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“SOB O VÉU DOS VERSOS” O LUGAR DA POESIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS Flávia Vieira da Silva do Amparo Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção de título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) Orientador: Professor Doutor Antonio Carlos Secchin. Co-orientador: Professor Doutor Claudio Murilo Leal Universidade Federal do Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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“SOB O VÉU DOS VERSOS”

O LUGAR DA POESIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

Flávia Vieira da Silva do Amparo

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal

do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção de título de

Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)

Orientador: Professor Doutor Antonio Carlos Secchin.

Co-orientador: Professor Doutor Claudio Murilo Leal

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

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―SOB O VÉU DOS VERSOS‖:

O LUGAR DA POESIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

Flávia Vieira da Silva do Amparo

Orientador: Antonio Carlos Secchin

Co-orientador: Claudio Murilo Leal

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Examinada por:

_____________________________________________________________________________

Presidente, Professor Doutor Antonio Carlos Secchin

_____________________________________________________________________________

Professor Doutor Sérgio Nazar David

_____________________________________________________________________________

Professora Doutora Helena Parente Cunha

_____________________________________________________________________________

Professor Doutor Sérgio Martagão Gesteira

_____________________________________________________________________________

Professora Doutora Rosa de Carvalho Gens

_____________________________________________________________________________

Professor Doutor Cláudio Murilo Leal (Co-orientador)

_____________________________________________________________________________

Professor Doutor Adriano Espínola (Suplente)

______________________________________________________________________________

Professora Doutora Elódia Xavier (Suplente)

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

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Amparo, Flávia Vieira da Silva do.

―Sob o véu dos versos‖: o lugar da poesia na obra de Machado de Assis/ Flávia

Vieira da Silva do Amparo. - Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2008.

xi,346 f; 30cm.

Orientador: Antonio Carlos Secchin

Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas, Área: Literatura Brasileira, 2008.

Referências Bibliográficas: f. 323-346

1- Subindo a montanha das musas 2- Ocidentais: do seio de Quimera ao reino

de Pandora 3- Machado de Assis: um homem de teatro 4-―Sob o véu dos versos‖. I.

Secchin, Antonio Carlos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de

Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Área: Literatura

Brasileira. III. Título.

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RESUMO

―SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA

NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

Flávia Vieira da Silva do Amparo

Orientador: Antonio Carlos Secchin

Co-orientador: Claudio Murilo Leal

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em

Literatura Brasileira.

Cem anos após a morte do escritor Machado de Assis, muito se tem falado sobre o

mestre da prosa, mas ainda existe um imenso preconceito quando o assunto é a poesia do

escritor. Procurando romper o véu que separa o poeta do prosador, esta pesquisa tem como

principal objetivo conhecer e recompor a trajetória de Machado de Assis desde os poemas da

juventude, dispersos nos jornais das décadas de 50 e 60 (séc. XIX), passando pelos

primeiros livros de poesia – Crisálidas e Falenas –, e por algumas comédias compostas em

verso, até chegar a sua única obra poética da maturidade: Ocidentais. Veremos como as

temáticas da poesia prenunciam questões trabalhadas posteriormente na ficção machadiana,

assim como se filiam a um legado poético de especial valor no universo literário.

Sobretudo, procuraremos resgatar o Poeta por excelência, que ultrapassa o sentido

estrito da palavra, como um intérprete da vida e do homem, disposto a elaborar uma poética

– sentido essencial da obra de arte -, independente da maneira usada para revelá-la aos seus

leitores.

Palavras-chave: Machado de Assis, poesia, Crisálidas, Falenas, Ocidentais, ficção,

comédias.

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

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RESUMEN

―SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA

NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

Flávia Vieira da Silva do Amparo

Orientador: Antonio Carlos Secchin

Co-orientador: Claudio Murilo Leal

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em

Literatura Brasileira.

Cien años después de la muerte de Machado de Assis, mucho se ha hablado sobre el

maestro de la prosa, todavia, existe um gran perjuicio cuando el tema es la poesia del

escritor. Intentando romper el velo que separa el poeta del prosador, esta pesquisa tiene

como principal escopo conocer y recomponer la trayetoria de Machado desde los primeros

poemas de su juventud, dispersos en los periódicos de lãs décadas de 50 y 60 (siglo XIX)

pasando por los primeros libros de poesia – Crisálidas e Falenas – y por algunas comedias

en verso, hasta llegar a su unica obra de madurez: Ocidentais. Estudiaremos como las

tematicas de su poesia prenunciam questiones trabajadas después em la ficción, bien como

se afilian a um legado poetico de especial valor en el universo literario.

Sobre todo, buscaremos resgatar el Poeta em su dimensión mayor, que ultrapassa el

sentido stricto de de la palabra, como interprete de la vida y del hombre, dedicado en

elaborar uma poética – sentido esencial de la obra de arte – independiente de la forma usada

para revelarla a sus lectores.

Palabras-llave: Machado de Assis, poesía, Crisálidas, Falenas, Ocidentais, ficción,

comedias.

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

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RÉSUMÉ

―SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA

NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

Flávia Vieira da Silva do Amparo

Orientador: Antonio Carlos Secchin

Co-orientador: Claudio Murilo Leal

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em

Literatura Brasileira.

Un siècle après la disparition de Machado de Assis, on parle encore beaucoup du

maître de la prose, mais il y reste toujour un grand prejugé envers la poésie de cet écrivain.

Tout en cherchant rompre le voil qui détache le poète du prosateur, cette recherche envisage

d‘établir et d‘examiner le parcours de Machado de Assis dès ses poèmes de jeunesse, épar

dans les journaux des annés 1850 et 1860, comprennant ses premiers recueils de poèmes –

Crisálidas et Falenas -, et quelques comédies composées en vers, pour aboutir à sa seule

ouevre poétique de maturité : Ocidentais. On verra comment les sujets de sa poésie

anticippent des questions ultérieurement reprises dans sa fiction, ainsi que ces sujets se lient

à un certain patrimoine poétique de valeur espéciale dans l‘univers littéraire.

On va chercher surtout reprende le poète par excellence, en dépassant le sens stricte du

mot: poète, alors, en tant qu‘ interprète de la vie et de l‘homme, prêt à créer une poétique –

comme sens essentiel de l‘oeuvre d‘art -, indépendamment de la manière employée pour la

dévoiler aux lecteurs.

Mots-clé : Machado de Assis; poésie; comédies en vers; Crisálidas; Falenas, fiction,

comédies.

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

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DEDICATÓRIAS

Para:

Aquele que conhece de perto a natureza humana e,

mesmo assim, é capaz de nos amar: Jesus Cristo –

meu Senhor e Deus, meu Princípio e meu Fim.

e

Os três amores que sustentam minha jornada neste

mundo:

Lara, a que me ensina com sua perspicácia e carinho

as lições do amanhã: minha semente, meu futuro.

Maurício, meu esposo, que comigo caminha lado a

lado, com serenidade e com todo o amor de que

necessito, unindo o que fui ao que sou: meu presente;

Irene, minha mãe, a que administra a vida cultivando

diariamente o bem. Aquela que com toda dedicação

soube adornar de flores meu passado.

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AGRADECIMENTOS:

Agradeço ao meu orientador Antonio Carlos Secchin pela presença marcante em toda

essa difícil trajetória de pesquisa. Pelo apoio sempre solícito, preciso e valioso do amigo, do

crítico e do homem das letras. Aquele que, diante das dificuldades do percurso, me ensinou a

grande arte dos poetas de lapidar as pedras ―in mezzo del camin”.

Ao professor Claudio Murilo Leal pelas importantes fontes de pesquisa sobre o poeta

Machado de Assis, que abriram caminho aos pesquisadores da poesia do mestre.

Agradeço ao Colégio Pedro II e a todos os que prontamente favoreceram o meu

afastamento das atividades do magistério para a dedicação total à pesquisa: ao Professor

Manoel Almeida, chefe de departamento de Língua Portuguesa, e aos Diretores Jorge

Dimuro e Vera Maria Rodrigues.

A Lene Elsie Fernandes de Faria, minha primeira contadora de histórias, reveladora

dos encantos das páginas literárias que me acompanham até hoje.

Àqueles que souberam semear a bondade em tempo de desencanto, crendo na virtude

do amanhã: Sílvio e Odete Simões e General Adalberto Pinheiro da Mota.

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SINOPSE

Leitura da obra poética machadiana, a partir

das poesias dispersas da juventude até a obra

da maturidade. Estudo da poética machadiana

como fio condutor de todo pensamento do

escritor, principalmente, como filosofia da

vida prática e teoria da alma humana.

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“O voi che avete gl'intelletti sani,

mirate la dottrina che s'asconde

sotto il velame delli versi strani”

“Ó vós que tendes o intelecto são,

atentai à doutrina que se esconde

sob o véu dos versos estranhos.”

(Dante Alighieri - Inferno IX, 61-63)

―O estilo está tanto sob as palavras

quanto nas palavras. É tanto a alma

quanto a carne de uma obra.‖

(Gustave Flaubert. Cartas exemplares. p.188)

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SUMÁRIO

Introdução, p.12

1. SUBINDO A MONTANHA DAS MUSAS – p. 23

1.1- Nos enlevos de Calíope – p. 31

1.2- A primeira ponta da vida – p. 40

1.3- Tributo à musa do passado – p. 62

1.4- De Corina a Carolina: entre a musa poética e a poética da musa – p. 71

1.5- Falenas: o sofrimento como tema – p. 86

2. OCIDENTAIS: DO SEIO DE QUIMERA AO REINO DE PANDORA – p.108

2.1- ―Mundo interior‖: o microcosmo humano – p. 125

2.2- A metamorfose – p. 135

2.3- Descendo a montanha das musas – p. 150

3. MACHADO DE ASSIS: UM HOMEM DO TEATRO – p. 160

3.1- ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖: breve análise ... – p. 168

3.1.1- Diálogos femininos e pintura social em ―Antes da missa‖ – p. 172

3.1.2- ―O bote de rapé‖: o nariz entra em cena – p. 180

3.2- Diálogo entre deuses e homens: Os deuses de casaca – p. 193

4. SOB O VÉU DOS VERSOS: poesia e profecia na construção da obra de arte – p. 212

4.1- Teste David cum Sybilla: profetas e poetas no desfile dos séculos – p. 221

4.2- Poesia e profecia: a interpretação figural dos primeiros doutores cristãos – p. 229

4.3- Do altar para o palco da vida: sibilas e profetas na consolidação... – p. 241

4.4- Profecia, utopia e interpretação figural na obra de Dante Alighieri – p. 248

4.5- Entre o civil e o religioso: novas releituras proféticas – p. 260

4.6- Ut pictura poesis: uma interpretação (...) da obra de Michelangelo – p. 266

4.7- Sibilas e profetas nos Autos sacramentais da Península Ibérica – p. 279

4.8- Último - p. 300

5. CONCLUSÃO

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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INTRODUÇÃO

Os dois gêneros que marcaram o início da carreira do escritor Machado de Assis – a

poesia e o teatro – encontram-se ainda pouco estudados pela crítica, que, na maior parte das

vezes, insiste em manter o parecer do século XIX. A opinião dos críticos é a de que essas

manifestações literárias não revelam o gênio machadiano presente nos contos e,

principalmente, nos romances escritos a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas.

Considerada obra menor, a poesia de Machado permanece numa espécie de limbo, num

lugar à parte da sua produção consagrada pela crítica.

Opiniões de peso contribuíram muito para que tanto a poesia quanto o teatro do

mestre permanecessem ao largo, como ―filhos enjeitados‖ diante de uma prole ilustre.

Primeiramente o parecer de Quintino Bocaiúva sobre a falta de ação no teatro machadiano,

que se propagou como se fosse uma depreciação da obra do autor. Tanto não possuía valor

depreciativo, que Machado o transcreveu na íntegra em seu volume de teatro publicado em

1863, que incluía as peças ―O protocolo‖ e ―O caminho da porta‖.

O que para o jovem dramaturgo soou como elogio, ao revelar em suas peças certo

refinamento e reflexão, como deviam ser as ―obras de pensamento‖, parece ter sido a marca

negativa que o acompanhou no passado e se lançou à posteridade. Em relação ao seu

tempo, não encontrou acolhida diante da crítica, que preferia as peças traduzidas de

aclamados escritores estrangeiros (sobretudo franceses), nem do público em geral, que

valorizava mais as peças de pouco fundo, repletas de peripécias, burlas, arremedos,

caricaturas, sem falar na predileção da platéia pelo melodrama, encenado com notação e

ênfase românticas. O dramaturgo lutava, portanto, contra dois gigantes: a crítica e o

público, o que de maneira alguma poderia fazê-lo prosperar, ainda mais se tratando de um

jovem estreante no cenário dramático.

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Apesar de estreante, não era desprestigiado como censor e crítico teatral, funções que

desempenharia com louvor, deixando registrada uma série de pareceres que nos fazem

compreender o quanto o público fluminense não era suficientemente maduro para valorizar

o teatro de índole nacional que não fizesse a opção pelo burlesco.

O interesse dessa pesquisa, em relação ao teatro machadiano, volta-se exclusivamente

para as suas comédias escritas em verso, tendo em vista que são as mais minimizadas,

mesmo quando se têm por objeto de estudo os textos teatrais do autor. Outro aspecto

importante é que o fato de serem também composições poéticas permite que tenhamos uma

compreensão mais plena do poeta Machado de Assis, em toda a expansão do seu estro.

Inseridas nesse contexto, encontramos três comédias machadianas: ―Os deuses de

casaca‖, ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖, que ostentam como pano de fundo as

relações sociais e políticas da vida fluminense, embora a primeira delas opte por uma

abordagem menos explícita do imbricado jogo de poder existente na sociedade. Essa

característica de ―Os deuses de casaca‖, em particular, nos interessa ainda mais, na medida

em que o autor utiliza uma mescla de fantasia e realidade para dar conta de situações que

espelham o universal através da leitura do particular, ou ainda, emprega um certo

deslocamento da realidade a fim de retratá-la de forma mais fidedigna.

Quanto à poesia propriamente dita, o cenário é ainda mais desalentador, se

acompanharmos a fortuna crítica sobre o escritor em relação ao gênero. Dos

contemporâneos de Machado aos estudiosos recentes, há muito mais pontos negativos na

apreciação da poética machadiana do que seria razoável supor diante do vasto corpus que

apresenta: só viram o que lhes seria conveniente ver para condenar todo o conjunto.

A maioria dessas vertentes críticas pôs uma coroa imarcescível no Machado

consagrado e canônico, a ponto de considerar tudo o que ele produziu no período anterior

às Memórias póstumas de Brás Cubas como algo ―menor‖. Assim, qualquer pesquisa que

se concentre nas obras que antecedem esse período canônico é considerada negativamente,

como se isso fosse macular a imagem do patrono das nossas letras. Para esses, Ocidentais é

o único livro de poesia que merece a atenção dos leitores, já que foi escrito na maturidade

do escritor.

Tratando exclusivamente da poesia de Machado, Manuel Bandeira afirmaria que a

grande questão seria a concorrência entre o prosador e o poeta, dada a dificuldade deste em

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se impor diante da genialidade daquele. A sombra do Machado prosador se projetaria na

obra poética de tal modo que a obscureceria completamente.

Sílvio Romero, por sua vez, escolheu o poeta como alvo principal de seus ataques,

talvez considerando que era quase impossível diminuir-lhe a imagem, já consagrada à

época, de romancista de talento. Dele e de outros contemporâneos de Machado, ouviríamos

as mais diversas razões para se desprezar o poeta: falta ou excesso de lirismo, pouca

criatividade ou demasiada imaginação, uso repetitivo de vocábulos da língua ou linguagem

erudita e fria, excessivo zelo formal ou emprego de construções pobres com erros de

concordância, estro cosmopolita ou adoção de um nacionalismo epigonal, enfim, pareceres

que, se confrontados, se anulariam mutuamente, tendo em vista que emitem opiniões

divergentes sobre o mesmo objeto de análise: a poesia de Machado de Assis.

Em pesquisa de Mestrado, procuramos traçar um roteiro das críticas antigas e atuais a

respeito do poeta. Em grande parte desse material crítico, verificamos a falta de um critério

ou de um conhecimento mais vasto da sua obra poética, pois a maioria desses estudiosos

procurou analisar em superfície alguns aspectos isolados da poesia do autor, o que

provocou uma imensa distorção na análise e na conclusão de seus pareceres.

Para os que tinham o Romantismo como parâmetro, a falha do poeta estava na falta

de lirismo e imaginação e na frieza da construção dos poemas, enquanto, para os críticos de

índole realista, a fantasia era demasiada, mas a forma deixava a desejar. Forma, métrica,

rima, vocábulos, expressão, tudo isso seria alvo da crítica, exceto o conteúdo da poesia

machadiana.

Esvaziada de sentidos, a poesia seguiu à margem, na sombra ainda mais obscura da

categorização dos críticos, que pretenderam definir o poeta como romântico, na primeira

fase, e parnasiano, na maturidade. Seguindo unicamente por essas sendas, de fato, a poesia

machadiana não apresentaria maior relevo, já que frustra ambas as vertentes, apesar de não

desconsiderá-las, e opta por um diálogo com uma tradição que não se fixa em espaço ou

tempo, mas se processa das mais variadas maneiras, e parte do clássico para construir o

moderno. A obra poética machadiana, erguida sobre o edifício da tradição, acrescentou às

antigas paredes a camada do novo. Não a novidade de vanguarda, mas a releitura e

aprimoramento do antigo, num minucioso trabalho de restauração, de reavivamento do

sentido primordial da poesia.

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Para acompanharmos o princípio construtivo do poeta, assim como para

desvendarmos essa obra tão incompreendida pela crítica - que permanece ainda, após cem

anos do desaparecimento do autor, ―sob o véu dos versos‖ -, é preciso empreender um

longo percurso, a partir do início da carreira do escritor, resgatando os poemas dispersos da

adolescência e verificando o que dessa obra teria sobrevivido na publicação do primeiro

livro de poesia: Crisálidas. É importante também destacarmos que o poeta não realiza

neste livro uma coletânea dos poemas anteriormente publicados: prefere escrever outros

especificamente para esse fim, incluindo apenas dois ou três poemas de um período mais

remoto. Ainda assim, sem retomar os poemas anteriores, recupera a trajetória de influências

que o formou como poeta, como se estampasse sempre o motivo primordial do processo

criativo.

Dos quatro livros de poesia do escritor, Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais,

excluímos de nossa análise apenas o penúltimo, não só porque o assunto do livro foi

abordado anteriormente em pesquisa de Mestrado, mas também por nossa proposta de

organização temática. A leitura de Americanas nos conduziria a um outro caminho, distinto

do que nos propusemos a trilhar.

O que nos interessa, de início, é captar as influências clássicas, medievais,

renascentistas, neoclássicas e, também, românticas que formam a base dessa poesia

machadiana dos primeiros livros, a começar pelo topos clássico da subida à montanha das

musas. Também veremos como Machado, sem desprezar completamente o projeto do

jovem poeta, acrescenta um fundamento filosófico à releitura da tradição ocidental em seu

último livro: Ocidentais. Outra vez encontraremos o poeta no cimo do monte, só que, nesse

caso, descendo a encosta, como se efetuasse o último movimento, na forma de uma célebre

despedida.

O movimento de subida e de descida do monte constituirá uma importante vertente na

poesia machadiana, assim como a interpenetração da fantasia e da realidade no processo

criativo aponta para uma íntima relação entre prosa e poesia. A obra machadiana parece se

construir num único bloco, onde o artífice vai esculpindo variações de uma mesma figura,

constituída por um princípio único e indivisível.

Vida e obra, em certos momentos, parecem se fundir, como se uma se conformasse a

outra para dar origem ao grande fiat da criação artística. A arte torna-se o único atributo

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humano capaz de ter um fim em si mesmo (uma convicção declaradamente assumida por

Machado), e que traz a marca do trascendental. Nas palavras de Schelling: ―A arte leva o

homem inteiro, como ele é, até ali, a saber, ao conhecimento do supremo, e nisso reside a

eterna diferença e o milagre da arte‖1.

O que nos motiva: realidade ou ilusão? Em que medida a consciência subjetiva influi

na capacidade de captar a realidade objetiva? Ora envolvido, ora afastado, o poeta sai de si

e a si mesmo retorna como a buscar uma solução no exterior para o constante conflito

interno do homem.

Observando por esse ângulo Machado é essencialmente poeta, visto que, mesmo na

prosa, parte de um ponto de vista da realidade comum a todos os homens, baseada nos

princípios essenciais da vida, para, logo em seguida, abandonar o palco da realidade, como

um espectador da cena, onde tudo é revelado in abstracto, a partir de uma observação

distanciada do narrador. A maioria dos narradores machadianos está ―fora de si‖, por isso

pode captar o subjetivo de maneira objetiva, ao mesmo tempo que, vivendo uma ―segunda

vida‖, pode rir-se daquela primeira sem que se sinta emocionalmente atingido.

Essa atitude do prosador comunga das idéias filosóficas de Arthur Schopenhauer,

quando este trata dos vários sentidos e níveis da realidade, e de como o homem pode

interpretá-la para melhor se conformar ao contexto da vida.

Não será surpreendente, maravilhoso mesmo, ver o homem viver uma

segunda vida in abstracto ao lado da sua vida in concreto? Na primeira,

está entregue a todos os tormentos da realidade, está submetido às

circunstâncias presentes, tem que trabalhar, sofrer e morrer, como os

animais. A vida abstrata, tal como ela se apresenta perante a meditação da

razão, é o reflexo calmo da primeira e do mundo em que ele vive; ela é

esse plano reduzido de que falávamos mais acima. Aí, dessas alturas

serenas da meditação, tudo o que o tinha dominado, tudo o que o tinha

fortemente impressionado embaixo parece-lhe frio, descolorido, estranho

a si mesmo, pelo menos de momento: ele é espectador, ele comtempla.

Quando se retira assim para os cumes da reflexão, assemelha-se ao ator

que acaba de representar uma cena e que, à espera de outra, vai tomar

lugar entre os espectadores, observa com sangue-frio o desenrolar da ação

que continua sem ele, mesmo que sejam os preparativos de sua morte,

depois regressa para agir ou sofrer, como deve.2

1 SCHELLING. Apud: SUZUKI, Márcio. O gênio romântico. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 102.

2 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. (Trad. M. F. Sá Correia). Rio

de Janeiro: Contraponto, 2001. p. 94-95.

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Lendo o texto do filósofo, temos a impressão de que estamos diante de uma cena do

Hamlet, de um trecho da obra de Goethe ou de um dos capítulos das Memórias póstumas,

sobretudo porque esses autores não se preocuparam unicamente com a representação de

uma realidade única e incontestável ou da simples criação de tipos esvaziados de sentido,

mas olharam o mundo como espaço de representação, tal como o filósofo concluiu. Não

criaram suas obras como ficção simplificada, ou como espelho de uma realidade, disposta

apenas a distrair leitores/espectadores, mas voltaram a arte sobre si mesma, refletindo sobre

a capacidade criativa do homem, buscando continuamente a idéia primordial de toda a

criação, inclusive, da sua própria origem.

Só que esse ponto de vista do kataskopos, daquele que observa tudo do alto, é um

princípio poético que reincide na obra de vários autores, desde a era clássica até a

atualidade, e constitui-se um legado inegavelmente vasto e plural da literatura. Machado,

portanto, se apropria desta herança literária, enriquecendo-a com seu toque de genialidade.

De início, ainda preso à forma convencional, propaga esse pensamento em sua obra da

juventude, até que rompe definitivamente com a configuração inicial, mas mantém tanto o

princípio poético quanto a temática anteriormente esboçada.

Pretendemos mostrar o fio que une o Machado-poeta ao Machado-prosador, na

medida em que, no seu processo criativo, o escritor nunca abandonou o sentido clássico do

poeta, na verdade Sumo-Poeta, como um intérprete do mundo, como aquele que

continuamente tece a urdidura da vida, juntamente com a teia do texto literário.

Principalmente, parte de uma idéia que avalia o ―estar no mundo‖ como um longo processo

que, em vez de se constituir uma ação evolutiva, é, na verdade, uma constante refiguração

de modelos antigos, aparentemente recobertos pela tinta do novo.

O Poeta, em sua incessante busca pelos sentidos primordiais da existência, ora ―sai de

si‖ para contemplar o mundo exterior – anábase; ora mergulha em si para compreender

outro vasto mundo, que é o seu interior – catábase. Dante executaria esse procedimento na

Commedia, assim como Shakespeare em todo o seu teatro, como Goethe, no Fausto, ou,

ainda, como Michelangelo na pintura da Capela Sistina. Poderíamos citar inúmeros outros

artistas, na escultura, na arte, na pintura, na literatura, no teatro, enfim, a todos esses

poderíamos denominar ―Poetas‖, visto que pretenderam, com sua arte, dar continuidade ao

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fio de uma dada tradição e interpretar alguns séculos de nossa história a partir de uma

ligação comum a todos os homens, de todos os tempos.

No entanto, a revelação do artista na obra de arte nunca é uma versão pronta e

acabada desse preceito inicial. Pelo contrário, é uma nova formar de (re)velar o essencial.

O leitor precisa apurar o intelecto para seguir os caminhos do autor, tal como Dante guiado

por Virgílio, mas que só pode atingir a plena revelação a partir de uma jornada individual

com a Sabedoria (Beatriz).

Machado, em sua trajetória de escritor, é guiado não apenas por um Virgílio, mas por

uma série de outros mestres de que vai se apropriando e/ou a quem vai deixando pelo

caminho ao revitalizar e desconstruir o pensamento dos antigos e dos modernos, da

tradição e da contemporaneidade, até encontrar uma face própria, a medida de seu talento.

Veremos sua definitiva ascensão ao último círculo literário, o céu do escritor, para de lá

apreciar toda a sua criação poética. Ainda que se tenha a tradição como ponto de partida, há

algo completamente novo e original no texto de Machado de Assis.

Seguindo esse princípio construtivo, Machado não só dialoga com os clássicos e os

grandes mestres da literatura, da filosofia, da história, da religião enfim, de várias áreas de

conhecimento, como também vai dialogar com a própria obra, retomando temas

desenvolvidos na juventude e revitalizando assuntos já expressos em algum outro

momento.

A primeira parte desta Tese se dedicará, portanto, à analise do corpus da obra

machadiana, poemas e comédias em verso, buscando conhecê-lo como objeto de interesse e

de estudo, sem repetir os preconceitos que encontramos nos pareceres do passado e da

contemporaneidade. O interesse principal dessa pesquisa é refazer o percurso literário do

escritor, incluindo alguns aspectos biográficos que incidiram diretamente na sua produção

literária, com ênfase mais no conteúdo de suas produções do que no estudo das técnicas do

verso, exceto quando tiverem uma implicação direta na compreensão do conteúdo.

Com o propósito de buscar o lugar da poesia (e do poético) na obra machadiana,

interesse formulado no título desta Tese, a segunda parte desta pesquisa tem o objetivo de

compreender a poética machadiana, o sentido intrínseco de sua obra, partindo das

produções da juventude e das idéias esboçadas nos seus primeiros escritos, e relacionando-

as aos conteúdos das produções da maturidade. A intenção de tal pesquisa nasceu da

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necessidade de olhar a obra de Machado como um todo e não compartimentada em

classificações hierárquicas do que ―deve‖ ou ―não deve‖ ser estudado ou do que ―vale‖ ou

―não vale‖ a pena ser lido.

Seguimos, em certa medida, o conceito que trata das articulações e rearticulações de

estruturas no contexto da obra, partindo da definição de Silviano Santiago, que formulou a

seguinte opinião acerca da obra de Machado de Assis:

Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis

como um todo coerentemente organizado, percebendo que certas

estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob a

forma de estruturas, mais complexas e mais sofisticadas, à medida que

seus textos se sucedem cronologicamente.3

Procuraremos avaliar a obra da juventude de Machado em contraponto aos escritos da

maturidade, a fim de mostrar quanto o escritor foi fiel a si mesmo das primeiras às últimas

manifestações. A produção deste todo não é aleatória, mas funciona, como descreveu

Silviano Santiago, através de desarticulações e rearticulações da forma e da estrutura, o

que não configura uma brusca ruptura estética.

O discurso machadiano é tão bem articulado e tão profundamente dissimulado que

faz jus ao termo ―meias-tintas‖ empregado pelo cronista, e retomado negativamente por

Sílvio Romero, em sua crítica ao estilo do escritor 4. Machado usa meias-tintas para retratar

a sociedade, apropriando-se do recurso impressionista que só pode ser compreendido

unindo o todo às partes. Para entender o procedimento adotado e reconhecer os efeitos da

―pena‖ do escritor, retomamos o trecho de uma de suas crônicas:

Tirei hoje do fundo da gaveta, onde jazia, a minha pena de cronista. A

coitadinha estava com um ar triste, e pareceu-me vê-la articular, por

entre os bicos, uma tímida exploração. (...) O pugilato das idéias é muito

pior que o das ruas; tu és franzina, retrai-te na luta e fecha-te no círculo

dos teus deveres, quando couber a tua vez de escrever crônicas.

3 SANTIAGO, Silviano. ―Retórica da Verossimilhança‖. In: _____. Uma literatura nos trópicos. São Paulo:

Perspectiva, 1978. p. 29. 4 ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro:

Laemmert, 1897.

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Sê entusiasta para o gênio, cordial para o talento, desdenhosa para a

nulidade, justiceira sempre, tudo com aquelas meias tintas tão

necessárias aos melhores efeitos da pintura.5

Examinando atentamente o quadro delineado na crônica, constatamos que o escritor

parece misturar os recursos da literatura e das artes plásticas para pintar a sociedade. Sem

abusar das cores, vai diluindo as opiniões extremas e assume uma postura ao mesmo tempo

isenta e cética, que anula todas as afirmações. Nada parece categórico, e, sob o efeito de

alguma luz, as cores do quadro vão sendo alteradas, ganham outras nuances, de acordo com

o ângulo de visão do espectador. No dizer machadiano, cada um vai observar conforme a

―sua curta ou longa vista‖. Sobre isso é bom recordarmos um outro trecho de crônica, de A

Semana, em que o escritor diz:

A história é isto. Todos somos fios do tecido que a mão do tecelão vai

compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus vários aspectos

morais e políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes, assim também

os há frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se perde

nas cores de que é feito o fundo do quadro. 6

A obra machadiana nunca nos revela tudo. A leitura suscitará sempre um ato de

indagação, de busca por respostas que o texto sonega, cujas pistas deixa pelo caminho. Por

vezes, a ironia é a única forma de manifestação dentro da complexidade do pensamento

machadiano. O seu desdobrar contínuo, nas camadas de significados do texto, desvenda

sutilmente as máscaras sociais e nos desvela um universo de referências que, ao contrário

de esclarecer, multiplica os enigmas do discurso literário.

Como os tapetes tecidos pelas Parcas da mitologia grega, o escritor assim metaforiza

a história e a História, a um só tempo: os homens são os fios do tecido, no entanto,

dependendo do tecelão, cada quadro será composto de uma maneira, cada aspecto moral e

político, de certa forma, segue a trama do bordado e encontrar-se-á sob o efeito das cores

que compõem o fundo do quadro.

Mas já não se trata da história narrada e ficcional, nem da História propriamente dita.

O quadro machadiano sintetiza passado, presente e futuro através de um recurso

5 ASSIS. Apud: MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. Trad. de Marco Aurélio Matos. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p 352. 6 ASSIS. O.C. vol. III. A Semana. 7 de julho de 1895. p. 659

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prefigurativo, pressupondo que entender o antigo e o atual é forma de prenunciar o futuro,

não no que se refere aos acontecimentos, mas no que sinaliza a reiteração de padrões e

arquétipos.

O mundo é um palco onde mudam os atores, mas a peça é a mesma. Avaliando-se por

este ângulo - ao buscar na religião, nos textos místicos, na História, na Bíblia, enfim, numa

vasta bibliografia, o princípio regulador da vida humana -, Machado incorre no conceito de

―figura‖, que Auerbach constitui a partir do estudo na obra dos antigos, principalmente dos

textos posteriores ao cristianismo, a começar dos primeiros Padres da Igreja.

Considerando os estudos de Auerbach, discordamos da idéia de que as obras

machadianas sejam alegorias do Brasil, ou fábulas criadas a partir das questões locais,

como muitos pesquisadores teimam em afirmar. Acreditamos que Machado realiza uma

prefiguração de eventos que ligam o antigo ao novo, e, também, ao que ainda está por vir,

na linha temporal que contempla toda a história da humanidade.

Para enterdermos um pouco da tradição prefigurativa, partiremos do confrontamento

entre paganismo e cristianismo no interior da obra machadiana, e faremos uma longa

incursão pela literatura, pelo teatro e pelas artes clássicas em busca desse fio da tradição no

qual Machado se insere, desde a Bíblia, passando pela poesia de Virgílio, pelos textos de

Santo Agostinho, Dante, Goethe, Shakespeare, além da obra artística e literária de

Michelangelo, e das peças de Calderón e Gil Vicente. Como o Poeta pode interpretar

profeticamente a História do homem? Quem seria o tecelão de que nos fala a crônica?

Unindo os preceitos clássicos aos cristãos, Davi com Sibila, Machado retoma um

princípio inspirado nos sábios do Renascimento europeu. Só que, pelo viés da ironia, não

pretende extrair dessa fonte nenhuma suma teológica ou lição para gerações futuras.

Apenas constata a repetição contínua do enfadonho teatro da vida, um mundo que ele

procura reinventar através da arte, único espetáculo novo que intenta fornecer aos homens.

Como a teoria de Marcolini esboçada no Dom Casmurro, o texto literário seria a subversão

do libreto de Deus, na verdade, uma ópera cômica, ―divina comédia humana‖, que se opõe

à criação original.

Esse caráter subversivo da obra machadiana lhe renderia o epíteto, criado por

Augusto Meyer, de ―Bruxo do Cosme Velho‖. Por que ―bruxo‖? Decerto porque o escritor

se filia à antiga concepção renascentista do sábio ou do gênio, que no seu quarto de

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trabalho, entre livros, busca constantemente descobrir a fórmula da vida, o princípio da

existência. Aplicando e unindo conhecimentos pagãos e cristãos, o mago tenta tatear uma

verdade encoberta, procura encontrar um atalho para chegar até Deus, deseja criar para si

um manto de divindade. Se não atinge tais objetivos pelos métodos místicos, tenta obtê-los

pela expansão da Idéia, essência do divino que nele subsiste. Mas o conhecimento

adquirido, como o fruto do Gênesis, gera Bem e Mal, poder criativo e destrutivo, riso e

melancolia.

A melhor síntese do pensamento machadiano, que daria conta desse preceito e, de

certa maneira, explicaria o epíteto que Meyer apenas sugere, consta no poema de Carlos

Drummond de Andrade, ―A um bruxo com amor‖. A sensibilidade do poeta mineiro daria

conta desse Machado essencialmente profético e poético, formulador de enigmas, que

envolvido em sua capa, ―qual novo Ariel‖, desfaz-se no ar sem nos dar mais respostas.

No entanto, continuamente perguntamos: onde reside o poético na obra machadiana?

Qual o lugar da poesia de Machado de Assis? A distância temporal talvez nos ajude a olhar

de forma mais isenta para o dramaturgo e para o poeta, de maneira que, assim como o

escritor fez, deixemos o julgamento para o leitor atento dessas páginas que aqui virão.

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1- SUBINDO A MONTANHA DAS MUSAS

O primeiro registro que se tem de Machado de Assis no universo literário data de

outubro de 1854, uma publicação no Periódico dos Pobres: na verdade, um modesto poema

intitulado ―Soneto‖ e dedicado a Ilmª Sr. D.P.J.A. Logo nesse começo, podemos registrar

duas impressões: em primeiro plano, a ousadia do rapaz de quinze anos, que já almejava

divulgar suas produções literárias mesmo sem participar de nenhum ambiente acadêmico

propriamente dito; em segundo lugar, a intenção de impressionar uma jovem senhora que

seria o motivo do poema, talvez alguma musa inspiradora que lhe tinha despertado os

sentidos.

Quem pode em um momento descrever

Tantas virtudes de que sois dotada

Que fazem dos viventes ser amada

Que mesmo em vida faz de amor morrer!

O gênio que vos faz enobrecer,

Virtude e graça de que sois c'roada,

Vos fazem do esposo ser amada

(Quanto é doce no mundo tal viver!)

A natureza nessa obra primorosa,

Obra que dentre todas as mais brilha,

Ostenta-se brilhante e majestosa!

Vós sois de vossa mãe a cara filha,

Do esposo feliz a grata esposa,

Todos os dotes tens, ó Petronilha!7

Nos versos finais, Machado revela que a musa se chama Petronilha. Pelo elogio dos

versos, a dama louvada mostra-se um exemplo de filha e esposa, portanto, uma senhora

7 ASSIS, Machado de. Toda poesia de Machado de Assis. (org. Claudio Murilo Leal). Rio de Janeiro; São

Paulo: Editora Record, 2008. p. 601. (A partir desta nota, o livro será identificado pela sigla T.P.)

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casada que conserva o sobrenome nas iniciais J.A. Indício de amor platônico, vocação

precoce para amar mulheres mais maduras ou simples versos de gratidão? Nota-se no

poema uma espécie de admiração contida e respeitosa, onde se entrevê algum sentimento

forte: ―Que mesmo em vida faz de amor morrer!‖, ao mesmo tempo atenuado pelo respeito

e pelo distanciamento moral: ―O gênio que vos faz enobrecer,/ Virtude e graça de que sois

c'roada.‖. A oscilação de sentimentos do jovem poeta é evidente, pois aparenta estar ao

mesmo tempo envolvido e distanciado do seu foco de atenção, marcando a atitude dúbia de

quem ousa louvar publicamente uma dama, mas oscila entre a aproximação e o afastamento

do seu, hipotético, objeto de desejo.

A biografia da infância e da adolescência do escritor, tão obscura, não nos permite

afirmar com convicção quais teriam sido os primeiros passos do jovem na carreira, no caso,

antes de 1854. Tão somente as produções publicadas nos periódicos da época foram os

testemunhos dos caminhos percorridos por Machado desde sua estréia literária.

O grande prosador de nossa literatura, portanto, nasce poeta. Ainda em tenra idade,

já traçava um objetivo na vida, um plano de futuro que revelava sua maior aspiração:

escrever e, principalmente, ser lido. Encontrou, sobretudo, o terreno ideal para desenvolver

a vocação de escritor, graças ao grande florescimento literário de que gozava a capital do

Império na segunda metade do século XIX.

O Periódico dos Pobres, onde o jovem publicou seu ―Soneto‖, era uma folha de

tiragem trimestral, impressa na tipografia de Antonio Maximiano Morando, situada à Rua

da Assembléia, número 82, segundo os dados que constam no Almanaque Laemmert de

1854.8 É muito comum encontrarmos publicações atuais que, ao tratarem do primeiro

poema de Machado, atribuam erradamente a Paula Brito a edição desse jornal.

De igual modo, o título da publicação de Morando, ao contrário do que muitos

costumam ressaltar, não continha uma intenção depreciativa, nem teria o propósito de se

tornar porta-voz dos menos favorecidos, apesar de ser publicação modesta e barata. Ao que

parece, aproveitava-se da popularidade de jornal homônimo, publicado no Porto, que

gozava de grande prestígio entre os portugueses e que tinha como um dos seus

colaboradores, dentre outros nobres colunistas, o afamado escritor Camilo Castelo Branco.

8 LAEMMERT, Eduardo (org.). Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e Província do Rio

de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Laemmert, 1854. p. 568.

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O perfil da publicação de Morando era anunciado logo no subtítulo da folha: ―noticiosa e

recreativa‖.

No mesmo Almanaque Laemmert, tomamos conhecimento das tipografias que

existiam na Corte no ano de 1854: nada mais, nada menos, do que vinte e sete, todas

próximas à região da espinha dorsal da época, a Rua do Ouvidor9. Dentre essas, destacamos

a do próprio Laemmert, a de Maximiano Morando e a de Paula Brito. Por esse ―corredor

literário‖, situado na região central da Corte, Machado andaria desde muito jovem, e o

freqüentaria até o fim da vida.

Não é de se estranhar que o jovem, passado o impacto da primeira investida pública

como escritor, tenha se animado a continuar publicando seus escritos. No ano seguinte, em

1855, aumenta a freqüência das produções no jornal, desta vez na Marmota Fluminense,

de Francisco de Paula Brito. Os poemas dispersos de Machado que datam dessa época,

segundo a compilação de Cláudio Murilo Leal10

, perfazem 19 poemas escritos em álbuns

de amigos ou publicados no meio jornalístico. O jovem inicia o ano de 1855 com dois

poemas na Marmota Fluminense, segue publicando nos meses seguintes, e arremata a

participação com chave de ouro no último mês do ano, com um soneto encomiástico ao

Imperador D. Pedro II, estrategicamente no dia ―dois de dezembro‖, aniversário do

monarca, e também, não por coincidência, nome da tipografia de Paula Brito.

Outro ponto que nos chama a atenção é a alternância das assinaturas nos poemas, o

que revela a oscilação do jovem quanto à fixação de um nome artístico marcante. Se no

primeiro poema assinaria ―J. M. M. Assis‖, nos seguintes simplificaria para ―Assis‖,

alternando em seguida para ―J. M. M. d‘ Assis‖, sempre omitindo a preposição ou

apostrofando-a. Pode-se alegar que as abreviaturas eram tendência da época, mas as

constantes mudanças na assinatura autoral denunciam a busca por um sobrenome mais

eufônico ou que soasse mais literário. Por outro lado, também parecia não agradá-lo a

composição do próprio nome, Joaquim Maria, preferindo a redução deste nas iniciais J. M.,

assim como o ―Machado‖, finalizado em ―do‖, não combinava com a preposição ―de‖ que

se seguia. Enfim, vencidas as primeiras resistências, a partir de 1859, já passaria a assinar

com o nome que lhe seria definitivo: Machado de Assis.

9 Idem. p.569.

10 ASSIS. T.P. Op. cit.

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Nesse início de carreira, o jovem ia facilmente estabelecendo vínculos e começava a

se adaptar ao meio literário, firmando amizade com jovens poetas e convivendo num

ambiente cercado de escritores de renome, além de outros vultos importantes no panorama

das letras nacionais. As dedicatórias dos poemas igualmente revelam as homenagens do

escritor iniciante e o círculo de amizades a que passaria a pertencer.

Francisco Gonçalves Braga, poeta português que chegou ao Brasil em 1854, parece

ter sido um dos primeiros jovens literatos por quem Machado passou a nutrir grande

afinidade. Alguns dos poemas machadianos da Marmota Fluminense, publicados em 1855,

terão alguma relação com o amigo: nas epígrafes, como se nota em ―Ela‖ e ―A saudade‖,

ou nas dedicatórias, como é o caso de ―A palmeira‖ e ―Saudades‖. Neste, motivado pelo

afastamento de Braga em visita à terra natal, Machado assim o saúda:

Recebe, ó Braga, o meu canto,

Que eu cá de longe t‘envio;

São orvalhadas do pranto

Secas flores do estio;

É prova da lealdade

Duma constante amizade,

Recebe, que o pensamento

Tenho em Deus, na pátria, em ti;11

O gosto de Machado pela cultura portuguesa mostrava-se cada vez mais intenso,

tanto motivado pela estirpe materna, quanto pela influência de Braga e de outros poetas

portugueses com quem teria larga convivência.

Numa outra composição no álbum de Braga, Machado saudaria poetas portugueses

e autores clássicos que povoavam o diálogo literário de ambos e seriam a fonte de

inspiração de seus versos. Cita Garret, Elmano Sadino (pseudônimo árcade de Bocage),

Bernardim Ribeiro, Camões, Tasso, Homero e Virgílio. Todos os poetas, salvo o primeiro,

possuem origem ou índole clássica. Machado, no poema, descreveria o gênio poético do

amigo em tom grandiloqüente, coroando-o com os louros apolíneos:

Nessa epopéia, monumento excelso

Que em memória do Vate à pátria ergueste,

Ardente se desliza a etérea chama,

11

Idem. p.606

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Que de Homero imortal aos sucessores

Na mente ateia o céu com forte sopro!

Euterpe, a branda Euterpe nos teus lábios

Da taça d‘ouro, derramando o néctar

Deu-te a doce com que outr‘ora

Extasiou Virgílio ao mundo inteiro!

―Empunha a lira d‘ouro, e canta altivo

um Tasso em ti se veja – o estro excelso

De Camões imortal, te assoma à mente;

E de verde laurel cingida a fronte

Faz teu nome soar na voz da fama!‖

Foram estas frases com que Apolo

Poeta te fadou quando nasceste,

E em doce gesto te imprimiu na fronte

Um astro de fulgor que sempre brilha!12

Nesse período, o poeta fluminense alternava duas dicções bem marcadas: a

romântica e a clássica; um tom lírico e menos vigoroso, outro épico e eloqüente. Até para

louvar as belezas da paisagem de sua terra, no poema ―O Pão d‘Açúcar‖, percebe-se a

personificação do monte, tal como o episódio do Gigante Adamastor, de Camões: ―Salve,

altivo gigante, mais forte/ Que do tempo o cruel bafejar,/ Que avançado campeia nos

mares,/ Seus rugidos fazendo calar‖13

. A apóstrofe, abundante em seus versos, poderia ser

justificada por uma questão de métrica, quando ocorrida no interior do poema, mas, posta

no título, denuncia a influência lusitana nas escolhas morfológicas.

Machado teria se nutrido ao mesmo tempo, portanto, de feições clássicas,

renascentistas, neoclássicas e românticas em seus poemas. Parecia viver o clima romântico

do tempo, como denuncia a epígrafe de Álvares de Azevedo no poema ―O profeta‖ e de

Teixeira e Sousa em ―O gênio adormecido‖, mas os primeiros acordes da lira, no ano de 55,

tinham uma entonação mais afinada com a musa clássica.

Há ainda outras dedicatórias, direcionadas a pessoas do seu convívio, assim como

vão surgindo trechos de autores brasileiros da época, como os acima citados, ou de poetas

portugueses mais próximos, como Garret, recém-falecido no ano em questão. A nossa

curiosidade se aguça quando nos deparamos com a dedicatória do poema ―A saudade‖, de

título igual ao já citado, embora lhe sendo anterior: ―Ao meu primo, Sr. Henrique José

12

Idem. p. 623 13

Idem. p. 628

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Moreira‖. Com esse mesmo nome, encontramos o registro de um capitão do 12º Batalhão

de Infantaria da época. Um homônimo, ou de fato o primo de Machado seria um militar de

patente? Trata-se de uma especulação para biógrafos, já que não há indício mais sólido que

ligue um nome ao outro.

Entretanto, o que não se pode negar nos poemas dessa fase - de 55 a 56 - é a

presença do vínculo familiar, seja na dedicatória ao primo, seja nas composições dirigidas à

memória da mãe e da irmã, falecidas em 1849 e 1845, respectivamente.

A familiaridade com o ambiente da Rua do Ouvidor e adjacências nos leva a cogitar

que, de alguma maneira, Machado teve uma freqüência prévia do lugar, pois parecia muito

íntimo e à vontade para ser um recém-chegado que lá se intrometesse e começasse a

publicar poemas. Tudo leva a crer que tenha crescido nesse espaço, talvez levado pelas

mãos do pai, Francisco José de Assis, pintor e dourador, assinante do Almanaque

Laemmert. Se verídico, o fato também explicaria a intimidade de Machado com a língua

francesa, já que o ambiente da Rua do Ouvidor estava impregnado por essa cultura, seja no

linguajar, nos cartazes, nas modas. A rua, enfim, podia ser considerada um pedaço da

França na Corte, e não apenas da França, se considerarmos a índole marcadamente

cosmopolita do lugar.

Como assinante do anuário, certamente o pai de Machado teria circulado por ali.

Talvez Francisco assinasse o catálogo de Laemmert com o propósito de informar-se sobre

possíveis clientes, inteirando-se dos estabelecimentos listados na publicação para oferecer

serviços, além de encontrar ali os principais fornecedores de material para execução do seu

ofício. Alguns biógrafos não descartam um interesse do pintor pela literatura, embora o fato

de ser assinante não o vinculasse a um gosto literário. O conteúdo eclético do Almanaque,

de utilidade pública, caracterizava a publicação como uma espécie de ―listão‖ de produtos e

serviços, como os da atualidade; portanto, atraía uma gama de leitores com os mais

diferentes gostos.

Levando-se em consideração os cinco anos de intervalo entre a morte da mãe de

Machado, em 1849, e as segundas núpcias de Francisco, em 1854, - embora alguns

levantem a hipótese de que ele poderia ter vivido maritalmente com Inês antes da

oficialização do casamento –, o pai teria sozinho de educar o filho, e nada mais natural do

que levá-lo consigo aos lugares onde desempenhava o seu ofício. No anuário de Laemmert

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29

havia uma lista de pintores e douradores que ofereciam serviços, voltados principalmente

para a pintura de tabuletas ou restauração e douração de imagens de santos, o que indicaria

a provável clientela de Francisco: os estabelecimentos comerciais e as igrejas.

É uma hipótese bem plausível a de que o jovem houvesse freqüentado esses lugares,

tendo em vista a familiaridade com que se estabeleceu no espaço literário, além da

influência que nele exerceram os costumes, a religião e o ambiente clerical. São inúmeros

os poemas, os contos, romances, crônicas e outros textos em que Machado retrata os

interiores das igrejas, seus rituais e, principalmente, o seu encantamento pelos sinos, como

afirma numa crônica de 1892: ―Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas

igrejas‖14

.

Por outro lado, no extremo oposto, seria levado também ao ambiente mais profano e

materialista da Corte: a Rua do Ouvidor, plena de burburinho e de estabelecimentos

comerciais. Seguindo por essas ambíguas vias, teria sido criado entre santos e tabuletas,

entre o espiritual e o material, entre os sinos e os pregões, entre o latim e o francês.

Admitindo-se tal reconstrução biográfica, podemos dizer que Machado soube tirar

proveito do ensinamento de ambos os ambientes, já que, com pouca idade, demonstraria

conhecimento tanto da cultura e da língua francesa, quanto da cultura clássica. Apesar de

não haver freqüentado regularmente uma escola, o seu aprendizado, segundo relatam as

biografias, se completaria com lições de um padre-mestre – referindo-se ao pároco da

Igreja da Quinta, no bairro onde residia –, havendo ainda relatos de que teria aprendido

francês com o ―forneiro‖ de uma padaria francesa, ou seja, num ambiente comercial.

Quem sabe, atando as duas pontas da experiência da infância, pelos próprios

conhecimentos travados, não teria encontrado o caminho para desenvolver a vocação de

escritor, entre a galhofa das ruas agitadas da região central da Corte e a melancolia dos

sinos das catedrais?

O primeiro emprego como aprendiz de tipógrafo pode ter sido obtido mediante a

iniciativa do pai, que possivelmente desejaria ver o filho ocupando um ofício que lhe

garantisse a sobrevivência e que pudesse aumentar a renda da família. A tarefa, no entanto,

14

ASSIS. Obra Completa. Vol.3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. p. 539 (a partir desta nota, o livro será

citado com a sigla O.C.)

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não se adequava ao perfil do rapaz, já que ele preferia ler o conteúdo das publicações a ter

de imprimi-lo no papel.

Fugindo à vocação do pai, Machadinho teria optado pela atividade intelectual,

talvez à revelia da família, que não poderia vislumbrar futuro num rapaz pobre que

desejava desenvolver uma singular aptidão: ser escritor. Não seria o único, dentro do

contexto familiar dos poetas da nossa literatura, a contrariar os auspícios paternos em favor

do sonho literário: assim aconteceria com Casimiro, Drummond, Bandeira e tantos outros

escritores antes ou depois de Machado, e que negaram a vocação paterna, trocando o

legado familiar, os ―bens e o sangue‖, pela arte e pelo encanto das letras.

Segundo estudos de Ubiratan Machado, a morte de Francisco José de Assis teria

ocorrido em 1864, quando Machado tinha vinte e cinco anos15

, portanto, bem após a data

fixada pelos biógrafos, que a delimitaram no começo da adolescência do escritor. Essa

informação também desmentiria a hipótese de o jovem ter abandonado Maria Inês, a

madrasta, após a morte do pai, pois, no período em questão, já não morava mais com a

família e, ao que tudo indica, garantia a própria subsistência através de um incansável

trabalho, como revisor de provas, poeta, crítico, autor teatral, tradutor, dentre outras

atividades literárias e contribuições nos jornais. Aliás, a estréia de Machado no mundo das

letras, em 1854, coincide com o ano em que Francisco se casa com Maria Inês, cerca de

vinte anos mais nova do que ele. Teria sido esse o motivo principal da busca do jovem pela

emancipação financeira?

Não se sabe muito acerca dessa convivência entre madrasta e enteado, mas o fato é

que Machado, muito afetuoso e apegado aos vínculos familiares e de amizade, jamais fez

qualquer referência a Maria Inês. Ao contrário, morrendo Francisco, o escritor

simbolicamente colocaria mãe e pai unidos, na dedicatória de Crisálidas, seu primeiro livro

de poesia, como uma forma de eternizá-los lado a lado.

Em relação ao pai, especificamente, a lembrança e a dedicatória na obra do autor só

aconteceriam após a morte de Francisco José de Assis. Enquanto viveu, o pai nunca surgiu

em sua produção, seja como temática ou, ainda, em dedicatórias de poemas. Tampouco a

palavra ―pai‖ entraria no vocabulário de seus versos, a não ser em referência a Deus.

15

MACHADO, Ubiratan. Dicionário Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL, 2008. p. 28

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31

Traçado o percurso dos primeiros passos de Machado de Assis, convém revelar o

conteúdo das produções dispersas que vão da estréia, em 1854, à publicação de Crisálidas,

em 1864. As temáticas seguidas pelo jovem poeta estão centradas na relação afetiva, seja

amorosa, familiar ou de amizade, o que se revela muito natural nas produções de um poeta

adolescente. Não podemos esquecer de que ter 15 anos naquele tempo não correspondia

sequer à juventude, mas ainda aos últimos suspiros da infância, principalmente para o sexo

masculino.

1.1- Nos enlevos de Calíope

―A palmeira‖ foi o segundo poema do escritor, e o primeiro a ser publicado na

Marmota Fluminense, de Paula Brito. A confissão amorosa na composição é revelada num

monólogo direcionado à palmeira, erguida no cimo do monte: ―Como é linda e verdejante/

Esta palmeira gigante/ Que se eleva sobre o monte!‖. Seria, portanto, a primeira subida do

poeta ao clássico refúgio das musas - a montanha - lugar de inspiração e isolamento. A

árvore, alta e inalcançável, ouve as queixas do poeta e guarda os seus segredos: ―Ó

palmeira, eu te saúdo,/ Ó tronco valente e mudo,/ Da natureza expressão!/ Aqui te venho

ofertar/ Triste canto, que soltar/ Vai meu triste coração.‖ 16

No poema ―Ela‖, publicado seis dias depois do precedente, em 12 de janeiro de

1855, o foco principal é, novamente, o louvor a uma dama não nomeada. Entretanto, ao

descrevê-la, o jovem destaca seu gosto por ouvi-la cantar: ―Com sua boca mimosa/ Solta

16

ASSIS, Machado de. ―A palmeira‖. In: SOUSA, J. Galante de. (org). Machado de Assis: Poesia e Prosa.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 17- 19.

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voz harmoniosa/ Que inspira ardente paixão,/ Dos lábios de Querubim/ Eu quisera ouvir

um – sim – /Pr‘a alívio do coração!‖17

Talvez aqui haja um prenúncio do enlevo musical que acompanharia Machado por

toda a vida, tão fortemente marcada pelos espetáculos dramáticos e líricos da juventude e,

principalmente, pelas cantoras e atrizes, suas primeiras musas, que alimentaram as ilusões

amorosas do rapaz. Esses espetáculos casavam tão bem a arte, a beleza feminina e a

música, que desde cedo arrebataram o coração do neófito bardo.

Em 15 de julho do mesmo ano, Machadinho revelaria mais patentemente o gosto

pelas divas do Teatro Lírico em outro poema publicado no jornal de Paula Brito. Mesmo

omitindo o nome da cantora, o poeta manifesta-se mais ousado ao declarar que a

composição ―Teu canto‖ destinava-se ―a uma italiana‖.

Tu és tão sublime

Qual rosa entre as flores

De odores

Suaves;

Teu canto é sonoro

Que excede ao encanto

Do canto

Das aves.

Eu sinto nest‘alma,

Num meigo transporte,

Meu forte

Dulçor;

Se soltas teu canto

Que o peito me abala,

Que fala

De amor.

Se soltas as vozes

Que podem à calma,

Minh‘alma

Volver;

Minh‘alma se enleva

Num gozo expansivo

De vivo

Prazer.

Donzela, esta vida,

Se eu tanto pudera,

17

Idem. p. 22.

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Quisera

Te dar;

Se um beijo eu pudesse

Ardente e fugace

Na face

Pousar.

A epígrafe do texto - ―É sempre nos teus cantos sonorosos/ Que eu bebo inspiração‖

- refere-se a uma outra composição que seria publicada alguns dias depois, no mesmo

veículo, em 24 de julho. Os versos de ―Meu anjo‖ alternam-se em decassílabos e

hexassílabos, com a franca intenção de variar ritmicamente o canto de amor dirigido à

musa:

És um anjo d‘amor – um livro d‘ouro,

Onde leio meu fado

És estrela brilhante do horizonte

Do bardo enamorado

Foste tu que me deste a doce lira

Onde amores descanto

Foste tu que inspiraste ao pobre vate

D‘amor festivo canto;

É sempre nos teus cantos sonoroso

Que eu bebo inspiração;

Sem procurarmos virtuosismo no bardo de pouca idade, o que podemos inferir da

leitura de seus poemas é que nessas composições há uma intenção clara de variação

rítmica, que revela a índole do poeta de testar as formas do verso, apurar a métrica e

aprimorar a linguagem, ainda que não atingisse plenamente o objetivo e mantivesse a

escolha por rimas banais, em ―ão‖, ―ar‖, ―or‖.

Um outro dado importante para compreendermos a trajetória de Machado no

universo literário e cultural da Corte é a sua opção por uma cantora italiana, o que

comprova que o rapaz de pouca idade já freqüentava os espetáculos líricos, embora não

saibamos exatamente de que forma obtinha acesso a tais eventos. Nada mais natural que

estivesse fascinado pelas beldades que ocupavam o centro das atenções na época, e que

observasse de perto o grande assédio que recebiam do público, principalmente dos homens

influentes e endinheirados que as cobriam de jóias, flores e presentes. Assim, Machado se

animava a galanteá-las com versos através dos jornais, como única manifestação de apreço

de um poeta sem posses.

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O interesse do vate pelas cantoras líricas prosseguiria em franca ascensão, e, em

1856, não esconderia mais a admiração em metáforas, palavras vagas, dissimuladas ou sem

clara indicação da destinatária dos versos. O título da composição traria nome e sobrenome

da musa inspiradora: ―À madame Arsène Charton Demeur‖. No poema, o jovem

implorava para que a cantora não se ausentasse do Brasil.

Oh sol que o céu das artes ilumina,

É cedo o ocaso teu na nossa terra!

Um dia mais, um dia mais de enlevos:

Fica, Charton – contigo a luz gozamos;

Sem ti – sombria treva a cena envolve!

Nas estrofes seguintes, mostra a sua ambição literária ao desejar para si o gênio de

Musset, para louvar Arsène com a dignidade merecida e ter o seu nome, junto ao dela,

levado à posteridade:

Quem me dera, Charton, sentir na mente,

De Alfred de Musset, o gênio em chamas

De imenso ardor, para com voz altiva

Levantar-te um padrão, mais duradouro

Que o mármor ou que o bronze, que lembrasse

Junto do nome teu, meu nome obscuro!

Mas não posso obter do austero fado

Glória maior que admirar-te o gênio

Num pobre canto, que o teu canto inspira!

Musa gentil dos versos que ora teço,

(...)

Recorda o canto meu, - recorda o vate

Que mais que todos te admira o canto,

Talento e garbo que ostentas na cena!18

Apesar de declarar sua obscuridade, o ―eu-lírico‖ almeja que a musa recorde o seu

canto, mesmo em outras terras. Se a dama não podia atribuir qualidade à composição, ao

menos a aceitasse como lembrança do mais entusiasta dos seus admiradores. O poeta ainda

arremata os versos com a exaltação da Charton, frente a uma outra cantora da época, com a

qual rivalizava: a Stoltz: ―Grande é Stoltz, mas Stoltzs há muitas;/ Charton só uma que no

mundo impera!‖.

18

ASSIS.T.P. p. 631.

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O gosto pela diva revela-se também na produção de Gonçalves Braga, que dedica-

lhe uma série de seis poemas no livro Tentativas poéticas, culminando na composição de

despedida, com data de 16 de março de 1856. Há indicações no livro de que muitos desses

poemas foram escritos no álbum de Charton, o que demonstra certa proximidade entre ela e

o jovem poeta. É provável que Machado e Braga freqüentassem os mesmos espetáculos, os

mesmos salões, e pertencessem à fiel falange dos ―chartonistas‖. Talvez, influenciado pelo

amigo, Machado tenha-se animado a oferecer o poema à dama, por ocasião de sua

despedida dos palcos brasileiros.

O sucesso que as cantoras líricas provocavam naquele tempo também foi tema de

umas das crônicas de José de Alencar, de 17 de setembro de 1854. Em Ao correr da pena,

o escritor fala do assédio a essas damas e de como muitos senhores chegavam a perder a

cabeça, só pelo enleio de presenteá-las. Para exemplificar tal apreço, relata o episódio de

um dos admiradores da Charton, surpreendido pelo cancelamento do espetáculo lírico por

causa de uma indisposição da estrela principal.

Um velho diletante do meu conhecimento, ainda do tempo do magister

dixit, e para quem a palavra da autoridade é um evangelho, teve a infeliz

lembrança de justamente nesta noite encomendar um magnífico buquê

para oferecer à Charton no fim da representação. Apenas se declarou o

relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o que foi pior,

com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, e lá deixou ficar,

com os ares de novo um chapéu comprado pela Páscoa.19

Em A mão e a luva, há uma descrição detalhada do que eram as falanges de

admiradores, que, segundo afirma no relato, realizavam uma verdadeira ―batalha campal‖

em defesa de suas musas, no caso, cantoras líricas. O episódio faz parte de um dos

capítulos do romance de Machado e é narrado com dicção clássica, parodiando cenas da

Ilíada. O trecho, além de mostrar a rivalidade entre dois ―partidos‖ - o dos seguidores de

Mlle. Lagrua e o dos admiradores de Mlle. Charton –, aponta também para a possibilidade

de Machado ter sido testemunha ocular desses acontecimentos.

A Corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os

que transpuseram a linha dos cinqüenta divertia-se mais do que hoje,

19

ALENCAR, José. Teatro completo. Vol. 1. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, 1977. p. 47.

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eterno reparo dos que já não dão à vida toda a flor dos seus primeiros

anos. Para os varões maduros, nunca a mocidade folga como no tempo

deles, o que é natural dizer, porque cada homem vê as coisas com os

olhos da sua idade. Os recreios da juventude não são decerto igualmente

nobres, nem igualmente frívolos, em todos os tempos; mas a culpa ou o

merecimento não é dela, — a pobre juventude, — é sim do tempo que lhe

cai em sorte. A Corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cólera -;

bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os

seus salões, como os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos três

fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homéricos do teatro

lírico, a quadra memorável daquelas lutas e rivalidades renovadas em

cada semestre, talvez por um excesso de ardor e entusiasmo, que o tempo

diminuiu, ou transferiu, — Deus lhe perdoe, — a coisas de menor tomo.

Quem se não lembra, — ou quem não ouviu falar das batalhas feridas

naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião

casalônica e a falange chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento

lagruísta? Eram batalhas campais, com tropas frescas, — e maduras

também, — apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de

estalinhos. Uma noite a ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo

chartonista, com tal violência, que parecia uma página da Ilíada. Desta

vez, a Vênus da situação saiu ferida do combate; um estalo rebentara no

rosto da Charton. O furor, o delírio, a confusão foram indescritíveis; o

aplauso e a pateada deram-se as mãos, — e os pés. A peleja passou aos

jornais. (...)

Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona hão de sentir

hoje, após dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em

coisas que pediam repouso de espírito e lição de gosto.20

No contraponto entre os hábitos culturais do tempo de juventude e os do momento

da escrita, constata-se a semelhança entre o contexto narrado no romance e a realidade

vivida pelo escritor em sua época de rapaz. Mistura-se ao relato do narrador a nostalgia do

passado, frente às mudanças de comportamento dos jovens do seu presente. No entanto, o

olhar não é de condenação, porém de constatação: ―... mas a culpa ou o merecimento não é

dela, — a pobre juventude, — é sim do tempo que lhe cai em sorte.‖ O jovem Machado

tirara, portanto, o bilhete premiado, por ter nascido em época tão fecunda de nossas letras e

por encontrar lugar e oportunidade ideais para o pleno desenvolvimento de seu gênio.

Mas a maneira isenta de o escritor tratar a história, principalmente a dos dias idos e

vividos, fez com que pusesse na fala do narrador uma crítica ao passado, mesmo após

recordá-lo com tanto gosto. Declara, com consciência de escritor maduro, que houve

―excessivo entusiasmo‖. Assim resumia os arroubos juvenis, lembrando-se, certamente, das

20

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. In:____. O.C. Vol 1. p. 204-205.

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ações do passado, dos poemas que dedicou com veemência e dos arrebatamentos de

outrora, motivado pelas melodiosas e apaixonantes vozes das musas de seu tempo.

À madame de La Grange dedicaria um poema em 1859, louvando o talento da

cantora com belos versos: ―Talhou-te larga a púrpura do gênio/ A mão severa e pura dos

destinos,/ Imprimiu-te na voz a harpa de um século/ E a alma te encarnou em sons

divinos.‖

Em crônicas posteriores, da década de 70, não negaria ter carregado nos ombros a

célebre Augusta Candiani, como um de seus mais fervorosos admiradores. Certamente

essas foram cenas saudosas que seriam relembradas por Machado, da mesma forma que as

cenas descritas no romance acerca da ―guerra‖ entre lagruístas e chartonistas.

Escreveria algumas dedicatórias particulares, como o poema ―Um nome‖ no álbum

de Luísa Amat, outra cantora lírica, esposa do empresário e fundador da Imperial Academia

de Música, José Amat. Estava o rapaz infiltrado nesse ambiente, passeando pelos salões,

indo aos bailes e saraus onde desfilavam as mais aclamadas atrizes e cantoras da época. A

presença de Machado, desde cedo, no meio lírico e teatral, demarcaria a influência desses

dois ambientes em sua obra.

Ainda nos poemas dispersos, encontramos composições dedicadas a atrizes, como

D. Gabriela da Cunha, amor cultivado em prosa e verso, seja com elogios nos jornais da

época, seja através de poemas fervorosos. A admiração seria alimentada pela diva com

declamações e interpretações especiais que ela realizaria de alguns dos poemas do jovem

Machadinho, além de atuar, posteriormente, como protagonista de ―O caminho da porta‖,

peça machadiana.

Em 1859, o escritor dedicaria à musa do teatro o poema ―A D. Gabriela da Cunha‖,

em que não pouparia elogios à atriz. Assim conclui o texto: ―Faz uma flor de cada espinho

acerbo,/ Tira de cada treva um arrebol;/ Para fazê-la – abre teus lábios, verbo!/ Para tirá-la

– abre os seus raios, sol!‖21

.

Em 1861, ofereceria ainda um outro poema à atriz, e à filha desta: Ludovina

Moutinho. A insistência do poeta em ofertar composições a Gabriela da Cunha e conceder-

lhe tantos elogios através dos jornais indicaria, segundo biógrafos, uma paixão recolhida

que culminaria na composição do poema ―Versos a Corina‖, sendo esta um pseudônimo

21

ASSIS.T.P. p. 694.

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dado pelo autor à célebre artista. Nada comprova a concretização das relações entre

Gabriela e Machado, mas fica muito clara a admiração do poeta, no poema de 1861:

Enfim! Sobre esta cena, a tua e nossa glória,

Onde a musa eloqüente e severa da história

Toma-te a mão, e te abre à fascinada vista

O campo do futuro, ó grande e nobre artista,

Vejo-te, enfim! Ermo, calado e nu,

Esperava a madona e a madona eras tu.

Mercê do mar sereno e do lenho veloz,

A mesma, a mesma sempre, eis-te enfim entre nós!

Eras daqui. Que importa uma ausência? O teu nome

A ausência não descora, o ouvido não consome,

Da lembrança e da luz que ficaram de ti,

Andasses longe, embora, ele vivia aqui.

O que é o mar? Barreira inútil. A lembrança

Tem asas e a transpõe. E depois a esperança

De ver no mesmo céu a mesma estrela dantes

Punha no ânimo a paz. Aos louros verdejantes

De que ornavas a fronte outros inda juntastes.

Bem-vinda sejas tu, tu que por fim voltastes

No brilho e no vigor dos teus dias melhores

Luzente de mais luz, c‘roada de mais flores

E que vens, assentando outras datas gloriosas,

Dar ao palco viúvo a melhor das esposas.

Apesar de não dispormos de dados mais concretos que associem o nome de

Gabriela ao de Corina, há uma correspondência entre o período em que Machado compõe

elogios e versos à artista e a época em que publica as primeiras estrofes do poema das

Crisálidas. Não se restringiria aos versos de admiração à diva: ainda escreveria, em 1862,

um drama intitulado ―Gabriela‖, cujos originais se perderam.

Nas páginas finais do seu primeiro livro de poesia, o autor colocaria uma nota

instigante sobre o poema ―O dilúvio‖. Machado destaca um verso dessa composição- ―E

ao som dos nossos cânticos‖- e faz a seguinte afirmação: ―Estes versos são postos na boca

de uma hebréia. Foram recitados no Ateneu Dramático pela eminente artista D. Gabriela da

Cunha, por ocasião da exibição de um quadro do cenógrafo João Caetano, representando o

dilúvio universal‖.

Na verdade, a hebréia a que se refere Machado é a Sulamita, noiva de Salomão e

personagem dos Cânticos bíblicos. O livro é a exaltação da primeira noite do rei com sua

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esposa. Através de metáforas, a relação amorosa é descrita em detalhes neste livro bíblico,

interpretado posteriormente como a relação entre Cristo e a Igreja.

Machado teria, portanto, aproveitado a oportunidade para fazer Gabriela da Cunha

declamar o seu poema, colocando-a em situação semelhante a Sulamita, cantando os

poemas de amor compostos pela lira de Salomão. Talvez quisesse fazer dela uma nova

―hebréia‖, papel encenado pela atriz na peça ―O dilúvio universal‖, lendo os versos de

amor de seu ―esposo‖, disfarçados em canto místico.

Um estudo aprofundado das metáforas eróticas do poema ―O dilúvio‖, declamado

por Gabriela da Cunha, foi efetuado em nossa pesquisa anterior, na dissertação de

mestrado22

. Atentando para o caráter aparentemente religioso do poema, embora construído

com intenção oposta, ―o dilúvio‖ machadiano é um desaguar de metáforas amorosas que,

apropriadamente, declamadas pela atriz, realizariam uma fusão entre a artista e a esposa de

Salomão, a hebréia. Concretizaria assim os auspícios dos versos aqui transcritos: ―Dar ao

palco viúvo a melhor das esposas‖.

Em 1866, data da partida definitiva da artista para Portugal, Machado inseriria mais

uma vez uma referência a Corina na peça Os deuses de casaca. O personagem Apolo,

figura divina associada aos poetas, sente atração pela mulher do pai, Júpiter, cultivando,

assim, um amor proibido. Cupido tenta convencê-lo a abdicar da divindade para se tornar

humano e unir-se a Juno, que havia decidido ser uma mortal. Assim Cupido a descreve: ―É

bela ainda como outrora,/ Bela, e altiva, e grave, e augusta, e senhora. (...) Oh, vaidade!

Humana embora, Juno é ainda divina.‖ Apolo pergunta então qual o nome que teria na terra

e Cupido responde: ―Um [nome] mais belo: Corina!‖.

Inegavelmente, o poeta nutriu por Gabriela Augusta da Cunha um forte sentimento,

denunciado nos versos da peça ao referir-se a Juno como ―augusta e senhora‖, objeto

proibido no campo dos desejos do jovem Apolo, e tão ―augusta‖ quanto aquela. Assim

como o deus grego Apolo, o poeta fluminense estaria arriscando sua ―divindade‖, sua

vocação poética, para seguir o amor de uma dama mais velha e comprometida?

22

AMPARO, Flávia Vieira da S. do. Um verme em botão de flor. Dissertação de Mestrado em Literatura

Brasileira, UFRJ, 2004.

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40

No prefácio, por sua vez, o escritor atribuiria à ausência das damas o principal

motivo de fracasso da obra: ―Damas, sem vosso amparo, a obra se acabou!‖23

A partir de

então, esqueceria Corina/Gabriela, e buscaria um amor mais realizável, que pudesse ser

correspondido, logo, sem os sobressaltos dos amores proibidos.

1.2 - A primeira ponta da vida

Há alguns parágrafos, destacamos a presença dos poetas clássicos na dicção

machadiana, principalmente por influência de Francisco Braga. Em 1856, percebe-se uma

metamorfose nos versos de Machado, provavelmente sob o influxo de novas leituras e de

autores que entravam no cardápio do poeta aprendiz. O jovem tendia a efetuar leituras de

várias fontes, e seu conhecimento se ampliava para além do campo português, com a

inclusão de autores franceses como Victor Hugo ou espanhóis como Manuel José Quintana.

Neste período também se deixaria marcar pelo sentimento religioso e patriótico de um João

de Lemos, em poemas como ―Consummatum est!‖, e pela religiosidade afetiva e

melancólica de um Cowper, no lamento pela ausência da mãe.

A partir de então, a face romântica apareceria com freqüência bem maior e chegaria

a dominar os versos machadianos. Apesar disso, ainda se perceberia uma alternância entre

o sacro dos hinos religiosos, do sentimento patriótico e da poesia profética, e os temas

amorosos, próprios do estilo romântico, portanto mais profanos, de poemas como

―Cognac‖, inspirado na lírica alvaresiana, principalmente nas ―Idéias íntimas‖.

23

ASSIS. ―Os deuses de casaca‖. In: _____. Machado de Assis: teatro. vol 2. São Paulo: Cia. Editora

Nacional, 2004. p.120

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41

Desse período, seguindo a ascensão do bardo à montanha poética, encontramos

―Minha musa‖, mesmo título de uma das composições de Álvares, que define um pouco do

que seria o escritor em 1856, tomado pelos sentimentos místicos e religiosos e, ao mesmo

tempo, pelos amorosos e melancólicos. Dependia, talvez, de como a musa se apresentasse

ao poeta, se na forma de saudade da mãe e da irmã, ou se nas vaporosas imagens femininas.

MINHA MUSA

A Musa que inspira meus tímidos cantos

É doce é risonha, se amor lhe sorri;

É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos,

Saudades carpindo, que sinto por ti.

A Musa que inspira-me os versos nascidos

De mágoas que sinto no peito a pungir,

Sufoca-me os tristes e longos gemidos,

Que as dores que oculto me fazem trair.

A Musa que inspira-me os cantos de prece,

Que nascem-me d‘alma, que envio ao Senhor,

Desperta-me a crença, que à vezes dormece

Ao último arranco de espr‘ranças de amor.

A Musa que o ramo das glórias enlaça,

Da terra gigante – meu berço infantil,

De afetos um nome na idéia me traça,

Que o eco no peito repete: - Brasil!

A Musa que inspira meus cantos é livre,

Detesta os preceitos de vil opressão,

O ardor, a coragem do herói lá no Tibre,

Na lira engrandece, dizendo – Catão!

O aroma da espr‘ança, que n‘alma recende,

É ela que aspira, no cálix da flor;

É ela que o estro na fronte me acende,

A Musa que inspira meus cantos de amor!24

O poeta varia de tema de acordo com o gosto da ―Musa‖. Assim, cada estrofe

delimita uma temática. Enquanto as duas primeiras estrofes dividem-se entre o riso e a

melancolia dos amores perdidos e dos revelados, a terceira trata da religiosidade,

mostrando que a musa é quem alimenta a crença religiosa, não deixando o eu-lírico

24

ASSIS. T.P. 634.

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esmorecer mesmo diante dos reveses do cotidiano. Na quarta estrofe, a face patriótica é

manifesta através da exaltação da terra que lhe serve de berço, enquanto as duas últimas

exaltam a liberdade do homem e a inspiração criadora, demarcando a democracia política

unida à liberdade de expressão literária. De fato, assim como o poema vai-nos revelando as

nuances da musa, inteiramo-nos das temáticas mais trabalhadas nos primeiros poemas de

Machado de Assis.

De 55 a 56, o escritor teria diversos poemas publicados na Marmota Fluminense, de

Paula Brito. Pelo espaço concedido ao jovem autor, podemos dizer que o editor foi, sem

dúvida, o primeiro a reconhecer o talento de Machado, ainda em formação. Ele permitiu até

mesmo que, sob o pseudônimo de As., o aprendiz trouxesse a público seus primeiros

esboços críticos acerca da literatura em uma série de três artigos intitulados: ―Idéias vagas‖,

onde falava sobre a poesia, o teatro e a religião, respectivamente em junho, julho e

setembro de 1856.25

Através desses textos, conhecemos as concepções do novel escritor acerca da

poesia, como obra da inspiração do Criador. A poesia para o Machado de então era

inspiração divina, o sopro de Deus interpretado pela genialidade do poeta. O articulista

esboçava a sua concepção literária: uma pincelada clássica na imaginação romântica.

Começa o texto falando da Grécia, de Homero, dos louros que coroavam os poetas de

outrora e de como o valor da lírica havia declinado no decorrer dos séculos. Enfatiza os

sofrimentos de Camões e fala de sua rejeição no solo pátrio. Termina por definir o que seria

a missão do poeta e como esse papel era incompreendido em seu tempo:

Ele tem uma missão a cumprir nesse mundo – uma missão santa e nobre,

porque é dada por Deus! – É um pregador incansável – um tradutor fiel

das idéias do Onipotente.

O mundo, porém, não compreende aquela alma tão grande como o

universo – tão divina como a mais bela porção do espírito de Deus.

A visão religiosa do fazer poético machadiano obedecia, portanto, a um conceito

milenar. Para Machado, o poeta, outrora coroado de louros na Grécia, tornar-se-ia um

deslocado no ambiente literário daquele momento. A sina do poeta seria sofrer, apesar de

25

MASSA, Jean-Michel. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC; Instituto Nacional do Livro,

1965. p. 29 a 35.

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tradutor das palavras de Deus: aquele século faria do intérprete divino um renegado – visão

que se coadunava com o pensamento romântico da segunda geração de poetas.

No último parágrafo do texto, Machado se dirige aos leitores para pedir perdão por

sua incapacidade. Já aqui se estabelece uma relação do escritor com seu público, recurso

que utilizaria por toda a vida. Encerra o texto agradecendo aqueles que lhe abriram espaço

no jornal para expor suas idéias, ainda que ―vagas‖, como as chamaria: ―Aqui terminam as

minhas idéias sobre a poesia, e sobre os poetas. – Perdoai-me, leitores, a minha fraca

linguagem; é de um jovem que estréia nas letras, e que pede proteção e benevolência.

Ainda existem alguns Mecenas piedosos: animai o escritor.‖26

Certamente, o ―Mecenas‖

era Paula Brito, apoiando as iniciativas do jovem Machado. Seria essa a primeira investida

do autor no campo da crítica, com apenas 16 anos.

No artigo seguinte, tratando do teatro, o aprendiz de crítico faria oposição entre

duas grandes nações: França e Inglaterra. Colocaria a primeira como pátria da criação, da

inspiração e da cultura, enquanto condenaria os avanços científicos ingleses, segundo ele

apenas concentrados nas questões materiais do progresso. O tom profético do poeta exalta o

espírito inventivo francês como obra espiritual e divina, declarando: ―Viva Deus!‖. Por

outro lado, usando a dicção bíblica, imitando o discurso de Cristo contra Jerusalém e do

apóstolo João contra a Babilônia, dirige-se, nestes termos, à pátria da Revolução Industrial:

Inglaterra! Inglaterra! Rainha da Indústria! – centro de toda revolução

material! – Eis-te aí desmentindo a distância [invenção das locomotivas]

com teus dourados pensamentos de civilização! Eis-te aí excêntrica e

vaidosa, falando em progressos, mas ocultando debaixo dessas idéias

progressistas os projetos de uma desmedida ambição! Culpado!... Evitai

que no meio de teus banquetes com o último rei da Babilônia alguma mão

invisível trace a tua sentença de morte!

No meio, pois, destes desvarios, de progressos e civilização, é o teatro

olhado como o verdadeiro lugar de distração e ensino; - o verdadeiro meio

de civilizar a sociedade e os povos.27

O episódio do banquete citado no trecho é narrado no livro bíblico de Daniel, onde

o rei de Babilônia, Belsazar, retira os instrumentos sagrados, saqueados pelo pai em

Jerusalém, para serem usados no seu festim. Subitamente uma mão invisível, de que só se

26

ASSIS, Machado de. Idéias vagas. Apud: MASSA. Dispersos de Machado de Assis. Op. cit. p. 31. 27

Idem. p. 31-32

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avistam os dedos, surge e escreve sentenças na parede contra o reinado de Belsazar. Diante

do pavor do rei, ninguém consegue entender o que ali foi escrito, apenas o profeta Daniel é

capaz de interpretar os dizeres.28

Ainda aqui, a temática é romântica se pensarmos no ―The Vision of Belshazzar‖, de

Byron. No entanto, enquanto no poema do bardo inglês há certa identificação com o festim

de Belsazar, em contraponto com as mãos que vêm ―estragar o prazer‖ da festa, Machado

protesta contra os ingleses e apóia a punição do rei babilônico. Um protesto contra Byron e

sua nação? Talvez não se identificasse com a face maldita dos românticos, embora adotasse

outras vertentes em sua lírica, assim como exaltaria a poesia e o gênio de Álvares de

Azevedo por toda vida, embora lhe rejeitasse a prosa com veemência.

As referências de Machado na sua primeira crítica literária chamam-nos a atenção,

pois expõem alguns pontos interessantes: primeiramente a formação religiosa do rapaz,

que, além de entender a poesia como inspiração divina, assume a posição de profeta para

condenar o progresso inglês, o que denota uma tendência conservadora. Outro ponto é a

afirmação de que a arte, no caso, o teatro, seria um meio civilizador, hipótese que

sustentaria posteriormente nas suas ―Idéias sobre o teatro‖, de 1859.

Encontraremos essa mesma visão - do papel da arte na educação das massas - em

alguns escritos da década de 60, e também nos pareceres do Conservatório Dramático,

prova de que o escritor não a abandonaria tão cedo, se é que a deixou algum dia. Talvez a

arte assumisse definitivamente o papel de redentora do homem, como a única sobrevivente

do ―naufrágio das ilusões‖.

No terceiro artigo das ―Idéias vagas‖, temos, enfim, um retrato, senão do crítico, do

pregador por excelência. Discorrendo sobre grandes oradores como Cícero e Monte

Alverne, Machado traça um perfil da religião através do conceito de bem e mal, evocando

os mártires da Idade Média e relembrando o misticismo de Chateaubriand. Chega a clamar:

―Religião, inspirai-me!‖. Seu objetivo é tratar da eloqüência de Monte Alverne, o que

mostra sua franca adesão, naquele momento, ao catolicismo:

Mont‘Alverne, o homem eloqüente e virtuoso, cuja vida se tem passado

na austeridade e solidão do Claustro, é uma prova da solidez dos nossos

28

O episódio consta no livro de Daniel 5: 1-29.

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princípios religiosos! Se o seu horizonte acaba na parede sombria de uma

cela humilde, os seus limites intelectuais chegam até Deus, isto é, perdem-

se no infinito!29

As palavras de Machado denunciam sua formação religiosa, o que confirma a

hipótese de que as lições iniciais do jovem aconteceram em ambiente eclesiástico. Aliás, a

nota sobre o poema ―Monte Alverne‖, dedicado ao padre Silveira Sarmento e que consta

nas Crisálidas, mostra claramente a influência que o ambiente religioso exerceu em sua

formação.

A dedicatória desta poesia ao padre-mestre Silveira Sarmento é um justo

tributo pago ao talento, e à amizade que sempre me votou este digno

sacerdote. Pareceu-me que não podia fazer nada mais próprio do que

falar-lhe de Monte Alverne, que ele admirava, como eu.

Não há nesta poesia só um tributo de amizade e de admiração: há

igualmente a lembrança de um ano de minha vida. O padre-mestre, alguns

anos mais velho do que eu, fazia-se nesse tempo um modesto preceptor e

um agradável companheiro. Circunstâncias da vida nos separaram até

hoje.

Até esse momento, a influência dos clássicos e dos românticos mais místicos e

religiosos seriam a fonte de inspiração de Machado, talvez porque as lições do padre-mestre

ainda estivessem muito vivas em sua memória. Não se restringiria a esse tipo de devoção

mística por muito tempo. A poesia dos ultra-românticos exerceria em seu espírito

determinado impacto e passaria a dissipar essa devoção inicial.

O crescente interesse de Machado pela lírica romântica seria visível nos poemas de

56 e 57, certamente pelo contato que passaria a estabelecer com poetas, seus

contemporâneos, que adotavam a escola romântica como modelo em suas composições.

Pelo relato que nos chegou através do prefácio das Crisálidas, tomamos

conhecimento de que, por volta deste período, Machado fazia parte da sua primeira

―panelinha literária‖, encabeçada pelo advogado e escritor Caetano Filgueiras. O doutor

reunia em seu escritório os poetas Casimiro de Abreu, Machado de Assis, J. Joaquim

Cândido de Macedo Júnior e Francisco Gonçalves Braga, às vezes contando também com a

presença de Augusto Emílio Zaluar.

29

MASSA. Dispersos de Machado de Assis. Op. cit. p. 35

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46

Posteriormente, em 1858, chegaria ao Brasil o poeta satírico português Faustino

Xavier de Novaes, irmão de Carolina, a futura esposa de Machado de Assis. Não se sabe ao

certo como os dois poetas foram apresentados, mas é possível que Faustino tenha

participado de algumas das reuniões no escritório de Filgueiras, provavelmente por

intermédio de Casimiro de Abreu, de quem era amigo.

Alguns biógrafos definem o ano de 1857 como o do início desses encontros entre

os poetas do grupo de Filgueiras, mas tudo indica que o contato entre os membros do grupo

tenha ocorrido anteriormente, e que eles já se encontravam, desde 1855, na Tipografia de

Paula Brito. A amizade não ficaria circunscrita ao período desses encontros, ultrapassaria

os limites do escritório do advogado e seria mantida por longos anos, até que a vida, ou a

morte, os dispersasse. Prova disso foi a relação afetuosa entre Faustino e Machado, que

seriam parceiros também no periódico ―O futuro‖, fundado pelo primeiro, amizade que

culminaria no enlace matrimonial entre a irmã do poeta e o escritor fluminense, embora

aquele não mais estivesse vivo para testemunhar a união.

Em outras publicações, atestamos novamente a permanência dos vínculos. Não

podemos nos esquecer de que Faustino, Zaluar, Machado e Filgueiras foram colaboradores

do Jornal das Famílias, de Garnier, na década de 60, e que todos escreveram em verso ou

em prosa nessa publicação destinada ao público feminino, sem contar os artigos de crítica e

os prefácios escritos por Machado na ocasião do lançamento dos livros de Zaluar, de

Filgueiras, e nas publicações póstumas da obra de Faustino.

Concentrando-nos especificamente nos anos de estréia, podemos afirmar que a

atmosfera romântica teria predominância nas reuniões do escritório de Filgueiras,

refletindo-se diretamente na produção machadiana de então. Seria também um marco

importante na vida do jovem, já que entraria em contato regularmente com outros poetas,

alguns com formação acadêmica e obras publicadas, e que, certamente, tinham acesso a

livros e leituras que enriqueceriam a experiência e o aprendizado do curioso novato.

O próprio Zaluar foi, entre 1852 e 1854, diretor do educandário de meninos

―Colégio de São Sebastião‖, que depois seria transformado em ―Colégio Zaluar‖. A

instituição garantia preparação para o comércio e para as academias do Império. Talvez sob

o pretexto de receber instrução comercial os jovens ali se reunissem, embora a literatura,

pelos relatos que nos chegaram, acabasse predominando nesse ambiente de estudo.

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Um ponto importante da lírica machadiana, nas poesias dispersas do início da

carreira, é a série de quatro poemas em que lamenta a morte da mãe: ―O meu viver‖,

―Saudades‖, ―Lágrimas‖ e ―Minha mãe‖, além no poema ―Um anjo‖, em homenagem a

Maria, sua falecida irmã. A insistência do poeta no tema indicaria as tendências absorvidas

nos encontros do escritório de Filgueiras, e, ao mesmo tempo, aponta as leituras que os

poetas deviam trazer para essas reuniões.

No poema ―Um anjo‖, dedicado à irmã, a esperança numa outra vida e a

religiosidade são o porto onde o poeta busca alento para suportar as dores pessoais. Ele

focaliza o motivo de sua tristeza, que, por ser aguda, transborda no papel, mas encontra

também na escrita o refúgio, através de um desabafo sentimental. A morte, sob a ótica do

transcendental, funciona como escape às angústias e à desesperança. O consolo numa outra

vida, num lugar etéreo e perto de Deus, é o bálsamo que acalenta o poeta ao recordar a

morte da menina: ―Foste a rosa desfolhada/ Na urna da eternidade,/ Pr‘a sorrir mais

animada,/ Mais bela, mais perfumada/ Lá na etérea imensidade‖.30

Encontramos nessa composição a epígrafe: ―Se deixou da vida o porto/ Teve outra

vida nos céus‖. O trecho faz parte de um poema de Zaluar incluído no livro Dores e flores,

publicado pela tipografia de Paula Brito em 1851. Nos versos do poeta português,

encontramos uma lamentação pela morte prematura do Príncipe Imperial D. Pedro Afonso,

filho de D. Pedro II, ocorrida no ano de 1850. Num curto espaço de tempo, seria o segundo

príncipe a morrer, ainda nos primeiros anos de vida, para tristeza da família real.

Identificando sua dor com a do monarca, Machado honraria a memória da irmã, também

morta prematuramente, com esses versos de Zaluar dirigidos à realeza.

Ainda no poema ―Um anjo‖, Machado manifestaria, mais patentemente, a

influência da lírica de Álvares de Azevedo, retomando a idéia presente no poema

―Anjinho‖, da Lira dos vinte anos, que trata da morte de uma criança como forma de

libertação da alma pura, que retornaria para o lugar de onde proveio.

Seguindo a lírica alvaresiana, Machado lamentaria mais pungentemente a perda da

mãe em poemas que denotam uma grande amargura, a solidão e o franco desejo de morrer

para unir-se a ela novamente no céu. O poeta maldiz a existência, seguindo a tendência da

geração mal-de-siècle, sentindo a morte rondá-lo em tenra idade.

30

ASSIS. T.P. p. 637.

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48

Assim diria em ―O meu viver‖, que poderia muito bem ter o substantivo do título

trocado pelo antônimo: ―Quero despir-me desta vida má,/ Quero ir viver com minha mãe

nos céus,/ Quero ir cantar os meus amores todos,/ Quero depois em ti pensar, meu Deus!‖.

Continuaria o lamento no poema ―Saudades‖, título recorrente na produção do

período, em que dois temas caros aos ultra-românticos - juventude e morte – tornam-se os

pontos centrais para onde convergem os auspícios do poeta. O detalhe que vem enriquecer

a análise dos primeiros passos de Machado é o acréscimo de uma figura feminina, um

amor, ao lado da mãe. Assim, usaria a sua orfandade para intensificar a dor amorosa e, de

certa forma, justificar o desejo de morrer. Trataria a amada por ―meu anjo‖, em contraponto

à expressão ―minha mãe‖, trabalhando dois planos no verso: o da segunda pessoa – ―ti‖ - e

o da terceira pessoa – ―ela‖.

Tenho de ti saudade, só lastimo

Ter cedo minha mãe perdido a vida;

Choro tanto por ela... por ti sofro

Minha vida, mulher, é tão sentida.

Parece que no céu bem negra nuvem

Já marcou meu destino pelo mundo!

Tenho de ti saudade, ó meu anjo.

No meu peito o pesar é tão profundo!

Se perdi minha mãe sendo tão moço,

Se padeço de ti tanta saudade,

Não posso existir no mundo triste;

É melhor eu morrer nesta idade!

É curioso o recurso empregado pelo poeta nas primeiras investidas no campo ultra-

romântico. Talvez não conseguisse fingir uma dor amorosa tão forte que justificasse o

desejo de morrer. Então, situou a mãe junto à mulher amada como justificativa para tal

desígnio. Entretanto, deixaria marcadas as diferenças existentes entre as duas: ―Choro

tanto por ela... por ti sofro‖ – versos que revelam, pela presença do advérbio de

intensidade, que a perda da mãe produzia uma contrição maior que a ausência do amor de

uma mulher.

Temos a impressão de que o poeta procurava, nesse período, um motivo forte que o

fizesse produzir poemas melancólicos, daí a insistência no tema da morte materna, talvez a

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maior perda de sua vida, que poderia lamentar com veracidade sem sair da temática ultra-

romântica.

O poema ―Lágrimas‖, também dirigido à mãe, nos faz lembrar os versos de

―Lembrança de morrer‖, de Álvares de Azevedo, quando o bardo da Lira dos vinte anos

declara o motivo maior de sua saudade: ―Só levo uma saudade — é dessas sombras/ Que eu

sentia velar nas noites minhas... / De ti, ó minha mãe, pobre coitada/ Que por minha tristeza

te definhas!‖. No poema de Álvares, no entanto, o eu-lírico tem a mãe junto ao leito para

ampará-lo no sofrimento e seria essa a boa recordação que deixaria no mundo.

Ao contrário da evocação alvaresiana, mas nela se inspirando, o eu-lírico maldiz a

vida exatamente por estar sozinho no mundo e por ter perdido a mãe, não conseguindo

superar a saudade que dela sente:

Há uma dor que não se apaga d‘alma,

Lágrima triste que pendente existe

Da face do infeliz:

É gemido que mata e não se acalma,

Que torce o coração, e se persiste,

A existência maldiz.

Essa dor eu senti quando vi morta

Minha terna mãe... perdão meu Deus.

Se quero já morrer;

Esta vida de dor, perder que importa?

Quero com minha mãe morar nos céus,

Com os anjos viver.

Eu perdi minha mãe... era uma santa,

Que tinha a minha vida nesse mundo,

Minh‘alma e meu amor!

E foi o meu pesar, minha ânsia tanta,

Que a vida quis deixar num ai profundo,

Morrer também de dor.31

Portanto, para o poeta estreante, não era a tristeza de amor a maior motivação para

maldizer a existência, mas a tragédia real que o marcaria desde menino, das perdas e das

lacunas familiares. Também não conseguia deixar de evidenciar a formação religiosa, que

contrasta com o ambiente lúgubre e maldito dos românticos que intenta seguir. Chega a

31

ASSIS. T.P. p. 640

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50

desdizer a pretensão inicial do poema, presente nos versos: ―a existência maldiz‖ e ―se

quero já morrer‖, ao interpô-los com o verso: ―perdão, meu Deus!‖. A insistência na

temática da morte, pelo motivo apontado, é justificada também com palavras que abonam a

figura materna: ―era uma santa‖ –, o que torna autêntico o desejo do filho de morrer por ela,

transformando a blasfêmia e a maldição em adoração mística e benévola.

Seja por influência da leitura de poetas malditos ou por vivenciar acontecimentos

tão trágicos na vida - ou por ambos os motivos -, Machado não tinha anteriomente escrito

versos que tratassem de modo tão pungente da morte e da melancolia como esses dedicados

à mãe. Seria um ensaio para a fase seguinte, a partir de 1857, em que o poeta se deixaria

guiar pelo spleen romântico e pela, embora atenuada, voluptuosidade amorosa.

O outro texto dedicado ao tema é ―Minha mãe‖, que, dessa vez, apresenta uma

suavização da morte pela evocação sentimental da memória, enfatizando também o vetor

religioso, como já se percebia nas outras composições. O eu-lírico reza pela mãe e recebe a

proteção dos clamores que ela do céu lhe envia: canção atenuada e sem os acessos

melancólicos dos outros versos. Machado escreve com delicadeza e lirismo, naquela que é,

sem dúvida, a mais bela composição dedicada à memória da mãe.

O jovem encerra o poema não pedindo a morte como termo à vida, mas cedendo as

possíveis glórias e louros literários do futuro, aquilo que mais almejaria como escritor, para

ter a mãe ao seu lado novamente.

Por ela rezarei eternamente

Que ela reza por mim no céu também:

Nas santas rezas do meu peito ardente

Repetirei um nome: - minha mãe!

Se devem louros ter meus cantos d‘alma

Oh! do porvir eu trocaria a palma

Para ter minha mãe!32

A pretensão de Machado, neste caso, parece ser a evocação da infância, outro tema

caro aos românticos, só que seguindo a linha de ―Meus oito anos‖ de Casimiro de Abreu.

Novamente, Machado teria dificuldades em trazer cenas da infância que remetessem às

boas lembranças, às saudades, aos felizes tempos de criança. Teria que recorrer à mãe como

única maneira de trazer para o presente uma imagem positiva da infância.

32

ASSIS. T.P. p. 642.

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51

Mesmo na maturidade, a fase preliminar da vida não lhe seria tema recorrente: pelo

contrário, há uma quase ausência dela em seus escritos, excetuando-se, talvez, o ―Conto de

escola‖ e o brevíssimo relato das travessuras de Brás quando menino. Seus personagens

parecem começar a vida na adolescência ou na maturidade, fases que povoaram tantas de

suas histórias: o menino já teria nascido homem.

O passado difícil em casa de estranhos - os pais eram agregados na chácara de uma

família rica -, as mortes sucessivas dos familiares, a própria fragilidade física e os

preconceitos sofridos não seriam imagens saudosas, nem ele parecia disposto ao

confessional puro e simples. Teria sempre um perfil mais contido em relação aos poetas

dessa fase, mesmo aos 17 anos. Ainda assim, não deixaria de confirmar, no prólogo das

Crisálidas, o quanto a obra e a vida se fundiriam no começo de carreira literária; mas

falaria também de um ―duelo infausto entre a aspiração e a realidade‖:

Vai longe esse tempo. Guardo a lembrança dele, tão viva como a saudade

que ainda sinto, mas já sem aquelas ilusões que o tornavam tão doce ao

nosso espírito. O tempo não corre em vão para os que desde o berço foram

condenados ao duelo infausto entre a aspiração e a realidade. Cada ano foi

uma lufada que desprendeu da árvore da mocidade, não só uma alma

querida, como uma ilusão consoladora.

Apesar da ênfase – imitação de Cowper –, logo no título do poema machadiano,

parece que há uma inegável influência de um dos contemporâneos do poeta, que, ao lado de

Álvares de Azevedo, seria então a grande inspiração machadiana: Casimiro de Abreu. Já

comentamos a coincidência nas temáticas escolhidas pelos dois autores.

Existia também uma correspondência na idade, nascidos ambos em 1839, além da

forte presença feminina nos poemas, representada principalmente pelas imagens pueris da

mãe e da irmã. Os dois poetas seriam marcados por uma lacuna paterna, pois, apesar de

relembrarem a família, excluíam o pai das boas recordações, das dedicatórias, enfim, a

figura paterna só apareceria em negativo, como uma sombra velada que não pode se

materializar em imagem poética, a não ser obliquamente.

Lendo a biografia de Casimiro, tomamos ciência do empenho do pai em colocá-lo

na carreira do comércio, e de todos os esforços feitos para demover o filho dos objetivos

literários. Assim o poeta escreveria acerca dos anos que passou na atividade comercial que

o pai lhe impusera:

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52

(...) lembro-me perfeitamente, foi n‘um dia de setembro. Abafado o grito

de lamento da minha vocação contrariada, fui sentar-me à carteira d‘um

escritório e embrenhei-me no mundo dos algarismos. Abracei a vida

comercial, essa vida prosaica que absorve todas as faculdades n‘um único

pensamento, - o dinheiro, e que se não debilita o corpo, pelo menos

enfraquece e mata a inteligência. Fatal dia! Negra hora.33

Encontraria Machado em Casimiro o eco das suas mais íntimas confissões, que não

ousaria trasladar para o papel? O que não se pode negar é a influência que a leitura das

obras de Casimiro de Abreu e de Álvares de Azevedo passaria a exercer nos poemas de

Machado a partir de 1856, a ponto de fazê-lo abandonar a dicção lusitana de Gonçalves

Braga, para se deixar enlevar pelo ―licor de Granada‖ que lhe turvaria os olhos: o

romantismo com feições mais brasileiras.

A primeira constatação da influência casimiriana verifica-se na escolha temática dos

poemas, e, principalmente, na semelhança entre alguns títulos. Comecemos por ―Minha

mãe‖, já citado. Apesar de Machado afirmar que o poema é uma ―imitação de Cowper‖, a

inspiração revela-se muito mais tributária de Casimiro. Vejamos o poema:

Quem foi que o berço me embalou da infância

Entre as doçuras que do empírio vêm?

E nos beijos de célica fragrância

Velou meu puro sono? Minha mãe!

Se devo ter no peito uma lembrança

É dela que os meus sonos de criança

Dourou: - É minha mãe!

Quem foi que o entoar canções mimosas

Cheia de um terno amor – anjo do bem

Minha fronte infantil – encheu de rosas

De mimosos sorrisos? - Minha mãe!

Se dentro do meu peito macilento

O fogo da saudade me arde lento

É dela: minha mãe.

Qual o anjo que as mãos me uniu outrora

E as rezas me ensinou que da alma vêm?

E a imagem me mostrou que o mundo adora,

33

ABREU, Casimiro de. ―A virgem loura‖. In: ____. As primaveras. 2 ed. Lisboa: Tipografia do Panorama,

1867. p.218.

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53

E ensinou a adorá-la? – Minha mãe!

Não devemos nós crer num puro riso

Desse anjo gentil do paraíso

Que chama-se uma mãe?

Um poema homônimo de Casimiro, publicado no livro As primaveras, cantaria a

ausência materna com entonação semelhante ao poema machadiano, apresentando igual

estrutura e, em alguns versos, usando as mesmas imagens e palavras. Apesar de o livro de

Casimiro de Abreu ter sido publicado em 1859, data posterior à publicação do poema de

Machado, a composição do poema é de 1855, ano em que estivera em Lisboa.

É possível que Casimiro tenha lido o poema para os companheiros, ou que

Machado dele tivesse conhecimento através de publicação esparsa ou correspondência

entre amigos, e mostrasse uma imediata identificação com a dor do poeta. Da mesma

forma, pela leitura de versos tão pungentes, talvez encontrasse a motivação para escrever o

lamento pela ausência da própria mãe.

A única diferença é que Machado trata de uma perda irreversível, enquanto

Casimiro fala de uma ausência temporária, já que, como dissemos, o vate compôs os versos

longe de casa, em Portugal. Coincidentemente, para Machado a pátria lusitana também

seria uma evocação materna.

Para fazermos um cotejo entre os dois poetas, transcreveremos a seguir um

fragmento do poema de Casimiro:

Minha mãe

Da pátria formosa distante e saudoso,

Chorando e gemendo meus cantos de dor,

Eu guardo no peito a imagem querida

Do mais verdadeiro, do mais santo amor:

- Minha mãe! –

Nas horas caladas das noites d‘estio

Sentado sozinho co‘a face na mão,

Eu choro e soluço por quem me chamava

- ―Oh filho querido do meu coração!‖

- Minha mãe! –

No berço, pendente dos ramos floridos,

Em que eu pequenino feliz dormitava:

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54

Quem é que esse berço com todo o cuidado,

Cantando cantigas, alegre embalava?

- Minha mãe! –

De noite, alta noite, quando eu já dormia

Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,

Quem é que meus lábios dormentes roçava

Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?

- Minha mãe! –

Feliz o bom filho eu pode contente

Na casa paterna de noite e de dia

Sentir as carícias do anjo de amores,

Da estrela brilhante que a vida nos guia!

- Uma mãe –

(...)

(Lisboa- 1855)34

Independentemente de que ambos possam ter buscado inspiração em Cowper, as

duas composições apresentam muitas semelhanças, além do título: a alternância ―minha

mãe‖ e ―uma mãe‖ nas repetições ao fim de cada estrofe, a imagem da mãe acalentando o

filho no berço, as canções da infância, a comparação da mãe a um anjo – ―anjo gentil do

paraíso‖, no poema de Machado, ou ―anjo de amores‖, neste.

R. Magalhães Jr. destaca a grande admiração de Machado pelo poeta em seu

formidável estudo ―Casimiro de Abreu e Machado de Assis‖, revelando aos leitores que a

deferência de Machado pelo escritor não foi arroubo da juventude ou demonstração de

simples amizade, mas uma grande estima literária. Casimiro seria sempre um modelo de

poeta, ainda que sob os eflúvios românticos.

Segundo Magalhães Jr., Machado lamentaria a morte do amigo publicamente em

1860, no Correio Mercantil, e ainda relembraria o poeta, passado um ano de sua morte, no

Diário do Rio de Janeiro. O nome de Casimiro aparece também no ensaio ―Instinto de

nacionalidade‖ e num trecho do conto ―Questão de vaidade‖, resgatando uma página

memorável, compartilhada entre ambos na juventude:

Conversava eu um dia com um de meus amigos poetas, que a morte

levou, um talento que todos admiravam, um coração que muitos

conheceram.

34

ABREU. Op. cit. p.11-12

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55

- Não sei, dizia-me Casimiro de Abreu, como se pôde inventar a

valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em um salão, diante de

cem olhos. (...)

- Casimiro, objetava eu, para dois corações que se amam, a multidão

não é isolamento? (...)

Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das

Primaveras que traz este título.35

O conto foi publicado em 1864, mesmo ano do lançamento das Crisálidas. Do

grupo de Filgueiras, Machado foi o último a publicar seus poemas, quando os três amigos -

Casimiro, Braga e Macedo - já haviam falecido. Curiosamente, todos partiram no ano de

1860 e, praticamente, pelo mesmo motivo: a tuberculose. Machado retomaria a memória

daqueles dias ao convidar Filgueiras para prefaciar o livro, como um tributo aos amigos e a

uma época muito especial de sua vida. Nas primeiras páginas do livro, ficaria gravado o

depoimento emocionado e efusivo de Caetano, enquanto no prólogo o autor deixaria

registrada sua saudade, embora sem as ilusões e a euforia dos tempos de juventude.

A escolha do nome da obra também se filia ao espírito do grupo, marcado pela

precocidade e pela modéstia, na intenção de mostrar que o livro de estréia se tratava de uma

iniciativa imperfeita, com versos de poeta iniciante. Seguiria a tendência dos títulos das

obras dos amigos, já que Tentativas poéticas, de Braga, denunciava o esforço do autor na

composição, ainda imperfeita; Primaveras, de Casimiro, indicava o começo da vida,

quando as flores da juventude ainda estão desabrochando; portanto, a primeira fase por que

um escritor deveria passar.

O título Crisálidas guardaria o mesmo desígnio dos outros, retratando uma

metamorfose ainda incompleta, um processo de aprimoramento, a promessa de obra melhor

no futuro. Machado viveria para pôr seu objetivo em prática, ainda que a fantasia da

juventude tivesse morrido no caminho: foram-se as ilusões, restou o refinado escritor, o

grande lascivo do nada.

Ainda enfatizando a importância do grupo de Filgueiras no começo da carreira de

Machado, retomando os primeiros passos do poeta antes da publicação deste primeiro livro

de poesia, comprovamos as nuances a que o poeta vai se submeter, e as freqüentes

―metamorfoses‖ de seu engenho poético.

35

ASSIS, Machado de. ―Questão de vaidade‖. Apud: MAGALHÃES JR, R. Ao redor de Machado de Assis.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958. p. 29

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56

Há um certo pudor nos sentimentos amorosos no que se refere aos poemas de 56,

em que retoma a imagem materna ao lado da mulher amada para intensificar o sentimento

de desespero e de morte que, pouco a pouco, vai se alterando e dando espaço a outros

sentimentos mais intensos, sem as reservas de antes.

Freqüentando um grupo de escritores formado por homens de maior experiência,

seria natural que o jovem Machado de Assis encontrasse apoio e incentivo para suas

primeiras incursões afetivas, talvez motivado pelas leituras efetuadas nesses encontros, ou

pelas vivências e confissões dos outros membros do grupo. Um dado que sustenta tal

hipótese é o testemunho de Filgueiras no prefácio das Crisálidas, no que tange ao período

das reuniões em seu escritório:

Éramos, pois, cinco. Líamos e recitávamos. Denunciávamos as novidades:

zurzíamos as profanações: confundíamos nossas lições: -- segredávamos

nossos amores!

O quinto, — o menino, — depunha, como todos nós, sua respectiva

oferenda. Balbuciando apenas a literatura, — ainda novo para os seus

mistérios, ainda fraco para o seu peso, nem por isso lhe faltava ousadia;

antes sobrava-lhe sofreguidão de saber, ambição de louros. Era vivo, era

trêfego, era trabalhador.

Aprazia-me de ler-lhe no olhar móvel e ardente a febre da

imaginação; na constância das produções a avidez do saber, e

combinando no meu espírito estas observações com a naturalidade, o

colorido e a luz de conhecimentos literários que ele, — sem querer sem

dúvida, — derramava em todos os ensaios poéticos que nos lia (...)36

Nota-se que, apesar da pouca diferença entre as idades de Braga, Casimiro,

Macedinho (o mais jovem de todos) e Machado, este era o menos experiente do grupo,

tanto literariamente quanto nas vivências pessoais. Filgueiras chegaria a declarar, nas

primeiras linhas do prefácio, que Machado não tinha ―nome‖, ou seja, era um poeta

desconhecido diante dos outros, que já possuíam livros publicados e, principalmente, fama

de trovadores. Além disso, o jovem não dispunha de recursos financeiros da família para

custear o valor de uma publicação, como Casimiro de Abreu pôde fazer.

36

FILGUEIRAS, Caetano. ―Prefácio de Crisálidas”. In: ASSIS, Machado de. Crisálidas. Rio de Janeiro:

Livraria B.L.Garnier, 1864.

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57

Machado também não se valia de título ou de uma boa formação escolar, seus

estudos foram irregulares e informais. Certamente, a amizade com Paula Brito e com os

jovens poetas que circulavam por sua tipografia permitiram o entrosamento desse

desconhecido rapaz na casa do Dr. Filgueiras. O próprio Machado, posteriormente, não

negaria a importância do aprendizado literário absorvido em tais encontros entre poetas e

cultores das letras.

Como afirma Filgueiras, nenhum entrave impediria que a ousadia do jovem e a sua

avidez pelos ensinamentos dos veteranos fossem se revelando a cada momento e que, por

sua vez, Machado começasse a dar mostras de sua capacidade intelectual, embora ainda

sem estilo próprio. Contudo, passaria a aproveitar os ensinamentos dessas reuniões

literárias na sua produção para jornais.

Destaca-se a expressão usada por Filgueiras para definir o jovem poeta em contato

com o conhecimento: ―febre da imaginação‖, o que é bem diferente de um arrebatamento

sentimental. Machado teria, desde cedo, uma tendência à reflexão. Muito mais do que se

entregar ao puro devaneio romântico ou à expansão dos sentimentos, processava tudo nas

cavernas do cérebro.

Os poemas dessa fase, 1857, estão visivelmente marcados pela nova experiência e

passam a conter boas doses de erotismo, mesmo quando o assunto incita a uma disposição

mais religiosa. O poema ―Deus em ti‖ é exemplo disso, pois há, contrariando o título, mais

desejo amoroso do que êxtase espiritual nos seus carmes:

É quando eu sinto embriagar-me o peito

Um místico vapor,

E à luz fecunda desses olhos belos

Da minha alma ter vida e alento – a flor;

É quando as tranças dessa fronte loura

Prendem o meu olhar,

E sinto o coração tremer ardente,

Como uma flor aos zéfiros do mar;

É ao ouvir-te as místicas idéias

Tão cheias de paixão,

Nessa eloqüência lânguida e profunda

Que fala ao coração:

É ao sentir as tuas asas brancas,

Ó meu anjo de amor,

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58

Que eu reconheço a mão do rei da terra

E creio no Senhor!-37

A última estrofe chega a ser profana, tendo em vista que é pela beleza da mulher

que o poeta passa a acreditar em Deus, ou seja: por Ele ter criado um ser tão divino, o poeta

manifesta a fé, invertendo o ponto de vista da crença religiosa do ―crer para ver‖. Portanto,

é a criatura que revela o Criador, e não o inverso.

O interessante é a singeleza com que o poeta o diz. Os versos soam tão cândidos

que a questão passa despercebida, envolta numa espécie de petrarquismo, onde a amada é

mais etérea do que carnal. Machado destoava, nesse singelo começo, da forma de evocação

romântica, já que, em vez de falar do corpo da mulher amada, resolvia louvar-lhe: ―as

místicas idéias/ Tão cheias de paixão,/ Nessa eloqüência lânguida e profunda/ Que fala ao

coração‖. A força da idéia, da inteligência, sobrepujava a dos sentidos, traindo, de certa

forma, o poeta que experimentava o molde romântico para tecer versos de amor.

Outras composições de 1857, no entanto, apontam mais claramente a disposição

romântica do poeta, que esqueceria a timidez e a contenção desses primeiros versos de

temática amorosa, mostrando mais livremente o desejo pela mulher. Já aqui não precisaria

aproveitar a memória da mãe para evocação dos amores e das desilusões, nem glorificar o

intelecto da amada no lugar do corpo. Aperfeiçoaria os cânticos de adoração ao feminino e

se dedicaria mais aos sentidos do que aos sentimentos.

Assim se revelaria no poema ―O sofá‖, possivelmente inspirado em leituras mais

licenciosas, como a do livro, homônimo do poema, de Crébillon Fils. Talvez almejasse,

como o protagonista do livro de Fils, ser transmutado em sofá, para ver, ouvir, sentir as

impressões íntimas de maneira privilegiada. Eis o poema:

Oh! Como é suave os olhos

Sentir de gozo cerrar,

Sobre um sofá reclinado

Lindos sonhos a sonhar,

Sentindo de uns lábios d‘anjo

Um medroso murmurar!

Um sofá! Mais belo símbolo

37

ASSIS. T.P. p. 646-647.

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59

Da preguiça outro não há...

Ai, que belas entrevistas

Não se dão sobre um sofá,

E que de beijos ardentes

Quanta boca aí não dá!

Um sofá!Estas violetas

Murchas, secas como estão

Sobre o seu sofá mimoso,

Cheirosas, vivas então,

Achei um dia perdidas,

Perdidas: por que razão?

Talvez ardente entrevista

Toda paixão, toda amor

Fizesse ali esquecê-las...

Quem não sabe? sem vigor

Estas flores só recordam

Um passado encantador!

Um sofá! Ameno sítio

Para colher um troféu,

Para cingir duas frontes

De amor num místico véu.38

O apelo erótico do poema é inconteste, mas o autor se vale de metáforas para

suavizar as idéias. Machado revelaria desde então uma tendência à sugestão erótica, com

propósito insinuativo ou provocativo, sem revelar de todo o conteúdo ou a intenção real,

encobertos pelo véu das metáforas. Nunca nos diria tudo, restaria sempre algo dissimulado

no subsolo do texto, deixaria unicamente uma intenção no ar, ou apostaria na

semitransparência das palavras. Não há uma página da obra machadiana, da juventude ou

da maturidade, em que o desejo seja revelado por completo, o que acentua o contexto

erótico nas entrelinhas. Essas lacunas metafóricas dos textos machadianos, só o leitor as

poderá preencher, isso se conseguir mergulhar na intimidade necessária para interagir nesse

jogo de ocultações/revelações que seu texto provoca.

É óbvio que o jovem aprendiz ainda não se valia conscientemente do recurso, como

o mestre faria depois, mas ensaiava as possibilidades do dizer, sem atentar contra a moral

da época. A pior desgraça de um escritor daquele tempo era o juízo moral da sociedade: ser

taxado de imoral significava o banimento das rodas oficiais, dos ambientes de família e a

38

ASSIS. T.P. p.647-648

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60

exclusão da obra do círculo literário. Mal saída do invólucro, a poesia quedaria

marginalizada, freqüentada apenas pelos estudantes, como os folhetos e livros proibidos, e

impressa oficiosamente.

Seguindo pelas vias ultra-românticas, Machado dedicaria um belo poema, em 1858,

à memória de Álvares de Azevedo, talvez sua composição mais lírica do período. O refrão

do poema demonstra a habilidade do poeta para com os decassílabos, e, em toda a

composição percebe-se a criatividade do autor: ―Morrer, de vida transbordando ainda,/

Como uma flor que ardente calma abrasa!/ águia sublime das canções eternas:/ Quem no

teu vôo espedaçou-te a asa?‖.

Outra informação importante advém da dedicatória a Manuel Antônio de Almeida,

um dos grandes incentivadores de Machado no início da carreira. Alguns biógrafos chegam

a afirmar que o romancista foi mais um Mecenas na vida do poeta novel, reconhecendo o

talento do jovem e abrindo-lhe muitas portas no meio literário.

Devemos considerar também a brusca mudança de paradigma nesse despontar

literário de Machado de Assis: de uma formação religiosa e eclesiástica para uma

experiência entre poetas boêmios e ultra-românticos, das leituras religiosas de um Monte

Alverne para os êxtases amorosos da lírica de um Álvares de Azevedo.

Outra composição que figura entre os dispersos, e que merece destaque, foi escrita

no álbum de João Dantas de Sousa, autor de Flores incultas e redator do jornal A Saudade.

Machado constrói o poema ―Missão do poeta‖ conversando com a Musa. Em certa medida,

relembra os poemas dialogados de Álvares de Azevedo - como ―Tarde de outono‖ e ―Meu

sonho‖ -, ou ainda os célebres diálogos entre Macário e Penseroso.

No poema de Machado, descrente do seu ofício, o bardo ouve a musa que o anima a

continuar cantando, mesmo quando ele já não crê mais nas ilusões.

POETA

E como crer então? Tenho aqui morta

Uma ilusão de minha primavera...

O sonho é como um feto que se aborta,

Um porvir que se ergueu numa quimera!

A realidade é fria. Erga-se embora

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61

A flor do coração a um céu dourado,

Vem a turba maldita em negra hora,

E as flores mata de um porvir sonhado!

MUSA

Por que descrer assim? – É dura a estrada,

Mas há no termo muito amor celeste,

A glória, poeta, é uma flor dourada,

Que só nasce da rama do cipreste.

POETA

De um cipreste!... É bem triste esse conforto!

Quem sabe? uma esperança mal cabida.

Essa luz que se vaza sobre o morto

Paga-lhe a dor que o sufocaria em vida?

MUSA

Mas é tua missão... Do pesadelo

Hás de acordar radiante de alegria!

Deus pôs na lira do infortúnio o selo,

Mas há de dar-lhe muita glória, um dia!

É forçoso sofrer... Deus no futuro

Guarda-te a c‘roa de uma glória santa,

Vem sonhar, este céu é calmo e puro!

Vem, é tua missão!... Ergue-te e canta!39

O escritor não dialoga apenas com a Musa, mas com a visão defendida nas ―Idéias

vagas‖, escritas anteriormente. O poeta destina-se a uma missão irrevogável, mesmo

quando a crença inicial já se encontra abalada em suas frágeis concepções. Há duas

instâncias no interior do poeta: a que questiona – a razão prática - e a que consola e inspira

– o sentimento. Essa dialética apela para o poder criativo, para a centelha divina, que tanto

produz a obra, quanto a designa para ―uma glória santa‖.

A Musa ainda seria revisitada muitas vezes, e cada incursão à montanha poética

traria uma feição diferente. Ainda nos seus últimos versos, nas Ocidentais, Machado de

39

ASSIS. T.P. p. 661.

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62

Assis buscaria inspiração ―No alto‖, mesmo que o bem e o mal já estivessem tão

confundidos, e a utopia não mais achasse lugar na colina do poeta.

1.3- Tributo à musa do passado

Que cismas, homem? – Perdido No mar das recordações Escuto um eco sentido Das passadas ilusões. Que buscas, homem? – Procuro, Através da imensidade, Ler a doce realidade Das ilusões do futuro.” (Machado de Assis) 40

Crisálidas é um tributo de Machado ao grupo de amigos que se reunia no escritório

de Filgueiras, seja pelas homenagens, pelo prefácio ou pelas dedicatórias. O escritor lança

às experiências literárias do passado o olhar mais maduro do jovem de 25 anos, que analisa

e, de certa forma, corrige as impressões de outrora, dos seus dezessete verdes anos.

Apesar da lembrança saudosa, Machado não compilaria os seus dispersos. O livro

contaria, quase exclusivamente, com poemas recentes do autor, na década de 60, ao que

tudo indica escritos expressamente para compor o livro. Há, entretanto, algumas exceções

que desejamos destacar mais atentamente para justificar o perfil dessa publicação como

tributo aos seus primeiros mestres de poesia.

Ao contrário dos outros autores, a obra de Machado não foi publicada de imediato,

talvez por falta de recursos, ou por certo pudor do poeta. Também não seria uma obra

40

ASSIS. ―Os dois horizontes‖. In: ASSIS. T.P. p. 65

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63

publicada por uma editora pequena, mas contaria com o apoio de uma grande chancela:

B.L. Garnier. No entanto, encontraria um ambiente literário distinto daquele dos amigos,

não mais dominado pela lira dos ultra-românticos. Outros gêneros tomaram a cena, o

romance e o folhetim vinham conquistando o gosto do público, estavam em grande

ascensão. Eram tempos de prosa, e Machado rendia louvores à musa poética.

Embora ainda sob influências românticas, o primeiro livro de poesia traz consigo

mais memória do que convicção. Basta lermos a carta do posfácio para verificarmos que a

feição do escritor era outra, sua face religiosa não exibia a mesma devoção que detectamos

nas primeiras composições. Machado, em 1864, era um homem de letras mais experiente,

já respeitado no meio literário, caminhando entre grandes escritores. Ocupava o lugar de

crítico teatral talentoso, havia publicado traduções, como ―Queda que as mulheres tem para

os tolos‖, e textos dramáticos de sua autoria , como ―Desencantos‖, singelo texto teatral,

assim como um volume de teatro, de 1863, com as duas peças: ―O protocolo‖ e ―O

caminho da porta‖.

Apesar da mudança em algumas concepções, na abertura do livro encontramos

aquele ilustre diálogo entre a Musa e o Poeta, como voz que tenta alimentar o fogo da

inspiração de antigamente, acendendo a faísca de inspiração que aparentava estar perdida.

Assim, o vate deseja retomar a coroa de louros da velha Grécia para colocá-la na ―fronte do

mancebo‖. Embora reconheça que foi desfolhada pelo tempo pretérito, ainda a emprega

para relembrar os cânticos do ontem com o vigor do talento e da experiência do agora. É

isso o que deixa transparecer na construção do poema ―Musa consolatrix‖:

Musa consoladora,

Quando da minha fronte de mancebo

A última ilusão cair, bem como

Folha amarela e seca

Que ao chão atira a viração do outono,

Ah! no teu seio amigo

Acolhe-me, — e terá minha alma aflita,

Em vez de algumas ilusões que teve,

A paz, o último bem, último e puro!

Comparando o poema de abertura, ―Musa consolatrix‖ – condizente com as

concepções do poeta que até agora pudemos identificar - ao posfácio do livro, vemos que

não há um consórcio amigável entre o poeta e o crítico. Há um abismo entre o que a carta

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64

de Machado diz e o que sua poesia contém. O crítico de si mesmo contraria a ―missão do

poeta‖, contesta tudo que se refere à inspiração, ao sopro divino como sustentação criativa

do autor. Um pretende cantar a inspiração, enquanto o outro declara que ela inexiste. Não

há conciliação. O crítico refuta as produções do passado, mas não rompe completamente

com a memória ao invocar antigos companheiros e o tempo que o coroou escritor.

Essa marca de indefinição e o pudor do crítico parecem ter sido os maiores

empecilhos para que a obra do poeta conseguisse se firmar diante de um ambiente pouco

propício. Estava preso ao passado, mas com a convicção dos tempos mais modernos, e sob

um impiedoso olhar autocrítico. Não podia usar o mesmo artifício dos poetas de sua

geração, marcados pelo ar de juventude, com o pretexto da idade para justificar a

imperfeição dos versos, nem podia cantar sem culpa os excessos juvenis. Deixaria para

Filgueiras a missão de abrir o livro e sairia pela tangente no posfácio.

Não, o meu livro não vai aparecer como o resultado de uma vocação

superior. Confesso o que me falta que é para ter direito de reclamar o

pouco que possuo. O meu livro é esse pouco que tu caracterizaste tão bem

atribuindo os meus versos a um desejo secreto de expansão; não curo de

escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel

obscuro da vasta multidão dos fiéis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o

meu livro; nem mais, nem menos.

Foi assim que eu cultivei a poesia. Se cometi um erro, tenho

cúmplices, tu e tantos outros, mortos, e ainda vivos. Animaram-me, e bem

sabes o que vale uma animação para os infantes da poesia. Muitas vezes é

a sua perdição. Sê-lo-ia para mim? O público que responda.

Não incluí neste volume todos os meus versos. Faltou-me o tempo

para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras incertezas. Vão

porém todos, ou quase todos os versos de recente data. Se um escrúpulo

de não acumular muita coisa sem valor me não detivesse, este primeiro

volume sairia menos magro do que é; entre os dois inconvenientes preferi

o segundo.

Na carta estava contida a negação de seu primeiro parecer crítico sobre a poesia: a

vocação superior do poeta. No entanto, declarava-se um seguidor fiel das musas, embora

fosse um poeta obscuro. Há embutido o desejo de ser um sacerdote? Então, pode-se dizer

que continuava acreditando no antigo parecer, embora não achasse que esse dom existisse

em si. Por que não usou a experiência crítica para reformular os antigos poemas? A falta de

tempo é apresentada como desculpa, mas o que parece pesar é o desinteresse pela obra da

juventude. De fato, o autor não teve a preocupação de difundir os primeiros escritos. Sua

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obra poética seria recuperada na atualidade, colhida por pesquisadores em álbuns e em

edições antigas dos jornais.

A abundância de pseudônimos é outra indicação do rigor do crítico. Machado se

valeria do artifício com freqüência, recolhendo posteriormente em livro apenas as obras

que houvessem obtido boa acolhida do público. Teria mais liberdade nas escolhas e estaria

atento às críticas feitas, sem que denunciasse sua autoria. Veria a si mesmo de fora, com o

olhar distanciado, e ainda garantiria a isenção das opiniões, podendo colhê-las ao vivo, sem

se sentir ferido pelas críticas.

A poesia suscita a eterna dúvida: missão ou perdição do escritor? Tal parecer

incomodava o escritor, pois não conseguia se desvencilhar da feição clássica do poeta como

intérprete divino, nem tinha como negar a genialidade e a subjetividade românticas.

No livro, optaria pela tradução de poemas de autores consagrados, principalmente

franceses, recolheria outras composições que escrevera sob pseudônimo e selecionaria

poemas recentes, muitos deles declamados publicamente nos saraus, em datas especiais, ou

no teatro. Por essas escolhas, percebe-se que o autor elegeu os poemas que contavam com o

aval prévio do público e que, por isso, antecipavam a recepção crítica posterior que

alcançariam.

Os poemas não-datados ou anteriores a 1860 que nos interessam em particular são

―As rosas‖, ―Monte Alverne‖, ―Maria Duplessis‖ e ―Última folha‖, todos ligados à

experiência poética da juventude. Destacamos também a homenagem a Faustino Xavier de

Novais através da publicação da sátira ―Embirração‖, como paródia da poesia machadiana

―Aspiração‖.

―As rosas‖, dedicado ao prefaciador Filgueiras, é poema sem data. Tudo indica que

tenha sido composto no período das reuniões literárias. Machado se valeria outra vez de

nota explicativa no fim das Crisálidas para esclarecer a origem da composição. Diria que a

escolha era uma homenagem ao título de um livro de poesia do amigo: ―O Dr. Caetano

Filgueiras trabalha há tempos num livro de que são as rosas o título e o objeto‖.41

Talvez

funcionasse como uma espécie de incentivo ao advogado, que havia publicado o primeiro

livro aos 16 anos, e só tornaria a publicar os Idílios, em 1872, portanto, oito anos depois de

41

ASSIS. T.P. p.89

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prefaciar a obra machadiana. Parece que, após tanto tempo, até o título anunciado por

Machado acabou sofrendo modificação.

Como já analisamos, o poema ―Monte Alverne‖, dirigia-se ao padre-mestre Silveira

Sarmento, e também foi digno de nota no fim do livro, como se o jovem quisesse relembrar

daqueles que tiveram um papel determinante na sua formação. Apesar do título de ―padre-

mestre‖, Machado destaca a pouca idade do sacerdote, ―alguns anos mais velho do que eu‖,

e reforça a idéia de ―modesto preceptor‖, indicando que a ―formação‖ seria mais uma troca

de experiências do que um ensino formal, tanto que o chama de ―agradável companheiro‖.

Machado refere-se à companhia desse jovem, e, por duas vezes, fala de ―tributo e

admiração‖, e que essa amizade teria marcado um determinado ano de sua existência.

Acrescenta também que ―circunstâncias da vida‖ haviam separado os dois. É uma

afirmação interessante, pois faz suscitar muitas questões, inclusive a de que Machado possa

ter exercido alguma função dentro da Igreja, ainda muito jovem, antes dos seus 15 anos.

Quem sabe um aspirante à carreira eclesiástica?

―Maria Duplessis‖ é uma rememoração da amizade por G. Braga, que publicou

poema com mesmo título, em Tentativas poéticas. Machado explicaria, em nota final, que

as traduções foram feitas na mesma época, como um desafio para ambos, um exercício a

partir do original francês de Dumas Filho.

Em 1858, eu e meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer

uma tradução livre ou paráfrase de Alexandre Dumas Filho. No dia

aprazado, apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele

foi publicada, não me lembro em que jornal.42

Machado, provavelmente, enganou-se na data, pois a composição de Braga foi

publicada em livro em 1856, dois anos antes, portanto, da indicação que consta na nota das

Crisálidas. Talvez o poeta fluminense tenha reformulado a tradução em 1864, quando seu

conhecimento de francês estava mais avançado, advindo daí o engano nas datas.

Tendo em vista que a amizade entre ambos os escritores pode ser comprovada

desde 1855, é muito provável que o episódio da tradução tenha ocorrido nesse ano. Não

tendo publicado o poema na ocasião, Machado teria como reformular e rever sua tradução

42

Idem. ibidem.

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no lançamento das Crisálidas, já que, como tradutor, era muito respeitado pelos seus

confrades.

Cotejando as traduções, nota-se que Machado foi mais feliz na transposição que o

amigo, o que só reforça a hipótese da reescrita. Para compará-las, escolhemos a estrofe

mais conhecida do poema de Dumas Filho para, em seguida, observarmos as traduções de

Braga (A) e de Machado (B), respectivamente.

Pauvre fille! On m'a dit qu'à votre heure dernière,

Un seul homme était là pour vous fermer les yeux,

Et que, sur le chemin qui mène au cimetière,

Vos amis d'autre fois étaient réduits à deux!

A)

Pobre mulher! Na extrema hora da vida

Um homem viu teu último momento,

Dois amigos d‘amigos teus d‘outr‘ora

Conduziram teu fúnebre saimento!

B)

Pobre mulher! em tua última hora

Só um homem tiveste à cabeceira;

E apenas dois amigos dos de outrora

Foram levar-te à cama derradeira.

Além de mais fiéis ao original, os versos machadianos foram bem mais

significativos que os de Braga, evitando as repetições de palavras e o excesso de preposição

do penúltimo verso. Braga, além dessas escolhas, abusa das apóstrofes para manter a

métrica.

Por fim, temos o poema ―Última folha‖, que nos interessa particularmente por ser

uma homenagem, embora velada, a Casimiro de Abreu. Machado usaria o mesmo recurso

do autor das Primaveras ao nomear o poema que encerra o livro de ―Última folha‖, a

derradeira chamada à musa do passado, o reconhecimento de que as ilusões tinham

murchado, juntamente com a vida dos seus estimados companheiros de outros tempos.

A epígrafe de Victor Hugo, presente no poema machadiano, assinala a efemeridade

da vida: ―Tout passe, tout fuit‖, assim como mostra a evasão dos anseios e planos de futuro,

certamente confessados nos encontros literários no escritório de Filgueiras. Do mesmo

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modo, a musa dos primeiros poemas e as ilusões de rapaz parecem ceder espaço a um novo

tempo, em que não se podia simplesmente dedilhar a lira romântica e acreditar que a musa

favorecia o vate, embora constantemente ela surgisse em seus poemas.

O poema que finaliza as Crisálidas, na verdade, é um lamento desiludido, último

sopro de uma Musa alquebrada. O diálogo entre ambos os poemas, o das Primaveras e o

das Crisálidas, funciona como resposta ao poeta morto, que, mesmo partindo tão cedo,

havia alcançado um lugar na galeria dos grandes escritores da literatura brasileira. A

composição marcaria a descida da montanha das musas, reduto do romantismo da geração

casimiriana, e a definitiva despedida de Machado do estilo que marcou uma fase de grande

importância na sua carreira.

Musa, desce do alto da montanha

Onde aspiraste o aroma da poesia,

E deixa ao eco dos sagrados ermos

A última harmonia.

Dos teus cabelos de ouro, que beijavam

Na amena tarde as virações perdidas,

Deixa cair ao chão as alvas rosas

E as alvas margaridas.

Vês? Não é noite, não, este ar sombrio

Que nos esconde o céu. Inda no poente

Não quebra os raios pálidos e frios

O sol resplandecente.

Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco

Abre-se, como um leito mortuário;

Espera-te o silêncio da planície,

Como um frio sudário.

Desce. Virá um dia em que mais bela,

Mais alegre, mais cheia de harmonias,

Voltes a procurar a voz cadente

Dos teus primeiros dias.

Então coroarás a ingênua fronte

Das flores da manhã, — e ao monte agreste,

Como a noiva fantástica dos ermos,

Irás, musa celeste!

Então, nas horas solenes

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Em que o místico himeneu

Une em abraço divino

Verde a terra, azul o céu;

Quando, já finda a tormenta

Que a natureza enlutou,

Bafeja a brisa suave

Cedros que o vento abalou;

E o rio, a árvore e o campo,

A areia, a face do mar,

Parecem, como um concerto,

Palpitar, sorrir, orar;

Então sim, alma de poeta,

Nos teus sonhos cantarás

A glória da natureza,

A ventura, o amor e a paz!

Ah! mas então será mais alto ainda;

Lá onde a alma do vate

Possa escutar os anjos,

E onde não chegue o vão rumor dos homens;

Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,

Possa adejar no espaço luminoso,

Viver de luz mais viva e de ar mais puro,

Fartar-se do infinito!

Musa, desce do alto da montanha

Onde aspiraste o aroma da poesia,

E deixa ao eco dos sagrados ermos

A última harmonia!43

A ―alma do poeta‖ de que nos fala Machado identifica-se com as aspirações do

passado. Também pode se referir ao bardo Casimiro de Abreu, um diálogo com o canto do

poeta, em seu último livro, que, com a morte do corpo, pôde enfim ―fartar-se do infinito‖

sem padecer as dores e as angústias da vida terrena. Basta lermos o poema de Casimiro no

fecho das Primaveras, para notarmos como acontece o diálogo entre ambos os textos.

Última folha

Meu Deus! Meu Pai! Se o filho da desgraça

43

ASSIS. T.P. p.85

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Tem jus um dia ao galardão remoto,

Ouve estas preces e me cumpre o voto

- A mim que bebo do absinto a taça!

- ―Feliz serás se como eu sofreres,

Dar-te-ei o céu em recompensa ao pranto‖ –

Vós o disseste – E eu padeço tanto!...

Que novos transes preparar-me queres?

Tudo me roubam meus cruéis tiranos:

Amor, família, felicidade, tudo!...

Palmas da glória, meus lauréis do estudo,

Fogo do gênio, aspiração dos anos!...

Mas teu filho já não se rebela

Por tal castigo, pelas mágoas duras;

- Minh‘alma of‘reço às provações futuras...

Venha o martírio... mas – perdão p‘ra ela!...

A doce virgem se assemelha às flores...

O vento quebra no seu verde ninho.

- Velai ao menos pelo pobre anjinho,

- Pagai-lhe em gozo o que me dais em dores!44

A ―doce virgem‖ é, na verdade, a personificação da poesia, como o próprio

Casimiro a definiria num texto em prosa chamado ―A virgem loura‖. Descreve-a, nesse

texto, como uma mulher por quem se apaixonou ainda na infância, mas a vida teria feito de

tudo para afastá-la de si. No fim do texto, confessa: ―- Mas quem era a Virgem Loura? (...)

– Pois não adivinharam?!... Era a – poesia.‖45

Pela indicação do poeta, pode-se afirmar que a virgem que deseja ver preservada

após a sua morte é sua obra poética. Assim, a oração devotada do poeta ao ―Pai‖, que tanto

representa Deus quanto a autoritária figura paterna, é para que se cumpra o voto de

conceder alegria após tantas provações e dores a que foi submetido em vida, recompensa de

quem se submeteu às imposições paternas sem se rebelar, aceitando tudo, e sacrificando a

vocação de poeta. A única felicidade possível é o gozo do reconhecimento literário, ainda

que póstumo.

Machado, apegado à vocação clássica, utiliza a Musa como símbolo da poesia ou

da inspiração poética. Tinha preferência por essa representação, no lugar da ―virgem loura‖

44

ABREU. Op.cit. p.159 45

Idem. p. 218.

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casimiriana, de feição mais pura, embora exista uma afirmação indireta no verso

machadiano ―seus cabelos de ouro‖, em relação à figura. Nota-se que a evocação é a

mesma de Casimiro: que se mantenha o vigor da poesia, que se preserve o gozo, a ―última

harmonia‖ como eco do desejo da ―alma do poeta‖.

Além de dialogar com Casimiro, Machado construiu o livro realizando a ligação

entre o primeiro e o último poema. Havia clamado pela ―Musa Consolatrix‖ na abertura do

livro, aquela que conforta o poeta e lhe garante a tranqüilidade, a paz e o ―último bem,

último e puro‖. Encerra, com outra musa, a da memória, única capaz de guardar a ―última

harmonia‖ do poeta, o eco do passado, já que o presente não mais alimentava as ilusões de

outrora.

1.4- De Corina a Carolina: entre a musa poética e a poética da musa

Acompanhando a subida do poeta à montanha das musas e a sua ascensão no ambiente

literário, notamos a interpenetração de elementos que se filiam à vida e à obra do autor. A

musa machadiana tanto pode ser inspiração dos mestres do passado quanto transfiguração

das experiências pessoais da juventude. Entre realidade e ficção, percebem-se fronteiras

tênues que ora negam a experiência, ora reafirmam suas convicções. Como tradutor da

própria realidade, o escritor filtra os dados do cotidiano e os expõe sob o rigor de sua

consciência estética. Seja na afirmação ou na negação da realidade, ainda é sobre o mesmo

palco que luzes e sombras aparecem diante do público, cabendo ao espectador confiar ou

não na acuidade de sua visão e na presteza de suas percepções.

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Nas Crisálidas, identificamos as influências do escritor e vimos as homenagens ao

grupo que o formou. Ainda que se tenha observado uma feição romântica no livro, ele

também comporta uma concepção contrária a essa estética, denunciada no prefácio e

confirmada no posfácio pelo próprio escritor. A rememoração do passado parece dar um

tom romântico aos versos, mas o exame incisivo do crítico parece concluir que as ilusões

não dispõem mais de espaço em sua poética.

A partir do tema da metamorfose, o poeta recolhe da tradição clássica o mote para

seus versos. Declinando do ultra-romantismo cultivado nos poemas dispersos, Machado

renega os sentimentos de outrora, mas vale-se da memória como inspiração. O passado é,

sem dúvida, fonte que não transborda em sentimentos, mas em evocações. A musa ostenta,

portanto, ares épicos, no que se tange à evocação do passado para eternizar os antigos

feitos, embora a ―batalha‖ do poeta seja pela conquista do amor.

Se pensarmos numa Ilíada, por exemplo, pode-se dizer que há um conflito amoroso

que influi no campo de guerra: o rapto de Helena, que desencadeia o conflito, e a disputa

por Briseis, que provoca a ira de Aquiles, e, conseqüentemente, sua retirada do combate.

O poema do livro que mais revela essa característica é, sem dúvida, ―Versos a

Corina‖. De início, percebe-se que a própria concepção do poema se fundamenta numa

retomada clássica, com seus seis cantos destinados a fazer o elogio da musa. O verso ―É o

amor que une Ovídio à formosa Corina‖ é uma referência direta ao livro Amores, de

Ovídio, de feição erótica, cuja musa apresenta o mesmo pseudônimo escolhido por

Machado para nomear a amada.

Os Amores seriam muito difundidos e lidos pelos jovens brasileiros, graças à tradução

de José Feliciano de Castilho, que verteu o poema do latim para o português. Poeta da

admiração de Machado, o tradutor português foi citado num dos prefácios machadianos

(mais precisamente, Os deuses de casaca) como um dos grandes cultores do verso

alexandrino em língua vernácula.

O teor erótico dos versos de Ovídio é francamente revelado na ―Advertência‖ no

frontispício do volume traduzido por Castilho, que, ao que parece, em vez de aconselhar os

jovens a desistirem da leitura, conforme a suposta pretensão do tradutor, parece atraí-los

ainda mais pela curiosidade:

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ADVERTÊNCIA IMPORTANTE.

Adolescentes de um e outro sexo!

Sob um título que vos poderá atrair, este livro contém mistérios de

iniqüidade. Se o abrísseis, depois desse pregão, só de vós mesmos vos

podereis queixar. Não é para vós que foi escrito. Quem o apresentasse, ou

o permitisse à inocência, só esse seria o seu envenenador.46

Apesar da advertência, os versos traduzidos por Castilho não chegam a expor

explicitamente o intercurso amoroso, sublimado em metáforas enviesadas que apenas o

sugerem. Inspirando-se na lírica ovidiana, na tradução de Castilho, Machado mantém a

sublimação do erotismo nos poemas de Crisálidas, associando o corpo feminino à flor, à

brisa, à areia, enfim, metamorfoseando a mulher em elementos vários da natureza, para que,

como a chuva de ouro de Dânae, pudesse fecundar o território do desejo sob o disfarce da

metáfora erótica. A sugestão, nesse caso, é sempre mais convincente do que a ação

propriamente dita.

Mesmo com a retomada da temática ovidiana, a vertente pagã do amor não seria

exclusiva na lírica de Machado. A faceta religiosa, tendência do autor, desponta quando o

poeta une o Cântico dos cânticos bíblico, em que o rei Salomão saúda a esposa, aos versos

de Ovídio, embora neste o propósito fosse o de exaltar a amante.

É interessante essa ligação entre o amor permitido e o interditado, entre a inspiração

pagã e a cristã, entre a união conjugal e o desejo proibido. Sulamita ou Corina, a musa

oscila entre a eternidade dos sentimentos e a efemeridade das paixões. Encetemos a leitura

do poema, que tornou Machado conhecido, à época, como ―o vate de Corina‖.

De imediato, na primeira estrofe, ocorre a ―gênese‖ de Corina, que tanto pode ser Eva,

criada pelas mãos de Deus, quanto Vênus, nascida da espuma do mar. Trabalhando o

conceito clássico do amor, que divide a índole feminina em ativa ou contemplativa,

operando a distinção entre a Vênus pura e a sensual, Machado busca reunir ambas as

naturezas numa única mulher. Assim, há resquícios de amor cortês, o ―amor de alma‖

puramente contemplativo de um Dante ou de Petrarca, fundidos ao amor concreto e sensual

de um Ovídio. O poeta diz que Corina nasceu ―de um beijo e de um olhar‖, da volúpia e da

pureza; portanto, simultaneamente ativa e contemplativa.

46

CASTILHO, José Feliciano de. ―Advertência‖. In: OVÍDIO. Amores. (tradução parafrástica de Antonio

Feliciano de Castilho). Rio de Janeiro: Bernardo Xavier Pinto de Sousa, 1858. p. 5.

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Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo

Numa hora de amor, de ternura e desejo,

Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,

Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;

Depois, depois vestindo a forma peregrina,

Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!

De um júbilo divino os cantos entoava

A natureza mãe, e tudo palpitava,

A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,

De uma vida melhor e nova juventude.

Minh‘alma adivinhou a origem do teu ser;

Quis cantar e sentir; quis amar e viver;

A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,

Palpitou, reviveu a pobre criatura;

Do amor grande elevado abriram-se-lhe as fontes;

Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes;

Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;

Era o dia marcado à minha redenção

Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:

Corpo de fascinar, alma de querubim;

A união de elementos que se relacionam ao masculino e ao feminino, força e

delicadeza, é representada respectivamente pela pedra e pela flor. Também se percebe a

composição da imagem feminina partindo de conceitos clássicos e medievais: corpo/alma,

beleza exterior (formas perfeitas) e alma pura. Assim, o poeta determina que a mulher

amada tenha: ―Corpo de fascinar, alma de querubim‖.

Duas figuras gregas são evocadas para compor a imagem sonhada: ―grave como Juno,

e bela como Helena!‖. A deusa mitológica, como se sabe, é símbolo do amor conjugal,

enquanto Helena é o exemplo típico de infidelidade, de amor proibido, provocador de

conflitos e destruição. Só que o poeta idealiza essa mulher de maneira que não seja leviana

como Helena, nem rancorosa como Juno, mas que retenha no caráter o que cada uma dessas

figuras possui de melhor: fidelidade e beleza.

O amor platônico e o sexual se casariam na criação poética de Corina, instituindo o

ideal a partir das exigências do real, e vice-versa. O desejo procura a forma física, enquanto

a alma busca a pureza das idéias, a castidade do coração. Não por acaso, os versos reforçam

a idéia ao contraporem ―a fusão do ser‖ à ―efusão de amor‖: a contenção – que estreita os

amantes num beijo -, e a expansão - no derramamento lírico e amoroso, que resulta na plena

satisfação do desejo.

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Neste fundo sentir, nesta fascinação,

Que pede do poeta o amante coração?

Viver como nasceste, ó beleza, ó primor,

De uma fusão do ser, de uma efusão de amor.

Viver, - fundir a existência

Em um ósculo de amor,

Fazer de ambas – uma essência.47

A construção da imagem da musa, entre o beijo e o olhar, segue elementos pagãos, ―a

união do céu e da terra‖, embora também evoque o ―olhar de vida do Senhor‖, que marca a

presença do elemento cristão. Essa disposição entre temperamentos - ativo/contemplativo -

e a fusão de elementos pagãos/cristãos são atitudes amplamente apregoadas pelos

neoplatônicos do Renascimento, embora ambas as concepções já estivessem presentes no

contexto filosófico, artístico e literário de períodos anteriores.

Tomando como base a lírica de Dante, podemos dizer que no poema machadiano há o

contraste entre ambas as disposições: ―vedere‖ e ―ovrare‖. No ―Purgatório‖ da Commédia

(canto XXVII), duas figuras bíblicas - Raquel e Lia - representam uma dessas tendências.

A disposição ativa de Lia determina que sua beleza apenas seja manifesta pela ação de se

adornar, enquanto a formosura de Raquel reside no rosto ao natural. Assim, em Lia o

artifício é que gera o encanto, ao passo que a arte pura, obra da natureza, é que coroa

Raquel.

Sappia qualunque il mio nome dimanda

ch‘i‘mi son Lia, e vo movendo intorno

le belle mani a farmi uma ghirlanda.

Per piacermi a lo specchio, qui m‘addorno;

ma mia suora Rachel mai non si smaga

dal suo miraglio, e siede tutto giorno.

Ell‘è d‘i suoi belli occhi veder vaga

com‘io de l‘addornarmi con le mani;

lei lo vedere, e me l‘ovrare appaga.48

47

ASSIS. T.P. p. 72. 48

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. (Trad. Ítalo Eugênio Mauro). São Paulo: Ed. 34, 1998. p.180

(―Purgatório‖, canto XXVII, verso: 100 ao 108). ―Saiba quem quer que de mim perguntar:/ com minhas belas

mãos, meu nome é Lia,/ uma grinalda aqui vou arrumar,/pra no espelho me ver com alegria;// mas minha irmã

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A fala de Lia mostra um contraste entre a sua índole e a da irmã, evidenciado pelos

verbos ―vedere‖ e ―ovrare‖ do último verso. Na tradução literal, temos: ―para ela, o ver,

para mim o fazer satisfaz‖. É a clássica distinção entre aparência exterior – obtida pelo

adorno: ovrare; e essência, atributo natural e intransferível. Na tradição medieval, o amor

platônico é o mais sublime dos sentimentos, pois prevê a satisfação da alma, sentimento

que não se deteriora e, por isso, eterno. Opõe-se a ele o amor sexual, instintivo e profano,

ligado unicamente ao desejo, que se extingue após a satisfação da volúpia do corpo. Assim

o ―ver‖ é como uma devoção religiosa: a mulher é tanto mais amada quanto mais intocável

for; enquanto o ―fazer‖ - o amor ativo - é mera execução do impulso humano.

Na tradição grega, ―ver‖ está relacionado diretamente a ―saber‖. Advém dessa

concepção a idéia de que o amor platônico revela a verdadeira sabedoria, o encontro

perfeito, tal como o cantado por Dante, que alcança o mais alto conhecimento através do

amor que sente por Beatriz.

Num dos últimos cantos do ―Paraíso‖ (XXIX), o poeta contrapõe o saber ao amar,

dando ênfase ao primeiro, pois, sem ele, o verdadeiro amor jamais seria manifesto. O ―ver‖

seria a condição necessária para a manifestação da sabedoria:

E dei saper che tutti hanno diletto

quanto la sua veduta si profonda

nel vero in che si queta ogni intelletto.

Quinci si può veder come si fonda

l‘esser beato ne l‘atto che vede,

non in quel ch‘ama, che poscia seconda;

e del vedere è misura mercede,

Che grazia partorisce e buona voglia:

Cosi di grado in grado si procede.49

Observando a obra de outros autores, verificamos exemplos de oposição do ativo e do

contemplativo. Por exemplo, nas Artes, destacamos a construção do túmulo do Papa Júlio

Raquel nunca se afasta/ do espelho seu, sentada todo dia,/ a olhar seus belos olhos ela gasta;/ e eu a com

minhas mãos me embelecer;/ para ela: olhar; para mim só o fazer basta.‖ 49

Idem. canto XXIX , versos 106 a 114. p. 199 . Trad: ―Que todos têm deleite, hás de saber/ conforme a sua

visão mais se aprofunda/ na Verdade que aquieta o seu querer.// Daí verás que a ventura se funda/ no ato de

ver, isto é, na conhecença,/ e não no amor , que só após secunda;// e desse ver mede-se a recompensa/ que

vem da Graça – de quem bem a acolha -/ que grau a grau o seu favor dispensa.‖

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II, em que Michelangelo Buonarroti, inspirado na lírica dantesca e no pensamento então

vigente, concebe duas estátuas – uma de Lia, outra de Raquel – para comporem os nichos

laterais do seu conhecido ―Moisés‖ (embora apenas esta última imagem tenha sido

esculpida por ele), assim como ambos os temperamentos (ativo e contemplativo) seriam

referências constantes na sua concepção artística.

De tal maneira o amor contemplativo era valorizado no período do Renascimento que

Michelangelo, em sua lírica, escreve um dos poemas mais concretos e perfeitos em relação

à tônica amorosa. A imagem criada pelo artista mostra o dilema do amor transcendental, de

alma, frente à atração física, do corpo. Como negação do desejo sexual e para alcance

máximo da realização contemplativa, o poeta, não podendo ascender até a mulher amada

(como Dante faz), deseja que todo seu corpo se transforme num olho, para que dela possa

desfrutar inteiramente:

Os olhos meus, que perto ou longe vão,

podem ver onde está teu belo rosto

mas onde vêem, senhora, é-nos imposto

não hi chegar co os braços, ou co a mão.

A alma, como engenho inteiro e são,

mais livre nos meus olhos sobe o posto

de tua beleza, mas o ardor desposto

não dá ao corpo, aqui tal distinção.

Mortal, sem asas, como seguiria

de um anjo o vôo, e entre aflições terrenas?

Vê-lo, tão só, não me há de alevantar.

Oh! Se és no céu, por mim, de igual valia,

faz de meu corpo todo um olho apenas

e seja eu todo, em mim, te desfruitar.50

Camões também aborda num de seus sonetos a oposição Raquel/ Lia para enfocar o

amor que ultrapassa os limites da vida e se estende para a eternidade. Trata-se de ―Sete

anos de pastor‖, em que a serenidade de Jacó ganha destaque, apesar da força do

sentimento que nutre por Raquel, principalmente porque o ―ver‖ suplanta a possibilidade do

50

BUONARROTI, Michelangelo. Cinqüenta poemas. (Trad. Mauro Gama). Cotia; SP: Ateliê Editorial, 2007.

p. 69.

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―ter‖, como se o servir fosse a condição essencial para estar próximo do objeto de

contemplação: ―Os dias na esperança de um só dia/ Passava, contentando-se com vê-la.‖

Camões exalta mais a atitude servil do patriarca bíblico do que a disposição para

tomar posse do objeto amado: o contemplativo Jacó, por amar sua ―pastora‖, dedica-lhe

uma vida de trabalho, e, por ela, seria servo até o fim dos seus dias: ― - Mais servira se não

fora/ Pera tão longo amor tão curta a vida.‖51

A retomada do tema é importante para entendermos a intenção de Machado, que

parece ser a fusão do ativo (beijo) e do contemplativo (olhar) numa única imagem

feminina. A idealização estaria na complementação entre ambos os caracteres, desfazendo

a antiga separação entre corpo e alma. Corina seria a mulher completa, recriada pelo poeta

com traços mitológicos e cristãos; uma Eva, enfim, que não se corrompe, uma Helena que

não trai, mas que não deixa de ser desejável aos olhos e agradável também aos outros

sentidos do corpo.

Há nos ―Versos a Corina‖ uma das mais belas estrofes machadianas, sumariamente

podada na edição de 1901 de suas Poesias completas. O trecho evoca as musas dos grandes

autores universais, e dele provém também a divisa adotada pela Academia Brasileira de

Letras, como símbolo da imortalidade literária: ―Esta a glória que fica, eleva, honra e

consola‖. Retirado do contexto, o verso original do lema parece tratar das glórias literárias;

no entanto, sua verdadeira intenção era exaltar a glória amorosa, já que o poema eterniza a

musa, celebrando o amor acima de todos os bens do mundo, até mesmo da obra que

inspirou.

És tu a maior glória de minha alma,

Se o meu amor profundo não te alcança,

De que me servirá outra esperança?

Que glória tirarei de alheia palma?

Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória,

É esta que nos orna a poesia da história;

É a glória do céu, é a glória do amor.

É Tasso eternizando a princesa Leonor;

É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;

É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,

Seguindo além da vida as viagens do Dante;

É do cantor do Gama o hino triste e amante

51

CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões. São Paulo: Ed. Saraiva, 1968. p. 11.

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Levando à eternidade o amor de Catarina;

É o amor que une Ovídio à formosa Corina;

O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;

O da divina Délia ao divino Tibulo.

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;

Outra não há melhor, se faltar esta esmola,

Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,

Com que se alenta e vive o amante coração,

Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,

Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.

Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,

Viver na solidão a vida de outros seres,

Vegetar como o arbusto, e murchar, como a flor,

Como um corpo sem alma ou alma sem amor.

A ênfase no final da estrofe reitera o que abordamos acerca de Corina: ela reúne terra

e céu. A ilusão, nesse caso, parece ser necessária para a plena satisfação do corpo e da

alma, é a ―esmola‖ do coração, aquilo de que não se pode abdicar, sob o risco de viver:

―como um corpo sem alma ou alma sem amor‖.

Antes de encontrar Corina, o poeta buscava o ideal ora numa instância, ora noutra:

―Desci ao chão do vale que se abria/ Subi ao cume da montanha alpestre‖. A catábase e a

anábase, movimentos de Dante na Commedia e de Orfeu no mito grego, não podem

satisfazer o anseio de união que reside no poeta. A inspiração é buscada no alto, reduto das

musas e da poesia, mas nenhuma resposta se obtém. Assim, pronunciando uma blasfêmia

atroz, o poeta acaba por unir-se definitivamente à terra, elemento prosaico por natureza:

―Se a blasfêmia o meu lábio poluíra,/ Quando depois de tempo e de cansaço,/ Beijei a terra

no mortal abraço/ E espedacei desanimado a lira.‖

A descida do monte, movimento antipoético, expõe a queda do poeta no terreno do

prosaico, o despedaçamento da lira, assim como ocorreu com Orfeu: sua música pode até

interferir no mundo dos mortos, mas Eurídice não tem corpo, não consegue ascender ao

mundo dos vivos. Só Corina é capaz de intermediar ―um desejo da terra e um toque do

Senhor‖, toque de materialidade na etérea poesia.

O esboço dos dois caracteres femininos – ativo e contemplativo – aparece no poema

das Crisálidas, mas torna-se um dos traços marcantes da escrita machadiana, ainda quando

tratamos da sua obra em prosa. Basta lembrarmos dos romances da chamada ―primeira

fase‖, todos com oposições entre as personagens femininas: em Ressurreição, entre Lívia e

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Raquel; em Helena, entre a protagonista e Eugênia, e em Iaiá Garcia, entre Lina (Iaiá) e

Estela. No prefácio de Ressurreição, o próprio autor revelaria: ―tentei o esboço de uma

situação e o contraste de dois caracteres‖.52

Desde a coincidência ou similitude dos nomes

das personagens, até a criação de seus perfis, existe uma correspondência quase exata com

o conceito feminino esboçado na lírica de Dante e no neoplatonismo, quando se trata da

oposição entre Lia e Raquel.

Um olhar mais atento para essas figuras machadianas é o suficiente para notarmos o

contraste intrínseco entre elas. Por um lado temos a representação dos caprichos femininos,

seja pela educação ou pela índole das moças, como se nota em Iaiá e Eugênia. Elas

representam mais instinto e vontade do que sabedoria e ponderação. Por outro lado,

personagens como Helena e Estela são capazes de renunciar ao desejo para manterem a

dignidade pessoal. Por isso não há conciliação em nenhum desses romances, tudo termina

em dissolução. É impossível tomar posse do objeto amado: caso isso ocorresse, o

sentimento estaria fadado ao desgaste.

Como no ritual do amor cortês, a impossibilidade da união é que sustenta a trama

amorosa. No momento em que a união se mostra possível – com a viuvez de Estela, por

exemplo – o afastamento espacial, e definitivo, se faz necessário.

Em relação a Dante, a epígrafe de ―Versos a Corina‖ é indício da sintonia de Machado

para com a obra e o pensamento do florentino: ―Tacendo il nome di questa gentilissima‖- o

véu do pseudônimo calaria, portanto, o nome verdadeiro da ―dama gentil‖. Assim como

Dante, Machado teria se inspirado numa mulher real para compor os ―Versos a Corina‖,

ainda que não se possa afirmar com exatidão se a musa foi, de fato, a atriz Gabriela da

Cunha.

A epígrafe do poema de Machado faz parte de Vita Nuova, obra em verso e prosa,

onde Dante narra sua experiência afetiva desde o momento em que conheceu Beatriz - aos

nove anos -, até a morte da amada. Entremeado ao relato, há poemas detalhadamente

explicados pelo autor, todos voltados para a temática amorosa. O trecho selecionado integra

o capítulo XXIII do livro, onde Dante relata o delírio que teve num período de grave

enfermidade, quando pressente e presencia a morte de Beatriz, e, diante do fato, deseja

morrer juntamente com ela.

52

ASSIS. Ressurreição. In:____. O.C. vol 1. p. 116.

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A visão que se lhe revela é terrível, aparecem mulheres desgrenhadas que o condenam,

há lamentos e maldições e os elementos do céu são abalados. Tudo prenuncia o fim do

mundo, o derradeiro esfacelamento da Terra. Podemos até afirmar que o capítulo do delírio

de Vida Nova é o embrião da Commedia, já que a imagem de Beatriz vai trazer o poeta de

volta à realidade, estando ele numa espécie de delírio de morte. A dama, nesse caso, o faz

voltar à vida, assim como, na obra-prima de Dante, o conduziria ao Paraíso.

―Não durma mais‖ e ―não se torture‖. Ante essas vozes, a minha fantasia

teve fim, justamente no ponto em que eu estava para pronunciar ―Ó

Beatriz, bendita seja‖; já havia começado a falar ―Ó Beatriz‖, quando

despertando, abri os olhos e vi que estava enganado. (...) mais

reconfortado e dando-me conta da enganosa imaginação, respondi: ―Vou

dizer o que aconteceu comigo‖. Então, do começo ao fim, eu lhes contei o

que havia visto, calando o nome da mais que gentil. Depois, já curado

da doença, dispus-me a dizer palavras a respeito do que me havia

sucedido, julgando que fosse coisa agradável de ouvir. Compus então a

canção que começa com Mulher piedosa e de bem pouca idade. (grifo

nosso) 53

A cena de Dante, apreciada por Machado e evocada na epígrafe, traz muitas

informações importantes, não só em relação aos ―Versos a Corina‖, mas também quanto à

obra machadiana da maturidade. As Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo,

retomam o tema do delírio e da morte, com a ressalva de que Vírgília, a amada de Brás, não

é nenhuma Beatriz. Como o Virgílio de Dante, a personagem só poderá conduzir seu par ao

Inferno e ao Purgatório, sem fazê-lo, portanto, atingir o Paraíso sonhado, e tampouco a

plena realização amorosa.

No delírio de Brás, é Pandora que o recebe na terra dos gelos eternos, lugar tão frio

quanto os círculos mais malditos do Inferno dantesco. Acometido por uma enfermidade, tal

como o personagem de Vida Nova, nem mesmo a presença de Virgília, ―ao pé do leito

derradeiro‖, impede que Brás seja mortalmente vitimado pela idéia fixa que o enfermou. A

busca pelo utópico emplastro aliviador das dores da humanidade resume o desejo fáustico

da glória mundana: fama e riqueza, quando, na verdade, o imenso vazio existencial clama,

ainda que obliquamente, pelo fim das angústias pessoais. Na obra de Dante, a máxima cura,

53

ALIGHIERI, Dante. Vida Nova. In: ____ (et al.). Retrato do amor quando jovem. (Trad. Décio Pignatari).

São Paulo: Cia das Letras, 2006. p.52.

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a utopia dantesca, é Beatriz, que resume o conhecimento e o ideal, sendo, portanto, o

caminho para a remissão e para a definitiva ascensão do poeta.

Se na prosa o contraste entre caracteres é absoluto e indissolúvel, no poema das

Crisálidas, o jovem Machado segue a utopia dantesca com toda a convicção, formulando a

imagem de uma musa ideal que deve ser eternizada em versos, ao contrário do que faria na

maturidade. Nas Memórias, embora pelo mesmo viés, o escritor renegaria a versão otimista

da morte como libertação e acrescentaria à sinfonia melancólica do mundo o coro

descompassado do riso cômico.

Comparando o delírio dantesco ao machadiano, encontramos pontos em comum ou

inversamente proporcionais: Pandora leva Brás para o alto da montanha, mas está longe de

ser uma musa: é mãe e inimiga; portanto, mostrará flagelos e delícias. Em vez de revelar as

glórias futuras, essa ―antimusa‖ desnuda as vãs ambições do homem, mostrando ―a

necessidade da vida e a melancolia do desamparo‖.

O teor do diálogo entre a Natureza e Brás, em que se discute o valor da vida humana,

se assemelha ao discurso ouvido por Dante em seu delírio: ―Em seguida, ressoa / uma voz

sem verdade e sem razão,/ uma voz de mulher ou de mil cobras:/ ―- Você, da Morte é só

uma das obras‖54

. Brás, por sua vez, sente-se devorado pela impiedade de Pandora,

chamando-a de ―absurda‖, por destruir o que criou. Pandora, entretanto, replica que não

precisa mais de Brás, por isso o consumia impiedosamente, do mesmo modo que fez com

outros antes dele, e que faria com os que se seguiriam depois. Chega a chamá-lo de

―verme‖ apegado às inúteis migalhas de vida.

Há um contraponto interessante entre Pandora e Beatriz. Brás, dirigindo-se à primeira,

mostra o desejo de continuar vivo, mesmo diante de sua inutilidade, e de tantos flagelos

impostos pelo viver: ―Quem me pôs este amor à vida senão tu?‖. Contrariamente, no poema

do capítulo XXIII de Vida Nova, Dante assim dialoga com Beatriz: ―Quem me trouxe/ esta

vontade de morrer? Você!‖. Embora o poeta sinta uma grande desilusão diante do

falecimento da amada, e chegue a desejar a própria morte, é esta mesma dama que lhe

permite retornar à realidade, ao suspender as alucinações no leito de morte do poeta,

operando uma espécie de ―ressurreição‖.

54

Idem. p.54.

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No romance machadiano, Pandora ri-se do desejo de Brás, síntese dos anseios

humanos: para que viver se a vida não passa de uma busca desenfreada pela Quimera da

felicidade, que jamais pode ser alcançada sem que se desfaça como uma visão do

impalpável?

No entanto, veremos mais adiante, que, embora a filosofia da obra machadiana da

maturidade desacreditasse o ideal, há vestígios, no final da vida do autor, de uma

reincorporação de certa vertente libertadora do amor, principalmente com o retorno de

temas biográficos, como no Memorial de Aires. Na última cena desse livro, parece que

ouvimos o eco, embora com laivos de solidão, dos ―Versos a Corina‖: ―Esta a glória que

fica, eleva, honra e consola‖. Enfim, Carmo e Aguiar encontrariam consolo frente às

angústias da vida, ainda que sem glória e elevação: achariam, na convivência mútua, o

emplastro para aliviar suas dores, mesmo diante do legado indiscutível das misérias

humanas.

Como ocorre na Vita Nuova, de Dante, onde o próprio autor revela o motivo da

inspiração dos versos, Machado também deixaria registrado, em uma carta enviada à noiva

Carolina, que o poema das Crisálidas havia se baseado em dados da realidade.

Curiosamente, o escritor fala em dois amores, um correspondido (ativo) e outro não-

correspondido (contemplativo); e de um terceiro – Carolina – que reuniria razão e emoção,

perfeita fusão do sentimento e do intelecto: a mulher ideal.

Pelo teor da resposta de Machado, o discurso procurava abrandar os ciúmes da futura

esposa em relação à musa das Crisálidas.

―És tão dócil como eu; a razão fala em nós ambos. Pedes-me cousas tão

justas, que eu nem teria pretexto de te recusar se quisesse recusar-te

alguma cousa, e não quero./.../

Acusas-me de pouco confiante em ti? Tens e não tens razão; confiante

sou; mas se não contei nada é porque não valia a pena contar. A minha

história passada do coração resume-se em dous capítulos: um amor

correspondido; outro, não-correspondido. Do primeiro nada tenho que

dizer; do outro não me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. Não me

acuses por isso; há situações que se não prolongam sem sofrimento.(...) A

tua pergunta natural é esta: Qual destes dous capítulos era o de Corina?

Curiosa! era o primeiro. O que te afirmo é que dos dois o mais amado foi

o segundo./ Mas nem o primeiro nem o segundo se parecem nada com o

terceiro e último capítulo do meu coração. Diz a Staël que os primeiros

amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da

necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessas, há uma razão

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capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho

conhecido. Espírito e coração como os teus são prendas raras; alma tão

boa e elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão tão reta não são bens

que a natureza espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo. Tu pertences ao

pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. 55

Diante de versos tão inspirados e reveladores como os do poema das Crisálidas,

Carolina tinha muitas razões para sentir ciúmes da musa que os havia inspirado. Talvez por

esse mesmo motivo o escritor teve o pudor de cortar a estrofe ao reeditar a obra poética na

maturidade. Afinal, o ―eterno‖, cantado no poema, fora corroído pela traça do minuto, e

nada mais restava da glória de Corina depois daquele momento, a não ser a sombra do

ciúme.

A sexta parte dos ―Versos a Corina‖ é um canto de lamento, pois a musa tomou o

―caminho do mar‖ e se distanciou do poeta. Há a quebra da ilusão inicial: o ideal sonhado

não se concretiza, a mulher que reunia amor e desejo, enfim, se restringe a uma lembrança -

nem beijo, nem olhar. O poeta retoma a dupla concepção de amor por ele idealizado, mas

admite que tudo não passou de um sentimento quimérico:

Eu só quis, numa ventura calma,

Sentir e ver o amor através de uma alma;

De outras vãs não valeu o esplendor,

A beleza eras tu: - tinhas a alma e o amor.

Pelicano do amor, dilacerei meu peito,

E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;

Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;

Por eles reparti minh‘alma. Na provança

Ele não fraqueou, antes surgiu mais forte;

É que eu pus neste amor, neste último transporte,

Tudo que vivifica a minha juventude:

O culto da verdade e o culto da virtude,

A vênia do passado e a ambição do futuro,

O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro. (grifo nosso)

Se o amor a Corina é ―o último transporte‖, o distanciamento da amada é a definitiva

perda, o corte derradeiro da ilusão, ainda que, como fênix, o sentimento surja ainda mais

55

ASSIS. O.C. Vol.3. p. 1.029.

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forte e seja a motivação para compor o poema. A poesia seria o espaço de realização do

impossível, de celebração do quimérico, mesmo que sob a égide de uma esperança

corroída, passível de esfacelamento ao mais leve sopro da desilusão.

Outro elemento do poema é o pelicano, símbolo medieval relacionado ao sacrifício.

Como se percebe em alguns hinos sacros, a Igreja comparava o desvelo dessa ave a Cristo,

pois, no passado, julgava-se que esse animal, por trazer alimento dentro do bico, alimentava

suas crias com a própria carne. Por causa disso, associaram a figura ao sacrifício do pai

pelos filhos e, conseqüentemente, ao martírio do Salvador.

A imagem do pelicano foi também usada por Dante na Commedia56

. Embora tratada

como símbolo católico, tem implicações várias na maçonaria e na alquimia, e todas as

concepções, cristãs ou pagãs, a relacionam à dedicação, ao esforço humano ou divino para

se atingir um ideal à custa da própria vida.

No poema machadiano, o sacrifício advém da busca pela imortalidade dos versos,

único meio de eternizar a musa e de uni-la ao nome do poeta para sempre, como acontece

aos clássicos. Para tal, o poeta precisa doar seus sentimentos, sua própria essência, para

revivê-los em seguida, ainda mais fortes que antes. Os seus ―filhos‖ – o desejo, a quimera e

a esperança - mesmo efêmeros, trazem em si o vigor da juventude, que é integralmente

depositado nesse ―último transporte‖: o canto derradeiro, o acorde final da lira de Orfeu.

56

―Paraíso‖. Canto XXV, verso 112 a 114.

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1.5- Falenas: o sofrimento como tema

Se Corina marcou a trajetória poética de Machado em seu primeiro livro do gênero,

Carolina seria a inspiração para muitos dos poemas de Falenas. Lançado em 1870, no ano

seguinte ao casamento do poeta, o livro traz várias composições que se relacionam ao

período do noivado.

A borboleta (falena), após um período de reclusão no casulo, havia enfim vindo à luz.

Apesar das asas negras e do vôo crepuscular, o inseto machadiano nascia com a promessa

de fundir os três gêneros: o lírico, o épico e o dramático. Assim, o livro comportaria desde

poemas curtos até os longos e narrativos, e o escritor se enveredaria por vias profusas, ora

esboçando um gosto por temas dramáticos e trágicos, ora explorando o viés herói-cômico,

inspirado num Cruz e Silva e num Boileau, como nas estrofes de ―Pálida Elvira‖.

O lirismo de Falenas é, visivelmente, mais contido, mas ocorre um grande salto de

qualidade na lírica machadiana. O livro exibe uma poesia consistente tanto nas temáticas

quanto nos modelos adotados. Apesar da insistência no tema da musa, não existe uma

feição única no livro. A estética romântica estava diluída, enquanto a atmosfera clássica, as

paisagens exóticas, os temas universais passavam a ocupar a atenção do poeta.

O poema de abertura já indica a continuidade do diálogo com a musa e a fidelidade ao

tema clássico. ―Prelúdio‖ foi escrito inicialmente no álbum de Carolina57

, e tudo indica que

Machado tenha retomado o tema de Octave Feuillet para render homenagem à amada, ainda

no período do prelúdio amoroso do casal.

O álbum de Carolina, por sua vez, já tinha sido alvo de outros versos: os do irmão

Faustino Xavier de Novaes, que abriam o volume e falavam satiricamente da existência dos

álbuns como veículo de sedução dos poetas. De maneira irônica, Faustino escreve um

poema para alertar à irmã dos perigos que corria ao apegar-se a tal objeto.

57

MACHADO, Ubiratan. Dicionário Machado de Assis. Op. cit. p. 276.

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Um álbum já tens! E eu creio

Que dás valor à Poesia;

Mas que não saibas receio

Quanto a moda deprecia

Esse tão puro recreio!

Julgas com ele – inocente! –

Mostrar que essa arte divina

Dos sábios não é somente?

- Que a luz que o gênio ilumina,

De fogo te inunda a mente? –

Mas...n‘estas folhas mimosas

Poderás tu, algum dia,

Verter lágrimas piedosas,

Sobre a sentida poesia

D‘essas Musas caprichosas?

Ai!...talvez...que n‘essa idade,

Em que abrasa o peito o ardor,

Olha tudo a mocidade

Por um prisma encantador,

Que a face muda a verdade!

A poesia – sempre bela –

Quase nunca é proveitosa

Para a candidata donzela:

Que – mesmo se é venenosa –

Doçuras só lhe revela.

Mas se um álbum tens – embora!

É mister dar-lhe valor:

Começas a ouvir agora

Mentidas frases d‘amor,

Lamentos de quem não chora...

Se um – beldade – te chamar,

E te disser que enlouquece,

Que nasceu para te amar,

Indaga se te conhece,

Ou se ouviu de ti falar.

Se outro bradar que ama em vão,

Que, ao ver-te, ficou perdido,

Não lhe preste atenção!

- Talvez cumpra o teu pedido

Tendo d‘outra a inspiração...

Nem por mais que o cauto exprima,

Creias, aqui consagrados,

Ardentes votos d‘estima:

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88

Faço versos, por pecados,

Sei a quanto obriga a rima...

Atenta bem n‘este espelho!

E da fraterna amizade

Aceita o justo conselho:

- Se velho não sou, na idade,

Já, n‘estas coisas, sou velho.58

Pela descrição de Faustino, Carolina apreciava poesia, e, ao que tudo indica,

acompanhava com interesse a movimentação de poetas e os saraus literários na casa dos

Novaes. Ambiente igualmente favorável encontraria no Brasil, freqüentando os concertos

promovidos por um amigo da família, Artur Napoleão.

No Porto, Faustino foi colaborador assíduo do jornal A Grinalda, de propriedade de

João Marques Nogueira Lima, que reunia a nata dos poetas da cidade. Faustino abriria o

primeiro número do jornal, em 1855, com um poema satírico, bem como publicaria muitas

composições no jornal. A relevância desse veículo se deve ao fato de que alguns poemas do

álbum de Carolina viriam a público, assinados por três diferentes poetas.

Um estudo de Jean-Michel Massa sobre Carolina59, ainda pouco comentado pelos

estudiosos brasileiros, levanta questões sobre sua vida antes da chegada ao Brasil. O

pesquisador francês destaca alguns poetas do Porto que teriam dedicado versos à moça,

dentre os quais Augusto de Morais, João Marques Nogueira Lima (o proprietário de A

Grinalda) e, especialmente, J. Candido Furtado, todos pertencentes ao círculo de amizade

de Faustino.

Sobre Candido Furtado, Massa fala de uma maneira enfática, tendo em vista que esse

escritor dedicou à Carolina um poema de amor muito efusivo, intitulado ―Sorrisos‖,

sugerindo certa intimidade com a irmã de Faustino. A composição foi publicada em A

Grinalda em 1860. Como Massa não transcreve inteiramente a composição, optamos pela

edição original onde consta a íntegra do poema.

58

NOVAES, Faustino Xavier de. Poesias. 2ed. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1856. P.150-

151 59

MASSA, Jean-Michel. "Caroline: quelques documents retrouvés‖. In: Bulletin de la Faculté des Lettres de

Strasbourg. n 42. Strasbourg: Faculté de Lettres, 1964. p. 566.

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89

SORRISOS

(No álbum da Exª Snrª D. Carolina Augusta Xavier de Novaes). - IMITAÇÃO DE VICTOR HUGO -

Já que eu rocei com meus lábios

O teu cálix d‘amor, anjo do céu...

Já que aspirei teu hálito fragrante;

Quando um beijo me deste – delirante-

E teu seio arquejou, junto do meu; ...

Já que vejo brilhar sobre esta fronte

Um raio do teu astro divinal; ...

Já que no lago ameno d‘esta vida

Bóia a folha de um lírio – desprendida

D‘essa tua existência virginal; ...

Já que te ouvi falar essa linguagem

Em que a alma transpõe seus castos véus; ...

Já que vi, na expansão de um gozo infindo,

E teus olhos chorando sobre os meus...

Eu posso dizer hoje aos anos tristes:

―Passai! Gelo e velhice a mim não vem!

Impeli! vossa lúgubre corrente;

Tenho n‘alma uma flor sempre virente,

Quem m‘a pode roubar? ... louco! ... ninguém! –

Ela encerra o meu néctar de ventura,

E nunca há de pender, murcha ao tufão:

Se em vós há pó e cinza e esquecimento...

N‘esta alma há luz eterna! Há mais alento

E ainda mais amor no coração!‖ -

(Porto – Abril de 1860)60

Realidade ou fantasia do poeta, o que merece destaque é o sentimento que Carolina

nele despertou. Talvez fossem apenas ―mentidos versos de amor‖, como replicara Faustino,

apenas com a finalidade de imitar Hugo ou de fornecer belos versos à dama. Toda essa

efusão amorosa já estava prevista na advertência do irmão, na abertura do álbum de

Carolina. O tom, no entanto, é realmente diferente dos outros dois poemas de amor,

genéricos por assim dizer, publicados em edições anteriores de A Grinalda por Nogueira

Lima e Augusto de Morais. Também são transcrições do álbum de Carolina, conforme

indicam as dedicatórias.

60

FURTADO, J. Candido. ―Sorrisos‖. In: A Grinalda. Ano III. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira,

1860. p.28-29.

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90

Todas essas informações só vêm confirmar que a futura esposa de Machado teria

convivido num ambiente favorável à literatura, cercado de escritores, principalmente de

poetas. Não teria, portanto, se furtado dos galanteios, nem, talvez, deixado de vivenciar

algum amor concreto. A publicação do poema de J. Candido Furtado, com sua franca

dedicatória à dama, mostra-nos que, se isso realmente aconteceu, não se tratava de um amor

secreto.

Dando continuidade ao estudo de Falenas, em ―Prelúdio‖, Machado retorna à terra da

poesia, da qual se despedira na ―Última folha‖ das Crisálidas. Vale lembrar que, nesse

poema, Machado pedia à musa que descesse do alto da montanha, como um canto de

despedida: ―Musa, desce do alto da montanha/ Onde aspiraste o aroma da poesia,/ E deixa

ao eco dos sagrados ermos/ A última harmonia!‖.

Com o distanciamento da musa Corina, talvez quisesse enveredar por outras vias, ou

pensasse que não mais restava inspiração para compor novos versos. O que fica patente é o

etorno da poética da musa, ainda que as ilusões de outrora tivessem se dispersado da

―fronte do mancebo‖.

Machado, ao escrever ―Prelúdio‖, toma como mote uma das cenas da peça Dalila, de

Octave Feiullet, em que Amélia Sertorius pede que a levem numa jornada à Alemanha para

curar-se de sua loucura, provocada por uma mágoa de amor.

Lembra-te a ingênua moça, imagem da poesia,

Que a André Roswein amou, e que implorava um dia,

Como infalível cura à sua mágoa estranha,

Uma simples jornada às terras da Alemanha?

O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,

Um refúgio tranqüilo, um suave remédio:

És tu, casta poesia, ó terra pura e santa!

Quando a alma padece, a lira exorta e canta;

E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,

Cada lágrima nossa em pérola converte.61

A dor e o sofrimento cercam a montanha do poeta, mas o clássico refúgio das musas –

a terra da poesia - ainda parecia ser o melhor lugar para converter lágrimas em pérolas: o

canto alivia a angústia da alma, é ―suave remédio‖, como diz o poema. A presença do

61

ASSIS. T.P. p. 93.

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91

―nossa‖, no último verso, é uma mostra de que o poeta se solidariza com a dor da moça e

compartilha das mesmas aflições.

Amor e loucura seriam assuntos muito próximos tanto de Carolina quanto de

Machado; afinal, a vinda da moça para o Brasil, terra estranha, foi motivada pela doença

mental que acometeu o irmão Faustino Xavier. A doença do poeta demandava muitos

cuidados, mas também serviu de ponte para que Machado e Carolina, reunidos à volta do

enfermo, se conhecessem e se aproximassem. Alguns biógrafos alegam também uma

desilusão amorosa de Carolina em Portugal. Portanto, ambos os pretextos teriam a cura

como objetivo, seja física (do irmão), ou sentimental (da própria Carolina). Assim, o poeta

parece querer consolá-la:

A outra terra era má, o meu país é este;

Este o meu céu azul,

Se um dia padeceste

Aquela dor profunda, aquele ansiar sem termo

Que leva o tédio e a morte ao coração enfermo;

Se queres mão que enxugue as lágrimas austeras,

Se te apraz ir viver de eternas primaveras,

Ó alma de poeta, ó alma de harmonia,

Volve às terras da musa, às terras da poesia!

Tens, para atravessar a azul imensidade,

Duas asas do céu: a esperança e a saudade.

Uma vem do passado, outra cai do futuro;

Com elas voa a alma e paira no éter puro,

Com elas vai curar a sua mágoa estranha.

A terra da poesia é a nossa Alemanha.

Enfim, o Brasil seria o ponto de união do amor e da dor, e o casal encontraria, um no

outro, o consolo para os dramas pessoais. Machado ainda diria em carta que o fato de a

noiva ter sofrido era um dote que sobrepujava os demais, demarcando uma perspectiva

interessante em relação à vida, colocando o sofrimento como condição intrínseca para a

formação do caráter.

Além disso tens para mim um dote que realça os demais: sofreste. É

minha ambição dizer à tua grande alma desanimada: ―levanta-te, crê e

ama; aqui está uma alma que te compreende e te ama também‖./ A

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responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a

com alegria, e estou que saberei desempenhar este agradável encargo./

Olha, Querida, também eu tenho pressentimento acerca da nossa

felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda

completamente feliz? Obrigado pela flor que me mandaste; dei-lhe dous

beijos como se fosse em ti mesma, pois que apesar de seca e sem perfume,

trouxe-me ela um pouco de tua alma. (Machadinho). 62

O epíteto de ―Querida‖, que aparece na carta, também marca a presença de Carolina

na obra de Machado, principalmente na poesia, como veremos adiante. A flor citada na

missiva, ―apesar de seca e sem perfume‖, traz um pouco da alma de ―Carola‖, por isso é

beijada. Como o episódio da Pedra de Bolonha, do Werther de Goethe, em que o

protagonista se alegra ao ver o criado só pelo fato de ter estado junto a Carlota (e precisa

refrear sua vontade de abraçá-lo), na carta de Machado, a amada é capaz de transmitir o

fulgor da sua presença para a flor, de maneira que aquilo que era inútil e sem valor passa a

ter uma importância extrema.

Assim como o autor se inspirou em Vida nova, de Dante, para tratar de Corina, as

cartas de amor de Machado ganham um tom próximo das cartas do Werther, de Goethe,

obra também baseada numa musa real: Charlotte Buff. A evocação da Alemanha em

―Prelúdio‖ traz um pouco da pátria de Goethe não apenas na referência, mas também

quando trata do sofrimento como tema. A poesia e o amor parecem oferecer a cura, o alívio

da alma de todas as ―mágoas estranhas‖.

Os poemas subseqüentes vão abordar o tema da dor e das decepções, em muitos

aspectos. Desde os títulos, já se percebe a atmosfera de tristeza dos versos de Falenas, seja

porque essas borboletas têm um ar soturno, ou porque a musa de Machado está envolvida

por uma atmosfera de mortes e de perdas familiares, muito semelhante ao que o poeta havia

vivenciado desde a infância.

Por outro lado, alguns poemas do livro apresentavam também o humor e o riso, como

―Cegonhas e rodovalhos‖ e ―Uma ode de Anacreonte‖, e, ainda, outras composições

explorariam o perfil tragicômico, como ―Pálida Elvira‖ e ―No espaço‖. Contudo, ainda

quando o poeta trata de ―Ruínas‖ e de ―Sombras‖, há uma mensagem de consolo em cada

62

ASSIS. O.C. Op.cit. p. 1.030.

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93

verso, como se a pena do autor assumisse a responsabilidade de falar da dor, mas também

de oferecer a cura, como havia proposto no início.

Podemos dividir o livro em três partes: Lírica – formada pelo núcleo de poemas e

traduções, iniciado com ―Prelúdio‖ e encerrado com ―Lira chinesa‖; Dramática – com o

longo poema ―Uma ode de Anacreonte‖, e ―Épica‖ - com a narrativa em versos de ―Pálida

Elvira‖, que recebe, na página de rosto, o nome de ―conto‖, suprimido pelo autor na edição

de 1901.

A primeira parte – lírica - interessa-nos em especial, uma vez que ―Pálida Elvira‖ já

recebeu um extenso estudo em nossa dissertação de mestrado63

, e ―Uma ode de

Anacreonte‖, apesar de ser um poema dramático, não se enquadra no gênero ―comédia‖ que

será tratado, em especial, no capítulo sobre o teatro de Machado de Assis, incluindo as

peças ―Os deuses de casaca‖, ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖.

Na leitura de Falenas, nos interessa prosseguir o estudo sobre o processo criativo do

escritor, entremeando vida e obra. O artista segue compondo a partir de experiências

vividas ou lidas, e acrescenta a tudo isso o toque da autoria, as pinceladas de estilo da pena

de escritor. Assim, tamisa a matéria da vida com a sensibilidade necessária, e recolhe

apenas aquilo que de fato tem relevância em seu projeto estético.

Dentre a parte lírica do livro, dedicamos especial atenção àquelas composições

relacionadas à temática do sofrimento, e que possuem alguma ligação com Carolina.

―Ruínas‖, por exemplo, o segundo poema de Falenas, mostra o encontro do vate com

―austera moça‖, ambos com um histórico de melancolias e de mágoas, e que se solidarizam

para transporem, juntos, o cerco das ruínas.

Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,

Sítios caros da infância.

Austera moça

Junto ao velho portão o vate aguarda;

Pendem-lhe as tranças soltas

Por sobre as roxas vestes;

Risos não tem, e em seu magoado gesto

Transluz não sei que dor oculta aos olhos,

- Dor que à face não vem, - medrosa e casta,

Íntima e funda; - e dos cerrados cílios

Se uma discreta e muda

63

AMPARO. Op.cit. p. 91-110.

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94

Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;

Melancolia tácita e serena,

Que os ecos não acorda em seus queixumes,

Respira aquele rosto. A mão lhe estende

O abatido poeta. Ei-los percorrem

Com tardo passo os relembrados sítios,

Ermos depois que a mão da fria morte

Tantas almas colhera. (...)64

Ao clima triste da paisagem, acrescem-se duas figuras, o vate e a moça, que percorrem

os sítios do ontem e do agora, e se detêm em cada trecho, como se dividissem entre si o

peso dos desgostos sentidos. No entanto, não se trata de uma melancolia exasperada, que

produz desespero e desconsolo, mas ―tácita e serena‖, dor refletida, transmutada em

experiência. O monólogo do poeta mostra a identificação entre ele e a moça e, o que é mais

relevante, há uma espécie de reconhecimento, como se o rosto dela fosse um eco do

passado, uma imagem que retornava ao raso da memória.

―Quem és? Pergunta o vate; o sol que foge

No teu lânguido olhar um raio deixa;

(...)

Conhecem-te estas pedras; das ruínas

Alma errante pareces condenada

A contemplar teus insepultos ossos.

Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo

Sinto não sei que vaga e amortecida

Lembrança de teu rosto.‖

A lembrança ―vaga e amortecida‖ parece-se com uma recordação da infância, uma

identificação materna. O mais provável, no entanto, é a retomada da questão das almas que

se reencontram e se reconhecem, como as metades perdidas que vagam em busca do par

perfeito. O rosto, como em espelho, reflete a sombra do outro, onde há uma

correspondência plena, e que faz tudo soar com familiaridade.

Sem se desvencilhar da poética da musa, o poeta continua o diálogo, desta vez com a

―Musa dos olhos verdes‖, a que traz a aurora da esperança e faz renascer um novo dia,

rompendo as sombras existentes em seu íntimo.

64

ASSIS. T.P. p. 94.

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95

Casta filha do céu, virgem formosa

Do eterno devaneio,

Sê minha amante, os beijos meus recebe,

Acolhe-me em teu seio!

Já cansada de encher lânguidas flores

Com as lágrimas frias,

A noite vê surgir do oriente a aurora

Dourando as serranias.

Asas batendo à luz que as trevas rompe,

Piam noturnas aves,

E a floresta interrompe alegremente

Os seus silêncios graves.

Dentro de mim, a noite escura e fria

Melancólica chora;

Rompe estas sombras que o meu ser povoam;

Musa, sê tu a aurora!65

A musa que surge em meio às ruínas, aos vermes e às sombras do livro é a imagem do

ideal, como a ―aurora‖ que rompe a escuridão da noite, além de ser definida como ―consolo

do ancião‖ e ―sonho de criança‖, satisfazendo os anseios das duas pontas da existência.

Nesse caso, o poeta contrariava a tradicional concepção lírica dos olhos verdes como

―enganadores‖, baseada na cantiga camoniana, retomada, aliás, por Gonçalves Dias em seu

belo poema ―Olhos verdes‖. A musa de Machado, assim como no poema ―Musa

consolatrix‖, serve unicamente como alento e consolo à alma do poeta, na verdade, ainda

não tinha assumido os ares de Pandora: aquela que trazia, juntamente com a esperança,

todos os males da vida humana.

A atmosfera de mistério, os ecos do passado, as perdas pessoais são os temas de

―Sombras‖, poema que retoma o clima melancólico. Temos novamente o diálogo entre o

poeta e a dama, só que, dessa vez, não nomeada, nem marcada com vocativos. O ambiente

agora é o de um templo cristão, povoado de sombras e espectros do passado, e o poeta

aconselha a moça que fixe o olhar na cruz do Senhor, único lugar iluminado da igreja.

65

ASSIS.T.P. p. 96.

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96

Essa cruz simboliza o martírio divino e a morte, mas também a redenção, que anula o

passado a partir de uma aliança futura - talvez apontando o casamento como uma

possibilidade libertadora: ―Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo;/ Volve os

olhos à luz, imita aquele exemplo;/ Corre sobre o passado impenetrável véu;/ Olha para o

futuro e vem lançar-te ao céu."

O ―véu‖, que aparece em outros momentos e tem profunda relação com o casamento -

tanto na acepção da cerimônia em si, dos paramentos da noiva, quanto na acepção da

virgindade que conota – aqui significa a separação entre o passado e o futuro, o

rompimento com um compromisso ou estado anterior. O ―impenetrável véu‖ era a proteção

necessária, o divisor dos tempos, o marco de um reinício.

A religiosidade, antiga característica da lírica de Machado, transfere-se inteiramente

para o âmbito da relação amorosa. A comparação entre o cerimonial sagrado e a união do

casal é um recurso empregado pelo poeta, tomando como modelo o livro dos Cânticos, que

serve como parâmetro lírico, assim como o Eclesiastes seria inspiração filosófica na prosa.

Nota-se, porém, o rompimento do poeta com a religião, com o institucional, com a crença

católica. A partir de então, toda a relação com o sagrado se dará unicamente no uso de

determinadas imagens, ou como metáfora de algo relacionado à vida.

Para Machado, assim como revela o poeta nas suas composições, o ideal presente na

instituição ―família‖ assume o papel do sagrado. O lar seria o reino da bem-aventurança,

justa expectativa de quem nunca pôde gozar plenamente do acolhimento de um ambiente

doméstico propriamente dito.

Minha Carola,

Dizes que, quando lês algum livro, ouves unicamente as minhas palavras,

e que eu ocupo o teu pensamento e a tua vida? Já mo disseste tanta vez, e

eu sempre a perguntar-te a mesma cousa, tamanha me parece esta

felicidade. Pois, olha; eu queria que lesses um livro que eu acabei de

ler há dias, intitula-se: “A Família”. Hei de comprar um exemplar

para lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia Sagrada. É um

livro sério, elevado e profundo; a simples leitura dele dá vontade de

casar./ Faltam quatro dias; daqui a quatro dias terás lá a melhor carta que

eu te poderei mandar, que é minha própria pessoa, e ao mesmo tempo

lerei o melhor. (grifo nosso)66

66

ASSIS. O.C. Op.cit. p. 1.031.

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97

O amor é, portanto, o único altar em que o escritor queima o incenso literário, e a esse

sentimento oferece total devoção. ―A família‖ assume a esfera das coisas santificadas, a

ponto de um livro com esse título passar a ser comparado à Bíblia Sagrada.

O universo da escrita, por sua vez, serve como parâmetro para estabelecer

determinadas significações, tanto que o escritor equipara a sua pessoa a uma carta que pode

ser lida pela amada, assim como lerá também o melhor texto na pessoa de Carolina.

Exprimindo essa aproximação entre o ler e o amar, temos o poema ―Livros e flores‖,

que une ambos os objetos da devoção do escritor - a literatura e a musa que o inspira: ―Teus

olhos são meus livros./ Que livro há aí melhor,/ Em que melhor se leia/ A página do

amor?‖.

A ligação do poeta a esse amor ―divino‖, como o de uma Beatriz, aparece em outros

poemas. Em ―Quando ela fala‖, chega a afirmar: ―Minh‘alma, já semimorta,/ Conseguira ao

céu alçá-la/ porque o céu abre uma porta/ Quando ela fala.‖ A amada seria aquela criatura

angélica que o conduziria ao ―céu‖, metáfora da felicidade e ápice da realização pessoal. A

mesma concepção é adotada em ―Pássaros‖, onde o amor transcendental mais claramente se

afigura.

Porque o céu é também aquela estância

Onde respira a doce criatura,

Filha do nosso amor, sonho da infância,

Pensamento dos dias juvenis.

Lá, como esquiva flor, formosa e pura,

Vives tu escondida entre a folhagem,

Ó rainha do ermo, ó fresca imagem

Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!

(...)

Da tua imagem vaporosa e linda,

Único alento que me prende aqui.

E dirão mais que estrelas de esperança

Enchem a escuridão das noites minhas.

Como sobem ao monte as andorinhas,

Meus pensamentos voam para ti.

A erotização dos poemas das Crisálidas, seguindo a lírica ovidiana, é atenuada ao

máximo, restando a faceta do amor mais etéreo e espiritual. Parece que existe ainda um eco

de Dante na escrita machadiana, basta lermos o trecho transcrito para encontrarmos

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elementos que seguem a sublimação do amor e da amada, que incidindo na questão de um

―sentimento superior‖ que eleva a alma a outras estâncias. Por outro lado, mesmo que a

ênfase espiritual se destaque, há o esfacelamento da convicção religiosa estrito senso.

Isso fica nitidamente exemplificado no poema ―Ite, missa est‖, expressão latina que

anuncia o fim da missa. Se em ―Monte Alverne‖ a admiração motiva o canto do poeta, em

―Ite, missa est‖ só existe a celebração do fim. Cada estrofe finalizada é uma ilusão

religiosa que se esvai, enquanto o eu-lírico se admite como ―servo do altar de um deus

esquivo‖. A cruz, único lugar iluminado do templo no poema ―Sombras‖, neste é beijada

pelo ―servo‖, antes que sua luz, por completo, se esmaeça.

Pobre servo do altar de um deus esquivo,

É tarde; beija a cruz;

Na lâmpada em que ardia o fogo ativo,

Vê, já se extingue a luz.

Cubra-te agora o rosto macilento

O véu do esquecimento.

Ite, missa est.67

Do ―impenetrável véu‖ ao ―véu do esquecimento‖, tudo parece apontar para o

definitivo aniquilamento do passado, tanto ―dele‖, quanto ―dela‖: do eu-lírico e da musa. O

―véu‖ que aparece em ―Sombras‖ e em ―Ite, missa est‖ indica a ―separação‖, a barreira

posta entre o ontem e o amanhã. É manto que cobre os olhos para que não vejam mais os

fantasmas, as mágoas, os desacertos, as dores, as ilusões, tudo em nome do ―amor

tranqüilo‖, que veremos num outro poema: ―Noivado‖.

Nessa composição, visivelmente dirigida a Carolina (noiva do poeta à época),

Machado busca a grande celebração: a sacralização do amor, único sentimento capaz de

transcender a vida, e de se lançar à eternidade. É interessante como o poema ficou

esquecido pelos estudiosos de Machado, sendo essa a mais bela composição machadiana

relacionada à esposa, juntamente com o soneto ―A Carolina‖, publicado após a morte da

companheira. Podemos dizer que ambos os poemas se complementam ao exaltar o amor, a

um só tempo, de maneira intensa e serena, apontando para a hipótese da nova união após a

67

ASSIS.T.P. p.105.

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morte. Também o epíteto ―querida‖, usado nas cartas dirigidas a Carolina, reaparece nos

dois poemas, logo nos primeiros versos.

Em ―Noivado‖, temos a imagem do altar que se remete à cerimônia matrimonial. O

pôr-do-sol anuncia o término do dia, enquanto a tarde traz o véu como de noiva, marcando

a definitiva separação entre o diurno e o noturno. É a noite que vai abrigar os noivos sob a

luz da lua, enquanto a ―flor querida‖ ajeita o cálix para receber o ―orvalho‖.

Os elementos apontam, metaforicamente, para a união amorosa do casal, destacando-

se a ―flor‖ como a representação do feminino, enquanto o ―orvalho‖ adquire as conotações

do masculino. Toda a natureza é reflexo dos anseios dos noivos, e cada movimento indica

um sentimento da alma de cada um, ou uma ação desejada por ambos. As manifestações

naturais são encadeadas aos pares, sempre evocando o masculino e o feminino: sol/terra,

vento/ folhas, flor/orvalho.

Vês, Querida, o horizonte ardendo em chamas?

Além destes outeiros

Vai descambando o sol, e à terra envia

Os derradeiros raios;

A tarde, como noiva que enrubesce,

Traz no rosto um véu mole e transparente;

No fundo azul a estrela do poente

Já tímida aparece.

Como um bafo suavíssimo da noite,

Vem sussurrando o vento,

As árvores agita e imprime às folhas

O beijo sonolento.

A flor ajeita o cálix: cedo espera

O orvalho, e entanto exala o doce aroma;

Do leito do oriente a noite assoma;

Como uma sombra austera.

Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos,

Vem, minha flor querida;

Vem contemplar o céu, página santa

Que amor a ler convida;

Da tua solidão rompe as cadeias;

Desce do teu sombrio e mudo asilo;

Encontrarás aqui o amor tranqüilo...

Que esperas que receias?68

68

ASSIS. O.C. Vol. III. p. 45

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100

O último verso parece uma resposta às inquietações esboçadas na carta dirigida à

noiva: ―A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com

alegria, e estou que saberei desempenhar este agradável encargo. Olha, querida, também eu

tenho pressentimento acerca da mª felicidade; mas o que é isto senão o justo receio de quem

não foi ainda completamente feliz?69

O poeta complementa a pergunta, afirmando que a noiva não precisava temer o futuro,

pois o casamento eternizaria o amor, fazendo-os passar ―do sol da terra‖ ao ―sol da

eternidade‖. Observa-se também o uso das metáforas religiosas para esboçar a união

amorosa, e não para demonstrar uma devoção, no sentido mais estrito.

Olha o templo de Deus, pomposo e grande;

Lá no horizonte oposto

A lua, como lâmpada, já surge

A alumiar teu rosto;

Os círios vão arder no altar sagrado,

Estrelinhas do céu que um anjo ascende;

Olha como de bálsamo recende

A c‘roa do noivado.

Irão buscar-te em meio do caminho

As minhas esperanças;

E voltarão contigo, entrelaçadas

Nas tuas longas tranças;

No entanto eu preparei teu leito à sombra

Do limoeiro em flor; colhi contente

Folhas com que alastrei o solo ardente

De verde e mole alfombra.

Pelas sombras do tempo arrebatados,

Até a morte iremos,

Soltos ao longo do baixel da vida

Os esquecidos remos.

Firmes, entre o fragor da tempestade,

Gozaremos o bem que amor encerra,

Passaremos assim do sol da terra

Ao sol da eternidade...70

O epílogo do poema lembra, em muitos aspectos, mais um trecho da correspondência

dos noivos: ―Depois... depois, querida, ganharemos o mundo, porque só é verdadeiramente

69

Idem. p. 1.029. 70

Idem. p. 48.

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101

senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das ambições estéreis. Estamos

ambos neste caso; amamo-nos; e eu vivo e morro por ti71

‖. O ―ganharemos o mundo‖, não

se aplica à conquista material, mas tem a mesma conotação do ―soltar os remos do baixel

da vida‖ diante da maior das tempestades. Que importam as ambições mundanas ou o

naufrágio, se dentro do barco, ou um num recanto da terra, ―cabe o mundo inteiro‖? O amor

tranqüilo se alojaria nesse espaço – restrito e imenso – onde tudo o que é essencial se

multiplica por dois.

A sombra do ―limoeiro em flor‖ parece remeter à ―sombra da macieira‖, presente nos

Cânticos: ―Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens;

desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento. O seu fruto é muitíssimo doce ao

meu paladar.‖ (Cânticos 2:3). Só que o dulçor de um fruto não se coaduna ao azedume do

outro. Qual seria, portanto, o motivo da escolha do poeta, nessa composição, ao remeter-se

à ―sombra do limoeiro em flor‖?

Pode-se dizer que a imagem de um limoeiro em flor é belíssima, ainda mais porque,

sendo a árvore tão singela e com frutos desprovidos de doçura, o espetáculo da floração

resume todo o encanto que essa árvore pode reunir.

Por outro lado, a temática do poema se assemelha, em muitos aspectos, à de um poeta

português chamado Joaquim Pinto Ribeiro Júnior, importante escritor do Porto, cidade da

noiva de Machado. A composição de Ribeiro Júnior a que nos referimos intitula-se ―A

noiva‖, e faz parte do livro Lágrimas e flores, publicado em Portugal em 1856, no mesmo

ano e na mesma tipografia em que Faustino Xavier publicara suas Poesias. É muito

provável que o poeta fizesse parte do círculo de literatos que freqüentava a casa dos

Novaes, no Porto, já que também era um dos colaboradores de A Grinalda.

A noiva

A festa é finda: alonga-se

Das turbas o rumor,

Expira em cada sírio

Um instante d‘amor;

Ficou só virgem tímida

71

Em recente pesquisa do acadêmico Sérgio Paulo Rouanet dos originais das cartas machadianas, descobriu-

se um equívoco na transcrição: no lugar de ―queimaremos o mundo‖, como consta na edição da Nova

Aguilar, o escritor havia escrito: ―ganharemos o mundo‖.

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Que, envolta em branco véu,

Tinha a beleza mágica

D‘essas visões do céu;

(...)

E bela inocência

Ouvindo a extrema voz,

A noiva sobre o tálamo

Grinalda e véu depôs;

Tira os pingentes lúcidos,

E, entre tanto esplendor,

Só viu nos seios úmida

Da laranjeira a flor;

―Porque, diz, entre o júbilo

Que hoje me doa o céu,

Um pensamento lúgubre

No coração nasceu?

No alvor eu disse as mágoas:

―Ide, feliz serei!‖

Mal cobre inda os tugúrios

A noite, e já chorei!

Ai, qual grinalda fúnebre,

A c‘roa nupcial

Faz nossa imagem súbito

Morrer no chão natal;

Esquece-a o lago límpido,

Qual da andorinha azul

A sombra vã se prófuga

Passou, buscando o sul!

Ó maternas carícias,

Risos, fala d‘amor

À sombra odora e plácida

Do limoeiro em flor:

Saudosas noites límpidas

D‘ inocente folgar,

Cumpria pois tão rápidas

Ver-vos assim voar?

Faz da ventura a árvore

Uma só flor abrir

E um astro cai no túmulo

Quando o outro vai surgir!‖

Dizia e o alto pórtico,

Rico d‘áureo lavor,

Já vacilante e pálida

Vê o esposo transpor. 72

72

RIBEIRO JR , Joaquim Pinto. Lágrimas e flores. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1856. p.

166-169

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O poeta portuense trata do desencontro do Sol e da Lua: quando um deles desponta, o

outro descamba no horizonte, e vice-versa. A união, portanto, é impossível, e resulta numa

eterna insatisfação. A noiva fica obrigada a depor a grinalda no altar, já que o noivo a

abandona. Entretanto, o suplício não finda, pois, pálida e vacilante, vê o amado retornar,

mas já então é chegada sua hora de partir.

Desconstruindo essa imagem de desencontro, Machado homenageia Carolina com o

poema ―Noivado‖, como se mostrasse uma nova versão da ―Noiva‖; apenas nesse caso, o

encontro do casal é completo e não se realiza unicamente no plano terreno, mas também no

celestial, ultrapassando a questão limítrofe do tempo. Contudo, a bela imagem de Ribeiro

Júnior, a ―sombra do limoeiro em flor‖, é mantida, assim como a imagem da noite, em que

se tem o ―inocente folgar‖.

Arte e vida seguem numa harmoniosa confluência na obra machadiana do período. É

difícil separá-las sem dano para a compreensão do todo de sua poética, e decerto torna-se

necessário muito cuidado para não esvaziá-la de sentido, conduzindo-a somente pela

vertente biográfica. Há certa reserva por parte da crítica quando se fala dos aspectos

pessoais na obra de um autor. Onde acabaria o homem e começaria o escritor?

Ao contrário de diminuir o valor de uma obra, o perfil intimista desse Machado jovem

o particulariza, principalmente porque ele não expõe abertamente o contexto biográfico,

mas o dissimula sob o véu das metáforas. Vivendo no período intimista por excelência,

época do romantismo mais exacerbado, não havia motivo para o poeta encobrir as marcas

pessoais do seu texto. No entanto, há sempre um recato em exteriorizar-se, uma contenção

nos sentimentos. São as referências de leitura e o confronto entre textos que nos permitem

estabelecer conexões entre arte e vida na obra machadiana, partindo da leitura e da

interpretação dos poetas clássicos que também usaram a realidade como inspiração da obra:

Dante, Ovídio e Goethe, para citar alguns exemplos aqui analisados.

Apesar de o alvo de nosso estudo ser o poeta, principalmente em início de carreira,

não se pode desprezar a matéria biográfica que serve de objeto para a composição de textos

da maturidade. A idéia de ―eternidade‖, de um amor além da existência terrena, permanece

em outros momentos em que Machado se refere à presença de Carolina em sua vida e, por

que não dizer, também em sua obra.

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O poema dedicado à esposa em 1904, após sua morte, é um canto de lamento que

relembra os versos de ―Alma minha gentil que te partiste‖ de Camões. ―A Carolina‖ é um

dos mais conhecidos poemas de Machado e refaz a trajetória dos dias idos e vividos do

casal do Cosme Velho.

Novamente, quando se trata da separação entre ambos, tudo não passa de um estágio

provisório: ―Trago-te flores, restos arrancados/ da terra que nos viu passar unidos/ e ora

mortos nos deixa e separados‖. Portanto, a terra é o único empecilho para a união. Tão logo

o vínculo material se rompa, os dois poderão se reencontrar em outro plano, pois, se a

morte dela é fato consumado, o poeta também jaz sem vida diante dessa ausência (no verso

―ora mortos, nos deixa...‖ o uso do plural indica a morte de ambos, uma real, e outra

metafórica). Essa atitude reforça a idéia das ―almas gêmeas‖ de que tratamos anteriormente,

ou seja, ―mortos e separados‖, como no mito do andrógino platônico.

Ao contrário do que se afirma sobre a distância entre o escritor da juventude e o da

maturidade, há muito mais coisas entre o menino e o homem do que até agora se notou. O

estilo se apurou com o tempo, o rigor crítico se intensificou, os conhecimentos tornaram-se

mais consistentes, não há dúvida em relação a tudo isso. No entanto, muitas temáticas

seriam trabalhadas por toda a vida, incluindo a questão sobre a eternidade do amor, não

aquele ilustrado em livros, mas o que passava pela experiência pessoal.

Se um dos motivos do livro Falenas é a presença de Carolina, no fim da vida de

Machado a grande inspiração será sua ausência, ou seja, o canto de tristeza pela morte da

esposa. Nesse caso, o Memorial de Aires se configura como obra biográfica, algo

ficcionalizada, como não poderia deixar de ser, dissimulada no discurso autoral. No

entanto, vida e obra se fundem quando comparamos trechos de uma carta de Machado com

falas de Aires no Memorial. Em carta ao amigo Joaquim Nabuco, em 20 de novembro de

1904, assim Machado relataria o falecimento da esposa:

Foi-se a melhor parte de minha vida, e aqui estou só. Note que a solidão

não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com

ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de

casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília

aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer

antes dela, o que seria um grande favor. Aqui me fico, por ora na mesma

casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me

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lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento,

não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.73

Ainda que acusem Machado de cético, a carta revela uma crença no amor, numa

existência além do plano material. Talvez, pelo viés literário, Machado tenha construído

uma idéia de eternidade, um Paraíso como o que Dante alcança pelas mãos de Beatriz. O

Machado de cabelos brancos não desmentia os versos do jovem de outrora, mas reafirmava

o pensamento contido nos ―Versos a Corina‖: ―Essa é a glória que fica, eleva, honra e

consola‖, a glória do amor, que redime o homem, é o que o eleva para além da fama

literária. Também daria continuidade às idéias poetizadas em ―Noivado‖ ou esboçada nas

cartas anteriores ao casamento.

O Memorial de Aires, último romance de Machado, apesar de alguns críticos

resistirem à idéia de autobiografia, incontestavelmente, mostra indícios de que o escritor

desejava prestar à esposa a última homenagem. O próprio Mário de Alencar revelaria a

confidência do amigo de que Carmo era a representação de Carolina74

, o que também

podemos comprovar pela leitura de cartas do período. Mario chegaria a declarar que ―a

alma religiosa de Machado de Assis achara, enfim, na dor da saudade a forma de uma

religião.(...) Vivia no seu coração a imagem da companheira morta e era natural que ela

vivesse também na sua obra literária‖.75

Há um trecho do Memorial em que Aires faz à irmã uma declaração de teor

semelhante à confissão feita pelo escritor na carta a Nabuco, acima transcrita, e traz

novamente o pensamento que aqui referimos sobre a transcendência do amor.

(12 de janeiro)

Na conversa de anteontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a

minha mulher, que lá está enterrada em Viena. Pela segunda vez falou-

me em transportá-la para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que

estimaria muito estar perto dela, mas que, em minha opinião, os mortos

ficam bem onde caem; redargüiu-me que estão muito melhor com os

seus.

- Quando eu morrer, irei para onde ela estiver, no outro mundo, e ela virá

ao meu encontro, disse eu.76

73

ASSIS. O.C. Op. cit. p. 1.071. 74

ALENCAR, Mario de. Alguns escritos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa; MEC, 1995. p. 40. 75

Idem. p. 38. 76

ASSIS. O.C. vol.1. p. 1.099.

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Todo o diário de Aires gira em torno da viuvez, do casamento, da fidelidade e da

vida conjugal. Há duas pontas da vida representadas pelo antes e depois de Machado: tanto

Aguiar quanto Aires são seus auter egos, o primeiro representando o homem casado que

suporta as dores e perdas da vida ao lado da esposa fiel e dedicada; o outro é o viúvo que

realiza a leitura dos dias idos e vividos, buscando resgatar o teor da existência em cada uma

das ações e dos sentimentos humanos.

Atando as duas pontas, o casal Tristão e Fidélia são representações perfeitas da

união que rompe com todos os obstáculos terrenos - ao contrário de Félix e Lívia, ou de

Bento e Capitu, onde há o desconcerto da união, já que o ciúme faz destoar a sinfonia dos

apaixonados.

Tristão, até no nome, é o contrário de Félix de Ressurreição. Nem mesmo a

memória do marido de Fidélia, ou de qualquer outro homem, pôde interromper seu

propósito de desposar a jovem viúva. Fidélia, por sua vez, ao contrário de Lívia, não teme

ser feliz pela segunda vez, quebrando os votos antigos ao contrair novo matrimônio.

Também Machado e Carolina precisaram romper as decepções amorosas do passado,

apostando que ambos poderiam ser felizes juntos.

Até a irmã de Aires, Rita, encontra correspondência real na pessoa de D. Rita

Calazans, senhora que abrigou os Novaes no Brasil e que serviu de intermediadora para

convencer a família de Carolina, que se opunha ao casamento da moça.

Se no Dom Casmurro a ópera não é eufônica, em Memorial a música vai com o

texto, como uma ópera de Wagner. Isso porque o músico alemão rompeu com o tradicional

conflito entre músicos e libretistas, ao escrever os próprios libretos, de maneira que se

casassem perfeitamente à música que compunha.

Sem os empecilhos e disputas, comuns nas narrativas machadianas, o ―amor

conjugal‖ finalmente é tema concretizado, fazendo com que o espaço da casa, das alegrias

particulares, se sobreponha aos acontecimentos externos. O universo de Carmo e Aguiar se

restringe ao espaço íntimo da família, ao ―recanto‖ onde o mundo inteiro cabe. Alegrias ou

dores, tudo é submetido à partilha diária dos afetos mútuos.

À solidão daqueles, se contrapõe a juventude de Fidélia e de Tristão. O casal, na

verdade, reproduz o contexto de duas óperas: o Fidélio de Beethoven, e o Tristão e Isolda

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de Wagner. Enquanto a primeira peça clássica possui como subtítulo o ―Amor conjugal‖,

mostrando a luta da jovem Leonore pela liberdade do esposo Florestan, preso injustamente;

Tristão e Isolda revela o amor que resiste aos empecilhos terrenos, sendo plenamente

realizável apenas num outro plano. A morte de ambos é a única forma de estarem juntos

para sempre. Louvor ao amor conjugal e superação dos obstáculos existenciais são duas

temáticas inspiradas na situação de vida de Machado antes e depois daquele momento.

O último romance machadiano retomaria alguns dos aspectos tratados na obra da

juventude, e o sofrimento como tema permaneceria, só que atenuado pelo amor que

transcende e que eleva a obra. Memorial de Aires seria um novo retorno à terra da

Alemanha em busca da cura, só que, desta vez, pelas mãos de Wagner e Beethoven, como

se Machado compusesse sua última sinfonia, assim como o ―Prelúdio‖ havia sido a canção

inicial.

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2- OCIDENTAIS: DO SEIO DE QUIMERA AO REINO DE PANDORA

“Dois horizontes fecham nossa vida...”

(Machado de Assis)

“Que sonhas, poeta? do alto, a quem acenas?

(Goethe – “Fausto”)

Única obra poética da maturidade, Ocidentais merece nossa particular atenção não

apenas por ser valorizada pela crítica, mas por se tratar da continuação do diálogo que

acompanhamos desde os primeiros versos - de um Machado ainda desconhecido no

ambiente literário -, passando por Crisálidas e Falenas, seus dois primeiros livros de

poesia.

A exclusão de Americanas desse estudo pode gerar alguma estranheza, mas se

justifica pelo fato de seus poemas, em particular, seguirem uma temática distinta da dos

outros três aqui estudados. Em nossa pesquisa de mestrado, a obra foi analisada em

contraponto com os textos de dois grandes escritores indianistas: Gonçalves Dias e José de

Alencar, assim como de outros autores que elegeram o índio como tema, incluindo Basílio

da Gama, autor de O Uraguai.

Basicamente, interessa-nos o diálogo de Machado com seus mestres e o percurso da

musa em sua obra, assim com a presença da evocação clássica na configuração do poético.

Se, por um lado, o poeta rompia com o padrão anterior, mais sensorial e emotivo, por outro,

mantinha a fidelidade aos autores que o inspiraram na juventude, assim como buscava

retomar certas imagens de temática mitológica.

Embora a musa não apareça nomeada, o poeta abre espaço a personagens clássicos

como Prometeu e Pandora - Homem e Natureza –, só que não abordará a relação entre

ambos de maneira amistosa ou equilibrada. A tensão entre os dois será o principal foco da

poesia de Ocidentais.

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A montanha, lugar de evocação da musa, comparece, agora, tanto no começo do

livro, com ―O desfecho‖, onde o autor retoma o mito de Prometeu atado ao Cáucaso;

quanto no último poema, ―No alto‖, quando, enfim, chega ao topo da montanha. Sem poder

contar com a musa, nem com o celeste Ariel, resta-lhe a ―figura má‖ que o fará descer pela

outra vertente da montanha. O ―terreno‖, neste caso, contrapõe-se ao ―etéreo‖ e torna-se a

derradeira morada do poeta, junto aos homens e à realidade prosaica. Perdidas as ilusões,

espedaçada a lira, restava-lhe a prosa chã do cotidiano.

Comecemos pelo título do livro, que, segundo Eugênio Gomes, seria um

contraponto à obra As orientais, de Victor Hugo. Decerto não se trata de imitação, mas de

referência, tendo em vista a fama da obra hugoana, que certamente não teria passado

despercebida pela crítica contemporânea a Machado. Publicada em 1829, As orientais

influenciaram uma vasta geração de poetas, com paisagens exóticas e poemas marcados

pela cultura oriental, principalmente árabe, como uma espécie de reinvenção das aventuras

e do cenário das Mil e uma noites.

Machado de Assis, antes da publicação de Ocidentais, faria referência à obra de

Hugo em algumas crônicas, que são importantes fontes para entendermos a escolha do

título da obra machadiana. Antes, porém, convém relembrar que a epígrafe de um dos

poemas das Crisálidas já havia sido retirada de Hugo: ―Tout passe, tout fuit‖. Esses versos

hugoanos fazem parte do poema ―Les Djinns‖, de As orientais.

On doute

La nuit

L‘ écoute: -

Tout fuit,

Tout passe;

L‘ espace

Efface

Le bruit.77

O poema de Hugo traz como citação um trecho do Canto V do ―Inferno‖, de Dante,

episódio que conta a história de Paolo e Francesca, amantes que, punidos pelo adultério,

seguem unidos para o eterno suplício. Os ―djins‖ orientais também seriam criaturas duplas:

sempre aos pares, inspirariam o homem ao bem e ao mal.

77

HUGO, Victor. Les orientales.Paris: Librarie de L. Hachette, 1859. p.107

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Sobre esses versos de Hugo, que aparecem na última estrofe de ―Les Djinns‖,

Machado falaria em uma crônica do Diário do Rio de Janeiro, mais precisamente em

março de 1865; portanto, no ano seguinte à publicação das Crisálidas. Tanto na epígrafe de

―Última folha‖, quanto na crônica, Machado inverteria os versos do poeta francês,

originariamente: ―Tout fuit, tout passe‖. Talvez o equívoco machadiano aponte para o fato

de o escritor tê-los citado apenas de memória, reconstituindo-os a partir das leituras da

mocidade.

Na crônica, o escritor ressalta alguns detalhes do poema de Hugo, como, por

exemplo, a metrificação. O escritor francês aplica um curioso recurso em ―Les Djinns‖, de

gradual acréscimo de sílabas métricas, chegando ao clímax do poema com os decassílabos.

Partindo desse ápice, o poeta, até o final do poema, adotaria um processo de decréscimo de

sílabas. A visão dos ―djins‖ finalmente se esvai com os versos dissílabos, compostos por

palavras curtas da língua francesa.

(...) lembramos daquela formosa oriental de Victor Hugo, ―Os djins‖.

Apostamos que os leitores, não só se estão recordando do assunto da

poesia, como até da forma métrica, que varia conforme se aproximam os

―djins‖, e cresce desde o verso de duas sílabas

Murs , ville

Et port,

Até o verso de dez sílabas, indo depois a decrescer, a decrescer, até

chegar à última estrofe. Hoje pode-se dizer do convênio [da paz] , como

dos djins orientais:

Tout passe

Tout fuit; 78

O texto de Machado é revelador, pois demonstra que, na escrita das Crisálidas, o

poeta já não tomava unicamente como modelo o romantismo hugoano, apesar de empregar

algumas temáticas comuns ao Romantismo. De certa forma, o escritor foi moldado pela

escola romântica, sentia-se inclinado a seus modelos, porém tinha consciência de que essa

estética estava relacionada ao campo das ilusões, que não lhe servia mais. Havia o apelo da

realidade, sempre adversa, principalmente após a perda das fantasias de juventude, que

cederam espaço às reflexões mais sólidas e consistentes da idade madura. O ―oriente‖, tal

78

ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. 2º vol. Rio de Janeiro; São Paulo: Livro do Mês S.A, 1962.

p. 332.

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como o cantado por Hugo, já havia se esfacelado. Ficara, no entanto, a paisagem dos

versos, as imagens caras ao poeta, a engenhosidade da imaginação criativa, enfim, um

pouco do gênio romântico.

É essencial relembrarmos da terceira parte de ―Versos a Corina‖, em que o eu-lírico

se despede de sua ―infância poética‖, quando havia sido aleitado pela ―Quimera‖

romântica. A debandada das ilusões seria motivo suficiente para ceder espaço às agonias e

dores da humanidade, semeadas pela vida afora pelas mãos de uma Natureza contraditória,

e ceifadas no devido tempo com um definitivo golpe de misericórdia.

Na leitura do poema ―Versos a Corina‖, observamos que, de certa forma, as

―nuvens flamejantes‖ já pareciam cobrir o horizonte do poeta, como indício da mudança de

paradigma: no lugar da bondosa e amável mãe-Quimera, surgia uma outra Natureza - mãe e

inimiga.

Quando voarem minhas esperanças

Como um bando de pombas fugitivas;

E destas ilusões doces e vivas

Só me restarem pálidas lembranças;

E abandonar-me a minha mãe Quimera,

Que me aleitou aos seios abundantes;

E vierem as nuvens flamejantes

Encher o céu de minha primavera;

No poema das Crisálidas o escritor ainda definiria o Romantismo como a ―mãe

Quimera,/ Que me aleitou aos seios abundantes‖, do mesmo modo que trataria, numa

crônica de 1892, a tendência que o acompanhara na juventude de ―leite romântico, licor de

Granada‖. Granada, aliás, era a cidade de Juana, a amada do ―Sultão Achmet‖, a quem

Hugo dirigiu os famosos versos:

A Juana La Grenadine,

Qui toujours chante et badine,

Sultan Achmet dit un jour :

- Je donnerais sans retour

Mon royaume pour Médine,

Médine pour ton amour.79

79

HUGO. Op.cit. p. 108.

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A crônica machadiana de que tratamos faz parte de um conjunto de reflexões de A

Semana, em que Machado se vale de alguns poemas de As orientais para refletir sobre os

assuntos de seu tempo. Destacava, assim, determinadas questões que envolviam as

reformas no mundo oriental sob os influxos do Ocidente. Em 25 de dezembro de 1892,

tendo como assunto o assassinato de cinco odaliscas em Constantinopla, o cronista abriria

sua coluna com a seguinte afirmação:

É desenganar. Gente que mamou leite romântico pode meter o dente no

rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o

melhor pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu leite

romântico! Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem

novamente as figuras aéreas que outrora vi ante meus olhos turvos.(...)

Cinco odaliscas! Murmura esse nome, leitor: faze escorrer da boca essas

quatro sílabas de mel, e lambe depois os beiços, ladrão. Pela minha parte,

achei-me, em espírito, diante de cinco lindas mulheres, com o véu

transparente no rosto, as calças largas e os pés metidos nas chinelas de

marroquim amarelo, - babuchas, que é o próprio nome. Todas as orientais

de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e de sândalo.80

Apesar do tom jocoso da crônica, se usarmos como base de nossas reflexões o

poema de Crisálidas, veremos que estão muito próximas as imagens da Quimera que aleita

o poeta em seus seios, e a do ―leite romântico‖, ou ―licor de Granada‖, de que fala o

cronista.

A referência a Goethe, em especial, parece ser uma retomada das ―inquietas

sombras‖ da Dedicatória do Fausto, que o narrador machadiano também evocaria no Dom

Casmurro: ―Tornai, vós, trêmulas visões, que outrora/ Surgiram já à lânguida retina./ Tenta

reter-vos minha musa agora?/ Inda minha alma a essa ilusão se inclina?‖.81

Assim como as

visões surgiam diante dos olhos do ―velho Goethe‖, tematizando o retorno das ilusões, de

semelhante modo Machado retomaria muitas das questões do Romantismo em sua lírica,

ainda que em Ocidentais apresentasse um ―eu‖ cindido e contraditório.

Outra referência a Goethe vem embutida na imagem da ―mãe Quimera‖ que aleita o

poeta em seus ―seios abundantes‖, presente no poema, e que, indiretamente, seria retomada

no trecho da crônica de 1892.

80

ASSIS. O.C. Op. cit. Vol III. p. 563-564 81

GOETHE. J.W. Fausto: uma tragédia. 1ª parte. (Trad. Jenny Klabin Segall). São Paulo: Ed. 34, 2004. p.29.

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Há uma parte do Fausto em que percebemos certa similitude com a imagem

machadiana: trata-se da fala de Mefistófeles no ―Quarto de trabalho‖, tentando convencer

Fausto a fazer o pacto. O personagem emprega a expressão: ―seio da sapiência‖, para

designar a fonte onde Fausto deve buscar alimento, comparando-a ao ―mátrio leite‖,

rejeitado pela criança de início, mas que o hábito a faz apreciar: ―Com o hábito é que vem o

apreço;/ Assim recusa o mátrio leite/ a criancinha no começo/ Mas chupa-o em breve com

deleite./Eis como ao seio da sapiência, se aguçará vossa apetência‖82

. A Sapiência,

portanto, sustentaria Fausto com o leite do seu seio, assim como a Quimera machadiana

estava pronta a lhe oferecer, outrora, ―o leite romântico‖.

O ―licor de Granada‖, por sua vez, é uma alusão clara a Hugo e à sua obra, repleta

de paisagens orientais, incluindo um poema intitulado ―Granada‖ em homenagem à bela

cidade espanhola de fortes traços árabes. O escritor, como se pode perceber, admitiria as

influências românticas do início de sua carreira, mas não as abandonaria de todo na

maturidade. Continuamente dialogaria com os grandes escritores do Romantismo, ainda

que atenuasse muitas de suas convicções.

Em 26 de fevereiro de 1893, alguns meses depois da crônica acima transcrita,

Machado torna a convocar os versos de As orientais numa crônica para provar que todo o

alvoroço de uma época se esvaía, bem como o furor das batalhas do passado, as lutas

religiosas entre turcos e cristãos, deixando espaço unicamente para o que ele chama

ironicamente de ―conflito das lealdades‖.

Alá cumprimentou o Senhor, Maomé a Cristo. Tudo o que era contraste,

fez-se harmonia, o oposto ajustou-se ao oposto. Ondas e ondas de sangue

custou o conflito de dous livros. A cruz e o crescente levaram atrás de si

milhares e milhares de homens. Houve cóleras grandes. Houve também

grandes e pequenos poetas que cantaram os feitos e os sentimentos

evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa. Um deles

dedilhou no alaúde romântico a história daquele sultão que requestava

uma cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:

Je donnerais sans retour

Mon royaume pour Médine

Médine pour ton amour.

- Rei sublime, faze-te primeiramente cristão, respondeu a bela Juana;

danado é o prazer que uma mulher pode achar nos braços de um

incrédulo.

82

Idem. p. 185.

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114

Tempos de Granada! Já não é preciso que os sultões se cristianizem.

Agora é a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares

diplomáticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou morre

para celebrar a festa de um grande incrédulo do Corão. Onde vão as

guerras de outrora? Onde param os alfanges tintos de sangue cristão?

Naturalmente estão com as espadas tintas de sangue muçulmano. Vivam

os vivos!83

Nesse caso, o cronista relacionaria Granada especificamente ao poema ―Sultão

Achmet‖ de As orientais, como contraponto ao pensamento cristão do Ocidente. Citando

os versos de Hugo, Machado trataria ironicamente de uma nova tendência, não mais fixada

no furor das lutas, das grandes paixões, do matar ou morrer pelo ideal. Substituindo esse

mundo oriental, emergia a fusão diplomática do Ocidente, que assimilaria as oposições de

modo pacífico, com o único objetivo de sobrepor-se às vontades, tornando-se uma verdade

hegemônica, universal.

Enfim, o que é igual não se combate, nem é objeto da oposição, apenas se solidifica

no poder. À aparente uniformidade do mundo Ocidental, contrapõe-se a diversidade do

Oriental. Ocorre que a eliminação da parte oposta não se impõe através dos conflitos

armados, mas pela assimilação das idéias, pelo sincretismo, que a tudo reúne ao redor de si,

apenas para garantir a sua permanência. Seria uma eliminação silenciosa, na verdade, e

dissimulada sob aparência de um discurso de pacificação. No lugar de guerras, quando os

inimigos põem-se frente a frente sem maquiar as reais intenções, os acordos diplomáticos

seriam uma cruel máscara que, sob o signo da lealdade, embutiam interesses materiais.

Machado voltaria a falar da obra hugoana em 21 de fevereiro de 1897, novamente

nas páginas de A semana, tratando do livro como um todo e analisando-lhe as temáticas.

Merece destaque o trecho em que o escritor fala da recepção crítica de As orientais,

principalmente pelos poetas da sua geração: apesar de ser uma obra publicada trinta anos

antes, continuavam fiéis à proposta hugoana.

Assim como os versos de Hugo iam decrescendo na métrica até chegarem a duas

sílabas, na epígrafe de ―Última folha‖ o poeta parece se despedir das influências românticas

ao resumir o sentimento de outrora na epígrafe: ―tudo passa, tudo foge‖. De igual modo, na

trilha dessa observação, a paixão pelo ―leite romântico‖ também vai declinando no

83

ASSIS. O.C. vol. 3. Op. cit. p. 576.

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percurso poético de Machado, até sobrarem apenas os dois versos hugoanos, resumo desse

processo: ―Tout fuit, tout passe‖.

Lembras-te, não? Se és do meu tempo não esqueceste que tu e eu, quando

expeitorávamos os primeiros versos que os rapazes trazem consigo, as

Orientais contavam já trinta anos e mais. Mas era por elas que ainda

aprendíamos poesia. Trazíamos de cor as páginas contemporâneas da

revolução helênica, e do bravo Canáris, queimador de navios, e da batalha

de Navarino, e da marcha turca, e de toda aquela ressurreição de um país

antigo, meio cristão. En Grece! cantava o poeta, pedindo que lhe selassem

o cavalo e lhe dessem a espada, que queria partir já, já, contra os turcos;

mas a lira mudava subitamente de tom, e o poeta perguntava a si mesmo

quem era ele. Confessava então não ser mais que uma folha que o vento

leva, nem amar outra cousa mais que as estrelas e a lua. Tão pouca cousa

não era nos demais versos em que cantava os heróis gregos, mas Hugo

lembrava-se de Byron... 84

Machado apreende a contradição poética do livro de Hugo ao mostrar que há um

desejo de captar o grandioso, o exótico, ao mesmo tempo em que se quer recorrer à

simplicidade, à paisagem comum a todos os poetas, apegando-se à própria realidade. A

lembrança de Byron seria um alerta para todos aqueles que desejavam viver o ideal no

plano real, extrapolando a mera inspiração poética para enfrentar, de fato, o campo de

batalha, como fizera o poeta inglês. Portanto, estava erguido o muro entre vida e realidade,

entre realização estética e idealização prática. Para tratar das questões subjetivas da alma

humana, o escritor precisaria partir de um plano objetivo, demandando um distanciamento

crítico.

Ainda sobre a questão oriental, discorrendo sobre o desmembramento da Turquia, o

cronista prosseguiria em suas reflexões acerca do Oriente, tecendo um retrato irônico das

relações de ―paz‖ impostas pelas alianças políticas, em detrimento da cultura e da soberania

do país: ―Os alfaiates levarão muito tempo a medir e cortar a bela fazenda turca para

compor o terno que a civilização ocidental tem de vestir: e, porque as medidas políticas

diferem das comuns, vê-lo-emos talvez brigar por dous centímetros‖.85

O mundo Ocidental, portanto, era a chave de tudo, a síntese da civilização:

assimilaria a cultura dos outros povos, dominaria os territórios, absorveria as diferenças e

os contrastes, em nome de uma paz destrutiva. O delírio de Brás é uma espécie de síntese

84

ASSIS. O.C. Op. cit, vol 3. p.766 85

Idem. p.734

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do pensamento humano, principalmente da utopia ocidental, que, buscando dominar uma

Natureza múltipla e imprevisível (capaz de gerar no seu âmago o bem e o mal), fomenta a

ilusão de que caminhamos para a evolução da espécie, para a unificação das diferenças e

para o tão desejado ―progresso‖ do pensamento humano e do homem em si.

De acordo com o discurso do defunto-autor no delírio, o mal maior que Pandora

nos legou, de todos os que sua lendária caixa pôde espalhar pelo universo, foi, sem dúvida,

a esperança, que sustenta a crença numa felicidade quimérica e aumenta a intensidade das

outras dores humanas.

Pensamos, nesse aspecto em especial, na afinidade entre a obra machadiana e a

filosofia de Schopenhauer. Em O mundo como vontade e representação, o filósofo

formularia a seguinte teoria: ―O desejo extingue-se, e torna-se incapaz de produzir a dor, se

não existe nenhuma esperança para lhe fornecer alimento‖. E se aprofundaria na questão,

estabelecendo a noção de que o sábio deve ter sangue-frio, para não se submeter às ilusões

da vida.

(...) toda alegria intensa é um erro, uma ilusão, porque o prazer do desejo

satisfeito não é de longa duração, e também porque todo o nosso bem, ou

toda a nossa felicidade, só nos é dado por um tempo, e como por acaso, e

pode, por conseguinte, ser-nos arrebatado num momento. Todas as nossas

dores vêm da perda de uma ilusão semelhante; deste modo os nossos bens

e os nossos males vêm todos de um conhecimento incompleto.‖86

A única certeza desse universo complexo e contraditório é a de que todas as coisas

estão fadadas à corrosão do tempo. A ―Quimera‖ machadiana, cantada na juventude,

assumia outros ares. Todo o ideal já estava consumido pela dura constatação da realidade, o

reinado era definitivamente de Pandora. No entanto, o saber filosófico não produziria uma

imunidade às dores humanas, ao contrário, o conforto que Brás busca na ciência, com a

invenção do emplastro, parece ser uma contestação do pensamento de Schopenhauer:

nenhum emplastro, nenhum saber pode isentar o homem das suas dores, nem fazê-lo atingir

um conhecimento completo de si mesmo ou dominar suas ilusões.

Essa é a tônica das Ocidentais: a civilização do Ocidente sob uma ótica literária, a

partir de uma filosofia pautada numa realidade em que o sofrimento assume o centro das

86

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Op. cit. p. 98.

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discussões, assim como reflete a condição humana, as ilusões da vida, a destruição pela

morte. Definitivamente a imagem que se tem da civilização ocidental é a de uma

humanidade cindida, entre razão e sentimento, entre interior e exterior, entre pensamento e

ação, entre forma e fundo.

Não há mais espaço para a utopia ou para o ideal, mas, contraditoriamente, ambos

constituem o princípio básico da existência humana. De certa forma, a imagem de Pandora

é uma contra-resposta às antigas aspirações poéticas do escritor delimitadas nos ―Versos a

Corina‖ a partir da concepção do poeta como ―pelicano do amor‖ que a si mesmo dilacera

em nome dos ideais. O que se constata é que o homem não tem domínio algum sobre sua

vontade, pelo contrário, há um poder que o domina e do qual não pode fugir, que aflige

tanto o corpo quanto o intelecto.

Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o

pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em

derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à

indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor

bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade

das cousas, atrás de uma figura nebulosa, esquiva, feita de retalhos, um

retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos

todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada

menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou

deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela

ria, com um escárnio, e sumia-se como uma ilusão.87

Partindo do conhecido trecho das Memórias póstumas, podemos confrontar duas

figuras: Quimera e Pandora. A primeira seria o ideal perseguido em vida, enquanto a

segunda representaria a terrível realidade, ainda que advinda de um delírio. Apesar de

Pandora conduzir Brás à montanha para admirar os séculos, como a ninfa no episódio da

―máquina do mundo‖ de Os lusíadas, a Natureza machadiana não é nenhuma Tétis a fazer

o Gama contemplar a grandeza dos feitos futuros, está antes para Satanás a conduzir Cristo

ao monte para oferecer-lhe as delícias do mundo, mediante uma total submissão: ―Tudo

isso te darei se, prostrado, me adorares‖.

No entanto, o que Brás observa no ―desfile dos séculos‖ é que a glória prometida

dos reinos do mundo não passa de fantasia: render-se a seus encantos é padecer por uma

87

ASSIS. O.C. vol.1. p. 523.

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glória inútil, por um bem que mão alguma pode reter para sempre, e que segue produzindo

misérias, reproduzindo fracassos, trocando continuamente de dono. A Pandora machadiana

vai além ao mostrar que rendição ou rebelião não fazem a mínima diferença. O suplício é

intrínseco ao homem, toda moeda que lhe vem à mão tem duas faces: bem e mal, flagelos e

delícias.

A Natureza na obra machadiana segue a mesma premissa apregoada pelo poeta

italiano Giacomo Leopardi, em seu poema ―La ginestra‖: ―È madre in parto ed in voler

matrigna./ Costei chiama inimica;‖88

O poeta italiano, um dos mestres de Machado,

endossaria também a Pandora machadiana – mãe e inimiga –, partidário de uma espécie de

filosofia poética que justificaria o sofrimento humano, assim como a constante luta pela

sobrevivência e a busca pela felicidade, através do eterno confronto entre homem e

natureza.

Idéia muito semelhante veríamos reproduzida no Romantismo alemão,

principalmente na obra de Goethe. A própria angústia de Werther não se resume no

sentimento que nutre por Carlota, mas ressoa no conflito que o sentimento produz em seu

interior. A mesma natureza que o havia inspirado a amar aparece revolta e o incita a

destruir a si mesmo. Uma das reflexões do romance-diário de Goethe muito se aproxima da

descrição da Pandora das Memórias póstumas, e da Natureza representada na obra de

Leopardi.

O que me consome o coração é essa força dominadora que se oculta na

totalidade da Natureza, e que nada produz que não destrua o que a rodeia,

e por fim a si mesma... E assim vagueio atormentado por aí. Céu, terra e

suas forças ativas em volta de mim! Nada vejo senão um monstro que

engole eternamente e eternamente volta a mastigar e engolir.89

Tudo leva a crer que Leopardi tenha se inspirado na obra goethiana para compor

―La ginestra‖, cujo título designa uma planta de belas flores douradas que cresce em

lugares desérticos ou arenosos. Seria o símbolo da beleza florescendo no ambiente mais

desfavorável, tanto que o poema de Leopardi receberia o subtítulo de ―Il fiore del deserto‖,

como um epíteto de resistência para definir a bela ―ginestra‖.

88

LEOPARDI, Giacomo. Poesie di Giacomo Leopardi. Torino: Società Editrice Italiana di M. Guigoni, 1857.

p. 170. 89

GOETHE. J.W. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2003. p. 80

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Além da idéia de Natureza adversa presente no Werther, temos a mesma imagem da

―ginestra‖ de Leopardi (giesta, em português), descrita no livro do escritor alemão como

símbolo da força da Natureza, manifesta na resistência de determinadas espécies, mesmo

diante das piores adversidades. Esse instinto de sobrevivência provoca grande impacto no

intelecto humano, ao mesmo tempo em que revela ao homem a sua fragilidade perante a

natureza que o cerca.

Quando o estridor e o bulício ao meu redor me faziam fixar a vista na

terra e no musgo que arranca o seu sustento da dura rocha e na giesta que

cresce ao longo da árida duna de areia... Ah! aí então a vida interior e

misteriosa que anima a Natureza, sempre ativa e potente, se desvelava

inteira para mim.90

No original alemão, Goethe usaria a palavra ―geniste‖ para designar a planta, o que,

certamente, pode ter influenciado a escrita de Leopardi, tanto na escolha do tema quanto na

do título de sua composição. A imagem da flor, cercada de fragilidade e beleza, resistindo

no terreno árido, resumiria a tônica da sobrevivência dos seres e mostraria a extensão do

poder da natureza, desafiando a compreensão humana. Até porque a frágil flor surge com

maior capacidade de resistir às oposições da natureza do que o próprio homem em sua

enganosa idéia de superioridade.

Na lírica machadiana encontraríamos dilema semelhante em ―Uma criatura‖. Poema

que fala de uma Natureza que devora inclusive aquilo que cria, que é a extensão de si

mesma, como vimos no trecho do Werther aqui transcrito.

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas,

Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;

E o mar, que se rasga à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

O que temos diante dos olhos é uma natureza convulsa e abismal, que reúne terra e

céu (vales e montanhas), indistintamente funde as antíteses, e devora a si mesma com uma

―fome insaciável‖. Goethe, no Werther, também falaria desse instinto destruidor: ―Um

90

Idem. p. 78.

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monstro que engole eternamente e, eternamente, volta a mastigar e engolir‖. Ao contrário

de eliminar-se, a destruição a faz reviver ainda mais intensa, como a fênix pronta a se

incendiar, para retornar inteiramente revigorada.

Encontramos esse princípio contraditório da Natureza também no Fausto de

Goethe. Como a Pandora machadiana que traz em sua bolsa os bens e os males,

Mefistófeles se autodefine como parte de uma Energia criadora que possui um objetivo

dúbio: ―Sou parte da Energia/ Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.‖91

A

mesma concepção ambígua encontraríamos no poema machadiano.

Pois essa criatura está em toda obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual modo o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Esse ―divino estatuto‖ - ou ―estatuto universal‖, como o designaria Machado no

delírio de Brás -, é observável a partir de um ponto de vista privilegiado: o alto da

montanha. Werther também subiria até a colina para admirar o espetáculo da natureza. A

subida ao monte, anábase poética, funciona como uma espécie de síntese do tempo e do

espaço, reunião do céu e da terra, onde o universo se reduz à expressão mínima, ao mesmo

tempo em que a visão se amplia ao máximo para lhe contemplar a grandeza. É o instante

supremo da revelação profética, como se o poeta pudesse compreender passado, presente e

futuro. No entanto, em vez de ser unicamente uma retomada do platonismo, que aponta o

alto como lugar de manifestação divina, o poeta se sente atordoado pela revelação.

O personagem goetheano seria inundado por dois sentimentos: atração, devido à

grandiosidade da revelação diante de seus olhos, que produz um momentâneo efeito de

poder; e retração, sentimento de impotência, que tanto o impede de interferir no fluxo da

natureza, quanto lhe dá a consciência de que esse fluxo também o domina e o arrasta

incondicionalmente com sua força destruidora.

91

GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 139.

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121

Como eu abraçava tudo aquilo no meu cálido coração e me sentia

deificado por aquela torrente que me trespassava, enquanto as majestosas

formas do mundo viviam e moviam-se em minha alma! Montanhas

ingentes me rodeavam, abismos profundos estendiam-se a meus pés, as

torrentes despenhavam-se para baixo, os rios fluíam sob meus olhos, mata

e montanha troavam; eu as via, todas essas forças inescrutáveis, atuarem e

criarem-se mutuamente, uma dentro da outra, nas profundezas da terra; e

logo por cima da terra e debaixo do céu, formigavam as inumeráveis raças

dos seres vivos; tudo, tudo povoado de mil formas diferentes; e depois os

homens, recolhidos em suas casinholas, confortando-se e iludindo-se uns

aos outros, reinando segundo seus princípios sobre o vasto universo!92

Ao contrário da clássica subida à montanha das musas para buscar inspiração, o

poeta moderno tem o dom visionário com que consegue englobar todos os tempos num

único espaço/tempo, espécie de ―redução dos séculos‖. A revelação, porém, ao acrescentar

um conhecimento sublime do sentido da vida, traz também a consciência da falibilidade do

homem: não há como equilibrar o exterior, muito menos o interior. Ainda que suba ao

monte ou dele desça, que adquira saberes e ciência, ou conheça toda a grandeza dos

sentimentos, o homem não consegue dominar, ou sequer conhecer, sua própria natureza.

Novamente, encontramos em Schopenhauer a definição de sujeito que se aproxima

desse ponto de vista, existente na obra machadiana e no pensamento de outros poetas:

Mas o próprio sujeito, o princípio que conhece sem ser conhecido, não cai

sob estas condições visto que é sempre pressuposto por elas

implicitamente. Não se lhe pode aplicar nem a pluralidade, nem a

categoria oposta, a unidade. Portanto, nós não conhecemos nunca o

sujeito; é ele que conhece em toda parte em que há conhecimento.93

Há alguns princípios filosóficos na obra de Schopenhauer adquiridos através das

leituras do Rig-Veda, segundo ele mesmo afirma. Por exemplo, no que concerne à idéia de

mundo, o filósofo parte de um pensamento oriental (da sabedoria hindu), segundo o qual

―Maya‖ seria o véu da ilusão ―que ao cobrir os olhos dos mortais, lhes faz ver um mundo

que não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho‖.94

92

Idem. Ibidem. 93

SCHOPENHAUER. Op.cit. p. 11. 94

Idem. p.14.

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Também no ―Prólogo do Teatro‖ do Fausto, de Goethe, a fala do ―Poeta‖

demonstra uma nostalgia da juventude, quando as ilusões ainda eram possíveis,

descrevendo um mundo de sonhos, como o de ―Maya‖, só que o Véu, neste caso, oculta

todos os males.

Pois restitui-me os tempos santos,

Em que me formava eu, ainda,

Em que um tesouro de áureos cantos

Da alma me fluía em fronte infinda,

Do mundo um véu cobria os males, Milagres a alva prometia,

Em que mil flores eu colhia

Que enchiam com abundância os vales.

Nada tinha e o bastante me era,

O anelo da verdade e o gosto da quimera.

Sim! Restitui-me o flâmeo ardor,

O imo êxtase, pungente e rude,

A força do ódio, o afã do amor,

Oh! restitui-me a juventude!(grifos nossos)95

O trecho relembra, em muitos aspectos ―Última folha‖ ou ―Musa consolatrix‖, em

que o poeta apela à musa antes que as ilusões voem como ―pombas fugitivas‖, ou que o

tempo as desfolhe da ―fronte do mancebo‖. No entanto, o apreço à temática goethiana não

se restringiria aos poemas de Crisálidas e de Falenas: seria retomado em Ocidentais sob

um ponto de vista crítico e filosófico.

Nesse livro, percebemos a mesma tônica das ilusões e desilusões, marcando as

forças de atração e repulsão da alma humana frente às questões do ―Eu‖ e do universo.

Assim como Fausto hesita, durante toda a tragédia, entre Deus e Mefisto, também o eu-

lírico machadiano oscilará entre sua própria natureza – microcosmo humano -, e a Natureza

que o cerca – macrocosmo divino.

O conhecimento filosófico, entretanto, viria romper com esse véu da ilusão, frente

ao mundo que nos rodeia, embora o conhecimento que o sujeito tem de si mesmo

permanecesse encoberto. Na poesia, a subida ao monte pode ser vista como um descortino,

o rompimento do véu, permitindo uma visão clara do mundo como representação. Por outro

lado, o sujeito poético, adquirindo esse saber, ao contrário do que desejaria a filosofia de

95

Idem. p. 41.

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Schopenhauer, não consegue dominar a vontade ou compreender suas próprias

contradições. O mundo interior comporta, portanto, véus indevassáveis.

Partindo dessas observações, podemos penetrar no ponto central da lírica de

Ocidentais, percebendo a obra como uma releitura dos grandes clássicos da civilização

ocidental, passando por Dante, Shakespeare, Camões, Goethe, Hugo, dentre outros, e

fazendo, inclusive, uma revisão de certas tendências do pensamento filosófico.

Prometeu seria, nesse caso, símbolo máximo do poeta que luta contra a própria

realidade, atado ao ofício de escritor, o seu Cáucaso. No cimo do monte, tem visão

privilegiada da vida e dos homens sem, contudo, poder se desvencilhar da ave que lhe

corrói o fígado. Na obra machadiana, podemos chamar esse pássaro impiedoso, tal como o

corvo de Poe, de consciência estético-filosófica.

Prometeu sacudiu os braços manietados

E súplice pediu a eterna compaixão,

Ao ver o desfilar dos séculos que vão

Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilhão,

Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...

A rendição de Prometeu no poema de Machado não se dá pelo suplício em si - a dor

de estar preso ou de ter o fígado eternamente consumido -, mas por não suportar mais a

visão do enfadonho espetáculo dos homens, o constante ―desfilar dos séculos‖, como Brás

pôde ver no cimo do monte. Essa seria a eterna mesmice dos homens, entre flagelos e

delícias, seguindo a procissão dos séculos, ora cheios de luz, ora cobertos de sangue,

conforme o tempo de rir ou de chorar.

Pela primeira vez a víscera do herói,

Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,

Deixou de renascer às raivas que a consomem.

Uma invisível mão as cadeias dilui;

Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;

Acabara o suplício e acabara o homem.96

96

ASSIS. T.P. p. 299.

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124

Consoante a conhecida afirmação de Brás (―não transmiti a ninguém o legado da

nossa miséria‖), interromper o fluxo da existência humana é o único recurso eficiente para

pôr fim ao sofrimento: ―Acabara o suplício e acabara o homem‖. Prometeu, figura mítica

que rouba o fogo divino para dá-lo à humanidade, não divisa bem algum no homem pelo

qual se sacrificou, nem pode contemplar qualquer feito que possa advir da doação feita por

ele: não há centelha que brilhe, dentro ou fora, nessa criatura vã e vil. Os séculos passam

―lentamente como dobre de finados‖, eterna monotonia secular de iras e ganâncias

humanas, em desenfreada busca pela quimera da felicidade.

É necessário, portanto, decretar o fim do sofrimento, lançando-se definitivamente

ao abismo: ―E caddi come corpo morto cade‖, parece que ouvimos o eco desses versos de

Dante (final do Canto V, do ―Inferno‖) no poema machadiano, quando o poeta diz ―ao

abismo um corpo morto rui‖. O deprimente espetáculo humano só se encerra a partir da

quebra da corrente da existência, o que justifica o ―saldo positivo‖ de Brás: ―Não transmiti

a ninguém o legado da nossa miséria‖.

2.1- Mundo interior: o microcosmo humano.

O diálogo entre Fausto e Mefistófeles, que antecede o pacto, nos revela o maior

desejo do homem: ―a aspiração suprema‖, ou seja, atingir a totalidade do universo e, assim,

gozar de todos os prazeres sem temer dor alguma. Resume o antigo desejo de Adão e Eva

no Gênesis: adquirir o conhecimento do bem e do mal e igualar-se a Deus.

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125

Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo

Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso.

Meu peito, da ânsia do saber curado,

A dor nenhuma fugirá do mundo,

É o que a toda a humanidade é doado,

Quero gozar no próprio Eu, a fundo,

Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,

Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,

E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,

E, com ela, afinal, também eu perecer.97

Mefistófeles, porém, desfaz as ilusões do Doutor, ao afirmar que essa totalidade

desejada é impossível de ser atingida pelo homem, pois é reservada apenas ao Ser Divino.

Ainda que as criaturas acumulem virtudes, adquiram saberes supremos e desvendem os

grandes mistérios, ainda assim, afirma Mefistófeles: ―nomearia um cavalheiro como esse/

Dom Microcosmo – se o conhecesse.‖(grifo nosso) - e, mais adiante, conclui ―No fim

sereis sempre o que sois/ Por mais que os pés sobre altas solas coloqueis,/ E useis perucas

de milhões de anéis,/ Haveis de ser sempre o que sois‖.98

Seguindo essa ótica, nenhum conhecimento, portanto, pode conferir ao homem a

capacidade totalizadora que ele almeja. Sempre haverá de ser o mesmo, diante do bem ou

do mal, indistintamente; seria apenas Dom Microcosmo, senhor de um ―pequeno mundo‖.

Machado parece refletir profundamente acerca dessas questões, do Macrocosmo e

do Microcosmo. Assim, faria a oposição entre o mundo exterior e o interior, só que, ao

contrário, esse ―mundo interior‖ parece ainda mais complexo e abismal; portanto,

indevassável ao olhar do próprio ser.

Ouço que a natureza é uma lauda eterna

De pompa, de fulgor, de movimento e lida,

Uma escala de luz, uma escala de vida

De sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, - a natureza externa, -

Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida,

Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna

Entre as flores da bela Armida.

97

GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 175. 98

Idem. p.177.

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126

O poeta, logo de início, apontaria duas visões sobre a Natureza, o Macrocosmo,

identificadas pela expressão ―ouço que‖, ou seja, não é o julgamento pessoal que está sendo

expresso pelo eu-lírico, mas os conceitos formulados pela opinião geral. Na primeira

estrofe, apresenta uma visão idealista da natureza, que seria uma definição harmoniosa de

que tudo se encaixa no universo, e de que tudo nele está construído para equilibrar os seres,

do mínimo ao máximo: ―do sol à ínfima luzerna‖. Na segunda estrofe, porém, verifica-se

uma visão com laivos de pessimismo, que muito se assemelha à idéia da Natureza-Pandora,

que reúne bem e mal, tanto namora quanto intimida. Como no poema ―Uma criatura‖, ela

pode cingir em seu âmago o ―belo e o monstruoso‖, ou ainda, uma hidra de Lerna junto às

flores mais sublimes.

Partindo dessas duas concepções, o poeta passa a refletir sobre a principal questão

do poema: o mundo interior. A partir de então, os versos vão revelar a experiência do Eu,

envolvido num mergulho em sua mais profunda consciência, até declarar o completo

desnorteamento frente ao abismo que descobre em si.

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho

Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo

Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,

E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,

Um segredo que atrai, que desafia, - e dorme.

Inversamente proporcional, o vasto Macrocosmo estaria refletido no interior do

homem; portanto, não se consegue chegar a nenhuma convicção sobre o exterior e o

interior, ambos são abismos, onde o segredo, como véu, encobre o discernimento. Nem a

mais sábia intuição consegue adentrar esse mundo, embora, como esfinge, ele atraia,

desafie, permanecendo inviolável. É como no mito de Maya, que vimos anteriormente: o

véu da ilusão continuamente encobre os olhos dos mortais e lhes ―faz ver um mundo que

não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho‖.

Nada é palpável no poema. O ―ouço que‖, não passa de mera hipótese. No entanto,

o ―eu‖ sente, vê, intui, todo um universo interior, de ―vida imortal‖ e ―eterno cataclismo‖ –

criação permanente e permanente destruição. A imagem do íntimo assemelha-se a um

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grande espelho invertido, que reflete no interior do homem a grandeza e o mistério da

natureza externa: no seu âmbito enorme, revela, todavia, um abismo ainda mais insondável.

O que Machado parece trazer à tona é a subjetividade do homem que domina todo o

universo e o submete à sua própria vontade. Nesse ponto, podemos considerar que na

acepção machadiana o Macrocosmo é uma invenção humana, projetada pela sua própria

ilusão. Toda realidade está submetida a essa concepção individual, à idéia que cada um traz

de si em relação ao mundo.

É interessante observar que nas Memórias, o relato do delírio não se apresenta, de

fato, como uma experiência de morte de Brás, ou um relato de definitiva passagem de um a

outro plano. Lembremo-nos de que ele apenas ―delira‖, e, em seguida, retorna ao leito de

agonia. Resta a dúvida: realidade ou sonho? Quando morre ―em definitivo‖, Brás

simplesmente não descreve, não fala quase nada desse outro universo, pelo contrário, vai

tratar apenas das experiências que teve no mundo dos vivos.

De igual modo, em muitas narrativas, Machado ilustra os enganos do homem em

relação ao ambiente que o cerca, empregando diversos elementos para demonstrar essa

hipótese. Em ―idéias de canário‖, por exemplo, usa o pequeno pássaro para ilustrar que o

ponto de vista e a opinião diversificam-se de acordo com o ambiente em que cada um se

encontra.

Como o axioma do Dr. Pangloss, de Voltaire, ―O nariz foi feito para o uso dos

óculos‖, o homem crê que tudo ao seu redor foi feito para si e que todo o Universo a ele

está submetido. Assim, existem várias verdades que se adaptam de acordo com a situação

que se pretende configurar. Tudo está submetido à subjetividade humana, ao ―Dom

Microcosmo‖.

A dúvida, por sua vez, é um sentimento intrínseco ao homem, que oscila entre razão

e vontade, entre o bem e o mal, sem chegar a uma concepção exata do seu próprio Eu. Essa

oscilação configura uma marca das personagens machadianas, sempre indecisas em relação

à realidade que as cerca. Do mesmo modo, a poesia de Ocidentais demarca esse território

das vacilações humanas que geram eternos suplícios, a principal delas: a ambigüidade da

natureza humana.

Entre Deus e o diabo, oscila o homem - como Mefisto parece concluir diante da

contínua insatisfação de Fausto, que ora se entrega e ora se lamenta pelos resultados:

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Tornamos aos confins do vosso entendimento, lá, onde a vós mortais, o

juízo se alucina. Por que é que entraste em comunhão conosco, se és

incapaz de sustentá-la? Almejas voar e não te sentes livres da vertigem?

Pois fomos nós que a ti nos impusemos, ou foste tu que te impusestes a

nós?99

Usando a forma ―nós‖, Mefisto situa o homem como centro da oposição Deus x

diabo, continuamente alternando de crença, mas seguindo unicamente suas próprias

convicções ou ilusões. De igual modo, Machado configuraria esse dualismo do homem no

conto ―A igreja do diabo‖, onde se conclui que dificilmente a natureza humana pode optar

por um único lado.

O princípio da dubiedade e da contradição será expresso nos poemas de Ocidentais

tanto nas composições do autor quanto nas traduções dos clássicos. Em ―Perguntas sem

resposta‖, por exemplo, Machado trabalha com o princípio da harmonia e do equilíbrio

clássicos, representado por Vênus (configurada como estrela), em oposição aos discursos

da fé e da esperança - que no poema parecem gerar dor e sofrimento -, na pessoa de Maria.

Vênus formosa, Vênus fulgurava

No azul do céu da tarde que morria,

Quando à janela os braços encostava

Pálida Maria.

(...)

E o coração, que de prazer lhe bate,

Acha no astro a fraterna melodia

Que à natureza inteira dá rebate...

Pálida Maria.

Maria pensa: ―Também tu, decerto,

Esperas ver, neste final do dia,

Um noivo amado que cavalga perto,

Pálida Maria?‖

Maria enxerga no astro, assaz distante, um reflexo dos próprios anseios, e chega a

chamar Vênus pelo seu nome: ―Pálida Maria‖. Porém, ao contrário de ―pálida‖, sabemos,

logo na primeira estrofe, que Vênus ―fulgura‖. Além do distanciamento espacial, há uma

oposição marcada entre a palidez de Maria e o brilho de Vênus. Por outro lado, enquanto a

99

GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p.493.

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primeira preocupa-se com o noivo e com a felicidade, a outra parece indiferente ao destino

dos homens. As perguntas da moça ficam sem resposta, embora sua ilusão tente submeter

as coisas ao redor à sua subjetividade, ou seja, o ―microcosmo humano‖ percebe o

macrocosmo como espelho de sua alma, e, assim, tenta impor-se ao divino.

O noivo de Maria, entretanto, morre, e toda a expressão de júbilo que a tomava

anteriormente transforma-se em tristeza e angústia. Se outrora notou em Vênus o reflexo de

seus anseios pelo noivo, outra vez percebe, através do filtro da subjetividade, uma

expressão melancólica no astro fulgurante, como se ele fosse solidário aos seus

sentimentos.

Quando três sóis passados, rutilava

A mesma Vénus, no morrer do dia,

Tristes olhos ao alto levantava

Pálida Maria.

E murmurou: ―Tens a expressão do goivo,

Tens a mesma roaz melancolia;

Certamente perdeste o amor e o noivo,

Pálida Maria?‖

Vênus, porém, Vênus brilhante e bela,

Que nada ouvia, nada respondia,

Deixa rir ou chorar numa janela

Pálida Maria.100

O poema ―Perguntas sem resposta‖ nos remete ao episódio que encerra o romance

Quincas Borba, que, por sua vez, é um contraponto à cena inicial em que Rubião admira a

enseada de Botafogo e acredita ser possuidor de tudo o que o cerca, incluindo a paisagem:

―Olha para si, para as chinelas (...), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os

morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de

propriedade‖. 101

A ―sensação de propriedade‖, do ponto de vista material de Rubião na leitura de si e

do mundo, equivale à interpretação equivocada de ―Pálida Maria‖ em relação à estrela, que

a sua curta visão tende a interpretar como solidária a seus sentimentos. Ambas as situações

100

ASSIS. T.P. p. 312. 101

ASSIS. O.C. vol 1. p. 643.

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130

apontam para a interpretação subjetiva do homem, que submete o Macrocosmo à sua ilusão

de ―propriedade‖ ou de ‗espelhamento‖.

Na primeira situação, o indivíduo assume o papel totalizador, ―o mundo pertence a

mim‖, enquanto, na outra situação, crê no espelhamento humano/divino: ―o mundo

representa a minha vontade‖. No Quincas Borba, a cena seguinte é marcada pela afirmação

do narrador: ―Que abismo há entre espírito e coração!‖, frase que se coaduna plenamente

com as idéias presentes em ―Mundo interior‖. O narrador mergulha na alma de Rubião para

colher todas as contradições que nela encontra. Eis o abismo do homem.

O último capítulo de Quincas Borba apresenta a completa insanidade do

personagem que acreditou que tudo poderia possuir, das chinelas ao céu, incluindo a bela

Sofia. A mesma conclusão do poema ―Perguntas sem resposta‖ surge nesse trecho final do

romance, quando o narrador assim arremata a cena da demência e da pobreza de Rubião:

―Eia! Chora os dous recentes mortos, se tens lágrima. Se só tens riso, ri-te! É a mesma

cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto

para não discernir os risos e as lágrimas dos homens‖. 102

Como o Cruzeiro diante das dores e alegrias humanas, Vênus, fulgurante, deixa rir

ou chorar Maria, indiferente ao que o destino lhe reserva. Chegamos à mesma conclusão de

Mefisto: o homem será sempre o que é - Dom Microcosmo-, independente de sua condição

material ou de sua ciência. Nenhuma criatura humana pode controlar plenamente a razão

ou o sentimento, nem pode definir o seu destino.

Também a filosofia de Quincas estaria, nessa página final do romance, desmentida,

juntamente com a idéia de que ―Humanitas‖ era o universo, atribuindo ao homem uma

essência divina que se distribuía e se espelhava em todas as coisas que o cercam, regendo-

as segundo um princípio subjetivo de sobrevivência.

Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância recôndita e

idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e

indestrutível, - ou, para usar linguagem do grande Camões:

Uma verdade que nas cousas anda,

Que mora no visíbil e invisíbil

102

Idem. p. 806.

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131

Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que

Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o

homem.103

Seguindo a filosofia de Quincas, esse papel divino dado ao homem subverte o

princípio cristão, ao atribuir a Humanitas um perfil messiânico, de sacrificar um

determinado ser pelo bem da coletividade. A equiparação de Humanitas ao Salvador é feita

de maneira oblíqua através da citação de versos camonianos. O trecho integra a Elegia XI,

do bardo português, em louvor a Cristo: ―Um saber infinito, incompreensível/ Uma verdade

que nas cousas anda/ Que mora no visíbil e invisíbil./ Esta potência, enfim, que tudo

manda,/ Esta Causa das causas revestida,/ Foi desta nossa carne miseranda.‖104

Portanto, segundo a filosofia de Quincas, não é a centelha divina que se espalha em

todo o universo, visível e invisível, mas sim a vontade humana que se projeta em cada

indivíduo para garantir a sobrevivência da espécie. Não importa, pois, que uma criatura

esteja se extinguindo, e sim que outro ser leve adiante o princípio de resistência e

permanência da humanidade.

A ilusão de Quincas Borba é a mesma de Rubião, supor que todo o Universo está

submetido ao homem. O que Machado pretende mostrar é a indiferença desse Cosmo

diante dos anseios humanos. Ambos os personagens são destruídos por sua filosofia, ou

melhor, seguindo a etimologia da palavra: FILO-SOFIA. O primeiro, abraçando uma teoria

científica, de aparente enriquecimento do espírito - ―paixão pelo saber‖; Rubião, na sua

busca pela satisfação do corpo, seguindo o desejo que mostrara desde o início - ―paixão por

Sofia‖. Conclui-se que nem a ciência, nem os desejos materiais podem elevar o homem a

essa posição superior, ao almejado céu do Ideal.

Nem corpo, nem espírito encontram a plenitude almejada, como podemos também

verificar no Fausto: nem ciência, nem Margarida, nem poder algum podem redimir o

homem, calar a dor ou suprir esse desejo de totalidade que tenta alcançar em seu ―Mundo

interior‖.

A desilusão humana aparece também em outros poemas de Ocidentais,

principalmente nas traduções de ―O corvo‖, de Poe, e do monólogo ―To be or not to be‖, de

103

Idem. Cap. VI. p. 648. 104

CAMÕES, Luís de. Obras de Luís de Camões. Vol. III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1861.

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132

Shakespeare. Ao que parece, Machado não só formulava sua filosofia na escrita da poesia,

mas traçava o roteiro da tradição literária acerca dos temas universais.

No poema de Poe, observamos a mesma configuração fáustica: um homem que

busca no saber ou no misticismo sua verdadeira face ou o desvendar dos segredos da vida.

Assim, no interior do quarto, onde o busto da Sabedoria (Palas) orna a parede, o homem

interroga o pássaro negro, mas suas indagações resultam em uma resposta repetitiva, cada

vez mais vazia e angustiante: ―nunca mais‖.

O ―eu-lírico‖ de Poe assemelha-se ao Fausto de Goethe, cercado pelos livros

―laudas antigas‖, refletindo sobre ―velhas doutrinas‖, no seu quarto de trabalho.

Em certo dia, à hora, à hora

Da meia noite que apavora,

Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,

Ao pé de muita lauda antiga,

De uma velha doutrina agora morta,

Ia pensando, quando ouvi à porta

Do meu quarto um soar devagarinho.

(...)

Eu, ansioso pelo sol, buscava

Sacar daqueles livros que estudava

Repouso, em vão, à dor esmagadora

Destas saudades imortais

Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,

E que ninguém chamará mais.

(...)

Supus então que o ar, mais denso,

Todo se enchia de um incenso,

Obra de serafins que, pelo chão roçando

Do quarto estavam meneando

Um ligeiro turíbulo invisível;

E eu exclamei então: ―um Deus sensível

Manda repouso à dor que te devora

Destas saudades imortais.105

A resposta do corvo, ao contrário do que o poeta deseja, não vem trazer alento ao

coração, apenas resulta num eco que ressoa na consciência, anulando toda a sabedoria ou

esperança depositada no homem: ―Nunca mais‖. De início, tenta crer que é a providência

divina que o procura para aliviar-lhe as dores, mas, diante da resposta, suplica ainda mais

aflito: ―Ave ou demônio que negreja,/ Profeta ou o que quer que sejas!‖. Deus ou um ente

105

ASSIS. T.P. p. 304-308.

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maligno, não importa, o homem apenas deseja uma resposta para suas incertezas, mas,

como no poema machadiano, não pode desvendar ―um segredo que atrai, que desafia – e

dorme‖.

Já o conhecido solilóquio de Hamlet, ―ser ou não ser‖, dá continuidade à questão

existencial. O personagem é símbolo da impotência humana diante do vasto universo, que

ora conspira, ora se mostra indiferente. Mais do que isso, Hamlet representa a consciência

plena de que o riso ou o choro são a mesma coisa, vingar-se ou não da morte do pai não

resulta em proveito ou perda. O personagem, portanto, se recusa a seguir o plano da

existência, rejeita o papel de homem e vaga pelas margens da vida, tal como o defunto-

autor.

Nietzsche, em O nascimento da tragédia, compararia a personalidade de Hamlet ao

indivíduo dionisíaco, mostrando que, nas duas situações, teríamos um sujeito que

reconhece a inutilidade de se ajustar, ou de compreender um mundo ―fora do eixo‖, a

começar pela natureza contraditória do indivíduo.

Nesse sentido, o indivíduo dionisíaco assemelha-se a Hamlet: ambos têm

visão profunda, que lhes permite enxergar a verdadeira essência das

coisas; ambos adquiriram conhecimento, e a náusea decorrente inibe-lhes

a ação; e qualquer ação da parte deles seria incapaz de alterar a eterna

natureza das coisas; consideram ridículo ou humilhante, o fato de serem

chamados a corrigir um mundo que está fora de eixo. O conhecimento

aniquila a ação; a ação depende dos véus da ilusão: eis a doutrina de

Hamlet.106

Hamlet, portanto, é um dos personagens que atingem o âmago da problemática

existencial do homem; assim, ele mesmo assume o perfil da indiferença, recusando-se a

encenar o papel que o ―grande teatro da vida‖ lhe impõe, arrancando definitivamente o véu

das ilusões. Distancia-se, pois, da cena e só retorna para dar fim ao tedioso espetáculo

humano, como faz Prometeu no poema de Machado: ―acabara o suplício e acabara o

homem‖. No caso do personagem shakespeariano, era preciso cerrar o pano para o

definitivo aniquilamento do ato.

106

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Apud: BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do

humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 491.

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Shakespeare foi um dos primeiros autores a problematizar a realidade partindo de

um filtro de consciência individual, revelando que a natureza dupla (ou múltipla) do

homem o leva irreversivelmente à contradição. Assim lemos, na tradução de Machado, a

síntese da condição humana delineada pelo personagem de Shakespeare:

(...) Quem ao peso

De uma vida de enfados e misérias

Quereria gemer, se não sentira

Terror de alguma não sabida coisa

Que aguarda o homem para lá da morte,

Esse eterno país misterioso

Donde um viajor sequer há regressado?

Este só pensamento enleia o homem;

Este nos leva a suportar as dores

Já sabidas de nós, em vez de abrirmos

Caminho aos males que o futuro esconde,

E a todos acovarda a consciência.

Assim da reflexão à luz mortiça

A viva cor de decisão desmaia;

E o firme, essencial cometimento,

Que esta idéia abalou, desvia o curso,

Perde-se, até de ação perder o nome.107

O mundo interior do homem abriga o maior dos abismos. A questão principal da

natureza humana envolve o sentido primordial do ser e do não ser. Segundo o pensamento

shakespeariano, sem conhecermos o curso da existência e o que nos espera no devir,

estamos sujeitos ao poder subversivo e persuasivo da nossa consciência, que nos induz a

sobreviver e a resistir. O homem luta por quimeras e, enfim, percebe que seu objeto de

desejo não passa de nulidade, que ele, ainda assim, abraça com a avidez de ―grande lascivo

do nada‖.

2.2- A Metamorfose

107

ASSIS. T.P. p. 313.

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135

“O mais feliz dos homens é aquele que

consegue ligar o fim de sua vida ao início”

(Goethe)

Acompanhando a trajetória do poeta Machado de Assis, constatamos expressiva

freqüência, no gosto do autor, pelo tema da metamorfose. Já nos títulos de seus primeiros

livros de poesia – Crisálidas e Falenas – notamos a referência à transição do verme em

borboleta, como um anseio de transcendência do sujeito. De início, parecia buscar

inspiração no sublime, partindo das Metamorfoses ovidianas; no entanto, em Falenas¸ vê-

se que o prenúncio dessa transfiguração não implicava uma possibilidade evolutiva

satisfatória, como seria de se esperar de uma metamorfose, ou um estágio superior da

condição humana: as borboletas crepusculares (falenas) traziam em si a metáfora do

sofrimento, insetos de hábitos noturnos atraídos pela luz da chama que, enfim, os

incendeia.

Na peça ―Os deuses de casaca‖, mais uma vez, a metamorfose ocupa o centro da

ação, numa maneira enviesada de o escritor falar da realidade controversa do universo

humano e de suas relações de poder, a partir da esfera fantástica (mitológica) dos deuses do

Olimpo. O deslocamento da realidade espacial e/ou temporal era um dos principais

recursos machadianos para tratar de referenciais concretos sem se dirigir abertamente aos

entes e às instituições do seu tempo.

Ainda sobre o tema da metamorfose, uma das cenas fantásticas que mais

encantavam Machado na obra de Dante, além do episódio de Paolo e Francesca, consta no

Canto XXV do ―Inferno‖, em que ladrões, figuras históricas da época de Dante, eram

atacados por serpentes. Certamente, oferecendo aos leitores uma amostra dos grandes

poetas que o inspiraram, Machado escolhe o Canto XXV para figurar entre as traduções de

Ocidentais, tratando especificamente do tema em questão.

No trecho traduzido por Machado, observamos a construção da cena, ambientada

num dos círculos do Inferno dantesco, onde quatro ladrões são punidos. O primeiro, Cianfa,

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136

abre o Canto blasfemando contra Deus, fazendo-lhe um gesto de ofensa: ―Acabara o ladrão,

e, ao ar erguendo/ As mãos em figas, deste modo brada:/ Olha Deus, para ti o estou

fazendo!‖. Dante (personagem), vendo alma tão rebelada, se alegra quando uma serpente se

enrola no homem e lhe veda a boca e as mãos para que não fale, nem faça mais gesto

algum, a não ser fugir com o réptil envolto no corpo.

Então, entra Caco, o centauro guardião daquele círculo do Inferno, coberto de várias

serpentes e buscando a ―alma danada‖ que havia bradado tantas ofensas. Em seguida

aparecem em cena outras três figuras, que procuram saber para onde foi Cianfa.

Posteriormente, tomamos conhecimento de que os três homens são almas condenadas:

Agnel, Puccio Sciancato e Buoso Donati.

O primeiro logo seria agarrado por uma serpente de seis pernas, que a ele se

fundiria de modo a se tornarem uma forma única, embora indefinida. Tudo indica que essa

criatura de seis pernas seja Cianfa, que retorna metamorfoseado ao lugar de onde fugiu. Na

tradução de Machado temos:

Leitor, não maravilha que aceitá-lo

Ora te custe o que vás ter presente,

Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.

Eu contemplava-os, quando uma serpente

De seis pés temerosa se lhe atira

A um dos três e o colhe de repente.

(...)

Como se fossem derretida cera,

Um só vulto, uma cor iam tomando,

Quais tinham sido nenhum deles era.

(...)

Os outros dois bradavam: ―Ora pois

Agnel, ai triste, que mudança é essa?

Olha que já não és nem um nem dois!‖

Há, nesse caso, uma transformação incompleta, onde Agnel se torna parte da

serpente, sem, contudo, ser completamente assimilado por ela. É interessante também o

diálogo do poeta, na primeira estrofe transcrita, com a intenção de interpelar o leitor, como

se o público fosse duvidar da cena ali exposta, a que o autor, prontamente, se antecipa. Esse

recurso antecipatório, que pressupõe uma opinião do leitor, é amplamente utilizado na

Commedia, assim como seria muito bem aproveitado na obra machadiana.

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Tão logo Agnel sai, Buoso Donati, o terceiro ladrão, sofre uma completa

transformação após ser picado no umbigo por uma víbora da ―cor de um bago de pimenta‖.

Toda ênfase do Canto recai na figura de Buoso, tanto que Dante admite ser essa a mais

completa e fantástica das metamorfoses descritas em livro: estando a víbora diante do

ladrão, este vai assumir a forma daquela, enquanto a serpente se transforma em homem.

Frente a frente, um ao outro contemplava,

E à chaga de um, e à boca de outro, forte

Fumo saía e no ar se misturava.

Cale agora Lucano a triste morte

De Sabelo e Nasídio, e atento esteja

Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.

Cale-se Ovídio e neste quadro veja

Que se Aretusa em fonte nos há posto

E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.

Pois duas naturezas rosto a rosto

Não transmudou, com que elas de repente

Trocassem a matéria e o ser oposto.108

O que mais chama a atenção na cena, além do fato de que os três homens eram

desafetos de Dante na esfera real, é que o poeta florentino opera sua transformação

evocando outros autores clássicos – Lucano e Ovídio -, afirmando que a cena supera as

metamorfoses mais conhecidas da literatura. Essa ―ousadia‖ do autor da Commedia parece

agradar sobremaneira a Machado. Até porque mescla a esfera do real e a do ficcional,

assim como estabelece um diálogo literário através da apropriação de uma temática

clássica, com a finalidade de atualizar o fio da tradição, e, principalmente, com a intenção

de superar as versões canônicas.

Antes do lançamento das Ocidentais, em 1901, Machado já havia mostrado

interesse no episódio da obra dantesca, o que fortalece a hipótese de que o escritor revelava

um gosto especial pela cena da metamorfose de Buoso Donati. Trata-se de uma referência

que surge num conto das Histórias sem data, de 1884, intitulado ―As academias de Sião‖.

O conto narra os eventos na cidade de Bangkok, em Sião, onde duas Academias

discutem a seguinte questão: por que há homens femininos e mulheres másculas? Uma das

108

ASSIS. T.P. p. 330

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Academias formula a teoria da ―alma sexual‖, ou seja, é a alma que determina a índole

sexual do sujeito, enquanto a outra crê na ―alma neutra‖. Diante da controvérsia das teorias,

os filósofos entram em grande discussão, até que um dos grupos resolve eliminar o outro

para legitimar-se como único detentor da verdade.

Nota-se que a legitimação não ocorre por elementos que comprovem a teoria ou por

estudos sérios sobre o assunto. Para atingir a irrefragável superioridade, uma das

Academias parte para a eliminação física dos integrantes do outro grupo, o que se dá

através de um grande massacre nas ruas de Bangkok. A teoria da alma sexual tornava-se,

desse modo, a única verdade científica admissível, através da anulação completa da

oposição.

Toda essa altercação entre os sábios se origina da observação do comportamento do

rei Kalaphangko, que possui modos delicados e femininos. No entanto, uma de suas

concubinas, Kinnara, de gestos másculos e firmes, resolve verificar a teoria dos filósofos

testando em si mesma determinada fórmula mística. Convida o rei para a experiência e

realiza uma cerimônia de transmigração de almas pelo método ―Mukunda‖ (aprendido de

um velho bonzo). Ela e o rei invocam secretamente a fórmula mística e trocam de corpos.

O que nos interessa é a forma como o narrador machadiano, trabalhando sempre

com a ironia, vai conduzir o evento da metamorfose do rei e da concubina, relembrando o

episódio do Canto XXV de Dante.

Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e

ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra

no tapete. (...)

Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu

vaso físico e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se

apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se e olharam um

para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da

cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O

poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose

vale mais que a deles dous. Eu mando-os calar a todos os três. Buoso e a

cobra não se encontraram mais, ao passo que os meus dous heróis, uma

vez trocados continuam a falar e a viver juntos – cousa evidentemente

mais dantesca, em que me pese a modéstia.109

109

ASSIS. O.C. vol II. p. 470.

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Machado inspira-se nas histórias fantásticas do ―Inferno‖ dantesco para compor sua

narrativa e, repetindo ironicamente o procedimento de Dante no Canto XXV, manda calar

os três escritores, afirmando que a sua metamorfose seria ainda mais perfeita que a deles.

Mesmo deslocando a cena para um lugar distante no tempo e no espaço, Machado traz à

tona questões que lhe são contemporâneas. A luta entre os sábios, por exemplo, reencena o

episódio das duas tribos que disputam um campo de batatas, no Humanitismo de Quincas

Borba. Ambas as situações ilustram a eterna luta por poder, no campo das realizações

humanas, estejam elas na esfera científica ou na da simples sobrevivência. Não existe

acordo entre dois pensamentos diferentes, principalmente no mundo Ocidental. Para que

uma vontade se imponha e domine, é preciso eliminar o que lhe é adverso.

Em Machado, percebe-se o gosto pela parábola, pela fábula, pelas histórias, enfim,

exóticas ou fantásticas, que se deslocam de um determinado contexto para tratar, com certo

distanciamento, das questões da realidade. Já no prefácio das Histórias sem data, coletânea

que inclui contos como ―As academias de Sião‖ e ―A igreja do diabo‖, o escritor explicaria

o motivo do título. No caso, não se tratava de uma simples questão de ―falta de data‖, mas

da reunião de textos que versavam sobre a ―substância‖ das coisas: ―... este título histórias

sem data parecerá a alguns ininteligível, ou vago. Supondo, porém, que o meu fim é definir

estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especificamente do dia,

ou de um certo dia, penso que o título está explicado‖110

. A ―metamorfose‖, portanto,

operada no contexto, trazia oculto, no fundo das cenas representadas, um determinado

retrato da realidade.

O procedimento não seria utilizado unicamente na prosa de Machado, mas em todas

as formas de sua escrita, em todos os gêneros que trabalhou, incluindo a poesia. O escritor

se incluía numa tradição literária que concebia o texto com diferentes níveis de leitura,

sempre oferecendo ao público determinada matéria, de que apenas um seleto leitor, ou os

leitores mais atentos, poderiam extrair uma camada mais substancial.

Tanto Dante quanto Shakespeare e Goethe, para citar alguns exemplos, se valeriam

de uma escrita em dois planos, um explícito e outro implícito, com a finalidade de alcançar

um leitor especial dentre os seus leitores comuns. Em carta a Carl Iken, em 27 de setembro

110

Idem. p. 368.

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140

de 1827, Goethe revelaria o seu método criativo, a forma por ele utilizada para compor o

texto literário.

Como muita coisa de nossa experiência não pode ser pronunciada de

forma acabada e nem comunicada diretamente, há muito tempo elegi o

procedimento de revelar o sentido mais profundo ao leitor atento por meio

de configurações que se contrapõem umas às outras e ao mesmo tempo se

espelham umas nas outras.111

O texto literário é concebido como uma construção de sentidos, não como um

significado pronto e acabado. O verdadeiro fundamento da grande obra de arte está no ―vir

a ser‖, não do dito ou revelado. Portanto, todo escritor genial, escrevendo em prosa ou em

verso, desencadeia uma relação poética com o texto, aguardando sempre novos

desvendamentos por parte de leitores ideais.

Tratando especificamente do uso da escrita poética para compor a maior parte das

cenas de sua tragédia, Goethe explicaria de que maneira o verso conseguia amenizar as

imagens mais fortes do Fausto.

Algumas cenas trágicas estavam escritas em prosa; em virtude de sua

naturalidade e força elas tornaram-se agora, comparadas com o material

restante, inteiramente insuportáveis. Por isso procuro atualmente transpô-

las para versos, pois assim a idéia irá transluzir como que através de um

véu, mas o efeito imediato do assunto monstruoso será abafado.112

O uso do verso, como a própria palavra diz, pressupõe existência de dois lados de

uma mesma questão: o aparente – anverso – que se mostra ao primeiro olhar; e o

subentendido – verso – a face velada. O recurso do velamento poético subentende um

leitor-intérprete da obra de arte, enquanto o poeta revela-se como uma espécie de profeta

que traz uma mensagem de vital importância para a obra, mas tão densa que não pode ser

oferecida ―às almas sensíveis‖. Estaria reservada, neste caso, aos ―leitores ruminantes‖,

capazes de digerir adequadamente o pensamento do autor.

111

GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: uma tragédia. 2ª parte. (Trad. Jenny Klabin Segall). São Paulo: Ed.

34, 2007. p. 7. 112

GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 489. (Carta de Goethe a Schiller, em 5 de maio de 1798).

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141

De modo semelhante, segundo estudos de Northrop Frye, a obra de Shakespeare

apresenta ao leitor dois diferentes níveis de leitura, principalmente as comédias escritas em

verso.

O fato de as peças serem geralmente em verso demonstra, entre outras

coisas, que havia dois níveis de significação: uma significação

apresentada ou evidente e uma significação subjacente, dada pelas

metáforas e imagens utilizadas, ou por certos acontecimentos ou discursos

subordinados e subliminares. Estes foram denominados ―nível explícito‖

e ―nível implícito‖. Às vezes, os dois níveis nos oferecem diferentes

versões do que está acontecendo.113

Goethe, confessadamente, considerava-se discípulo de Shakespeare. Quando o autor

alemão fala em espelhamento e contraposição de imagens, não podemos deixar de perceber

certas semelhanças entre a atitude do poeta e o pensamento shakespeariano, principalmente

se avaliarmos alguns recursos presentes nas comédias escritas em verso, como destaca

Frye, e em vários outros momentos da obra.

Antecedendo os dois escritores, Dante já tratava da relação autor/ texto/leitor como

o ponto essencial de diálogo, dirigindo-se a uma classe especial de leitores, os de ―intelecto

são‖, que podem ultrapassar o sentido usual e penetrar nas águas mais profundas dos seus

versos. Seriam aqueles que atentam para determinada doutrina que se esconde ―sotto il

velame delli versi strani‖. Chega a advertir o público descompromissado, ou de pouco

intelecto, a abandonar a leitura de sua obra para não se extraviar do rumo pretendido pelo

autor.

Ó vós que em pequenina barca estais,

E o lenho meu que canta e vai, ansiados

De podê-lo escutar, acompanhais,

Voltai aos vossos portos costumados,

Não vos meteis no mar em que, presumo,

Perdendo-me estaríeis extraviados.

Ninguém singrou esta água que eu assumo;

Conduz-me Apolo e Minerva me inspira,

E nove Musas indicam-me o rumo.114

113

FRYE, Northrop. 114

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Op. cit. p.19.

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142

Dante é ousado na sua escrita. Assim como pediu para dois grandes autores se

calarem diante da metamorfose que ele opera num dos seus personagens, aqui dispensa os

leitores menos capazes, revelando que sua inspiração, divina por sinal, ultrapassa os

sentidos usuais e abre um caminho nunca antes explorado no universo literário.

Metamorfoses, máscaras, véus e espelhos: um constante jogo de ocultações e

revelações, visando sempre um leitor ideal. Essa atitude resume o instinto poético desses

autores, que guardam suas revelações apenas para o leitor experimentado.

Como vimos nas ―Idéias vagas‖, texto crítico da juventude, o temperamento

romântico de Machado admitia o poeta como um ser escolhido, um profeta que traz aos

homens um pouco da centelha divina, a revelação sublime da obra de arte. No entanto,

sobrevivendo ao ―naufrágio das ilusões‖, a visão do poeta como ―ser sublime‖ não mais se

coadunava com o espírito do prosador da maturidade, embora a arte, para Machado, jamais

tenha perdido o papel de libertadora do homem, nem o poeta deixado de existir, mesmo

quando nos fala através do prosador.

A literatura restaria como única ponte entre o real e o transcendental, resquício do

Romantismo que sobreviveu no âmago da obra machadiana. Essa atitude subjetiva para

interpretar dados de uma realidade objetiva se revela na prosa através do desdobramento do

narrador – ora envolvido, ora distanciado -, assim como na poesia, especificamente nas

Ocidentais, verificamos quase sempre o embate entre planos opostos, que se evidenciam

pelo contraste: quase sempre, o aniquilamento de um precede a extinção do outro.

O escritor marca a oposição entre o que se foi, o que se é, e o que se deseja ser: os

três eixos temporais. Contudo, não é possível chegar a uma conclusão definitiva de qual

seria o tempo ideal, mais perfeito e acabado, nem se conseguem reverter as sucessivas

metamorfoses de cada fase da existência. A natureza humana estaria fundada nesse ―vir a

ser‖, sempre mutável e incompleta, conhecendo tudo, como na filosofia schopenhaueriana,

sem jamais conhecer-se plenamente.

Seguindo a tradição dos grandes autores aqui citados, mas renovando certos

conceitos através de uma refinada ironia – um dos ―véus‖ mais empregados pelo escritor -,

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143

Machado concebe um pacto entre autor e leitor similar ao que observamos nos textos de

Goethe, de Shakespeare, e, principalmente, de Dante.

Vale lembrar o capítulo curto do Esaú e Jacó em que o narrador machadiano fala da

provável epígrafe do livro, extraída do Canto V, da Commedia: ―Dico, che quando l‘anima

mal nata...‖. A explicação subseqüente está de acordo com a idéia de que o leitor precisa

entrar no jogo de revelações e ocultações proposto pelo autor, assim como os personagens

(como as peças de um tabuleiro de xadrez) também colaboram na escrita do livro. Para tal,

seria preciso acompanhar os lances de ambos para penetrar nos sentidos mais ou menos

obscuros da narrativa.

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma,

e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as

pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de

lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou

totalmente escuro.

Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história

colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie

de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos. (...) Talvez

conviesse pôr aqui, e quando em quando, um diagrama das posições belas

ou difíceis. (...) pode ser que tenhas visão bastante para reproduzir na

memória as situações diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo

irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoas e pessoa, ou

mais claramente, entre Deus e o Diabo.115

O uso dos diagramas seria uma maneira de o autor esclarecer determinados

―lances‖, deixando pistas no caminho, mas, logo de início, opta por oferecer um par de

lunetas ao leitor para que ele se encarregue de compreender os aspectos menos explícitos

da história. Assim como na obra de Dante, o narrador/eu-lírico confessa que nem tudo no

livro está às claras, e que se torna necessária a interferência do leitor.

O que fica subentendido é o pacto que desde já autor e leitor efetuam diante das

‗vidas‖, das ―animas mal natas‖ que vão se apresentar no livro. Como no Canto V, onde

Minós avalia as almas condenadas e as lança num dos círculos do Inferno, também o

julgamento final de cada personagem dependerá da exposição que delas fará o autor e da

interpretação conclusiva do leitor.

115

ASSIS. O.C. Vol I. p. 966.

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144

O que se percebe na obra machadiana, da juventude à maturidade, é que o

pensamento de determinados autores, as citações e as referências estarão presentes tanto na

prosa quanto na poesia. Embora exista uma metamorfose, uma aparente mudança do

romântico para o parnasiano ou para o realista, como se convencionou classificar (ainda

que relativizemos esses rótulos), Machado mantém uma linha que o acompanha por toda a

trajetória, seguindo o percurso de uma tradição poética que põe a obra no centro da cena,

tendo como fim último a sua própria concepção, recurso metapoético.

Além desse diálogo com seus antecessores, retomando ou reformulando o legado

dos mestres, há também uma fidelidade do escritor a si mesmo, que vai além da escolha das

temáticas, tendo em vista que continuamente estabelece vínculos entre o novo e o antigo,

entre os modelos do passado e os do seu presente.

Sílvio Romero, com o propósito de ―desclassificar‖ o desafeto da vida inteira,

critica a fidelidade de Machado a determinados temas e modelos, desde o início da carreira

até a publicação das Poesias completas, de 1901. Porém, discordamos do caráter negativo

das afirmações de Romero, que considera o fato de se manter fiel a um pensamento como

indício de ausência de criatividade do autor.

É por isso que o Sr. Machado de Assis, tendo começado, por certo, os

seus primeiros ensaios poéticos aos quinze ou dezesseis anos, já nos

aparece em 1864, aos vinte e cinco um poeta feito, com um volume

publicado, contendo produções das épocas diversas do fundamental

decênio de sua formação, de posse de um estilo, que ele polirá durante

cinqüenta anos, mas nunca lhe mudará o colorido e a essência, porque o

metal que o constitui é sempre o mesmo. É por isso que ele nunca

escreveu versos superiores aos dedicados a ―Corina‖, publicados nas

Crisálidas. É por isso que a última folha das Ocidentais – batizada ―No

alto‖ – poderia ocupar o lugar da derradeira página, chamada ―Última

folha‖, das aludidas Crisálidas – escrita quarenta anos antes, ou vice-

versa.116

Um outro crítico, Frota Pessoa, diria que Machado era um poeta ―correto e frio, sem

vibrações, vestindo idéias românticas com forma parnasiana‖.117

Há uma grande ocorrência

de análises formais da poesia machadiana por parte dos leitores contemporâneos do autor.

A maioria deles se preocupa excessivamente com a forma, fazendo um levantamento

116

ROMERO, Sílvio. ―Poesias Completas‖. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro da

consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 256 117

Idem. p. 258.

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145

exaustivo das rimas, do ritmo dos versos, da métrica. Outros chegaram a fazer

levantamento estatístico da ocorrência e da repetição de determinadas palavras, tudo isso

com o propósito de se desfazer da imagem de um ―perfeito poeta‖.

O que os contemporâneos esperavam da poesia de Machado? Primeiramente, a

escolha dos ―Versos a Corina‖ como o poema mais bem realizado do escritor patenteia a

índole dos críticos de então, ainda muito presos a determinados estilos, do mesmo modo

que demonstra o tipo de poesia cultuado no Brasil: versos passionais, arrebatados, emotivos

e sentimentais. Em contrapartida, o poeta também sentiu o rigor da crítica dos cultores do

Parnasianismo, que discutiam apenas sobre os aspectos formais de sua poesia. Esses

últimos se davam conta de que os versos soltos, o uso de palavras correntes na língua (no

lugar de preciosismos lexicais), não condiziam com o apuro formal da geração de poetas do

final do século XIX.

De 1889 para cá os nossos poetas deixaram de cultivar o verso solto, que

em profusão abunda neste último livro do Sr, Machado de Assis. Ele

sempre usou e abusou desse verso (...) Mas não é tão fácil como quer o

Sr. Machado de Assis, pois, desde que não obedece à disciplina das

consoantes, é subordinado a outras exigências do compêndio de

metrificação, não podendo terminar em palavra aguda, nem esdrúxula,

além de não lhe ser permitido emparelhar os assonantes.118

O que fica patente é a dificuldade dos críticos em enquadrarem Machado numa

tendência, partindo dos padrões comuns à época, principalmente se atentarmos para o

conteúdo de sua poesia, muito mais voltado para as questões universais do homem - filiado

ao espírito da Weltliteratur -, do que para uma tendência nacionalista/localista como a da

maioria dos poetas de seu tempo. Machado também não se coadunava à poética dos

―compêndios de metrificação‖ dos parnasianos, apesar de ser um poeta de elevada correção

formal.

Sem dúvida, manteria um gosto clássico, como também aproveitaria muitas das

temáticas românticas ao enfocar o subjetivismo do homem na sua leitura de mundo. Essa

poesia filosófica de Machado não tinha precedentes no Brasil, daí sua desfiliação, e o

estranhamento que causou em seus contemporâneos.

118

TEIXEIRA, Múcio. ―Poesias Completas‖. In: MACHADO, Ubiratan. Roteiro da Consagração. Op. cit. p.

239

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146

À época, o mais competente leitor da poesia machadiana, que soube enxergar o

estro do poeta, sem elogios demasiados, nem infundados preconceitos, foi José Veríssimo.

Seu artigo sobre as Poesias completas, de Machado, até hoje, é o mais avalizado acerca do

poeta, principalmente por percebê-lo como um caso à parte no seu tempo.

Como é um escritor à parte em nossa literatura contemporânea, assim é o

Sr. Machado de Assis também um poeta à parte na nossa poesia. E quer

como prosador, quer como poeta, não o é por nenhuma extravagância de

pensamento ou de estilo, mas somente pela originalidade do seu engenho,

pela singularidade de seu temperamento.119

Não se pode negar que em Ocidentais, além de prestar homenagens aos mestres,

Machado dialoga também com o poeta que foi e continuava sendo. A configuração das

Poesias completas sustenta essa hipótese, na medida em que, entre publicar um livro com

as poesias da juventude e publicar um livro novo, o escritor optou pela união dos dois,

como uma tentativa de reaver o fio poético, esgarçado em determinados pontos da vida.

Dois poemas, em especial, tratam dessa metamorfose do poeta, dos primeiros livros

ao último: ―A uma senhora que me pediu versos‖ e ―Soneto de Natal‖. Naquele, o eu-lírico

recomenda à senhora que busque em si mesma a poesia que pensa encontrar nos versos que

lhe pediu, enquanto no soneto natalino reflete sobre o Natal e sobre a falta de inspiração

para falar do tema. Em ambos os casos, o poeta admite que não é capaz de executar a tarefa

da maneira desejada, seja porque a alma está ―ressequida‖, seja porque algo dentro de si

mudou, a ponto de sustar a inspiração.

Em ―A uma senhora que me pediu versos‖ fica patente a comparação entre o poeta

da juventude e o da maturidade:

Pensa em ti mesma, acharás

Melhor poesia,

Viveza, graça, alegria,

Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,

Quando rapaz,

As que ora dou têm assaz

Melancolia.

119

VERÍSSIMO, José. ―O Sr. Machado de Assis, poeta‖. In: MACHADO, Ubiratan. Roteiro da

Consagração. Op. cit. p. 242.

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147

Uma só das horas tuas

Valem um mês

Das almas ressequidas.

Os sóis e as luas

Creio bem que Deus os fez

Para outras vidas.120

A confissão do poeta resumiria sua metamorfose: as flores que oferece são outras,

trazem a melancolia das ―almas ressequidas‖. Nenhum resquício de ilusão restou no

coração do poeta, entretanto não deixa de ofertar suas flores, ainda que já não sejam as

mesmas.

A estrofe final guarda uma contradição irreconciliável acerca da crença do poeta.

Apesar de falar de Deus e dos ―sóis‖ e ―luas‖ (lugares comuns da poesia?), usa a expressão

―Creio bem que Deus os fez‖ para, em seguida, acrescentar: ―para outras vidas‖, ou seja,

para outras pessoas. A afirmação inicial é negada no último verso, confirmando

obliquamente a sua descrença, quase a justificá-la como sendo uma questão de parcialidade

divina: não é ele que deixa de crer, mas é Deus que o exclui de seus planos.

No ―Soneto de Natal‖, além de retornar ao assunto divino, retratando a atitude de

um homem diante de um evento religioso - ―Noite cristã, berço do Nazareno‖ – trata

também da dificuldade de compor um soneto motivado pela circunstância. Esse homem,

que identificaremos mais adiante com o poeta, parece aguardar um milagre natalino, um

renascimento das atitudes do passado, uma retomada dos instantes de alegria que marcaram

sua infância.

Um homem – era aquela noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno, -

Ao relembrar os dias de pequeno,

E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno

As sensações da sua idade antiga,

Naquela mesma velha noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno.

120

ASSIS. T.P. p. 334

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148

Escolheu o soneto... A folha branca

Pede-lhe inspiração; mas, frouxa e manca,

A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,

Só lhe saiu este pequeno verso:

―Mudaria o Natal ou mudei eu?‖121

A rememoração do passado retorna nesse poema, comparando o estado anterior ao

atual, porém suas palavras afirmam que não é possível encontrar um meio de reviver o

antigo modo de sentir. O passado e o presente, segundo afirma, não podem se reconciliar; o

poeta de Ocidentais rasura o bardo da juventude, sem, contudo, poder se desvencilhar

completamente dele.

As Poesias completas teriam esse perfil de reafirmação e de negação, refutando os

sentimentos daquele que um dia cantou ―A morte no Calvário‖ e ―Redenção‖ - poemas de

índole religiosa -, mas relembrando saudosamente das ―lépidas cantigas‖ de outra idade. Há

uma aparente tentativa de transpor as velhas sensações da infância para o tempo da

maturidade, porém o ―metro adverso‖ se opõe ao ―verso doce e ameno‖ que o poeta tenta

em vão recuperar.

Para ilustrarmos a oposição de sentimentos, veremos como os versos machadianos

passam por uma transformação na forma e no conteúdo. O poema ―Redenção‖, publicado

em 1859, trataria do nascimento de Cristo com efusão e êxtase religiosos, apontando o

Natal como momento de resgate do homem, como instante de purificação e de

manifestação dos sonhos. Toda a atmosfera natalina favoreceria a imaginação e a

inspiração.

Tu foste – Belém provecta

- Berço de um maior profeta

Sacrificado na cruz!

Batera a hora na ampulheta eterna,

E esse fato de um Deus que se agitava

No seio da fecunda humanidade

Surgira à luz. A natureza toda

Estremeceu e se arraigou mais bela!

Mas linda a flor dos campos nessa noite

121

Idem. p. 324.

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149

O seio abrira. – No seu leito o homem

Nessa noite sentiu mais puros sonhos

Por sua mente revoar... E as almas

Que esta terra de abrolhos maculará

Sentirão todas – um chuveiro de ouro122

Comparando o ―Soneto de Natal‖ ao poema ―Redenção‖, fica evidente a distância

entre as duas visões que neles se apresentam. A metamorfose havia se completado,

irreversível, como o próprio poeta conclui, apesar de optar pelo questionamento no fim do

soneto: ―Mudaria o Natal ou mudei eu?‖.

Como na transformação de Agnel, na Commedia, o poeta admirava-se da mudança,

mas não podia se desvincular completamente do outro, nem tornar-se totalmente novo:

―Olha que já não és nem um nem dois!‖. Ainda assim, mesmo sem o ―chuveiro de ouro‖ da

inspiração de Natal, o poeta constrói o soneto através do recurso metapoético: tratando da

própria dificuldade de escrever, conclui os quatorze versos necessários à composição.

Machado poria os dois poetas frente a frente: o aspirante à montanha das musas e o

poeta veterano que chegara ao alto do monte. Como a contemplar o próprio rosto, ainda

que não reconhecesse mais nos traços daquele a feição mais recente, talvez desejasse ver

cumprida a teoria goethiana: ―O mais feliz dos homens é aquele que consegue ligar o fim

de sua vida ao início‖, ou talvez, nas próprias palavras machadianas reformuladas a partir

da idéia de Goethe, pensasse ainda em ―atar as duas pontas da vida‖.

2.3- Descendo a montanha das musas

“Chegou já o tempo justo de minha vida, com tempestuoso mar, qual frágil barca, num porto comum, onde se submetem motivo e razão de toda obra triste e pia. E de onde a afetuosa fantasia, de que a arte me faz ídolo e monarca, conheço bem agora o tamanho do erro que abarca e quanto mal a seu pesar todo homem deseja.” (Michelangelo Buonarroti)

122

ASSIS. T.P. p. 675.

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150

―O poeta chegara ao alto da montanha‖ - com esse verso Machado iniciaria o último

poema de Ocidentais: ―No alto‖. Certamente, o escritor tinha consciência de sua despedida

do gênero lírico ao conceber o projeto das suas Poesias completas, em 1901. Assim, além

de retomar um topos poético da lírica clássica também encontraria uma forma de dialogar

com o poeta do passado, articulando no alto da montanha a definitiva síntese entre ―o que

se foi‖ e ―o que se é‖, apesar de não existir uma resposta definitiva para ―o que será‖,

pergunta que surge no poema.

Há uma inversão do curso natural da poesia e, em vez de subir, o poeta resolve

descer a encosta. Como em ―Última folha‖, deixa ―ao eco dos sagrados ermos/ A última

harmonia‖. Toda visão etérea se desfaz, restando apenas o elemento prosaico por natureza.

O poeta chegara ao alto da montanha,

E quando ia a descer a vertente do oeste,

Viu uma coisa estranha,

Uma figura má.

Então, volvendo os olhos ao sutil, ao celeste,

Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,

Num tom medroso e agreste

Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,

Ou bem como se fosse

Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.

Para descer a encosta

O outro lhe deu a mão.123

Em relação ao poema, a associação mais freqüentemente feita pela crítica, assim

como pelos estudiosos da poesia de Machado, é à peça de Shakespeare, A tempestade.

Obviamente, a citação de Ariel permite a relação imediata com a obra do dramaturgo

inglês, assim como a ―figura má‖ é logo assimilada à representação de Caliban, outro

123

ASSIS. p.347

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151

personagem da peça shakespeariana.

Menos comum, quiçá inexistente, é a explicação acerca da introdução de Ariel no

contexto da poesia, ou seja, qual seria a relevância do personagem shakespeariano para a

compreensão do poema de Machado? Outro ponto importante é que, afora a observação de

Romero, até o momento nenhum crítico estabeleceu uma ligação entre os poemas de

Crisálidas e os de Ocidentais e, mais especificamente, entre as composições que encerram

os dois livros.

Não se pode negar que, na proposta do autor em reunir os livros anteriores

acrescentando a eles um mais recente, há uma tentativa de confrontar o antigo e o novo, o

poeta do passado e o do presente. Ocidentais, além de ser uma homenagem aos mestres de

Machado, viria a ser uma retrospectiva de sua obra poética da juventude, uma síntese das

duas pontas da vida do poeta.

Partindo dessa perspectiva, podemos estabelecer o primeiro vínculo entre ―A

tempestade‖ e ―No alto‖, considerando que tanto a peça quanto o poema tratam da

despedida de seus autores de um determinado gênero, comportando ambos uma natureza

metatextual: o dramaturgo analisa e avalia sua carreira, assim como o poeta tece reflexões

acerca da própria obra poética (stricto senso) que ali se encerra.

No caso de A tempestade, é senso comum entre os críticos a afirmação de que o

personagem principal, Próspero, age como uma espécie de auter ego do dramaturgo, tendo

em vista que, durante toda a peça, discorre sobre o ato de representar. Além disso, chama-

nos a atenção que essa obra, de 1611, tenha sido a última produção integralmente escrita

por Shakespeare, marcando, assim, o encerramento de sua carreira como escritor de teatro.

(...) a personagem central, Próspero, tem características que podem sugerir

uma auto-identificação com Shakespeare. Então ela poderia ser peça de

Shakespeare, num sentido bastante especial, a despedida de sua arte, se

quisermos, especialmente se considerarmos o discurso de Próspero, em

que ele promete jogar seu livro ao mar.124

Como a ilha de Próspero, a montanha machadiana é um lugar especial, assinalado

por duas vertentes: uma ascendente, tendo a companhia de Ariel (espírito de ar e de fogo), e

outra descendente, por onde a ―figura má‖ o conduzirá: o outro lado da encosta.

124

FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. p. 211.

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152

Além de resumir o passado (ascendência) e o futuro (descendência), se associarmos

essa ―figura má‖ a Caliban (ser ligado à terra e à água), chegamos ao contraponto entre o

etéreo e o terreno. Não apenas isso: no poema machadiano, especificamente, percebe-se

que a montanha é o lugar da fantasia, das imagens etéreas e sublimes do poético –

pertencente ao gênero alto -, enquanto o mundo terreno se associa à realidade prosaica - ao

gênero baixo.

Tanto em Shakespeare quanto em Machado, a questão principal envolve o conflito

de dois caracteres, o contraste entre duas figuras. Fantasia e realidade estariam sendo

confrontadas num lugar especial, um locus amoenus representado pela ilha ou pela

montanha, ambos os ambientes sendo uma espécie de isolamento ―mágico‖ da realidade.

A peça finaliza-se com Próspero libertando Ariel após a execução de vários

serviços. O espírito passa toda a peça transformando-se continuamente, assumindo diversos

papéis, mas sempre invisível aos olhos dos outros: articulando esta e aquela cena, incitando

a movimentação dos personagens que habitam a ilha, interferindo em cada ação, enfim,

surge como um ator em cena, que busca cumprir o script traçado pelo autor. Numa das

seqüências, Ariel dirige-se a Próspero, após cumprir mais uma tarefa, e lhe pergunta: ―Foi

bem feito?‖ - como se tudo ali fosse representação.

O protagonista shakespeariano decide abandonar definitivamente a magia com que

rege aquela ilha, lançando o seu livro de encantamentos ao mar. Resolve também

abandonar o local. Porém, mesmo contrariado, precisa levar Caliban consigo, como se ele

fizesse parte de toda a realidade, dura e cruel, que o aguardava no reino de Milão. Próspero

desiste de um reino de sonhos para tomar posse de um reino verdadeiro na Itália.

A despedida do personagem inicia-se na cena do casamento de Miranda e

Ferdinando e se completa quando o dramaturgo encerra a representação, como se o

abandono da ilha fosse metáfora do abandono do palco, pedindo que a platéia o liberte com

as suas palmas. Vejamos primeiramente a cena do casamento:

(...) criai ânimo,

senhor; nossos festejos terminaram.

Como vos preveni, eram espíritos

todos esses atores; dissiparam-se

no ar, sim, no ar impalpável. E tal como

o grosseiro substrato desta vista,

as torres que se elevam para as nuvens,

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153

os palácios altivos, as igrejas

majestosas, o próprio globo imenso,

com tudo o que nele contém, hão de sumir-se,

como se deu com essa visão tênue,

sem deixarem vestígio. Somos feitos

da matéria dos sonhos; nossa vida

pequenina é cercada pelo sono.

A ilha de Próspero, assim como a figura de Ariel, é tecida de sonhos; desfeita a

fantasia, desfaz-se também o pequenino cerco da vida. O microcosmo de Próspero se

rompe para dar lugar ao mundo – o macrocosmo - que ele não domina. Caliban faz parte

desse mundo fora do homem, universo material que ele não compreende inteiramente,

apesar de tentar submetê-lo ao domínio racional. O epílogo da peça só confirma o caráter

metatextual da peça shakespeariana, a partir do momento que Próspero só pode abandonar a

Ilha, lugar que domina plenamente, após a aprovação do público: ―Libertem-me de minha

atroz prisão ainda agora,/ Com palmas, com aplauso, com mãos tão generosas/ E as cálidas

palavras que das bocas vão soprar e/ Meus planos vão frustar ou minhas velas enfurnar‖.125

No poema de Machado, é o poeta que faz o questionamento, ―O que será?‖, sem

obter a resposta de Ariel. Inverte-se o panorama representado na peça de Shakespeare. A

fantasia parece causar receio ao poeta, dando-lhe um ―tom medroso e agreste‖, enquanto a

realidade apresenta-se muito mais segura, na medida em que, diante do desnorteio da cena

inicial, a figura má apresenta-lhe um novo caminho, de descida, apoiado em sua mão.

Esse guia malévolo, por assim dizer, subverte o panorama anterior, atraindo o poeta

para baixo. Ao contrário de Próspero, o poeta de ―No alto‖ não domina o bem ou o mal,

mas necessita da orientação de ambos. Esse ponto de distanciamento entre Machado e

Shakespeare nos faz pensar numa outra possibilidade de interpretação do poema, partindo,

desta vez, de um outro autor, mas sem nos distanciarmos do nosso foco de atenção, que é a

questão da dualidade.

Goethe retomaria em seu Fausto alguns personagens de Shakespeare, incluindo

Ariel, que aparece em dois momentos cruciais da peça: na subida do monte no ―Sonho da

Noite de Valpúrgis‖, na primeira parte, assim como logo na abertura da segunda parte,

escrita na maturidade do poeta, quando Fausto se encontra na ―Região amena‖, ou locus

125

SHAKESPEARE, William. A tempestade. (Tradução de Beatriz Viégas-Faria). Porto Alegre: LP&M,

2007. p. 114.

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154

amoenus, como anteriormente havíamos nomeado o espaço da ilha e da montanha.

Os estudos sobre a tragédia goethiana a aproximam da peça de Shakespeare, bem

como o dramaturgo inglês parece ter se inspirado no Doutor Fausto, de Marlowe, para

compor A tempestade. Próspero e Fausto, dois sábios ou magos, dominam a ciência e o

saber dos livros, e, também senhores de artes mágicas, dominam a alquimia e as forças

místicas. Até o nome de ambos seriam sinônimos, segundo nos relata Harold Bloom.

O nome de Próspero, o mago criado por Shakespeare, é a tradução italiana

de Faustus (―o favorecido‖), pseudônimo latino adotado em Roma por

Simão Mago, o Gnóstico. Tendo Ariel, um espírito ou anjo (o nome em

hebraico significa ―leão de Deus‖) a seu serviço, em contraste com

Mefistófeles de Marlowe. Próspero é um anti-Fausto shakespeariano, a

incontestável superação de Marlowe.126

Seguindo esse diálogo entre autores, enquanto Shakespeare parece querer negar o

Fausto de Marlowe com a criação de Ariel, Goethe reúne ambos, Próspero e Fausto,

retomando tanto o Ariel de Shakespeare quanto o Mefistófeles de Marlowe. Talvez por

isso, em muitas ocasiões o Fausto goethiano apareça submisso e arrependido, enquanto,

noutras, surge autoritário e decidido, quase impondo a Mefistófeles suas vontades.

O diálogo de Machado no alto da montanha também retoma a tradição tanto de

Shakespeare quanto de Goethe, na medida em que não cita o nome da ―figura má‖,

mantendo a ambigüidade que aponta ao mesmo tempo para Caliban e Mefistófeles. A

própria natureza dúbia de Mefisto o faz parecer ambíguo, já que se diz parte de uma energia

capaz de criar Mal e Bem, assim como, no poema machadiano, o Mal é que oferece auxílio,

enquanto o Bem se desfaz.

Machado, no poema, aproxima-se muito da mentalidade goethiana ao desmentir a

fantasia, veículo das ilusões e incertezas da vida. Seguindo a filosofia de Schopenhauer,

como já havíamos comentado, também renegaria o mais torvo dos males: a esperança,

representada pelo ―O que será?‖, lançado a Ariel, como uma pergunta sem resposta que

ecoa pelos ares e se esvai juntamente com a figura aérea e vaga.

No ato da peça de Goethe denominado ―Noite de Valpúrgis‖, assim como no poema

de Machado, temos uma subida ao monte. No caso do Fausto, trata-se do Blocksberg,

famosa montanha das bruxas e dos seres maléficos, para onde, inicialmente, Mefisto

126

BLOOM. Op.cit. p 803.

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155

conduz o protagonista. No entanto, o propósito da figura má não é levar Fausto ao cimo,

mas afastá-lo da subida, talvez como se quisesse impedir a visão ampla do personagem, e

desviar sua atenção da figura de Margarida que aparece para ele como um espectro.

Diante da proposta de desistir da subida, Fausto e Mefisto dialogam:

FAUSTO:

Gênio da oposição! Bem hei de acompanhar-te!

Mas a esperteza admiro; aos cimos

Do Brocken, nesta noite, os passos dirigimos,

Para ficarmos cá, de parte.

MEFISTÓFELES:

Pois vê que flamejar garrido!

É um clube alegre reunido.

Nunca estás só com o povo miúdo.

FAUSTO:

Quisera no alto estar, contudo!

Vejo fogo e espirais de escuma.

Para o demônio a massa ruma.

Mais de um enigma, lá se solve.

MEFISTÓFELES:

E mais de um lá, também se envolve.

Fiquemos cá, onde é quieto, e desande

A bel-prazer o mundo grande!

É praxe antiga e de ótimos efeitos

Serem, no grande mundo, os pequeninos feitos.127

Fausto deseja rumar para o alto, para o lugar, segundo afirma, onde os enigmas são

resolvidos. Mefisto desmente essa concepção ao asseverar que outros enigmas maiores

poderiam envolvê-lo ―no alto‖. A figura maléfica o aconselha a ficar no meio da jornada,

aproveitando os prazeres do ―povo miúdo‖, ou a tranqüilidade do pequeno mundo, em vez

de desvendar os mistérios do ―grande mundo‖. Há um convite para que Fausto retroceda:

―Fiquemos cá, onde é quieto, e desande/ A bel-prazer o mundo grande!‖

No ato seguinte, ―Sonho da noite de Valpúrgis‖, ao contrário de Mefistófeles, Ariel

127

GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op.cit. p. 453.

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156

incita os personagens a subirem a montanha: ―Deu-te o empíreo, amante e vasto,/ Deu-te o

gênio asas viçosas,/ Segue teu ligeiro rasto/ para o morro, lá, das rosas‖128

Ariel é o último

personagem a falar no Brocken; segue-se um coro, a anunciar que toda visão está se

esvaindo: ―Nuvrejão, véu de neblina,/ Dissolvem-se na aurora./ Vento na haste, ar na

campina,/ E tudo se evapora.‖

O retorno ao monte, dessa vez não nomeado, ocorre na segunda parte da tragédia de

Goethe, escrita na velhice. Como na peça de Shakespeare, A Tempestade, essa também

seria a derradeira despedida do poeta do mundo das letras. Em sua biografia, Goethe admite

que, desde a infância, quando assiste a um teatro de marionetes encenando o tema, o

Doutor Fausto havia lhe provocado grande impressão.

Na juventude, esboça os primeiros escritos do seu Fausto (Urfaust), que chegou até

nós pela transcrição de uma senhora a partir do original do poeta alemão (destruído por ele

mesmo). Por toda vida Goethe se dedicará à tragédia, sendo essa, portanto, uma obra que

reúne escritos da juventude e da velhice.

Se, de início, Goethe encontra inspiração na peça de Marlowe, já na primeira parte

oficial da tragédia, publicada em 1808, se deixa também guiar pelo Próspero de

Shakespeare. A última parte, Fausto II (1832), mescla uma série de influências, medievais

e clássicas, desde os autos calderonianos aos mitos milenaristas, e demais ideologias que

formaram o mundo ocidental.

O elemento que une a primeira à segunda parte do Fausto parece ser Ariel, que

fecha a cena do ―Sonho da Noite de Valpúrgis‖ incitando a subida à montanha (antes que

toda a cena se evapore), e abre o primeiro ato do Fausto II, em que o protagonista desperta

no alto do monte, lugar identificado apenas como locus amoenus (região amena).

Ariel, seguido de uma ronda de gênios, canta diante de Fausto:

Sílfides, vós, que o envolveis em cerco aéreo,

Lidai agora a vosso modo etéreo!

Da alma extraí-lhe o dardo da amargura;

Do remorso abafai a voz tenaz;

Livrai-lhe o ser da visões de negrura!

São quatro as pausas da noturna paz,

Desde já, preenchei-as com brandura.

(...)

128

Idem. p. 487.

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Das sílfides cumpri o anseio pio,

À luz sagrada restituí-o.

O alvorecer é a hora do dia que dissipa as dores antigas, os males da noite. Ariel

evoca o dia e pede que Fausto beba do rio Letes para esquecer os sofrimentos anteriores.

Todas as criaturas etéreas anunciam a vinda do sol, como alívio às dores sofridas pelo

protagonista da tragédia. A fala de Fausto, porém, contradiz o etéreo e o fantasioso

conclamado por Ariel, e o personagem admite que se sente atraído para baixo, para os

vínculos materiais e terrenos que Mefistófeles lhe oferece. Não há nele espaço para o

sonho, o devaneio ou a ilusão. A realidade soa mais real que toda a região amena anunciada

por Ariel.

Aqui encontramos o ponto de contato com o poema de Machado: reconhecendo, por

fim, que não é possível retomar o caminho inicial, que sempre aparece impalpável e

utópico, opta por descer a montanha, deixando-se conduzir para o outro lado da encosta.

Não o lugar do nascer do sol, como no mito platônico, mas a vertente do oeste (onde a

figura má surge, associada ao ocaso, no declinar das ilusões).

Como na abertura da segunda parte da tragédia de Goethe, em que Fausto dá as

costas ao sol, o poeta de ―No alto‖ desconsidera o ponto de partida e aceita o derradeiro

destino. Entre um mundo vasto e irreal (que se desfaz sem deixar resposta) e outro restrito

e tangível (que lhe estende a mão), o poeta escolhe o último, aquele que lhe garante mais

segurança: o universo prosaico e terreno.

Na tragédia de Goethe, a fala do protagonista contempla muitos aspectos da lírica

machadiana, principalmente da obra poética da maturidade em diálogo com a da juventude.

Olha para o alto! – Os cumes da montanha

Da soleníssima hora dão o aviso;

O pico cedo a luz eterna ganha,

Que mais abaixo se aproxima lenta.

Dos Alpes já viçosos prados banha,

Cujo verdor com nitidez salienta;

Gradualmente ilumina a extensa pista.

Surge o astro! – e eu me desvio, ah não o agüenta,

Já deslumbrada, a dolorida vista.

É assim, pois, quando a férvida esperança,

Do anelo máximo que na alma exista,

Se abrem portais da bem-aventurança.

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Mas jorra então, de páramos extremos,

Um mar de chamas que em temor nos lança.

Da vida o facho incandescer quisemos,

E nos envolve um fogo que nos traga.

É ódio, é amor, em cuja chama ardemos,

Do prazer e da dor mutuando, a vaga?

Retoma à terra o olhar, que em suave manto

De infância nos envolve, e o peito afaga.

Que fique atrás de mim, o sol, portanto!

A catarata que entre pedras ruma,

Contemplo agora com crescente encanto.

De queda em queda se despenha e escuma

Mil turbilhões espúmeos derramando,

Enche o ar de nuvens de escumosa bruma.

Que esplêndido, do turbilhão brotando,

Surge , magnífico, o arco multicor!

Nítido ora, ora no éter se espalhando,

Imbuindo-o de aromático frescor.

Vês a ânsia humana nele refletida;

Medita, e hás de perceber-lhe o teor:

Temos, no espelho colorido, a vida.129

A conclusão lograda por Fausto, no ―lugar ameno‖, casa-se ao pensamento

esboçado no poema machadiano: a esperança apenas conduz o homem ao medo e à mais

voraz das ilusões (o ar ―medroso e agreste‖, de que nos fala o poema de Machado). O

terreno é, pois, o espaço seguro que vela os olhos do homem ao seu inútil desejo de

expansão (que a subida ao monte sempre incita), de maneira que ele não ultrapasse os

limites além do que os seus sentidos poderiam suportar.

Seguem-se, desse modo, os conselhos de Mefistófeles, que anteriormente afirmara

que, se os enigmas no alto se solucionam, outros mais lá haveriam de surgir. A vida do

homem, como o arco-íris que surge diante do olhar de Fausto, mostra-se variada e profusa,

alternando-se nas certezas e nas incertezas (―Nítido ora, ora no éter se espalhando‖). Se a

verdade suprema não pode ser nitidamente contemplada (o sol), é na alma do homem (arco-

íris) que Fausto vê todos os espectros refletidos, de um a outro ponto, onde o pequeno

mundo, espelhando indiretamente a luz, a vincula ao fluido intenso da vida.

Se pensarmos na bela síntese poética de Machado realizada por Drummond, em seu

poema ―A um bruxo com amor‖, podemos arrematar o capítulo casando o pensamento de

129

GOETHE. 2ª parte . Op.cit. p. 45-47

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Shakespeare, Goethe e Machado, assim como de seus personagens, na escrita poética: ―Dás

volta a chave,/ envolves-te na capa,/ e qual novo Ariel, sem mais resposta,/ sais pela janela,

dissolves-te no ar.‖

Entre o Bruxo do Cosme Velho (epíteto conferido a Machado por Augusto Meyer),

e os auter egos Fausto e Próspero, há uma confluência de três magos que revisitam o

nascimento de seus enigmas para conceder ao leitor a visão mais plena, embora velada, de

suas principais indagações acerca do homem, da vida e da obra de arte.

3- MACHADO DE ASSIS: UM HOMEM DO TEATRO.

A falta de lirismo na poesia e a de ação no teatro foram duas sentenças proferidas

pela crítica que assumiram o caráter de verdades absolutas. O interessante é que nem na

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época de Machado, nem na atualidade, os críticos que mantiveram essa visão negativa

procuraram ler, com o aprofundamento devido, a poesia e o teatro machadiano.

Recentemente, no entanto, temos observado um aumento do interesse de editoras em

trazer a público os textos teatrais de Machado de Assis. As publicações relacionadas ao

teatro reúnem, além do teatro completo do autor, alguns poemas dramáticos publicados

nos livros de poesia e de crônicas, que nunca antes haviam sido classificados como peças

teatrais.

Dentre os textos publicados, podemos destacar a coleção Clássicos do teatro

brasileiro, organizada pela FUNARTE, que dedica o terceiro volume ao estudo dos textos

teatrais de Machado de Assis, Qorpo-Santo e Coelho Neto (FUNARTE, 2002); o livro

Teatro de Machado de Assis organizado por João Roberto Faria (Nova Fronteira, 2003) e

os dois volumes Machado de Assis: teatro (Cia. Editora Nacional, 2004). Dos três livros,

apenas o de João Roberto Faria traz uma boa introdução, ambientando o teatro de

Machado no cenário da época e procurando emitir algum juízo sobre as peças.

Quanto aos estudos sobre o teatro, há críticos que se têm debruçado sobre o assunto.

Merecem destaque algumas obras: Panorama do teatro brasileiro, de Sábato Magaldi;

Minoridade crítica, de Luís Antonio Giron, Machado de Assis e o teatro das convenções,

de Cecília Loyola e As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia

francesa, de Helena Tornquist. Enquanto os dois primeiros dedicam um capítulo a

Machado, os dois últimos livros oferecem um estudo detalhado de vários textos teatrais

do autor.

Cecília Loyola, procura desfazer a imagem preconceituosa dos críticos do passado,

mostrando que a ironia é um ponto determinante para a compreensão do teatro

machadiano:

Entretanto, se a cada ano vemos crescer o manancial crítico referente à

obra dita maior do autor, tal não é a sorte da dramaturgia. Os textos

estão aí numa espécie de limbo, eventualmente iluminados por sua

prática teatral inconstante. Talvez a estranheza provocada pela

modernidade radical desta cena seja ainda, de algum modo, a mesma

sentida por alguns contemporâneos de Machado, por exemplo, aquela

que selou, precocemente, o destino crítico da dramaturgia. Quintino

Bocaiúva escreveu a propósito das duas primeiras comédias,

sentenciando, para o futuro, o conjunto da obra. Assim é que a solução

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analítica, meio adjetiva, meio substantiva, tornou-se a associação aos

provérbios de Musset.

O estranhamento contemporâneo, que vê ali frieza e não ironia,

artificialidade e não opção dramática, faz-nos pensar o quanto do

passado está em nossos dias, o quanto de nós se pode perceber no

século XIX. (...) o texto machadiano obriga o estudioso (...) a

compreender a teia de relações que a proferiu e aquela que a tem

perpetuado.130

A autora escolhe algumas peças teatrais do escritor para desenvolver sua análise, mas,

mesmo se preocupando em reavaliar as produções machadianas, não seleciona nenhuma

comédia em verso, o que acentua a exclusão do poeta dramático da cena crítica.

O texto de Helena Tornquist é o único dos aqui apontados a lançar uma reflexão

acerca da classificação dos gêneros na obra dramática de Machado, por vezes mostrando os

frágeis limites entre o narrativo, o lírico e o dramático em seus textos. Sobre o teatro em

verso de Machado, a autora anota que é recente o reconhecimento das peças Antes da

missa, O bote de rapé e Uma ode de Anacreonte, anteriormente agrupadas em volumes de

crônica ou poesia.

A inclusão de diálogos como Antes da missa e O bote de rapé em

volumes de crônicas (lembremos que somente com a edição organizada

pelo Instituto Nacional do Livro esses textos foram incorporados à

dramaturgia de Machado) e a permanência de Uma ode de Anacreonte

no volume Poesias, em sucessivas edições, são exemplos eloqüentes da

precariedade das classificações de gênero.131

Partindo das observações de Tornquist, chegamos a uma questão central: a que gênero

pertence o teatro em verso de Machado? Convém destacar a constante mescla que Machado

promove dos gêneros, tanto na prosa quanto na poesia. Basta lermos um poema como

―Pálida Elvira‖, para notar como o escritor opera uma verdadeira fusão do lírico, do épico e

do dramático em sua obra, além de reaproximar a poesia do sentido original do termo

―lírico‖, retomando a relação deste termo com a música.

Na prosa, por exemplo, quando nos deparamos com certas palavras do narrador Brás

Cubas, temos a nítida impressão de estarmos diante da melhor definição da atitude do poeta

e do dramaturgo ao realizar a mistura de gêneros em sua obra:

130

LOYOLA, Cecília. Machado de Assis e o teatro das convenções. Rio de Janeiro, UAPÊ, 1997. p. 17. 131

TORNQUIST, Helena. As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia francesa. São

Leopoldo: UNISINOS, 2002. p. 299.

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Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi

um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o

austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos as

bufonerias, um pandemonium, alma sensível, uma barafunda de cousas e

pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do

teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia

em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de

vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do

beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão,

alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, que isso às vezes é dos

óculos.132

O trecho das Memórias póstumas nos remete ao processo criativo dos livros

machadianos, onde o sublime e o grotesco estão ironicamente unidos para provar que tudo

pode ser matéria-prima da obra de arte. O artista deve testar as formas e, principalmente,

reformulá-las.

A maioria dos críticos prefere fazer recortes de gênero no estudo das obras de

Machado de Assis ou, então, enfatiza o suposto ―recorte‖ temporal de sua produção. Assim,

temos pesquisas sobre a prosa machadiana dedicadas aos contos, romances e crônicas, ou

estudos da poesia ora voltados para o todo de sua produção, ora para a análise específica de

alguns poemas. Também se verifica uma separação nítida entre as obras produzidas na

juventude e na maturidade do escritor, na maioria das vezes, menosprezando a primeira

fase, ou só aproveitando os dados biográficos desta para reforçar a genialidade da segunda.

Da mesma forma, observa-se que os estudos sobre os textos dramáticos de Machado

ainda estão muito concentrados na definição do que seja ou não texto teatral, ou em

análises que buscam saber se as peças do autor possuem qualidade ou merecem maior

atenção por parte da crítica. Assim, a organização de antologias sobre o teatro machadiano

esbarra na questão do que pode ou não ser considerado intrinsecamente teatral, o que pode

justificar a ausência do teatro em versos nessas coletâneas.

Interessa-nos principalmente conhecer mais a fundo o poeta, sob vários ângulos,

tanto como produtor, quanto como leitor de poesia. Veremos de que maneira a poesia

machadiana se constrói no contexto dramático, através de algumas de suas comédias.

Destacamos três peças: Os deuses de casaca, Antes da missa e O bote de rapé.

132

ASSIS. O.C. Vol I. p 555.

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A partir de tudo que pudemos perceber na poesia de Machado de Assis, por

exemplo, suas muitas aproximações com obras de cunho dramático (de Goethe e de

Shakespeare), procuraremos agora avaliar outras formas de manifestação do verso

machadiano, principalmente no que se refere à sua inserção dramática.

Machado, certamente, iniciou seu gosto pela observação e pelo desvendamento da

―alma humana‖ no interior dos teatros, aonde ia freqüentemente. Acompanhando o

percurso do escritor, comprovamos a presença de Machado nos espetáculos da Corte desde

os 16 anos, seja no Teatro Lírico ou no Ginásio Dramático, em companhia do amigo

Francisco Gonçalves Braga. Sua formação inicial seria marcadamente influenciada pela

música, assim como pela cena teatral, seja na escolha das temáticas, seja na forma peculiar

de ambientar as cenas das suas narrativas.

A primeira obra publicada em livro por Machado foi Queda que as mulheres têm

para os tolos, em 1861, que alguns classificam como peça teatral e outros, mais

acertadamente, a consideram ―ensaio satírico‖, tratando-se de tradução de texto, em

francês, do escritor belga Victor Hénaux.133

De sua própria autoria, no mesmo ano, viria a público a ―fantasia dramática‖

Desencantos, também editada pela tipografia de Paula Brito. Machado intensifica sua

produção no gênero, publicando, em 1863, o volume Teatro, contendo duas peças: ―O

protocolo‖ e ―Caminho da porta‖.

Há um número considerável de textos dramáticos cujos originais se perderam, como

―O pomo da discórdia‖, peça escrita em versos, e ―Gabriela‖, ao que tudo indica inspirada

na atriz Gabriela da Cunha. Devemos considerar também, como vimos anteriormente, que

vários poemas machadianos foram especificamente criados para declamação no palco,

como uma espécie de prólogo das peças, como é o caso de ―O dilúvio‖.

Ainda no mundo do teatro, o escritor refinaria o seu aparato crítico e a capacidade

de observação quando assume a função de crítico, desempenhada por um bom tempo na

juventude, bem como viria a ser um dos censores do Conservatório Dramático, graças à sua

reconhecida atuação no meio teatral, tanto como autor, quanto como apreciador do

espetáculo cênico.

133

Massa foi o primeiro pesquisador a desmentir que esse texto era da autoria de Machado, conforme Lucia

Miguel Pereira pretendeu. Em recente edição da Universidade de Campinas (HÉNAUX, 2008), há o cotejo

entre o texto original de Hénaux e a tradução de Machado.

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Jean-Michel Massa fala-nos um pouco sobre o papel de crítico teatral,

desempenhado por Machado, nos folhetins da Corte:

Escrever sobre o teatro novo era um ato através do qual o escritor se

engajava.

Machado de Assis ficou orgulhoso de ser o escolhido para assumir tais

responsabilidades. Sentia-se no lugar de honra (...) ―Lá estive no posto

oficial que me confere o cargo de cronista: e pude embeber-me, como

todos, em um mare magnum de emoções novas.‖134

Nessas crônicas sobre o teatro, Machado dava o braço à leitora e a convidava a

apreciar o espetáculo através de suas observações, do olhar crítico que gentilmente deitava

ao papel. Pelas descrições, a leitora, principal alvo dos folhetins, podia projetar-se nos

salões e reviver as cenas narradas. O escritor fluminense, por sua vez, começava a

desenvolver um talento especial para interpretar os gestos das senhoras nos teatros,

ocupando-se não apenas em observar a representação teatral, como também em analisar o

comportamento das damas que iam assistir ao espetáculo.

Cortesmente, fazia de sua leitora o árbitro de suas preferências estéticas,

delimitando as fronteiras que ela não podia ultrapassar. Atribui-se, desta

maneira, um profundo conhecimento do coração feminino. Por exemplo:

o jogo das coquettes espectadoras das sessões de teatro quando

manejavam o leque: ―Também é uma arte o estudo de abrir e fechar este

semicírculo dos salões e dos teatros. Um bom fisiologista conhece o

caráter mais impenetrável pelo modo de agitar o leque‖.135

Não é de admirar que Machado tenha comparado este ato de interpretar as ações

com o caráter de fisiologista, que hoje corresponderia ao de psicólogo. Demonstrava, com

essa afirmação, uma tendência semelhante ao de Garcia, do conto ―A causa secreta‖, um

anatomista da alma, embebendo as emoções que se podia absorver das duas cenas: a teatral

e a social. O jogo das máscaras sociais aparecia no tablado e na platéia, e o observador por

excelência desenvolve um olhar com que procura ver como os outros estão vendo, da

mesma maneira que relata o que este ato provoca no outro e em si. Vida e arte se

confundem, ficção e realidade se unem no movimento da catarse.

134

MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. [trad. Marco Aurélio de M. Matos]. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.p.254. 135

Idem. p. 255.

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165

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e

remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances

dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um

personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça

reminiscências pessoais do vizinho.136

No trecho acima, retirado do conto ―A causa secreta‖, percebe-se que enquanto um

dos personagens aprecia a cena teatral, o outro aprecia a cena social, buscando pontos de

contato entre ficção e realidade, entre o que é representado e o que é vivido. A mesma

posição de observador que interpreta uma cena dramática, partindo de uma experiência

pessoal, surgiria no Dom Casmurro, quando Bento faz uma releitura de Otelo, após assistir

à peça, partindo da idéia da culpabilidade da protagonista, não da peça de Shakespeare, mas

de sua encenação em particular.

A emoção que Machado de Assis absorveu como um espectador diante do tablado o

influenciou em suas produções literárias. Ao falar de influência, não podemos esquecer da

expressão usada por Machado em sua crítica teatral: mare magnum; um imenso mar que

flui para o seu interior, ou seja, influi. O olhar, no entanto, não permanece isento nesta

apropriação. Tal como o vivisseccionista em favor da sua ciência, ele começa a

desmembrar a tradição e a retirar dela o conteúdo das experiências literárias, ainda que

termine por matá-la ou regenerá-la, conforme o mito de Prometeu, só para poder consumir-

lhe as entranhas novamente.

A arte tem por uma de suas funções a busca de novos caminhos para

interpretar/representar a alma humana. Na visão de Ronaldo Lima Lins, ―a primeira palavra

foi, sem sombra de dúvida, uma chave nova que se conquistou para se abrir um

caminho‖137

. Seguindo esta premissa, podemos dizer que o texto machadiano está

encharcado dessas reflexões. Podemos acrescentar que o caminho pode ser um labirinto de

significações quando o que está em jogo é o interior conflitante do homem. Prosseguindo

na conjectura de Lins, temos:

136

ASSIS. O.C. vol. II. p. 512. 137

LINS, Ronaldo Lima. Os gêneros: conflito e significação. In: _____. Violência e Literatura. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

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Num mundo regido pelo medo da morte, tudo deve ser estar

necessariamente em função do conflito principal. (...) A questão do

conflito primordial nos interessa na medida em que, refletindo as

angústias da alma humana, a arte representa, digamos assim, um pólo

catalisador para onde convergem os principais vetores da problemática

da existência e de onde partem, no terreno da emoção e da reflexão, as

esperanças e frustrações do homem.138

Baseado no que o texto de Lins afirma, podemos dizer que Machado fazia de sua

arte um pólo catalisador da grande problemática que é a existência humana. Talvez pelo

fato de o escritor dar ênfase a tais questões conflitantes, os críticos o classificaram como

um incurável pessimista. Afinal, essa afirmação pode ser considerada uma verdade? A

resposta é sim e não, pois o pessimismo machadiano não se desvincula da galhofa, uma

espécie de riso catártico usado para duelar com a melancolia. Definitivamente, para ventilar

a consciência, há sempre a janela do riso sendo aberta diante das portas que o pessimismo

fechou.

Como bem pôde observar Bilac, em um artigo de A Cigarra de 24 de outubro de

1895, o tão falado ―pessimismo‖ machadiano era apenas um olhar sincero à volta de si, ou

melhor, um dissecar de si mesmo.

(...) há aquele mesmo amor da psicologia e aquela fina ironia que fazem

Machado de Assis ser, sobre um artista, um pensador para quem a alma

humana não tem segredos. Dirão que o pensador é pessimista; que a sua

análise, fria e cruel, deixa uma dolorosa impressão de desconsolo; que a

sua ironia dói como uma punhalada; dirão que... Ah! meus irmãos! a vida

é aquilo mesmo! Machado escreve, torturando a si mesmo, rasgando as

suas próprias entranhas, pondo a nu os seus nervos. Que importa?

Abençoadas dores humanas, essas que criam tão belas páginas.

O vivisseccionista é sempre a representação da imagem do leitor crítico, que leva o

texto às últimas conseqüências, que o analisa fibra a fibra, como um bom ―leitor

ruminante‖. Esse leitor maquina sobre a matéria lida, passando e repassando seu conteúdo

nas ―cavernas do cérebro‖. A partir da citação de Bilac, é possível estabelecer uma

aproximação entre Machado e Gustave Flaubert, que, em algumas cartas, disse aniquilar

todo o sentimentalismo para compor seus personagens. Por trás do cético, do pessimista,

138

Idem. p.180

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havia uma alma mutilada no ato da escrita. Madame Bovary, para Flaubert, era o grande

desafio de sua vida, por vezes, uma luta contra a própria subjetividade.

Ao escrever esse livro [Madame Bovary], eu sou como um homem que

tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange. Mas quando eu

souber mais meu dedilhado, se me cair nas mãos uma ária de meu gosto

e que eu possa tocar com os braços soltos, vai ser talvez muito bom. Eu

acredito, de resto, que nisso eu estou certo. O que você faz não é para

você, mas para os outros. A arte não tem nada a esclarecer para o artista.

Tanto pior se ele não gosta de vermelho, do verde ou do amarelo; todas

as cores são belas, trata-se de pintá-las.139

Novamente temos uma imagem que remete ao mito de Prometeu: para trazer o fogo

divino aos homens, aquilo que sua escrita produz, o escritor abdica de si mesmo, doa as

próprias entranhas, muitas vezes sem o devido reconhecimento.

O que, então, se busca reconhecer nas peças machadianas? Não entraremos na

questão levantada a partir do parecer de Quintino Bocaíuva, se as peças servem para ser

lidas ou para ser representadas, mas buscaremos localizar a quê se filia a idéia primordial

da obra, suas influências, e em que medida a escolha do verso colabora na construção do

sentido.

Desobedecendo ao critério cronológico, começaremos a leitura pelas peças de 1878,

―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖, deixando Os deuses de casaca, apesar de sua escrita

em 1866, para o fim, exatamente porque muitos princípios dessa peça foram retomados no

decorrer da obra, podendo ser também considerada o embrião de um dos romances do final

da vida do escritor.

3.1 - “Antes da missa” e “O bote de rapé” – uma breve análise da sociedade

fluminense do século XIX

139

FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p.79

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No ano de 1878, Machado publica cinco textos no jornal O Cruzeiro: ―O bote de

rapé‖, ―Um cão de lata ao rabo‖, ―Filosofia de um par de botas‖, ―Antes da missa‖ e

―Elogio da vaidade‖, que fogem de uma classificação tradicional e da matéria que se podia

esperar que figurasse no meio jornalístico. O que aí notamos é uma mistura de gêneros, que

vai da escrita teatral ao diálogo filosófico e, talvez, pela dificuldade em definir a que

gênero pertencem, figurem na seção ―Miscelânea‖ da edição Obra completa da Nova

Aguilar.

Há ainda outro curioso texto, e pouco referido, da autoria de Machado publicado no

mesmo veículo. Trata-se de ―A sonâmbula‖, ópera cômica bem curta, que, apesar do nome,

segue uma concepção distinta da ópera de Bellini, embora também trate da infidelidade

conjugal. O texto machadiano consta dos Dispersos coligidos por Jean-Michel Massa, e

retoma uma temática apreciada por Machado: o charlatanismo dos adivinhos e

prestidigitadores.

Nessas produções publicadas em O Cruzeiro, Machado pratica um exercício de

estilo, combinando gêneros diferentes, experimentando formas e modelos, enfim, buscando

uma nova expressão literária que culminaria na publicação das Memórias póstumas de Brás

Cubas, rompendo definitivamente com a estrutura tradicional das narrativas até então

veiculadas no Brasil.

O jornal O Cruzeiro começou a circular no início de 1878 e, ao que tudo indica,

Machado foi um de seus principais organizadores, um mentor intelectual, digamos assim.

Essa função desempenhada por ele no periódico foi registrada em uma de suas cartas. Em

correspondência destinada a Salvador de Mendonça em 8 de outubro de 1877, havia um

convite ao amigo para colaborar no jornal:

Meu caro Salvador. / Escrevo-te à pressa, à última hora, e por isso me

dispensarás se te não digo uma série de cousas que há sempre que dizer

entre bons amigos que se não falam há muito. / Antes de tudo, estimo a

tua saúde e a de tua senhora e filhos. / Vai aparecer no 1.º do ano de 78

um novo jornal, O Cruzeiro fundado com capitais de alguns

comerciantes, uns brasileiros e outros portugueses. O diretor será o Dr.

Henrique Correia Moreira, teu colega, que deves conhecer. / Incumbiu-

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me este de te propor o seguinte: / 1.º Escreveres duas correspondências

mensais. / 2.º Remeteres cotações dos gêneros que interessem ao Brasil,

principalmente banha, farinha de trigo, querosene e café, e mais, notícias

do câmbio sobre Londres, Paris etc., e ágio do ouro. / 3.º Obteres

anúncios de casas industriais e outras. / Como remuneração: / Pelas

correspondências, 50 dólares mensais./ Pelos anúncios, uma porcentagem

de 20%./ Podes aceitar isso? No caso afirmativo, convém remeter a

primeira carta de maneira que possa ser publicada em janeiro. Caso não

te convenha, o Dr. Moreira pede que vejas se nosso amigo, Rodrigues,

do Novo Mundo, pode aceitar o encargo, e em falta deste algum outro

brasileiro idôneo./ Os industriais que quiserem mandar os anúncios

poderão também remeter se lhes convier, os clichês e gravuras. Quanto

ao preço dos anúncios, não está ainda marcado, mas regulará o do Jornal

do Comércio, ou ainda alguma coisa menos./ Esta carta vai por via de

Europa. No primeiro paquete escreverei outra, para remediar o extravio

desta, se houver./

Desculpa-me a pressa, e escreve ao/ Teu do coração./ MACHADO DE

ASSIS.140

Nessa missiva, há informações acerca do mês e do ano do lançamento do jornal,

mas não só isso. Pelo detalhamento feito por Machado na carta, ficamos sabendo também

como se estruturaria o jornal, qual o seu público, que assuntos seriam abordados, quais os

patrocinadores, e, o mais interessante, nos inteiramos de que Machado seria o principal

responsável pelo plantel de O Cruzeiro, selecionando aqueles que se incumbiriam de

prover-lhe artigos e textos, isto é, os intelectuais de talento que colaborariam na publicação.

Neste período, Machado já desfrutava de reconhecimento pela sua capacidade

intelectual, tendo lançado livros de poesia e de teatro, assim como traduções, mas suas

contribuições nos jornais recebiam maior destaque. Assim como no decênio de 60, deu seus

primeiros passos como cronista, no de 70, faria suas incursões pelo romance, estreando

com Ressurreição, em edição de Garnier, e prosseguindo na escrita de outros três livros do

gênero - A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia -, trabalhados inicialmente sob a forma de

folhetim.

Naquele período, final dos anos 70, o escritor consolidava uma fase de consagração

como prosador de narrativas mais longas, é o que deixa transparecer em outra carta, escrita

um ano antes, dirigida ao mesmo Salvador de Mendonça. Na missiva, Machado elogia o

artigo publicado por Salvador na revista Novo Mundo sobre seu livro de poesia,

Americanas, e fala do lançamento do romance Helena: ―Vai com este vapor um exemplar

140

ASSIS. O.C. vol. III. p. 1.035.

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170

da Helena, romance que publiquei no Globo. Dizem aqui que dos meus livros é o menos

mau; não sei; lá verás. Faço o que posso e quando posso.‖ (13 de novembro de 1876).

Obviamente há uma grande carga de modéstia nas palavras do escritor, mas,

segundo consta na carta, Machado dá importância ao fato de Helena ter recebido elogios da

crítica, no sentido de ser uma produção melhor que as anteriores. Talvez o escritor

estivesse se referindo ao artigo, sem assinatura, publicado em A Reforma, em 19 de outubro

de 1876.

Helena é um trabalho que pode competir com os mais bem acabados do

gênero.

Já antes nos havia dado o Sr. Machado de Assis um outro romance, que,

pela finura das observações, desenho dos caracteres, estudo psicológico e

amenidade dos episódios, anunciava a posição eminente que teria de

ocupar entre os romancistas nacionais, o vigoroso autor de Ressurreição.

Helena, que lhe seguiu, é um grande progresso.141

Uma outra crítica a Helena, posterior à escrita da carta de Machado, também

destaca o romance como uma das melhores produções machadianas. Todavia o que nos

interessa é a ressalva que o autor do artigo, A. C. Almeida, faz à figura do poeta: ―Nota-se,

contudo, uma coisa: que o estamos considerando como romancista (grifo nosso). Do

Machado poeta já não diríamos o mesmo, se bem que ande-lhe (sic) aureolado o nome por

apoteose balofa e louvaminheira.‖142

Definitivamente, o prosador começava a ocupar o vasto terreno literário de onde o

poeta, a princípio, era banido. Como um autor que respeitava o julgamento do outro sobre

seus escritos, Machado parecia avaliar atentamente o que se afirmava sobre sua obra e

buscava a justa medida de sua vocação.

A vida literária de Machado girava em torno dos jornais e foi esse o veículo que lhe

serviu de escola e oficina, que lhe apurou o estro. Além de O Cruzeiro e O Globo, citados

aqui, Machado já havia colaborado em outros periódicos, como A Marmota Fluminense,

(transformada posteriormente em A Marmota), O Futuro, O Espelho, Gazeta de Notícias,

Jornal das Famílias, Jornal da Tarde e Diário do Rio de Janeiro.

141

MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p.

107. 142

Idem. p. 108.

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171

Quando destacamos os seis textos de O Cruzeiro, foi especialmente pelo fato de o

periódico trazer a público textos de natureza distinta da que a maioria dos jornais tinha por

hábito veicular. Normalmente, o que se lia nas diversas seções jornalísticas, além das

notícias e anúncios, eram traduções, romances em capítulos, novelas, contos, crônicas e

poemas. O anedotário também era bem farto, assim como as ilustrações, charges e

caricaturas. É curioso como O Cruzeiro rompe com esse padrão ao também oferecer aos

leitores textos teatrais e reflexões filosóficas.

Dois textos de Machado em O Cruzeiro nos interessam particularmente, por serem

peças teatrais escritas em verso: ―O bote de rapé‖ e ―Antes da missa‖. Ambas as comédias

apresentam um aspecto singular: o papel da mulher na sociedade fluminense do século

XIX. O interesse de Machado pela questão feminina é muito natural se observarmos que,

por muitos anos, ele foi um dos principais colaboradores do Jornal das Famílias, e sua

vasta publicação neste periódico se estende de 1863 a 1878, o que comprova sua constância

na publicação de textos particularmente voltados para o público feminino. A publicação

oferecia às leitoras páginas de romance, contos, histórias morais, lições religiosas,

anedotas, receitas de economia doméstica, culinária, partituras musicais, modas e trabalhos

manuais - de artesanato a lições de corte e costura.

Desse universo tipicamente feminino, Machado retirou muitos perfis que viria a

desenvolver em sua obra. Da mesma forma, a convivência com tal meio ofereceu-lhe um

vasto conhecimento da ―alma sensível‖, em confronto com o universo masculino, dos

leitores, aparentemente, ―sisudos‖, mas que, da mesma forma, representavam a frágil

intelectualidade da capital do Império, com seus ―medalhões‖, francamente favorecidos

pelo patriarcalismo.

Assim, procuraremos fazer um estudo mais atento dessas duas peças, ―Antes da

Missa‖ e ―O bote de rapé‖, que, aliás, ainda não mereceram um estudo acurado dos críticos

da obra machadiana, assim como de Os deuses de casaca. A índole da sua comédia em

verso parece ser, sobretudo, a de apresentar a face caricata e burlesca da sociedade

fluminense, principalmente da elite, mas quase sempre de uma maneira enviesada, como

seu estro de escritor exigia: na aparência, apenas rindo da superficialidade dos tipos sociais,

mas guardando, nas entrelinhas, críticas mordazes.

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172

3.1.1- Diálogos femininos e pintura social em “Antes da Missa”

Em ―Antes da missa‖, observa-se o ―diálogo entre duas damas‖ – subtítulo que

acompanha a peça de Machado. Uma delas, Laura, se encaminha para a prática religiosa, a

ida à missa, mas, antes de cumprir o ritual ―sagrado‖, vai visitar uma amiga, Beatriz. Lá

chegando, ambas entregam-se a falatórios do dia-a-dia, ao sublime ―falar da vida dos

outros‖ e, nesse âmbito, revelam igual ―religiosidade‖. O curto espaço de tempo da peça,

que se reduziria aos poucos minutos entre o encontro das amigas e o início da missa, não

impede que o desenrolar das falas dê conta de uma sucessão de acontecimentos da vida de

várias pessoas da convivência de ambas.

Aqui, um simples diálogo desvela uma maliciosa contradição existente no perfil da

capital do Império: ações ingênuas, à primeira vista, escondem pretextos e intertextos

menos inocentes, intrigas e falatórios. Há toda uma convenção social e religiosa sendo

cumprida e, ao mesmo tempo, um universo de outras questões sendo transgredido.

A comédia é o espaço de desequilíbrio da ordem para a introdução de uma

desordem ou de uma nova ordem, antagônica à primeira. Antes do compromisso sagrado da

―missa‖, as duas damas fazem todas as coisas condenáveis nas premissas cristãs. O

discurso das senhoras favorece a vaidade, a intriga, a mentira, as dissensões e outros

aspectos e sentimentos nada nobres e até contrários ao caráter apregoado na religião.

Para elas, há um novo mandamento: em vez do ―amai-vos uns aos outros‖, do

discurso cristão, passa-se ao ―falai-vos uns dos outros‖, impulsionado pelas novas ―modas‖

sociais. Fica bem nítido, em determinado momento da peça, que essa nova versão bíblica

passa a vigorar: Laura, ao ser questionada por Beatriz por manter amizade com pessoas de

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173

caráter duvidoso, afirma que não há outra forma de agir, já que ―Enfim, é nossa obrigação/

Aturarmo-nos, uns aos outros.‖143

Há uma subversão do mandamento divino, que acaba

por se tornar uma obrigação e passa a vigorar como uma das regras sociais de auto-

tolerância, já que os membros da sociedade têm seus defeitos expostos, mas se relacionam

mutuamente com cordialidade, pelo menos quando estão à vista de todos.

Há um dado importante que Machado insere na peça e que nos permite enxergar um

novo panorama no Rio de Janeiro. Referimo-nos à abertura maior da sociedade, que

culmina na saída das mulheres do ambiente recluso, do interior da casa, para o espaço das

ruas, onde podiam conferir as modas, as casas de comércio, onde examinavam e

compravam artigos de luxo vindos da Europa e começavam a externar a vaidade, a

ostentação, a assimilar outras regras sociais e a adquirir, afora o culto religioso herdado do

período colonial, uma nova doutrina: o culto da beleza. O principal desígnio feminino

parece ser, então, o alardear de aparatos e dotes nos saraus e bailes da capital.

A crítica machadiana atinge em cheio a futilidade das mulheres, a valorização dos

atributos físicos, o culto da riqueza e o franco desejo de ascensão social, que, em

contrapartida, casavam-se perfeitamente com as frivolidades masculinas, no plano do

―trabalho‖, como o apego a cargos políticos, diplomas, condecorações e títulos de nobreza.

Antes de avançarmos, registremos que as personagens da peça, curiosamente,

chamam-se Laura e Beatriz. As duas figuras podem ser logo associadas a Beatrice, de

Dante, e a Laura, de Petrarca, musas idealizadas por seus poetas, colocadas no pedestal

mais alto da adoração e, por assim dizer, divinizadas por seus cultores. No entanto, a dupla

é parodiada na comédia machadiana: Laura, que em Petrarca é exemplo de pureza e

virtude, passa a ser a informante de Beatriz acerca dos assuntos e intrigas do baile a que a

amiga não pôde comparecer.

De igual modo, Beatriz, a que conduz Dante ao Paraíso na Divina Comédia, é quem

vai desviar Laura do caminho da missa, das obrigações sagradas e, por pouco, não a

impede de cumprir seu propósito religioso. Literalmente desvirtuadas, as duas ―heroínas‖

vão conduzindo os espectadores/leitores da peça pelas vielas e becos da maledicência.

143

ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis, Qorpo- Santo e Coelho Neto. Rio de Janeiro: Funarte,

2002. p. 263.

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174

Cada freqüentador do baile terá a vida devassada pelas duas damas. Cada qual terá

evidenciado seu maior defeito, sua principal falha de caráter. Por este aspecto, até podemos

estabelecer uma outra comparação com a obra de Dante, além do nome de Beatriz, já que é

possível localizar nos personagens citados na peça todos os sete pecados capitais apontados

pelo poeta florentino em sua obra. No caso machadiano, há um desfilar dos sete pecados da

Capital do Império através das pessoas que freqüentam o baile de D. Laura. A

representação dos tipos sociais mostra-nos uma sociedade caricata e burlesca - para usar

aqui os mesmos adjetivos empregados por Machado na definição do perfil oficial da

sociedade brasileira numa de suas crônicas:

O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial,

esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens,

cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar

ao reino de Lilliput.144

Como não se inveja o reino de Lilliput, a sociedade pintada por Beatriz na peça se

apresenta como uma versão caricata da Commedia de Dante e, nesta medida, nada deixaria

a desejar ao ―Inferno‖ dantesco, retocado, porém, com as tintas da galhofa. Conduzidos

pela personagem, ou melhor, induzidos por ela, visitamos a ―vida dos outros‖ e ficamos

frente a frente com as indiscrições sociais e os pecados amplamente praticados pelos

personagens: ira, preguiça, avareza, gula, luxúria, inveja e vaidade - com destaque especial

para este último.

Logo no início do diálogo, as damas tratam-se de maneira ofensiva. Beatriz evoca a

preguiça como um aspecto do caráter da outra, enquanto Laura a trata de ―caloteira‖, por

não ter ido ao baile em sua casa. A preguiça, então, um dos pecados dantescos, abre o

discurso da peça:

Beatriz: Ora esta! Pois tu, que és a mãe da preguiça,

já tão cedo à rua! Onde vais?

Laura: Vou à missa;

A das onze, na Cruz. Pouco passa das dez;

Subi para puxar-te às orelhas. Tu és

A maior caloteira...

144

ASSIS, Machado de. "Comentários da Semana", Diário do Rio de Janeiro, 29/12/1861.

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175

Nota-se que elas não vão poupar nem a si mesmas, e que a língua das damas está

mesmo afiada e pronta para o exercício da maledicência. Mas o que confere nota especial à

peça é que tudo acontece ―Antes da missa‖, o que satiricamente esboça a hipocrisia social,

o desprezo dos sentidos religiosos, a corrosão dos valores éticos e dos padrões morais.

Apesar de tudo, o propósito machadiano, mais explícito, é simplesmente fazer rir. No

entanto, se seguirmos os conselhos dados por Machado em determinada crônica da

maturidade, é preciso ―raspar a casca do riso‖ para ver o que há em seu interior. Então,

dentro da comédia, encontraremos uma crítica mordaz, um retrato social eivado de

contradições.

O encadeamento do texto em verso torna o diálogo fluido e ainda mais cômico. A

fala de Laura emenda-se no discurso de Beatriz, mostrando uma parceria perfeita entre as

damas, um dueto afinado quando o assunto são as mazelas alheias.

A justificativa de Beatriz para ter faltado ao baile de Laura é completamente fútil, o

que nos remete a outro pecado capital: a vaidade. Beatriz se indispôs com o marido porque

não queria repetir o vestido com que fora, naquele mesmo mês, a outro baile. A sua vaidade

está acima da vontade do marido, que não consegue fazê-la atender ao seu apelo:

Vou, não vou; e a teimar deste modo, perdemos

Duas horas. Chorei! Que eu, em certos extremos,

Fico que não sei mais o que fazer de mim.

Chorei de raiva. (...)

Os excessos de Beatriz se sucedem: a recusa, a raiva, o choro, a briga com o marido

- tudo por causa de um simples vestido. Então, pode-se dizer que temos aqui um diálogo

entre a ―Mãe da preguiça‖ e a ―Rainha da vaidade‖. Nenhum desses epítetos, no entanto,

combina com uma pessoa que está se preparando para ir à missa. Aliás, num outro texto de

Machado de Assis, o conto ―Missa do galo‖, ocorre algo semelhante, pois a conversa entre

o jovem Nogueira e a madura Conceição, a ―santa‖, tem lugar minutos antes da missa do

galo, e tampouco parece configurar um momento religioso; pelo contrário, a cena vem

cercada de erotismo, embora velado, e de duplas interpretações.

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176

A conversa entre as damas da peça de Machado, por sua vez, não apresenta dupla

interpretação. O diálogo entre ambas é franco e aberto, pelo menos quando não estão

tratando de si mesmas. Neste último caso, o teor da conversa muda e passam a vigorar as

meias-verdades. Então, no jogo de dissimulações, entra em cena mais um dos pecados

capitais: a inveja. Em dois momentos distintos, as personagens acham, cada qual, que a

outra é mais feliz. Na primeira parte, é Beatriz que lamenta sua sorte e exalta a vida de

Laura, mais precisamente pelo fato de a amiga ter conseguido um livro melhor e mais

barato que o seu:

Beatriz: Deixa ver. Tão bonito! e tão mimoso! Gosto

De um livro assim; o teu é muito lindo; aposto

Que custou alguns cem...

Laura: Foi comprado em Paris;

Cinqüenta francos.

Beatriz: Sim? Barato. És mais feliz

De que eu. Mandei vir um, há tempos, de Bruxelas;

Custou caro, e trazia as folhas amarelas,

Umas letras sem graça, e uma tinta sem cor.

Para essas senhoras o livro é apenas mais um acessório. O conteúdo de suas páginas

não interessa, apenas a aparência e o valor financeiro são importantes. Machado mostra que

o público leitor da época, principalmente o feminino, não estava apto para julgar o

conteúdo de uma obra, ainda estava afeito à aparência. Ou seja, bastava ao volume ter uma

bela embalagem e ser produzido na Europa para o público considerá-lo de alta qualidade.

O diálogo das damas prossegue, e é informado ao leitor que o fornecedor do livro

de Laura é o mesmo que lhe abastece de sapatos, tecidos e chapéus. Concluiu-se que a

moda feminina não se restringia às vestimentas, mas se ampliava ao hábito de adquirir

livros como parte da composição do traje social. São essas as entrelinhas machadianas. A

leitura inexiste, o livro é apenas mais um objeto decorativo.

Ainda seguindo o discurso da inveja, Laura também repete a frase da amiga,

achando-a mais feliz que outras mulheres em relação ao casamento, já que, mesmo se

desentendendo com o marido por causa do vestido do baile, consegue rapidamente fazer as

pazes.

Laura: (...) Ah! feliz, tu, feliz,

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177

Como os anjos do céu! tu sim, minha Beatriz!

Brigas por um vestido azul; mas chega o urso

Do teu tio, desfaz o mal com um discurso,

E restauras o amor com dois goles de chá!

Começam, então, a tratar dos maridos e da vida de casada. Enquanto Laura declara

que são uns ―aborrecidos‖, esperando que a outra confirme a versão, obtém de Beatriz,

contrariamente, a afirmação de que o marido é um bom homem. Laura, então, desconversa

e muda de opinião, mas continua tentando achar no esposo da amiga alguma falha de

caráter. Passa a interrogá-la com perguntas indiscretas, como: ―O teu que tal?‖, ―Ama-te?‖,

―O teu costuma andar tarde na rua?‖, ―Não costuma ir ao teatro?‖, ―Não sai para ir jogar o

voltarete?‖. E, não se sentindo vencida, finaliza com certo descrédito quanto às

afirmações de Beatriz:

Laura: Pois olha, eu suspeitava, eu tremia de crer

Que houvesse entre vocês qualquer coisa... Há de haver

Lá um arrufo, um dito, alguma coisa... Nada?

Nada mais? É assim a vida de casada

(...)

Como no começo, as damas não poupam a si mesmas das indiscrições e tentam

saber de algum segredo uma da outra para, talvez, passarem-no adiante. A inveja fica

explícita no diálogo na mesma medida em que a hipocrisia encobre as verdades acerca da

própria intimidade. O anseio que têm em revelar a vida dos outros, também possuem para

resguardar as próprias. Só as duas personagens parecem ser felizes e, mesmo assim, uma

lamenta a sorte da outra.

Preguiça, vaidade e inveja, portanto, já foram reveladas no discurso de ―Antes da

Missa‖, mas, na descrição que as amigas fazem da sociedade, encontramos mostras de

outros ―desvios‖ que compõem os sete pecados descritos em Dante.

A gula está personificada na figura da moça Farias, que demonstra um apetite

extraordinário e passa o baile inteiro comendo e valsando:

Beatriz: A Farias foi lá à tua casa?

Laura: Foi;

Valsou como um pião, e comeu como um boi.

Beatriz: Come muito, então?

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178

Laura: Muito, enormemente; come

Que só vê-la comer; tira aos outros a fome.

Sentou-se ao pé de mim. Olha, imagina tu

Que varreu, num minuto, um prato de peru,

Quatro croquettes, dois pastéis de ostras, fiambre;

O cônsul espanhol dizia: ―Ah, Dios, que hambre!‖

Já a luxúria vem representada por dois personagens: doutor Soares e Carmozina

Vaz. Enquanto este não pode ver uma moça que já promete casamento, aquela ―devora‖ os

olhos de um outro rapaz, Antonico. Cercado de duplo sentido, o diálogo acerca de

Carmozina talvez encerre o comentário mais maldoso de toda a peça.

Beatriz: A Carmozina. Foi leviana; andou mal,

Lá porque ela não come ou só come o ideal...

Laura: O ideal são talvez os olhos do Antonico?

Beatriz: Má língua!

Em seguida, Laura e Beatriz ilustram a avareza através dos personagens Mateus

Aguiar e o sogro. Ao que tudo indica, o sogro aplica um golpe no próprio genro para

conseguir dinheiro. Outros dizem que foi um plano articulado pelos dois para lograr os

credores. Tanto numa acepção quanto na outra, há o apego aos bens materiais, e uma

preocupação em burlar as leis para acumular riquezas.

Laura: Alguma gente. Vai o Mateus Aguiar.

Sabes que perdeu tudo? O pelintra do sogro

Meteu-o no negócio e pespegou-lhe um logro.

Beatriz: Perdeu tudo?

Laura: Não tudo; há umas casas, seis,

Que ele pôs, por cautela, a coberto das leis.

Beatriz: Em nome da mulher, naturalmente?

Laura: Boas!

Em nome de um compadre; e inda há certas pessoas

Que dizem, mas não sei, que esse logro fatal

Foi tramado entre o sogro e o genro; e natural.

A ira já havia dado mostras de sua presença logo no início da peça, com o choro de

raiva de Beatriz, ao contrariar o marido e se recusar a pôr o vestido. Mas a discussão é

passageira e logo apaziguada pelo tio da moça. O mesmo não acontece com a mulher do

Mesquita, que teima com o marido, querendo ir à Europa, e torna-se alvo de sua fúria.

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179

Laura: Cuido que ela quer ir à Europa; ele disse

Que antes de um ano mais, ou dois, era tolice.

Teimaram, e parece (ouviu-o o Nicolau),

Que o Mesquita passou da língua para o pau,

E lhe fez um discurso hiperbólico e cheio

De imagens. A verdade é que ela tem no seio

Um sinal roxo; enfim vão desquitar-se.

Aproveitando-se da agudeza da língua das senhoras, Machado extrai da cena

imagens de fina ironia, cercada de comicidade. Ao afirmar que Mesquita fez ―um discurso

hiperbólico e cheio de imagens‖, notamos o contraste desta frase refinada com o verso

anterior em que Laura fala abertamente ―passou da língua para o pau‖. Temos aqui o misto

de comicidade e ironia sutil, já que há duas traduções para o ato de Mesquita surrar a

esposa: a primeira, franca e aberta, seria a tradução literal, enquanto a segunda, formal e

metafórica, a tradução irônica. A distância entre ambas evoca a comicidade da cena e

aponta para uma questão muito arraigada naquela sociedade: a dissimulação presente no

discurso oficial e cerimonioso e a irreverência do discurso mal-intencionado e, portanto,

extra-oficial.

Assim reunidas, as mazelas sociais compõem o pano de fundo da peça ―Antes da

missa‖ e ninguém escapa dessa rede de intrigas, nem mesmo as protagonistas, apesar da

afirmação de que são felizes. Com em ―Missa do galo‖, em que a ―ida ao teatro‖ do marido

de D. Conceição é metáfora do adultério, as duas personagens admitem que os maridos

saem para jogar o voltarete. Talvez, nessa afirmação, estejam escondidas outras metáforas,

essenciais para o jogo social, para a manutenção das aparências, principalmente no âmbito

matrimonial.

3.1.2- “O bote de rapé”: o nariz entra em cena

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180

A outra comédia, objeto de nosso estudo, denomina-se: ―O bote de rapé‖. A

introdução da palavra ―rapé‖ logo no título desta obra parece um indício de que o universo

masculino será o núcleo da peça. No decorrer da leitura, entretanto, percebemos que

também há uma reflexão em torno do universo feminino, de onde vão surgir algumas

indagações e, novamente, se dará ênfase à saída das mulheres do ambiente familiar para as

ruas, para o mundo das compras, do comércio e da vaidade da Rua do Ouvidor.

O que, a princípio, é um dado novo em ―O bote de rapé‖, e que causa estranheza ao

leitor, é o fato de o nariz do personagem Tomé ganhar vida e assumir um papel que lhe

permite dialogar e expressar sua vontade, fazer reflexões ―profundas‖ sobre a sua natureza,

e governar as vontades do dono. Aliás, não se pode dizer que Tomé é dono do próprio

nariz, visto que se dobra facilmente às vontades deste. O fato de estar sem rapé faz do

personagem um completo inútil, que não consegue esboçar qualquer reação e só pensa em

dar uma pitada, já que, sem isto, não consegue tornar-se senhor de suas ações.

O tema é, de fato, provocador, diante da simplicidade da cena e da curta duração da

peça. A comédia é compõe-se de poucos personagens: o casal Tomé e Elisa, afora um

caixeiro que pouco participa da cena. Mas o que nos chama a atenção é o outro personagem

- o nariz intruso, que, apesar de constituir uma pequena parte do corpo de um dos

personagens, torna-se o alvo principal da ação de ―O bote de rapé‖. Tudo girará em torno

do nariz de Tomé, partindo da constatação de sua própria fragilidade diante da abstinência

do tabaco. Apesar de serem dois - o personagem e seu nariz - a vontade parece residir no

segundo, que é uma espécie de metáfora da alma ou do amor-próprio do primeiro.

Aqui, abriremos um grande parêntese para tratar desse estranho personagem da

peça machadiana. E, para completarmos a tarefa, faremos uma pequena ―viagem à roda do

nariz‖, à maneira de Maistre, para darmos conta da importância deste terceiro personagem,

que intermedia a ação dos outros dois - Elisa e Tomé.

Há uma especial predileção de Machado pelo tema, que também comparece em

outros momentos de sua escrita. De início, o nariz parece ser o centro da vaidade, o cume

do amor-próprio, o lugar onde residem as vontades humanas. Para exemplificar, basta uma

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181

leitura de uma narrativa machadiana de 1872, anterior, portanto, à peça em análise. Trata-se

do conto ―Uma loureira‖, publicado no Jornal das Famílias, sob o pseudônimo de ―Lara‖,

em que o narrador analisa a figura do Comendador Nunes, protagonista da história, da

seguinte forma:

Era um homem de 45 anos, um tanto calvo, bem apessoado, nariz não

vulgar, se atendermos no tamanho, mas vulgaríssimo se lhes estudarmos

a expressão. O nariz é um livro, até hoje, pouco estudado pelos

romancistas, que alíás se presumem grandes analistas da pessoa humana.

Eu, quando vejo alguém pela primeira vez, não lhe estudo a boca, nem os

olhos, nem as mãos, estudo-lhes o nariz. Mostra-me o nariz, e eu te direi

quem és. 145

O nariz, segundo o que se pode depreender da leitura, torna-se o resumo da própria

personalidade do indivíduo. De uma forma irônica, Machado descreve obliquamente o

caráter do Comendador, definindo-o como uma pessoa de expressões vulgares. A questão

da vaidade, do amor-próprio, fica patente, já que a importância dada ao cargo e ao

posicionamento social é sempre levada em conta quando Machado coloca o nariz em

evidência, ou seja, quando o utiliza como tema de destaque num determinado contexto.

No conto em questão, há um outro trecho que confirma definitivamente essa

propriedade do nariz na vida do Comendador, que se torna a fonte do seu orgulho, a

―nobreza‖ de seu caráter, apesar de representar externamente, para os outros, a revelação de

sua verdadeira face, de sua franca vulgaridade.

O nariz do comendador Nunes era a coisa mais vulgar deste mundo; não

exprimia coisa nenhuma de jeito, nem de elevação. Era um promontório,

nada mais. E todavia, o comendador Nunes tirava grande vaidade do

nariz, por lhe haver dito um sobrinho que era nariz romano. Havia, é

verdade, uma corcova no meio da extensa linha nasal do comendador

Nunes, e naturalmente, foi por zombaria que o sobrinho chamou àquilo

romano.

Tratando a parte do corpo como relevo, no sentido estritamente topográfico,

Machado nos apresenta questões de relevo social. Como uma descrição territorial, a face do

comendador servia a dois estados, divisados pela ―cordilheira nasal‖, que, neste caso, além

145

ASSIS, Machado de. ―Uma loureira‖. In: Jornal das Famílias: maio de 1872, pág. 140-141. (Exemplar da

Biblioteca Pública do Rio de Janeiro)

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da questão de espaço, se estende à questão dos estados do homem, da face social que cada

qual apresenta ou representa. Há, sobretudo, um conflito entre o exterior e o interior do

personagem, entre o que ele é no plano social e o que mostra ser em relação à própria

personalidade. Nunes, ao mesmo tempo em que possui destaque social como comendador,

não consegue deixar de mostrar traços de personalidade vazia e de excessos de vaidade. O

nariz parece ser o ponto de união entre o pessoal e o social, o lugar onde os dois planos se

deixam ver e são vistos.

Por outro lado, é interessante o fato de Machado usar a expressão ―nariz romano‖

no conto. Se pegarmos o sentido de ―nariz‖ empregado pelos romanos, do latim nasus,

veremos que está intimamente ligado a alguns outros sentidos, além de designar a parte do

corpo humano. ―Nariz‖ para os romanos podia tanto ser um indício de cólera, no sentido

real, ou mofa, zombaria, no sentido figurado. A natureza do nasus romano é, por assim

dizer, antitética, pois conjuga sentidos contrários a um só tempo: cólera e escárnio, fúria e

riso, o princípio trágico e o cômico. Machado parece se inteirar desta dicotomia que, na

verdade, reafirma o princípio do equilíbrio humano, a complementaridade dos contrários.

No conto ―Uma loureira‖, essa complementaridade é exposta no momento em que o

comendador contempla o próprio nariz e só enxerga o que a própria imaginação deseja ver.

Incapaz de discernir a zombaria do sobrinho, o nariz passa a ser o motivo de seu orgulho,

quando, ironicamente, é de fato a sua vergonha, a sua nudez diante da sociedade.

Posteriormente, em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado dedica um

capítulo ao assunto, com o mesmo objetivo de enfatizar a vaidade humana. O capítulo

XLIX do romance, denominado ―A ponta do nariz‖, retrata o momento posterior ao que

Brás Cubas perde a noiva, Virgília, para outro homem mais rico e de melhor posição social.

Para se consolar de sua inferioridade diante do rival, Brás passa a olhar para a ponta do

nariz, chegando à conclusão da importância de tal ato: ―Nariz, consciência sem remorsos,

tu me valeste muito na vida...‖ e monologa com o nariz, com uma espécie de consciência

saudosa de defunto ao relembrar as questões de outrora, sempre sob a ótica irônica, como

um exercício necessário para a sobrevivência do ego humano.

Em seguida, o narrador desenvolve longas reflexões sobre o exercício da vaidade: o

de mirar a ponta do nariz e esquecer-se do mundo exterior para acalentar o amor-próprio.

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Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar a ponta do nariz,

com o fim único de ver a luz celeste. Quando finca os olhos na ponta do

nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível,

apreende o impalpável, desvincula-se da Terra, dissolve-se, eteriza-se.

Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso

do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é

universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu

próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo

efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o

equilíbrio da sociedade. 146

E, novamente, vemos a questão do equilíbrio humano, sob as tintas da galhofa e da

melancolia do defunto-autor. Sobrepondo o nariz às questões de foro íntimo e social, faz

dele o lugar da reunião dessas dicotomias. Olhar para si é esquecer-se dos outros, admirar-

se é submeter ao olvido as comparações com o mundo exterior. Diante de tudo isso, o

narrador conclui: ―Há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que

a subordina ao indivíduo‖. Poderia ter dito ―pecados capitais‖ para a sobrevivência do ser

humano naquela sociedade, pois os sentimentos que movem o personagem Brás Cubas,

neste capítulo, são a inveja e a vaidade; esta, representada pelo nariz, permite que o amor-

próprio sobreviva diante das humilhações e das limitações sociais a que o personagem está

sujeito ou permite que ele sujeite os outros às suas próprias vontades.

Em 1882, um ano depois da publicação das Memórias póstumas, Machado traria a

público, nas páginas da Gazeta de Notícia, outro conto que desenvolvia a temática do nariz,

radicalizando ainda mais o conceito de vaidade e amor-próprio, tratado nos outros textos.

Em ―O segredo do Bonzo‖, inspirado nas narrativas fantásticas de Fernão Mendes Pinto,

Machado formula um conceito interessante sobre ilusão e realidade. Diogo Meireles, típico

charlatão, consegue provar que, se algo existe na imaginação, mas não existe na realidade,

de fato passa a existir, mas, quando ocorre o inverso, inexiste.

As nuances entre ilusão e realidade parecem ser dos temas preferidos de Machado,

mas, ao destacarmos esse conto, o fazemos pelo fato específico de o autor usar como

ilustração da teoria de Meireles o caso dos narizes da cidade de Fuchéu. Em resumo,

estando as pessoas dessa localidade acometidas de rara enfermidade que deformava os

narizes, o Sr. Diogo decide desnarigá-las e, no lugar, pôr um nariz imaginário,

146

ASSIS. O.C. Op. cit. vol. I. pág. 565.

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convencendo a todos de que o órgão invisível de fato existia, apesar de ninguém conseguir

vê-lo na realidade.

Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia

delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes

substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim

curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no

lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o

órgão substituto, e que esse era inacessível aos sentidos humanos, não se

davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra

prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o

fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuavam a

prover-se dos mesmos lenços de assoar.147

Embora logrados, os habitantes da cidade continuavam cultivando a vaidade, pois

era melhor ater-se a um nariz ideal do que ter de suportar a deformidade do real. Assim, a

sublimação do indivíduo permanece e ele passa a acreditar naquilo que lhe é mais

proveitoso, desde que mantenha o seu amor-próprio. Logo, o real não importa à

humanidade, e sim a ilusão, ainda que absurda e impalpável.

O absurdo também é tema de um famoso escritor russo, Nikolai Gogol, em seu

conhecidíssimo conto ―O nariz‖. Assim como o comendador Nunes, personagem de

Machado, o major Kovalyov, do conto de Gogol, tem particular apreço por seu cargo e

posição na sociedade, mas tudo fica ameaçado quando o major acorda sem o nariz.

Caminhando pela estética do absurdo, a ironia de Gogol não poupa críticas à sociedade

russa do século XIX. A história torna-se mais inverossímil na medida em que Kovalyov sai

em busca do seu próprio nariz e o encontra, para seu espanto, trajando um uniforme de alto

funcionário do governo.

Ao se deparar com o improvável, Kovalyov tenta dialogar com o próprio nariz, que

se nega a reconhecê-lo e foge. Se é inconcebível que um nariz possa falar, como acontece

também em ―O bote de rapé‖, é ainda mais incrível imaginá-lo vestindo um uniforme,

descrito da seguinte maneira: ―usava um uniforme bordado em ouro, com uma gola alta,

147

ASSIS. O.C. vol. II. p. 328.

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calças de camurça e uma espada do lado. Pelo chapéu de plumas podia-se concluir que ele

se considerava um conselheiro de Estado.‖148

O major Kovalyov passa toda a narrativa tentando reaver o que perdeu, e sempre há

um lamento por parte dele quando pensa nos privilégios sociais que deixará de ter por estar

deformado. Viver ―desnarigado‖, sem encontrar algo que substitua o nariz subtraído, é

como perder valor na sociedade, ser colocado à margem. No diálogo com o nariz, o major

faz a seguinte afirmação para tentar convencê-lo da importância de sua figura e da sua

necessidade de tê-lo no lugar adequado:

Claro que eu... aliás, eu sou major. O senhor vai admitir que não é

adequado, para mim, andar sem nariz. Uma velha que venda laranjas

descascadas na ponte Voskresensky pode se sentar lá sem nariz. Mas,

tendo a possibilidade de obter... e, além disso, conhecendo muitas damas

na família do conselheiro civil Tchehtarev e em outras... o senhor pode

concluir... Não sei, senhor... (...) Desculpe-me... se examinar a questão de

acordo com os princípios do dever e da honra...o senhor vai entender...149

Percebe-se que o major se preocupa unicamente com o seu papel na sociedade,

afinal ele não é qualquer um, como a pobre velha da ponte Voskresensky. O dever e a

honra de que fala no trecho são, na verdade, vaidade e status. Num determinado momento,

chega a desejar que houvesse alguma outra coisa no rosto substituindo o nariz, desde que

não permanecesse com aquele vazio entre os olhos e a boca. Como acontece com o alferes

Jacobina, personagem machadiano de ―O espelho‖, a farda e a ocupação parecem ser o

fulcro da vida do major Kovalyov. Com muita ironia, o narrador do conto de Gogol

insinua: ―É preciso dizer que Kovalyov se ofendia com facilidade. Perdoava tudo o que

dissessem a respeito dele mesmo, mas não perdoava insulto à sua categoria ou à sua

ocupação.‖

O papel social excede o moral, a ele se sobrepõe. O grande conflito não é perder o

nariz, mas o prestígio, o valor naquela sociedade. Poder-se-ia aplicar ao conto de Gogol a

mesma filosofia defendida em ―O espelho‖: ―Cada criatura humana traz duas almas

consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro‖.150

O nariz

148

GOGOL, Nikolai. ―O nariz‖. In: _____. O nariz e A terrível vingança. (Trad. Arlete Cavaliere). São Paulo:

EdUSP, 1990. p. 17-18. 149

Idem. p.18-19. 150

ASSIS. O.C. Op.cit. p. 346

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de Kovalyov almejava um cargo superior ao que exercia no corpo do major, a alma exterior

estava cindida. Ao se reunirem novamente no final do conto, eis que a imagem exterior e

interior se reconciliam e retornam aos contornos de outrora. Assim, ao mirar-se no espelho,

Kovalyov encontra a mesma sensação de Jacobina, reconhece-se e tem de volta a posição e

o cargo. Novamente há estabilidade no retorno a si mesmo, ou melhor, no retorno, embora

paradoxal, ao ―eu exterior‖ perdido.

Embora o conto de Gogol desdobre uma abordagem fantástica, há uma advertência

nas linhas finais, com algumas impressões sobre a matéria narrada. Inicialmente, como o

corifeu do teatro grego, o narrador comenta os absurdos da história, critica todo o conteúdo

narrado, mas, no fim, conclui ironicamente:

E no entanto, apesar de tudo isso, embora, claro, se possa admitir o

primeiro ponto, o segundo e o terceiro... se possa até... mas não há

inconseqüências em toda parte? E no entanto, quando se reflete sobre

isso, há realmente alguma coisa nisso. Não importa o que se diga, essas

coisas acontecem – não com freqüência, mas acontecem.

Após esta pequena ―viagem à roda do nariz‖, fechando o grande parêntese que

abrimos, podemos dar início à leitura da peça ―O bote de rapé‖, mas voltaremos sempre

que necessário aos textos aqui descritos, assim como poderemos recorrer a alguns outros

para o esclarecimento de determinadas questões da peça machadiana.

O subtítulo da peça, ―comédia em sete colunas‖, já desperta a curiosidade à

primeira leitura. O termo ―sete colunas‖ parece ser uma indicação da formatação do texto

na página do jornal, no caso referindo-se à sua largura máxima. Infelizmente inexiste a

edição de O Cruzeiro na Biblioteca Nacional, devido a sua ausência nos arquivos, o que

nos impediu de verificar o formato em que o texto da peça foi publicado em 1878.

―O bote de rapé‖ começa com a entrada de Elisa em cena. No texto, há a indicação

de que ela entra já entra ―vestida‖, pronta para sair às ruas. Obviamente, é uma prova de

que há uma premeditação em suas ações, mas o marido parece não atentar para o detalhe.

Na verdade, a única preocupação de Tomé é com o seu nariz. Literalmente, o personagem

não enxerga ―um palmo adiante do nariz‖. Então, ele enceta o diálogo com a esposa,

afirmando que vai enviar um criado à rua para comprar o bote de rapé. Elisa prontamente

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se oferece para cumprir a tarefa, como se encontrasse mais um pretexto para sair às

compras, sem encontrar qualquer resistência de Tomé.

Há um conflito na personagem, já que, ao mesmo tempo em que é solícita ao

marido para comprar o que ele deseja, profere uma crítica ao vício que ele possui, ainda

que em tom de riso. Como pode pôr-se a serviço de algo que ela mesma condena? Quando

Tomé reclama que a caixa de rapé está vazia, responde Elisa:

Elisa (Rindo): Oh! se pudesse estar

Vazia para sempre, e acabar, acabar

Esse vício tão feio! Antes fumasse, antes.

Há vícios jarretões e vícios elegantes.

O charuto é bom tom, aromatiza, influi

Na digestão, e até dizem que restitui

A paz ao coração e dá risonho aspecto.

Elisa tenta convencer o marido de que o rapé é ultrapassado, ―fora de moda‖. O

―bom tom‖ do charuto é indicador de classe social e, por conotar um status maior do que o

rapé, vício já em desuso, ganha propriedades medicinais que justificam seu emprego entre

as pessoas mais cultas.

Por outro lado, contrariando o discurso científico, veiculado na fala de Elisa, vem o

discurso religioso de Tomé, por sinal sacrílego, já que eleva o rapé ao plano espiritual e

divino. Assim, há a oposição ciência versus religiosidade, sempre muito presente nas obras

machadianas, marcando os dois pólos dessa discussão aparentemente ―ingênua‖. Eis o

discurso de Tomé:

Tomé: O vício do rapé é vício circunspecto.

Indica desde logo um homem de razão,

Tem entrada no paço, e reina no salão,

Governa a sacristia e penetra na igreja.

Uma boa pitada, as idéias areja;

Dissipa o mau humor. Quantas vezes estou

Capaz de pôr abaixo a casa toda! Vou

Ao meu santo rapé; abro a boceta, e tiro

Uma grossa pitada e sem demora a aspiro;

Com o lenço sacudo algum resto de pó

E ganho só com isso a mansidão de Jó.

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A placidez de Tomé é outro ponto que merece atenção, pois é com ironia que a

esposa tratará da incapacidade do marido, de seu estado de inércia frente ao ambiente que o

cerca. Tudo indica que ele chegou a um estágio tal que não pode assumir o seu papel de

homem da casa e ocorre até um trocadilho no texto a respeito do assunto. Sutilmente à

leitura, mas com clareza na representação, vemos Elisa deixar alguns indícios de que algo

não vai bem no relacionamento do casal e que isso se deve ao comportamento passivo do

marido. Tomé afirma, no entanto, que o rapé pode até aumentar o amor entre ambos:

Tomé: Inda mais: até o amor aumenta

Com a porção de pó que recebe uma venta.

Elisa: Talvez tenhas razão; acho-te mais amor

Agora; mais ternura; acho-te...

Tomé: Minha flor,

Se queres reviver aquele amor antigo,

Vai depressa.

Dois aspectos desta cena chamam-nos a atenção. Inicialmente, a frase de Elisa

―acho-te...‖ não se completa, mas, para efeito de diálogo, introduz-se a fala de Tomé que se

inicia com ―Minha flor‖. Como se trata de uma comédia em verso, pode-se dizer que o

autor lançou mão do recurso devido à métrica e à rima. Mas, para o efeito cômico, o

trocadilho é bem apropriado, ou seja, sugeriria que a ―flor‖ é Tomé. O outro aspecto é que

Tomé envia a mulher à rua com o seguinte conselho: ―Se queres reviver aquele amor

antigo,/ Vai depressa.‖. Para Tomé significa, obviamente, o amor que o rapé vai despertar

nele, mas fica subentendida a incitação para que a esposa parta em busca de ―reviver o

amor antigo‖, talvez, nos braços de outrem.

A cena II introduz novo diálogo, desta vez entre Tomé e o Nariz. Antes, há um

monólogo do personagem, questionando as constantes saídas da mulher. Agora temos o

retorno daquela mesma preocupação de Beatriz de ―Antes da Missa‖: conseguir roupa

adequada para ―desfilar‖ nos salões da Capital, nos bailes e nos saraus. A vaidade das

mulheres e a importância dos eventos sociais voltam a ser alvos da cena machadiana.

Tomé: Que zelo! Que lidar! Que correr! Que ir e vir!

Quase lhe falta o tempo de dormir.

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Verdade é que o sarau com que o dr. Coutinho

Quer festejar os anos do padrinho,

É de primo-cartello, é um sarau de truz.

Vai o Guedes, o Paca, o Rubirão, o Cruz,

A viúva do Silva, a família do Mata,

Um banqueiro, um barão, creio que um diplomata.

Dizem que há de gastar quatro contos de réis.

Não duvido; uma ceia, os bolos, os pastéis,

Gelados, chá... A coisa há de custar-lhe caro.

O mau é que eu também desde já me preparo

A desprender com isto algum cobrinho...

O marido tenta justificar os excessos da mulher mostrando a relevância desses

eventos sociais e também observa, com certo orgulho, o nível e os títulos das pessoas que

os freqüentavam e os valores gastos com o banquete. Isso obrigaria Tomé a despender

algum dinheiro, um mal necessário, segundo afirma, para poder participar do seleto círculo

da alta sociedade.

Em suas produções literárias, Machado quase sempre nos apresenta o ambiente da

alta sociedade fluminense e destaca o vazio das relações, permeadas principalmente pelo

dinheiro e pelos títulos honoríficos. Os aspectos simples do viver são esquecidos para ceder

lugar às extravagâncias. O autor prefere dar ênfase à corrosão das relações pessoais,

aparentemente sólidas, mas baseadas na mentira e na hipocrisia. A crítica machadiana,

porém, nunca soa de maneira veemente, pois é suavizada pelo efeito cômico. O riso, no

entanto, se, por um lado, suspende a crítica explícita, por outro, deixa que ela fique

subentendida nos versos bem-humorados.

Depois do monólogo de Tomé, fala o Nariz, suplicando ao dono o bálsamo do

tabaco. O homem se surpreende ao vê-lo falar, mas, por fim, repara que também ele

necessita de um conforto. Num paralelo interessante, o Nariz replica: ―O nariz sem rapé é

alma sem amor‖. Ou seja, o nariz é a metáfora da alma do personagem, um é o outro.

Assim, a alma de Tomé está vazia, sem amor.

Além da necessidade de amor apontada pelo Nariz em relação à alma do dono, a

peça sugere, como já havíamos destacado linhas atrás, que a imagem de Tomé se associa

com a da ―flor‖. O Nariz mostra sua filosofia a Tomé, como a exigir dele mais ação e mais

atitude, quando este sugere que troque o cheiro do rapé pelo odor agradável da flor. O rapé

seria o elemento necessário para trazer de volta o vigor de Tomé e do Nariz, sua privação

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faz ambos padecerem. Estranha-se o fato de o personagem querer substituir o rapé por

elemento em geral dissociado da personalidade masculina, como o perfume de flor. Como

o próprio Nariz afirma, esse tipo de cheiro está mais afeito aos narizes dos meninos e das

mulheres:

Tomé: Olha podes cheirar esta pequena flor.

O Nariz: Flores; nunca! jamais! Dizem que há pelo mundo

Quem goste de cheirar esse produto imundo.

Um nariz que se preza odeia aromas tais.

Outros os gozos são das cavernas nasais.

Quem primeiro aspirou aquele pó divino,

Deixa as rosas e o mais às ventas do menino.

Tomé

(Consigo): Acho neste nariz bastante elevação,

Dignidade, critério, empenho e reflexão.

Na cena descrita, o Nariz se recusa a cheirar o que Tomé lhe oferece e trata o rapé

como ―pó divino‖, portador de aroma superior a qualquer outro. A natureza divina do

espirro (provocado pelo rapé) remonta à mitologia. Prometeu, querendo dar vida a uma

estátua que construiu, subtraiu um raio de Sol e escondeu-o em sua tabaqueira, para que

Zeus não descobrisse. Tempos depois, esquecido do furto, aspirou o conteúdo da tabaqueira

e gerou, sem querer, o primeiro estrondo de um espirro. Os gregos consideravam o espirro

um augúrio, uma revelação.

Molière, por sua vez, abre a comédia Don Juan referindo-se a Aristóteles e ao uso

do rapé. Segundo os estudiosos de Molière, a peça é o primeiro texto literário a falar sobre

o uso do rapé na sociedade e da sua importância social. A cena de abertura de Don Juan,

protagonizada por Leporello, é muito significativa para que entendamos um pouco do que

Machado quis representar em ―O bote de rapé‖ e possui muitas semelhanças com as falas

de Tomé e do Nariz destacadas neste estudo:

Leporello (Com uma tabaqueira na mão): Diga o que diga Aristóteles e

toda a Filosofia, não há nada igual ao rapé. É a paixão dos nobres. Quem

vive sem rapé não é digno de viver. O rapé não apenas alegra e purifica

os cérebros humanos, mas conduz a alma à virtude. Com o rapé aprende-

se a ser um homem refinado. Não se dão conta, enquanto o consumimos,

de que maneira elegante nos comportamos com todos e com que graça o

oferecemos à esquerda e à direita, ali, onde nos encontramos? Antes

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mesmo que nos solicitem, antecipemos o desejo alheio – tanto é assim

que o rapé inspira sentimentos de honra e virtude a todos os que usam.151

A ênfase concedida a esse emprego do tabaco se justifica se tomarmos como base o

ano em que a peça de Molière estreou: 1665. Na peça machadiana, o uso do rapé, pelo que

notamos no discurso de Elisa, já não possui o mesmo status e privilégio, embora o

protagonista ainda insista em manter um costume do século XVII.

Encontramos muitos pontos em comum entre o discurso de Tomé, na primeira cena

em que descreve os benefícios do tabaco, e a fala de Leporello. O personagem de Molière

define o rapé como ―a paixão dos nobres‖ que ―alegra e purifica os cérebros‖ e ―conduz a

alma à virtude‖, assim como ensina a ―ser um homem refinado‖. Tomé afirma que o vício

―areja as idéias‖, ―dissipa o mau humor‖, indica os ―homens de razão‖ e concede franca

entrada aos ambientes mais refinados e influentes da sociedade.

Considerando as aproximações que pudemos traçar entre o tema desenvolvido por

Machado e a abertura do Don Juan, não seria inviável a hipótese de Machado, como grande

admirador de Molière, conhecer o texto do dramaturgo francês e, através da leitura da peça

ou de sua representação, ter-se animado a desenvolver uma comédia inteira tendo como

mote a abertura do Don Juan. Especulações à parte, prossigamos no estudo da peça

machadiana.

Tomé considera os conselhos dados pelo Nariz e continua aguardando passivamente

a esposa retornar de sua ―missão‖. Se repararmos na atitude de Tomé, veremos que o

personagem está em conflito com a própria alma. Há duas naturezas contraditórias em

Tomé: uma que questiona e discorda (representada pelo Nariz), outra que cede e apazigua.

O rapé parece ser o único elemento que pode fazer o personagem retornar à univocidade.

A cena III, a do tão aguardado retorno de Elisa, inicia-se. A esposa de Tomé,

porém, só está preocupada consigo mesma e com os artigos que adquiriu para cultivar a

vaidade. Passa a apresentar ao marido todas as compras, sem deixar quase espaço para que

ele se manifeste. Elisa emenda uma fala na outra, revelando os itens adquiridos. Discorre

sobre vestidos, chapéus, botinas, tecidos, enfim, sobre os diversos artigos femininos

comprados nas casas de comércio fluminenses. A ansiedade de Tomé se eleva a ponto de o

Nariz reclamar com o dono e fazê-lo interromper a fala de Elisa, para saber de sua

151

MOLIÈRE. Don Juan. (Tradução de Celina Diaféria). São Paulo: Hedra, 2006. p. 19.

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encomenda específica. Elisa, tão preocupada consigo mesma, esqueceu o simples pedido

do marido. A peça termina com a expressão aflita da esposa: ―Ai, Jesus! esqueceu-me o

bote de rapé!‖.

A conclusão a que se chega é que as modas e exigências sociais substituem aos

poucos a convivência familiar. Também se origina uma nova ordem na sociedade

patriarcal, em que o homem assume uma posição submissa, enquanto a mulher ganha as

ruas e passa horas longe de casa, e, muitas vezes, esquecendo-se de seus deveres de esposa.

Nota-se que em ambas as peças - ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖ – o tema se

fixa na mudança de hábitos das mulheres. Preocupação de moralista ou uma maneira de

castigar os maus costumes através do riso? Nos pareceres do Conservatório Dramático e

nas ―Idéias sobre o teatro‖, Machado aponta o caráter moralizador do teatro. Nesses

escritos, o escritor destacava como principal objetivo da cena brasileira a educação das

massas e a formação de um público crítico e refinado.

Do grande palco do mundo e das cenas da vida fluminense Machado extraiu

importantes lições que deram à sua obra uma face bem humorada, mas também

extremamente crítica em relação aos costumes sociais do século XIX.

3.2- Diálogo entre deuses e homens: Os deuses de casaca

No intervalo entre seus dois primeiros livros de poesia, Crisálidas e Falenas,

Machado publica uma comédia em verso que recebeu o título de Os deuses de casaca.

Escrita em 1864, foi representada pela primeira vez, segundo informação do próprio

Machado, no sarau da Arcádia Fluminense, em 28 de dezembro de 1865, e seria publicada

em janeiro de 1866.

A temática que serve de fundamento ao ideário da peça aborda as questões políticas

e econômicas da sociedade fluminense. O autor procura também salientar a militância do

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meio jornalístico como principal veículo de manipulação da opinião pública. Para

entendermos melhor o contexto da escrita de Os deuses de casaca, precisamos

contextualizar essa fase da vida de Machado de Assis.

Consideramos o período que vai de 1860 a 1867 o de consolidação da carreira do

jovem escritor, que publicaria os primeiros livros a partir de 61. Não se trata apenas de uma

questão de idade, de uma transição do adolescente para o homem adulto, mas de formação

profissional, de experiência no mundo das letras e, principalmente, do nascimento de um

perfil mais crítico e muito mais consciente em relação à vida social, política e literária do

Rio de Janeiro de seu tempo.

Até a década de 1850, Machado apreciava o ambiente literário com o olhar do rapaz

encantado pelo mundo dos ―deuses‖ da literatura. Todo aquele universo fascinante da

região central da cidade, os espetáculos e saraus, as livrarias e tipografias, o desfile de

sedas e casacas na Rua do Ouvidor, enfim, faziam parte de um mundo que, certamente,

deixavam qualquer jovem extasiado.

Em 1860, o jovem cultor das musas aceita o convite de Quintino Bocaíuva para se

tornar um dos redatores do Diário do Rio de Janeiro, veículo de muito relevo na capital do

Império, e que contava com a participação de grandes nomes do meio literário. Nessa

publicação de índole liberal, Machado iria moldar sua feição de jornalista, de redator e de

cronista, além de ter a oportunidade de vivenciar de perto as demandas sociais, políticas,

econômicas, religiosas e literárias de seu tempo. Permaneceria nesta função por sete anos e

assistiria à partida de muitos dos seus companheiros de pena, que abandonavam as musas

para alçarem vôos políticos, como Alencar e o próprio Bocaiúva. Testemunharia também a

decadência do jornal, entregue a mãos menos hábeis e mais comprometidas com outros

interesses, aquém dos literários.

Em nenhum outro momento da carreira encontramos um Machado tão francamente

militante quanto o do Diário do Rio de Janeiro, debatendo com políticos, defendendo

opiniões explícitas, entrando em litígio com a Igreja Católica, questionando dogmas e

atitudes de pessoas influentes e, finalmente, abandonando aquele perfil ingênuo e religioso

a que demonstrava estar filiado na adolescência.

No debate político, tentando demonstrar a união de Estado e Igreja na manutenção

de dogmas e utopias que favoreciam a dominação política e econômica da sociedade

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brasileira, recorria muitas vezes ao sarcasmo, usando principalmente o viés religioso para

falar dos ―ilustres‖ membros do senado e da câmara, ou para comentar o último discurso

deste ou daquele homem público.

Quanto ao folhetinista, adotando um perfil irônico por natureza, Machado lhe

conferiria um papel profético, como a voz que porta as verdades e as anuncia às massas.

Chega a admitir numa das crônicas que a função que desempenha é uma espécie de

apostolado, pois, através de um discurso convincente, poder-se-ia converter as almas mais

crédulas, no caso, as dos leitores.

Não seria o primeiro a retratar desse modo a atividade do cronista. Especificamente

no período em questão, em que Machado busca consolidar a carreira de cronista, há muitos

pontos de contato entre a sua abordagem e a de Paranhos, o Visconde do Rio Branco, de

quem seria grande admirador. Nas Cartas ao Amigo Ausente, crônicas publicadas no Jornal

do Commercio na década de 50, o então jovem Paranhos apresentava-se como um profeta a

vaticinar o desfecho de determinados assuntos, desta ou daquela maneira, a partir da

observação da cena pública. De igual modo, concentrando a sua atenção nos homens

elegantes e nos políticos que se sentavam nas cadeiras da loja de Desmarais, célebre

perfumaria da cidade, para discutirem as questões mais recentes do cenário político,

comparava-os aos ―deuses do Olimpo‖, que ali se reuniam para decidirem o destino da

sociedade brasileira.

Nelas [nas cadeiras da loja de Desmarais] se repimpam os nossos

elegantes e políticos, e, como as divindades do Olimpo, cercados de

límpidas nuvens que se desprendem dos seus vaporosos havanas, ali

analisam o passado, predizem o futuro, dissertam em comissão geral

sobre o baile e a política, aguçam o apetite e dilatam o espírito.152

Merece um estudo mais detido a influência de Paranhos na escrita das crônicas

machadianas do decênio de 60, principalmente pelo tom de crítica aos parlamentares e a

constante alusão à decadência da Igreja, num discurso que se aproxima muito dos textos de

Dante, principalmente De Monarchia, onde o monarca ainda é reconhecido como a figura

mais coerente para reger um país, graças ao seu perfil unificador. O Visconde declararia

152

PARANHOS, José Maria da Silva. Cartas ao Amigo Ausente. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de

Letras, 2008. p. 373.

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abertamente sua crença religiosa e política no Monarca de maneira mais contundente que

Machado, embora este tenha sempre demonstrado uma profunda admiração pelo

Imperador, em sua dimensão humana, e não divina, como Paranhos (e também Dante)

pretendia.

Entretanto, para não nos estendermos além da questão aqui objetivada, nos

deteremos especificamente nas crônicas publicadas no Diário, deixando o caminho

sugerido para os futuros pesquisadores da obra machadiana.

Em crônica de 12 de junho de 1864, usando o discurso religioso como pretexto,

Machado fala sobre um determinado discurso do Barão de São Lourenço, em réplica a

algumas críticas anteriormente feitas por Machado no Diário:

Também o folhetim tem cargo de almas. É apóstolo e converte. Fácil

apostolado, é certo. Não há terras inóspitas ou áridos desertos, aonde levar

a palavra da verdade; nem corre o risco de ser decapitado, como São

Paulo, ou crucificado como São Pedro. (...). É cômodo, e nem por isso

deixa de ser glorioso.

Deste modo o folhetim faz de ânimo alegre o seu apostolado. Entra em

todo lugar, por mais grave e sério que seja. Entra no Senado, como S.

Paulo entrava no Areópago, e aí levanta a voz em nome da verdade, fala

em tom ameno e fácil, em frase ligeira e chistosa, e no fim do discurso

tem conseguido, também como S. Paulo, uma conversão.

O Sr. Barão de São Lourenço foi o meu Dionísio. S. Ex. veio reconciliar-

se com as musas. Foi para isso que ocupou a tribuna terça-feira passada

(...)153

Misturando elementos pagãos e cristãos, o cronista aborda a questão política, tanto

da tribuna quanto do jornal, como uma batalha entre campos opostos. Como se houvesse

um retorno à Antiguidade, cristãos e pagãos disputam terreno diante de suas crenças e

opiniões. Entre os apóstolos cristãos e o ―Dionísio‖ do parlamento, o cronista diz que o

último teria se reconciliado com as musas. Machado desenvolve a ironia, dirigindo-se ao

parlamentar como se fosse porta-voz da provável reprimenda da musa. Despe-se das vestes

apostólicas para vestir o manto dos clássicos adivinhos:

A musa, ignorando se S. Ex. está ou não sinceramente convertido, hesitou

se devia escrever em prosa ou em verso. Uma terceira forma, que não

153

ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. Vol 2. Rio de Janeiro; São Paulo: Livro do Mês S.A, 1962.

P. 7-8

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fosse nem verso nem prosa, resolvia a questão; mas essa só o ilustre barão

ou Mr. Jourdain no-la poderia indicar. Achei um meio-termo. Descosi os

versos da referida musa, e arranjei a obra, de modo que pode ser

indistintamente verso ou prosa. Hei de publicá-la depois.154

Se considerarmos o teor do prólogo de Os deuses de casaca, podemos nele

reconhecer alguns traços dessa promessa machadiana, a saber, a de publicar uma obra que

fundisse prosa e poesia. Entretanto, a intenção da peça não se restringe a uma resposta

específica a este ou aquele parlamentar: sintetiza todos os discursos políticos, assim como o

pensamento que predomina nas chamadas ―democracias‖ do mundo ocidental. A aparente

―alegoria‖ dos deuses da peça seria uma demostração paródica do discurso utópico da

política e da religião com a finalidade de manipular a opinião pública a seu favor.

Um outro alvo de Machado, além da tribuna política, era a folha católica A Cruz,

contra qual se dirigiu muitas vezes para refutar condenações feitas a obras como, por

exemplo, as de Ernest Renan. Para o cronista, era inadmissível a vigilância ideológica

exercida pela Igreja, principalmente ao emitir pareceres condenatórios acerca desta ou

daquela obra de arte, ou ao cercear a leitura de algum escritor clássico ou contemporâneo.

Sobre a natureza dessa publicação católica chega a afirmar:

A Cruz é realmente cruz: serve para experimentar a fé dos católicos; se no

fim de um mês de leitura, o católico não tem perdido a fé em que vive, -

está livre de tornar-se herege. Isto é o que acontece nas outras partes, com

outros jornais do mesmo gênero, quer se chamem o Universo, a Nação ou

a Cruz.155

O cronista se insurgia contra a religião e contra a política, sempre se valendo de

metáforas cristãs ou pagãs para efetuar as críticas. Em 22 de agosto do mesmo ano,

formularia um pequeno diálogo entre dois deuses da mitologia, Palas e Mercúrio, para

ridicularizar a afirmação de certo deputado, que via a urgente necessidade de ―uma forte

organização militar‖ para o Brasil se fazer respeitar frente às demais nações.

Despovoado o céu dos pagãos, tenho para mim que lá ficaram dois

deuses, aceitos pelo tempo, Mercúrio e Palas; esta, armada em guerra.

Assim, quando em janeiro de 1863 se deu no nosso porto o fato das

154

Idem. p. 10. 155

Idem. p.66.

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represálias britânicas, imagino que houve entre as duas divindades o

seguinte diálogo:

PALAS - Ah! O império resistia, armava-se do direito contra as minhas

fragatas! respondia com altivez! levantava a cabeça diante de meu

canhões! – Pois agora sofra as conseqüências do erro.

MERCÚRIO – Longe de mim, ó Palas, contrariar o teu justo

ressentimento; mas lembro-te que, na desforra legítima que tomaste, fui

eu quem sofri... (...)156

A feição anticlerical do Diário encontrava apoio na pessoa do diretor Saldanha

Marinho, que, segundo pesquisa de Ubiratan Machado, era ―liberal, maçon, republicano,

gostando de assumir posições avançadas‖157

. A amizade entre o jornalista e o escritor se

consolidou nos anos em que ambos trabalharam na redação do jornal, e se estendeu além

do vínculo estritamente profissional, pois Machado foi um dos seus amigos pessoais. No

Diário, Machado teria a liberdade de exprimir as opiniões, de comentar a cena política, de

descrever cenas da vida cultural, dos espetáculos teatrais; enfim, a pena do cronista seria

franca e direta na exposição de suas idéias.

Em 1865, recordando-se de Monte Alverne, a quem dedicou um poema de

juventude, em oposição aos pregadores do seu tempo, intensificaria as críticas à Igreja

discorrendo acerca da decadência do clero e da mediocridade de seus principais oradores. É

impressionante o conhecimento que Machado demonstra dos textos morais, filosóficos e

catequéticos da Igreja, como o Flos sanctorum, assim como, posteriormente, revelaria

interesse em outras leituras do gênero, como a Súmula de São Tomás, os textos

agostinianos, episódios da vida de santos etc. Portanto, pode-se afirmar que as leituras de

Machado não se restringiam ao campo literário, mas se ampliavam para diversas áreas de

conhecimento e revelavam os interesses distintos e múltiplos do autor.

Surpreende-nos também a veemência dos textos do Diário, principalmente porque

temos arraigada a figura do Machado dissimulado e oblíquo da maturidade, atrás de seu

pince-nez, cortesmente protegido das opiniões categóricas, ou, ainda, a imagem de um

homem sem convicções religiosas. O que aparece nas linhas do jornal é um homem

preocupado com o declínio das instituições, principalmente da Igreja, e que assiste ao novo

cenário com um olhar de lamento.

156

Idem. p. 109. 157

MACHADO, Ubiratan. Dicionário de Machado de Assis. Op.cit. p. 214.

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O cronista não comenta apenas os espetáculos teatrais e líricos a que assiste, mas

trata também dos discursos do púlpito, dos sermões eclesiásticos que presencia. Em 15 de

março de 1865, ao descrever detalhadamente uma das missas que assistiu, temos delineadas

as impressões que constam no poema ―Ite missa est‖, de Falenas, como uma espécie de

canto de cisne: o gradual desengano religioso do jovem cultor das pregações de Monte

Alverne. Ao comentar o sermão mais recentemente assistido, reclama, principalmente, de

que o pregador se prende mais à descrição detalhada dos horrores do inferno do que à

evocação do Calvário como lugar de redenção e de arrependimento.

De há muito tempo que a palavra sagrada serve de instrumento aos

incapazes e aos medíocres. Há, sem dúvida, exceções, mas raras; há

alguns talentos mais ou menos provados, mais ou menos legítimos; mas o

púlpito vive, sobretudo, da sombra luminosa dos Sampaios e

Mont‘Alvernes. Fecharam-se as bocas de ouro e abriram-se as bocas de

latão.(...)

Fomos ouvir o pregador. O verbo ouvir é de rigorosa verdade. A igreja

estava às escuras, era sexta-feira santa (...) O pregador começou, como

todos os outros, por um tom lamentoso, de efeito puramente teatral. (...)

Estamos certos de que o clero, se estas linhas lhe chegam aos olhos,

perdoarão ao pecador que assim fala, mesmo em tempo de penitência.

O tempo de penitência não impede também que se fale em teatros. Ambas

as coisas podem existir sem prejuízo para a religião. Prejuízo havia no

tempo em que o gênero sacro estava em voga, e escolhia-se cada ano uma

página do Flos Sanctorum para divertir o público pagante das platéias. 158

Machado veria o altar como um palco de encenação e de máscaras, onde um

pregador, velado pelas sombras da sacra nave, retoma as práticas medievais da Igreja,

recorrendo à representação dramática das cenas do inferno para impor ao público o medo

do Juízo Final. Isso seria um retrocesso na medida em que, no lugar de se apelar para a

razão dos ouvintes, cedia-se ao antigo método da imposição das idéias através do horror.

Em 1865, com a saída de Saldanha Marinho da direção do Diário do Rio de

Janeiro, assim como a de César Muzzio, um de seus principais redatores 159

, para ocuparem

cargos políticos em Minas Gerais, Machado assumiria sozinho grande parte das atribuições

da folha. O trabalho excessivo na redação, o distanciamento dos amigos, a mudança de

direção do jornal foram fatores determinantes para o escritor entrar num período de

158

ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. Op. cit. p. 327- 329. 159

Idem. p. 109-111.

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extrema insatisfação para com sua atividade nesse veículo. Sentia-se menos à vontade para

opinar e já não podia falar abertamente de temas que provocassem maior polêmica.

De 1865 a 1866, Machado passaria por momentos de turbulência na vida

profissional, já que buscava outra ocupação para se desvencilhar definitivamente do Diário.

Esse período também seria marcado pela decepção amorosa, tendo em vista que a musa

―Corina‖ partia do Brasil, rompendo os laços que a prendiam ao jovem escritor. Sua Corina

abandonava a cena brasileira, assim como os amigos do teatro e do jornal resolveram

abdicar das Letras em favor da carreira política.

Talvez com a intenção de acompanhar os amigos, e/ou de romper definitivamente

com o Diário, Machado tenha cogitado da hipótese de se fazer deputado por Minas Gerais,

província onde Marinho e Muzzio exerciam mandatos políticos. Contudo, seu

temperamento o fez desistir do pleito antes de oficializar a candidatura.

Tecido o pano de fundo, podemos finalmente constatar o que teria influenciado o

autor na escrita de Os deuses de casaca, peça em que retrata a incursão dos deuses no

cenário político do Rio de Janeiro da época. Sugere uma espécie de lamento pelo fato de

grandes homens das Letras estarem declinado do Parnaso em nome da carreira política. Ao

mesmo tempo, o poeta dramático retratava o jogo de disfarces na cena pública, da tribuna à

imprensa, que visava unicamente a servir às causas pessoais, em vez de pleitear o bem

comum da sociedade.

O prólogo revelaria uma proposta de se criar um nível intermediário entre prosa e

poesia, assim como se pretende mesclar a fantasia à realidade. Tratando da fábula de outros

tempos, Machado prefiguraria as questões do seu tempo, como se a peça servisse de molde

para retratar a política e a religião como os principais instrumentos de manutenção e

legitimação do poder.

Partindo de um contexto primordialmente alegórico, dos deuses mitológicos, a peça

retrata as relações de poder existentes na sociedade fluminense, mas não se limita ao

particular e ao local. O pequeno mundo fluminense reflete o contexto universal, o cenário

político e ideológico da sociedade humana, prefiguração de todos os tempos e espaços

regidos pelo pensamento e pela disposição do homem.

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Mudem-se, embora, os contextos, sempre é exibido o mesmo espetáculo humano, o

desfile dos séculos, a inesgotável repetição de idênticas cenas, como já havíamos verificado

no poema ―O desfecho‖.

O poeta, um tanto audaz, quis pôr o engenho à prova

Em vez de caminhar pela estrada real,

Quis tomar um atalho. Creio que não há mal

Em caminhar no atalho e de nova maneira.

Muita gente na estrada ergue muita poeira,

E morrer sufocado é morte de mau gosto.

Foi de ânimo tranqüilo e de tranqüilo rosto,

À nova inspiração buscar caminho azado,

E trazer para a cena um assunto acabado.

Para atingir o alvo em tão árdua porfia,

Tinha a realidade e tinha a fantasia

Dois campos! Qual dos dois? Seria duvidosa

A escolha do poeta? Um é de terra e prosa,

Outro de alva poesia e murta delicada.

Há tanta vida, e luz, e alegria elevada

Neste, como há naquele aborrimento (sic) e tédio.

O poeta o que fez? Tomou um termo médio,

E deu para fazer uma dualidade,

A destra à fantasia, a sestra à realidade,

Com esta viajou pelo éter transparente

Para infundir-lhe um tom mais nobre... e mais decente.

Com aquela, vencendo o invencível pudor,

Foi passear à noite à rua do Ouvidor.

Mal que as consorciou com o oposto elemento,

Transformou-se uma e outra. Era o melhor momento

Para levar ao cabo a obra desejada.160

Nos versos da comédia, Machado retoma os dois gêneros - alto, da poesia, e baixo, da

prosa - transpondo-os para o terreno oposto. As suas naturezas permanecem as mesmas,

apenas transplantadas para outro plano. Fantasia e poesia saem do plano etéreo, espaço

reservado a ambas, e passam a freqüentar a terra firme, o áspero terreno da realidade. De

igual modo, a prosa e o real vão para as regiões celestes e aéreas da imaginação. O escritor

torna relativas as concepções cristalizadas em ambos os discursos. Por isso opta pelo termo

médio e, assim, passa a ter uma visão plena dos extremos sem privilegiar nenhum dos

lados.

160

ASSIS. Os deuses de casaca. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1866. p.5.

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Adotando uma terceira via, como havia proposto ao Barão de São Lourenço, o poeta

escolhe uma ―terceira margem‖, onde o objeto literário se indefine, se generaliza, ao perder

suas características próprias e, ao mesmo tempo, se particulariza, no momento em que

assimila o termo oposto, sem se transformar naquele. Da fusão entre ambos, surge uma

forma original que traz a marca do autor.

O que muitos definiriam como ―alegoria‖ na obra machadiana, na verdade, é uma

síntese prefigurativa, que parte de um contexto inicialmente alegórico, fantasioso, para

atingir outro alvo, a realidade. Não uma dada realidade, fixada no tempo e no espaço, mas

o núcleo do real existente no passado, que se prolonga no presente e se lança ao futuro.

Primeiramente, o prólogo apresenta a ―estrada real‖, mas logo se envereda por um

atalho. Esse outro caminho, por sua vez, é duplo: de um lado a fantasia, de outro a

realidade, dois campos opostos. Ao efetuar a oposição ―destra‖ e ―sestra‖, tomando como

exemplo uma das ruas fluminenses, não há como deixar de lado a contextualização espacial

do Centro do Rio, à época, composta pelo cruzamento da Rua Direita (atual Primeiro de

Março) com a Rua do Ouvidor, citada nominalmente no prólogo.

Joaquim Manuel de Macedo, em Memórias da Rua do Ouvidor, nos fornece um

pouco da história e das lendas que circulavam na época acerca do surgimento dessa via.

Embora obra posterior à peça machadiana, o texto de Macedo é esclarecedor, visto que nos

concede uma imagem concreta daquilo que Machado esboça no prólogo de Os deuses.

Mas em ano que correu entre o de 1568 a 1572 alguns colonos abriram à

pouca distância do começo da rua que se denominou Direita uma estrada

em ângulo reto com ela, e cada qual foi improvisando grosseiro ubi para

si e para a família (...).

E, curiosa, interessante, notável, notabilíssima idéia ou inspiração

daqueles colonos portugueses tão bisonhos e tão sem malícia!... como

aquela aberta ainda não era rua, e eles precisavam designá-la por um

nome, chamaram-na Desvio do Mar. Desvio!... Eis o berço da bonita,

vaidosa e pimpona atual Rua do Ouvidor! Fica, pois, historiado que ela

nasceu de um desvio, e desvio da Rua Direita, ou do caminho direito, o

que, a falar a verdade, não era de bom agouro. 161

Essa acepção da Rua do Ouvidor como lugar de ―desvio‖ era consenso naquele

tempo, já que, sendo uma via movimentada, era freqüentada por homens e mulheres que se

161

MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da Rua do Ouvidor. Brasília: Ed. UnB, 1988. p. 8.

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expunham à vista de todos, assim como ficavam expostos ao apelo de toda sorte de

produtos, guloseimas, artigos de luxo, jóias, enfim, uma variedade de produtos agradáveis

ao desejo humano. A rua estava fadada a apresentar aos transeuntes as ―tentações‖, tanto no

campo amoroso, quanto no financeiro. Não é à toa que, em ―O bote de rapé‖, Machado

tenha colocado Elisa circulando sem o marido por esta rua. Insinua que, assim como a

personagem se expôs ao frenesi das compras, também poderia deixar-se cortejar por outro

homem, a ponto de se esquecer da incumbência dada pelo marido.

Uma inegável filiação, ainda mais relevante nesse prólogo machadiano, aponta para

o tópico já desenvolvido acerca da dupla natureza do verso, do valor implícito e do

explícito que revela/oculta seus sentidos aos leitores. As duas vertentes, ou concepções,

nele presentes remeteriam ao conflito goethiano apresentado no Fausto: ―Oh, duas almas

no meu seio moram!‖, expressão também usada para definir a personagem Flora, do Esaú e

Jacó. O mesmo procedimento de Machado na introdução da peça já se encontrava

delineado na tragédia de Goethe, que, de certa forma, serve de mote para a concepção de

Os deuses. Basta compararmos o prólogo de machadiano à referida fala de Fausto:

Vivem-me duas almas, ah! no seio,

Querem trilhar em tudo opostas sendas;

Uma se agarra com sensual enleio

E órgãos de ferro, ao mundo da matéria;

A outra, soltando à força o térreo freio,

De nobres manes busca a plaga etérea.

Ah, se no espaço existem numes,

Que tecem entre céu e terra o seu regime,

Descei dos fluidos de ouro, dos etéreos cumes,

E a nova, intensa vida conduzi-me!

Sim! fosse meu um manto de magia,

Que a estranhos climas me levasse prestes,

Pelas mais deslumbrantes vestes,

Por mantos reais eu não os trocaria.162

Fausto fala de duas almas que desejam planos diferentes: uma busca a fantasia e o

espaço etéreo, enquanto a outra se apega ao plano da matéria. Machado, a partir dessa

oposição, decide inverter a proposta goethiana, ou seja, em vez de se deixar guiar pelas

duas naturezas, conduz uma e outra para opostas sendas. Do mesmo modo, enquanto o

162

GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 119.

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personagem de Goethe almeja o manto de magia dos deuses, que não trocaria nem mesmo

pelos mantos reais desse mundo, Machado põe os numes descendo do Olimpo e se

despindo de suas magias e poderes, unicamente para se apoderarem das ―casacas‖ dos

homens elegantes e dos políticos do seu tempo.

Em crônica já referida, Paranhos havia comparado os homens influentes aos deuses

do Olimpo. Em Os deuses, o dramaturgo daria ―engenho à prova‖, invertendo a questão e

fazendo os próprios deuses cobiçarem as funções da tribuna e da imprensa na sociedade

humana, assim como Júpiter assume o topo da pirâmide social: a posição de banqueiro.

Uma das primeiras falas de Júpiter realça a natureza insondável dos homens, que,

devido à eterna inconstância de seus corações, não mais crêem nos deuses. Ao contrário,

porém, do que se imagina, o desejo do homem muda na forma, mas não no fundo. Se o

indivíduo deixa para trás os deuses antigos, é porque sua crença não se fundamenta na

tradição, mas na constante substituição dos valores por outros de maior proveito.

De acordo com a ideologia de uma época, alternam-se determinados modelos, para

garantir o anseio humano pela novidade. No entanto, o fundamento primordial permanece

inalterado.

[Júpiter]: Bem me dizias, Momo, o coração humano

Devia ter aberta uma porta, por onde

Lêssemos, como em livro, o que lá dentro esconde.

Demais dando juízo ao homem, esqueci-me

De completar a obra e fazê-la sublime

Que vale esse juízo? Inquieto e vacilante,

Como perdida nau sobre um mar inconstante,

O homem sem razão cede nos movimentos

A todas as paixões, como a todos os ventos.

(...)

Corres hoje a Paris, como a Atenas outrora;

A sombria Cartago é a Londres de agora.

Ah! pudesses tornar ao teu estado antigo!

Aos poucos, porém, Júpiter percebe que o mundo dos homens tem atraído também

os deuses que cedem aos encantos da sociedade. As deusas, assim como Eva, são as

primeiras a se renderem aos encantos da vida elegante da Corte. Vênus, por exemplo,

outrora nua (como na sua acepção clássica), opta pelos elegantes trajes das damas da

sociedade. Fazendo um trocadilho entre a origem da deusa e as suas vestes atuais, o

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comediógrafo faz um jogo de palavras na fala de Vulcano: ―Foi nua, agora não. A beleza

profana/ Busca apurar-se a favor da arte humana./ Enfim a mãe de Amor era da escuma

filha,/ Hoje Vênus, meu pai, nasce... mas da escumilha*.‖163

Marte, por sua vez, lamenta-se da diplomacia, que impede o espetáculo das guerras,

dando lugar aos conflitos dissimulados, que matam mais pela astúcia do que pela força

bélica. Estende sua queixa, mostrando como se processa o efetivo conflito da atual

sociedade, a qual chama de Babel (lugar de confusão, como a torre bíblica da cidade de

Babilônia).

Que acontece daqui? É que nesta Babel

Reina em todos e em tudo uma coisa – o papel.

É esta a base, o meio e o fim. O grande rei

É o papel. Não há outra força, outra lei.

A fortuna o que é? Papel ao portador;

A honra é de papel; é de papel o amor.

O valor não é já aquele ardor aceso;

Tem duas divisões – é de almaço ou de peso*.

Enfim, por completar esta horrível Babel,

A moral de papel, faz guerra de papel.164

O papel, principalmente o papel-moeda, assume o lugar de supremo monarca.

Todas as relações serão permeadas pelo valor pecuniário, assim como os grandes embates

surgirão na imprensa, onde a escrita torna-se efetiva ―guerra de papel‖.

Paranhos também empregaria o termo ―Babel‖ para designar a sociedade brasileira,

embora Machado tenha usado a expressão de maneira mais genérica, para nomear a

sociedade criada pelo homem sob a égide da democracia. Assim discursaria Paranhos: ―(...)

só como historiador de fatos tocarei em matéria que se refira à bifaceira política do belo,

fértil, mas infeliz Brasil. A crônica que nesta Babel se passar de mais notável e divertido, e

que puder ser tirada à luz (...), é assunto sobre que versarão as minhas missivas.‖165

* Tecido fino e transparente de seda usado nos vestidos da época, ou como uma espécie de xale para

complementar o traje. 163

ASSIS. ―Os deuses de casaca‖. Vol 2. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2004. p. 124.

* Dois tipos de papel usados no período. O ―almaço‖ servia para a escrita em si e o ―de peso‖ era usado para

cópia de moldes, como hoje se faz com o papel vegetal. Sugere uma oposição entre o opaco e o translúcido. 164

Idem. p. 125. 165

PARANHOS. Op. cit. p. 3.

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Tratando ainda da questão do papel-moeda, na cena do ―Palatinado Imperial‖ do

Fausto, de Goethe, Mefisto introduz a sugestão do papel-moeda para dar fim aos conflitos

e a escassez do Império, e incita o Astrólogo a profetizar uma nova era de abundância, em

que os deuses seriam os primeiros a escolherem o caminho da Fortuna. Soprada pela boca

de Mefistófeles, o adivinho declara:

O próprio Sol é de ouro verdadeiro;

Mercúrio é dele servo interesseiro,

A dama Vênus é quem vos seduz:

A vosso olhar cedo e tarde reluz

Caprichos são da casta Luna e arte;

Guerreia e ameaça o belicoso Marte.

Júpiter é o astro máximo noturno,

(...)

Mas quando ao Sol se junta a argêntea Luna,

Prata com ouro, o mundo é de fortuna!166

Embora alguns pesquisadores interpretem o trecho como uma sugestão alquímica

para a fusão de metais, com o propósito de transformar cobre em ouro, o que fica patente é

que Mefisto intenta substituir a crença mística nos deuses pelo apego aos bens materiais.

Essa mesma impressão o Marte machadiano tenta transmitir ao público, mostrando que a

sociedade trocou o ―valor antigo‖ por uma ―moral de papel‖, já que o dinheiro torna-se a lei

vigente e o único rei daquele tempo.

Na peça machadiana, Cupido é o sedutor dos outros deuses, conseguindo encontrar

na sociedade humana uma nova função para cada um deles, de maneira que recuperem o

prestígio de outros tempos e adaptem-se às novas ocupações. Fazendo uso da sedução

retórica, ou, mesmo, da sedução amorosa (sendo as deusas humanizadas, Juno, Diana e

Vênus, suas iscas) convence-os um a um e, por fim, ao próprio Júpiter.

Apolo, deus da poesia, lamenta o declínio da Letras, uma vez que os poetas não lhe

pedem mais inspiração. Deixam-se levar por outros engenhos, e até apelam para o coice de

Pégasus, como se o cavalo passasse a ser a nova fonte de inspiração daquele tempo. Os

álbuns das moças, por sua vez, aprisionavam os versos, fazendo do poema um objeto

166

GOETHE. Fausto. 2ª parte. Op. cit. p. 75.

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particular, completamente distante do ideal da poesia clássica, cujo propósito era apregoar

o canto aos quatro ventos, e imortalizá-lo através das vozes dos aedos.

Não resistindo aos apelos de Cupido, Apolo decide largar o ofício de poeta para

tornar-se crítico: ―Quero um cargo distinto, alto acatado e sério./ Com a pena da verdade e

a tinta do critério/ Darei as leis do belo e do gosto. Serei/ O supremo juiz, o crítico.‖167

Também Marte rende-se às leis humanas e elege a imprensa como o lugar ideal para

continuar a sua antiga função de ―deus da guerra‖: ―Em vez de usar broquel, vou fundar

uma folha./ Dividirei a espada em leves estiletes/ Com eles abrirei campanhas aos

gabinetes./ Moral, religião, política, poesia,/ De tudo falarei com alma e bizarria.‖

Vulcano, ao ver Marte na lida jornalística, decide usar a forja para fazer penas de

ferro e, assim, fornecer o instrumento adequado aos combates daquele tempo. Também

Mercúrio passa a servir ao deus da guerra, promovendo as intrigas políticas como

mensageiro das mentiras e boatos da ocasião. Como prêmio, fará jus a uma candidatura:

―Da rua ao gabinete, e do paço ao tugúrio/ Farás o teu papel, o papel de Mercúrio;/ O

segredo ouvirás sem guardar segredo./ A escola mais rendosa é a escola do enredo‖.

Júpiter, como supremo deus do Olimpo, convence-se de que a posição que lhe cabe

é a de banqueiro. Se associarmos a imagem de Júpiter a um dos seus nomes antigos,

―Pecúnia‖, a função escolhida é bastante pertinente. Mas o principal argumento é fornecido

por Mercúrio, ao sublinhar que os bens financeiros e o prestígio social permitiriam ao

supremo deus do Olimpo que permanecesse como o exímio namorador que sempre foi.

Mais do que nunca a ―moral de papel‖ se renderia ao ―papel-moeda‖ de Jove namorador.

Trocaria, assim, o manto divino pela casaca de ―Raunier‖, muito mais apropriada para

seduzir do que as constantes metamorfoses de Júpiter.

Sim, o mundo caminha, o mundo é progressista:

Mas não muda uma coisa: é sempre sensualista.

Não serás, por formar teu nobre senhorio,

Nem cisne ou chuva de ouro, e nem touro bravio.

Uma te encanta, e logo à tua voz divina

Sem mudar de feições, podes ser... crinolina.

De outra soube-te encher o namorado olhar:

Usa do teu poder, e manda-lhe um colar.

A Constança uma luva, Ermelinda um colete,

Adelaide um chapéu, Luísa um bracelete.

167

Idem. p. 138.

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207

E assim, sempre curvado à influência do amor,

Como outrora, serás Jove namorador!

As artimanhas de Jove cedem espaço ao poder material, muito mais atraente que os

recursos mágicos. Ao contrário do que inicialmente deseja Fausto - um manto de magia - o

mundo real exige meios mais consistentes, talvez por isso o personagem goethiano

abandone a idéia inicial, assim como seu pequeno quarto de trabalho, para tomar assento no

vasto mundo que Mefistófeles lhe oferece.

O Júpiter machadiano também se despe, no final da peça, das vestes divinais, e

abandona os recursos mágicos unicamente para assumir um reino humano, governado pelas

relações materiais. Seguiria o mesmo percurso de Próspero, que lança fora a magia e

abandona a ilha mística, para ocupar o ducado de Milão.

Dentre os deuses da peça, o que mais nos chama a atenção é Proteu, o deus que

pode mudar constantemente de forma. A este é reservada a carreira política onde,

alterando-se conforme o gosto, revela sempre a face mais conveniente. Passa deste para

aquele lado, agradando à situação e à oposição, indistintamente. Serve a Sancho ou a

Martinho, nomes usados na política para designar partidos opostos; elogia a Pedro ou a

Paulo, os dois apóstolos que seguiram a doutrina cristã por meios distintos. Estado ou

Igreja servem-lhe com suas ideologias, consolidando o desejo de se manter no comando.

Proteu resume o sentido utópico da soberania nacional como instrumento

habilmente manipulado pelas estratégias de poder.

[Proteu]: O dom de transformar-me, à vontade, a meu gosto

Torna-me neste mundo um singular composto.

Vou ter segura a vida e o futuro. O talento

Está em não mostrar a mesma cara ao vento.

Vermelho de manhã, sou de tarde amarelo;

Se convier, sou bigorna, e se não, sou martelo.

Já se vê, sem mudar de nome. Neste mundo

A forma é essencial, vale de pouco o fundo.

(...)

Quem subiu? Pedro e Paulo. Ah! que grandes talentos!

Que glórias nacionais! Que famosos portentos!

O país ia à garra e por triste caminho,

Se inda fosse o poder de Sancho ou de Martinho.

Mas se cena mudar, tão contente e tão ancho,

Dou vivas a Martinho e dou vivas a Sancho!

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Esse tema singular da peça machadiana, do decênio de 60, não seria completamente

abandonado pelo escritor. A atitude de Proteu, mudando de opinião, de forma ou de

partido, seria encenada mais uma vez através do personagem Batista, do romance Esaú e

Jacó, que troca de partido para se adequar à situação. Pedro e Paulo, os gêmeos da

narrativa, também se opõem um ao outro como os apóstolos cristãos, enquanto a utópica

Flora tenta unificá-los num plano ideal.

Outro ponto de aproximação entre a peça de 1866 e o romance de 1904 consta do

epílogo, quando o poeta se despede do público. Reafirma seu propósito de unificar duas

tradições distintas: ―David olhando em face a sibila de Cumas‖.

Pede ainda o poeta um reparo. O poeta

Não comunga por si na palavra indiscreta

De Marte ou de Proteu, de Apolo ou de Cupido.

Cada qual fala aqui como um deus demitido;

É natural da inveja; e a idéia do autor

Não conformar-se a tão fundo rancor.

Sim, não pode; e, contudo, ama aos deuses, adora

Essas lindas fixões do bom tempo de outrora.

Inda os crê presidindo aos mistérios sombrios,

No recesso e no altar dos bosques e dos rios.

(...)

A crença é que o arrasta, a crença é que o ilude

Neste reverdecer da eterna juventude.

Se o tempo sepultou Eros, Minerva, e Marte,

Uma coisa os revive e os santifica: a arte.

Se a história os dispersou, se o calvário os banil,

A arte, no mesmo amplexo, a todos reuniu.

De duas traduções a musa fez só uma:

David olhando em face a sibila de Cuma.

Se vos não desagrada o que se disse aqui,

Sexo amável, e tu, sexo forte, aplaudi.

O poeta, sutilmente, se alheia das afirmações contidas na peça. Também como

cronista, a partir desse período, seria muito mais ponderado em suas afirmações contra o

poder instituído, político ou religioso.

No Fausto II, assim como a Corte alemã, representada na cena do ―Palatinado

Imperial‖ de Maximiliano I, torna-se uma prefiguração dos governos do mundo, também

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essa Babel machadiana é mais do que uma simples alegoria da política brasileira. É, na

verdade, síntese do poder em todos os tempos, passado e futuro, como podem ser do

presente. Ambientar a cena entre as Ruas Direita e do Ouvidor, ou usar como alegoria os

deuses mitológicos, não necessariamente isolaria o real do fantasioso, mas, ao optar pela

―terceira via‖, o faz exatamente com a intenção de unir o contexto ―local‖ ao ―universal‖.

Partiria do ―pequeno mundo‖, para chegar ao ―grande mundo‖, que de tempos em tempos

se repete, muda de forma, para exibir sempre o mesmo desfile contínuo das ambições

humanas.

A união das figuras de ―David e da sibila‖, que a arte machadiana busca reunir no

mesmo amplexo, seria um outro elemento que aproximaria a peça do romance Esaú e Jacó.

Teríamos a repetição do mesmo preceito esboçado no capítulo ―Teste David cum Sibylla‖,

em que o pai dos gêmeos, Agostinho Santos, confronta o oráculo da cabloca Bárbara com

as predições do espírita Plácido acerca do futuro dos gêmeos. O espaço de 38 anos que

separa as duas obras, a da juventude e a da maturidade, não impede que o escritor delineie

nesta e naquela o seu parecer sobre a política e a religião como as duas principais instâncias

que regem o universo humano.

Afirmar que as obras são meras fábulas do Brasil Imperial, ou alegoria da passagem

do Império para a República, é não enxergar o sentido maior que o escritor pretende dar à

obra, fundindo o plano real ao ficcional, unindo fantasia à realidade, para tecer uma terceira

via, reflexo do ―mundo interior‖ do homem. Tudo passa pela subjetividade humana

oscilante entre dois desejos - como Fausto, como Proteu e como Flora: ―Ah! duas almas no

meu seio moram!‖

Puxando o primeiro fio, que une o poeta ao prosador, encerramos essa primeira

investida no universo machadiano, pequena mostra do seu vasto gênio. Convém

desenrolarmos o novelo inteiro, ou, pelo menos, indicar que outros fios contribuem nesse

tecido imbricado de uma tradição que vem de longa data, mas que se constrói pela mão de

vários artistas. O que é a história ou a História do homem?

A história é isso. Todos somos fios do tecido que a mão do tecelão vai

compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus vários aspectos

morais e políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes, assim também

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210

os há frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se perde

nas cores de que é feito o fundo do quadro.168

Qual seria o quadro completo dessa pintura que Machado intenta nos mostrar? Que

figuras estão em cena, o que se perde no fundo? Há, enfim, uma mão movendo esse fio, um

tecelão que o compõe?

Mesmo quando escreve em prosa, é o velho poeta Machado de Assis que nos fala,

ora descendo à terra dos gelos eternos de Brás Cubas, em sua catábase de Orfeu, ora

ascendendo ao cimo do monte, como no capítulo LXXXV das Memórias. Oferece-nos uma

síntese melancólica de uma Beatriz que não pode entrar no Paraíso, simplesmente porque

não é uma mulher divina e pura como a guia de Dante, mas uma Virgília, que ascende com

Brás, mas que com ele também declina.

Ainda seria o poeta a criar intertextos em sua escrita, em que cada janela aponta

uma outra, e assim sucessivamente, como uma teia de referências por trás do enredo

aparentemente simples. Cada ponto obscuro ou lacuna surge como uma ―piscadela‖ ao

leitor ruminante, como um convite para que ele possa se aventurar em outras águas.

O segundo momento dessa pesquisa tem por objetivo uma abordagem mais ampla

do poeta e do conceito de poesia, ligando o Microcosmo da obra machadiana ao

Macrocosmo literário. Em que tradição Machado está inserido e de que maneira a sua obra

da maturidade funde poesia e prosa? Analisando os discursos religiosos, políticos,

históricos e, principalmente, literários que formaram o mundo ocidental, faremos uma nova

incursão, desta vez, pela ―máquina do mundo‖, seguindo os passos de grandes mestres do

passado, para em seguida, concluirmos qual o definitivo lugar da poesia na obra

machadiana.

168

Ver referência na nota nº 5 (Introdução).

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211

4- SOB O VÉU DOS VERSOS: poesia e profecia na construção da obra de arte

“O poeta adivinha. A inspiração não

serve só para compor versos, mas

também para ler na alma dos outros.”

(Machado de Assis)

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212

Em seu ensaio A Defense of Poetry, Shelley procura resgatar o sentido original da

palavra ―poeta‖, assim como define a poesia como o ponto de partida para todos os

conhecimentos acerca do homem e do mundo. Assim, segundo afirma, os poetas seriam os

mestres que introduziriam ―aquela apreensão especial das intermediações do mundo

invisível que se chama religião‖169

. Entretanto, o termo empregado - ―religião‖ - não se

traduz no sentido mais comum, de superstição, mas de um poder especial que o poeta

possui de interpretar a vida, tornando-se uma espécie de mediador entre o humano e o

divino.

Os Poetas, segundo as circunstâncias da época e da nação nas quais

surgiram, foram chamados, nos primórdios do mundo, legisladores ou

profetas: um poeta essencialmente engloba e unifica ambos esses

personagens. Ele não somente contempla intensamente o presente como

ele é e descobre as leis segundo as quais as coisas presentes deveriam ser

ordenadas, mas também o futuro no presente, e seus pensamentos

constituem as sementes da flor e o fruto da época mais longínqua. (...) Um

poeta participa do eterno, do infinito e do uno; no que diz respeito a suas

concepções, tempo, lugar e quantidade não existem.170

No que se refere à concepção artística de Machado de Assis, pudemos acompanhar

a trajetória de seu pensamento sobre a poesia desde as ―Idéias vagas‖, de 1856, seu

primeiro esboço acerca da função da poesia e do papel do poeta na sociedade, passando

pelas produções da juventude até chegar à maturidade.

Embora as primeiras concepções, moldadas pela ingenuidade do adolescente,

tenham passado por profundas modificações, a obra machadiana, como um todo, guarda no

íntimo as relações e sentidos aplicáveis ao papel primordial do poeta como o sumo-

intérprete do pensamento humano.

169

SHELLEY, Percy Bysshe. ―Uma defesa da poesia‖. In: ______ & SIDNEY, Philip. Defesas da poesia.

São Paulo, Iluminuras, 2002. p. 173. 170

Idem. Ibidem.

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213

A epígrafe do presente capítulo, retirada de um conto machadiano171

, apesar da

ironia expressa no contexto original, traz um pouco do que seria o poeta stricto senso - o

que compõe versos -, e o poeta que resgata o sentido primordial – o profeta, ou seja, aquele

que consegue ―ler na alma dos outros‖. Machado utiliza a segunda acepção, seja no perfil

de seus personagens, de Brás Cubas a Aires; na crítica teatral, quando procura ler as

impressões do palco e da platéia; na ironia de suas crônicas, com que disseca as cenas da

sociedade fluminense, enfim, há inúmeros exemplos que poderiam servir para ilustrar esse

papel profético que o escritor assume, seja ironicamente, ou, de fato, buscando atribuir

algum sentido na releitura do mundo.

Nessa releitura, principalmente em relação às contradições humanas, o escritor opta

por um dos seus temas mais profícuos que é o de atar pensamentos contrários, com a

finalidade de, a partir dessa junção, achar uma síntese conciladora que melhor retrate o

fundamento das dicotomias. Em toda a obra, Machado ilustra a tensão entre os contrários,

e, na maioria das vezes, assume-se como uma espécie de mediador, ou de intérprete de uma

dada situação, buscando o ponto exato em que ambos os lados se tangenciam e se

harmonizam.

Partindo desse princípio e da leitura dos clássicos, o escritor fundamenta sua criação

na base dessa dicotomia que é prenunciada pela oposição/união entre paganismo e

cristianismo. Comecemos esse longo percurso em torno do tema, com a finalidade de

mostrar como a arte em si busca conciliar a tensão entre os contrários, algo inerente ao

espírito do homem.

Novamente nos colocamos no alto, diante de uma ―Visão‖ do poeta, para isso,

seguimos a leitura de um dos poemas de Falenas, em que se verifica a oposição entre o

paganismo e o cristianismo, mas também se observa certos traços em comum entre ambas

as religiões. A composição intitula-se ―Visão‖ e nela percebe-se mais uma vez as duas

vertentes distintas da montanha:

Vi de um lado o Calvário, e do outro lado

O Capitólio, o templo-cidadela.

E torvo mar entre ambos agitado,

Como se agita o mar numa procela.

171

Trata-se de ―Vênus, divina Vênus‖.

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214

Pousou no Capitólio uma águia; vinha

Cansada de voar.

Cheia de sangue as longas asas tinha;

Pousou; quis descansar.

Era a águia romana, a águia de Quirino;

A mesma que, arrancando as chaves ao destino,

As portas do futuro abriu de par em par.

A mesma que, deixando o ninho áspero e rude,

Fez do templo da força o templo da virtude,

E lançou, como emblema, a espada sobre o altar.

Então, como se um deus lhe habitasse as entranhas,

A vitória empolgou, venceu raças estranhas,

Fez de várias nações um só domínio seu.

Era-lhe o grito agudo um tremendo rebate.

Se caía, perdendo acaso um só combate,

Punha as asas no chão e remontava Anteu.

Vezes três, respirando a morte, o sangue, o estrago,

Saiu, lutou, caiu, ergueu-se... e jaz Cartago;

É ruína; é memória; é túmulo. Transpõe,

Impetuosa e audaz, os vales e as montanhas.

Lança a férrea cadeia ao colo das Espanhas.

Gália vence; e o grilhão a toda Itália põe.

Terras da Ásia invadiu, águas bebeu do Eufrates,

Nem tu mesma fugiste à sorte dos combates,

Grécia, mãe do saber. Mas que pode o opressor,

Quando o gênio sorriu no berço de uma serva?

Palas despe a couraça e veste de Minerva;

Faz-se mestra a cativa; abre escola ao senhor.

Agora, já cansada e respirando a custo,

Desce; vem repousar no monumento augusto.

Gotejam-lhe inda sangue as asas colossais.

A sombra do terror assoma-lhe à pupila.

Vem tocada das mãos de César e de Sila.

Vê quebrar-se-lhe a força aos vínculos mortais.

Dum lado e de outro lado, azulam-se

Os vastos horizontes;

Vida ressurge esplêndida

Por toda a criação.

Luz nova, luz magnífica

Os vales enche e os montes...

E além, sobre o Calvário,

Que assombro! que visão!

Fitei o olhar. Do píncaro

Da colossal montanha

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215

Surge uma pomba, e plácida

Asas no espaço abriu.

Os ares rompe, embebe-se

No éter de luz estranha:

Olha-a minha alma atônita

Dos céus a que subiu.

Emblema audaz e lúgubre

Da força e do combate,

A águia no Capitólio

As asas abateu.

Mas voa a pomba, símbolo

Do amor e do resgate,

Santo e apertado vínculo

Que a terra prende ao céu.

Depois... Às mãos de bárbaros,

Na terra em que nascera,

Após sangrentos séculos,

A águia expirou; e então

Desceu a pomba cândida

Que marca a nova era,

Pousou no Capitólio,

Já berço, já cristão.172

A imagem do Capitólio associa-se tanto à face sagrada – templo - quanto à do

combate - cidadela. A reunião dessas duas vertentes é tema recorrente na escrita

machadiana. Através desse texto vemos de que forma ele representa Roma como berço de

duas tradições tão contraditórias entre si.

A águia, símbolo do espírito belicoso dos romanos, cede lugar à pomba do

cristianismo, que pousa no Capitólio e substitui a cultura de guerra pela de paz. Num tom

profético, como o título do poema sugere, os versos machadianos vão contrapondo imagens

da Roma Antiga às da Roma cristianizada. A cidade seria o ponto de união entre elementos

díspares, de duas tradições que têm o mesmo berço, e, no entanto, apresentam contornos

distintos.

Outra maneira encontrada pelo poeta de marcar o contraponto entre as duas culturas

localiza-se na parte formal do poema, onde as estrofes alternam-se entre versos

dodecassílabos, decassílabos e hexassílabos. A construção é bem engenhosa, pois os

172

ASSIS. O.C. Vol. III. p. 208

15 ASSIS. Machado de Assis: teatro. 2 vol. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2004. p.144.

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216

alexandrinos marcam o ritmo mais tradicional da Roma antiga. Assim, quando os versos

cantam a águia romana, passam a ter doze sílabas métricas. Quando há o contraponto entre

a águia e a pomba, os versos tornam-se decassílabos, metrificação mais difundida após o

período clássico. E, finalmente, os hexassílabos demarcam o novo território, dedicado à

pomba do cristianismo. A construção métrica de ―Visão‖ procura acompanhar os

movimentos distintos do paganismo e do cristianismo, privilegiando a simbologia mítica

dos dois movimentos e usando o discurso histórico para validar o declínio e a ascensão,

respectivamente, dessas culturas.

Pela vertente histórica do tema, há ainda uma relação interessante a ser estabelecida

entre o Império Romano – pagão – e a Nova Roma – cristianizada. O tom profético do

poema machadiano nos remete a um pensamento de Dante, esboçado em Banquete (Il

Convívio): a de que o Império Romano, com seu espírito heróico, ao conquistar tantas

terras e nações e submetê-las a um mesmo jugo e a um único governo, tenha preparado

terreno para a vinda de Cristo e, desta forma, servido para uma melhor divulgação do

cristianismo.

O poeta italiano ainda se aprofunda na questão ao nivelar as duas progênies: a de

Enéias, que teria gerado o povo romano, e a de Davi, que gerou Cristo através de Maria.

Como, porém, em sua vinda ao mundo [do Filho de Deus] era necessário

que não somente o céu, mas também a terra estivesse em ótima

disposição e que a ótima disposição da terra se verifica quando está sob a

monarquia, isto é, toda ela sob um único príncipe, como foi dito antes, a

divina providência estabeleceu aquele povo e aquela cidade que devia

realizar isso, ou seja, a gloriosa Roma.

Uma vez que também a hospedagem em que o rei celestial devia entrar

era necessário que fosse extremamente limpa e pura, foi preparada uma

santíssima progênie, da qual, depois de muitas ações meritórias, nascesse

uma mulher mais perfeita que todas as outras para que ela acolhesse no

próprio seio o Filho de Deus. Essa progênie foi a de Davi, do qual

descendeu a ousadia e a honra do gênero humano, isto é, Maria. Por isso

está escrito em Isaías: ‗Nascerá uma vergôntea da raiz de Jessé e de sua

raiz brotará uma flor‘. Jessé foi o pai de Davi. Tudo isso aconteceu ao

mesmo tempo, nascendo Davi e surgindo Roma, ou seja, quando Enéias

partiu de Tróia para a Itália, dando origem à cidade de Roma, como

testemunharam os escritos. Por esta razão é manifesta a escolha divina do

império romano, uma vez que o surgimento da cidade santa foi

contemporâneo da origem da progênie de Maria.173

173

ALIGHIERI, Dante. O banquete. Tratado IV, cap. V. (Trad. Ciro Mioranza). São Paulo: Escala Editorial,

s/d. p.148

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217

Dante, com sua retórica, consegue estabelecer a união entre duas nações distintas,

entre duas progênies que, aparentemente, não teriam nenhuma relação de proximidade.

Pelo contrário, historicamente, os romanos colaboraram para a crucificação de Cristo e

foram responsáveis pela perseguição dos primeiros cristãos, enquanto estes se opuseram

duramente ao paganismo romano ao compararem Roma à antiga Babilônia, berço da

corrupção e da incredulidade no tempo dos hebreus, cujo símbolo mais conhecido é a torre

de Babel.

A lupa romana, para os primitivos cristãos, não era a famosa loba que teria

amamentado os fundadores Rômulo e Remo, mas a lupa174

- cortesã -, seguindo a leitura do

Apocalipse de João acerca da meretriz assentada sobre sete montes. Trata-se de

representação simbólica e depreciativa não apenas da lupa, mas da fundação de Roma

sobre os sete montes: Caelio, Aventino, Viminal, Quirinal, Palatino, Capitolino e Esquilino.

Dante, portanto, prefere desconsiderar a origem mítica da cidade, o da loba

amamentando os gêmeos, para adotar o contexto histórico e literário, principalmente o

delineado nas páginas da Eneida de Virgílio. Através do poeta latino, segundo Dante, a

origem heróica de Roma adquire a mesma validade da profecia contida num dos livros do

Antigo Testamento: o do profeta Isaías, que prenuncia a estirpe de Cristo.

Há portanto dois grandes nomes que validam o surgimento dessas duas estirpes: por

um lado, um poeta como Virgílio e, por outro, um profeta como Isaías. Encontram-se,

assim, equiparadas as figuras do poeta e do profeta, que Dante passa igualmente a assumir

ao reler as tradições romana e judaica e uni-las num só desígnio: preparar a terra para o

advento do cristianismo. Não por acaso, Virgílio será o escolhido por Dante para a missão

de guiá-lo pelo Inferno e pelo Purgatório em sua Commedia.

Talvez, à primeira vista, o leitor encontre alguma dificuldade em perceber no poema

machadiano alguma prova mais clara desta união entre as duas culturas. Em ―Visão‖,

Machado aproveita, sobretudo, o lastro histórico, mas dá determinada ênfase à criação de

duas culturas num único berço: Roma. Também podemos notar como a ―águia‖ do poema,

assim como no texto de Dante, prepara o caminho para a ―pomba‖ governar. Machado,

174

No latim, o vocábulo lupa tinha dois significados: loba (animal) e meretriz. O segundo significado deu

origem à palavra lupanar – prostíbulo - na língua portuguesa. Quanto à comparação de Roma com Babilônia

e com a Meretriz, está presente em 1 Pedro 5:13 e Apocalipse 17: 1 e 9.

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218

porém, não afirma categoricamente a união entre as duas culturas da mesma forma que

Dante.

Apesar de ambos explorarem o tema do paganismo e do cristianismo pela vertente

histórica, tendo Roma como centro de convergência das duas culturas, Machado enfatiza a

diferença entre elas através da oposição águia/pomba. Dante, pelo contrário, quer

aproximar as estirpes e provar que a Roma gloriosa de Virgílio tem continuidade através do

Sacro-Império Romano. Assim a águia não fora substituída, mas preservada pelos novos

heróis, no caso, reis cristãos. Para ilustrar melhor o pensamento de Dante e mostrar, talvez,

a fonte da inspiração de Machado, destacaremos um trecho do Canto VI do ―Paraíso‖ que

estampa uma concepção muito semelhante à do poema machadiano.

Depois que Constantino a águia voltou

contra o curso do céu que, aos templos seus,

seguira quem Lavínia conquistou;

cem e cem mais, a ave de Deus

lá junto aos montes que deixou primeiro,

permaneceu, nos confins europeus:

e, na sombra do seu vôo altaneiro,

o poder, ao passar de mão em mão,

para a minha chegou, do mundo inteiro.

Sou Justiniano, e César fui então;

que, por querer do Deus que eu acalento,

o supérfluo das leis tirei, e o vão.

E antes de estar nesse trabalho intento,

só uma Natura ter Cristo, não mais

supondo, me encontrava a meu contento.

Mas o santo Agapito, que às papais

honras subiu, conduziu-me à severa

fé com argumentos magistrais.

(...)

Até ao rúbido mar voou com esse;

com esse pôs o mundo em tanta paz

que fez que a ara de Jano emudecesse.

Mas, o que o signo que falar me faz

fizera, e a que ordenou obra futura,

pelo reino mortal que lhe subjaz.

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219

(...)

E quando o dente Lombardo mordeu

a santa Igreja, sob suas sacras penas

Carlo Magno, vencendo, a socorreu.

(―Paraíso‖- Canto VI: 1-96)175

Nos versos de Dante, a águia não é substituída; é antes mantida como símbolo de

vigor daqueles tempos antigos, demonstrando uma continuidade no universo cristão.

Observa-se também o grande valor dos reis como defensores da Igreja. Deste modo, temos

a fala de Justiniano que relembra os feitos dos imperadores Constantino e Carlo Magno,

além dos seus próprios atos. O poeta florentino, assim como aproxima as estirpes de Enéias

e de Davi, vai fundir a imagem da águia – a ave de Jove – à da ―ave de Deus‖.

Machado vai-se afastar de Dante nessa questão, já que, simbolicamente, mesmo não

sendo a pomba a causa da destruição da águia, percebe-se que os conflitos internos do

Império Romano fizeram-no fraquejar e ceder espaço para outra cultura governar

pacificamente.

Podemos dizer que o poema ―Visão‖ é a porta de entrada de Machado num universo

de aproximação de culturas distintas, mesmo que nele ainda não se configure a união de

ambas. Em obras posteriores, o escritor desenvolveu com mais profundidade essa figuração

pagã/cristã, aproximando-se do argumento explorado no texto de Dante, não como

afirmação categórica, mas como interpretação do pensamento humano no que tange à

representação artística da realidade. Assim, num vasto exame da obra machadiana,

podemos dizer que a atitude do escritor não se reduz a uma busca histórica ou à apreciação

de uma idéia num determinado tempo, mas intenta o mapeamento da relação do homem, de

todos os tempos, com a História, a Literatura, a Religião e com as demais formas de

conhecimento.

Seguindo a linha das idéias machadianas, observando a sua obra num contexto mais

abrangente, percebemos a persistência do escritor no tema - a união de elementos

contrários - através de diferentes manifestações de gênero. A tensão entre os opostos

ilustrou muitas de suas produções, continuamente tratada pelo viés crítico. O escritor

175

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. (Trad. Italo Eugenio Mauro). São Paulo: Editora 34, 1998. p. 43

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220

sublinha a natureza equivocada dos pensamentos unilaterais e maniqueístas e,

especialmente, realça o valor do artista como mediador das oposições ou das opiniões. Seja

tratando de temas alegóricos, como as duas tribos que disputam um campo de batatas, ou

de temas históricos, como a contraposição paganismo-cristianismo, Machado adota a

mesma atitude, sobretudo irônica, de filósofo das antíteses, pondo-se no meio delas para

melhor apreciar os dois lados da questão e, se possível, para unificá-las, provando que são

complementares.

Este capítulo tem como proposta acompanhar o longo fio que tanto une Machado a

uma tradição milenar, quanto mostra que sua obra é um sistema complexo, mas bastante

coeso do início ao fim. Desde suas produções poéticas, passando por composições teatrais

até as obras da maturidade, persistem temas que o escritor jamais abandonou. O mais

importante é perceber como os escritos da juventude elucidam questões que surgem,

dissimuladas ou intricadas, nas produções da maturidade.

Em Os deuses de casaca, mais nitidamente, Machado demonstra interesse pela

fusão das tradições pagã e cristã, englobando as duas vertentes para mostrar que a arte é o

melhor veículo para reuni-las. No complexo palco da imaginação literária, ou do tablado

machadiano, cabem todas as peças, sejam elas sacras ou profanas, cristãs ou pagãs, e tanto

melhor se as antíteses passarem a se tangenciar.

Como foi visto anteriormente, Machado de Assis, na peça em questão, inverte a

temática das grandes epopéias: não são mais os heróis que desejam a imortalidade ou a

deificação, tampouco há espaço para representação dos deuses antropomorfizados, que

competem com os homens. O que se nota na peça machadiana é a destituição dos deuses de

suas funções. Num mundo onde não há mais espaço para o mito nem para a religião, ou

melhor, num sistema em que há outro deus sendo reverenciado, seja ele o capital, a

influência ou o poder, é preciso que o antigo sistema se adapte ao novo código, se sintonize

e, por fim, se transforme numa terceira via. A fusão resta como única saída, resulta numa

maneira cínica de inclusão, sem conflitos, seja para manter os mesmos privilégios ou para

adquirir outros mais vantajosos.

Depois de acompanharmos o fio que une as obras da juventude aos escritos da

maturidade de Machado, faz-se necessário desfiar o novelo da tradição, que atrela o escritor

aos seus mestres. Estreitando as relações de tempo e de espaço, como uma espécie de

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221

hipertexto, a obra machadiana vai interligando elementos distintos numa intrincada teia de

relações que vão do explícito ao subentendido, do real ao fantasioso, do sublime ao

grotesco. O escritor focaliza o local e contemporâneo, pelo viés, contudo, do intemporal e

do universal, acolhendo a concepção de que a natureza humana, mesmo contraditória e

ambígua, propaga infinitamente determinados arquétipos.

4.1- Teste David cum Sybilla: profetas e sibilas no desfile dos séculos.

Como vimos, no epílogo da peça Os deuses de casaca, o autor apresenta a arte

como ponto de convergência de culturas e tradições distintas:

Se o tempo sepultou Eros, Minerva, e Marte,

Uma coisa os revive e os santifica: a arte.

Se a história os dispersou, se o Calvário os baniu,

A arte, no mesmo amplexo, a todos reuniu.

De duas tradições a musa fez só uma:

David olhando em face a sibila de Cuma.

Se vos não desagrada o que se disse aqui,

Sexo amável, e tu, sexo forte, aplaudi. (grifo nosso)

Mesmo que aqui não tenhamos a imagem da pomba que suplanta e substitui a águia,

como no poema ―Visão‖, o Calvário surge mais uma vez, historicamente, superando o

Capitólio e banindo as representações pagãs, os deuses mitológicos, da cultura romana.

Porém, há um dado novo nos versos da comédia Os deuses de casaca, pois o poeta diz que

aquilo que a História e a Religião separaram definitivamente a Arte pode reunir. O

elemento agregador, então, será a Literatura, incorporando em seu âmago elementos

antitéticos, sem que estejam necessariamente em conflito.

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222

Tornamos ao mesmo ponto de antes, ao texto de Dante, que elege dois povos como

escolhidos para uma missão especial, divina, por assim dizer. Enquanto Dante escolhe

Virgílio e Isaías para representar as duas culturas, nos versos da comédia de Machado, as

duas figuras destacadas são a Sibila de Cumas e Davi, personagens que representam,

respectivamente, a profetisa pagã e o profeta judaico-cristão. O próprio Dante, explorando

a profecia contida no livro de Isaías, mostra que a progênie de Cristo advém da ―raiz de

Jessé‖, ou seja, de Davi, também citado no verso machadiano. Qual seria, então, a

importância da Sibila de Cumas nesse contexto?

O que nos interessa, primeiramente, é a representação literária dessa figura.

Encontramos uma referência à Sibila de Cumas no livro VI da Eneida, de Virgílio. A

personagem é uma adivinha, ou profetisa, que conduz o herói Enéias em sua descida ao

Inferno. O herói encontra-a numa gruta e busca respostas para saber o seu destino na nova

pátria, a Itália. Era costume do povo grego e, posteriormente, do romano a consulta aos

oráculos sempre que uma importante decisão precisava ser tomada. As sibilas, por isso,

eram figuras muito respeitadas pelo povo, mas não apenas pelas pessoas simples, como

também pelas de posição mais elevada, incluindo reis e imperadores.

A tradição nos mostra que as predições eram escritas em versos hexâmetros e

entregues aos consulentes em folhas de palmeira. Os oráculos sibilinos possuíam

significado ambíguo, que demandava certa decifração para extrair-se alguma verdade de

seus carmes. Sobre a ambigüidade dessas predições, tornou-se lendária a história de Creso,

soberano riquíssimo da Lídia, que havia procurado a sibila de Delfos para saber se deveria

guerrear contra Ciro, o rei persa. Obteve dela a resposta de que, se fosse para a batalha, um

império seria destruído. Acreditando na previsão, Creso empreendeu uma guerra e acabou

derrotado, pois não havia considerado a questão sob ótica inversa, a de que o seu próprio

império poderia ser destruído.

Não apenas na lenda de Creso encontramos a dupla natureza dos oráculos, mas

quase sempre, em outros episódios clássicos, notamos um oráculo que anuncia o futuro

grandioso e/ou trágico de algum personagem histórico ou fictício. Inevitavelmente, seja

porque interpretou mal a predição ou porque tentou fugir do cumprimento dessas profecias,

o indivíduo acabava indo ao encontro do seu destino.

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223

A obliqüidade dos oráculos sibilinos também é relatada por Virgílio. Isso pode ser

observado pela leitura de uma das estrofes da Eneida, que descreve a consulta feita por

Enéias à Sibila de Cumas:

A Cuméia Sibila assim da interna

Parte da gruta está profetizando

Circunlóquios horrendos, e a caverna

Os ouvidos espanta retumbando:

Com as coisas escuras mete, e alterna

As verdadeiras, todas embrulhando.

Apolo como quer a rege, e enfreia,

E punge o coração de fúria cheia.176

Com isso, constatamos que a sibila de Cumas torna-se uma referência importante a

partir dos textos de Virgílio e que, portanto, Machado estabelece uma relação entre

paganismo e cristianismo pelas mesmas vias de Dante, buscando personagens do livro de

Virgílio e do Velho Testamento.

Já não podemos tratar, aqui, apenas de uma vertente histórica sem considerarmos os

influxos da Arte na formação da mentalidade de uma época e na compreensão de algumas

contradições inerentes ao homem. Apesar de a História registrar a ascensão e a queda de

um povo ou de uma cultura em favor de outra, a Arte consegue reunir os contrários,

reinterpretando as ações humanas e atribuindo-lhes um significado. É a Arte que vai

encontrar em elementos tão contraditórios o ponto de união, de consenso.

Nesse caso, se estamos tratando de Virgílio, de que maneira Dante teria encontrado

num escritor pagão, vivendo antes do advento do cristianismo, algum elemento que

apontasse para a interpretação exposta em Il Convivio? Machado teria absorvido esse

pensamento da obra de Dante?

Pode-se afirmar que tal idéia é anterior aos dois escritores e que teve origem no

início da era cristã. O primeiro indício que temos disso é uma pequena nota de Machado,

presente na edição consultada de Os deuses de casaca. O escritor afirma que o

antepenúltimo verso da peça pertence a um soneto do Marquês de Belloy. Diz a nota:

176

VIRGÍLIO. Eneida. (Trad. João Franco Barreto). Lisboa: Typographia Rollandiana, 1808. p. 293.

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―O antepenúltimo verso que o Epílogo recita: ‗David olhando em face a

sibila de Cuma‘, é tradução de um verso, com que o marquês de Belloy

fecha um dos seus belos sonetos: ‗En regard de David la sibylle de

Cume‘, o qual é paráfrase daquele hino da Igreja: ‗Teste David cum

sibylla‘.‖

O poema de Auguste de Belloy (1766-1847), poeta e teatrólogo francês, consta da

edição de Légendes fleuries e utiliza como epígrafe um verso do hino religioso:

―Teste David cum sibylla”

Héritiers des débris de l‘édifice antique,

Élevons, s‘il se peut, mais ne détruisons rien;

Et relions d‘ un coeur filial et chrétien,

La grâce ionienne à la grandeur biblique.

Contre les vains assauts d‘une école hérétique,

De la tradition que l‘art soit le gardien;

Par d‘aimables détours le beau conduit au bien,

Platon déjà pressent le dogme catholique.

Em dépit de Calvin, l‘austère factieux,

Gardons le feu sacré que Léon X rallume,

Ne jetons pas au vent la cendre des aïeux,

Et sous les voûtes d‘or que notre encens parfume,

Fils de la Renaissance, offrons à tous les yeux,

Em regard de David, la sibylle de Cume.177

Belloy conclama os ―Filhos da Renascença‖ a, através da arte, reunir duas culturas :

―Et relions d‘ un coeur filial et chrétien,/La grâce ionienne à la grandeur biblique.‖ Seria

um elogio à tradição renascentista que retoma a cultura clássica e faz dela matéria-prima de

suas criações, o que, necessariamente, não exige um abandono das crenças. Os

renascentistas beberam das fontes clássicas com o objetivo de reinterpretar os eventos de

seu tempo através dos sábios da Antiguidade.

177

BELLOY, Marquis de. In: PORTMARTIN, Armand. Dernières causeries littéraires par(...). Paris: Michel

Lévy Frères Libraires-Éditeurs, 1862. p. 339. Tradução: "Herdeiros das ruínas do edifício antigo,/ Construamos, se

possível, mas não destruamos nada;/ E unamos com um coração filial e cristão/ A bênção jônica à grandeza bíblica. //

Contra as vãs investidas de uma escola herética,/ da tradição que a arte seja a guardiã;/ Por amáveis sendas o belo conduz

ao bem,/ Platão já intui o dogma católico.// Apesar de Calvino, o austero faccioso,/ Conservemos o fogo sagrado que Leão

X acende,/Não joguemos ao vento a cinza dos antepassados/ E sobre a abóbada de ouro que nosso incenso perfuma/

Filhos da Renascença, ofertemos a todos os olhares/ Defronte a Davi, a sibila de Cumes." (Trad. Antonio Carlos Secchin)

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225

Partindo do fundamento deixado pelos autores do passado, a arte deveria construir

suas bases. O artista, portanto, deve beber da tradição, na herança dos antigos mestres, para

construir algo novo, ou melhor, para estabelecer conexões entre passado e presente, a fim

de projetar o futuro. Os escritores, essencialmente os poetas (que incluem os pensadores e

os criadores de conhecimento), seriam esses ―Héritiers des débris de l‘édifice antique,‖, que

sobre tal fundamento erguem a obra da contemporaneidade.

Baseando-se no conteúdo do poema e na epígrafe nele presente, Machado acata a

idéia e a sintetiza nos três versos da peça aqui estudada: ―A arte, num mesmo amplexo, a

todos reuniu./ De duas tradições a musa fez só uma:/ David olhando em face a sibila de

Cuma‖. Portanto, ele finaliza a peça com este argumento, que também pode ter servido de

base para a escolha do tema de Os deuses de casaca. Ocorre que, no contexto da peça

machadiana, há uma inversão, pois o mundo clássico é que busca se adaptar ao novo

edifício do mundo contemporâneo. São as antigas tradições, os deuses mitológicos, que

procuram espaço na sociedade burguesa do século XIX, assumindo os papéis que nela são

representados.

O poema de Belloy foi extraído de um livro de autoria do crítico Armand de

Pontmartin, que emite alguns comentários sobre o poeta francês, mais especificamente

sobre o conteúdo de Légends fleuries. Notando o tema desenvolvido pelo autor acerca da

união do paganismo e do cristianismo através da arte, Pontmartin diferencia a idéia contida

no poema em relação ao argumento da epígrafe, contestando a validade do discurso

artístico frente ao conteúdo religioso do Teste David cum sibylla. Assim, faz a seguinte

observação:

L‘ hymne de l‘Église, auquel M. de Belloy a emprunté son épigraphe,

n‘a pás prétendu, dans son laconisme um peu obscur, résumer et

formuler d‘avance l‘alliance du christianisme et du paganisme dans l‘art.

L‘auteur de cet hymne sublime a voulu seulement rappeler aux fidèles

que le dogme terrible du jugement dernier palpitait déjà dans le coeur de

l‘humanité tout entière, avant d‘être confusément prédit par l‘oracle de la

sibylle et clairement annoncé par la prophétie de David.‖178

O ―hino de igreja‖, a que tanto Pontmartin quanto Machado se referem, é, na

verdade, o réquiem Dies irae, executado nos templos por ocasião de funerais. A letra foi

178

Idem. p. 340.

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escrita na Idade Média, por volta de 1250, provavelmente por um religioso chamado Tomas

de Celano. O texto trata do Juízo Final, ou seja, da segunda vinda de Cristo para julgar as

ações dos homens, vivos ou mortos, e para destruir o mundo presente.

Ao que parece, Celano tomou por base de sua composição algumas profecias

bíblicas, como o livro de Sofonias, que profetiza sobre o dia do juízo: ―Aquele dia é dia de

ira, dia de angústia, dia de alvoroço e desolação, dia de escuridade e negrume, dia de

nuvens e densas trevas, dia de trombeta e de rebate contra as cidades fortes, contra as torres

altas.‖ 179

Não apenas este livro trata do tema do ―dia da ira‖, como também os Salmos 2 e

110 de Davi, o evangelho de Mateus e o livro do Apocalipse, dentre outros, o fazem.

Igualmente no Fausto de Goethe, no curto episódio denominado ―Catedral‖, o hino

de Celano abre a cena, se interpondo às vozes de Gretchen e do ―Espírito Mau‖ que a

atormenta, e a acusa pela morte da mãe. A moça aparece no pátio de uma igreja, onde

celebram a missa fúnebre. Aos poucos sente o peso do julgamento da sociedade,

primeiramente pelo fato de ter se deixado seduzir por Fausto antes do casamento e depois,

ainda que não tenha sido intencional, pelo envenenamento da mãe.

GRETCHEN: Ai de mim! ai!

Como fugir dos pensamentos,

Que me andam, contra mim,

De cá, de lá!

CORO: Dies irae, dies illa,

Solvet saeclum in favilla.

ESPÍRITO MAU: Furor te agarra!

Troa a trombeta!

Sepulcros tremem!

E das dormentes cinzas,

Para infernais tormentos

Já ressurgido,

Teu coração

Palpita, freme!180

O episódio da tragédia de Goethe é bem sugestivo, pois Gretchen (Margarida) está

sendo julgada pela sua consciência religiosa no pátio da Catedral. A música de fundo, o

179

A BÍBLIA ANOTADA. (Trad. João Ferreira de Almeida). São Paulo: Mundo Cristão, 1994. (Sofonias, cap

1, vers. 14-16. p.1148). p 802. 180

GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 429.

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réquiem de Celano, prenuncia a morte dos injustos e pecadores, como acontecerá no

capítulo final, em que a moça é decapitada após ser julgada infanticida (por ter assassinado

o filho que teve com Fausto). Vale lembrar também que, antes da cena da Catedral, há o

episódio ―Na fonte‖, em que Luisinha, uma outra personagem, anuncia a fala de certa

―Sibila‖ acerca da gravidez de uma das moças da região (nomeada Bárbara), como uma

espécie de profecia acerca do futuro de Margarida.

O que é interessante para nossa pesquisa sobre o réquiem de Celano é a introdução

das figuras controversas do rei Davi e da Sibila de Cumas no mesmo plano. O que a letra

do réquiem nos adverte é que tanto a profecia pagã quanto a judaico-cristã predizem a

morte e a destruição dos homens no ―Dia da ira‖, com destaque para o seguinte trecho do

réquiem:

Dies irae, dies illae

Solvet saeculum in favilla;

Teste David cum Sibilla.

Quantus tremor est futuros,

Quando judex est venturus,

Cuncta stricte discussurus.181

Portmartin também chama a nossa atenção ao mostrar que a referência do hino às

duas figuras – Davi e a Sibila de Cumas – se justifica, pois ambos profetizaram sobre este

dia que seria o do ―juízo final‖ da humanidade. Por outro lado, Machado parece dar mais

ênfase à questão proposta pela arte de reunir paganismo e cristianismo, intenção presente

no poema de Belloy.

Temos, portanto, textos de épocas distintas que utilizaram o mesmo referencial

pagão/judaico-cristão das profecias de Davi e da Sibila. Isso indica uma referência ainda

mais remota que teria dado origem à comparação entre as duas figuras.

Durante séculos, a história, a filosofia, o homem (e as demais criações do

pensamento humano) foram interpretados pela tensão entre as duas culturas ou pela fusão

de ambas. Antes de voltarmos os olhos para a concepção estritamente artística dessa união

181

CULLEN, Thomas Lynch. Música sacra: subsídios para uma interpretação musical. Brasília: Musimed,

1983. Tradução: ―Dia de ira, aquele dia/ Tudo será cinza fria/ Diz Davi, diz a Sibila/ Quanto tremor há de

haver/ Quando o juiz aparecer/ Para tudo examinar.‖

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entre culturas distintas que encontramos na obra machadiana, discorreremos sobre a

penetração do cristianismo na cultura pagã e, posteriormente, de um movimento inverso, de

introdução de elementos pagãos no culto cristão e, principalmente, sobre a influência

dessas duas vertentes no universo literário.

Com o propósito de buscarmos uma fundamentação teórica para concluirmos essa

pesquisa, em que, por fim, analisaremos a prosa de Machado de Assis sob uma perspectiva

poética, trabalharemos com o conceito de ―Figura‖, formulado por Erich Auerbach, na

releitura de textos clássicos, com ênfase na Idade Média e no Renascimento.

As páginas que se seguirão saem do âmbito estrito da obra machadiana, procurando

compreender o sentido do poético e do profético na construção das ideologias no mundo

real e no universo artístico. Teremos como objeto de estudo textos de autores que

exerceram forte influência na cultura universal e na gênese do pensamento do Ocidente e

que, sob muitos aspectos, serviram de fonte para a formação do escritor Machado de Assis.

4.2- Poesia e profecia: a interpretação figural dos primeiros doutores cristãos.

As estratégias usadas pelo cristianismo para evangelização dos povos sempre

articularam passado, presente e futuro, partindo de um só princípio: a vinda de Cristo como

Salvador da humanidade. Em primeiro lugar, temos a legitimação do fato - a vinda de

Cristo - através da leitura e interpretação das profecias do passado; em segundo lugar, o

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cumprimento desta profecia e suas implicações no mundo presente, e, por fim, o

estabelecimento de uma nova profecia que envolve a redenção ou a destruição total do

homem no Juízo Final, ou seja, num evento futuro.

Após a ascensão de Cristo, a igreja primitiva tomou dois rumos distintos,

representados pelos apóstolos Pedro e Paulo: um, pregador do povo judeu; o outro,

pregador dos gentios, ou seja, dos povos pagãos. Essas distintas estratégias dos apóstolos

levaram ambos a contrastarem opiniões e a se desentenderem acerca de determinadas

práticas judaicas propagadas no ambiente cristão. As discussões sobre o assunto

culminaram no Concílio de Jerusalém, descrito no capítulo 15 do livro de Atos. O que se

percebeu, a partir disso, é que não seria possível impor costumes judaicos aos outros povos

que estavam se voltando para o cristianismo, tendo em vista que não eram judeus e não

estavam sob o jugo das leis do Antigo Testamento.

O influxo das pregações de Paulo, apóstolo extremamente culto e versado nos

principais pensadores do mundo greco-romano, serviu de base para muitas das posteriores

estratégias de evangelização dos gentios. O discurso de Paulo no Areópago (Atos 17: 18-

33), em Atenas, é um exemplo de como o apóstolo, usando como pretexto os elementos da

cultura grega e do culto ateniense, construiu sua pregação sobre Cristo. Ao se deparar com

os diversos deuses cultuados em Atenas e ver suas imagens espalhadas pela cidade, Paulo

se impressiona com um altar, vazio, dedicado ―ao deus desconhecido‖. Aproveitando-se

desse culto peculiar dos atenienses, discursando diante de filósofos estóicos e epicureus,

Paulo afirma que era exatamente esse Deus que ele estava anunciando: aquele que não

possuía imagem feita por mãos humanas. Para reforçar o argumento, utilizou o próprio

discurso dos poetas daquele povo para legitimar seu discurso:

(...) pois nele [em Cristo] vivemos, e nos movemos, e existimos, como

alguns de vossos poetas têm dito: Porque dele somos também

geração (grifo nosso). Sendo pois, geração de Deus, não devemos pensar

que a divindade é semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, trabalhados

pela arte e pela imaginação dos homens.

Paulo, portanto, é o primeiro homem de que temos notícia a introduzir o discurso de

poetas para legitimar um pensamento apregoado pelo cristianismo. Como a arte, pelos

outros discursos aqui estudados, foi apontada como o ponto de partida para tal conúbio

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entre rudimentos pagãos e cristãos, tornemos aos textos mais antigos que se referem

especificamente às figuras de Davi e da Sibila.

Dante teria destacado duas fontes que tomou por base para articular essas culturas: o

Velho Testamento e a obra de Virgílio. Tratando-se do poeta latino, já tão citado aqui, é de

extrema importância que nos voltemos para a análise de seus escritos. Além do trecho da

Eneida, já comentado, em que Virgílio cita a Sibila de Cumas, há outra obra que também

faz alusão a essa mesma personagem. Trata-se das Bucólicas, poemas de inspiração

pastoril, onde o poeta apresenta, em sua quarta Écloga, a profecia da Sibila Cuméia

anunciando a vinda de uma ―Idade de Ouro‖ através do nascimento de um menino.

Ultima Cumaei venit jam carminis aetas:

magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.

Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;

iam noua progenies caelo demittitur alto.

Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum

desinet ac toto surget gens aurea mundo,

casta, faue, Lucina: tuus iam regnat Apollo.

Teque adeo decus hoc aeui ,te consule, inibit,

Pollio, et incipient magni procedere menses

te duce.

Eis a última era anunciada em Cumas

a grande série de séculos recomeça.

Já também retorna a Virgem, voltam os reinos de Saturno;

do alto céu já é enviada uma nova geração.

Tu somente, casta Lucina, favorece ao menino que nasce,

sob o qual primeiramente desaparecerá a raça de ferro

e surgirá no mundo inteiro a raça de ouro, já reina o teu Apolo.

E esta honra do tempo começará e os grandes meses começarão

a suceder-se primeiramente sob o teu consulado, ó Polião,

sob o teu comando.182

Os primeiros Padres da Igreja encontraram nesses versos virgilianos o paralelo

necessário para mostrar aos povos pagãos que a vinda de Cristo havia sido predita até

mesmo pela Sibila de Cumas. A proximidade do texto de Virgílio com a profecia, contida

em Isaías 7:14, ―Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho‖, foi uma das estratégias

mais eficazes de evangelização nos primeiros séculos da Era Cristã, propagando-se ainda

182

VIRGÍLIO. Bucólicas. (Trad. Raimundo Carvalho/ Odorico Mendes). Belo Horizonte: Crisálida, 2005.

p.41. (Écloga IV, versos 4-12).

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mais após a consolidação do cristianismo como religião oficial e da Igreja, portadora da

verdade de Cristo na terra.

Segundo os historiadores, Lactâncio Firmiano (séc. IV d.C), apesar de hoje não ser

bem aceito como um dos Padres da Igreja, teria sido o primeiro teólogo cristão a elevar

Virgílio à posição de ―profeta‖. Professor de Retórica, Lactâncio possuía vasta leitura dos

clássicos gregos e latinos, assim como de textos de outra natureza: filosóficos, religiosos e

históricos, incluindo textos de sábios egípcios de épocas remotas.

Após sua conversão ao cristianismo, o estudioso pretendeu mostrar aos pagãos,

principalmente aos homens cultos de seu tempo, a validade do discurso do cristianismo e,

para isso, usou como prova substancial de seus argumentos desde obras literárias até

transcrições de profecias sibilinas sobre a vinda de Cristo. Em seu livro, Divinas

instituições (Divinae institutiones), o teólogo faz uma releitura dos antigos à luz da religião

a que se convertera. Tudo indica que ele tenha se inspirado na obra Ad Autolycum, de

Teófilo de Antioquia (séc. II d.C.), para tratar as profecias sibilinas como prenúncios do

cristianismo.

Lactâncio, através de sua erudição, teria influenciado, inclusive, o imperador

Constantino, que o nomeou preceptor de seu filho mais velho. Alguns estudiosos chegam a

afirmar que muitas decisões de Constantino foram inspiradas em suas idéias. De fato, o

sincretismo religioso promovido pelo Imperador, após sua conversão ao cristianismo, teria

sido uma das principais estratégias de unificação do Império, buscando agradar tanto aos

cristãos, em franco crescimento mesmo após as duras perseguições anteriores, quanto aos

pagãos, insatisfeitos com a conversão do Imperador.

Ao conciliar alguns elementos das religiões pagã e cristã, Constantino favoreceu o

estabelecimento posterior do cristianismo como religião oficial do Império, principalmente

após ter a ele acrescido algumas práticas do mitraísmo e de outros cultos da época, fazendo

coincidir datas que poderiam ser comemoradas por cristãos e por pagãos. Um desses

exemplos é a instituição do dia 25 de dezembro, data das festas dedicadas ao deus Mitra – o

Sol Invictus do povo romano - como dia do nascimento de Cristo. Por ser o culto desse

deus muito difundido e apreciado em Roma, dadas as semelhanças de determinadas

celebrações, tornou-se uma data muito propícia para unificar festejos pagãos e cristãos.

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Outra adaptação foi a transformação do Dies Solis, dia da semana dedicado ao deus Sol,

para o ―Domingo‖ (Dominicus), ou seja, dia ―do Senhor‖.

Posteriormente, tanto a conversão de Constantino sofreu contestação por parte dos

historiadores, quanto a validade dos ensinamentos de Lactâncio foi questionada pelos

religiosos. Talvez pelo fato de mostrar mais erudição nos conteúdos pagãos que cristãos o

teólogo tenha sido taxado de herético pela Igreja, mas, passados alguns séculos, acabou

redescoberto e valorizado pelos humanistas a partir do séc. XV. A variada natureza dos

textos trabalhados por Lactâncio na doutrinação cristã tornou-se alvo de muitos estudos

históricos e teológicos. Assim o descreve Campenhausen em sua análise dos ―Padres da

Igreja‖:

Entretanto, o material com que ele [Lactâncio] trabalhou não é

majoritariamente cristão, mas pagão. Isso salta à vista, de maneira

especial na comprovação da profecia, a qual ele mesmo dá um extremo

valor. Está construída quase por completo sobre testemunhos reais ou

supostamente pagãos; de modo especial sobre os oráculos sibilinos (com

interpolações judias ou cristãs), sobre as revelações de Hermes

[Trismegistus] e sobre oráculos e poemas das mais variadas

proveniências. Mais tarde, Lactâncio tratou como profeta inclusive

Virgílio, que havia previsto e profetizado as últimas perseguições dos

cristãos. Inicia-se, assim, o começo das interpretações cristãs de Virgílio.

(...) Sucede que Lactâncio escreve, então, para convencer um público

pagão.183

Os escritos herméticos de que nos fala o texto também influenciaram sobremaneira

o pensamento de Lactâncio. O Corpus hermeticum, espécie de bíblia dos alquimistas, era

uma compilação de textos de (suposta) autoria de Hermes Trismegistus, figura lendária

identificada com o deus egípcio Tot. Sábio ou deus, histórico ou lendário, Hermes foi

considerado um contemporâneo de Moisés. Por isso mesmo, tornou-se o representante

perfeito para, como fez Dante, equiparar a sabedoria pagã ao texto judaico, usando como

validação a antiguidade de ambos os discursos. Ficavam, pois, emparelhados o patriarca

judaico e o sábio do paganismo.

Os textos originais do sábio egípcio não chegaram à posteridade, mas seu nome e

sabedoria eram tão apreciados pelos antigos como as filosofias de Aristóteles e Platão. Essa

183

CAMPENHAUSEN, Hans Von. Padres de la Iglesia II: padres latinos. Madrid: Ediciones Cristiandad,

2001, p. 104. (traduzido do original espanhol)

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fama permitiu que, nos primeiros séculos da era cristã, viessem à luz algumas reproduções

dos pensamentos de Hermes, que, assim como os oráculos sibilinos, também traziam

presságios acerca da vinda do Messias. Esses pseudo-escritos de Hermes muito se

assemelham aos diálogos filosóficos ou às interpolações entre Deus e os profetas do mundo

judaico, e usam, alternadamente, um e outro modelo.

Partindo desse legado de Lactâncio, o que de fato nos interessa é a incorporação que

ele fez das duas culturas, valendo-se da utilização de elementos do paganismo para

reafirmação do cristianismo. Em especial, trata-se aqui da inclusão do objeto de nosso

interesse: a citação das sibilas como prova cabal da veracidade do discurso cristão.

As primeiras predições das antigas sibilas gregas, como a de Delfos, haviam sido

preservadas nos Livros sibilinos, que ficavam guardados no templo de Júpiter, no Capitólio,

e eram consultados pelos governantes em épocas de conflito. Tirava-se um trecho do livro,

aleatoriamente, e dele se extraía um acróstico contendo a previsão acerca do assunto

desejado. Como o Corpus Hermeticum, esses Livros sibilinos também não chegaram à

posteridade, apesar de o conteúdo deles ter sido matéria de muita especulação. Ao que

parece, os Livros foram definitivamente destruídos num grande incêndio no templo

romano.

Já os Oráculos sibilinos (Oracula Sibyllina), citados por Lactâncio, surgiram entre

os séculos II a.C e III d.C., gerando muitas controvérsias a seu respeito. No entanto, alguns

historiadores indicam que, antes do nascimento de Cristo, a influência judaica já se fazia

sentir no Império Romano, e que tais oráculos teriam sido manipulados por sábios judeus

que queriam infiltrar as suas doutrinas através de um veículo de ampla aceitação do povo

romano, como eram, à época, os oráculos sibilinos. Para alcançar tal objetivo, foram

forjadas algumas cópias desses textos perdidos, que funcionariam de maneira tão eficaz

quanto nos tempos mais remotos do Império. São, todavia, apenas hipóteses, pois ninguém,

até hoje, conseguiu descobrir seus verdadeiros autores.

De qualquer forma, ao aproveitar esses oráculos no contexto cristão, Lactâncio deu

o primeiro passo para a definitiva introdução das figuras das sibilas, ao lado dos profetas

hebreus da Antiguidade, no imaginário cristão medieval do século seguinte. Sobre as

sibilas, nos fala Buitenwerf, ao analisar a propagação de tais oráculos na Idade Média:

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There was also great interest in the older Greek Sibyl, who was believed

to have foretold the coming of Christ. This belief was based on the

knowledge of early Christian writings, such as Theophilus‘ Ad

Autolycum, Lactantius‘ Divinae institutiones was of especial importance,

because this work contains Varro‘s list of various Sibyls. This list of

Sibyls an an account of their literary activity.184

Uma outra sibila que também passou a ser muito divulgada, a partir do século IV,

foi a Tiburtina, ou Romana. Conta a lenda que ela foi procurada pelo Imperador Augusto,

que desejava saber quem era o deus que o ajudava a obter tantas vitórias. A sibila, pois, lhe

anuncia um deus que viria encarnado, nascido de uma virgem, e que seria o imperador de

todos os tempos, unificando Ocidente e Oriente. Augusto teria crido na previsão e mandado

construir, no antigo templo de Juno, a igreja de Ara-Coeli. Segundo dados históricos, o

episódio lendário foi difundido após o advento de Cristo, já que a referida igreja teve sua

construção iniciada bem depois da época de Augusto.

Ainda assim, o oráculo da Sibila Tiburtina obteve grande alcance, principalmente na

Idade Medieval. Além de ser adicionada ao coro das testemunhas da vinda de Cristo, sua

profecia revelada a Augusto serviu de mote a muitos poetas. Como não tivemos acesso ao

conteúdo original da profecia, do século IV, citaremos um trecho de um poema de Juan de

la Cueva (1587) que nos revela o teor da lenda, divulgada até então:

La Sibila tiburtina

Habiéndole el Rey contado

Toda la duda em que estaba

Le respondió: - Octaviano,

No atribuyas à tu nombre

Lo que al Imperio Romano

Has dado, poniendo à Espana

Em el yugo italiano,

E pacificar el mundo

Teniéndolo todo llano;

(...)

Que un solo Dios es la causa

Y este es quien te ha ayudado,

El cual nacerá muy presto

Siendo Dios hecho hombre humano,

E nacerá de uma virgen

Reservada de pecado.

184

BUITENWERF, Rieuwerd. Book III of the Sibylline Oracles and its Social Setting. Leiden: BRILL, 2003.

p. 5.

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Viene à libertar el mundo

De la fuerza del tirano:

Desterrará al falso Jove,

A Mercúrio, a Febo y Jano,

Pacificando la tierra,

Cual dél es profetizado.-185

Tanto o oráculo da Sibila Cuméia, da Écloga virgiliana, quanto o da Sibila

Tiburtina, apontam para o retorno da Idade de Ouro, tempo em que Saturno retomaria o seu

reino, usurpado por Jove (Júpiter), e o restabeleceria como no início das eras. A releitura do

oráculo feita pelos cristãos medievais concebe a Idade de Ouro como um novo tempo, onde

Deus Pai reassumiria sua autoridade no mundo, outorgando ao Filho um reinado de paz.

Uma leitura do mito aparece na obra de Ovídio. Nas Metamorfoses, o poeta

descreve as quatro idades do mundo: as de ouro, prata, bronze e ferro. A primeira seria um

tempo de paz e harmonia, o reinado de Saturno: ―sem nenhum vingador, sem lei nenhuma/

culto à fé, e à justiça então se dava,/ Ignoravam-se então castigo, e medo;/ Ameaças

terríveis se não liam/ No bronze abertas; súplice caterva/ à face do juiz não palpitava:/

todos viviam sem juiz sem dano‖186

.

Sucedendo-se as eras, viria finalmente a última e a mais terrível: a Idade de Ferro.

Na obra de Ovídio, Júpiter aparece como um juiz que se ira diante das calamidades da

terra, que, na Idade do Ferro, estava tomada pela guerra e pelos crimes.

Eis-me um tempo agora em que me é forçoso

Fazer tremenda, universal justiça,

Perder a humana estirpe em tudo, em tudo

Quanto abraça Nereu circunsonante.

Subterrâneas, tristíssimas correntes,

Correntes que lambeis o estígio bosque,

Até juro por vós que ao mal infando

Mil remédios em vão tentei primeiro!

Mas incurável chaga exige o ferro,

Cortada cumpre ser porque não lavre,

Porque não fique o são também corrupto.187

185

CUEVA, Juan de la. ―Profetiza la sibila a Augusto, la venida de Cristo.‖ In: DURAN, Don Agustín. (org).

Romancero General. Madrid: Imprenta de la Publicidad, 1849. p. 392. 186

OVÍDIO. Metamorfoses. (Trad. de Bocage). São Paulo: Martin Claret, 2003. p.19 187

Idem. p.23.

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Para os intérpretes cristãos, assim como a Idade de Ouro poderia ser representada

pela primeira vinda de Cristo, que veio perdoar os pecados da humanidade e restabelecer

seu reino na terra, a Idade de Ferro se encaixaria plenamente na descrição do ―Dia da ira‖,

quando o retorno do juiz marcaria uma nova era, de punição ou absolvição, de acordo com

as ações de cada um, como no texto ovidiano, ―para que não fique o são também corrupto‖.

Um dado importante sobre o tema aparece na Bíblia, numa passagem em que o

profeta Daniel interpreta um sonho de Nabucodonosor, rei da Babilônia. No sonho, uma

antevisão de outros tempos, esses mesmos metais aparecem, na ordem exata do texto de

Ovídio, e também representam, segundo a interpretação de Daniel, quatro tempos distintos.

O rei babilônico teria visto uma grande estátua composta pelos quatro elementos: cabeça de

ouro, peito e braços de prata, ventre e quadris de bronze e pernas de ferro (acresce-se, no

entanto, que nos pés aparecem uma mistura de ferro e de barro).

Daniel interpreta a imagem como a representação de quatro reinos distintos e revela

que o de ouro representa o reinado de Nabucodonosor, que seria substituído por outros

inferiores, de prata, de bronze e de ferro. Assim ele descreve o último: ―O quarto reino será

forte como ferro; pois, o ferro a tudo quebra e esmiúça; como ferro quebra todas as cousas,

assim ele fará em pedaços e esmiuçará‖ (Daniel 2: 40). Como no texto ovidiano, esse

tempo seria marcado pela violência e pela guerra. Daniel, no entanto, acrescenta um outro

reino àqueles quatro, relatando que uma pedra, tirada do monte, formaria um quinto reino

que suplantaria todos os quatro, ―esmiuçará e consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo

subsistirá para sempre.‖ (Daniel 2:45).

Há diferenças na concepção final de ambas as culturas com relação a estas

representações hierárquicas, já que no livro judaico não existe o retorno àquela primeira

idade, mas a vinda de um quinto elemento, de fora, que desagregaria os outros reinos. No

entanto, os pontos de contato entre as representações favoreceram a fusão entre um e outro

princípio, na medida em que abordavam questões muito similares. Além disso, notamos

que nos três textos a figura do profeta é de suma importância, pois, diante dos reis, ele

anuncia/ interpreta os dados da realidade vindoura: neste texto, Daniel, naqueles, a Sibila

Tiburtina e Cuméia. E, mais uma vez, temos sibilas e profetas emparelhados no percurso

mítico/histórico da tradição pagã e judaico-cristã.

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Além do oráculo da Sibila de Cumas, presente nos versos de Virgílio, e o da Sibila

Tiburtina, uma outra predição, muito utilizada e citada por autores cristãos, originou-se do

livro VIII do Oracula Sibyllina. Trata-se de uma profecia atribuída à Sibila Eritréia. O

primeiro a mencionar o oráculo foi Eusébio de Cesaréia (Eusebii Pamphili Caesariensis)

em seu Oratio Constantini ad Sanctorum Coetum, um panegírico ao imperador

Constantino. Eusébio atribuiu ao Imperador a revelação de um acróstico, retirado do

oráculo da Sibila Eritréia, que predizia a vinda do Messias, ao formar, em grego, os

seguintes dizeres: ―Iesoús Khreistós Theoú Hyiós Sotér” (Jesus Cristo, filho de Deus, o

Salvador).188

O oráculo, entretanto, só alcançaria a notoriedade após a sua tradução para o latim,

feita por Santo Agostinho. Não apenas a tradução de Agostinho de Hipona, mas a

eloqüência dos seus escritos e a influência desses na cristandade, deram à profecia da sibila

a legitimidade necessária. Em De Civitate Dei, o religioso, apesar de fazer plena distinção

entre a Cidade de Deus e a Cidade terrena (dos pagãos), cita Lactâncio e utiliza-se das

mesmas vias para convencer/converter seus interlocutores. Ao transcrever o oráculo,

Agostinho diz ser a Sibila Eritréia a mesma que profetizava em Cumas, embora,

posteriormente, as duas sibilas tenham sido representadas, por outros autores, como figuras

distintas.

Eis o conteúdo do oráculo que, no latim, inicia-se com o verso: ―Iudicii signum

tellus sudore madescet”.

Ι A terra cobrir-se-á de suor frio. Será o sinal do juízo.

Η O Rei imortal dos séculos baixará do céu

Σ e apresentar-se-á em carne para julgar a terra.

Ο E, quando o mundo decline para o seu ocaso, o fiel e o infiel

Υ verão Deus , acompanhado de seus santos.

Σ As almas apresentar-se-ão ao juiz com os respectivos corpos

Φ e na Terra já não haverá beleza nem verdura.

Ρ Os homens deixarão os ídolos e as riquezas.

Ε O fogo abrasará a terra e, ganhando terra e mar,

Ι quebrará as portas do sombrio Averno.

Σ Já libertos da carne, os corpos dos santos gozarão da luz

Ί e os pecadores serão abrasados por eterna chama.

Ο Então, revelando seus atos ocultos, cada qual descobrirá

Σ os próprios segredos e Deus fará luz nos corações

188

PAMPHILI, Eusebii. De Vita Constantini et Panegyricus atque Constantini ad Sanctorum Coetum.

Lipsiae: Guilelmum Nauckium, 1830. p. 383-384

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Θ Tudo então será choro e ranger de dentes.

Ε O sol escurecerá e o coro dos astros perderá o tom.

Ο Girará o céu e a Lua apagar-se-á como lâmpada;

Υ abater-se-ão as colinas, altear-se-ão os vales;

Υ e nas coisas humanas não haverá culminâncias nem alturas.

Ι Os montes nivelarão com os campos e o mar será inavegável.

Ο Tudo acabará, a Terra far-se-á em pedaços,

Σ as fontes e os rios serão torrados ao fogo.

Σ Mas no alto soará então o triste som da trombeta

Ω e tudo se cobrirá de gritos e de prantos.

Τ Abrir-se-á a Terra e deixará ver seu profundo e caótico abismo.

Η Perante o tribunal do Senhor comparecerão os rei

P E os céus verterão torrentes de fogo e enxofre.189

Agostinho teria suprimido os quatro versos finais do original grego, com o

propósito de manter 27 versos para enfatizar a perfeição da composição triádica, sendo esse

número o resultado de três elevado ao cubo. Buscando novas significações, o bispo de

Hipona ainda consegue extrair outra mensagem do acróstico grego. As primeiras letras de

―Iesoús Khreistós Theoú Hyiós Sotér‖ formariam a palavra Ikhthys, ―peixe‖, pois, segundo

ele, Cristo teria sido o único capaz de se manter vivo, sem pecado, nas profundezas do mar

da nossa mortalidade190

. Iniciava-se, assim, a imagem do peixe como símbolo do

cristianismo.

Ao tecer tais aproximações, ainda que o propósito do livro fosse refutar as crenças

pagãs, Agostinho colaborava ainda mais com a fusão entre paganismo e cristianismo, já

que ―Ichtys‖ era também o nome do filho da deusa síria Atargatis (Astartéia, Astarote ou

Astarte em outras culturas). Tanto mãe quanto filho tinham o peixe e o mar como símbolos.

Os caldeus e babilônicos assimilariam o culto ao deus-peixe, dando a ele o nome de Ea ou

Ioannes, conhecido posteriormente como Dagom (do hebraico, dag, que significa

―peixe‖).191

Não há dúvida de que Agostinho usou tanto os procedimentos de Lactâncio, para

estabelecer conexões entre paganismo e cristianismo, quanto os do apóstolo Paulo para

189

SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus (contra os pagãos). Parte II. (Trad. Oscar Paes Leme).

Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 336. (Livro 18, cap. XXIII). 190

Idem. p.337. 191

KUHN, Alvin Boyd. The Red Sea. Pomeroy: Health Research, 1996. p.43. ―Os antigos sumérios,

ancestrais dos babilônicos, haviam falado do peixe reencarnação de Vishnu, e o antigo epônimo do herói da

Caldéia deve ter vindo de Ioannes, o Peixe Avatar sob o nome de Dagom. E dag é a palavra hebraica para

―peixe‖.

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reler o Antigo Testamento como prefiguração do Novo. Mesmo que não seja

necessariamente uma profecia, cada parte da história dos hebreus remete a um episódio dos

Evangelhos ou a um determinado evento cristão. Haveria, assim, plena correspondência

entre judaísmo e cristianismo. Exemplo disso é a leitura que Santo Agostinho faz dos

gêmeos Esaú e Jacó, do Antigo Testamento, ao se referir à profecia que Deus havia dado a

Rebeca, mãe de ambos, quando ela sentiu que as crianças brigavam em seu ventre.

Quando Rebeca concebeu, os gêmeos, ainda no ventre materno, lutavam.

Angustiada pelo conseqüente mal-estar, dirigiu-se ao Senhor e recebeu

esta resposta: Há duas nações em teu seio e de teu ventre sairão dois

povos. Um povo subjugará o outro e o maior servirá o menor. (...)

E, embora seja verdade que isso parece haver-se cumprido no povo

idumeu, descendente do maior, que tinha dois nomes (chamava-se Esaú e

Edom, por isso, idumeus), pois o dominou o povo nascido do menor

[Jacó/Israel], o povo israelita, ao qual ficou submetido, é mais razoável

acreditar que a intenção da profecia: Um povo subjugará o outro e o

maior servirá o menor, vai além, a algo superior. E que é isso, senão o

que com toda a clareza vemos cumprir-se nos judeus e nos cristãos? 192

Portanto, um episódio anterior passa a ser prenúncio de um evento futuro. Assim,

Esaú e Jacó são, respectivamente, prefigurações do judaísmo e do cristianismo; o povo

antigo torna-se servo do mais novo, opinião que vai ser acolhida na época de Agostinho e

disseminada em períodos subseqüentes.

Dos oráculos sibilinos às prefigurações judaicas, todos os caminhos levam à

verdade apregoada pelo teólogo católico. As articulações do texto agostiniano revelam que

sua pregação destinava-se tanto aos povos pagãos quanto ao povo judeu e que sua retórica

estendia-se, como a cruz cristã, vertical e lateralmente, englobando uma tradição e

incluindo outros povos num só paradigma, a fim de revelar que o sacrifício de Cristo

fundou uma crença universal, destinada a todos os povos. Afora a utopia da unidade através

da reunião de crenças distintas, em A cidade de Deus o teólogo cria uma nova dicotomia,

desta feita entre os indivíduos da ―cidade celestial‖ e os da ―cidade terrena‖, sobre os quais

falaremos em outra ocasião.

A interpenetração dos discursos pagãos/judaicos/cristãos pode ser notada nos dois

níveis: tanto se percebem influxos cristãos nos textos pagãos, quanto destes naqueles.

192

AGOSTINHO, Santo. Op. cit. p. 260.

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Como nos sugere o poema de Belloy, sobre o edifício ancestral vão sendo construídas

novas conjecturas, mas que não se desligam totalmente dos antigos padrões. A sibila seria

esta figura retirada da gruta da Antiguidade para profetizar o advento do Messias nos

altares da Idade Média. Sua função clássica, de predizer o futuro de heróis e de reis nas

grandes obras greco-romanas, é substituída pela de profetisa do mundo cristão. Interessa-

nos, sobretudo, acompanhar essa transição da Sibila – que surge nos discursos agostinianos

e de outros padres da Igreja - da Antiguidade para a Idade Média, assim como,

posteriormente, veremos sua representação na obra machadiana.

Quodvultdeus, o bispo de Cartago, contemporâneo de Agostinho, escreveu um

sermão denominado Contra Iudaeos, Paganos e Arianos, e que ficou mais conhecido pelo

nome de Sermo de Symbolo. Nesse sermão, espécie de texto dialogado, compareciam

vários profetas do Antigo Testamento – Isaías, Jeremias, Daniel, Davi, Habacuque –

seguidos de outras figuras e profetas do Novo Testamento – Zacarias, João Batista e Isabel.

Junto a esses personagens bíblicos, surgiam também Virgílio e Nabucodonosor, como

representantes do universo pagão que confirmavam a validade das palavras ali

pronunciadas sobre a vinda de Cristo e o Juízo Final. No término do sermão, surgia a fala

da Sibila Eritréia pronunciando, ipsis litteris, o oráculo traduzido por Agostinho em De

Civitate Dei.

Por muito tempo, esse sermão se fez passar por texto agostiniano, o que favoreceu

ainda mais sua divulgação nos anos subseqüentes, permitindo a maior popularização do

oráculo e a definitiva fusão entre profetas e sibilas no imaginário medieval.

Um dos aspectos que ampliaram o alcance do sermão foi a maneira dialogada do

texto de Quodvultdeus, que passou a ser incluído na liturgia, principalmente nas festas

religiosas do calendário da Igreja, e servia como um instrumento eficaz de evangelização

das massas. O impacto da profecia era muitas vezes mais valorizado que a leitura do

sermão, já que, na parte referente ao oráculo, entrava um indivíduo, representando a Sibila,

que pronunciava o texto num tom dramático. Além de atrair a atenção das massas, a sibila

ali representada infundia-lhes terror, principalmente por enunciar o dia da ira de Deus

como uma ameaça a todos aqueles que não acreditassem na veracidade do que estava sendo

representado.

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241

O sermão com ênfase dramática, portanto, passava a ser um importante instrumento

de divulgação do cristianismo. A união entre elementos cristãos e pagãos tinha o oráculo da

sibila Eritréia como mote principal do argumento eclesiástico. Veremos, pois, como esse

tipo de dramatização foi eficaz tanto na evangelização dos povos quanto na consolidação

dos regimes políticos.

4.3- Do altar para o palco da vida: sibilas e profetas na consolidação do Estado

e da Igreja

Nos séculos posteriores, o sermão difundiu-se pela Europa e, em algumas versões, o

trecho do oráculo da Sibila foi musicado para melhor assimilação do seu conteúdo pela

platéia. A ênfase dramática, por fim, permitiu que o sermão se transformasse em peça mais

elaborada, com caracterização de todos os personagens e grande impacto no público. Assim

originaram-se os dramas litúrgicos como o Ordo Prophetarum, Ordo Sibyllarum e o Canto

de la sibila.

Tanto en Francia como en Espana el sermón del Pseudo-Agústin, más

conocido por Sermo de symbolo,uso ocupar la Lección 6ª o la 9ª de los

maitines de Navidad. Em ambos países los versos del sermón que

corresponden a la Sibila, ―Judicii signum‖ etcétera, se cantaban desde

antiguo, pero se ignora donde y cuándo se les puso música. En el caso

particular da Cataluña el documento más antiguo em el que figuran es

una miscelánea del siglo X del monastério de Ripoll; el inicio de los

versos de la Sibila que lleva notación.193

193

MUNTANÉ, Maricarmen Gómez. La musica medieval en Espana. Kassel: Edition Reichenberger, 2001. p. 71.

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242

Analisando a letra de algumas dessas composições musicais, pode-se perceber de

onde Tomas de Celano teria conseguido inspiração para compor o seu ―Dies irae‖, além, é

claro, da grande popularidade que essa temática deveria ter à época. Estudos de distintas

áreas de conhecimento, principalmente no campo das Artes Plásticas e da Música,

pesquisaram a penetração dos dramas litúrgicos na Europa e constataram, com surpresa,

que havia resquícios da representação do Ordo Prophetarum em diversas partes do

território europeu, incluindo regiões como Zagreb, na Croácia.

Em sentido estrito, isto é, como drama litúrgico independente, só se

conservam três ordines medievais procedentes de Limoges (finais do

XI), Leon (século XIII) e Rouen (século XIV). Há, entretanto, notícias de

outros perdidos e de textos afins como os de Einsiedeln, Benediktbeuren

e Salerno ou a lectio de Arles, e há uma década descobriu-se um

fragmento de Ordo croata procedente de Zagreb (fins do XII).

Conservam-se, portanto, desde datas muito distantes, testemunhos nas

línguas vernáculas tanto românicas como germânicas, servindo

geralmente como prólogo de mistérios do Natal.194

A influência do Ordo se espalhou pelo território europeu e incidiu também na

iconografia do período e na arte esculpida nas catedrais. Na catedral de Santiago de

Compostela, por exemplo, Mestre Mateo, entre os anos de 1168 e 1188, entalhou as

imagens do ―Pórtico da Glória‖, trabalho inspirado na representação do Ordo, reunindo

esculturas de sibilas e profetas, imprimindo-lhes determinados movimentos e expressões

faciais. Cercadas por outras esculturas de instrumentistas e do coro (elementos que

costumavam acompanhar a representação dramática), as esculturas de Mestre Mateo

parecem dar vida aos diálogos do Ordo, além de muitas delas apresentarem máscaras,

artefatos usados especificamente nas representações teatrais.

Para dar maior ênfase à obra, o artista esculpiu também os horrores do Inferno, a

subida ao Purgatório e as glórias do Paraíso, temáticas obsessivamente reproduzidas no

cenário medieval, e que teriam sua definitiva coroação na Commedia de Dante Alighieri.

Sofrendo contínuas modificações, os dramas litúrgicos ganharam outras figuras

bíblicas e pagãs que passaram a aumentar o coro dos profetas na difusão do temido ―Dia do

194

MONTAÑÉS, Julio I. Gonzáles. ―Drama e iconografia na Idade Média‖. In: ANUÁRIO GALEGO DE

ESTUDIOS TEATRAIS. Conselho da Cultura Galega. Sección de Música e Artes Escénicas. Santiago de

Compostela: Comisión Tecnica de Teatro, 2002. p. 25. (Tradução do galego)

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243

Juízo‖. Em algumas representações do Ordo Prophetarum, por exemplo, além das

personagens já citadas, pode-se observar o acréscimo das figuras de Salomão, o sábio rei

judeu e dos doutores da Igreja, sábios cristãos, como Santo Agostinho, que, até então,

acreditavam ser o autor do Sermo do Symbolo.

A vitalidade do tema das sibilas se verifica pelo próprio caráter da profecia aqui

exemplificado. Por terem uma leitura ambígua, esses oráculos vão sobreviver por muitos

séculos, sendo usados das mais diversas formas e pelos mais diferentes segmentos da

sociedade e, o mais interessante, servindo a propósitos distintos, até mesmo contraditórios.

Enquanto a Igreja necessitava do fortalecimento de sua doutrina, esses oráculos

foram usados para convencer o povo da validade do discurso cristão, mas não só para isso:

também para infundir uma crença inveterada no final dos tempos. Até o ano mil da era

cristã, muitas foram as profecias que apareceram no cenário medieval anunciando o

iminente fim do mundo, quando aumentavam os sacrifícios, as peregrinações à Terra Santa,

as mortificações e o medo do dia do Juízo. Acrescia-se a tudo isso a constante ameaça das

invasões bárbaras e, principalmente, de muçulmanos que se espalhavam por toda a Europa.

A figura do Anticristo era convocada em todos os discursos e ora via-se representada num

rei tirano, ora num seguidor de Maomé, enfim, naquele que fosse o opositor de

determinada, pessoa, instituição ou reino.

A partir dos séculos finais do primeiro milênio, principalmente após a ascensão de

Carlo Magno, primeiro Imperador do Sacro-Império, as sibilas, que antes anunciavam o

nascimento de Cristo e o dia do Juízo Final, passaram a prever também que um rei, em

carne e osso, instauraria um reinado terrestre. Inicia-se assim uma outra releitura histórica

das interpretações da Oracula Sibyllina, em especial, do oráculo da Sibila Tiburtina. Essa

profecia, que anunciava a reunificação do Império do Ocidente e do Oriente, seria

obsessivamente perseguida pela Igreja como uma maneira de preparar a terra para o

advento, mas também como forma de consolidar sua autoridade diante dos povos.

Assim, a crença num Imperador Divino passaria a ser a tônica dessa nova fase

medieval, partindo do mesmo esquema profético de antes. Apoiando-se no oráculo da

Tiburtina, apregoava-se o retorno do rei, que tanto poderia ser um novo Augusto quanto um

segundo Carlo Magno, para reassumir a missão de Imperador do Sacro Império. Porém, ao

contrário do que se pretendia, a união do Sacro Império parecia cada vez utópica, já que as

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discordâncias - ideológicas, religiosas e políticas - faziam a Igreja do Ocidente distanciar-se

cada vez mais da Igreja do Oriente, favorecendo a cisão entre ambas.

A definitiva consignação da Igreja do Ocidente, sobrepujando a do Oriente,

aconteceria por meio de um recurso muito eficaz: a carta da ―Doação de Constantino‖, que

concedia à sede romana poderes ilimitados e privilégios reais, fazendo com que se

apoderasse da autoridade divina, poder espiritual, e da Imperial, poder temporal. Sob dois

alicerces, submeteria os reis, os nobres e toda a humanidade ao julgamento e à autoridade

papal, tantos nos assuntos terrenos quanto nos divinos.

Com o crescimento do poder papal, muitos religiosos passaram a discordar da

atitude da Igreja, o que contribuiu para a multiplicação de Ordens Eclesiásticas que

pregavam a humildade, o voto de pobreza, principalmente de algumas Ordens Mendicantes

que se opunham à opulência e à riqueza que os papas passaram exibir a partir de então.

Além do voto de pobreza, os religiosos se isolavam em ermidas ou em conventos

distantes. Sobretudo o eremitismo, recurso utilizado desde épocas remotas, ganha força,

pois a crença popular conferia a esses indivíduos, isolados dos males da civilização, a

posição de ―seres escolhidos por Deus‖, portadores de mensagens divinas.

Pode-se dizer que essa imagem do eremita é uma outra variação da figura dos

profetas e da sibila, que, segundo os antigos relatos, também habitavam em grutas ou em

lugares isolados, sem nos esquecermos dos homens santos que peregrinavam em regiões

desérticas, passando privações e jejuns, a fim de viverem sob a inspiração de Deus.

Nesse cenário medieval, destaca-se o abade Joaquim de Flora (1145-1202) -

Gioacchino da Fiore - fundador do Convento de Císter. Inspirado nas idéias de Santo

Agostinho, o abade retoma as prefigurações agostinianas acerca dos dois Testamentos

bíblicos numa nova leitura, principalmente nas obras: Livro da concordância do Novo e do

Velho Testamento, Livro das figuras e O Evangelho eterno. Recebendo uma revelação

divina após peregrinar na Terra Santa, o abade passa a acreditar que o mundo segue um

padrão trinitário. Assim como o Antigo Testamento (a Idade do Pai) era prefiguração do

Novo, o Novo Testamento (a Idade do Filho) seria uma prefiguração de uma terceira fase

que estava por vir. Flora anunciava essa última Era como a Idade do Espírito, em que a

integridade da Igreja seria restabelecida por um Imperador do reino terreno, reunificando

Ocidente e Oriente e inaugurando uma fase de paz, união e equilíbrio no mundo.

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245

Porém, segundo os cálculos do abade calabrês, assim como a Idade do Pai se

configurou a partir da vinda do Filho, a Era do Espírito só aconteceria após a grande

batalha contra o Anticristo, falso profeta que surgiria por volta do ano de 1260. Antes desse

conflito final, todavia, seria necessária a purificação da Igreja, até então corrompida pelo

poder e pelas riquezas, por intermédio de um grande Imperador. Ele tomaria o poder

temporal do papado, reassumindo o papel de chefe político, e designaria um Papa Angélico

para restaurar a missão divina e espiritual da Igreja. Esse Papa, juntamente com os

elementos do povo e com o apoio dos eremitas, venceria o Anticristo, dando início a um

reinado de paz na terra, o reino milenar, onde não haveria mais espaço para as divisões,

para as diferenças de classes etc.

A crença milenarista, que institui um reinado divino na terra, baseia-se na premissa

de uma sociedade voltada para a união dos povos, na adoção de ideais igualitários, na

Unidade através da eliminação das diferenças, com um só Governo e uma só crença. O

Estado e a Igreja, restaurada, estariam unidos em torno do Bem comum da humanidade. O

pensamento utópico do abade Joaquim de Flora teve grande alcance na época e em

períodos subseqüentes, instituindo a crença messiânica, voltada, porém, para a esfera

política. Basicamente, as revoluções populares, os regimes utópicos e nacionalistas vão se

fundamentar nessa crença na Igualdade, no estabelecimento de uma sociedade justa e num

governo do povo, tendo como exemplo mais cabal dessa influência o sebastianismo

português.

Em The Pursuit of the Millennium, Norman Cohn, após analisar toda a influência da

crença milenarista nos movimentos revolucionários, mostra que ela não se reduziu ao

século XI, mas se estendeu até o século XVI, apoiando-se nos mais diversos textos

proféticos, da Bíblia, nos oráculos sibilinos e, também, nos escritos do abade Joaquim de

Flora.

They occurred in a world where peasant revolts and urban insurrections

were very common and moreover were often successful. It frequently

happened that the tough, shrewd rebelliousness of the common people

stood them in excellent stead, compelling concessions, bringing solid

gains in prosperity and privilege. In the age-old laborious struggle

against oppression and exploitation the peasants and artisans of medieval

Europe played no ignoble part. But the movements described in this book

are in no way typical of the efforts which the poor made improve their

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246

lot. Prophetae would construct their apocalyptic lore out most varied

materials – the Book of Daniel, the Book of Revelation, the Sibylline

Oracles, the speculations of Joachim of Fiore, the doctrine of the

Egalitarian State of Nature – all of them elaborated and reinterpreted and

vulgarized. That lore would be purveyed to the poor – and the result

would de something which was at once a revolutionary movement and na

outburst of quasi-religious Salvationism.195

Outro ponto importante, esboçado há algumas linhas atrás, é o retorno à Idade de

Ouro. Não se pode negar a semelhança das idéias de Joaquim de Flora com as prenunciadas

no ideário clássico e nos escritos hebraicos, de que vários reinos se sucederiam até que

fosse retomado o reinado de paz e equilíbrio de outrora. Como no Livro de Daniel,

acreditava-se na vinda de um ―Quinto Império‖, que destruiria os anteriores, ou de um rei

que restabeleceria a paz, como no mito de Saturno, que faria retornar os tempos de glória.

Paralelamente, o segundo milênio trazia uma nova reunião de elementos pagãos e

cristãos que convergiriam para a figura do rei com uma missão divina: o ciclo das novelas

de cavalaria, baseado em lendas pagãs celtas e ibéricas, fundidas ao ideário cristão. Na

literatura de cavalaria, o cálice dos druidas, o Santo Graal, passaria a cálice de Cristo, a

sibila ganharia ares de fada, enquanto o profeta se recobriria das vestes de mago. Morgana

ou Merlim, essas seriam as novas representações medievais, baseadas no sincretismo

pagão-cristão que os artistas do período passariam a representar em suas histórias.

Um forte misticismo seria a principal característica desses primeiros séculos do

segundo milênio. Além da interpenetração de discursos pagãos e cristãos, havia a

alternância de ideais políticos e religiosos no meio eclesiástico. As interpretações dos

textos do abade, todavia, não traziam nenhum benefício para a Igreja, que se sentiu

ameaçada com a idéia de um terceiro evento que pretendia restabelecer uma Nova Ordem,

prenúncio de outro cisma no meio eclesiástico.

Essa ameaça parecia cada vez mais real a partir do momento em que muitos

religiosos radicais passaram a usar essas idéias para fortalecer discursos de oposição à

Santa Sé. Por outro lado, os franciscanos valeram-se amplamente das profecias do abade

para reafirmar a grandeza de São Francisco, declarando que a fundação da Ordem dos

Franciscanos seria o evento, profetizado por Flora, que promoveria a purificação da Igreja.

195

COHN, Norman. The Pursuit of the Millennium. New York: Oxford University Press, 1970. p.281.

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247

Para acentuar o misticismo religioso, uma série de textos pseudo-joaquimitas

passariam a circular, trazendo ―verdades escondidas‖, revelações sobre novos

acontecimentos do plano espiritual, textos, enfim, forjados por dominicanos e franciscanos

ortodoxos, com objetivos religiosos e, muitas vezes, políticos, incluindo a divulgação de

profecias pseudo-joaquimitas acerca do rei Frederico II, taxado de Anticristo. 196

Outros textos foram escritos por nobres e sábios cristãos que pretendiam ver o Papa

assemelhado a esta figura maligna; enfim, de um e de outro lado, as profecias sibilinas e

joaquimitas serviriam para associar a ascensão de reis tiranos ou papas a eventos

apocalípticos, para o bem ou para o mal.

Dentre os escritos pseudo-joaquimitas mais divulgados constam: o Oráculo de

Cirilo (Oracullum Cyrilli cum Expositione Abbatis Joachim), o Libellus e o Expositio

Sybillae et Merlini, os dois últimos trazendo profecias da Sibila Tiburtina e do próprio

Merlim para reinterpretar as idéias de Joaquim de Flora. Nota-se nessas obras a mescla das

profecias sibilinas, das previsões do abade e, o mais notável, a afirmação de Merlim como

profeta desse novo tempo, enfim, todos eles anunciando a vinda de um rei, um Salvador,

que restabeleceria a antiga ordem ou criaria uma nova.

Especificamente no Libellus, existe um certo Telésforo de Cosenza, com um perfil

muito próximo do abade, falando sobre sua visão e validando o discurso através das mais

variadas fontes cristãs e pagãs. Há também a fusão de elementos do ciclo da cavalaria nessa

nova leitura das profecias sibilinas, neste caso, à luz das idéias de Joaquim de Flora.

Telésforo, em jeito de introdução, conta que, na manhã do dia de Páscoa

do ano de 1386, tivera uma visão de um anjo que lhe disse que Deus

tinha atendido as suas orações, e, por isso, lhe comunicava que as

respostas as suas dúvidas – sobre a divisão da Igreja e o seu verdadeiro

pontífice... – estavam infusas nas profecias de muitos servos de Deus que

tinham profetizado por graça do Espírito Santo, como Cirilo, Joaquim de

Flora, Merlim, a Sibila Tiburtina entre outros. Portanto, deveria ler e

estudar o conteúdo dessas obras com o propósito de desvendar as causas

e o fim da cisão. A mesma coisa seria dizer que a solução estava no vasto

corpus da literatura joaquimita e pseudo-joaquimita.197

196

SANGERMANO, Luciano. ―Il Gioachimismo di Salimbene‖. In: ITALIA FRANCESCANA. Revista di

cultura francescana. Ano LXXXIII.nº 3 –set.-dic. Roma: 1998. 13-36. 197

SERAFIM, João Carlos. ―Eremitismo, Profecia e Poder: o caso do Libellus do pseudo-eremita Telésforo de

Cosenza‖. In: REVISTA VIA SPIRITUS. nº 9. Eremitismo na Época Moderna: modos e lugares. Porto:

FLUP, 2002. p. 67.

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248

A releitura política, espiritual e estética de todo desse ideário medieval que,

posteriormente inauguraria uma nova fase - o Renascimento -, foi plenamente realizada por

Dante Alighieri em sua Commedia. Apesar de não citar diretamente as profecias sibilinas,

Dante vai utilizar os discursos proféticos do abade Joaquim de Flora para fazer uma

interpretação figural da História de Roma e de toda política do seu tempo.

4.4- Profecia, utopia e interpretação figural na obra de Dante Alighieri

Influenciado pelas idéias de Joaquim de Flora, Dante aguardava o restabelecimento

da Igreja e a vinda do Veltro, o Imperador da profecia joaquimita, que unificaria o Império

do Ocidente e do Oriente para o segundo advento do retorno do Messias. Por esta

influência, justifica-se também a idéia ilustrada em Il Convívio de equiparar o surgimento

do Império Romano ao nascimento de David, como um acontecimento necessário para

unificar o mundo na primeira vinda de Cristo, favorecendo a plena aceitação dos

ensinamentos cristãos.

Também em Dante, como bem observa Auerbach, verifica-se a reinterpretação de

dados históricos, bíblicos e literários como forma de revelação de acontecimentos futuros.

É pela prefiguração que o escritor interpreta a realidade presente e antevê as realizações

vindouras. Logo, a narrativa dantesca não é puramente alegórica.

Por tudo que foi exposto nesse capítulo, percebe-se que a interpretação figural será

um método amplamente utilizado por escritores e religiosos de diferentes épocas para

analisar aspectos da realidade de seu próprio tempo e, de igual modo, para prever eventos

futuros. Contudo, haverá uma divisão marcante entre a visão profético-religiosa, mística

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249

por excelência, e a antevisão intelectual - em que o sábio, aquele que é capaz de analisar os

eventos do passado e do presente, consegue trazer à tona as verdades encobertas.

Encontramos, na primeira vertente, o ideário medieval e, na segunda, o

renascentista. A primeira prenunciaria eventos com fins religiosos e estaria a serviço da

Igreja, enquanto a outra teria a prefiguração como objetivo científico e estético, a serviço

dos homens cultos da Renascença.

A compreensão do caráter figural da Commedia não se constitui num

método universal que nos permite interpretar cada uma de suas passagens

controvertidas; mas é possível derivar dele certos princípios de

interpretação. Podemos ter certeza de que cada uma das personagens

históricas ou míticas existentes no poema deve significar algo

intimamente ligado ao que Dante sabia acerca de sua existência histórica

ou mítica, e que esta relação é entre preenchimento e figura; devemos ter

sempre o cuidado de não negar também sua existência histórico terrena,

de não confinarmos a uma interpretação abstrata, alegórica. Isto aplica-se

particularmente em relação a Beatriz. O realismo romântico do século

XIX enfatizou ao máximo a Beatriz humana, com sua tendência a fazer

da Vita nuova uma espécie de novela sentimental. Depois veio a reação;

a nova tendência é eliminá-la completamente, dissolvê-la num

aglomerado de conceitos teológicos cada vez mais sutis. (...) Para Dante,

o significado literal ou a realidade histórica de uma figura não apresenta

nenhuma contradição com seu significado mais profundo, pois representa

necessariamente a sua ―figuração‖; a realidade histórica não é anulada,

mas confirmada e preenchida pelo significado mais profundo.198

A leitura que Dante faz em Il Convívio também não pode ser tratada como uma

simples alegoria ou como a construção de uma lenda sobre a similaridade das estirpes

judaica e romana. A obra de Virgílio e a Bíblia são analisadas pelo poeta como verdades

históricas, não como mitos e fábulas de um povo.

Quanto à configuração da obra dantesca, principalmente da Commedia, é óbvio que

não se pode negar o seu hermetismo, e aqui se usa o termo no sentido original, o de obra

voltada para ―iniciados‖. Mas, conhecendo o contexto histórico em que Dante se insere e

analisando o universo literário a que se filia, prontamente pode-se perceber que a mesma

prefiguração histórica usada por Agostinho e Flora se faz presente em seus escritos.

Assim como Agostinho realiza a divisão entre a Cidade Divina e a Cidade Terrena,

Dante, na Commedia, vai distinguir duas Romas: a celestial e a terreal. O poeta florentino,

todavia, vai inverter o panorama da interpretação cristã, colocando a Roma divina como

198

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997. p. 62

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250

aquela cantada por Virgílio, e a Roma terrena como a cidade corrupta de seu tempo. Sabe-

se que, por conflitos políticos e religiosos, Dante se encontrava fora de Florença, exilado da

terra natal, e não via com bons olhos a dominação política da Igreja e sua associação com o

rei Felipe IV.

Em vários trechos da Commedia, o escritor condenará a Igreja por ter concentrado

nas mãos os poderes político e religioso, atribuindo à ―Carta de Doação de Constantino‖,

de que falamos, a origem da corrupção papal. Na época de Dante, o documento era

considerado original e garantiu à Igreja poderes absolutos; por isso, apesar da intenção

legítima de Constantino, a doação seria, segundo o poeta, uma maldição no seio

eclesiástico.

Dante expõe o assunto na sua obra e vai diferenciar prontamente a Roma celestial

da terrena, através de duas figuras: a águia e a loba. Sempre que se dirige à Igreja de Roma,

a representa como lupa. Ao falar do Império Romano ou do Sacro-Império, utilizará a

simbologia das duas águias, já aqui analisadas. Como um inveterado defensor da

Monarquia Universal, seria inconcebível para ele que o Papa, sacerdote espiritual,

concentrasse nas mãos o poder do Imperador. Ao tomar para si um e outro domínio, teria

perdido ambos os propósitos.

Roma, que seu Império fez jucundo,

tinha dois sóis, que uma e outra estrada

mostravam, a de Deus e a do mundo.

Um e outro apagou; juntou-se a espada

ao báculo, e por certo não adianta

a nenhuma a outra força acrescentada,

porque agora uma a outra não espanta;

se não me crês, considera essa espiga:

que pelo fruto se conhece a planta.

(...)

Pois a Igreja de Roma que planeia

ter em si dois poderes confundidos,

cai na lama e conspurca a si e à sua preia.199

(―Purgatório‖ – Canto XVI : 106-129)

199

ALIGHIERI. D.C. Op. cit. p.109

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Na Commedia, Dante faz uma releitura de toda a situação política de seu tempo

através das prefigurações presentes nos eventos da Bíblia, na História de Roma e na obra

de Virgílio, incluindo o trecho da profecia da Sibila Cuméia, das Bucólicas. Em especial,

Dante vai eleger Virgílio o Sumo Poeta, um Guia tanto nas questões relacionadas ao

literário e ao estético, quanto nos assuntos espirituais, um revelador de verdades cristãs.

Conforme Lactâncio havia feito, mas servindo a outro propósito, Dante trata o poeta latino

como profeta, pondo nos lábios de Estácio, um dos redimidos do ―Purgatório‖ e autor do

poema épico Tebaide, a constatação da importância de Virgílio na condição de anunciador

do cristianismo. O trecho é um dos mais belos do Purgatório:

E ele: ―Tu primeiro me enviaste

ao Parnaso, em suas grutas a beber;

e primeiro pra Deus me iluminaste.

Foste o viandante que ao anoitecer

leva o seu lume às costas, que não presta

pra si, mas sim pra quem atrás vier,

ao dizeres: ‗Nova era é manifesta,

volta a Justiça e a primeira feição;

nova progênie a vir do Céu se apresta‘.

Por ti poeta fui, por ti cristão;

mas, pra o desenho meu veres melhor,

a colori-lo vou estender-lhe a mão‖.

(Purgatório – Canto XXII: 64-75)200

A missão de Virgílio é aqui sobrelevada, pois ele concentra duas naturezas: a

profética e a poética. Tanto conduz Estácio ao Parnaso, ao culto das Musas e da Poesia,

quanto é o anunciador de Cristo, ou seja, é aquele que atesta a legitimidade do culto cristão.

Tornamos, então, à questão inicial de nossa pesquisa: a Arte como ponto de fusão das

culturas pagãs e cristãs, uma terza via, entre o antigo e o novo, entre a crença religiosa e a

inspiração intelectual.

Parnaso e Paraíso tornam-se, portanto, representações de uma verdade única, a de

que o artista deve ser o intérprete do mundo, trazendo aos homens, através da inspiração

poética, a revelação divina. O poeta é a sibila – que oculta a revelação divina em versos

200

ALIGHIERI. D.C. Op,cit. p. 145.

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ambivalentes -, e o profeta – que diminui a distância entre Deus e os homens. A obra de

arte é, desse modo, uma saber oculto/revelado, que esconde a verdade divina sob o véu dos

versos. O leitor que deseja se aventurar nessas águas caudalosas não pode estar em

piccioleta barca, como Dante adverte nos primeiros versos do ―Paraíso‖.

O poeta de Eneida, da forma como é pintado por Dante, resume o perfil do Sábio

renascentista, aquele que traz a verdade clássica e acrescenta a ela a revelação cristã. O

―Sábio‖, fundindo platonismo e cristianismo, busca a excelência da Sabedoria, através da

revelação de Deus. Primeiramente Virgílio conduz Estácio à gruta do Parnaso, para beber

das águas inspiradoras, e, depois, o leva para a iluminação divina. Essa é uma configuração

muito semelhante ao mito da caverna de Platão.

O oráculo da Sibila de Cumas, por sua vez, é transcrito nos versos, mas atribuído ao

próprio Virgílio, tornando a profetisa apenas uma personagem a quem ele empresta a voz:

―Nova era é manifesta,/ volta a Justiça e a primeira feição;/ nova progênie a vir do Céu se

apresta‖. Essa nova progênie também já aponta um outro sentido: a geração do Sábio, do

artista, intérprete das ações humanas através da grande teia histórica, filosófica, literária,

política e social a que estão submetidas: “O voi che avete gl'intelletti sani,/ mirate la

dottrina che s'asconde/ sotto il velame delli versi strani” (Inferno - IX, 61-63)

No capítulo XXIV da Commedia, por exemplo, Dante anuncia uma grande ceia, que

podemos associar tanto à ―Santa Ceia‖, de Cristo, quanto ao banquete da sabedoria,

descrito em Il Convívio e que, por sua vez, remete ao Banquete de Platão. Ainda que

banidos do universo platônico – como na República - ou presos ao Limbo – como na obra

dantesca, os poetas da Antiguidade, principalmente Virgílio, são as luzes que preparam o

caminho daqueles que vêm após si. Aos novos poetas, héritiers des débris de l’édifice

antique, cabe reunir as duas grandezas, pagãs e cristãs, numa só concepção. Nesse mesmo

canto, Dante escreve o seu ―Credo‖, mostrando em que se fundamentava a sua fé:

(...) Num Deus eu creio

eterno e só, que o Céu inteiro move

imoto sempre, em amoroso anseio.

Minha crença, não só hei que ma prove

Física e Metafísica e as celestes

visões, mas a Verdade que nos chove

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sempre daqui, e o entendimento destes

Profetas, e dos Salmos, de Moisés,

e do Evangelho que vós escrevestes.

Creio em Eternas três Pessoas, e as três

numa só Essência tão uma e tão trina

que admite o trato de sois e de és.

(―Paraíso‖- Canto XXIV:130-141)

A Commedia, assim como a interpretação de Joaquim de Flora, tem a construção

pautada num esquema triádico: são três partes, Inferno, Purgatório, Paraíso; três guias:

Virgílio, Beatriz e São Bernardo, trinta e três cantos em cada livro, todos em terza rima. O

poeta florentino, por sua vez, reconhece a importância do pensamento de Flora: ―e lucemi

da lato/ il calavrese abate Giovacchino/ di spirito profético dotato.”(Paraíso– Canto XII:

139-141).201

As três partes da Commedia podem ser lidas como as Idades descritas na obra de

Flora: A Idade do Pai, época da Lei, quando o pecador é duramente punido pelos erros que

cometeu (Inferno); Idade do Filho, época da Graça, quando o arrependimento redime o

pecador (Purgatório) e a Idade do Espírito, quando se rompe definitivamente o vínculo

material/corporal, e a alma, o Amor puro, está em evidência (Paraíso). O poeta-profeta

também aguarda um reino terreno onde a justiça possa ser restaurada na figura de um

Imperador, e a Fé possa retornar ao primeiro caminho através de um Papa Angélico.

Destaca-se também na obra dantesca uma questão de muita importância: a leitura

que o poeta faz de Cristo, que, tal como Virgílio (poeta e profeta, ao mesmo tempo), é

também concebido em sua dupla natureza. Poderíamos, numa abordagem superficial,

concluir que se trata da índole humana e divina de Cristo, mas o poeta ultrapassa essa

interpretação, construindo um Messias híbrido, pagão-cristão por excelência. Para ele,

Cristo é o Grifo (grifon), figura mitológica que possui cabeça e asas de águia unidas ao

corpo de leão. Não porque Dante quisesse reduzi-lo a um elemento mítico, mas por

acreditar que Cristo representava simultaneamente as duas estirpes: a romana (águia) e a

judaica (leão).

Dante constitui a Commedia como uma obra que serve de ponte entre a ―águia de

Jove‖ e a ―águia de Deus‖. Observe-se que não é a ―águia de Quirino‖ (de Rômulo),

201

ALIGHIERI. D.C. Op. cit. p. 90

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cantada no poema de Machado, que Dante quer reaver, mas a Roma gloriosa dos tempos de

Augusto, de César, de Catão e de outros grandes romanos. Por esta ótica, tanto aquele que

traiu Cristo – Judas -, quanto os que traíram César - Bruto e Cássio - devem sofrer a pior

das condenações, o castigo eterno da boca de Dite no ―Inferno‖. Até nessa representação o

esquema triádico permanece, pois são três traidores sendo mastigados pelas três bocas de

Dite.

De maneira semelhante à profecia do Quinto Império, do Livro de Daniel, em De

Monarchia, Dante sobrepõe o Império Romano aos quatro grandes reinos que tentaram

colocar o mundo sob um único governo: Assíria, com Nino; Egito, com Vesoges; Pérsia,

com Ciro e Xerxes; Macedônia, com Alexandre. Portanto, Roma foi o único império a

realizar plenamente tal propósito, o que, segundo o poeta florentino, demonstra uma

escolha divina: ―Portanto o povo que superou todos os mais povos na disputa do império do

mundo, superou-os a mercê da vontade divina; eis que Deus cuida preferentemente de um

litígio universal sobre outro, particular. (Livro Segundo - Cap. VIII).202

Como os demais

intérpretes da realidade cristã, ele acreditava que as questões de cunho universal podiam

conter sentidos específicos.

Assim como os Evangelhos falam da ―Jerusalém celestial‖, terra santa dos cristãos,

Dante concebe a sua ―Roma celestial‖, pátria espiritual do seu povo. Por esse motivo, o

poeta tenta reafirmar de todas as maneiras a legitimidade do Império, usando como

argumentos os relatos bíblicos e apontando uma ―deliberação celestial‖ como causa da

condenação de Cristo. O parecer de Pilatos seria, neste caso, uma predestinação divina para

consumar a profecia bíblica:

Herodes não era representante de Tibério César sob o signo da águia,

nem o era do Senado e sim era de um reino singular, por ele ordenado e

singularmente governado.

Calem, portanto, suas injúrias contra o Império Romano aqueles que

fingem ser filhos da Igreja. Atentem para o fato de que Cristo, esposo da

Igreja, confirmou o Império nos dois extremos da sua existência

terrena.203

202

ALIGHIERI, Dante. Monarquia. (Trad. Hernani Donato). São Paulo: Ícone, 2006. p.83. (A partir desta

nota a obra será designada pela sigla M.Q.) 203

ALIGHIERI. M.Q. Op.cit. p.95.

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O fragmento acima explica claramente a concepção de Dante, principalmente em

relação ao trecho da Commedia transcrito linhas atrás, acerca dos dois extremos da

existência terrena do Império, duas águias, que foram confirmados por Cristo. Roma é,

portanto, meio e fim do cumprimento da profecia, e Cristo é o mediador, entre o Império

Romano e o Sacro-Império.

O poeta também fez uma nova leitura do Apocalipse de João. A descrição da

Babilônia presente no Livro, como a meretriz que está assentada sobre os sete montes, de

que falamos no início, não será para ele uma referência à fundação de Roma, nem uma

condenação ao Império Romano, mas uma profecia sobre a futura corrupção da Igreja de

Roma, que no seu tempo havia se associado à França para legitimar o reinado de Felipe IV,

representado por ele como o Anticristo. Essas associações serão traçadas no Canto XIX do

―Inferno‖:

Vós pastores lembrava o Evangelista

quando a que sobre as águas tem assento

por ele fornicar co‘s reis foi vista,

sete cabeças desde o nascimento

teve, e dez cornos guardaram-na outrora,

enquanto ao bem foi seu esposo intento.

De ouro e de prata é o vosso Deus agora,

quem de vós, que o idolatra, é mais genuíno,

se vós um cento, e ele um só adora?

De quanto mal foi mãe, ó Constantino,

não a tua conversão, mas tua oferenda

que tornou rico o trono papalino!204

Nesse círculo do Inferno são punidos os papas que incidiram no pecado da simonia

e lá estão dependurados, tendo as plantas dos pés constantemente queimadas. Percebe-se,

nas duas primeiras estrofes transcritas, a referência ao Livro do Apocalipse, através de uma

releitura profética deste, já que, pela interpretação de Dante, a meretriz passava a

simbolizar a Igreja do seu tempo. O poeta também se lamenta pelo mal que a ―Doação de

Constantino‖ teria trazido ao meio eclesiástico. Por sua vez, essa nova concepção da

204

ALIGHIERI. D.C. Op.cit. p. 136-137. v. 106 ao 117.

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profecia bíblica rompia o vínculo das interpretações anteriores que associavam a meretriz

ao Império Romano, que tanto perseguiu os primitivos cristãos. Desvincula-se também a

lupa romana como símbolo da fundação histórica de Roma, preterida em favor da ―águia de

Jove‖, que Virgílio associa ao herói Enéias (o Piedoso).

A mesma comparação da meretriz com a Igreja é retomada no Canto XXXII do

Purgatório, cercada de simbologias e acompanhada pelo Anticristo, Felipe IV. Toda cena é

presenciada por Dante diante de Beatriz, como uma espécie de visão que revela um Carro

puxado pelo Grifo, simbolizando Cristo a conduzir a nova Fé. Este Canto é o que melhor

resume as concepções de Dante. Seria a súmula do pensamento dantesco acerca de todas as

questões aqui tratadas: a missão divina do Império Romano, a dupla natureza de Cristo, a

Igreja de seu tempo e, por fim, o reinado de Felipe IV.

O Canto inicia-se com o Grifo conduzindo o Carro, até que ele pára diante de uma

árvore seca (que representa Adão e, ao mesmo tempo, o madeiro de Cristo). Alguns

advertem o Grifo para que não chegue até a árvore adâmica, mas ele se aproxima e se liga à

planta: ―Assim, menos em rosa que violeta/ cores se abrindo, renovou-se a planta/ que tinha

a rama antes tão seca e preta.‖205

Há uma associação entre as figuras de Adão e Cristo: o primeiro, pela

desobediência, trouxe a maldição para os homens e o outro, pelo sacrifício e pela

obediência ao Pai, trouxe a salvação. Um fere a humanidade, e o outro a cura. Aquele

representa a Lei, o castigo; este é símbolo da Graça, a redenção. Adão adormeceu para que

de suas costelas fosse criada a mulher; Cristo dorme (morre) para que dele a Igreja (a

Noiva) fosse gerada. Todas essas prefigurações foram construídas por teólogos e doutores

que antecederam Dante, incluindo Santo Agostinho. Também Paulo já havia traçado um

paralelo entre ambos, mas para diferenciá-los, não para aproximá-los.

Chama a nossa atenção o fato de Dante adormecer profundamente no momento em

que Cristo (O Grifo) se liga à arvore adâmica. Perante tamanha maravilha, qualquer outro

teria ficado de olhos bem abertos.

Qual pintor, com modelo, retratar

poderia como então adormeci,

mas deixo-o a quem melhor saiba pintar.

205

ALIGHIERI. Op.cit. D.C. p. 209.

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E passo a quando assustado me ergui

por um fulgor a me rasgar o véu

do sono, e a me chamar:‖Levanta, aí!‖

Como, a ver a macieira em seu apogeu

de florir, que há os, dos anjos, preferidos

frutos, e ternas núpcias faz no Céu.206

Dentro desta representação, Dante se coloca como um terceiro Adão, mas, ao

contrário do que acontece no Gênesis, encontra uma mulher sábia, Beatriz, que o conduz ao

bom caminho. Por outro lado, como aquele foi exilado do Paraíso, Dante também é banido

de sua terra natal por questões que envolveriam um outro Grifo, formado pelas insígnias

dos dois partidos de Florença: os guelfos, que tinham a águia por símbolo, e os guibelinos,

que portavam o leão no escudo. Assim sua visão abrange o passado, através do Antigo

Testamento, e a Promessa, do Novo Testamento, - partindo de ambos para fazer uma leitura

do presente: da história que Dante vivenciava na sua cidade e no seu tempo. Articulando

sempre os três eixos, como fez Agostinho, o poeta apreende a matriz histórica que

interpreta o seu estar no mundo.

Em seguida, após despertar, o poeta procura Beatriz, que revela a ascensão do Grifo

aos Céus, falando-lhe da seguinte forma: ―Por pouco tempo aqui serás silvano,/ depois, sem

fim, comigo cidadão/ daquela Roma onde Cristo é romano.‖ Logo, Cristo não ascendeu

para a Jerusalém celestial, como na leitura judaico-cristã, mas, segundo a releitura de

Dante, para a Roma Divina.

O propósito de Dante, na Commedia, é criar uma epopéia cristã do povo romano,

como Virgílio havia criado a pagã. Se os judeus representavam esse reino divino tomando

por base a Cidade Santa, o poeta, sendo italiano, pretendia fazer uma interpretação divina

da linhagem de Enéias, colocando Cristo como consolidador de ambas as linhagens.

No final desse Canto, Dante vê uma meretriz e um gigante se apossarem do Carro e

partirem com ele para outro lugar, episódio que os estudiosos compreenderam como a

Igreja corrompida, estabelecendo aliança com o rei Felipe IV e mudando a sua sede para

Avignon. Novamente, o escritor vai utilizar as profecias do Apocalipse para reler os

206

Idem.Ibidem.

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eventos de seu tempo, fixando-se na imagem da meretriz, mas acrescentando ao quadro a

figura do gigante, que é o Anticristo.

Interessa-nos particularmente a leitura que Dante faz de si mesmo como um terceiro

Adão. No trecho, o único elemento que o relaciona ao personagem bíblico é o sono que cai

sobre ele no exato momento em que Cristo se liga à árvore adâmica, mas há uma passagem

do ―Paraíso‖ que deixa essa interpretação mais firmemente expressa. Trata-se do Canto

XXVI, quando Dante dialoga com Adão e, desta forma a ele se dirige: ―Ó pomo que

maduro/ já criado foste, e tens, ó pai antigo,/ em cada esposa, filha e nora; eu, puro/ e

devoto/ que me fales; tu vês o meu querer/ e, por que logo acates, nem o digo.‖207

Em seguida, pela fala de Adão, ficamos sabendo quais seriam as perguntas que

Dante lhe teria dirigido. Como no ―Paraíso‖ todos os desejos do coração estão evidentes,

não é necessário que Dante diga nada, pois tudo está plenamente manifesto.

E disse: ―Sem uma admissão aberta

de tua vontade, a conheço melhor

do que tu entendas qualquer coisa certa;

porque a vejo no espelho refletor

que faz de si exata imagem dos

fatos reais, sem de si nada expor.

Há quanto tempo – indagas – Deus me pôs

no supremo jardim pra o qual Beatriz

tão longa escada para ti dispôs,

e quanto tempo lá eu fui feliz,

e da Grande Ira a razão; e que eu cite

o idioma que lá usei e eu mesmo fiz.

Ó filho, não do fruto o apetite

foi, por si só, a razão de tanto exílio,

mas, tão-só, o exceder do seu limite.

A última estrofe revela o motivo da ―Grande Ira de Deus‖ contra Adão.

Curiosamente a resposta do personagem bíblico engloba, ao mesmo tempo, a sua própria

situação e a condição de Dante como exilado. O trecho original não apresenta nenhum

207

Idem. ―Paraíso‖. v. 91-96. p. 184.

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pronome que identifique a resposta com o eu do discurso: Or, figluol mio, non il gustar del

legno/ fu per sé la cagion di tanto essilio,/ ma solamente il trapassar del segno.

Adão, portanto, ultrapassou o limite: a fronteira entre o humano e o divino, que

podemos identificar como o métron da mitologia. A hybris do herói teria motivado a

transgressão (hamartía), fazendo com que sofresse a punição divina. Esse desviar das

regras também cabe a Dante, que ousou questionar os poderes instituídos em Florença e

desafiar as ordens instituídas pelos ―deuses‖ de seu tempo. Outro ponto que chama a nossa

atenção é o olhar de Dante para o personagem bíblico, já que o relê sob o signo do herói

trágico: aquele que excede o limite, e não o que desobedece a Deus.

Muitos pensamentos esboçados por Dante, seguindo o pensamento de Joaquim de

Flora, revelam a crença na Utopia, na Monarquia Universal, na constituição de um só

governo para todos os povos. E essa crença se manifesta por uma absoluta certeza na

eqüidade e na sabedoria desse futuro Monarca, fundamentada numa promessa profética que

atravessa os séculos e tem por fim último a liberdade do homem e a união entre as nações,

ou seja, o Bem Comum da humanidade. São anseios firmados numa crença milenarista que

resiste a todos os tempos e se manifesta nas mais diferentes civilizações humanas: a eterna

busca pela união mundial no governo do Justo. Esse pensamento dantesco fica mais patente

na obra De Monarchia, onde afirma:

Considere-se que apenas o homem, entre todas as criaturas, situa-se a

meio entre o corruptível e o incorruptível, razão pela qual foi com

propriedade que filósofos o compararam ao horizonte que medeia os

hemisférios. (...) Portanto, se o homem medeia o corruptível e o

incorruptível; e se o meio participa da natureza dos extremos, impõe-se

que o homem possua de uma e outra natureza. E porque toda natureza

tende para um fim último, conclui-se existir o homem para um fim duplo.

(...) A Providência, que jamais erra, deu ao homem dois fins: a beatitude

na vida presente, que consiste no exercitar as próprias virtudes e é

figurada pelo paraíso terrestre. O outro fim é a beatitude na vida eterna,

que consiste na fruição do divino, a cuja presença (o homem) não pode

ascender se a sua virtude não for socorrida pela luz celestial, e isto se

entende que seja o paraíso celestial. (...)

Ao homem, portanto, em atenção ao seu fim duplo resultou necessário

um poder duplo: o do Soberano Pontífice, o qual, conforme a revelação,

orienta o gênero humano para a felicidade espiritual; e o do Imperador

que, segundo os ensinamentos dos filósofos conduz os homens para a

felicidade temporal.208

208

ALIGHIERI. M.Q. Op, cit. p. 134-135.

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Compreender essa exposição de Dante é sumamente importante para entendermos

um pouco da dialética da obra machadiana, principalmente com relação à adoção do meio

para melhor retratar os extremos do homem. A humanidade, por sua vez, pretendendo

buscar esta felicidade utópica, a qualquer custo, não abre mão de alcançar a unidade

desejada pela eliminação da outra parte: ―Ao vencedor, as batatas‖.

O que em Dante é utopia Machado digere em seu ―cérebro de leitor ruminante‖ e

põe, como pano de fundo de suas criações, o pensamento universal e milenarista, que o

escritor acaba por desconstruir através de um olhar irônico e, muitas vezes, satírico.

Deixemos, por enquanto, as considerações sobre a obra machadiana para tratarmos desse

assunto na parte final dessa pesquisa, intitulada ―Último‖, em que analisaremos a obra

machadiana como um todo, articulando prosa e poesia.

4.5- Entre o civil e o religioso: novas releituras proféticas

Seguindo a linha da tradição, localizamos um texto do século XIV que também cita

a sibila e trata do paganismo e do cristianismo, mas por um outro viés. Apesar de não ser

um livro do cânone, a novela de cavalaria Guerino, il Meschino, de Andrea da Barberino

(1371-1431), retoma a figura da Sibila num contexto bem singular.

O herói da novela parte em busca de respostas sobre os seus parentes. Passa por

diversas terras e tem contato com povos de outras religiões. Visitando a Índia, consulta as

árvores do Sol e da Lua, mas obtém, de cada uma, respostas distintas para a questão.

Confuso, resolve viajar em busca da Sibila que anunciou o nascimento do Salvador.

Chega à Calábria (curiosamente é a terra natal do Abade Joaquim de Flora), onde encontra

a sibila numa gruta, isolada da humanidade por castigo. Ela teria cometido a ousadia de

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acreditar que a Virgem da sua profecia era ela mesma. O engano se fundamenta na idéia de

que, assim como a Virgem teria concebido Cristo através de uma intervenção divina, a

sacerdotisa de Apolo, sendo virgem, estava apta a de ser possuída tanto pelo deus Apolo

quanto pelo Deus cristão.209

Contrariando as expectativas de Guerino, a Sibila da história, mais preocupada em

falar de questões pessoais, nada responde sobre a família do cavaleiro. Além disso, tenta

seduzir o herói, que, advertido de antemão por um eremita sobre os perigos dos seus

feitiços e protegido por uma relíquia cristã, percebe todo o ardil e não permite que a

sedução seja consumada. Saindo dali, faz a viagem de volta e, para evitar a excomunhão

por ter consultado a sibila e as árvores pagãs, pede perdão à Igreja pelos erros e recebe

como penitência uma peregrinação, como forma de se redimir diante de Deus .

O engano da sibila, apesar de explicável, resulta em grave ofensa ao cristianismo e,

por isso mesmo, foi um pretexto usado pela Igreja para bani-la do meio eclesiástico. Mas

como teriam surgido essas cogitações sobre a Sibila? Talvez a aproximação entre ela e

Maria tenha ocorrido dentro da própria liturgia da Igreja, já que com o crescimento do culto

à Virgem, neste mesmo período da novela de Barberino, passaram a surgir algumas

Cantigas de Santa Maria que seguiam o mesmo modelo do Canto de la Sibila, onde a

Virgem alertava sobre o Juízo Final. O papel antes atribuído à Sibila foi lentamente

substituído por essa outra figura feminina, mais intimamente ligada à imagem de Cristo e

que aparecia não mais sob o signo do terror, mas como mediadora, neste ―Dia da Ira‖, para

abrandar a cólera do Juiz.

Essa versão [do Canto de la Sibila] conta com um curioso precedente de

uma das Cantigas de Santa Maria de Alfonso, o Sábio, intitulada: ―De

como Santa Maria roga por nós a seu filho no dia do juízo‖,

contrafactum ao galego-português do Canto de la Sibila que serve de

remate à coleção de cem cantigas que constituem o corpus central do

Códice de Toledo. Esta versão consta de dezoito estrofes com refrão,

cuja música atende ao mesmo princípio do Judicii signum que a do

catálogo da catedral de Barcelona.210

209

CASTETS, Ferdinand. I dodici Canti. In: REVUE DES LANGUES ROMANES. Montpelier: Sociétè pour

l‘étude des langues romanes, 1970. 210

MUNTANÉ. Op. cit. p. 79. (Tradução do espanhol)

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Enquanto, no meio eclesiástico, as sibilas progressivamente passariam a ser

substituídas pela Virgem Maria, os pensadores do Renascimento, a partir do século XV,

seriam os principais responsáveis pela retomada da sibila num contexto estético e artístico.

Com a difusão do Renascimento pela Europa e, principalmente, com a colaboração dos

humanistas na revalorização de autores cristãos do final da Antiguidade, como Lactâncio e

Agostinho, há uma intensa atividade intelectual em andamento, que retoma muitas das

reflexões esboçadas, até então, acerca das sibilas e dos profetas.

Os humanistas, seguindo a tendência de reunir crenças pagãs e cristãs, encontram

nessa temática e nos autores da tarda Antiguidade o pretexto ideal para provar que os temas

clássicos casavam-se bem com a modernidade, e que tudo se complementava na história

humana. Com isso, trilharam um caminho inverso ao da Igreja: os preceitos que, no

passado, serviram ao propósito de converter as massas infiéis ao cristianismo, passaram a

justificar a retomada dos ideais clássicos e pagãos, já que, baseado nos autores do passado,

podia-se afirmar que havia uma estreita relação entre as tradições pagãs e o pensamento

cristão.

Todo espetáculo religioso, como todo espetáculo civil, tem a ver com a

capacidade de sugestão da imagem, um poder suscetível de manipulação.

A separação de esferas civil e religiosa só depende da necessidade de

mantê-las diferenciadas com algum objetivo, A Sibila caminhou

comumente na Idade Média, quando não ia sozinha, pelas mãos de outro

profeta, quase sempre Salomão (...), mas o pensamento recorrente sobre

o fim dos tempos fez com que, em algumas ocasiões, esse profeta fosse o

próprio Merlim. Uma vez unidos na profecia, e latentes as idéias

messiânicas sobre a reconquista de Jerusalém e a constituição de uma

monarquia universal por um rei hispânico, ia ser tão produtivo juntar e

tão normal confundir, como incômodo e inútil separar, na ficção, as

funções de Sibila e Merlim, ou de Sibila e Morgana.211

O pensamento científico da época, sobretudo, se interporia na transição das esferas

civil e religiosa, preferindo, antes, fazer o casamento da crença pagã com a cristã através da

tradução dos mais variados textos, incluindo as fórmulas místicas, desde Hermes até a

Bíblia, desde textos de doutores da Igreja até as profecias sibilinas. O instinto do homem da

211

BELTRAN, Rafael. ―Urganda, Morgana y Sibila: el espectáculo de la nave profética em la literatura de

caballerías‖. In: MACPHERSON, Jan. (edit). The medieval mind. Rochester: Tamesis, 1997. p. 41.

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263

Renascença é lançar-se em todas as direções, pois cada saber adquirido elevaria sua

consciência para Deus e para a Verdade.

Contendo o núcleo do pensamento renascentista, O Corpus hermeticum seria um

dos livros mais apreciados no período, já que tratava da sabedoria do universo ao alcance

da compreensão humana, partindo da concepção de que o homem deveria mergulhar no

mais profundo abismo e ascender às mais altas esferas para compreender sua existência.

Essa experiência de catábase (descida) e anábase (ascensão) remetia também ao ritual

órfico, referente ao mito de Orfeu e Eurídice, mas significava a busca pelo Amor

transcendental, como em Dante, Amor que simboliza a atração pelo Intelecto, e que conduz

ao Divino. Esses textos, tanto clássicos quanto científicos e místicos, seriam vertidos do

latim e do grego para as línguas modernas.

A intensa mistificação científica de autores como Marcílio Ficino, Giordano Bruno,

Pico Della Mirandola, Cornélio Agripa, Leão Hebreu e Giulio Camilo Delmínio,

especialmente inspirados na obra dantesca, vai povoar os tratados literários e científicos da

Renascença, muitas vezes adotando aquela posição do profeta-poeta ou do Sábio (ou o

mago) por excelência. Assim, os segredos do universo, a força do pensamento humano, os

saberes místicos, ou o segredo mais íntimo das relações entre o ser e o objeto de desejo,

passam a ser os temas de estudo desses homens dos séculos XV e XVI.

A principal intenção de tais pensadores era fazer uma leitura do universo a partir

das mais diversas fontes de conhecimento: teologia, filosofia, física, matemática, artes,

literatura, astronomia, além de buscar sabedorias alternativas como a Cabala judaica, a

alquimia, a astrologia e a profecia. Quando possível, procuravam extrair uma verdade da

confluência de todas essas ciências. O Sábio, portanto, estaria entre o visionário e o

vidente, entre o que crê na força da sabedoria humana para interpretar o universo e

transformá-lo num lugar melhor, e o que busca fórmulas secretas que possam viabilizar

essas experiências.

No mesmo período, há intensa mistificação na Igreja, que se intensificou na Contra-

Reforma. Para contrapor-se à racionalidade da doutrina luterana e ao materialismo dos

preceitos calvinistas, criou-se uma tendência de enfatizar o espiritual e o transcendental,

valorizando a experiência extática através das mais variadas formas de contato direto entre

Deus e os homens: visões celestiais, audição de vozes divinas, mensagens santas, sonhos

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reveladores, aparições de anjos, arrebatamentos e outras manifestações do gênero. Os

religiosos não mais se valiam dos textos proféticos de sibilas ou de figuras do Velho

Testamento, que lhes anunciam indiretamente os eventos do futuro, mas cada qual passa a

ter sua experiência particular com o sagrado.

Era preciso mostrar a relação direta que os beatos possuíam com a divindade, no

papel de mensageiros e de interventores vivos naquele espaço e naquele tempo, não numa

época longínqua de que só restavam relatos escritos. Seguindo esta tendência estão as obras

de autores como Ignácio de Loyola, Teresa de Ávila e Felipe Néri.

A ênfase na experiência, portanto, estava baseada nos símbolos visuais como forma

de induzir ao transe místico. Grandes obras de arte, de afrescos a imagens de devoção,

passaram a enfeitar as catedrais e igrejas, mostrando a experiência transcendente de cada

um desses homens e mulheres que receberam uma mensagem divina. Não apenas a

arquitetura ganha novas formas, como também a iconografia revela as imagens com intenso

realismo, enriquecendo-as de detalhes que vão torná-las perfeitas réplicas do corpo

humano.

Na arte, como no drama, os símbolos verbais são transformados em

realidades visuais que o espectador assume e integra nas suas vivências

mediante um processo psicológico com múltiplos níveis simbólicos. É

bem conhecido o papel que as imagens de devoção desempenharam

como indutoras das visões místicas tão abundantes nos séculos baixo-

medievais; no teatro desempenharam um papel similar. (...)

Paulino de Nola dizia, justificando os afrescos que decoravam a sua

igreja: Los hombres sencillos que no saben leer, acostumbrados, por otra

parte, a venerar a los ídolos se convierten más fácilmente al Cristo

hecho hombre cuando pueden contemplar los hechos de los santos.212

Há uma estreita relação entre elementos dramáticos e pictóricos, e tanto os temas

teatrais vão incidir nas pinturas e esculturas, quanto essas naquele. Além do que, como

pudemos observar, o teatro do período seguia o modelo dos Ordos, que procuraram

enriquecer as representações através dos diálogos, da música e da caracterização dos

personagens. O drama sacro vai buscar nas artes plásticas e na música o apoio necessário

para tornar a representação tão real quanto envolvente. O teatro assumiria, no meio

eclesiástico, função especificamente didática, de educação religiosa das massas.

212

MONTAÑÉS. Op. cit. p.13. (Tradução do galego)

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Por outro lado, a ênfase no recurso visual permitiria que as representações

passassem a ter, no processo de elaboração do cenário, a colaboração de pintores famosos

como Rafael, Donatello, Bramante e Da Vinci. Além disso, havia a contribuição de

maquinários e engenhocas que permitiam até mesmo alguns ―efeitos especiais‖ em cena.

Na Itália temos documentada a atividade de Masaccio e Donatello na

preparação da Saccra Rappresentazione da Ascensão de Cristo na igreja

de Santa Maria del Carmine, de Florença (1425). Da sua cenografia

encarregaram-se, mais tarde, Brunelleschi e Francesco d‘Angelo. O

mesmo Brunelleschi desenhou em 1430 a maquinaria que permitiria

descer o anjo, na representação da Anunciação que teve lugar em São

Felício, em Piazza, e no ano de 1439 a da igreja da Anunziata, ambas em

Florença. No século seguinte, os exemplos multiplicam-se: Bramante,

Leonardo, Rafael, Parmagianino, Palladio, Rosso, Buontalenti e Vasari

participaram na elaboração de representações teatrais, uma tradição que

se manteve no barroco com Bernini, della Bella, Servandoni e Tiépolo,

entre outros.213

Como já havíamos notado o influxo do teatro nas esculturas de Mestre Mateo, no

Pórtico da Glória, os Ordos e os Autos sacramentais vão partilhar os mesmos personagens

que os pintores do período renascentista evocavam em suas obras. Servindo de apelo aos

fiéis, as imagens apresentadas/representadas nos dramas ou nos Autos, esculpidas na pedra

ou pintadas nos afrescos, remetiam sempre para o derradeiro destino do homem, uma

chamada do pecador ao arrependimento e à devoção.

Através da influência teatral, a sibila permaneceria em cena, enriquecida

plasticamente pelas mãos de artistas, dentre os quais podemos citar: Giovanni Pisano, com

a escultura da Catedral de Siena; Perugino e sua Luneta com sibilas e profetas, no Palazzo

dei Priori; Rafael Sanzio, com seus afrescos das ―Sibilas‖, na igreja de Santa Maria Della

Pace; e Michelangelo, com as belas pinturas da Capela Sistina.

Michelangelo, em especial, merece nossa atenção por muitos motivos, não só por

realizar com maestria a união entre sibilas e profetas na iconografia sacra, mas por

representar, no universo pictórico, aquilo que o poeta-profeta realizaria com as palavras.

213

MONTAÑÉS. Op. cit. p. 20. (Tradução do galego).

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4.6- Ut pictura poesis: uma interpretação profética e poética da obra de

Michelangelo

Quem, confiante em sua própria habilidade,

Há de, com régua e risco,

Marcar a fronteira divisória entre

Humano e divino?214

(Longfellow – ―Hermes Trismegistus‖, 1882.)

O termo ut pictura poiesis (poesia é como pintura) foi usado pela primeira vez por

Horácio na sua obra intitulada Arte poética. Portanto, vêm de longa data os estudos que

comparam a poesia à pintura e que defendem a construção imagética como a essência da

poesia; afinal, a palavra poética tem o grande poder de criar imagens através de sua

figuração ou da fulguração de seus signos lingüísticos. Vejamos, por outro lado, como é

possível fazer o caminho inverso, revelando a poesia que emana de uma obra pictórica.

Podemos dizer que Michelangelo - como um grande leitor de Dante, Bocaccio e

Petrarca, assim como de outros grandes escritores -, serve-nos de perfeito exemplo para

revelar que a leitura figural, através dos seus diversos níveis de compreensão, também pode

se encaixar num outro contexto.

Tratemos primeiramente, então, dos afrescos na Capela Sistina, começando pela

parte superior. No centro do teto estão dispostas as principais cenas do Gênesis: a

separação da luz e das trevas, a criação do sol e da lua, a separação da terra e da água, a

criação de Adão, a criação de Eva, o pecado original, o sacrifício de Noé, o dilúvio

universal e a embriaguez de Noé.

Em volta desses quadros genesíacos, Michelangelo alterna as figuras de profetas e

sibilas, de maneira que, na disposição final dos afrescos do teto, estejam sempre frente a

214

LONGFELLOW, Henry W. The Complete Poetical Works. Boston: Houghton, Mifflin and Company,

1903. p. 357. (No original: ―Who, in his own skill confinding,/ Shall with rule and line/ Mark the border-land

divinding/ Human and divine?‖)

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frente e alternados nos flancos. Nas duas extremidades, situam-se Jonas e Zacarias; o

primeiro, representando o único profeta dos gentios de que fala o Antigo Testamento; o

outro, como último profeta dos judeus a anunciar a vinda de Cristo. Na lateral direita,

seguem-se (do altar para a entrada): Sibila Délfica, Profeta Isaías, Sibila Cuméia, Profeta

Daniel e Sibila Líbica. Na lateral esquerda, temos: Profeta Joel, Sibila Eritréia, Profeta

Ezequiel, Sibila Pérsica e Profeta Jeremias. Entremeados a eles, nos oito triângulos laterais,

estão representados os reis e líderes do povo de Israel. Para finalizar, os quatro triângulos

das arestas do teto apresentam alguns feitos memoráveis do Antigo Testamento.

A pintura michelangelesca não se trata apenas de uma realização ímpar no campo

das Artes Plásticas, e sim de uma obra completa. Michelangelo, através de imagens, nos

oferece uma grande poesia narrativa que conta a história da humanidade, explorando vários

campos do conhecimento e com interpretações que seguem por níveis diversos, do mais

superficial ao mais profundo. O artista vai articular os três eixos – passado, presente e

futuro - concretizando a leitura bíblica como prefiguração do Antigo para o Novo

Testamento, este último como ponto de partida para prever eventos futuros, tanto numa

configuração universal quanto num contexto particular.

A narrativa engloba primeiramente a ―Gênese‖ do homem, cercada de eventos de

nascimento, morte e ressurreição. Depois, surge a promessa de um Novo Advento com as

pinturas de profetas e sibilas, que anunciam o nascimento de Cristo aos reis da época em

que viveram; até chegar ao desfecho, com a imensa pintura do Juízo Final, na parede do

altar (completada em data posterior à do teto). Michelangelo ilustra desta forma o começo e

o fim da história do homem baseado nos eventos bíblicos, mas também influenciado pela

leitura de grandes poetas e, muito provavelmente, pelas representações teatrais e

iconográficas de artistas que o antecederam.

Em todas as imagens que figuram na Capela Sistina, é possível perceber que há

uma série de simbologias presentes e que cada uma se comunica de determinada forma

com a que está diante de si. Uma única representação pode apontar para inúmeras leituras

que dependem do grau de conhecimento de cada leitor. Assim, o pintor renascentista

estabelece com seu interlocutor um diálogo ora franco, ora dissimulado, entre brados e

sussurros, como os augúrios sibilinos.

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O sábio renascentista aguarda o olhar atento do exegeta, pois há sempre um véu

sobre a obra (como nas parábolas cristãs) que tanto vela quanto revela. O artista desvenda e

cria enigmas. Entre a sombra e a luz, costura sentidos, normalmente articulando diferentes

feixes de significados. Sua obra, como espetáculo visual, está aberta a todos os homens,

mas guarda a profundidade da reflexão apenas para os sábios, para aqueles que buscarem

esse sentido oculto e lutarem para desvendá-lo.

Como as prefigurações de Agostinho, de Flora e de Dante, também temos três

maneiras de compreender os sentidos investidos na obra de Michelangelo: duas

interpretações que seus apreciadores e críticos são unânimes em afirmar e uma terceira que

revela uma visão mais particular, levando em consideração o espírito renascentista que nela

percebemos.

A primeira leitura é de natureza denotativa, como apontamos inicialmente, com a

apresentação de quadros bíblicos do Antigo Testamento - do Gênesis aos profetas - e dos

quadros assimilados pela cultura medieval, como é o caso das sibilas. As pinturas têm

como objetivo primordial narrar esses eventos de forma eloqüente para revelar a fé dos

homens e mulheres da história judaico-cristã.

Por exemplo, nos quatro triângulos pendentes das arestas do teto, Michelangelo

evoca a punição dos fortes e o livramento do povo hebreu, pela súplica ou pela inteligência

de seus heróis. Neles Michelangelo representa não apenas os homens, mas também as

mulheres que tiveram um papel fundamental em situações decisivas a fim de fazer cessar

algum conflito ou evitar o massacre de seu povo. Temos Judite e Davi, que, mesmo tão

frágeis na aparência, usaram a fé no lugar da força e venceram generais poderosos como

Golias e Holofornes, inimigos do povo hebreu. No outro extremo, há outras duas

representações: a serpente de bronze, símbolo da libertação do povo pela súplica de

Moisés, e a punição de Hamã, que dá fim à conspiração que eliminaria todos os judeus do

reinado de Assuero: graças à petição de Ester, os planos são descobertos e o conspirador é

aniquilado.

Porém, estes mesmos quadros são prefigurações de histórias do Novo Testamento,

eventos que revelam profeticamente a era cristã. Dessa forma, olhando para o quadro de

Judite, acompanhada por sua ama, verifica-se que não é no cesto que ela carrega a cabeça

de Holofornes, mas numa bandeja, referindo-se à história de João Batista e Salomé, do

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Novo Testamento (Mateus 14). Judite passaria de heroína judia à vilã romana. De igual

modo, o Hamã de Michelangelo não está enforcado, mas crucificado como Cristo, e as duas

mulheres que o assistem, em vez de Ester e sua serva, passam a ser as duas Marias ao pé da

cruz. Davi golpeando Golias remete-nos também ao episódio de Pedro cortando a orelha do

soldado no Getsêmani, assim como a serpente de bronze pendente de uma cruz associa-se

com Cristo carregando as maldições da humanidade no madeiro.

Como essas, todas as outras figuras da Capela Sistina possuem uma leitura literal,

baseada nos eventos antigos, e outra figurativa, que mescla judaísmo e cristianismo. O

terceiro eixo, justamente, vai ser o mais implícito, pois revela a união desses dois outros

eixos com o paganismo. A leitura hermética, portanto, nos aponta um significado implícito

(hermetismo), mas também uma iniciação gnóstica seguindo as leituras de Hermes

Trismegistus e de outros textos místicos apreciados na Renascença.

Esse terceiro eixo, portanto, segue os princípios alquímicos e herméticos da

complementaridade dos contrários, ou seja, os opostos se associam, mas não se confundem.

Os princípios de Hermes afirmam que tudo tem seu oposto, toda natureza é dupla e que o

masculino e o feminino estão manifestos na gênese do Universo. O Todo se relaciona às

partes e as partes ao Todo, e o que está no plano superior corresponde ao inferior,

construindo pontes entre as antíteses que vão do absoluto ao particular, do visível ao

invisível.

O símbolo máximo das duas forças e do equilíbrio entre elas é o caduceu de

Hermes, onde duas serpentes estão entrelaçadas num bastão, simbolizando as duas pontas

opostas da vida: a que constrói e a que destrói, a corruptível e a incorruptível, mediadas

pelo bastão do equilíbrio. Também estão associadas aos dois gênios do homem: um bom e

o outro mau, um masculino e outro feminino.

A partir dessa leitura de Hermes, os humanistas passaram a usar como exemplo de

perfeição intelectual a figura do Andrógino, tal como revelada no Banquete de Platão, e

associam-no à sede pelo conhecimento, que, no caso, se manifesta pela intensa procura

pelo Amor, ou seja, pela cara-metade perdida. A dialética amorosa num plano espiritual,

amor platônico, corresponderia à relação do sábio com a sabedoria, como o próprio Dante

revelou ser Beatriz a ―Filosofia‖, ou seja, o Amor pelo saber.

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O arquétipo do andrógino serviu de referência, durante o século XVI,

para expressar uma imagem ideal do homem, reintegrado em sua plena

natureza. Ele tanto alimentou a inspiração lírica amorosa quanto os

projetos intelectuais de organização social. (...)

O sentido místico do andrógino se encontra na Cabala, em que há a

figura de Adam Kadmon, e no cristianismo, na figura do Cristo de dupla

natureza. O valor mítico deste mito se deve a três idéias simbólicas.

Primeiramente, a idéia de completude original, representada pela união

de contrários. (...) Em seguida, a idéia de uma ruptura, pelo qual as partes

do andrógino se encontram separadas. Esta idéia pode aplicar-se à fratura

social, a uma cisão política etc. Por fim, o nascimento de um desejo de

reintegração, em que cada parte antes amputada procura seu duplo, para

reconstituir sua unidade perdida.215

Adam Kadmon, da cabala hebraica, significa o ―Homem da Terra‖, ou ―Homem

Arquetípico‖, um protótipo humano que seria, na verdade, formado por um duplo – Adão e

Eva –, uma inteligência que, desmembrada, segundo os gnósticos, teria sobrevivido em

essência, fracionada em cada ser humano. Essa partícula teria formado o ―inconsciente

coletivo‖ de que nos fala Carl Jung.

Nos primeiros quadros genesíacos de Michelangelo há uma remissão ao mito do

Andrógino, presente em Platão, que revela a natureza dupla dessas criaturas, formadas por

dois sexos, possuidoras de extremo poder e sabedoria. Porém, ao desafiarem os deuses,

teriam sido separadas por Zeus, como forma de castigo. Assim vagavam em busca da

metade perdida. A busca por esse Amor não necessariamente abrangia a esfera do desejo,

mas a retomada da complementaridade perdida, forma de readquirir o poder existente no

equilíbrio entre os gêneros.

Basta um olhar mais atento para o teto da Capela para percebermos a releitura

hermética e cabalística das Sagradas Escrituras. Todos apontam para o duplo, para o

princípio do masculino e do feminino na criação divina: luz e sombras, terra e água, sol e

lua, homem e mulher, profetas e sibilas, heróis e heroínas.

Seguindo esta leitura, na ―Separação entre as sombras e a luz‖, a figura divina

pintada por Michelangelo se encontra entre as antíteses: a luz, à direita, e a sombra, à

esquerda. Quatro Ignudi (figuras de nus) cercam o quadro, mostrando o antes e o depois

dessa separação; antes, eram Andróginos – rosto de mulher e corpo masculino; depois

aparecem contorcidos. Percebe-se, de maneira muito sutil, a divisão de seus corpos em

215

RIBEIRO, Ana Cláudia Romano. A ilha dos hermafroditas. In: SÍNTESES: Revista dos cursos de Pós-

Graduação. Vol. 11. 2006. p.457.

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271

dois. Um deles revela um tórax bem alargado, com seio de um lado e peitoral masculino de

outro; já a imagem seguinte tem a cabeça levemente desviada do corpo, revelando nas

dobras do tecido uma silhueta feminina atrás do corpo masculino.

Também no quadro ―A criação do homem‖, Adão possui perfil andrógino, pois,

apesar de rosto e corpo masculinos, tem um inexpressivo órgão sexual que se biparte,

dando margem a uma dupla interpretação. Essa tese ganha força no quadro seguinte, bem

ao centro, ―A criação da mulher‖, onde Deus não retira uma costela de Adão para criar Eva,

mas retira a mulher inteira de sua lateral, como se estivesse extraindo do Andrógino uma de

suas personas.

O Profeta Jonas, por sua vez, em frente aos Ignudi descritos, também aparece

contorcido e, como em Adão, vê-se uma figura feminina saindo da lateral de seu corpo.

Todos são associados a Cristo gerando, de si, a Igreja, mas também, numa interpretação

gnóstica, simbolizam o Sábio buscando na Ciência a força geradora da obra de arte,

revelação divina do saber primordial existente no homem.

Outra sutileza de Michelangelo comparece no ―Pecado original‖. Adão e Eva são

representados, cada um, duas vezes. Como uma narração, vemos o antes e o depois da

queda, tendo a árvore do conhecimento do bem e do mal como eixo central da pintura.

Nela, a serpente com rosto feminino está enrolada. Do lado oposto à serpente aparece um

anjo, de feições masculinas, que pune os dois personagens e os expulsa do Paraíso. O corpo

do anjo está esfumaçado e escondido atrás da árvore. Se observamos com atenção os

contornos da serpente, notamos que existem, na verdade, duas voltas em torno do tronco e

duas pontas de cauda na base. A árvore, neste caso, passa a ter a mesma configuração do

caduceu de Hermes: bem e mal - como o fruto proibido -, masculino e feminino como

Adão e Eva. Tanto há a sedução do ―antes‖, na oferta de conhecimento, quanto punição e

exílio do ―depois‖, no desfecho da cena. O homem é seduzido pelo conhecimento e punido

pela intenção de querer igualar-se ao divino.

Na ―criação de Adão‖, Deus e homem aparecem no mesmo plano. Deus ocupa o

espaço celestial e Adão, no alto de um monte, ocupa o terreno. Adão estampa o apogeu de

sua juventude, enquanto Deus mostra-se idoso, como se estivesse amparado pelas criaturas

celestiais que o acompanham. Quase se tocam, mas há aquele pequeníssimo espaço que

separa seus dedos indicadores e mostra o limite entre ambos. O dedo de Adão aponta

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levemente para baixo, o de Deus, um pouco para cima, representação da equivalência entre

o inferior e o superior. Praticamente em todos os quadros, ocorre essa oposição

representada pela oposição de dedos, de mãos, de braços ou de pés, que ora apontam para

baixo, ora para cima, como uma alusão ao princípio hermético da correspondência.

Na representação de profetas e sibilas temos a mesma complementaridade de

gênero, só que, dessa vez, representada pelos gênios que acompanham cada um dos

adivinhos. Sempre em pares, muitas vezes de sexos opostos, esses seres dividem a cena

com as figuras centrais de cada nicho e sussurram revelações proféticas no ouvido de

alguns deles. Possuem muitas semelhanças com os djinis do povo árabe, que, se dominados

pelos homens, ofertavam-lhes o dom da profecia.

Alguns desses gênios imitam a mesma expressão da face de profetas, como os

gênios de Jeremias e Daniel, outros se ocultam na cena, talvez para apontar qual dos dois

exercia a predominância sobre aquele indivíduo. Eles quase sempre estão separados nos

nichos dos profetas, exceto em Zacarias e Isaías, mas encontram-se todos emparelhados ou

abraçados nos antros das sibilas.

Os djinis, segundo conta a lenda árabe, eram formados pelo ar e pelo fogo e, unidos

ao ―barro humano‖, formavam o equilíbrio dos três elementos primordiais: terra, fogo e ar.

Essa representação dos gênios bom e mau, homem e mulher, também está presente em

Shakespeare (Soneto CXLIV):

Dois amores – de paz e desespero –

Eu tenho que me inspiram noite e dia:

Meu anjo bom é um homem puro e vero;

o mau, uma mulher de tez sombria.

Para levar a tentação a cabo,

O feminino atrai meu anjo e vive

A querer transformá-lo num diabo,

Tentando-lhe a pureza com lascívia.

Se há de meu anjo corromper-se em demo

Suspeito apenas, sem dizer que seja;

Mas sendo ambos tão meus, e amigos, temo

Que o anjo no fogo já do outro esteja.

Nunca sabê-lo, embora desconfie,

Até que o mau meu anjo contagie.216

216

SHAKESPEARE, William. 30 sonetos. (Trad. Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p.107.

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Há uma cristianização dessas imagens, pois, no lugar de gênios, Shakespeare

escreve anjos, além de associar o mal ao demo e contrastar pureza e lascívia. O poeta

inglês já apontava para uma determinada fusão dos gênios, indicando, inversamente à

lenda, que o humano já passava a interferir na composição dos gênios, e, estando um e

outro já tão confundidos, era difícil discerni-los no interior do homem.

Assim como no poema de Shakespeare, as oposições e uniões entre gênios

prosseguem em todos os afrescos de Michelangelo, e, afora as representações de profetas e

sibilas, outros personagens também vão compor essa tríade, formada pela figura central

acompanhada de duas outras que a aconselham: uma mostrando sedução e a outra

oposição, como se o destino do homem dependesse do equilíbrio entre os dois conselhos e

a verdadeira sabedoria consistisse em manter o domínio dessa natureza dupla, a fim de

mediar as oposições. Pender para um dos lados é estar passível de punição: pelo bem, por

querer se igualar a Deus (arrogância); pelo mal, por renegar os princípios que fazem a sua

natureza superior a dos outros seres (pusilanimidade).

Os afrescos do Juízo Final, no altar, também revelam leituras de vários níveis e

cada apóstolo, além da leitura bíblica ou litúrgica, pode ser retomado numa configuração

mitológica. Um desses exemplos é a representação de São Bartolomeu segurando a própria

pele. A figura tanto pode ser vista como o do santo católico martirizado por sua fé, como o

do sátiro Mársias, que sofreu o mesmo castigo por querer desafiar Apolo num duelo

musical. Ao perder o desafio, foi amarrado num tronco pelo deus da música e esfolado

vivo.

Por outro lado, pode-se ainda extrair, como nas pinturas do teto, uma terceira leitura

do São Bartolomeu de Michelangelo, seguindo a interpretação figural de Agostinho e

Dante. A imagem seria um reflexo da situação do artista naquele momento, como um

incompreendido em seu tempo, tendo que seguir as duras exigências de Papas (como Julio

II, primeiramente, e Paulo III depois) para executar a pintura da Capela Sistina.

Alguns analistas da obra do florentino teriam percebido a grande diferença entre a

pele esfolada nas mãos de São Bartolomeu e o rosto íntegro. Por outro lado, perceberam a

semelhança do rosto deformado da pele com o semblante de Michelangelo, tornando-se

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274

uma espécie de auto-retrato do artista, mostrando seu desgaste físico para compor toda

aquela obra, do início ao fim.217

De que maneira essa leitura do São Bartolomeu de Michelangelo pode ser entendida

como um auto-retrato do artista e o que isso representaria na compreensão de sua obra?

Assim como Dante retoma o Adão bíblico como representação de si mesmo, exilado da

pátria, Michelangelo também poderia ter encontrado inspiração para sua pintura numa das

passagens da Commedia em que Dante faz referência ao desafio de Mársias a Apolo.

O episódio retrata, mais uma vez, um mortal desafiando um deus, atitude motivada

pela hybris do artista que o impele a ultrapassar os limites do humano e, assim, ficar sujeito

às punições da instância divina. Vale lembrar que ―A criação de Adão‖, um dos quadros de

Michelangelo, também se inclui nesse caso, partindo da mesma concepção dantesca, de

unir-se ao Criador e, por fim, querer igualar-se a Ele. Esse padrão é aplicável em todas as

leituras, seja ele Adão ou o Andrógino do mito platônico: em ambos existe a hamartia, a

ofensa a Deus ou a Zeus.

O episódio de Mársias é ilustrado no Canto I do ―Paraíso‖, onde Dante revela que,

até aquele momento, pôde elevar-se ao cume do Parnaso pelas Musas, mas que, daí em

diante, precisava elevar-se até outro monte, que tanto podia ser Cirra (um dos picos

dedicado a Apolo), quanto o cume do Paraíso. O Poeta necessita de inspiração e, para tal,

invoca Apolo para que penetre em seu coração e arranque do seu peito a obra, assim como

arrancou de Mársias a pele. O sacrifício do artista, portanto, é necessário para dar à luz a

grande obra de Arte, ainda que em detrimento da própria existência. Nesse aspecto, ele se

equipara ao Criador, que doa a sua vida para aperfeiçoar a obra.

Ó grande Apolo, pra labor vindouro,

de tua virtude faz de mim tal vaso

como exiges pra dar o amado louro.

Até aqui um só dos cumes do Parnaso

bastou, mas ora co‘os dois apogeus

devo na nova arena achar meu azo.

Entra em meu peito e exala os cantos teus,

tal como, quando vivo, recolheste

da bainha Mársias dos membros seus.

217

FALLETI, Franca & NELSON, Jonathan Katz. Venere e Amore. Firenze: Giunti, 2002. p.79.

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275

Tanto do teu poder deixa que eu empreste,

pra que uma sombra do teu reino beato,

marcado em minha mente eu manifeste;

e chegar possa ao lenho que te é grato

pra poder coroar-me de sua folha,

granjeada por teu canto e meu relato.

Tão raro, pois, advém que ela se colha

pra de César ou poeta alçar talento

- culpa e opróbrio de humana errônea escolha -,

que só alegrar deveria o opulento

délfico deus quem peça que lhe legue

penéias folhas de que está sedento.218

Literalmente, o poeta deseja ser possuído por esta inspiração. No entanto, as

―penéias folhas‖, os louros que coroam os vitoriosos e os grandes homens, são também o

objeto do desejo de Apolo, pois a ninfa de seu apreço, Dafne, antes quis ver-se

metamorfoseada na árvore do que tornar-se sua amante. Tanto o deus quanto o artista

padecem da mesma sede. Vale lembrar que Dafne também é o nome da Sibila Délfica, que

doa sua liberdade ao deus Apolo para ser uma profetisa. Ela recebe do deus as mensagens

ocultas a fim de transmiti-las aos homens comuns, mas seu corpo deve, para isso,

permanecer virgem. Assim como a Sibila é possuída por Apolo e, cheia do deus, revela

seus hexâmetros aos homens, o poeta deseja que, através de Apolo, possa também trazer

seus versos a público, como uma manifestação da centelha divina.

Apesar da inspiração apolínea, a obra do artista nunca é perfeita, torna-se apenas um

simulacro da verdade, tendo em vista que é executada por mãos humanas. Do mesmo

modo, a flauta divina de Atena só pôde dar a Mársias uma temporária impressão de

igualdade com o deus da música, não conseguiu livrá-lo do castigo. A consciência da

verdade fica manifesta a partir do momento em que o artista se vê apenas homem, inerte

diante do fluxo da vida enquanto lhe retiram a pele. Ironicamente, também Apolo não

alcança seu maior anseio, a ninfa que se transforma em árvore, e tudo o que pode ter dela é

apenas a sombra. A obra artística, de igual modo, será sempre, como afirma Dante: ―uma

sombra do teu [de Apolo] reino beato‖.

218

ALIGHIERI. D.C. Op. cit. p. 13-14.

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276

Mais adiante neste mesmo Canto, o poeta concluirá: Vero è che come forma non

s’accorda/ molte fïate a l’intenzion de l’arte,/ perch’a risponder la matera è sorda”. Sem

dúvida, essa impressão dantesca marca a obra de Michelangelo, que sempre busca a

perfeição no trabalho artístico, tendo consciência de suas limitações, mas tentando

ultrapassá-las obstinadamente. Essa luta do artista pela inspiração e a insatisfação com seus

próprios limites nos são revelados não apenas na obra plástica do florentino ou na relação

dele com a vida, no seu tempo, mas também em sua obra poética,

Podemos ver em seus versos [Michelangelo] a herança medieval

reelaborada na obra de Dante e a partir da qual se estende sobre a

literatura italiana do Renascimento uma visão de mundo essencialmente

marcada pela escolástica. Em grande parte, ora mais, ora menos, este

conflito, ou equiparável, acha-se presente em todo o estupendo

desenvolvimento das artes no período, em que a redescoberta do próprio

homem como corpo e vida material tende a realizar-se, quase sempre,

sobre um fundo de cena religioso. Michelangelo é o maior dos mestres

dessa fecunda ambivalência. (...) Na verdade, sua introspecção, sua

consciência de si mesmo e da sociedade dos homens, sua angústia entre

as promessas do cristianismo e a miséria da nossa condição são de tal

ordem, e tão agudas para o seu tempo, que ele, aparentemente desde

cedo, encontra um pensamento mediador, com que concilia seus

contrastes: é o que verificamos no neoplatonismo de tantas das suas

sínteses artísticas e poéticas.219

Ainda que pouco conhecido como poeta, Michelangelo possui uma considerável

coleção de poemas, que, em grande parte, refletem sobre a condição do artista como

intérprete do universo. Seja ele um escultor, um escritor, um cientista, enfim, um sábio que

perscruta os sentidos captados pela sensibilidade, existe sempre um limite diante de si, e

conhecer a total capacidade do seu intelecto é a intenção última de sua existência, nem que

para isso o corpo sofra as flagelações advindas dos excessos. É importante destacar que,

diante dos extremos, o artista opta por um termo mediador: Dante, através da utopia

joaquimita, Michelangelo através do neoplatonismo ou do hermetismo, mas ambos pela

crença na obra de arte como síntese ou convergência de todas as contradições.

Si come per levar, Donna, si pone

In pietra alpestra e dura

219

GAMA, Mauro. ―Conflito e inovação no texto de Michelangelo‖. In: ___. Michelangelo: 50 poemas.

(Trad. Mauro Gama). Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. p. 15-16

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277

Una viva figura,

Che là più cresce, u’più la pietra scema:

Tal alcun’opre buone,

Per l’alma, che pur trema,

Cela il soverchio della propia carne

Com l’inculta sua cruda e dura scorza.

Tu pur dalle mie streme

Parti puo’sol levarne,

Ch’in me non è di me voler nè forza.

Assim como ao retirar, Senhora, surge

De uma pedra alpestre e dura

Uma viva figura,

Que cresce mais lá onde a pedra diminui:

Assim certas boas obras,

Para a alma que estremece,

Ocultam a massa da própria carne

Com sua casca inculta e bruta.

Mas apenas tu de minhas partes

Extremas podes me livrar,

Pois em mim não há força nem vontade.220

Essa Donna, sublime como uma Beatriz ou uma Laura, muitas vezes é a imagem da

própria Inteligência, a Sabedoria divina que instrui a obra do artista, aquela outra parte que

dele foi retirada, como no Andrógino, e retorna a ele em forma de Musa, de inspiração. O

seu esculpir, por sua vez, não é um talhar na pedra, mas a revelação daquilo que a pedra

esconde no interior, suprimindo a casca que a recobre/esconde. A obra de arte é, portanto,

revelação divina que precisa eclodir através das mãos do artista. De forma semelhante, se

faz mister retirar a dura casca que encobre as verdades da alma a fim de que o que está

dentro seja amplamente manifesto.

Como Bartolomeu e Mársias, o poeta-profeta cede a própria pele em favor de uma

causa mais nobre. O que dele é retirado, ainda que de maneira dolorosa, é apenas a casca

rude e dura de seu exterior. O corpo/casca, seja da vida ou da obra, limita essa grande

liberdade do espírito, possível apenas na concretização da obra-prima ou na morte terrena.

Assim, livres da carne que o recobrem, podem aparecer para Deus como ―vivas figuras‖,

relembrando o penúltimo verso de Dante, antes de subir ao Paraíso: ―come piante novelle/

220

MICHELANGELO. In: PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de Belo. São Paulo: Martins

Fontes, 1994. p.113.

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278

rinovellate de novella fronda‖. (Como de folhas novas, de sua ramagem, se renova a

planta).221

Cercado de simbologias, os afrescos de Michelangelo constituem uma verdadeira

fusão de temas pagãos e cristãos. A arte de Michelangelo consegue abarcar, num mesmo

amplexo, deuses, heróis, patriarcas bíblicos, enfim, figuras diversas. Se por um lado havia a

evocação do clássico, como ponto de partida de suas criações, por outro há a denúncia de

um universo em constante conflito entre a força e a inteligência, entre o autoritarismo e a

liberdade criativa, entre a fragilidade do homem e a voracidade da Natureza.

Esse grande quadro, transposto da parede para a tela do mundo, revela o artista em

contínua luta para desenvolver sua arte, para trazer ao homem um pouco do saber ou da

música destinados apenas aos deuses. Adão ou Andrógino, Bartolomeu ou Mársias, o

artista desafia os limites, beirando o céu e o abismo. Transcende os significados aparentes

sob o manto da religiosidade, e, muitas vezes ignorando as limitações físicas, procura trazer

alguma revelação aos homens.

Os poetas-profetas resistem ao conhecimento superficial do mundo. Rompendo com

os padrões de sua própria época, antevêem questões que se propagarão no futuro. Esta

antevisão de futuro, no entanto, provém de uma acurada análise do passado, a partir da

leitura dos clássicos, de obras que atravessaram os tempos e permaneceram na posteridade.

Apesar desse mergulho no passado, o presente continua sendo o eixo essencial de suas

obras, o espaço e o tempo onde observam in loco as interferências do homem no seu tempo

e espaço e analisam criticamente esse ―estar no mundo‖. Assim, só é possível penetrar no

sentido mais íntimo da obra desses grandes homens do Renascimento se penetrarmos o

espírito, o que há de mais substancial sotto il velame delli versi, ou sob a dura scorza.

4.7- Sibilas e profetas nos Autos sacramentais da Península Ibérica:

221

ALIGHIERI. D.C. Canto XXXIII. v. 143-144. p. 220

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279

O Canto de la sibila, assim como as representações dos Ordos, se prolongaram até

o século XVI, quando foram retiradas das liturgias pelo Concílio de Trento, em 1563.

Ainda assim, por estarem tão arraigadas no imaginário popular, muitas igrejas

desconsideraram a proibição e continuaram a incluí-las nas liturgias natalinas e,

incrivelmente, algumas levaram-nas adiante até meados do século XVIII.

Porém, os Autos Sacramentais de autores Ibéricos mostraram certas modificações

nas sibilas e nos profetas, até porque havia um pensamento de intolerância religiosa que

elegia como principal alvo os judeus e alguns humanistas que, segundo a Igreja, eram os

principais divulgadores de heresias, através de práticas condenáveis, desviando a fé cristã

do verdadeiro caminho.

O poder de convencimento da arte e, principalmente, da imagem e dos símbolos

também foi amplamente utilizado pela Igreja, principalmente no interior das catedrais e nas

representações dramáticas. Na Contra-Reforma seria um dos recursos mais bem

empregados nas escolas jesuíticas, para fortalecer a crença católica e para inspirar os fiéis a

seguirem os mandamentos divinos. Assim, o teatro se tornaria um dos principais veículos

dos jesuítas para a catequese dos povos, tanto da Europa quanto de outros continentes,

principalmente na América, para a conversão dos indígenas.

Gradativamente, as novas leituras da Sibila vão desvinculá-la do contexto cristão, e

o principal motivo desse litígio seria pela ousadia de ter-se comparado à mãe do Salvador,

como já vimos. Deste modo, sibilas e profetas seriam representados no século XVI e XVII,

no teatro de Gil Vicente e de Calderón de la Barca, de uma outra maneira, uma vez que o

judaísmo e o paganismo, pelos motivos expostos, não eram mais bem-vindos no seio

católico, principalmente na Península Ibérica.

Outro aspecto interessante em relação à figura de Salomão e da Sibila é que ambos

passam a simbolizar a excelência da sabedoria, tanto científica quanto espiritual. O rei

sábio do Antigo Testamento, por outro lado, também representava a união da fé judaica à

sabedoria divina e ao misticismo, já que Salomão abandonou o monoteísmo, no final da

vida, para seguir as crenças pagãs de suas mulheres estrangeiras (1 Reis 11:1-8).

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280

Há ainda a constante relação de Salomão com os cavaleiros da ―Ordem do Templo‖,

ou ―Templários‖, que tinham o rei judeu como um símbolo a ser seguido. Tanto que os

cavaleiros da Ordem tornaram-se um terceiro poder naquele tempo, acumulando

conhecimentos científicos e riquezas incalculáveis como o rei bíblico, sendo, por isso

mesmo excomungados pela Igreja.

Em Tomar, num dos castelos da Ordem em Portugal, para onde muitos cavaleiros

foram depois de excomungados pela Igreja em 1307, há esculturas no portal que se

identificam com os personagens do Ordo. Particularmente destacam-se, uma próxima da

outra, as imagens da Sibila e do rei Salomão. Essa proximidade entre as duas figuras foi

alvo de uma nova leitura, que afirmava ser a Sibila uma das esposas do rei hebreu.

Sendo o rei bíblico descendente direto de Davi, a especulação da Sibila, na obra de

Barberino, ser mãe do Messias constitui-se numa probabilidade, no sentido de ambos

quererem formar um descendente híbrido, judaico-pagão, que seria um falso Cristo. Na

mesma medida que as duas figuras serviam de referência e exemplo para os sábios,

passaram a ser encaradas pela Igreja como personagens reprováveis e que precisariam

render-se à verdadeira fé.

Mesmo sob nova configuração, os Autos sacramentais de Gil Vicente e de Calderón

de la Barca receberam uma grande influência dos dramas litúrgicos medievais e do Ordos.

Os personagens de um e de outro retomaram essas antigas concepções como base de

criação dos novos textos. O ar amedrontador de um Judicii Signum, por sua vez, será

atenuado pelos recursos cômicos ou diluídos em temas religiosos de maior importância

como a ―Paixão‖ e a ―Adoração do menino‖ (Culto à Natividade), que produziam uma

comoção muito maior nos fiéis do que o Juízo Final.

Também os recursos mais utilizados seriam a comoção e o êxtase espiritual, a partir

do encanto e do enlevo da imagem e da música, abandonando-se o amedrontamento e a

punição como estratégias de convencimento. No lugar de profecias sobre tempos de ira,

teremos personagens como ―Júbilo‖, ―Regozijo‖, ―Fé‖, que personificam sentimentos a

serem buscados pelos cristãos em sua vida pessoal.

Até mesmo o Inferno exigiria uma releitura no final do século XV e início do XVI.

Em Gil Vicente, por exemplo, no Auto da barca do Inferno, observamos a existência da

antiga concepção medieval, mas sob um novo olhar: no lugar de papas simoníacos ou de

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281

políticos corruptos, como em Dante, temos judeus rejeitados pelo próprio diabo, e, em vez

do terror das imagens do ―Inferno‖ dantesco, o humor do ―Louco‖, único personagem

vicentino a alcançar o Céu, com um estoque de hilariantes loucuras e injúrias.

Gil Vicente também possui um Auto menos conhecido, em castelhano, que aborda o

tema das sibilas e dos profetas. Trata-se do Auto da Sibila Cassandra, de 1513. De início,

antes de analisarmos a peça vicentina, já é digna de nota a escolha da personagem, pelo

fato de Cassandra ser uma sibila de pouca credibilidade, pois, amaldiçoada por Apolo, não

conseguia ser ouvida nem mesmo pelo seu povo.

É memorável a cena da Ilíada em que a profetisa alerta os seus compatriotas sobre

os perigos do Cavalo de Tróia, sem conseguir convencê-los. Aliás, Tróia parece ser a

cidade que não crê nas profecias nem nos profetas, pois, além de abrigar Páris,

considerado um ―archote‖ que destruiria a cidade, não dá atenção aos conselhos sábios e

aos augúrios nem de Laocoonte, nem de Cassandra, que inutilmente discorreram sobre os

perigos do ―presente‖ grego. Há, portanto uma maldição a encobri-los, são profetas

desfavorecidos pelos deuses e tornam-se objetos de escárnio e descrença.

De igual modo, na peça de Gil Vicente, Cassandra não consegue ganhar

credibilidade, pois acredita que a profecia da Virgem há de se concretizar através dela

mesma. A Sibila não logra entender as próprias profecias e se confunde. Para

complementar a nova concepção religiosa dos Autos, surge Salomão querendo seduzi-la e

tentando convencê-la a casar-se com ele.

A recusa de Cassandra ao casamento se consolida em cada diálogo, pois crê que a

virgindade é a condição necessária para que o oráculo se cumpra através dela. O rei, apesar

de sábio bíblico, surge na peça com um discurso pouco convincente e uma fala bem

popular e cômica. Quem se sobressai na argumentação é, sem dúvida, Cassandra.

CASSANDRA: Qual é a dama polida

que sua vida

joga, pois perde casando,

sua liberdade encerrando,

outorgando

que seja sempre vencida,

desterrada em mãos alheias,

sempre em peias,

abatida subjugada?

E pensam que ser casada

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282

é algua boa estrela!

(...)

SALOMÃO: Anda, vem,

que por teu bem

mandam-te chamar tuas tias,

e logo, daqui a três dias,

alegrias

terás tu, e eu também.

CASSANDRA: O que querem?

SALOMÃO: Que me vejas

e me creias

para tratos de casar.

CASSANDRA: Isso me leva a pensar

que ela ou tu devaneias.

SALOMÃO: Somos acaso parentes?

Bem se vê

que sou eu de tal valor

que juro, por meu poder,

que, se não for,

vai ser ―dá cá aquela palha‖.

Eu sou bem aparentado

e abastado

valente zagal polido,

e estou meio envergonhado

de haver aqui chegado...

andas se tu queres vir.

CASSANDRA: Sem mentir,

tu estás fora de si...222

Como se pode notar, Cassandra afirma que Salomão perdeu o senso, ou seja,

deixou de ser sábio para tornar-se um tolo. O personagem demonstra-se envergonhado,

afinal não apresenta argumentos sólidos, como seria esperado, para convencer a Sibila,

valendo-se unicamente da aparência exterior e dos próprios bens materiais para validar seu

discurso. Cassandra, por sua vez, denuncia todas as práticas injustas do casamento e

assinala como as mulheres tornavam-se escravas de seus esposos (que significa algemas,

em latim). Salomão oferece-lhe flores, ao que ela refuta com um discurso bem convincente:

222

VICENTE, Gil. Auto da Sibila Cassandra. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 66-69.

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283

CASSANDRA: E com florinhas

pensas que me iludirei?

Não quero ver-me perdida,

entristecida

por ciúmes ter ou causar.

Deixa disso! Põe-te a andar!

Antes não fosse nascida!

Ter ciúmes é o pior,

que é uma dor

que não se pode evitar.

Transforma os ventos em mar;

faz afirmar

que o branco é de outra cor;

das boas damas faz más,

com suas falas,

e dos santos faz ladrões.

O Auto vicentino, portanto, além de questões religiosas, traz algumas reflexões

sobre a vida social e do cotidiano na Corte. A peça, na verdade, se divide em duas partes, a

primeira como uma comédia de costumes, que se prolonga com a chegada das três sibilas

(as tias de Cassandra), enquanto a protagonista discursa fervorosamente contra o

casamento. A segunda parte funciona como um ―Auto sacramental‖ propriamente dito, a

partir da entrada dos três tios de Salomão, os profetas, que evocam a importância do

matrimônio como um dos sacramentos e, por outro lado, retomam as concepções proféticas

acerca da vinda do Messias. Ao lado das sibilas, anunciam o nascimento do Salvador, que

de fato ocorre no final da peça. A adoração à Sagrada Família transforma o último ato em

―Auto de Natal‖, destacando-se a importância de Maria como símbolo da castidade

feminina, exemplo de mulher virtuosa e mediadora dos pecadores.

As três tias da Sibila Cassandra, de que fala o texto, são três sibilas: Ciméria (ou

Cuméia), Peresica (ou Pérsica) e Erutéia (ou Eritréia), que tentam convencê-la do bom

casamento que faria com Salomão. O rei, por sua vez, continua a falar como um bufo,

interrompendo a fala das sibilas com um discurso cômico e de pouca profundidade.

ERUTÉIA: Escuta sobrinha minha,

ainda:

não podes senão casar

e este deve tomar

sem porfiar,

que é bom em demasia.

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284

CASSANDRA: Como assim?

ERUTÉIA: É generoso

e virtuoso,

sensato e afortunado;

tem terras e muito gado

e é louvado

músico mui gracioso.

SALOMÃO: Tenho pomares e vinhas,

e pilhas

de rosas, para folgares;

tenho vilas e lugares,

mais trinta e duas galinhas.

Percebemos como o autor procura afirmar a comicidade de Salomão, despido das

vestes da sabedoria, ao usar o argumento irrisório das ―trinta e duas galinhas‖ diante de

tamanha riqueza do rei. Para compensar o frágil discurso do personagem, apela-se aos três

―tios‖ de Salomão, na verdade profetas do Velho Testamento: Isaías, Moisés e Abraão.

Como se fossem os três reis magos, cada um traz um presente para Cassandra e,

novamente, Salomão interrompe o discurso da seriedade com sua fala cômica:

ABRAÃO: Digo que estejais em boa hora.

Como presente,

toma estas presilhas [pulseiras].

MOISÉS: E eu te dou estes anéis

de minhas filhas.

ISAÍAS: Eu te dou este colar.

SALOMÃO: Dar-te-ia bem sei o que,

mas não sei

quanto pode aproveitar.

ERUTRÉIA: Muitas coisas faz o dar,

como todo dia se vê.

A mescla entre o sagrado e o profano também se faz sentir no discurso vicentino,

com a intenção de enfatizar o cômico-profano para conquistar a platéia. A identificação

com o conteúdo representado prepara o espectador para a verdade sagrada a ser revelada ao

final da peça.

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285

A sibila era uma figura muito popular e admirada como exemplo de sabedoria de

elucidação e, obliquamente, de fé. Talvez por isso, primeiramente, busca-se uma

identificação do público para com a figura da sibila Cassandra, como uma voz sincera que

fala as verdades que os outros personagens parecem não reconhecer. Essas verdades

deviam identificar-se plenamente com as situações vividas na sociedade da época. A

aproximação, por sua vez, prepara o espectador para o choque da descoberta, quando

Cassandra passa de sábia a louca e evidencia seus enganos, constituindo-se, dessa forma,

numa chamada à conversão.

Moisés contesta o discurso de Cassandra acerca do casamento, mostrando a lei e

expondo a gênese dos princípios matrimoniais. A partir desse ponto, a dramatização ganha

outro viés e os discursos dos sábios profetas e das sibilas passam a revelar algumas

observâncias quanto ao casamento, narrando, por sua vez, o nascimento do Messias. Então,

Cassandra opõe a perfeição de Deus à imperfeição humana, revelando que deseja manter-se

virgem porque quer ser a mãe do Salvador.

CASSANDRA: Pois só Deus é perfeição

sem razão,

se quereis ouvir verdade:

que o homem todo é mutável

e variável

por humana compleição.

Porém eu quero dizer

e descobrir

por que virgem quero estar:

sei que Deus há de encarnar,

sem duvidar,

e a virgem há de parir.

(...)

e juraria

que de mim há de nascer,

que outra do meu merecer

não pode haver

em bondade e fidalguia.223

Diante de tal pensamento, todos contestam a conclusão de Cassandra e ela, que

sustentava um discurso sábio e com argumentos convincentes, começa a ocupar a margem

da cena. Sua declaração enfatiza não apenas o engano, mas também a soberba de se

223

VICENTE. Op. cit. p. 103

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286

considerar mais fidalga e bondosa do que qualquer outra mulher. O próprio Salomão parece

recuperar a consciência diante de tal blasfêmia e retorna à razão: ―Tu, louca, e eu,

Salomão‖, declinando do desejo de desposá-la.

O centro da cena passa a ser a exaltação de Maria através dos discursos dos

profetas. De igual modo, através da prefiguração, o Cânticos dos cânticos torna-se um livro

profético que narra o casamento entre o rei – Deus, e a Virgem – Maria. Nota-se que a

interpretação anterior dos Cânticos de Salomão, anunciando o amor de Cristo pela Igreja,

vai ser substituída por essa nova visão do livro. Salomão, por sua vez, deixa as bufonerias

de lado e consolida um perfil de profeta e de sábio.

MOISÉS: E tu também, Salomão

bom rapaz,

os cantares que fazias,

todos eram profecias

que dizias

dela [Maria] e de sua perfeição:

―fermosa mea, columba mea,

quem te veja

de vista ou em sentido

goze-se por ser nascido,

por forte zagal que seja.‖ 224

Na parte final do Auto surge a Virgem com o menino. Todos os personagens se

rendem àquela visão, mas há uma curiosa maneira de Gil Vicente organizar o ato de

adoração. Os profetas do povo judeu louvam o menino e ajoelham-se diante Dele, enquanto

as sibilas adoram Maria e declaram-na a única virgem digna de gerar o Salvador e de rogar

e interceder pelos pecadores. Até Cassandra se rende a ela e reconhece-lhe a superioridade.

Só que, achando-se indigna por tamanho pecado cometido, não tem coragem de

pedir perdão ao Senhor, e rende-se à Mãe para que rogue ao Filho: ―Senhor: eu de já

perdida/ nesta vida,/ não ouso pedir-te nada,/ porque nunca dei um passo acertado/ nem

devia ter nascido/ É à Virgem mãe de Deus/ a Vós, a Vós/ a coroa das mulheres,/ por

vossos sete prazeres, eu peço rogar por nós.‖

A mensagem final do Auto de Gil Vicente parece ser a da conversão dos gentios,

representados pelas figuras das sibilas; e a dos judeus, na figura dos profetas. O dom da

224

Idem. p. 109.

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287

profecia não podia mais garantir a interpretação adequada do cumprimento da promessa,

advindo daí a leitura equivocada de Cassandra. Era preciso vê-la render-se à verdade

encarnada: o culto da Natividade.

As sibilas e os profetas, que estiveram tão arraigados no pensamento cristão

medieval, precisavam ceder espaço para uma representação que não fosse fruto da leitura

de textos pagãos ou judaicos, mas que contextualizasse uma nova era cristã e, diante das

outras igrejas que se formavam após a Reforma, definisse um perfil exclusivamente

católico. Maria, seria, portanto, a intercessora no dia do Juízo, para abrandar a cólera divina

que tanto amedrontara os homens nos séculos anteriores.

Leo Spitzer faz uma consideração sobre o papel de Cassandra na peça de Gil

Vicente, destacando seu perfil trágico e mostrando a reconstrução dessa personagem num

contexto cristão:

A ―não-sibilina‖ sibila Cassandra, uma espécie de anti-Maria ou contra-

Maria, tinha presciência sem caridade, era irremidiavelmente pagã em

seu desejo de elevar-se acima da humanidade comum até o nível dos

imortais, ocupando o seu lugar entre outras figuras lendárias da

Antiguidade e rivalizando com os deuses; no entanto, a única voz

discordante no concerto das profecias cristãs devia sintonizar-se com a

harmonia que surgia no mundo glorioso da Natividade.225

A peça de Gil Vicente, numa leitura superficial, mostra-se um ―drama

incongruente‖, como a definiu Thomas Hart, leitura a que Leo Spitzer se opõe com muita

propriedade. Afinal, como justificar, sem uma análise do espírito da época, um drama que

mistura princípios cristãos e pagãos e personagens dos mais variados dentro de uma

temática de conversão que não faz o menor sentido em nosso tempo? Como compreender

que uma sibila, retirada de uma epopéia grega, passe a se considerar a Virgem Maria? O

devido esclarecimento só é possível a partir de uma releitura histórica da época. Avaliando

esse contexto, vemos que a partir do século XIV as sibilas começam a mudar seu papel de

evangelização dos povos, até porque já revelavam um caráter ambíguo que servia aos mais

diversos discursos, incluindo os oráculos de natureza política e outros científicos, místicos

ou anti-eclesiásticos.

225

SPITZER, Leo. ―A unidade artística do Auto da Sibila Cassandra‖. In: VICENTE, Gil. Auto da Sibila

Cassandra. Op. cit. p.31.

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288

Outro ponto que convém destacar é que o Auto vicentino foi representado para a

rainha Dona Leonor de Portugal. A peça, neste caso, assumia um contexto encomiástico, na

medida em que o ―Auto de Natal‖ passava também a exaltar o nascimento do futuro

Monarca, D. Manuel I. Assim, a ―Sagrada Família‖ servia como uma outra forma de

exaltar a ―Família Real‖. O político e o religioso, portanto, andavam de mãos dadas como

Salomão e a Sibila.

(...) pastores homenageiam uma criança em cujo advento são depositadas

esperanças coletivas de natureza moral. A transposição de um plano a

outro – do político ao litúrgico e vice-versa – era perfeitamente

adequada, e toda a discussão sobre a figura do monarca aponta então

para seu caráter religioso, seu papel de vicarius Dei na Terra, com a

conseqüente sacralização do espaço da corte. Estamos no centro da

convergência de expectativas políticas, dinásticas e religiosas.226

Partindo dessa concepção, o Teste David cum Sibylla ganha novas conotações,

principalmente porque passa a corroborar a aliança entre o Estado e a Igreja, o laico e o

confessional, o político e o religioso. A ambigüidade sibilina valia mais ao discurso da

época do que a sua própria imagem. Aproveitavam-se portanto as profecias das sibilas e

profetas, mas apontava-se para a necessidade de render louvores e culto ao alvo desses

oráculos: o Rei (Cristo/ Monarca) e a Rainha (Virgem/Igreja).

Tratando-se ainda da representação da Sibila aliada a Salomão, há um curioso

acréscimo no panteão sibilino a que, até aqui, não tínhamos dado o devido destaque. Trata-

se da Rainha de Sabá, famosa governante do Sul, que veio de longe para conhecer a

sabedoria e ver as riquezas do rei Salomão e, muito impressionada, teria admitido, por tudo

que viu e ouviu, a grandeza do Deus de Israel. Sua presença dentre as esculturas do

―Pórtico da Glória‖, da Catedral de Compostela, mostra que essa associação é de data bem

remota (séc. XII), prova cabal de seu papel no âmbito das representações do Ordo

Prophetarum, fortalecendo o coro das sibilas e tornando-se a única representante do Antigo

Testamento a se equiparar às antigas profetisas gregas.

O papel da Rainha de Sabá no Ordo se justifica também na medida em que foi

através do próprio testemunho de Jesus, no Novo Testamento, que ela passou a servir como

226

CARNEIRO, Alexandre Soares. ―Poesia e doutrina em Gil Vicente‖. In: VICENTE, Gil. Auto da Sibila

Cassandra. Op. cit. p.15.

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289

parâmetro de credulidade para julgar a descrença dos judeus no dia do Juízo Final, já que

muitos, mesmo vendo Jesus face a face, não creram em sua pregação.

O trecho a que nos referimos, do Evangelho de Mateus, serve também para revelar a

fonte de que se serviram os doutos cristãos do passado para tomar o testemunho de

determinadas figuras pagãs como exemplos de fé, ainda que, segundo eles, não tivessem o

conhecimento da verdade da Salvação. Interrogado por fariseus e saduceus, que pediam um

sinal dos céus, Jesus fez a seguinte afirmação: ―uma geração má e adúltera pede um sinal;

mas nenhum sinal lhe será dado (...). A rainha do Sul se levantará no juízo com esta

geração, e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a Sabedoria de

Salomão. E eis aqui quem é maior do que Salomão.‖ (Mat. 12: 39 e 42).

A definitiva prova da equiparação entre a Rainha de Sabá e as sibilas é uma

comédia de Calderón de la Barca intitulada: ―La Sibila del Oriente y grand Reina de Sabá‖.

Tanto o título quanto o conteúdo revelam a fusão das figuras. Na peça, num primeiro

momento, a rainha e Salomão encenam uma admiração mútua que se transforma em

atração amorosa, como já havia proposto Gil Vicente ao fazer o rei cortejar Cassandra.

Calderón insinua que Salomão teria criado os versos do livro de Cântico dos

cânticos para a Rainha de Sabá. Já observamos que, numa leitura anterior, esses Cânticos

prefiguravam o relacionamento de Jesus e de sua Igreja e que esta, por sua vez, na época do

dramaturgo, passaria a representar a figura da Virgem, Esposa de Deus, que concebe o

Salvador do mundo. Então, Salomão passa a se comparar a Deus, e a sibila acaba

identificando-se com a Virgem Maria: aquela que, através da descendência de Davi, geraria

Cristo. O diálogo entre os dois personagens revela a adoração entre ambos e a música do

coro é uma paráfrase de um trecho dos Cântico dos cânticos:

MÚSICA: Morena soy, pero hermosa;

hijas de Jerusalém,

bien podeis venirme a ver.

SABÁ: Príncipe soberano

del gran povo escogido

de Dios, que em ti ha excedido

las obras de su mano,

pues eres peregrino,

un casi humano Dios, hombre divino.

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290

SALOMÓN:

Deidad alta y suprema,

de la zona abrasada,

donde a luz bañada

el sol las alas quema

y los rayos envia,

hermosa noche, emperatriz del día.227

No ato final da peça, Salomão adormece e tem uma visão que o adverte duramente

acerca de seu desvio da verdade e da sabedoria divina, ao se exaltar como Deus e dar

ouvidos a uma mulher estrangeira que de modo algum poderia ser a mãe do Salvador. O

episódio remete à história bíblica, ao mostrar a idolatria de Salomão nos últimos dias de

vida, graças à influência das suas esposas:

VISIÓN: Quién tan sabio, se ve tan ignorante?

Porque el mayor agravio

de la ciencia es errar el hombre sabio

Teme, teme el castigo

si extranjeras mujeres

de otra ley, de otro Dios, amas y quieres,

que esgrima la cuchilla,

que relámpagos luce y rayos brilla,

y esguace del segundo

diluvio, que ha de sepultar al mundo.

É natural que na peça de Calderón, encenada na época da Contra-Reforma, exista

uma ―Visão‖ divina repreendendo Salomão, que representava, a um só tempo, a Ciência e o

Império, como uma advertência para que essas duas instituições não se desviassem dos

preceitos cristãos apregoados pela Igreja. Também na peça, um personagem, designado

apenas como ―Hebreu‖, derrubará sem nenhuma piedade a árvore que simbolizava Cristo,

acentuando o caráter maléfico do judeu, um dos principais alvos da Inquisição.

Na última cena da comédia, rei e rainha reconhecem seus enganos e se rendem ao

verdadeiro Deus. Como a Sibila Tiburtina, diante do rei Augusto, a Sibila do Oriente/

Rainha de Sabá adverte sobre o perigo de Salomão considerar-se divino, para, em seguida,

anunciar a vinda de Cristo:

227

CALDERON DE LA BARCA, Pedro. La Sibila del Oriente e gran Reina de Saba. Charleston:

Bibliobazaar, 2007. p. 59

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291

Vês esse sagrado lenho,

Que a ignorância não estima,

Ou que o descuido deprecia?

É soberana relíquia

Da serpente de metal,

Que ao povo defende e livra.

E assim não admires, que sobre

Hoje à tua obra rica,

Senão para templo melhor

Lhe aguarda o céu, e destina;

Pois já parece que vejo,

Que sobre seu topo se apóia

outra obra mais bela,

Que há de ser obra viva.

Não vês um formoso jovem,

Que ao sol os Impérios quita

Da luz, cujo diadema

É de junco e de espinhos?

(...)

Pois este homem ou este Deus,

Que pende dessas duas linhas,

É Filho de Deus eterno,

É verdadeiro Messias,

Ao anunciá-lo agora

Parece que o sol se eclipsa,

Que a lua se obscurece,

Que as estrelas não brilham;

E, por fim, todo Universo

Já caduca, já delira,

Já falece, já desmaia,

Já desvanece, já expira,

Prevendo as tragédias

De tão estupendo dia.228

Desde o início da peça, a personagem faz previsões, escrevendo-as, em versos

hexâmetros, nas folhas que seus criados tentam em vão interpretar. Nessa previsão final,

especificamente, como nos outros textos sibilinos aqui comentados, a Rainha de Sabá fala

da primeira vinda e da crucificação do Messias, mas também anuncia o Juízo Final, a

segunda vinda de Cristo, como Juiz da humanidade.

Como se pode perceber, apesar das advertências à Ciência e ao Império diante da

Religião a que se deve seguir, a arte de Calderón perpetua a tradição medieval de reunir

elementos pagãos e cristãos. Também a releitura do Velho Testamento como prefiguração

228

Idem. p. 52.

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292

do novo será recurso muito bem aproveitado em sua obra, com o acréscimo da releitura

clássica dos episódios bíblicos.

Um outro texto de Calderón que claramente realiza essa junção entre o clássico e o

bíblico é o auto O sacro Pernaso. De título híbrido, como o da outra peça analisada, esse

Auto vai definitivamente chamar de ―fábulas mescladas à realidade‖ tanto as narrativas

hebraicas do Antigo Testamento quanto os textos clássicos da Antiguidade. Além disso, o

dramaturgo espanhol, através do personagem ―Fé‖, equipara o Gênesis à Teogonia pagã,

afirmando que a verdade deve ser extraída de ambos, observando-se atentamente as

alegorias presentes nesses livros.

Os personagens ―Gentilidade‖ e ―Judaísmo‖ vão lendo para a ―Fé‖, de acordo com

o que ela vai indicando, trechos das narrativas de seu povo e que vão se revelando muito

próximas umas das outras. Assim, tanto no Gênesis mosaico como nas Metamorfoses

ovidianas, a criação do mundo segue padrões bem semelhantes.

FÉ: (Al JUDAISMO)

Lee de que su Génesis trate

Abre el libro y lee

JUDAÍSMO:

―En el princípio crio

Dios cielo y tierra

(...)

La tierra estaba vacia

entre las obscuridades

de las tinieblas, y sobre

la faz del abismo el grande

Spíritu de Dios era

llevado de los embates

de las aguas y...‖

FE: A mi intento

ese periodo baste.

(A la GENTILIDADE)

Cómo los Metamorfosis

de tus mentidos anales

empiezan?

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293

Lee la GENTILIDADE

GENTILIDADE: ―En el principio

la nada y el todo iguales,

un globo y masa confusa

eran sin que a ser llegasen

aire, fuego, tierra, agua

agua, tierra, fuego ni aire.‖

FE: Bien veis cuánto en sus principios

hebreo y latino frase

convienen simbolizadas

fábulas y realidades.229

Outras comparações são realizadas pela ―Gentilidade‖ e pelo ―Judaísmo‖, unindo

lendas da mitologia greco-romana às narrativas bíblicas. O fruto proibido será comparado

ao pomo da discórdia, Deus a salvar Noé da tempestade se assemelha a Júpiter Tonante

protegendo Deucalião e Pirra de um outro dilúvio, a Virgem concebendo pelo Espírito se

reproduz em Dânae, que gera uma criança através de uma chuva de ouro.

Um aspecto que nos desperta o interesse é a nova leitura que a ―Fé‖ realiza ao

interpretar um dos episódios do Antigo Testamento. Trata-se da passagem bíblica em que

aparece um coro de mulheres saudando Davi em seu retorno vitorioso ao reino de Israel,

ainda sob o governo do rei Saul. Cantando e tocando tímpanos, essas mulheres exaltam o

jovem guerreiro e o louvam como um rei: ―Saul feriu os seus milhares, porém Davi os seus

dez milhares.‖ (1 Samuel 18:7).

Na peça de Calderón, tais timpanistas passam a ser vistas como sibilas que

anunciam o futuro reinado de Davi e sua superioridade em relação ao de Saul.

FE: (...) Aquellas vírgenes bellas,

que al ver cuán sonoras cantem

los dísticos que componen

com los tímpanos que tañen,

David llamó timpanistrias,

entendien algunos padres

y doctores de la Iglesia

ser las sibilas, que en partes

varias, en las varias regiones,

bien como en varias edades

229

CALDERON DE LA BARCA. El Sacro Pernaso. (estúdio introductorio de Antonio Cortijo). Pamplona:

Universidad de Navarra; Kassel: Edition Reichenberger, 2006. p. 150.

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294

del Espiritu inflamadas

de Dios, escribieron antes

de la humanidad de Cristo

la venida, en elegantes

epigramas, no tan solo

desde que el Verbo hecho carne

fue en Virgen claustro, hasta que

murió em afrentoso ultraje,

pero hasta que al fin del mundo

por fuego vuelva a juzgarle.

A este fin, pues, componiendo

un todo de dos mitades,

ese imaginado monte

hoy a dos visos, dos haces

- ya que Paraíso no,

ni Eliseo, como pensastis –

es Pernaso y es Sion.230

A mudança de paradigma é clara quando se refuta a imagem dos dois montes que

estão no imaginário pagão e cristão, Elísio e Paraíso, substituídos por outros, Parnaso e

Sião. Estes, ao contrário, não são mais os lugares onde repousam os mortos, mas onde os

vivos se regozijam e neles vão compor versos. O monte é híbrido, possui duas faces, uma

correspondendo ao judaísmo (Sião) e outra ao paganismo (Parnaso). Davi é o poeta do

monte Sião, enquanto os poetas gregos são aqueles que buscam inspiração nas musas do

Parnaso.

As timpanistas/ sibilas passam a ser musas judaicas, enquanto as ninfas, musas da

gentilidade. Portanto, o monte duplo abriga sibilas-musas que vão coroar os ganhadores de

um concurso de versos, promovido em nome da ―Fé‖, com todos os personagens da peça

como participantes. Essa é a condição necessária para ascender ao monte onde reina o

―Regozijo‖, personagem que também aparece na representação.

Dentro do Auto há um outro desdobramento, como na peça de Gil Vicente, pois

primeiramente temos o confronto entre ―Judaísmo‖ e ―Gentilidade‖, representados pelos

dois personagens, e, na parte central da peça, temos um Auto de conversão, baseado na vida

de um santo católico. Os profetas judaicos, nessa peça, são substituídos pelos doutores da

Igreja: Santo Ambrósio, São Jerônimo, São Gregório e São Tomás de Aquino, que

possuem a missão de converter o jovem Agostinho (ainda maniqueu).

230

Idem. p.160.

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295

As cenas que se seguem mostram a resistência de Agostinho aos ensinamentos dos

padres da Igreja, com uma apurada retórica (tentando mostrar que a ―Fé‖ não existe), a

lembrar, em muitos aspectos, a obstinada argumentação de Cassandra, na peça de Gil

Vicente, quando tenta vencer os argumentos dos profetas bíblicos. Como aquela

personagem, também Santo Agostinho se rende à ―Fé‖ e se converte ao cristianismo no ato

final.

Quatro sibilas também participam da encenação de O sacro Pernaso. Elas descem

do monte não para anunciar o Juízo Final – tendo em vista que ocupam agora a missão de

musas -, mas para dar início a um concurso de versos: a Pérsica propõe um soneto sobre a

metáfora do pão eucarístico; a Délfica sugere três oitavas acerca do triunfo da cruz; a

Cumana escolhe uma composição em três décimas sobre a paz e a abundância do reino

divino; e a Tiburtina, por sua vez, pede que componham um hino e uma copla glorificando

o Novo Testamento.

Observa-se, nessa última proposta, um banimento do Livro Antigo (judaico),

mostrando que as suas leis foram suplantadas pelo Novo Testamento, o que enfatiza a

importância da graça, do júbilo e da harmonia. É desta forma que se finaliza o discurso da

Sibila Tiburtina: ―A tão alto Sacramento/ venere o mundo rendido/ e o antigo documento/

ceda ao ―Novo Testamento‖,/ suprindo a Fé ao Sentido.‖

No final da peça, assim como o Velho Testamento é banido, os profetas antigos são

substituídos pelos doutores católicos, e o ―Judaísmo‖, único personagem que não participa

do concurso, não ascende ao monte, pois não crê na alegria da celebração e considera o

―Regozijo‖ um sentimento de tolos. São Gregório refuta o sentimento judaico, afirmando:

―É verdade que o regozijo/ é hoje principal afeto/ do católico, e assim/ de ti e contigo

pretendo/ levar estes assuntos.‖.

Após os louvores de todos, o Sol do ―Sacro Parnaso‖ aparece, e abre-se o globo

diante de todos. Os personagens louvam o menino que está em seu interior, enquanto o

judeu lamenta sua sorte, pois foi o único que não acreditou na pregação da ―Fé‖ e na dos

doutores da Igreja. Os elementos pagãos, assim como o personagem ―Gentilidade‖,

permanecem e são aceitos na formação do ―Sacro Parnaso‖, uma nova configuração híbrida

(cristã e pagã), que não será mais o monte ―Sião‖ dos judeus.

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A fusão de paganismo e cristianismo também aparece claramente na fala do ―Nino‖

que surge dentro do globo solar: ―Eu do verdadeiro Apolo/ luz de luz, no eminente/ cume

daquele monte, agora/ triunfante me vejo neste/ porque passo ao cruento ocaso/ do eclipse

de minha morte,/ e assim no ‗Pão da Fé‘/ claro céu que mantém/ tantos doutíssimos pólos,/

nunca morro e vivo sempre.‖. A identificação do ―Niño‖ com o Sol e, conseqüentemente,

com Apolo, demonstra a nova configuração do ―Sacro Pernaso‖, que, assim como o Cristo

de Dante, passa a ter duas naturezas.

Conforme já havíamos observado na peça de Gil Vicente, também no Auto de

Calderón de la Barca estão relacionados o eixo religioso e o político, pois a afirmação do

―Nino‖, ―nunca morro e sempre vivo‖, retoma a idéia de uma profecia sibilina, surgida

após a morte do rei Frederico II, da Germânia (morto em 1250), que muitos acreditavam

ser o Monarca da profecia do abade Flora. O texto profético foi assaz divulgado na Europa

e inspirou muitas outras lendas, incluindo a do rei ―Encoberto‖, relacionada ao

sebastianismo português.

O oráculo foi atribuído à Sibila Eritréia e anunciava a morte e a ressurreição do

Monarca, afirmando que ele fecharia os olhos, mas, após cruenta morte, ressurgiria para o

povo: ―Vivit, non vivit‖, como um novo rebento ou uma espécie de fênix renascida.231

Dessa forma, o povo acreditava que Frederico ressurgiria para restabelecer seu reino e que

estava escondido na Sicília, esperando o momento certo para retornar.

A Sibila Eritréia, colocada mais uma vez em cena, mantém sua analogia com Santo

Agostinho; possivelmente o autor da profecia inspirou-se em um dos sermões do doutor da

Igreja para compor o oráculo. Consultando o sermão 231 de Agostinho, que fala sobre a

Páscoa e a Eucaristia, notamos a incidência das mesmas expressões (palavras) da profecia,

associadas à celebração da morte e da ressurreição de Cristo. Infelizmente só encontramos

o texto em latim, mas serviu para traçarmos a gênese da profecia dentro e fora do âmbito

religioso.

Si bene vivimus, mortui sumus et resurreximus; qui autem nondum

mortuus est nec resurrexit, male adhuc vivit; si male vivit non vivit;

moriatur ne moriatur (grifo nosso). Quid est: moriatur ne moriatur?

231

DONNE, Roberto Delle. ―La saga dell‘imperatore Federico nella cultura tedesca‖. In: Arquivio di Storia

Della Cultura. Napoli: Liguori Editore, 2006. p. 235. (231-250) ―Oculus eius morte claudet abscondita

supervivetque; sonabit et in populis; Vivit, non vivit, uno ex pullis pullisque pullorum supérstite.‖

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Mutetur ne damnetur. Si resurrexistis cum Christo, verba repeto

Apostoli, quae sursum sunt sapite, ubi Christus est in dextera Dei

sedens; quae sursum sunt quaerite, non quae super terram. Mortui enim

estis et vita vestra abscondita est cum Christo in Deo. Cum Christus

apparuerit vita vestra tunc et vos cum illo apparebitis in gloria.232

A ênfase da cerimônia eucarística envolve dois principais eventos: a Natividade

(nascimento) e a Paixão (morte). Representam, por sua vez, a comunhão do divino com o

humano: o ―Pão vivo‖ que desceu dos céus (menino) e o sangue vertido na cruz

(crucificação). Seguindo esta concepção, o pão da eucaristia simbolizaria a ressurreição de

Cristo, da qual todos os fiéis participam.

Confrontando a profecia sibilina e o texto religioso, o ―Pão‖ eucarístico passaria a

representar esse Cristo que ―Vivit, non vivit‖, e também apontaria para a utopia do rei

Unificador, do grande Monarca, presente também na profecia do abade Joaquim de Flora e

no ideal de Dante. O ―Niño‖ da peça de Calderón tem essa dupla concepção, como já

havíamos notado em Gil Vicente: uma ênfase religiosa e política, sacra e profana, a serviço

tanto da Igreja quanto do Estado/ Império.

Todo arcabouço profético-milenarista-utópico não se restringiria a uma época ou a

um espaço definidos. A descoberta do Novo Mundo, por exemplo, (a partir da viagem de

Colombo) traria à tona outras configurações proféticas, que ora viam o Continente como o

Paraíso Terreal, um Novo Éden, ora viam-no como um mundo bestializado que necessitava

urgentemente da pregação do Evangelho e da civilização. Esse mundo ―sem fé, sem lei,

sem rei‖ deveria ser dominado em nome da ―Fé e do Império‖, os dois pilares da

civilização.

O embate dos Vícios e das Virtudes ganha nova conotação. Apoiando-se no recurso

profético surgem teorias, constroem-se tratados, explora-se a nova terra, disputa-se o poder.

Mudam-se os regimes, mesclam-se as crenças, mas o íntimo desejo da Unidade permanece,

como a maior de todas as utopias humanas. A própria Ciência estará a serviço das

ideologias, com a finalidade de manter as diferenças entre os homens e, também, como

estratégia de dominação pelo saber.

A grande subversão da obra machadiana será a negação do Estado, da Igreja e da

Ciência como meios inequívocos para garantir o ―Bem Comum‖ da humanidade. Essa

232

MIGNE, Jean-Paul. Patrologiae: cursus completus. Tomo XLVI. Paris: Petit-Montrouge, 1845. p. 667

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298

negação por parte do autor produziu em muitos dos seus leitores a impressão de que

Machado fosse um niilista, um ateu ou um homem desligado das questões políticas de seu

país. Pelo contrário, o escritor, ao estudar detidamente os grandes tratados literários,

históricos e religiosos do passado, entrevia muitas semelhanças com as questões de seu

tempo, como se o homem reproduzisse sempre as mesmas estruturas e estratégias que

garantiriam seu estar no mundo.

Com olhar acurado e refinada percepção, Machado concluiria que, embora os

regimes, os ideais e as crenças buscassem a tão sonhada Unidade ou a universalidade dos

direitos dos homens, a ideologia só conseguiria se impor através do princípio da exclusão:

―Ao vencedor, as batatas‖, lei primordial do Humanitismo do personagem Quincas Borba,

teoria que resumiria as contradições humanas em sua busca desenfreada pela

sobrevivência.

O princípio do filósofo machadiano, além de ser uma leitura irônica de

determinados princípios científicos (como o determinismo e o darwinismo), também seria

retomada irônica de todas as premissas e promessas bíblicas, presentes nas cartas às sete

Igrejas do Apocalipse, de João: ―Ao vencedor, dar-lhe-ei que se alimente da árvore da

vida‖ (Éfeso); ―O vencedor não sofrerá o dano da segunda morte‖ (Esmirna); ―Ao vencedor

dar-lhe-ei do maná escondido‖ (Pérgamo); ―Ao vencedor (...) darei autoridade sobre as

nações e com cetro de ferro as regerá, e as reduzirá a pedaços‖ (Tiatira); ―O vencedor será

assim vestido de vestiduras brancas.‖ (Sardes); ―Ao vencedor, fa-lo-ei coluna no santuário

do meu Deus.‖ (Filadélfia) e, por fim, ―Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu

trono.‖ (Laodicéia).

Nas cartas, as dádivas prometidas correspondem às maiores buscas do homem no

plano terreno, só que concedidas num plano espiritual. Quincas inverteria o procedimento,

fazendo dessa busca uma realização terrena, material e imprescindível à sobrevivência

neste mundo. Em nome dessa permanência material, a qualquer custo, o homem seria capaz

de tudo ainda que sua conquista provocasse o infortúnio de outrem.

O princípio da contradição humana, sem dúvida, seria esboçado também no

conhecido soneto inacabado de Bentinho. O homem, em busca da Utopia – ―Oh, Flor do

Céu, cândida e pura‖ – metáfora que se encaixa em qualquer tipo de Ideal: religioso,

político, amoroso, científico, ideológico – inevitavelmente estaria reduzido às duas

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299

encruzilhadas existenciais: ―Ganha-se a vida, perde-se a batalha‖ ou ―Perde-se a vida,

ganha-se a batalha‖.

O primeiro verso do soneto de Bento resume um anseio transcendental do homem

(espiritual), e reproduz o topos poético da subida à montanha (anábase), como Dante, em

busca de uma sabedoria pura, de uma elevação plena da alma através da ―Flor do céu‖:

Beatriz. O final é duplo como o falar dos oráculos: condiz com o juízo final, daquilo que

seria o incerto destino do humano (ganhar ou perder?) no último saldo da vida. O soneto,

neste ponto, saía do campo espiritual e celeste (céu) do primeiro verso, para enfocar o

terreno, o mundo material, a descida do monte. Se pensarmos que Bento é um personagem

fora da vida (habitante da sub-urbem – a cidade subterrânea, ou mundo dos mortos), temos

uma catábase nesse último verso, em que o personagem, como o defunto Brás, tenta avaliar

os ganhos e as perdas diante do ideal sonhado.

O que Bento não logra alcançar é a união das duas estâncias do soneto, já que existe

uma imensa distância entre a primeira intenção e a última, entre o que se foi, e o que se é.

A grande questão é que o ganhar e o perder hão de estar sempre acompanhando as

aquisições humanas, como se fossem as faces da mesma moeda.

Na obra machadiana, a moeda da vida (destrutiva e construtiva ao mesmo tempo)

expõe o preço de cada conquista humana, mas a efígie que a acompanha revela a face

irônica de Pandora, pronta a cobrar o custo existencial com o peso da vida ou com o lucro

da morte. Pequeno lucro, na verdade, como o irônico saldo positivo de Brás Cubas, que

rompe um dos elos da cadeia da existência, deixando de transmitir a outrem o legado da

miséria da existência.

A atitude do personagem é a última rebeldia do homem após a expulsão do Éden:

recusar-se a cumprir o mandado de Deus: ―Crescei-vos e multiplicai-vos‖. Como no dilema

de Prometeu, presente em ―O desfecho‖, acabando-se o suplício, acaba-se também o

homem -, sendo o inverso da sentença outra probabilidade de redenção.

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300

4.8- “Último”

Augusto Meyer, apesar de ter-se deixado influenciar por uma época em que a crítica

procurava ver o homem Machado de Assis, pejorativamente, refletido na índole de seus

personagens, teve lampejos geniais acerca do processo de concepção da obra machadiana.

Tivesse ele se despido dos preconceitos do tempo, seria hoje uma referência muito mais

citada e reconhecida nessa área de estudos. Ao contrário do que ele mesmo fez,

procuraremos avaliar sua crítica naquilo que possui de mais substancial acerca do escritor.

Meyer observou que o renascimento poético de Machado, com a publicação dos

primeiros poemas de Ocidentais, ocorre exatamente no período em que compõe as

Memórias póstumas de Brás Cubas:

Nada mais comovente que esse despertar de forças adormecidas,

manifestado de súbito, em verso e prosa, naqueles primeiros meses de

1880. Em 15 de janeiro, publica na Revista Brasileira os poemas: ―Uma

criatura‖, ―A mosca azul‖, ―O desfecho‖, Spinoza‖, ―Suave, mari

magno...‖ e ―No alto‖. Todo o espírito das Memórias póstumas já se

configura nesse punhado de poemas. ―Uma criatura‖ parece ser uma

versão metrificada e sem dúvida muito menos poética, do tema de

Natureza ou Pandora, no capítulo ―O delírio‖; em ―O desfecho‖, revela-se

a mesma visão trágica e o mesmo desfilar dos séculos que aparecerão em

―O delírio‖.233

Diante da descoberta, Meyer acrescenta: ―Mas o documento em que fixou a

transposição literária de um provável estado de crise também comporta, além da pura

interpretação estética, uma leitura em profundidade, a soletração das entrelinhas humanas

do texto, pauta de silêncio onde o que não se diz também fala por omissão.‖234

Fica, portanto, claramente esboçada a idéia de que Machado, no processo de criação

que culminou com a escrita das Memórias póstumas, colocou em prática o seu projeto de

233

MEYER, Augusto. Machado de Assis (1935-1958). 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio; ABL, 2008. p.

163. 234

Idem. p.165.

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fusão de prosa e poesia, cuja realização foi concebida a partir de uma escrita híbrida, em

que, aparentemente oferecendo aos leitores um ―romance‖, na verdade, expunha ao público

o espetáculo do mundo. O escritor iniciou, em janeiro de 1880, a publicação dos poemas

citados por Meyer, como um prólogo às Memórias, que seriam lançadas, em março daquele

ano, no mesmo veículo, ou seja, na Revista Brasileira. Há, portanto, uma perfeita

confluência do prosador e do poeta, em que a poesia abandondonava a região etérea da

fantasia, assim como a prosa desvinculava-se da linearidade narrativa e da realidade pura e

simples.

O delírio de Brás, como se pode perceber, serve de chave interpretativa do romance,

mas não se restringe a esse papel, já que se torna uma espécie de releitura poética da

história humana, bem como da tradição literária. No capítulo do ―Delírio‖, Machado

retomava o Dante de Vita Nuova, como já foi analisado, e, por sua vez, faria a inversão da

jornada do florentino, esboçada na Commedia. Iniciaria sua caminhada poética ―No alto‖

(anábase), poema publicado em janeiro daquele ano. Seduzido pelo terreno prosaico, deixa-

se conduzir pela ―figura má‖ (que encontra no alto do monte), para enfim mergulhar no

Inferno, no mundo inferior de Brás (catábase).

Poesia e prosa, assim, se complementam. Machado abraçaria Terra e Céu como uma

reformulação estética, que, ao contrário do que afirmam muitos estudiosos da obra, não é

rompimento com a fase anterior, mas a definitiva fusão, o encontro da forma ideal para a

plena realização poética da obra. Prova disso é a intensa subjetividade dos narradores dessa

―nova prosa‖ machadiana, que sempre partem de um olhar particular para tratarem de um

contexto geral. Iniciam a jornada no mundo interior, e passam a interpretar o exterior

segundo uma visão pessoal, o que caracteriza um dos recursos do gênero lírico.

Em nenhum momento, entretanto, Machado revela plenamente sua intenção ao

leitor. A leitura do romance não comportará apenas uma leitura explícita da relação entre

personagens fictícios num ambiente criado pelo autor, ou uma simples narração de fatos

criados para divertir o público. Implicitamente, haveria uma tentativa de apreender o

homem ―em essência‖, em seu estar no mundo: tanto na leitura de um contexto em

particular, o Rio de Janeiro da época, quanto na interpretação de uma realidade mais

abrangente.

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A arte machadiana reuniria num ―mesmo amplexo‖ tradição e modernidade.

Retomaria o preceito clássico, presente em Virgílio e Dante, mas inverteria o percurso: o

poeta, que chegara ao alto da montanha, desce ao abismo de Brás, para, de acordo com o

projeto de Os deuses, estabelecer uma dualidade: ―O poeta o que fez? Tomou um termo

médio;/ E deu, para fazer uma dualidade,/ A destra à fantasia, a sestra à realidade.‖

A relação entre poeta e prosador continuaria, na medida em que o diálogo que

Meyer percebe em 1880 não se reduz ao período apontado. O poema ―Perguntas sem

respostas‖, que comparamos a Quincas Borba, seria publicado em 19 de junho de 1886,

quatro dias depois de Machado iniciar a divulgação desse romance em A Estação. Portanto,

os preceitos expressos na obra em prosa passariam a ter uma correspondência na poesia, e o

homem (no caso, o personagem) continuaria sua busca pela Quimera, seja essa ―Flor do

céu‖ uma filosofia (o Humanitismo de Quincas), ou uma mulher (a Sofia de Rubião).

Meyer, no ensaio ―O delírio de Brás Cubas‖, daria prosseguimento à observação

sobre o prosador da maturidade, relembrando alguns estudos de Alcides Maya acerca do

―delírio‖ de Brás, no qual o crítico reconhece alguns traços em comum entre a Natureza e o

Hilarion, da Tentation de Saint Antoine (de Flaubert). A partir da análise de Alcides, Meyer

revela seu pensamento acerca do episódio, em relação à obra machadiana, sob o ponto de

vista das idéias universais.

Aliás, podemos afirmar que a Tentation, de Flaubert também se insere no contexto

analisado no capítulo anterior, na medida em que, além de reproduzir o ―desfile dos

séculos‖, retoma a imagem da Rainha de Sabá (Sibila) como tentadora, conforme o que

vimos nas peças calderoniana e vicentina, onde a Sibila deseja corromper a santidade do

profeta divino, seja ele Salomão ou Santo Antônio.

Já em 1912 observa Alcides Maya: ―Da natureza parece ter a concepção

formulada na Tentation de Saint Antoine, quando, ao intérmino desfile

dos seres, dos mitos, dos mundos, das nebulosas, remonta, guiado pelo

espírito revel, o pensamento do asceta. – O fim de tudo isso? Pergunta o

eremita. – Não tem fim... – responde Hilarion.‖

A visão do eremita [Santo Antonio] parece-nos vazia de sentido, como a

de Brás Cubas, ao passo que a do poeta, pletória e ardente, na qual a

própria imagem-madre (mur paroi, façade) é uma revelação de

verticalidade, anuncia os temas de suas ―pequenas epopéias‖ num

grandioso prólogo tratado com uma técnica de mural michelangelesco.

Machado certamente misturou as águas, para matar a sede de

originalidade, e foi além da encomenda, como sempre, pois introduziu a

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variante de um desfile dos séculos contra a correnteza do tempo, como

quem desenrola um novelo de linha.235

Pode-se afirmar que Machado, como Flaubert, também pinta um quadro

michelangelesco em sua obra, assim como desfia o imenso novelo da história e da

memória. As muitas fontes de leitura seriam a sua base criativa, partindo sempre do

―edifício antigo da tradição‖ para compor uma obra universal e singular, tendo em vista que

subverte muitos sentidos e, outras vezes, manda calar os próprios mestres.

Há um Quatuor machadiano se pensarmos nos romances que surgem a partir desse

período: Memórias Póstumas, Quincas Borba, Dom Casmurro e Esaú e Jacó; ou um

―Quinteto‖ se acrescentarmos a esses o Memorial de Aires, que seria, como afirmam os

críticos, o ―testamento estético‖ de Machado de Assis.

Da mesma maneira que reconhecemos o fio que une a obra machadiana da

juventude à da maturidade, podemos afirmar que os cinco romances estão interligados,

sendo os quatro primeiros uma releitura da alma do homem, enquanto o Memorial seria

uma prefiguração da biografia machadiana. Neste último, compreendemos que os três

personagens masculinos da história – Tristão, Aguiar e Aires – interpretam três fases

distintas: o jovem apaixonado, o homem casado e o viúvo, como analisamos anteriormente.

Porém, concentremo-nos principalmente nos quatro outros romances machadianos.

Todos os quatro personagens dos romances – Brás, Quincas, Bento e Aires – se colocam

como sábios ou intérpretes de uma dada realidade. Em muitos momentos, reproduzem o

desejo fáustico de atar contrários ou de encontrar um conhecimento superior, uma suprema

revelação através do estudo de livros antigos ou da leitura das ações do cotidiano.

Brás consulta velhos livros a fim de adquirir o conhecimento necessário para

concretizar a ―idéia fixa‖ do emplastro. A invenção teria o poder de curar o maior mal da

humanidade, a melancolia, assim como concederia notoriedade ao inventor. Mas essa busca

frustrada o leva para o túmulo, onde melancolicamente conclui que nem mesmo a morte

põe termo às tristezas.

Quincas, com sua filosofia, se dispõe a justificar o sofrimento humano e a apregoar

a supremacia de Humanitas frente ao divino. Segundo sua leitura filosófica, o homem seria

ponto de chegada e de partida para todas as relações do universo, e ainda quando sofre é

235

Idem. p. 153.

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para glorificar um outro ser de sua espécie. Assim a herança muda continuamente de mão,

até que surja o próximo a desfrutar desse patrimônio humano. O personagem chega a se

comparar a Santo Agostinho, assumindo, em carta a Rubião, que seria a reencarnação do

santo.

Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque

você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra

mais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é a última. Ignaro!

Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobri isto anteontem: ouça e cale-

se. Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do

tempo nos deleites e na heresia (...) ambos furtamos, ele, em pequeno,

umas pêras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio de meu amigo Brás

Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava, como

eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro

VII das Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da

vontade, ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que

o mal nem mesmo existe, e só a primeira afirmação é verdadeira...236

O filósofo machadiano queria tomar para si a missão de Agostinho, de intérprete e

filósofo da vontade divina, para reafirmar, no entanto, um princípio único: o da vontade

humana. Quincas, ao negar a existência do Mal, anularia também toda a idéia de Deus,

conferindo ao homem o papel primordial da sobrevivência e da transmissão do legado às

gerações futuras. Assim, as dores e os dissabores da vida deviam ser compreendidos como

uma vitória, a partir do momento que alguém, no campo oposto, desfrutava dos benefícios

oriundos dessa dor.

Quincas continuava, como Brás, a renegar os males da humanidade, substituindo a

melancolia humana pela conformação filosófica. Temos aqui reafirmado o axioma de

Pangloss, personagem de Voltaire: ―Esse é o melhor dos mundos‖ ou, no dizer agostiniano,

―Tudo que existe é bom‖, emplastros filosóficos usados para confortar o homem de suas

desgraças.

Como a idéia fixa de Brás, a utopia agostiniana absorvida por Quincas gera

unicamente a doença da desesperança, ou da excessiva esperança, que, por fim, leva-o à

loucura e à morte. Observe-se que Quincas tenta reler a sua história como prefiguração da

vida de um outro filósofo, como se pudesse alcançar uma espécie de revelação profética

236

ASSIS. OC. Vol. I. p. 651/652

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capaz de de lhe dar a capacidade de reler a essência da humanidade, de compreender que

tudo faz parte do instinto de sobrevivência e permanência do homem no mundo. Sobre a

natureza da ―idéia fixa‖, assim diria Brás: ―Viva pois a história, a volúvel história que dá

para tudo; e, tornando à idéia fixa, direi que é ela que faz os varões fortes e os doudos.‖237

Diante da ―redução dos séculos e o desfilar de todos eles‖, como nos revela Brás,

há uma íntima necessidade de o homem assistir ao ―último‖, ao que seria o derradeiro

século. A atitude reflete o eterno desejo da humanidade de decifrar a existência,

conhecendo o juízo final de cada ser: ―Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e

passará também o último, que me dará a decifração da eternidade (...) Redobrei de atenção;

fitei a vista; ia enfim ver o último, - o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal,

que escapava a toda a compreensão.‖

Esse mesmo princípio encontraríamos no Esaú e Jacó, que, dentro dessa proposta

machadiana, é o mais perfeito e acabado dos ―romances poéticos‖, visto que já se inicia

com a consulta à cabocla do Castelo, para prenunciar os acontecimentos futuros acerca da

vida dos gêmeos Pedro e Paulo.

O romance, seguindo um percurso clássico, retoma a jornada dos heróis gregos,

desde a consulta aos oráculos até o ―combate‖ histórico entre índoles distintas: força

(Aquiles) e inteligência (Ulisses). Constitui-se também como epopéia bíblica, partindo da

promessa de uma posteridade grandiosa, conforme o juramento feito ao patriarca Abrão

(―Será Pai de uma grande nação‖), até o conflito dos descendentes Isaque e Ismael, e,

posteriormente, Esaú e Jacó, prefigurações do judaísmo e do cristianismo.

Associando o Antigo ao Novo Testamento, temos a discussão entre os apóstolos

Pedro e Paulo acerca dos rumos do cristianismo, que Machado reproduz no enredo do

livro, atribuindo esses nomes aos gêmeos a partir de uma revelação de Perpétua no meio de

uma oração, e confirmando-os através dos augúrios e explicações de Plácido. Por sua vez,

vincula o confronto dos gêmeos a evento mais recente da realidade local: a transição da

Monarquia para a República, - elementos que configuram o romance como uma espécie de

poema épico, uma epopéia híbrida do mundo contemporâneo.

Aires analisaria a questão da briga através de um interessante pensamento, partindo

do princípio de Empédocles de que a guerra seria a mãe de todas as coisas, e resumiria o

237

Idem. p.516.

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caso com as seguintes palavras: ―... a briga podia ser prenúncio de graves conflitos na terra;

mas logo temperou esse conceito com este outro: - Não importa; não nos esqueçamos o

que dizia um antigo, que ‗a guerra é a mãe de todas as cousas‘. ‖ 238

Já no prefácio temos a noção de que o escritor procurou retomar o princípio

existente no delírio, o da redução dos séculos, que reúne a visão do início da existência

humana – Ab ovo, assim como pretende representar o século derradeiro, anunciado nas

Memórias póstumas - Último. Buscaria, assim, aquele ―Último‖ fio da história humana, o

mesmo que Brás gostaria de admirar com os próprios olhos, mas que absolutamente não

consegue. Essa intenção viria no nome que Machado pretendia dar ao romance Esaú e

Jacó (Último), conforme se verifica no primeiro contrato dos direitos da obra assinado por

ele junto a B.L. Garnier.

Concentrar-nos-emos especificamente nos dois romances menos analisados até

agora, Dom Casmurro e Esaú e Jacó, onde mais solidamente se patenteia a prefiguração, a

união de elementos pagãos e cristãos, assim como se percebe a utilização dos recursos

subjetivos e poéticos, que até o momento estudamos, na prosa machadiana.

No Dom Casmurro, a poesia viria dentro do próprio livro, como já havíamos

analisado: o soneto inacabado seria uma retomada poética do mesmo conflito, desta vez

inserido no contexto da união entre paganismo e cristianismo, entre o material e o

espiritual. Podemos relembrar aqui o poema ―Visão‖ analisado no começo do quarto

capítulo desse trabalho. Na composição transcrita, temos, de um lado, o templo, e, de

outro, o Capitólio. O ―Dom‖ (―catedral‖, na língua alemã) se oporia ao ―Capitólio‖,

símbolo áureo da antiga Roma.

Machado apreciava o uso de metáforas relacionadas aos símbolos da Antiguidade,

principalmente, ao Capitólio romano. Numa de suas críticas teatrais, faria o seguinte

comentário acerca da ―reabilitação da mulher perdida‖, tratando do tema a partir da

imagem dúbia do ―Monte Capitolino‖, lugar onde havia tanto a vertente da Gemônia

quanto a do Capitólio.

A reabilitação da mulher perdida foi durante muito tempo a questão

formulada e debatida no romance e no teatro. Negavam uns, afirmavam

outros, dividiam-se os ânimos, traçavam-se campos opostos; durante uma

238

ASSIS. O.C. Vol. I. p. 967. (Cap. XIV)

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larga porção de tempo a heroína do dia oscilou entre as gemônias e o

Capitólio.239

Machado analisa a sociedade e critica a atitude da arte de seu tempo (romance e teatro)

diante do quadro social. Acaba por afirmar que o maior dos inconvenientes era a monotonia

do tema da traição, já tão desgastado: ―Era o menor, porque o maior [dos inconvenientes]

estava na coisa em si (...) na pintura da sociedade que se transladava para a cena. Que a

conclusão fosse afirmativa ou negativa, pouco importa em matéria de arte‖.240

A antítese criada por Machado entre gemônia e capitólio mostra as duas faces de uma

mesma montanha - o monte Capitolino, uma das sete colinas que circundam Roma. Se de

um lado havia o Capitólio, lugar de glórias, de outro havia os degraus da Gemônia, onde

eram depositados os corpos dos supliciados. Capitolina não seria esse lugar de salvação e

perdição, de alegria e tristeza, de amor e de ódio, segundo as palavras do narrador?

No romance Dom Casmurro, Machado emprega amplamente o recurso da

prefiguração, quando põe Bento tentando interpretar dados do presente e do futuro a partir

de elementos do passado. Por exemplo, os quatro bustos na parede - César, Massinissa, Nero

e Augusto - são uma retomada de eventos históricos para reler a realidade, representando

episódios de traição, de ascensão ou de declínio de determinada ordem, poder ou regime.

Os quatro medalhões fazem parte da história de Roma: Augusto e Nero foram

imperadores; César foi um general, e, o último, um rei númida que lutou ao lado dos

romanos na conquista da África. Que relações podem ser tecidas a partir dessas

representações da Antiguidade? Que relevância na narrativa essas pinturas na parede podem

ter?

Como as pinturas de Michelangelo na Capela Sistina, essa reprodução pictórica de

figuras da casa antiga de Matacavalos (passado), e na casa recente do Engenho Novo

(presente), refaz a correspondência prefigurativa que analisamos anteriormente, em que um

determinado quadro histórico remete a um episódio recente, como um eco profético.

Primeiramente, o narrador indica que esses bustos servem de inspiração para iniciar as

suas memórias. Então evoca as ―sombras‖ de Goethe e os quatro retratos logo na introdução

do capítulo. Por outro lado, vemos que tais figuras não apenas inspiram o narrador, mas

239

Idem.p.216 240

Idem.Ibidem.

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influenciam determinadas atitudes do personagem. Há uma tendência em Bento de

reproduzir certos comportamentos de pessoas ilustres do passado, assim como se nota uma

disposição do narrador para plagiar idéias e pensamentos de historiadores, filósofos e outros

pensadores antigos.

Em princípio, o narrador destaca a curiosidade de Capitu, suscitada pela figura de

César. Ela admira o imperador romano pela grandiosidade, diz que ele era um ―homem que

podia tudo‖. De fato, César possuía plenos poderes, embora também apresentasse, em certos

momentos, atitudes controversas.

Em Vidas paralelas, livro de Plutarco citado por Bento no capítulo em que tenta se

envenenar, verificamos um trecho interessante da biografia de César. Por ocasião de uma

festa, a Bona Dea, onde só podiam participar mulheres, um rapaz chamado Clódio tentou

aproximar-se de Pompéia, esposa de César, entrando furtivamente na celebração com roupas

femininas. O rapaz foi descoberto por uma criada e a notícia espalhou-se pela cidade.

César, sabendo do fato, em vez de punir o jovem, divorciou-se da esposa, pois,

segundo suas próprias palavras: ―a mulher de César não basta ser honesta, deve parecer

honesta‖. Assim como no Otelo shakespeariano, a simples suspeição gera o resultado final:

morte para Desdêmona, divórcio para Pompéia. Outro aspecto que nos chama a atenção na

história de César foi o fato de ele ter sido assassinado pelo filho adotivo, Brutus,

configurando, para Bento, um indício da má índole de Ezequiel, que poderia fazer o mesmo

com o ―pai adotivo‖.

Um outro busto, observado por Ezequiel adulto, também estampa um grande

guerreiro. Trata-se de Massinissa, rei da Numídia, que, por ocasião da Terceira Guerra

Púnica, invade o castelo de Sifax, após matá-lo em combate. A rainha Sofonisba, ao saber

da morte do marido, suplica por sua vida pedindo a ele que não a entregue aos romanos.

Massinissa apieda-se da mulher e não só lhe promete a liberdade como a aceita por esposa.

Mas Cipião, chefe romano, temendo que Sofonisba colocasse Massinissa contra o Império

Romano, como já havia feito com o primeiro marido, ordena que lhe seja entregue a

rainha. Não podendo desobedecer Cipião nem descumprir a promessa feita à esposa, o rei

númida dá a ela uma taça de veneno para que acabe com a própria vida e, assim, escape do

jugo romano.

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A atitude de Massinissa pode levar a duas interpretações: ato de traição, por não

enfrentar o chefe romano e por descumprir a promessa feita a Sofonisba, ou ato de extremo

amor, para não vê-la desonrada, já que o suicídio era uma estratégia corrente para fugir da

rendição ao inimigo. De igual modo podemos interpretar a atitude de Bento para com a

xícara de veneno: de maneira inversamente proporcional, ele abre caminho para uma

―reparação‖ futura, ao desistir da atitude decisiva e irrevogável do envenenamento, seu ou

o do filho. O que seria pior: exílio ou morte? Estamos diante de uma escolha tão difícil

quanto a de Massinissa. Bento preferiu o exílio de ambos, ―filho‖ e esposa.

O narrador utiliza duas tragédias como pano de fundo, Otelo e Sofonisba241

, que

encenam a morte da protagonista pelas mãos do marido. Ambos matam pela honra, mas há

certas diferenças nas ações dos dois guerreiros negros, pois um concede à esposa o golpe

de misericórdia e o outro apenas segue o impulso de seu temperamento belicoso. Apesar de

apresentarem a vontade de absolver as mulheres, ambos são guiados pelo código de honra

do guerreiro, pelo espírito de valentia inerente ao caráter de cada um, espírito que escapa

totalmente à índole de Bento.

Se os dois medalhões analisados estão ligados a episódios da vida de Capitu e de

Ezequiel em relação a Bento, os dois imperadores poderiam ser associados às duas pontas

da vida de Bento/ Casmurro (antes e depois da separação de Capitu), da mesma forma que

Augusto e Nero representam momentos distintos do Império Romano: o anterior e o

posterior ao Cristianismo, que correspondem, respectivamente, ao auge e ao declínio de

Roma.

Relembremos, aqui, a profecia da Sibila Tiburtina, da época de Augusto, que prevê o

reinado glorioso de um futuro rei, logo interpretado como Cristo. Semelhante à evocação

das profecias das bruxas de Macbeth, no começo de sua vida com Capitu, Bento ouviria

augúrio semelhante: ―Tu serás feliz, Bentinho!‖.

Contudo, o que antes fora áureo e glorioso na era de Augusto esfacela-se, após o

cumprimento de tal profecia. O governo de Nero, por sua vez, vê-se ameaçado pelo

advento do cristianismo, e a estratégia do imperador romano seria provocar o incêndio, e

culpabilizar terceiros, no caso, os cristãos. Bento, diante do ciúme, também sente vontade

241

Sofonisba é o título de algumas tragédias, dentre as mais conhecidas são a de Trissino, de Petrarca e a peça

incompleta de Garret. Também há uma ópera de Tommaso Traetta.

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de extinguir Capitu com um fogo intenso, que a faça virar cinzas. Porém, assim como o

incêndio de Roma é um prenúncio da destruição do juízo final, predito pelos profetas

cristãos, e sinal da definitiva queda do Império Romano, o desejo de consumir Capitu com

as chamas do ciúme anuncia a definitiva separação do casal, que ocorre logo em seguida.

Sibilas e profetas também compõem o enredo de Dom Casmurro, e a ele se misturam

episódios da ―vida de santos‖ (como nos Mistérios), seguindo o mesmo princípio dos Autos

medievais. Primeiramente temos episódios da vida de São Bento e de Santo Agostinho

entremeados à história e reformulados pelo narrador do romance (como palimpsestos).

Bento também se assemelha a um eremita, em sua ―caverna do Engenho Novo‖ (os amigos

nomeiam desse modo a nova residência), esperando desvendar segredos divinos, da mesma

forma que os antigos abades e monges da era medieval.

Quanto à encenação do Auto proposta no romance, temos primeiramente a

representação familiar, sendo Bento filho de D. Maria da Glória, ―uma santa‖, e de um pai

ausente (que só aparece em retrato), mas que possui um preceptor chamado José Dias.

Tanto a mãe quanto o agregado forjariam um plano para a vocação ―divina‖ do rapaz:

casá-lo com a Igreja. Como num Auto de Natal, Machado refaria ironicamente essa

―sagrada família‖: Maria e José, pais de Bento Santiago - sendo José Dias o ―pai‖ que

assume a responsabilidade de um filho que não é seu, assim como ocorre ao personagem

bíblico.

Aos poucos, Bento se torna um falso profeta, aquele que renega sua primeira missão,

para executar uma outra: a reclusão monástica, que lhe concede o ―dom‖ profético de

interpretar passado e presente, embora seja incapaz de prever o futuro. Vidente e cego,

Bento não consegue iluminar o próprio caminho, apenas é capaz de manipular os passos de

outras, distantes no tempo e no espaço. Mas, num sentido peculiar, o personagem

machadiano torna-se o supremo manipulador das verdades, como única testemunha viva do

passado.

Advertindo sobre a falsa capacidade profética, há um trecho do livro de Ezequiel

13:3: ―Ai dos profetas loucos, que seguem o seu próprio espírito sem nada ter visto!‖. Ao

invés de servir de prova de inocência de Capitu, o mesmo livro bíblico faz condenações à

mulher adúltera, àquela que se esquece da ―aliança da mocidade‖ (Ez 16:59), assim como

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denuncia a infidelidade, mostrando a meretriz atraída pelos vizinhos e por ―todos os jovens

montados a cavalo‖(Ez 23:12), como no episódio dos ―peraltas da vizinhança‖.

Ezequiel Escobar parece ser o verdadeiro profeta do livro, quando se dirige a Bento,

ao ver este se lamentar pela falta de filhos (cap. CIV): ― – Homem, deixa lá. Deus os dará

quando quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem no

céu.‖

Capitu, como prevê José Dias, é ―cigana oblíqua e dissimulada‖, ou seja, assume o

papel da Sibila que planeja, como a Cassandra vicentina, frustrar os planos divinos. E o

profeta, por sua vez, se multiplica entre os dois Ezequiéis da história: Pai e Filho (segundo

a afirmação do narrador).

Sibila e Profetas se unem nesse Ordo machadiano para anunciarem a derrota de

Bento, invertendo o panorama tradicional que vimos na arte e na literatura, a saber, a

exaltação da vida de um santo num Auto de conversão. Pelo contrário, há uma conversão

às avessas, de um Bento num Dom Casmurro e, ao contrário do desfecho da peça

calderoniana em que Salomão desiste de sua união com a Rainha de Sabá, para o narrador

da história, a Sibila Capitu e o Profeta Ezequiel se unem em favor da sua queda, ou

colaboram na destituição de seu ―reinado‖.

Assim como, no Sacro Pernaso, vemos o Auto de conversão de Santo Agostinho,

recompondo episódios da vida do santo católico, Machado, retomando a comparação da

carta de Quincas, efetua uma correspondência ainda mais completa entre a vida de

Agostinho e a de Bentinho. Seriam necessárias muitas páginas para demonstrarmos todas

as similitudes entre ambos. Para efeito comparativo, escolhemos um trecho expressivo das

Confissões, em que o santo relata de que maneira foi seduzido, na juventude, pela mulher

que se tornaria sua esposa, e como se deixou levar por seus encantos, embora viesse a

abandoná-la depois. O relato apresenta pontos de contato com o episódio ―O penteado‖, de

Dom Casmurro.

Encontrei aquela mulher audaz e desprovida de prudência, enigma de

Salomão, assentada à porta numa cadeira, dizendo: ―Comei à vontade o

pão tomado às escondidas e bebei a doçura da água roubada‖. Ela me

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seduziu, porque me encontrou fora de mim, habitando nos olhos de minha

carne e ruminando o que por eles tinha devorado.242

O ―enigma de Salomão‖, certamente, residia nos olhos de Capitu, que tanto a

tornavam uma ―cigana oblíqua‖ (sibila), quanto um ―mar em ressaca‖ (sedutora). Em

ambos os casos, a Sibila Capitu usava de seus artifícios para desviar Bento da noiva

prometida, no caso, a Igreja.

Diante dessa união híbrida, Ezequiel não podia ser considerado o filho da promessa,

mas o da perdição. Sua entrada na ―ópera‖ machadiana prenuncia a tragédia do fim. Desde

a descoberta da semelhança entre a criança e o finado Escobar, Bento passa a rejeitá-lo e

faz de tudo para afastá-lo de si. Segundo o ponto de vista do narrador, Ezequiel é quem

acaba separando Capitu e Bento: ―Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a

líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, sempre que Ezequiel vinha para

nós não fazia mais que separar-nos‖. Adiante afirma: ―porque o demo do pequeno cada vez

morria mais por mim. Eu, a falar a verdade, sentia agora uma aversão que mal podia

disfarçar...‖ 243

.

A associação da figura de Ezequiel a algo maléfico é apenas sugerida no trecho

acima, através da palavra ―demo‖. Poderia ser um simples modo de tratamento ou força de

expressão, se não percebêssemos outras comparações semelhantes, nem tão explícitas,

porém bem incisivas, no decorrer do discurso de Dom Casmurro.

No capítulo CXLVI, ―Não houve lepra‖, Bento recebe a notícia da morte do filho e

demonstra satisfação ao saber do fato. Então, cita a inscrição colocada no túmulo do rapaz,

na verdade um versículo do livro bíblico de Ezequiel: ―Tu eras perfeito nos teus

caminhos...‖. Não satisfeito, o personagem vai buscar na Vulgata o complemento da

palavra do profeta: ―...desde o dia da tua criação‖.

O narrador usa o versículo para refletir sobre o dia da criação do menino, que

corresponderia ao momento da traição de Capitu, mas a passagem bíblica fica

descontextualizada com o recorte feito pelo autor. Convém saber a quem se referia o

profeta Ezequiel no versículo pinçado pelo narrador de Dom Casmurro:

242

AGOSTINHO, Santo. Confissões. (Trad. J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina). 20ª ed. Bragança

Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2005. p. 66 243

ASSIS. O.C. p. 933.

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Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no

monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas.

Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da sua criação, até que se

achou iniqüidade em ti.

Na multiplicação do teu comércio se encheu o teu interior de violência, e

pecaste; pelo que te lançarei profanado fora do monte de Deus, e te farei

perecer, ó querubim da guarda, em meio ao brilho das pedras (...) eu,

pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu, e te reduzi a cinzas

sobre a terra, aos olhos de todos os que te contemplam. ‖244

O texto bíblico, na verdade, relata a ―queda de Lúcifer‖, que passa de anjo a

demônio. É evidente a comparação que o narrador intenta fazer entre Ezequiel e tal figura.

Assim como o profeta bíblico mostra que o Bem resultou em Mal, Bento conclui que, se o

filho veio para dar fim ao seu ―Paraíso‖, tanto melhor que a febre (o fogo interior) o tenha

consumido. Ainda aqui, existe a mesma configuração do episódio bíblico da ―Queda‖, já

que Lúcifer, criado por Deus como sua imagem e semelhança, é rejeitado pelo Pai a partir

do momento que nele se reconhece uma outra índole e aparência. Por outro lado, se a união

entre a Virgem e o Ungido daria origem a uma progênie santa, a união da meretriz com o

falso profeta geraria o Anticristo, como prenuncia o Apocalipse.

Além dessas referências, encontramos em Dom Casmurro um protagonista

preocupado em estabelecer relações entre as culturas pagã e cristã. De início, Bento nota

um preceito importante numa frase citada pelo padre Cabral - ―ele fere e cura!‖-, de que se

podia extrair tanto uma lição de Homero quanto uma verdade bíblica.

As palavras de Elifaz ao afligido Jó sobre as provações divinas – ―ele fere, e as suas

mãos curam‖245

-, e o poder da lança de Aquiles, de ferir e curar, são os pontos de

convergência entre os oráculos pagão e cristão. Mas Bento não consegue finalizar o estudo

porque ―os vermes‖ roeram os livros antigos e ele não pôde extrair toda a verdade de que

necessitava para comparar os dois textos:

―Ele fere e cura!‖ Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de

Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades

de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros

velhos, mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o

244

Ezequiel, cap. 28, vers. 14- 16. 245

Jó. 5:18

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texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do

pensamento israelita.

Fica bem clara a comparação entre o clássico profano e o texto sagrado, ou melhor,

entre o ―oráculo pagão‖ e o ―pensamento israelita‖, que o protagonista tenta estabelecer na

escrita do livro e que nos remete imediatamente ao verso destacado do réquiem de Celano:

―Teste David cum Sibila‖. O texto também evoca a tradição renascentista, em que os

sábios procuravam pesquisar diversos textos para descobrir algum vínculo capaz de unir as

antíteses pagãs e cristãs num princípio comum.

Essa recorrência a textos antigos parece ser algo corriqueiro na vida de Bento.

Como uma espécie de ―Fausto‖ machadiano, o personagem acaba recriando o ―desfile dos

séculos‖, movendo-se no interior de uma narrativa lacunar repleta de palimpsestos e

prefigurações. Embora o narrador afirme que não conseguiu extrair a verdade de nenhuma

das afirmações, de Homero e da Bíblia, o autor do romance realiza a fusão com maestria, a

ponto de não deixá-la transparecer na estrutura mais explícita do texto.

Há também um capítulo de Esaú e Jacó que tem por título o verso tão citado do

réquiem de Celano, e que tenta fazer a mesma aproximação entre o pensamento pagão e

cristão. O trecho do livro fala de uma consulta espírita feita pelo personagem Santos acerca

do futuro dos filhos. O médium Plácido afirma que os gêmeos são a reencarnação dos

apóstolos Pedro e Paulo e procura unir a sua predição à da cabocla do Castelo246

. Adiante,

deparamo-nos com uma interpretação literária, em relação à personalidade dos gêmeos,

dada pelo Conselheiro Aires, que os compara aos heróis homéricos Ulisses e Aquiles247

.

Para determinar a individualidade dos rapazes, o romance machadiano explora os

oráculos de ambas as filosofias, desde os augúrios da pítia, simbolizada pela cabocla

Bárbara, passando pelo espiritismo-cristão de Plácido, até a moderação de Aires. Para

explicar a reunião de elementos tão contraditórios, o narrador se justifica no capítulo

XLVI, mostrando que Aires conseguiu reunir as duas pontas das previsões, tanto a pagã

quanto a cristã:

246

ASSIS. O.C. p. 967 247

ASSIS. O.C. p. 1002.

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Aqueles almoços repetiram-se, os meses passaram, vieram férias,

acabaram-se férias, e Aires penetrava bem os gêmeos. Escrevia-os no

Memorial, onde se lê que a consulta ao velho Plácido dizia respeito

aos dois, e mais a ida à cabocla do Castelo e a briga antes de nascer,

casos velhos e obscuros que ele relembrou, ligou e decifrou.

Aires alcança a profundidade que Bento não conseguiu atingir e representa, em

certa medida, a intenção machadiana de dar a sua leitura do tema acerca da união de

elementos contrários, a partir da decifração de obras literárias, ou de outras áreas do

conhecimento. Decerto Machado absorveu muitas lições relendo Virgílio, Agostinho,

Dante, Calderón, Goethe, Flaubert e outros, autores que compuseram o ―fio secreto‖ da

tradição.

Esaú e Jacó, esse ―Último‖ machadiano, inicia-se com a subida de duas irmãs ao

Morro do Castelo, ambiente de pessoas humildes. As senhoras, Natividade e Perpétua,

denunciam já pelo nome o principal anseio de ambas: nascimento e perpetuação da

existência. Se por um lado sobem o Morro, por outro precisam humildemente descer do

topo da ―pirâmide social‖, tendo em vista que vão em busca da cabocla pobre para ouvir

sobre o futuro de dois novos membros da alta sociedade. A contradição é evidente.

Quanto ao emprego dos nomes dos personagens, como bem observou Antonio

Carlos Secchin em artigo248

, ele segue a mesma concepção da ―sagrada família‖:

primeiramente há Maria (da Natividade) casada com José (Agostinho Santos), que

anunciam um nascimento, embora de duplos. Já aqui quebra-se o princípio unificador da

profecia antiga, tendo em vista que o principal papel desse ―menino‖ seria a unificação, e

não a dualidade. Surgindo, portanto, dois meninos, a promessa utópica do ―reino divino‖,

estaria comprometida.

A sagrada família tem como principal amigo o casal ―Batista‖, nome atribuído ao

João bíblico, primo de Cristo, que preparou caminho para o seu ministério apregoando o

batismo aos novos convertidos. Os gêmeos, por sua vez, chamam-se Pedro e Paulo, dois

apóstolos cristãos, que, como estes, seguem rumos divergentes, mesmo quando irmanados

na mesma proposta de ―serem grandes‖. Já que todo princípio de poder limita-se ao

248

SECCHIN, Antonio Carlos. ―Irmãos e inimigos‖. In: O Globo. Suplemento Prosa e Verso; 24 de fevereiro

de 2004.

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conceito do um, do absoluto, não pode existir um governo paritário que admita ―dois

senhores‖.

Assim, formava-se o Auto e a ―vida de santos‖ no romance machadiano, acrescido à

cena o juízo, ou predição, da Sibila (Bárbara) e do Profeta (Plácido), arrematando todo o

quadro com as pinceladas clássicas de Aires acerca dos dois heróis homéricos.

Outra figura sugerida na composição do nome do pai dos gêmeos é Santo

Agostinho, invertido em Agostinho Santos. O que ninguém havia notado antes é que, de

fato, podemos dizer que Santo Agostinho é o pai da teoria esboçada no Esaú e Jacó, isto é,

foi o filósofo quem formulou a idéia contida no romance de Machado.

No livro VII, capítulo 6 das Confissões, Agostinho trata dos ―vaticínios dos

astrólogos‖, dizendo ser impossível predizer o futuro através dos astros. Usa como

justificativa um caso contado por um amigo, em que duas crianças nasceram no mesmo

momento, na mesma casa, sendo uma delas a filha do patrão, e a outra, a do empregado.

Logicamente cada uma teve o destino regido não pelas estrelas, mas pela classe social de

seus pais.

Como esse testemunho podia ser considerado falso, o filósofo católico usa à guisa

de exemplo o caso de uma mulher que viesse a ter filhos gêmeos. Como algum adivinho

poderia dizer, com exatidão, se teriam iguais destinos, mesmo nascidos da mesma mãe e

no mesmo dia? Assim Agostinho expõe sua idéia:

Desviei o fio do raciocínio para os que nascem gêmeos. A maioria destes

saem do ventre materno, um após o outro, com tão pequeno intervalo de

tempo, que a este – por mais que haja luta entre os gêmeos para

possuírem na ordem natural a primazia – é impossível registrá-lo pela

observação humana e tomar notas dele, de molde a que os astrólogos,

examinando-as, se possam pronunciar exatamente. Os prognósticos não

serão exatos porque, vendo o astrólogo os mesmos documentos, deveria

dizer a mesma coisa de Esaú e Jacó. Mas os sucessos na vida de um e de

outro não foram os mesmos. Portanto, ou o astrólogo anunciava

falsidades ou, no caso de falar certo, não deveria dizer a mesma coisa de

ambos, ainda que visse os mesmos documentos. Neste caso não era por

arte, mas por acaso é que dizia a verdade.249

249

AGOSTINHO. Confissões. p. 149.

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Sem dúvida, Machado dá corpo à idéia agostiniana no romance Esaú e Jacó,

mostrando as previsões acerca do futuro dos gêmeos e de como os dois divergiriam de

caráter e opinião. Contrariando os vaticínios da cabocla do Castelo e do espírita Plácido, os

dois rapazes não conseguiram ser grandes homens, pois passaram a vida inteira brigando.

Tivessem os pais atentando para as verdades históricas de cada episódio bíblico, poderiam

predizer o futuro com mais precisão, concluindo que, para concretizar o projeto de

grandeza que tinham em mente, um devia ser menor do que o outro, e a disputa deveria

apontar um vitorioso: ―Ao vencedor, as batatas‖.

Nas Confissões, Agostinho completa a idéia do engano dos astrólogos ao afirmar

que só Deus conhece o destino dos homens: ―...por meio de um secreto instinto,

desconhecido dos consulentes e dos astrólogos, fazeis que cada qual, enquanto consulta,

ouça o que lhe convém ouvir, segundo os merecimentos ocultos da sua alma e segundo os

abismos dos vossos incorruptíveis juízos.‖ Não é exatamente isso que Santos e Natividade

fazem ao ouvirem as previsões? Ironicamente, não é o fato da briga dos gêmeos o detalhe

que pai e mãe desprezam nos dois oráculos? Machado mostra que a capacidade de

observação de Aires é a única medida justa para avaliar a personalidade dos gêmeos e a

conclusão se dá por uma constatação, jamais por meio de adivinhações.

Esse princípio também está contido em ―A cartomante‖, onde o personagem

Camilo deixa de observar as evidências da realidade para dar ouvidos à voz de uma

adivinha. A intuição, que interpreta dados reais, poderia tê-lo livrado da morte, mas foi

descartada pela interpretação de uma estranha que dizia saber o futuro de pessoas

desconhecidas apenas pela leitura de cartas.

No entanto, através da observação de dados reais, da História do próprio homem -,

ou seja, através da prefiguração agostiniana - podia-se prever o destino dos dois rapazes.

De início, os apóstolos Pedro e Paulo protagonizaram a primeira ruptura na Igreja

primitiva, assim como Esaú e Jacó, no Antigo Testamento, promoveriam a separação entre

os dois povos, idumeu e hebreu, que sempre disputaram o poder em Israel.

Machado relê também a realidade através da história portuguesa, com o embate dos

irmãos Pedro e Miguel pelo reino de Portugal, assim como ilustraria a mudança de regime

no Brasil, de Monarquia para República. Em vez de enfocar apenas uma realidade

brasileira, como simples alegoria, Machado ilustra a eterna briga por poder que existirá em

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toda a sociedade humana, enquanto Flora, a utopia, agoniza sem poder pertencer

plenamente a nenhum dos campos.

Só a Arte congraça ambas as realidades, e as reúne num mesmo abraço: Aires,

relendo as epopéias de Homero, consegue extrair o princípio definitivamente aceito para

interpretar os dois irmãos: Aquiles, a força, e Ulisses, a inteligência, duas formas distintas

de se alcançar certo domínio político, ainda que provisório, nesse mundo de contradições

aparentes ou veladas.

O próprio Machado, em crônica de 1877 já havia feito uma leitura da História

através dos heróis de cada tempo, ao comparar Aquiles, Enéias, Dom Quixote e

Rocambole a cada uma das idades do nosso mundo: ―Estes quatro heróis, por menos que o

leitor os ligue, ligam-se naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua

Ilíada; as várias Ilíadas formam a epopéia do espírito humano‖ (grifo nosso)250

Outro fato interessante é a escolha do pseudônimo para assinar as crônicas

publicadas na Ilustração Brasileira: Manassés. O personagem bíblico, escolhido para

nomear o cronista, era irmão gêmeo de Efraim, ambos filhos do patriarca José (do Egito).

Os gêmeos protagonizaram mais uma história de disputa entre irmãos, como já havia

acontecido com Esaú e Jacó, respectivamente tio e avô dos gêmeos, e, anteriormente, entre

o bisavô Isaque, pleiteando com Ismael o legado de Abraão. Apenas um deles pôde

conquistar a ―promessa‖, e o mais velho acabou servindo ao mais novo.

No romance, não há nenhum indício de que Pedro ou Paulo tenha uma prevalência

sobre o outro. Machado encaminha o livro para a fusão das duas figuras, missão de Flora.

A lição, portanto, seguia outra premissa machadiana: ―Findou a idade heróica, mas os

heróis não foram todos na voragem do tempo. Como fachos esparsos no vasto oceano da

história atraem os olhos da humanidade, e inspiram os arrojos da musa moderna. Casar a

lição antiga ao caráter do tempo, eis a missão do poeta épico.‖251

Seria essa a realização de

Flora, no leito de morte, quando reafirma: ―Ambos, quais?‖, não distinguindo mais os

gêmeos.

Flora é a corporificação da imagem daquela Musa cantada pelo poeta desde os

primeiros versos, aquela imagem pagã recuperada pela memória. Essa ―Mãe Quimera‖

250

ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. Op.cit. p. 179. (15 de janeiro de 1877) 251

Diário do Rio de Janeiro. ―Semana literária‖. 05/06/1866.

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sucumbe diante do mundo que não a decifra: alma pura e perfeita, ilusão perpétua, eco da

―sagradas harmonias‖, ninfa de alguma ―Ilha dos Amores‖. Nela, o mito do andrógino

platônico se presentifica. Comprovamos isso através do desenho que a moça apresenta a

Aires, onde mostra, na figura com ―duas cabeças‖, a representação da ―unidade

primordial‖ que reuniria definitivamente os contrários, tornando-os iguais. Como não se

pode ter uma ―Beatriz‖ para dois entes separados, o desejo de Flora é reunir os gêmeos

num único ser, tarefa que, no leito derradeiro, parece cumprir.

Ainda no capítulo sobre as pinturas mostradas a Aires, Flora esboça toda a teoria

delineada no poema do Marquês de Belloy, onde se diz que, sobre o ―antigo edifício‖,

constrói-se uma nova casa, ou ainda, nas palavras de Machado, ―casando a lição antiga ao

caráter do tempo‖. A leitura do capítulo 100 do romance é uma prefiguração completa,

onde o pintor Machado de Assis, tal um Michelangelo, pinta divinamente seu ideal, ou seu

―Princípio‖, com a tinta da sutileza:

Flora mostrou os desenhos que fizera, paisagens, figuras, um pedaço da

estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um Princípio de casa. (grifo do

autor). Era uma dessas casas, que alguém começou muitos anos antes, e

ninguém acabou, ficando só duas ou três paredes, ruína sem história.

Flora, então, entrega o desenho ambíguo dos gêmeos para Aires, que o rasga e

guarda no bolso. O narrador afirma: ―As duas cabeças estavam ligadas por um veículo

escondido‖. Sim, a Arte seria o veículo escondido que reúne as dicotomias a partir de um

Princípio comum, de uma continuidade da ―casa‖ da tradição. O desfecho do capítulo

continua a nos revelar este ―veículo escondido‖:

Demais era o único desenho a que ela não pôs assinatura. Deu-lho como

se fora um pendão de arrependimento. Em seguida, atou novamente as

fitas da pasta, enquanto Aires rasgava calado o desenho e os metia os

pedaços no bolso. Flora ficou por um instante parada, boca entreaberta,

mas logo lhe apertou a mão, agradecida. Não pôde evitar que lhe caíssem

duas pequeninas lágrimas, - como outras tantas fitas que lhe atavam para

sempre a pasta do passado.

A imagem não é boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao conselheiro (...)

Chegou a escrevê-la no Memorial depois riscou-a, e escreveu uma

reflexão menos definitiva: ―Talvez seja uma lágrima para cada gêmeo.‖

Pode acabar com o tempo, pensou ele indo para a barca de Petrópolis.

Não importa; é um caso embrulhado‖.

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Machado saberia embrulhar a herança literária, a pasta do passado, com muitos fios

e fitas, num intricado jogo de referências antigas que se reeditam em novas. Ao final dos

três capítulos - ―Duas cabeças‖, ―O caso embrulhado‖ e ―Visão pede meia sombra‖ – o

narrador diz (cap. CIII): ―Sei, sei, TRÊS VEZES sei que há muitas dessas visões nas

páginas que lá ficam‖ (grifo do autor). Há numerosas referências veladas no discurso

machadiano que esperam outros olhares que as interpretem, tarefa que, diante de tão vasta

matéria, exigiria de nós a escrita de uma outra Tese, talvez ainda maior do que esta.

Para que, finalmente, possamos cerrar o pano desse imenso palco machadiano,

concluímos que, na construção da personagem Flora, o escritor tenta reviver a Musa do

passado, a fim de travar um novo diálogo, como aquele da ―Missão do poeta‖, poema da

juventude. Ainda que Flora tenha sucumbido diante das demandas irreconciliáveis da vida,

deixa, porém, cumprida uma suprema missão: a de reunir os contrastes da realidade.

Se o poeta conclui ―Oh, duas almas no meu seio moram!‖, a Musa machadiana (a

arte, a literatura, a poesia) há de reunir em seu âmago todas as contradições do homem:

―De duas tradições a musa fez só uma: David olhando em face a Sibila de Cuma.‖

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5- CONCLUSÃO

Qualquer pesquisador, debruçando-se sobre a obra de Machado, poderá extrair-lhe

um compartimento, um dito, uma vertente, uma leitura, e fazer desse saber tratado

filosófico, lição de economia, análise literária, apreciação histórica, alegoria, estudo de

caso, análise do discurso etc. Diante dessa infinidade de perspectivas, os discursos críticos

pretendem dar conta de classificar o escritor desta ou daquela forma. Chegarão,

porventura, a uma conclusão interessante, mas talvez não consigam compreender que

Machado, mesmo não crendo na Unidade utópica do mundo, constrói uma obra que traz

em seu bojo uma unidade impressionante, ainda que aponte para a multiplicidade.

Na releitura que Drummond faz de Machado, temos a expressão exata do que

Machado representa, um homem de seu tempo, mas também um escritor universal, ou, na

expressão renascentista, uomo universale: ―Muitos leram da vida um capítulo/ Tu leste o

livro inteiro‖. Temos um Machado enciclopédico, que lê tudo que passa diante dos seus

olhos: da imensa e variada biblioteca aos homens e ações que consegue interpretar. Olhos

que examinam o passado e testemunham o presente, com vistas a construir uma obra para o

futuro.

Pode-se dizer que, na acepção dos escritores da Renascença, Machado é o ―Sábio‖,

ou, como preferimos, resgatando o sentido clássico, seria o ―Poeta‖, aquele que tenta

encontrar o sentido do Universo e entender o grande enigma da existência, principalmente

das contradições humanas.

A dupla natureza do homem, corruptível e incorruptível, remonta sempre ao antigo

embate entre vícios e virtudes, entre Bem e Mal. Nossa vida está sujeita a essas escolhas, e,

muitas vezes, determinados desígnios acabam se alternando conforme a necessidade de um

dado momento. Porém, como no delírio de Brás Cubas, Machado reafirma o princípio de

que a humanidade é sempre a mesma, não importa o tempo e o espaço reservados à sua

existência. Os desejos e ambições se repetem, o homem está sempre em busca de um ideal

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quimérico. Seu destino é correr atrás da Esperança, afligido constantemente por todos os

outros males, até que a Natureza, ou Pandora, encerre a caixa da existência.

Perdida a esperança, Machado deposita toda sua crença no legado estético. A obra

de arte é, portanto, a única possibilidade de redenção do homem. Acreditando nisso, o autor

dedica toda a vida ao ofício da escrita, sem jamais abandonar o legado clássico, rendendo à

Musa um louvor eterno, do primeiro ao último de seus escritos. É certo que soube casar

perfeitamente a ―lição antiga ao caráter do tempo‖, reavivando as cores do quadro e

reedificando as ruínas do antigo edifício.

Ao tentarmos descobrir o lugar da poesia na obra machadiana, concluímos, após a

abertura do véu, que ela jamais deixou de ocupar a posição central na produção literária do

autor. O fio dela parte e a ela retorna, tantas vezes tecido conforme as hábeis mãos do

artista. Se a forma continuamente varia, é porque a poesia, transfigurada, há de alterar o

exterior conforme as vestes de cada tempo.

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