aperitivo o guardião de livros, de cristina norton

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CristinaNorton O Guardião de Livros A rocambolesca história da chegada da família real e de sua biblioteca ao Brasil romance

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Leia um capítulo de um dos lançamentos de junho da Editora Casa da Palavra. Imperdível!

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Page 1: Aperitivo O guardião de livros, de Cristina Norton

CristinaNorton

O Guardião de Livros

Uma escrava muda revela um segredoguardado durante duzentos anos. Um cientista judeu naufraga nas ilhasMalvinas arrastando consigo dois livrosraros. Uma carioca leva um português a descobrir as delícias do sexo. Um escravoapaixona-se por quem não deve.Todosesses personagens sob a batuta de umbibliotecário hipocondríaco: um romancehistórico arrebatador.

cristina norton

o guardião delivros

A rocambolesca história da chegada da família real e de sua biblioteca ao Brasil

romance

Em 1811, um bibliotecárioatravessa o Atlântico rumo ao Brasil acompanhado por

76 caixotes cujo conteúdo eraverdadeiramente precioso – em seuinterior seguia a Real Biblioteca doPalácio de Ajuda, inicialmenteesquecida no cais de Belém durante a apressada saída da Corte portuguesapara o Brasil, em 1808.

Neste romance, inspirado na vida deLuís Joaquim dos Santos Marrocos,vemos um anti herói deparando-se comum Rio de Janeiro onde nada o seduz— nem a comida, nem os cheiros, nemo calor —, e com uma corte endividadae decadente, amante de cerimôniasgrandiosas e grosseira nos seuscostumes diários. Mas tudo mudaquando ele conhece uma mulher que ofaz esquecer a obsessiva preocupaçãocom a saúde e apreciar com outrosolhos o calor, a comida e as pessoas.

A autora Cristina Norton nos levaem uma viagem saborosa e reveladora,repleta de acontecimentos inesperados,na qual a ironia se mistura commomentos comoventes. Amparado poruma riquíssima pesquisa histórica, esteromance irá arrebatar você da primeiraà última palavra.

cristina kace norton nasceu a 28 de Fevereiro de 1948, em BuenosAires, Argentina. Reside há mais detrinta anos em Portugal e naturalizou--se portuguesa. Fez vários cursos delínguas e literatura, e colabora comdiversas revistas e jornais literários.Trabalha, desde 1998, em oficinas deescrita criativa. Sua obra engloba apoesia, o romance e o conto.

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Chegada

À medida que a fragata se aproximava do Rio de Janeiro, Luís, que tinha imaginado desembarcar numa praia no meio da selva, fi cou sur-preendido com as rochas colossais que emergiam do mar, escuras e lisas, como se os ventos as tivessem polido para enfeitar a baía. No topo, distinguia alguma vegetação que lhes dava um aspecto menos fantasmagórico. Uma delas embelezava a entrada do porto e parecia ter sido esculpida por mãos de gigantes; disseram-lhe que a chamavam Pão de Açúcar pela altura e a forma arredondada. Ao descer o olhar, descobriu praias de areia clara e pequenas enseadas, lagoas entre co-linas com fl orestas de árvores desconhecidas para ele e, se não tivesse certeza de estar sem febre, poderia pensar se tratar de uma alucinação. O conjunto tinha o aspecto de uma tela enorme pintada com cores que nunca vira, colocada com a ajuda de Deus para o aliviar de todas as afl ições passadas durante a viagem.

A cidade estendia-se à volta do porto e as casas brancas misturavam--se com igrejas e praças, e Marrocos não podia negar que aquilo tudo era de uma beleza inigualável.

À medida que se iam aproximando, os tiros de canhão, que faziam estremecer o barco, avisavam a chegada daquela fragata tão esperada, que trazia um carregamento muito valioso, os livros. De terra, outros tiros davam as boas-vindas e, assim, no meio do fumo de pólvora e de

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um barulho infernal, ancoraram no porto, num dia ensolarado de ju-nho, ainda que nesse continente fosse inverno.

Luís esqueceu-se por um instante dos maus momentos passados durante a longa viagem; não tinha sido o único a pensar que alimenta-riam os peixes com seus corpos, por isso e vendo o estado da fragata, quando puseram os pés em terra fi rme, todos se benzeram e deram graças a Deus por tê-los conduzido sãos e salvos àquela cidade que parecia maravilhosa.

Barcos a remo vieram buscar os passageiros e outros maiores e mais sólidos foram descarregando as bagagens e o correio. Antes de os tira-rem do porão, pediram para verifi car os caixotes com os livros, que, por milagre, estavam intactos, pelo menos por fora, como pôde comprovar Marrocos com seu antigo colega de Lisboa, José Joaquim de Oliveira, e dois novos ajudantes que o foram esperar no cais para dar-lhe as boas--vindas. Luís perguntou a José se eles não podiam ir a pé até o lugar onde o iam hospedar, enquanto a preciosa carga ia ser transferida dos barcos e acomodada nos carros puxados por mulas. Precisava ter nova-mente aquela sensação de espaço onde exercitar as pernas, depois de três meses andando cem vezes, ida e volta, num pequeno retângulo do convés, único lugar onde podia dar alguns passos sem ter de contornar ou tropeçar em algum obstáculo.

— Aqui tudo fi ca perto, eu vou a pé a todo lado.— Ainda bem, não quero perder os bons hábitos de Lisboa.— A vida não é a mesma, vai sentir algumas diferenças.— Quais?— Cada um encontra as suas, é inútil que eu lhe conte. O que me

incomoda pode não lhe desagradar. Para já, arranjaram-lhe uma boa casa onde viver, o que não é fácil porque esta cidade não está preparada para receber tanta gente. Parece que, a princípio, foi muito complica-do, tiveram que requisitar casas em nome de Sua Majestade e os donos não fi caram nada contentes, mas era preciso alojar os nobres e os cria-dos que acompanharam a deslocação da corte para o Brasil.

— E onde fi ca?

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— Numa área de casas nobres e bonitas na rua das Violas, onde vi-vem mais pessoas, um ofi cial da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e um clérigo.

— Então o aluguel deve ser alto.— Não se preocupe com isso. São 12$800 por mês, que são pagos

pela Fazenda Real.À medida que iam percorrendo as ruas, Luís começou a fi car desilu-

dido com o que via e, acima de tudo, o que cheirava. Aquela paisagem de sonho que parecia a pintura do palco de um teatro estava repleta de imundícies, as águas sujas desciam pelas ruas levando todo tipo de detritos, alguns disputados por cães vadios e, com o calor e a umidade, o mau cheiro aumentava.

Oliveira percebeu o desconforto do recém-chegado e contou-lhe que especialistas estavam fazendo projetos para mudar a cidade. As lagoas iam desaparecer, porque estavam repletas de mosquitos, iam obrigar a jogar o lixo num lugar próprio numa das praias e, para esses e outros trabalhos, estavam trazendo mais escravos da África.

— Pode demorar muito tempo. Se calhar, nem estaremos mais aqui para ver todas essas melhorias — disse Luís, pensativo, porque naque-le momento lhe apeteceu sentir o frio do verdadeiro inverno e andar nas ruas de seu bairro.

Achou a casa magnífi ca e não encontrou os dois hóspedes, que já tinham saído para seus respectivos trabalhos. Tratou de imediato de arrumar todas as suas coisas, e depois de se lavar com um pano embe-bido em água doce e mudar de roupa; foi com José Oliveira a um lugar agradável, onde lhe serviram comida de gente, mas não teve coragem de experimentar as frutas, por serem totalmente desconhecidas, apesar de seu acompanhante lhe jurar que eram do melhor que tinha provado no Brasil.

Sua vida tinha mudado completamente, nem ele imaginava até que ponto. Pensou que daí a uns dias, em 17 de junho, ia fazer trinta anos e não os ia festejar em família nem com os amigos. Achou que era demasiado jovem para se enterrar naquele lugar sem futuro e dema-

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siado velho para se habituar a viver de maneira diferente da que estava acostumado.

Mesmo assim, decidiu enfrentar o futuro que Deus lhe tinha esco-lhido com a maior boa vontade e dirigiu-se a seu novo trabalho com ar de quem está contente com o próprio destino. Conheceu o padre Joaquim Damaso, que tinha o físico de um bom garfo e um sorriso de homem feliz com a sorte e trabalhara em Lisboa nas Necessidades, e também frei Gregório José Viegas, mais circunspecto, de tronco curto e pernas compridas, e um nariz magro que parecia farejar as atitudes, não por medo, mas por desconfi ança.

Os três serventes que tinham ido recebê-lo no cais já estavam lá, dando ordens para que descessem com cuidado os caixotes. Abriram alguns para avaliar o estado em que se encontravam e fi caram satisfei-tos com o que viram. No dia seguinte, começariam a arrumá-los nas es-tantes que tinham mandado fazer para eles. Por enquanto, deixariam as caixas abertas para que os livros arejassem e a umidade, se alguma se tivesse infi ltrado entre as páginas, pudesse sair mais livremente.

Luís deixou nas mãos de seu superior a pasta de capa dura que continha a relação dos volumes pelos quais tinha sido responsável até aquele momento, mas guardara uma cópia em seu quarto, por não conhecer ainda os métodos de trabalho daquela gente e na partida sus-peitar de tudo e de todos.

Estava demasiado cansado para poder apreciar fosse o que fosse e, depois das conversas que foram longas e pouco produtivas, despediu--se até o dia seguinte. Se havia algo que lhe apetecia era deitar-se numa cama, com colchão, almofada e lençóis que cheirassem a limpo, e dor-mir sem interrupções durante muitas horas para tirar do corpo aquela sensação de balanço e o sabor de podridão que o acompanhou durante toda a viagem.

Acordou 14 horas depois, com a impressão de ter feito uma longa sesta porque sentia que recuperara um pouco o sono perdido, mas não completamente. Quando desceu para tomar o desjejum, encontrou na casa de jantar os outros locatários. Achou-os amáveis e interessantes

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e tentou disfarçar com o relato de sua penosa viagem o ligeiro descon-forto provocado por aqueles três desconhecidos. Seu forte nunca fora estar em sociedade e ainda havia a diferença de idades, todos tinham 58 anos. O clérigo, baixo e entroncado, tinha olhos astutos da cor do céu e uma careca que acariciava enquanto falava, e orgulhava-se de ter sido secretário do governo na ilha da Madeira. O outro, viúvo e sem fi lhos, tinha estatura média, vestia à moda da corte, provavelmente por seu trabalho no ministério, e parecia lavar as mãos a seco quando lhes confi denciou alguns problemas de Estado. Estava casado em segun-das núpcias com uma viúva também sem fi lhos, pequena e magra, de cabelo bicolor, branco e ruivo, o que lhe dava um ar de pássaro, pelos contínuos movimentos da cabeça, pois parecia não poder deixar esca-par nenhum pormenor do que acontecia à sua volta. Aparentemente eram pessoas pacatas e educadas, o que lhe agradou bastante, pois não se via convivendo com gente barulhenta. Ainda não sabia se estar entre velhos ia ser o ideal; de qualquer modo, a convivência não ia ser cons-tante, pois cada um tinha suas funções que os ocupavam a maior parte do tempo e, provavelmente, só se cruzariam logo pela manhã e no fi m da tarde.

Apresentou-se na Biblioteca e, depois de cumprimentar todos os funcionários, passou em revista as caixas que vieram sob sua guarda. Ao todo tinham chegado ao Rio de Janeiro 230 caixotes de livros; os da primeira viagem já estavam limpos e arrumados, porém sem método. Faltava desencaixotar os que acabava de trazer e sabia que em setem-bro deviam vir os restantes 87, acompanhados pelo servente José Lopes Saraiva, e assim a Real Biblioteca estaria outra vez toda reunida.

Luís sabia que o esperavam muitos meses de trabalho intenso, e isso o preocupava. O pior seria conseguir, sem criar mau ambiente, pôr em prática sua maneira de ordenar os volumes.

O lugar parecia agradável, tinha luz e fi cava na rua detrás do Car-mo, perto do Paço Real. Na realidade, nada tinha a ver com as salas do Palácio da Ajuda, pois à falta de um lugar próprio ou de um espaço digno, o Príncipe Regente mandara desocupar as salas do andar supe-

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rior do hospital, onde até então estavam as enfermarias. Ficava atrás da igreja dos Irmãos da Ordem Terceira do Carmo, na rua Direita, um lugar demasiado movimentado e barulhento para o sossego que se pretendia para uma biblioteca. Mesmo assim, foi fazendo seu melhor, esforçando-se por dentro, pois não se atrevia a se abrir com ninguém.

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