qual a comisso props trs princpios ticos globais que causaram
grande impacto na comunidade mdico-cientfica: o respeito pelas pessoas (autonomia), a
beneficncia e a justia. O relatrio inaugurou um novo estilo tico de abordagem
metodolgica dos problemas envolvidos na pesquisa em seres humanos (PESSINI, 2002).
No entanto, o Relatrio Belmont referia-se somente s questes ticas levantadas pela
pesquisa em seres humanos, sem preocupao com o campo da prtica clnica e assistencial.
Assim, muitas das controvrsias da tica biomdica surgiram em torno de doentes terminais e
de pacientes gravemente doentes, emergindo a necessidade de uma estrutura que orientasse as
decises a respeito dos procedimentos de suporte de vida e da assistncia na morte.
Em consequncia, conforme Almeida (1999), veio a lume o livro de Tom Beauchamp
e James Childress, Principles of Biomedical Ethics, publicado pela primeira vez em 1977.
Trata-se do documento em biotica mais divulgado no mundo e, ainda hoje, referncia central
no debate biotico, em queos autores expem uma teoria, fundamentada em quatro princpios
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bsicos - no maleficncia, beneficncia, respeito autonomia e justia. Pessini (2002) refere
que Beauchamp e Childress retrabalharam os trs princpios do Relatrio Belmont em quatro,
distinguindo beneficncia de no-maleficncia, por entenderem a tica biomdica como uma
tica aplicada aos problemas da prtica mdico-assistencial.
No incio dos anos 80, o movimento da biotica j estava ganhando terreno firme. A
bioticaera uma criao do tempo. Foi concebida como uma resposta s novas tecnologias em
medicina, mas gestada numa cultura sensvel a determinadas dimenses ticas, de modo
especial ao direito dos indivduos e ao abuso de instituies poderosas. A assistncia da sade
tornou-se uma instituio poderosssima, com tecnologias igualmente poderosas. As
necessidades e preferncias dos pacientes deveriam ser defendidas vigorosamente. A primeira
dcada da biotica como movimento e disciplina fez justamente isso (CALLAHAN, 2012).
2.2A BIOTICA PRINCIPIALISTA
A abordagem biotica dos quatro princpios ou simplesmente principialismo, de
Beauchamp e Childress, partiram do pressuposto de que o caminho para uma tica aplicada s
decises clnicas no poderia vir, por deduo, de teorias ticas nem ser inferida de situaes
clnicas particulares; deveria ser construda desde umamiddle level theory, representada
porum conjunto de princpios ticosprima facie e que funcionasse como modelo a se adaptar
s situaes concretas (PESSINI, 2002). Desse modo, conforme o autor supracitado, a origem
da reflexo acerca da tica principialista norte-americana estava na preocupao pblica com
o controle social da pesquisa em seres humanos.
Os primeiros bioeticistas encontraram, nos princpios, meios acessveis para a
resoluo dos conflitos ticos, ajudando a clarear questes extremamente difceis e polmicas
trazidas pela tecnocincia. Assim, o principialismo foi o porto seguro para os mdicos durante
o perodo de profundas mudanas na compreenso tica dos cuidados clnicos assistenciais
nos EUA, e, consequentemente, levando ao fortalecimento do chamado principialismo, que,
sem dvida, teve grandes mritos e alcanou muito sucesso. Em grande parte, o que a
biotica nestes poucos anos de existncia principalmente resultado do trabalho de
bioeticistas na perspectiva principialista (PESSINI, 2002).
Na biotica, o principialismo norte-americano , globalmente, uma das correntes mais
difundidas, considerando o sucesso da proposta no que se refere a sua funo prtica na
tomada rpida de decises, que acompanha o fazer mdico (CORREA, 2013). Os quatro
princpios procuram subsidiar um ponto de partida para orientar as discusses ticas de como
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elas podem ser melhor respeitadas em cada caso. Os princpios facilitam e ordenam a anlise
dos casos concretos e, a partir de ento, se pode necessitar de outros valores para aprofundar a
anlise tica. Nesse sentido, na Biotica contempornea, o principialismo apresenta um
conjunto de postulados bsicos que no podem ser ignorados, mesmo que no tenham,
reconhecidamente, um carter incondicional de princpios (PESSINI, 2002).
O conjunto dos quatro princpios, devido a sua intensa utilizao e grande aceitao,
passou a ser chamado de Mantra do Instituto Kennedy de tica. Partindo do pressuposto que o
principialismo se baseia no uso dos princpios como modelo explicativo para encontrar
solues aos dilemas e problemas bioticos inerentes prtica mdica, optou-se por esse
referencial terico a fim de nortear e subsidiar as discusses propostas na presente tese.
Considera-se a sua pertinncia na contextualizao das DAV, pois essas se respaldam,
principalmente, na possibilidade que o indivduo tem de escolher como viver os seus ltimos
dias como um tributo sua vida pretrita e um ato ligado ao direito ao corpo e ao livre
desenvolvimento da personalidade, a todos assegurado (FURTADO, 2013).
Importante destacar que os quatro princpios no possuem um carter absoluto, nem
tm prioridade um sobre o outro, servem como regras gerais para orientar a tomada de deciso
frente aos problemas ticos e para ordenar os argumentos nas discusses de casos
(BEACHAMPS; CHILDRESS, 2002).
2.2.1 Autonomia
As DAV consideram como prioritrio o direito do paciente ter os seus desejos, quantos
aos possveis tratamentos a que quer ou no ser submetido diante de uma situao de
incapacidade, a garantia que sua autonomia seja respeitada, considerando o registro prvio de
suas vontades. Desse modo, embora se reconhea a relevncia do principialismo s DAV,
uma das principais motivaes dos pacientes para complet-las se refere ao fato de assegurar
sua autonomia (PAUTEX; HERRMANN; ZULIAN, 2008). Assim, as DAV situam-se no
mbito da autonomia do paciente, considerada neste cenrio prima facie4.
A palavra autonomia significa, para Beauchamp e Childress (2002, p. 137), o
autogoverno, direitos de liberdade, privacidade, escolha individual, liberdade da vontade, ser
o motor do prprio comportamento e pertencer a si mesmo. Para esses autores, as
manifestaes das decises autnomas que antecedem perodos de incapacidade, devem ser
4 a obrigao que deve ser cumprida a menos que entre em conflito, numa ocasio particular, com uma
obrigao de importncia equivalente ou maior (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
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consideradas vlidas e obrigatrias aps se tornar incapaz. Respeitar o paciente autnomo ,
no mnimo, reconhecer seu direito de ter suas opinies, fazer suas escolhas e agir com base
em seus valores e crenas pessoais.
No cenrio brasileiro, a legislao, a partir do Cdigo Civil (BRASIL, 2002),
contempla o respeito autonomia do paciente, conforme o Art. 13, salvo por exigncia
mdica, defeso o ato de disposio do prprio corpo, quando importar diminuio
permanente da integridade fsica, ou contrariar os bons costumes. Alm disso, o Ministrio
da Sade (MS) editou a Portaria n. 675/GM (Gabinete do Ministro) de 30 de maro de 2006
(BRASIL, 2006), aprovando a Carta dos Direitos dos Usurios da Sade, onde consta o
direito recusa de procedimentos diagnsticos, preventivos ou teraputicos, e tambm de
revogar ou retratar, a qualquer momento, as recusas anteriores, alm do direito da indicao
de um representante legal a quem confiar, no futuro, a tomada de decises para a
eventualidade de tornar-se incapaz de exercer sua autonomia.
A Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos, em seu Art. 5, expe que
a autonomia das pessoas deve ser respeitada, quando possam ser responsveis por essas
decises e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para
proteger direitos e interesses dos indivduos que no so capazes de exercer autonomia.
Desse modo,as DAV so exatamente o exerccio do direito fundamental liberdade, uma vez
que um espao que o indivduo tem para tomar decises pessoais, imunes a interferncias
externas, sejam elas dos mdicos, da famlia ou de qualquer pessoa e/ou instituio que
pretenda impor sua prpria vontade (DADALTO, 2013a).
No entanto, Beauchamp e Childress (2002) destacam que a ao autnoma no exige o
entendimento pleno ou ausncia de influncia, pois em geral as decises so influenciadas
pelos desejos pessoais, presses familiares, obrigaes legais e presses institucionais. A
autonomia est relacionada capacidade de aceitar racionalmente, identificar-se com ou de
repudiar um desejo ou preferncia a partir do entendimento da informao transmitida que
possibilita fazer um julgamento, visando um resultado e comunicando livremente seu desejo.
Por isso, a necessidade de atentar para a maneira como a informao apresentada, o que
pode manipular a percepo e a reao do paciente, repercutindo em uma base insatisfatria
para sua tomada de decises.
Entretanto, existem situaes que os pacientes rejeitam receber informaes,
delegando a deciso, por terem confiana irrestrita, aos mdicos. oportuno estimular que
processem a informao de modo diferente, minimizando compreenses equivocadas, mesmo
que, por vezes, apresentem uma base de conhecimento limitada e no entendam a informao
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para avaliar sua relevncia de modo suficiente para tomar decises sobre cuidados mdicos
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
nesse momento que podem surgir os problemas de autonomia no contexto mdico.
Em razo da condio dependente do paciente e da posio de autoridade do profissional, na
medicina, pode haver a inteno de usar a autoridade mdica a fim de fomentar a dependncia
dos pacientes, em vez de promover sua autonomia. O cumprimento da obrigao de respeitar
a autonomia, entretanto, requer habilit-lo para superar seu senso de dependncia e obter o
maior controle possvel ou o controle que deseje (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Desse modo, os autores supracitados expem que a escolha prvia do paciente deve
ser honrada, pois, de outro modo, os mdicos lhe causariam injria, contrapondo seu pedido
ou teriam de engan-lo, no lhe dizendo a verdade. Consequentemente, realizar algo contra a
vontade expressa do paciente uma violao de sua autonomia, um desrespeito e um insulto
pessoa, ou seja, significa trat-lo como um meio, de acordo com os objetivos dos outros, sem
preocupar-se com o que esse indivduo almeja. Neste sentido, as intervenes contra as
diretivas antecipadas infringem o princpio do respeito autonomia, embora possam, em
alguns casos, ser justificadas, pois pode haver problemas de interpretao e de determinao
se o agente era capaz, quando formulou as DAV.
No contexto das DAV, as crenas, as escolhas e os consentimentos das pessoas podem
se modificar com o tempo, emergindo problemas morais e interpretativos, pois seria
incoerente a imposio de uma vontade sobre outra ao determinada por uma diretiva
antecipada. Desse modo, preciso atentar para o julgamento da capacidade5 do paciente,
distinguindo as decises autnomas que devem ser respeitadas daquelas decises que
precisam ser checadas e, talvez, suplantadas por um substituto (BEAUCHAMP;
CHILDRESS, 2002).
Os decisores substitutos tomam as decises por pacientes incapazes, no autnomos, a
partir de trs modelos: o julgamento substituto o modelo de autonomia fraco, pois se exige
que o decisor substituto se ponha nas vestes mentais do incapaz, sendo utilizado para
pacientes que j foram capazes, crendo que a deciso seria a escolhida pelo paciente; o da
pura autonomia que se aplica a pacientes que j foram autnomos e que expressaram suas
5 A palavra capacidade relaciona-se habilidade de realizar uma tarefa e os critrios das capacidades particulares
variam de contexto para contexto, pois se referem a tarefas especficas, como por exemplo a capacidade para
decidir sobre um tratamento. Quando, a princpio, se revela muito difcil determinar o grau de capacidade,
conveniente avaliar o entendimento do paciente, sua habilidade deliberativa e sua coerncia ao longo do tempo,
fornecendo, concomitantemente, aconselhamento, apoio e informao. Embora as propriedades mais cruciais
para a determinao da capacidade sejam controversas, no contexto biomdico, uma pessoa geralmente
considerada capaz caso esteja apta a compreender uma terapia ou um procedimento, a deliberar acercade riscos e
benefcios importantes e a tomar uma deciso luz dessa deliberao (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
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decises ou preferncias pessoais para a tomada de decises; e o dos melhores interesses do
paciente em que o decisor deve determinar o maior benefcio entre as opes possveis,
atribuindo diferentes pesos aos interesses que o paciente tem em cada opo e subtraindo os
riscos e os custos inerentes a cada uma (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Nesse contexto, importante que os substitutos respeitem os julgamentos autnomos
prvios do paciente ou que ajam de forma responsvel como decisores, pois difcil encontrar
pessoas apropriadas que desejem assumir a tarefa de tutelar para pessoas incapazes, e as
famlias, algumas vezes, tomam decises que entram em choque com os desejos do paciente.
Nesse sentido, Beauchamp e Childress (2002) expem que os pacientes anteriormente
capazes, que tenham expressado autonomamente suas preferncias na forma de uma DAV,
devem ser tratados segundo o modelo da pura autonomia. O paciente conquistou o poder de
tomar decises sobre sua sade e sua vida; de sujeito passivo passou a titular do direito. O
profissional de sade, de sujeito ativo, passou a titular de uma obrigao. Antes soberano para
tomar decises, passou a conselheiro, num dilogo franco com o paciente, titular do direito de
tom-las mediante esclarecimento que lhe devido pelo profissional (RIBEIRO, 2006).
O princpio de respeito autonomia tornou-se, nestas ltimas dcadas, uma das
principais ferramentas conceituais da tica aplicada, sendo utilizado em contraposio ao
assim chamado paternalismo mdico. No conjunto dos princpios bioticosprima facie, (isto ,
que admitem excees de acordo com as circunstncias especficas), o de respeito
autonomia tem relevncia no campo biomdico. Em sociedades democrticas e pluralistas,
ningum teria o direito de impor aos outros seus estilos de vida e suas concepes sobre bem
e mal. Aplicado prtica mdica, o princpio de respeito autonomia vem trazendo dilemas
ticos prtica mdica paternalista. Com efeito, os pacientes, amparados por normas e
legislaes que buscam garantir o direito autodeterminao, aceitam cada vez menos
passivamente ordens mdicas relacionadas sua sade. Nesse sentido, os princpios de
respeito autonomia e do consentimento livre e esclarecido so os princpios centrais na
anlise das mudanas da prtica mdica contempornea (ALMEIDA, 1999).
2.2.2 No-maleficncia
No contexto do paradigma principialista, o princpio que respalda a prtica das DAV
a no-maleficncia que determina a obrigao de no prejudicar e de no impor riscos ou
dano intencionalmente. Assim, so sancionados os julgamentos sobre a qualidade de vida, ou
seja, que se permite, em determinadas condies, que os pacientes, os decisores e os
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profissionais de sade estabeleam distines entre a absteno e a interrupo dos
tratamentos, aps ponderaem os custos e os benefcios (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Os profissionais e membros da famlia julgam que as decises de interromper
tratamentos so mais importantes e mais graves que as decises de no inici-los. A ideia
que essas aes os tornam responsveis e culpveis pela morte do paciente, enquanto no so
responsveis se no derem incio ao tratamento. Entretanto, os pacientes e os substitutos,
muitas vezes, ficam menos estressados e sentem-se com mais controle se uma deciso pelo
tratamento puder ser revertida ou modificada depois que houver sido iniciada
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
A distino entre a absteno e a interrupo de um tratamento moralmente
insustentvel, pois as duas opes podem causar a morte de um paciente, e ambas podem ser
exemplos da ao de deixar morrer; contudo, interromper um tratamento particular, incluindo
o de suporte de vida, no envolve necessariamente o abandono do paciente. A interrupo
pode seguir diretrizes do paciente e ser acompanhada e seguida por outras formas de cuidado
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002). As decises sobre os tratamentos devem se basear em
consideraes a respeito dos direitos e do bem-estar do paciente, e, portanto, dos custos e
benefcios do tratamento, conforme julgados pelo paciente ou por um substituto.
No contexto da no-maleficncia, a limitao de um suporte de vida, especificamente
a recusa RCR, Beauchamp e Childress (2002) destacam que essa deciso , muitas vezes,
independente de outras polticas sobre tecnologias de suporte de vida, como respiradores, pois
os profissionais consideram que no fornecer RCR significa abster-se de oferecer tratamento,
e no de interromp-lo, sendo considerada apropriada aos doentes terminais, de perda
irreversvel de conscincia e de probabilidade de parada cardaca ou respiratria que no
possa ser tratada. As decises acerca de fornecer ou no RCR so problemticas quando
realizadas sem consulta prvia aos pacientes ou a suas famlias. Nesse sentido, no
justificvel considerar as decises sobre RCR como diferentes das decises sobre outras
tecnologias de suporte de vida como, por exemplo, nutrio e hidratao artificial.
Para Beauchamp e Childress (2002), a nutrio e a hidratao artificiais podem ser
repudiadas como outras tecnologias de suporte de vida, considerando que no se verifica uma
razo para crer que sejam sempre uma parte essencial dos cuidados paliativos6 ou que sempre
constituam, necessariamente, um tratamento mdico benfico. A nutrio e a hidratao
6 Conforme a Organizao Mundial da Sade (OMS, 2002, p.03), os cuidados paliativos compreendem uma
abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famlias que enfrentam problemas associados com
doenas ameaadoras de vida, atravs da preveno e alvio do sofrimento, por meio da identificao precoce,
avaliao correta e tratamento da dor e de outros problemas de ordem fsica, psicossocial e espiritual.
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remetem ao significado simblico; ou seja, os profissionais da sade geralmente consideram
devastador deixar algum sem alimentao, pois o fornecimento de alimentos e de gua
simboliza a essncia do cuidado e da compaixo. Entretanto, evidncias indicam que
pacientes aos quais se permite morrer sem hidratao artificial morrem mais confortavelmente
que pacientes que receberam hidratao artificial; as desvantagens superam as vantagens, e
ningum pode priv-los do direito de recusar esse tratamento.
Desse modo, os tratamentos de suporte de vida podem ser benficos ou malficos para
os pacientes, sendo preciso trat-los individualmente. De acordo com Beauchamp e Childress
(2002), os excessos devem ser determinados pela probabilidade dos benefcios em
comparao com as provveis desvantagens. Se no houver uma esperana razovel de
benefcio, ento, todo custo, dor ou outra inconvenincia sero excessivos, sendo, algumas
vezes, obrigatrio no tratar. Se houver uma esperana razovel de benefcio, juntamente com
desvantagens considerveis, o tratamento opcional. Pacientes capazes tem o direito de tomar
decises sobre os tratamentos, e, para pacientes incapazes, o tratamento no obrigatrio caso
existam muitas desvantagens. A distino se reduz ao balano dos custos e benefcios, e se
fornecem uma boa orientao moral para as decises por tratamento ou pelo no-tratamento.
Considerando o argumento dos tratamentos de suporte de vida, e os entraves que
circundam essas delimitaes, Beauchamp e Childress (2002) propem uma distino sobre
os tratamentos obrigatrios e os opcionais, levando em conta as categorias: I. obrigatrio
tratar; II. Opcional tratar e III. Obrigatrio no tratar. Nesse sentido, em determinadas
circunstncias, fornecer o tratamento as vezes desumano e cruel, e, portanto, uma violao
do princpio da no-maleficncia.
Vrias condies justificam a omisso dos tratamentos, considerando que um
tratamento no obrigatrio quando no oferece benefcio ao paciente, por ser intil ou
despropositado. Nessa perspectiva, qualificar um tratamento como ftil implica determinar
que sua eficcia altamente improvvel e praticamente certo que o resultado ser
insatisfatrio; com o tratamento mais penoso que benfico e quando se trata de um caso
completamente especulativo, porque o tratamento nunca foi tentado. Na prtica, difcil se
definir critrios para a determinao da futilidade; com frequncia, h divergncias na
comunidade mdica; alm disso, podem surgir conflitos a partir da crena familiar de um
milagre, da insistncia de uma tradio religiosa em fazer de tudo o que possvel
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
H que se destacar que, por vezes, o fato de um tratamento ser ftil modifica o
relacionamento moral do mdico com o paciente ou com seus responsveis. A concluso
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que um tratamento despropositado ou ftil, no sentido que no tem chance de ser eficaz, pode
ser moralmente opcional; porm, outros tratamentos supostamente fteis muitas vezes no so
opcionais. Para Beauchamp e Childress (2002), mesmo se o paciente no estiver em estado
terminal, o tratamento de suporte de vida no obrigatrio, caso as desvantagens excedam os
seus benefcios. O tratamento mdico para pessoas que no so terminais s vezes opcional,
embora possa prolongar a vida por um perodo de tempo indefinido, ainda que o paciente seja
incapaz e no tenha deixado nenhuma diretiva antecipada.
Poucas decises so mais importantes do que as de recusar ou de interromper um
procedimento mdico que sustenta a vida de um paciente. Em alguns casos, porm,
injustificado que os responsveis ou os clnicos resolvam iniciar ou dar continuidade terapia
sabendo que ela ir produzir uma proporo maior de dor e de sofrimento para um paciente
incapaz. Entretanto, praticamente impossvel determinar o que ser benfico para o paciente
sem pressupor algum modelo de qualidade de vida e a noo da vida que ir viver aps uma
interveno mdica. Alm disso, a qualidade de vida do paciente no pode ser confundida
com os significados dos valores da vida para outros, e os responsveis por pacientes incapazes
no devem recusar um tratamento contra os interesses destes para poupar fardos s famlias
ou custos sociedade. Os melhores interesses mdicos do paciente incapaz em geral devem
ser o critrio decisivo para a deciso de um tutor, mesmo que esses interesses entrem em
choque com os interesses da famlia (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
No princpio de no-maleficncia, embora as DAV estejam fundamentadas mais na
autonomia, difcil especificar decises ou parmetros que antecipem adequadamente toda a
gama de situaes mdicas que possam ocorrer, o que enfatiza a tendncia da designao de
decisores substitutos (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
As DAV protegem os interesses de autonomia e podem reduzir o estresse das famlias
e dos profissionais de sade que temem tomar a deciso errada, mas tambm geram
problemas prticos morais. Por exemplo, poucas pessoas redigem um documento ou deixam
instrues explcitas, alm de que o responsvel designado pode no estar disponvel quando
necessrio, ou pode ser ou estar incapaz de tomar boas decises para o paciente ou pode ter
um conflito de interesses, por exemplo, em virtude da perspectiva do recebimento de uma
herana ou do ganho de uma posio melhor nos negcios da famlia. Ainda, os pacientes
podem modificar suas preferncias acerca de tratamentos, sem modificar a tempo suas
instrues, e alguns, ao se tornarem legalmente incapazes, protestam contra as decises do
responsvel designado (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
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Os responsveis legais tambm tomam decises das quais os mdicos discordam
radicalmente, e, em alguns casos, pedem aos mdicos que ajam contra suas conscincias.
Alguns pacientes no possuem a compreenso adequada do conjunto de decises que um
profissional ou um responsvel podem ter de tomar, e, mesmo com uma compreenso
adequada, com frequncia, difcil antever situaes clnicas e possveis experincias futuras.
Desse modo, as dificuldades quanto s DAV podem ser contornadas com documentos
cuidadosamente redigidos, com um aconselhamento apropriado e com explicaes
especializadas sobre as possibilidades mdicas e as opes de tratamento; no entanto, alguns
problemas de interpretao permanecero, a despeito do maior envolvimento dos mdicos e
das ferramentas de educao utilizadas. Com certeza, as DAV constituem uma forma
promissora para que as pessoas capazes exeram sua autonomia; os problemas so
principalmente prticos, e alguns deles podem ser superados pelo emprego de mtodos
adequados de implementao (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Neste contexto, quando o paciente incapaz no deixou as DAV, Beauchamp e
Childress (2002) referem que o papel da famlia deve ser presumido como o primrio em
razo da sua provvel identificao com os interesses do paciente, do conhecimento de seus
desejos, da preocupao com ele e do papel tradicional da famlia na sociedade. Entretanto,
pode acontecer o contrrio, ou seja, familiares com conflito de interesse - tanto no bem-estar
como na morte do parente -, mal informados ou serem distantes pessoalmente. Por vezes,
ainda, os familiares renunciam ao papel de responsveis. Assim, a autoridade da famlia no
final ou mxima, e os mdicos se sentem obrigados a rejeitar a deciso da famlia, a tomar a
deciso ou a requerer que ela seja revisada por um comit de tica.
Partindo do exposto, de acordo com Beauchamp e Childress (2002), os profissionais
de sade podem auxiliar os familiares a se tornarem bons decisores, protegendo os interesses
e as preferncias do paciente, monitorando a qualidade das decises dos responsveis.
Contudo, se a deciso dos responsveis contestada e as divergncias no podem ser
resolvidas, os comits institucionais de tica podem atuar como um mecanismo que auxilia na
tomada de deciso, possuindo a funo de criar e recomendar polticas explcitas para o
gerenciamento de aes como a omisso e a suspenso de tratamentos, alm da atuao com
funes educacionais. Contudo, h o argumento de que os comits so desnecessrios no
processo de deciso, pois impem uma outra etapa de atraso burocrtico, caso no sejam
convocados em tempo hbil, e, as vezes, so manipulados por grupos poderosos.
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2.2.3 Beneficncia
De acordo com o princpio da beneficncia, a moralidade requer que, alm de tratar as
pessoas como autnomas, abstendo-se de prejudic-las, contribua no sentido de proporcionar-
lhes o bem-estar, o que potencialmente exige mais que o princpio da no-maleficncia, pois
os agentes tem de tomar atitudes positivas para ajudar os outros, e no meramente se abster de
realizar atos nocivos. Nesse sentido, a palavra beneficncia significa atos de compaixo,
bondade e caridade, referindo-se a uma ao realizada em benefcio de outros, ou seja, a
possibilidade da promoo do bem-estar dos pacientes e no meramente evitar danos
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Para Beauchamp e Childress (2002), as obrigaes de conceder benefcios, de prevenir
e reparar danos e de pesar e ponderar os possveis benefcios contra os custos e os danos
causados por uma ao so centrais na tica biomdica. Entretanto, muitas regras de
beneficncia obrigatria constituem uma parte importante da moralidade, que incluem:
proteger e defender os direitos dos outros; evitar que outros sofram danos; eliminar as
condies que causaro danos a outros; ajudar pessoas inaptas; e socorrer pessoas em perigo.
As regras de no-maleficncia incluem as proibies negativas de aes, que devem
ser obedecidas de modo imparcial e que servem de base a proibies legais de certas formas
de conduta. Em contraposio, as regras da beneficncia apresentam exigncias positivas de
ao, sendo que nem sempre precisam ser obedecidas de modo imparcial e raramente ou
nunca servem de base a punies legais contra quem deixa de aderir a elas. Deixar de agir
de modo no-maleficente para com algum (prima facie) imoral, mas deixar de agir de
modo beneficente para com algum com frequncia no imoral.
Beauchamp e Childress (2002) adotam distines entre a beneficncia especfica e a
beneficncia geral; na primeira, h a obrigao de ajudar, direcionando-se a indivduos ou
grupos especficos, tais como as crianas, os amigos e os pacientes, enquanto a beneficncia
geral ultrapassa os relacionamentos especiais, direcionando-se a todas as pessoas. Contudo,
quando o paciente contrata um mdico para a prestao de servios, o profissional assume
uma obrigao de fornecer um tratamento benfico, referente a uma funo ou um papel
especfico, que no estaria presente caso essa relao no houvesse sido estabelecida.
No contexto das DAV, h que se destacar a possibilidade de que o paternalismo
permeie as questes relacionadas a sua aplicabilidade. Conforme Beauchamp e Childress
(2002), no paternalismo, h conflitos entre a beneficncia e autonomia, considerando que a
principal obrigao do mdico a de agir em benefcio do paciente, e no a de promover a
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deciso autnoma. Contudo, os direitos de autonomia tornaram-se to influentes que difcil
encontrar defesas claras dos modelos tradicionais da beneficncia mdica. Se o contedo da
obrigao do mdico de ser beneficente definido pelas preferncias do paciente, ento em
vez da beneficncia, triunfa o respeito autonomia. Desse modo, essa posio traduz que a
beneficncia fornece a meta e o fundamento primordiais da medicina e da assistncia,
enquanto o respeito autonomia estabelece os limites morais das aes dos profissionais.
Para Beauchamp e Childress (2002), o paternalismo estabelece um limite escolha
autnoma, por meio da interferncia ou da recusa em aceitar as preferncias da pessoa acerca
do seu prprio bem e geralmente envolvem coero, por um lado, ou mentiras, manipulao
ou ocultao de informaes, por outro, com o propsito de evitar danos ou de benefici-la.
Devido aos mdicos acreditarem que revelar certos tipos de informao e dizer a verdade
causariam danos aos pacientes que esto sob seus cuidados, que a tica mdica os obriga a
no causar esse dano. Nesse sentido, para o bem do paciente, algumas informaes devem ser
omitidas ou devem ser reveladas apenas famlia, pois podem comprometer o julgamento
clnico e representar uma ameaa sade do paciente.
Desse modo, conforme Beauchamp e Childress (2002), se uma interveno
paternalista no viola a autonomia por no haver uma autonomia substancial, mais fcil
justificar a interveno do que no caso de uma preferncia ou ao comparvel que seja
autnoma. Assim, certas aes autnomas, assim como as no-autnomas, so as vezes
justificavelmente restringidas com base na beneficncia.
Partindo desse pressuposto, Beauchamp e Childress (2002) mencionam que h o
paternalismo fraco e o paternalismo forte, ambos com objetivo de beneficncia ou no-
maleficncia. No primeiro, o agente intervm para prevenir uma conduta substancialmente
no-voluntria e exige que as habilidades do indivduo estejam de alguma forma
comprometidas. O paternalismo forte, em contraposio, envolve intervenes a despeito do
fato de que as escolhas arriscadas da pessoa sejam informadas, voluntrias e autnomas, ou
seja, h recusa a aceitar os desejos, as escolhas e as aes autnomas de uma pessoa.
Com base no exposto, o antipaternalismo acredita que uma interveno do tipo
paternalista forte no pode ser justificada, pois viola os direitos individuais e restringe
indevidamente a livre escolha, revelando um desrespeito para com os agentes autnomos, por
no trat-los como moralmente aptos, mas como algo menos que determinadores
independentes de seu prprio bem. Os antipaternalistas argumentam, tambm, que os padres
paternalistas so muito amplos; portanto, se usados como poltica bsica autorizam e
institucionalizam demasiadas intervenes.
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Para Beauchamp e Childress (2002), na fundamentao do paternalismo, o melhor
no introduzir as explicaesbaseadas na autonomia. A beneficncia justifica aes
paternalistas, considerando que o benefcio est numa escala com interesses de autonomia, na
qual ambos devem ser ponderados: medida que aumentarem os interesses na autonomia e
diminurem os benefcios para a pessoa, assim o paternalismo torna-se menos provvel;
inversamente, medida que aumentam os benefcios para a pessoa e diminuem os interesses
na autonomia, aumenta a plausibilidade de que se justifique um ato de paternalismo. Portanto,
prevenir danos menores ou proporcionar benefcios menores e, ao mesmo tempo, desrespeitar
seriamente a autonomia no possui justificao plausvel; por outro lado, prevenir danos
importantes e proporcionar benefcios importantes desrespeitando apenas um pouco a
autonomia tem um embasamentopaternalista altamente plausvel.
As aes menores do tipo paternalista forte so comuns em hospitais. Se no houver
uma alternativa razovel ou, por exemplo, se doentes terminais forem poupados de
sofrimentos totalmente inteis, tais aes so casos de paternalismo forte justificado;
comumente, elas s so apropriadas e justificadas na assistncia sade, caso as condies
restritivas sejam satisfeitas, ou seja, se o paciente est exposto a um dano significativo e
evitvel; se a ao paternalista provavelmente for evitar o dano; se os benefcios esperados da
ao paternalista suplantarem os riscos para o paciente; e se a alternativa adotada, que
assegure os benefcios e reduza os riscos, for a que menos restrinja a autonomia
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
H que se destacar, contudo, que sua interpretao e seus limites necessitam de uma
anlise mais extensa; alm disso, outra condio necessita ser considerada nesse contexto, ou
seja, que a ao paternalista no se restrinja substancialmente autonomia. Essa condio s
poderia ser satisfeita se no estiverem em jogo interesses de autonomia vitais ou substanciais.
Contudo, alguns raros casos de paternalismo forte justificado cruzam essa linha da violao
mnima. Em geral, medida que aumenta a ameaa ao bem-estar de um paciente ou a
probabilidade de ocorrer um dano irreversvel, aumenta tambm a probabilidade de se
justificar uma ao paternalista. Uma interveno paternalista exige pessoas com um bom
julgamento, bem como pessoas com princpios bem desenvolvidos, capazes de enfrentar
conflitos contingentes (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Os debates sobre o paternalismo enfocam, tipicamente, as intervenes paternalistas
ativas em casos que os pacientes preferem a no-interveno. Uma forma tambm
negligenciada de paternalismo aparece na recusa, por parte do profissional, em cumprir as
preferncias do paciente por razes paternalistas um paternalismo passivo. Essas aes
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comumente so justificadas com mais facilidade que as aes de paternalismo ativo, pois os
mdicos em geral no tem a obrigao moral de satisfazer os desejos do paciente quando so
incompatveis com os padres aceitos da prtica mdica ou quando contrrios a sua
conscincia.
O paternalismo passivo se insere nas discusses sobre a futilidade mdica, ou seja, se
o suporte vital ftil, ento permitido negar as solicitaes de tratamento. Desse modo, uma
alegao justificada de que um procedimento mdico ftil retira-o do conjunto de atos
benficos que os pacientes ou seus responsveis podem escolher. A alegao geralmente no
de que uma determinada interveno ir causar dano ao paciente, mas apenas que no
produzir o benefcio esperado. A obrigao de proporcionar um benefcio de fato cancelada
por uma alegao justificada de futilidade (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Para Beauchamp e Childress (2002), apropriado pedir a especificao dos objetivos
em relao aos quais se diz que o procedimento ftil. Uma inquirio pode revelar que o
benefcio que o mdico duvida que seja obtido pode no ser o mesmo benefcio visado pelo
paciente. Com frequncia, se assume, por exemplo, que o objetivo legtimo da RCR que o
sobrevivente seja liberado do hospital; a RCR considerada ftil para pacientes nas categorias
que estatisticamente no sobrevivem para receber alta. Contudo, uma sobrevivncia curta
pode ser o principal objetivo para o paciente ou para a famlia. Alm disso, alguns atos como
o fornecimento de nutrio e hidratao artificiais podem ter um significado simblico ao
expressar preocupaes de cuidado, ainda que no tragam nenhum outro benefcio mdico
para o paciente. O debate sobre futilidade , em ltima anlise, um debate sobre objetivos, e
as discusses a respeito dos objetivos apropriados envolvem conflitos de valores.
Assim, no fornecer um tratamento, sem o consentimento do paciente ou do seu
responsvel, um ato justificvel de paternalismo, pois fornecer informaes sobre um
procedimento intil pode ser desorientador e diminuir a autonomia. preciso, portanto, um
julgamento moral que leve em considerao os diferentes fatores contextuais para decidir se
apropriado ou obrigatrio informar o paciente e a famlia de que determinada interveno
no-benfica no ser realizada (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
2.2.4 Justia
O ltimo princpio, o da justia, pode ser entendido como a distribuio justa,
equitativa e apropriada na sociedade, de acordo com normas que estruturam os termos da
cooperao social. Uma situao de justia, de acordo com essa perspectiva, estar presente
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sempre que uma pessoa receber benefcios ou encargos devidos s suas propriedades ou
circunstncias particulares. Oprincpio da justiaestabelece, como condio fundamental, a
equidade, ou seja, a obrigao tica de tratar cada indivduo conforme o que moralmente
correto e adequado, de dar a cada um o que lhe devido. Os profissionais da sade devem
atuar com imparcialidade, evitando, ao mximo, que aspectos sociais, culturais, religiosos,
financeiros ou outros interfiram na relao com os pacientes e familiares. Alm disso, os
recursos devem ser equilibradamente distribudos, com o objetivo de alcanar, com melhor
eficcia, o maior nmero de pessoas assistidas (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).
Desse modo, considerando o contexto da aplicabilidade das DAV, de acordo com
Beauchamp e Childress (2002), no h como considerar um princpio ou modelo como
prioritrio e resolvido de forma simplificada, na prtica mdica, defendendo-se um princpio
contra o outro ou transformando um princpio em absoluto. Assim, necessrio avaliar as
situaes apresentadas no contexto prtico a fim de subsidiar as aes de maneira a minimizar
os conflitos que envolvem situaes em final de vida.
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3 REVISO DE LITERATURA
A reviso de literatura realizada, para embasar este estudo, ocorreu a partir da busca
pelos temas: As Diretivas Antecipadas de Vontade / Testamento Vital no contexto mundial7
(Anexo I); Conceituando Diretivas Antecipadas de Vontade; a Ortotansia e as Diretivas
Antecipadas de Vontade e Legislao do Conselho Federal de Medicina acerca das Diretivas
Antecipadas de Vontade. Alm disso, foi realizado o resgate da produo cientfica
internacional e nacional das DAV que resultou na produo de um artigo de reviso
integrativa8 (Anexo II).
3.1REVISANDO CONCEITOS
3.1.1 As Diretivas Antecipadas de Vontade / Testamento Vital no contexto mundial
A meno sobre o direito dos pacientes adultos e capazes, em escolher sobre recusa de
tratamentos que visassem apenas prolongar o processo de morte, quando o estado clnico
fosse irreversvel ou em estado vegetativo, foi proposto nos Estados Unidos da Amrica
(EUA), em 1969, por Luis Kutner que cunhou o termo living will (KUTNER, 1969),
usualmente conhecido no Brasil como Testamento Vital (TV)9.
Em 1976, a Califrnia foi o primeiro estado a apresentar um estatuto sobre o TV nos
EUA, por meio do Califrnia Natural Death Acte e, em 1984, a legalizar a figura do
procurador de cuidados de sade por meio do California Durable Power of Attorney for
Health Care Decisions Act (DPAHC) (NUNES, 2012). O TV foi contemplado, em outros
estatutos, em vrios estados dos EUA, com o objetivo de validar legalmente os testamentos.
Considera-se oportuno reconhecer que as discusses referentes aos direitos dos
pacientes, quanto ao seu exerccio de autonomia, assumiram proporo significativa, em
virtude de casos expostos na mdia, como o de Karen Ann Quinlan (1985), e Nancy Cruzan
(1990) que permaneceram em estado vegetativo persistente. Seus representantes solicitaram a
retirada dos suportes que prolongavam a vida, impondo um valor decisivo para a criao de
uma lei acerca do tema nos EUA, despertando a necessidade de legislao em outros pases.
7Artigo aceito para publicao na Revista Texto & Contexto.
8COGO, S.B; LUNARDI, V. L. Diretivas antecipadas de vontade aos doentes terminais:reviso integrativa.
REBEn, v.68, n. 03, p.464-74, 2015. 9 H diferenciao conceitual entre as terminologias diretivas antecipadas de vontade e testamento vital, que
sero esclarecidas no prximo captulo neste estudo.
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Na dcada de 1990, duas propostas de regulamentao de uma nova perspectiva
surgiram, uma na Europa e outra nos EUA. As Diretivas Antecipadas, denominadas de
Advances Directives, esto previstas pelo Patient Self-Determination Act (PSDA) ou Ato de
Autodeterminao do Paciente, lei norte americana aprovada pelo Congresso dos Estados
Unidos em 1990 (EUA, 1990), vigente a partir de 1 de dezembro de 1991, constituindo-se na
primeira legislao do mundo a tratar sobre as diretivas antecipadas (DADALTO, 2013a), a
fim de promover o uso das DAV.
As diretivas antecipadas, conforme a lei americana, visam garantir o direito
autonomia do paciente, quando ingressa nos centros de sade, sendo registradas suas objees
e opes de tratamento em caso de sua incapacidade quando doente (EUA, 1990). Essas
diretivas antecipadas podem ser realizadas de trs maneiras: o living will (testamento em
vida), documento no qual o paciente dispe, em vida, seu desejo quanto aos tratamentos ou
sua recusa para quando se tornar incapaz em decorrncia de uma doena terminal; o durable
power ofattorney for health care (poder duradouro do representante para cuidados com a
sade), documento no qual, por meio de um mandato, se estabelece um procurador de sade
para decidir e tomar providncias em relao ao paciente, no caso de sua incapacidade; e o
advanced core medical directive (diretiva do centro mdico avanado), que consiste em um
documento mais completo, direcionado ao doente terminal, que rene as disposies do seu
testamento em vida e do mandato duradouro, ou seja, a unio dos outros dois documentos
(BOMTEMPO, 2012; DADALTO, 2013a).
Sob esse enfoque, as DAV podem ser contempladas em dois subgrupos: o da
afirmao de valor, em que so descritas de maneira ger