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Rua Barão de Itapetininga, 93 5º andar São Paulo-SP 01042-908 Brasil Tel/Fax (55 11) 3884-7440 www.conectas.org [email protected] 1 Ao Excelentíssimo Sr. Conselheiro Jorge Hélio Chaves de Oliveira Comissão n° 0006755-50.2012.2.00.0000 Em resposta ao ofício nº 10.584 (BF), recebido em dezembro de 2012, Conectas Direitos Humanos, integrante da Articulação Justiça e Direitos Humanos JusDh 1 , vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência apresentar sua contribuição ao estudo que vem sendo desenvolvido por este Conselho acerca da “adoção de ações afirmativas que possibilitem o acesso de minorias historicamente desfavorecidas às carreiras do Poder Judiciário, aí incluídas a própria magistratura e o quadro de servidores”, como deliberado pelo Conselho Nacional de Justiça nos autos do Pedido de Providências nº 0002248-46.2012.2.00.0000. O presente documento pretende colaborar com esse estudo a partir dos seguintes pontos: (i) Os fatos: A realidade da discriminação no Brasil A despeito de nunca ter adotado a segregação como política oficial, o Brasil ainda enfrenta uma realidade de profunda desigualdade entre grupos étnico-raciais. A questão da população negra é ilustrativa desse cenário, uma vez que os negros estão 1 A Articulação Justiça e Direitos Humanos Jusdh é composta por movimentos sociais e organizações de direitos humanos (Terra de Direitos Organização de Direitos Humanos, Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, Geledés Instituto da Mulher Negra, AATR Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, SDDH Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular) que atuam com litigância nos diferentes temas de direitos humanos e vêm trabalhando com uma agenda de democratização da justiça por meio do monitoramento e incidência política junto aos órgãos do Sistema de Justiça, Poder Executivo e Legislativo.

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Rua Barão de Itapetininga, 93 – 5º andar São Paulo-SP 01042-908 Brasil

Tel/Fax (55 11) 3884-7440 www.conectas.org [email protected]

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Ao Excelentíssimo Sr. Conselheiro Jorge Hélio Chaves de Oliveira

Comissão n° 0006755-50.2012.2.00.0000

Em resposta ao ofício nº 10.584 (BF), recebido em dezembro de 2012, Conectas

Direitos Humanos, integrante da Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh1,

vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência apresentar sua contribuição

ao estudo que vem sendo desenvolvido por este Conselho acerca da “adoção de

ações afirmativas que possibilitem o acesso de minorias historicamente

desfavorecidas às carreiras do Poder Judiciário, aí incluídas a própria magistratura e

o quadro de servidores”, como deliberado pelo Conselho Nacional de Justiça nos

autos do Pedido de Providências nº 0002248-46.2012.2.00.0000.

O presente documento pretende colaborar com esse estudo a partir dos seguintes

pontos:

(i) Os fatos: A realidade da discriminação no Brasil

A despeito de nunca ter adotado a segregação como política oficial, o Brasil ainda

enfrenta uma realidade de profunda desigualdade entre grupos étnico-raciais. A

questão da população negra é ilustrativa desse cenário, uma vez que os negros estão

1 A Articulação Justiça e Direitos Humanos – Jusdh é composta por movimentos sociais e organizações de direitos

humanos (Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa e Informação, Geledés Instituto da Mulher Negra, AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, SDDH – Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos e Dignitatis – Assessoria Técnica Popular) que atuam com litigância nos diferentes temas de direitos humanos e vêm trabalhando com uma agenda de democratização da justiça por meio do monitoramento e incidência política junto aos órgãos do Sistema de Justiça, Poder Executivo e Legislativo.

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excluídos das esferas de poder, tanto social quanto econômico. O Poder Judiciário é

um espaço ainda muito homogêneo e as ações afirmativas são medidas necessárias

para pluralizá-lo. Um primeiro passo para isso é a realização, pelo próprio Conselho

Nacional de Justiça, de um levantamento do perfil atual da Magistratura.

(ii) A necessidade das ações afirmativas

As ações afirmativas partem de uma concepção de igualdade material segundo a

qual a discriminação se reproduz na medida em que pessoas em situações diferentes

são tratadas da mesma forma. Elas são medidas que buscam eliminar efeitos de uma

discriminação histórica que tende a se perpetuar. Também visam implementar uma

maior representatividade de grupos sub-representados. Recentemente, o Supremo

Tribunal Federal desenhou alguns parâmetros de sua constitucionalidade, quais

sejam: utilização de critérios que representem discriminação positiva;

transitoriedade; finalidade de eliminar discriminação; e proporcionalidade.

(iii) Ingresso na Magistratura: um processo que reproduz desigualdades e mede

investimento.

Da forma como ocorre hoje, o processo de seleção para ingresso na Magistratura

contém exigências que acabam afastando pessoas que sofrem com piores condições

sociais e econômicas. O concurso público exige dedicação praticamente exclusiva

aos estudos, é dificilmente atingível para quem não faz cursos preparatórios e ainda

contém mecanismos de “investigação social” que abrem espaço para um grande

subjetivismo na seleção dos candidatos. Desse modo, acaba medindo mais

investimento financeiro do que acúmulo de conhecimento.

1 - Os fatos: A realidade da discriminação no Brasil

Os dados da realidade brasileira mostram que, a despeito dos avanços democráticos

vividos pelo país, a desigualdade que desfavorece certos grupos vulneráveis ainda

persiste.

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Informações relativas à população negra são ilustrativas dessa situação e mostram

que, não obstante o Estado brasileiro nunca tenha adotado a segregação racial como

política oficial, nossa história deixa como legado uma sociedade extremamente

dividida em que alguns são dignos de privilégios ao passo que outros sequer

conseguem ver seus direitos garantidos.

A população negra corresponde hoje a mais da metade da população brasileira

(51,4%), considerando pessoas que se autodeclararam pretas e pardas segundo os

dados mais atuais do IBGE. Os negros que têm acesso aos níveis mais elevados de

ensino, no entanto, correspondem a um percentual bem mais baixo que esse. Na

população com 25 anos ou mais, a quantidade de pretos (4,7%) e pardos (5,3%) que

têm curso superior completo é cerca de um terço em relação aos brancos (15%)2.

Para se ter uma ideia, a taxa de frequência a estabelecimento de ensino entre jovens

de 15 a 17 anos negros ainda não atingiu a taxa que se via entre os brancos dez anos

atrás. O mesmo acontece no ensino superior, com jovens entre 18 e 24 anos3.

Ainda nesse sentido, a probabilidade de um jovem branco (de 18 a 14 anos)

freqüentar uma instituição de ensino superior é 97,8% maior do que a probabilidade

de uma jovem negra. Da mesma forma, a probabilidade de uma jovem branca

freqüentar o mesmo espaço é 263,5% superior à de um jovem negro4.

Sabe-se que, em nossa sociedade, o acesso ao ensino superior é uma forma

importante de ascensão social, facilitando o acesso a cargos de poder tanto

econômico quanto político. Esse tipo de dado é importante para ilustrar justamente

os obstáculos que se impõem ao negro, dificultando sobremaneira a obtenção de

renda e a ocupação de posições de relevância social.

2 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2010.

3 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012.

4 Relatório Anual das Desigualdades Raciais 2009-2010. Org: Marcelo Paixão, Irene Rossetto, Fabiana

Montovanele e Luiz M. Carvano. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p.230.

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A população brasileira distribui-se em uma pirâmide social e racial em que a

população branca está no topo da concentração de renda ao passo que a população

negra está na base da pobreza e, portanto, da exclusão social. Os dados mostram

que os negros são mais de 73% entre os mais pobres e somente 12% entre os mais

ricos5.

A última síntese de indicadores sociais do IBGE afirma: “Em termos da distribuição de

rendimentos considerando a cor ou raça das pessoas, aquelas de cor ou raça preta

ou parda estão concentradas nos décimos de rendimento mais baixos, ao contrário

das pessoas de cor ou raça branca”, como mostra o gráfico abaixo6.

A diferença entre os graus de escolaridade interfere não apenas na renda, como

também na qualificação do trabalho desenvolvido. Os negros estão

sobrerrepresentados nos nichos profissionais menos valorizados (construção civil,

comércio ambulante e setor de serviços). Por outro lado, estão sub-representados

em ocupações mais valorizadas pela sociedade (comércio não-ambulante, profissões

liberais, ramo de serviços auxiliares de atividades econômicas). Em grandes

5 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2007.

6 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012.

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empresas, costuma haver menos negros conforme se sobe na hierarquia7 – ou seja,

os cargos de chefia são majoritariamente ocupados por pessoas brancas.

Os rendimentos-hora dos brancos eram até 40% maior do que os de pretos e pardos

em 20088. Dados mais recentes mostram que o rendimento médio das pessoas

pretas ou pardas com 16 anos ou mais equivale a 60% do rendimento médio da

população branca na mesma faixa etária9.

Tamanha desigualdade também afeta a população negra no que concerne ao acesso

aos serviços públicos mais básicos. Tem-se o diagnóstico de que, nos domicílios com

rendimento per capita de até um quarto do salário mínimo, uma parte significativa

apresenta um arranjo familiar monoparental feminino de baixa escolaridade e com

filhos menores de 14 anos. De acordo com o IBGE, essas famílias estão mais

suscetíveis a dificuldades em eventual situação de crise, pois há apenas um provedor

– nesse perfil, existe uma sobrerrepresentação de pessoas pretas ou pardas, que

sofrem com a falta de acesso simultâneo a serviços de saneamento e iluminação

elétrica, confirmando que os menores rendimentos estão atrelados também a uma

situação de maior vulnerabilidade.

O IBGE é certeiro ao afirmar que existe uma dimensão dos indicadores sociais que

está atrelada a características como cor/raça:

“Além disso, a sobrerrepresentação de pessoas de cor ou raça preta ou parda

confirma o que já foi mencionado acerca da existência de grupos que partilham

determinadas características pessoais (no caso, a cor ou raça preta ou parda) e

apresentam diferenciais negativos em seus indicadores em relação à média

nacional. Essa constatação não reflete, necessariamente, que tais resultados sejam

fruto exclusivo de discriminação racial, mas, ao mesmo tempo, indica que anos de

exclusão social, considerando ainda o passado escravagista do País, têm reflexo

negativo em diversos indicadores sociais para esse grupo. Não por acaso, diversas

7 Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005. Racismo, pobreza e violência. Programa das Nações

Unidas para o Desenvolvimento, p. 51. 8 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2008.

9 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012.

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políticas de ação afirmativa, como a criação de cotas para pessoas de cor ou raça

preta ou parda, foram criadas no intuito de reduzir as desigualdades

apresentadas”10.

O mesmo se aplica em relação a dados que expressam uma diferença considerável

de qualidade vida. Homens e mulheres negros levam mais tempo no trajeto

residência-trabalho, por exemplo11.

A desigualdade racial se expressa também em uma dimensão política – afinal, as

relações entre riqueza e poder são intensas no Brasil. A população negra está

afastada dos espaços de poder onde são tomadas decisões sobre os bens coletivos.

De acordo com estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “Os

dados sobre a participação das mulheres e dos homens negros nas posições de poder

da hierarquia do Estado confirmam sua sub-representação nos três poderes da

República: Executivo,Legislativo e Judiciário”12.

Em 2006, os negros eram 8,9% do total de deputados federais. Os identificados

como brancos eram 87%, os amarelos 0,8% e nenhum deputado foi identificado

como indígena. Em 2007, 76 dos 81 senadores eram brancos, ou seja, os negros

correspondiam a apenas 6,2%. Das 10 senadoras que compunham a Casa, nenhuma

era negra13.

Essa sub-representação tem como consequência a impossibilidade de transformação

das demandas desse grupo em políticas públicas. A própria luta pela igualdade racial

10

Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012. 11

Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012. 12

Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005. Racismo, pobreza e violência. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, p 46. 13

Relatório Anual das Desigualdades Raciais 2007-2008. Org: Marcelo Paixão e Luiz M. Carvano. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, p.148.

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ganha mais peso e espaço após a década de 1980, quando os negros começam a

encontrar algum lugar no Congresso Nacional14.

A seguinte conclusão é muito ilustrativa do problema que pretendemos apontar:

“quanto mais se avança rumo ao topo das hierarquias de poder, mais a sociedade

brasileira se torna branca”15.

Na presente contribuição que se oferece ao Conselho Nacional de Justiça,

informações concernentes ao acesso da população negra ao ensino, à diferença de

rendimentos entre negros e brancos e à baixa representatividade dos negros em

órgãos representativos são informações da maior relevância porque demonstram a

exclusão dessas pessoas das esferas de poder no Brasil.

O Poder Judiciário é mais uma dessas esferas. Ainda que com características

particulares que o diferenciam dos poderes Legislativo e Executivo, o Judiciário tem

sido visto cada vez mais como uma arena também importante na garantia e

efetivação de direitos básicos e da cidadania. Nesse sentido, um estudo que busca

revelar o “o corpo e a alma da magistratura brasileira” pontua que no

constitucionalismo moderno a dimensão política do Judiciário é intensificada:

“o Judiciário, por meio do controle da constitucionalidade das leis, especialmente

no que se refere à declaração dos direitos fundamentais, passa a fazer parte, ao

lado do Legislativo, da sua formatação. De outra parte, a jurisdição passa a afetar

os interesses de indivíduos e os conflitos de caráter coletivo diretamente

envolvidos com a dimensão da política, território naturalmente estranho à ‘certeza

do direito’, com o que o tempo da política passa a fazer parte do Direito. Assim,

com o constitucionalismo moderno, o processo de adjudicação de direitos

conheceria um novo ator – o Judiciário – em clara contraposição ao contexto

14

Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005. Racismo, pobreza e violência. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, p. 50 15

Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005. Racismo, pobreza e violência. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, p. 52.

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original do Welfare, quando a luta por novos direitos foi travada no campo da

política[...]”16.

No âmbito do Judiciário, contudo, são poucos os dados recentes organizados. Sabe-

se que, em 2005, os negros representavam menos de 1% dos magistrados ao passo

que 86,5% eram brancos17.

Dentro desse universo, os brancos correspondem a uma proporção maior no Sul

(96,5%) e no Sudeste (92,7%), ao passo que os negros têm maior representação no

nordeste (1,7%). Chama a atenção o fato de que, nos estados com melhores

indicadores de qualidade de vida, a preponderância dos brancos é significativamente

maior (95,3%) do que a de negros (0,5%) e pardos (3,3%), enquanto a proporção de

negros (2,9%) e pardos (30,4%) é maior nos estados com índices mais baixos de

qualidade de vida.

Ainda, dentre as carreiras públicas tradicionais do campo do direito (Magistratura,

Defensoria Pública e Ministério Público), a Magistratura é a mais homogênea no que

concerne ao perfil racial18, ainda que o universo jurídico seja como um todo muito

pouco plural:

“Todos os dados utilizados por mim para traçar um perfil das profissões jurídicas

no Brasil indicam que, em termos de cor da pele, os juristas compõem uma parcela

da população “desconcertantemente branca”, segundo Luciana Gross Cunha e

outros (2007, p. 113)” 19.

16

Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo, Marcelo Baumann Burgos. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1007. 3ª Ed., p. 30. 17

Maria Tereza Sadek (coordenação). Associação dos Magistrados Brasileiros. Magistrados brasileiros: caracterização e opiniões, 2005, p. 8. Nessa pesquisa, os negros foram considerados em um grupo separado dos pardos, o que difere do critério utilizado pelo IBGE, em que “pretos” e “pardos” formam o grupo identificado como “negros”. Assim, o estudo mostra que os pardos são 11,6% da dos magistrados e amarelos, negros e vermelhos são 0,9%, 0,9/ e 0,1% respectivamente. 18

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política de justiça no Brasil. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 211. 19

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política de justiça no Brasil. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 211.

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Sobre a realidade de 2013, no entanto, pouco se sabe. Isso mostra que um primeiro

passo necessário e urgente é que o Conselho Nacional de Justiça implemente um

mecanismo de levantamento e divulgação de dados referentes ao perfil dos

ingressantes na Magistratura, dos magistrados que nela permanecem e dos

servidores do Judiciário.

A inexistência desses dados sistematizados pode criar a falsa noção de que as esferas

de poder brasileiras são plurais. No Brasil, até 1976, o Censo populacional não

continha o critério “cor” no levantamento do perfil da população brasileira. A

inserção desse critério permitiu constatar que “no decurso de três décadas, a

desigualdade racial permanecia no quadro de uma sociedade mais urbanizada, mais

educada e com muito maior renda do que em 1940 e 1950”20. Isso mostra a

importância de que tal informação seja incorporada aos dados oficiais, inclusive no

âmbito específico do Judiciário.

Além do perfil étnico-racial, seria interessante que o CNJ levantasse dados a respeito

da escolaridade dos pais dos magistrados, exercício ou não de outro trabalho

anterior à magistratura, formação acadêmica, mudança de estado para exercício da

profissão, entre outros. Iniciativas nesse sentido parecem estar em andamento,

como é o caso do pedido de realização do Censo do Poder Judiciário requerido no

processo nº 0006940-88.2012.2.00.0000, de relatoria do Conselheiro Jefferson Luis

Kravchychyn.

2 – A necessidade das ações afirmativas

As ações afirmativas podem ser compreendidas como ações do Poder Público

especiais e temporárias cujo intuito é eliminar desigualdades historicamente

acumuladas, garantindo igualdade de oportunidades e de tratamento em situações

em que, não existindo tal medida, haveria discriminação em função de motivos

raciais, étnicos, religiosos, de gênero, entre outros.

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Apresentação de Luis Felipe de Alencastro na audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre cotas em universidades em março de 2010.

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10

Em linhas gerais, pode-se dizer que as ações afirmativas cumprem um duplo

objetivo: de um lado, visam eliminar efeitos persistentes de uma discriminação que

tende a se perpetuar e, de outro, pretendem implementar uma maior

representatividade de grupos minoritários em diversos domínios de atividades

públicas e privadas.

Nesse sentido, a seguinte explicação é bastante clara e merece ser incorporada ao

debate, uma vez que ressalta o papel das ações afirmativas enquanto medidas

capazes de equilibrar a representatividade de grupos sub-representados e de reduzir

obstáculos que criam desigualdades, mesmo que não haja uma política oficial nesse

sentido:

“Partindo da premissa de que tais grupos normalmente não são representados

em certas áreas ou são subrepresentados seja em posições de mando e prestígio

no mercado de trabalho e nas atividades estatais, seja nas instituições de

formação que abrem as portas ao sucesso e às realizações individuais, as políticas

afirmativas cumprem o importante papel de cobrir essas lacunas, fazendo com

que a ocupação das posições do Estado e do mercado de trabalho se faça, na

medida do possível, em maior harmonia com o caráter plúrimo da sociedade.

Nesse sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da

diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as

“barreiras artificiais e invisíveis” (“glass ceiling”) que emperram o avanço de

negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial

tendente a subalternizá-los”21.

As ações afirmativas, portanto, não devem ser compreendidas apenas como

medidas retrospectivas para reequilibrar um passado discriminatório, mas também

como ações prospectivas no sentido de que podem fomentar a transformação social.

21

Joaquim Barbosa Gomes. Ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2001, p. 47.

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11

De acordo com a professora Flavia Piovesan, a igualdade pode ser entendida como

“igualdade formal” (ou seja, todos são iguais perante a lei), “igualdade material”

correspondente ao ideal de justiça social e distributiva e a “igualdade material”

enquanto reconhecimento de identidades. Enquanto na primeira a igualdade é um

ponto de partida abstrato, nas duas últimas ela é tomada como um resultado que se

pretende alcançar22.

Nesse sentido, as ações afirmativas partem de uma perspectiva de igualdade

material, entendendo que a discriminação pode ocorrer quando as pessoas são

tratadas de modo diferente em situações iguais, mas também quando são tratadas

de modo igual em condições diferentes.

Essa discriminação pode ser de duas espécies: uma ativa, que é a discriminação

clássica, e uma omissiva, que ocorre “quando os poderes públicos não tomam as

medidas indispensáveis para fazer cessar uma situação de inferioridade injusta,

inaceitável de determinados grupos sociais”23.

As ações afirmativas têm ainda um papel simbólico. Como afirmou o ministro

Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPF 186 no Supremo Tribunal Federal, “Uma

criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se

naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida”.

Um modelo possível para implementação das ações afirmativas é a reserva de

determinado percentual de vagas em um processo seletivo para um certo grupo.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da

política de reserva de vagas (ou “cotas”) para ingresso no ensino superior a partir de

um caso da Universidade de Brasília – UnB.

22

Apresentação da professora Flavia Piovesan na audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre cotas em universidade, em março de 2010. 23

Apresentação do professor Fabio Konder Comparato na audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre cotas em universidade, em março de 2010.

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12

Esse modelo tem se mostrado efetivo nas universidades brasileiras. Ele também está

presente na própria Constituição Federal, que reserva percentual dos cargos e

empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência (nos termos do art. 36,

VIII), mas é importante ressaltar que essa não é a única modalidade possível. As

próprias universidades muitas vezes combinam modelos diferentes de ações

afirmativas, como, além da reserva de vagas, o oferecimento de cursos

preparatórios especialmente voltados à população afrodescendente.

No âmbito da Administração Pública Federal, foi adotado o Programa Nacional de

Ações Afirmativas, que combina algumas possibilidades de ações afirmativas, quais

sejam:

I - observância, pelos órgãos da Administração Pública Federal, de requisito que garanta a

realização de metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas

portadoras de deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e

Assessoramento Superiores – DAS; II - inclusão, nos termos de transferências negociadas

de recursos celebradas pela Administração Pública Federal, de cláusulas de adesão ao

Programa; III - observância, nas licitações promovidas por órgãos da Administração Pública

Federal, de critério adicional de pontuação, a ser utilizado para beneficiar fornecedores que

comprovem a adoção de políticas compatíveis com os objetivos do Programa; e IV -

inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e

consultores no âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos

internacionais, de dispositivo estabelecendo metas percentuais de participação de

afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência. (Decreto 4.228, de 13 de

maio de 2002)

Desse modo, dentro desse cenário de diversas possibilidades, é importante que o

CNJ se preocupe em formular uma política que atue em várias frentes e que siga os

principais parâmetros delineados na decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF

186, quais sejam:

a) Definição de critérios que representem discriminação positiva

A ação afirmativa deve utilizar positivamente critérios que, na sociedade, são

usados para discriminar negativamente determinados grupos sociais. É nesse

sentido que o uso do temo “raça” é aplicável:

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13

“O uso do termo raça é justificável nas políticas afirmativas (...) por ser o

mesmo instrumento de categorização utilizado para a construção de

hierarquias morais convencionais não condizentes com o conceito de ser

humano dotado de valor intrínseco ou com o princípio de igualdade de respeito

(...). Se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser

utilizada para desconstruí-las”24.

Até aqui, foi utilizada a questão do preconceito racial para ilustrar uma

situação de extrema desigualdade, mas a mesma lógica se aplica a outros

grupos, como os indígenas, por exemplo.

b) Transitoriedade da política

As ações afirmativas não devem ser eternas e, mais do que isso, devem

conter mecanismos para se reavaliarem periodicamente, analisando

cuidadosamente seus resultados. A temporalidade faz sentido, uma vez que

as desigualdades são históricas e, portanto, se transformam ao longo do

tempo. Ao analisar esse tipo de medida nas universidades, o Ministro

Lewandowski estabelece a temporalidade como um parâmetro importante:

“Assim, na medida em que essas distorções históricas forem corrigidas e a

representação dos negros e demais excluídos nas esferas públicas e privadas de

poder atenda ao que se contém no princípio constitucional da isonomia, não

haverá mais qualquer razão para a subsistência dos programas de reserva de

vagas nas universidades públicas, pois o seu objetivo já terá sido alcançado”

(voto do Ministro Lewandowski, relator, na ADPF 186/STF).

c) Finalidade de eliminar a discriminação

O maior objetivo de uma política de ação afirmativa deve ser eliminar uma

discriminação presente na sociedade. Assim, a finalidade da política não deve

ser substituir uma discriminação pela outra ou inverter papeis, mas apenas

colocar as pessoas em igualdade:

24

Daniela Ikawa. Ações Afirmativas em Universidades, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, pp.105-106. Trecho citado no voto do Min. Lewandowski na ADPF 186.

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14

“Outro aspecto da questão consiste em que os programas de ação afirmativa

tomam como ponto de partida a consciência de raça existente nas sociedades

com o escopo final de eliminá-la. Em outras palavras, a finalidade última desses

programas é colocar um fim àquilo que foi seu termo inicial, ou seja, o

sentimento subjetivo de pertencer a determinada raça ou de sofrer

discriminação por integrá-la” (voto do Ministro Lewandowski na ADPF 186/STF).

d) Proporcionalidade

As ações afirmativas devem apresentar proporcionalidade entre meios e fins.

Ou seja, a medida deve ser adequada para os fins almejados, além de

necessária e proporcional em sentido estrito, devendo ser analisado se os

motivos que fundamentam a medida têm peso suficiente para justificar

eventuais limitações a outros direitos que ela possa colocar:

“Não basta, pois, como já adiantei acima, que as políticas de reserva de vagas

sejam constitucionais sob o ponto de vista da nobreza de suas intenções. É

preciso também que elas, além de limitadas no tempo, respeitem a

proporcionalidade entre os meios empregados e os fins colimados, em especial

que sejam pautadas pela razoabilidade” (voto do Ministro Lewandowski na

ADPF 186/STF).

Finalmente, cumpre ressaltar não apenas a necessidade, mas sobretudo a

possibilidade e a viabilidade da instituição de ações afirmativas no processo de

seleção para o ingresso na Magistratura. Nesse sentido, é necessário reconhecer que

o mecanismo não interfere ou produz qualquer efeito nocivo sobre a autonomia e

independência dos candidatos, nem da Magistratura como entidade pública,

ressaltando-se a compreensão de que estes são princípios que assumem o caráter

de garantias à sociedade, e não prerrogativas vinculadas à pessoa do magistrado.

Já não ecoam com a mesma força discursos que se apropriam dos princípios

constitucionais da autonomia e independência para defender posturas voltadas à

blindagem econômica, étnica, moral e cultural da Magistratura e do Judiciário.

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Isso não significa, certamente, que tais discursos não virão à tona no debate sobre a

democratização do acesso à justiça, acesso que definitivamente inclui o acesso ao

ingresso nas carreiras da Magistratura. De fato, algo que salta aos olhos a esta altura

é o fato de que a instituição de ações afirmativas constitui dimensão essencial para a

democratização do acesso à justiça no Brasil e, de maneira histórica, o CNJ tem a

oportunidade de orientar esta reconfiguração democrática para o Judiciário e a

sociedade brasileira.

3 – Ingresso na magistratura: um processo que reproduz desigualdades e mede

investimento

A discussão sobre o processo seletivo para ingresso na Magistratura no Brasil deve

partir do pressuposto de que qualquer seleção tem como base o estabelecimento de

diferenciações capazes de garantir um filtro sobre o número de pessoas inscritas

considerando o número de vagas disponíveis.

Essa diferenciação deve ser, contudo, fundada em um critério legítimo que não

reproduza desigualdades existentes na sociedade, sejam elas de raça, gênero,

orientação sexual etc.

No sistema brasileiro, a Constituição Federal, quando dispõe sobre o Poder

Judiciário, estabelece que o ingresso na carreira se dá mediante concurso público de

provas e títulos, exigindo-se do bacharel em direito no mínimo três anos de

atividade jurídica. Já a promoção se dá por antiguidade e merecimento,

alternadamente, assim como o acesso aos tribunais de segundo grau. Ainda, um

quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do

Distrito Federal e Territórios é composto por membros do Ministério Público e

advogados, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das

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respectivas classes e selecionados pelo tribunal para formação de lista tríplice que é

submetida à escolha do Poder Executivo.

O modelo brasileiro combina, portanto, o concurso público com a nomeação por

critério político. Quanto mais se sobre na hierarquia da carreira, mais presente está

o componente político da escolha, o que não significa que a escolha por concurso

meça única e exclusivamente o mérito dos candidatos.

A Resolução nº75/2009 do CNJ detalha as etapas desses concursos públicos,

estabelecendo uma primeira etapa de prova objetiva seletiva, uma segunda etapa de

duas provas escritas, uma terceira etapa composta por sindicância da vida pregressa

do candidato e investigação social, uma quarta etapa de prova oral e, por fim, a

última etapa de avaliação de títulos.

Nesse tipo de seleção, a inserção do mérito como critério tem a respeitável

finalidade de evitar privilégios e escolhas pessoais, mas pode produzir o resultado

perverso de favorecer um mesmo perfil de candidatos que, em geral, são aqueles

que não passaram pelas piores condições de exclusão e desigualdade.

Corre-se o risco de cairmos na armadilha mencionada pelo Ministro Ricardo

Lewandowski no julgamento da ADPF 186:

“De fato, critérios ditos objetivos de seleção, empregados de forma linear em

sociedades tradicionalmente marcadas por desigualdades interpessoais profundas,

como é a nossa, acabam por consolidar ou, até mesmo, acirrar as distorções

existentes”.

Em uma pesquisa que considerou a ponto de vista de magistrados paulistas, os

próprios juízes reconheceram que o grau de dedicação exigido para se ter sucesso

em um concurso está diretamente relacionado às oportunidades que a pessoa

encontrou na vida:

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“Então, o volume de conhecimento hoje pra ter sucesso num concurso, exige

muito estudo, muito preparo, os concursos são muito exigentes principalmente na

parte teórica. Se você não tiver oportunidade pra se dedicar, pra estudar, pra ficar

focado naquele projeto, então...você não vai ter êxito”25.

A referida dedicação exige um tempo do qual as pessoas que precisam garantir sua

renda muitas vezes não dispõem. Além disso, o estudo depende quase sempre do

acompanhamento de um curso preparatório, o qual tem um alto custo financeiro.

Na medida em que a seleção por meio de concurso implica em determinadas

condições de alto teor econômico para a candidatura (oportunidade e possibilidade

para dedicação exclusiva a uma atividade onerosa [curso preparatório] de médio

prazo), ela acaba fazendo um filtro daqueles que têm mais condições financeiras de

se candidatar. Em resumo, é uma seleção que mede mais investimento e menos

conhecimento. Mesmo entre aqueles que chegaram a cursar o ensino superior, a

desigualdade continua a afetá-los, como mostrado no item anterior por meio de

dados relativos a renda, trabalho, ascensão social e influência política.

A proporção de ingressantes que não frequentaram algum curso preparatório tem

decrescido a cada ano26: de 1966-70: 82,8%; de 1971-75: 63,2%; de 1976-80: 62,1%;

de 1981-85: 56,1%; de 1986-90: 40,9% e de 1991-95: apenas 34,7%.

Faltam estudos recentes sobre esse tema, porém existe o indício de que essa

tendência nos concursos públicos para ingresso na Magistratura tenha se acentuado

nos últimos anos com a proliferação dos cursos preparatórios.

Os autores da pesquisa que apresenta os dados acima afirmam que “os cursos

preparatórios para a carreira da magistratura, dadas as carências da formação

universitária, tornaram-se praticamente uma condição para o acesso a ela” e ainda

25

Maria da Gloria Bonelli. Profissionalismo e diferença de gênero na magistratura paulista. Civitas, Porto Alegre v. 10 n. 2, maio-ago. 2010, p 284. 26

Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo, Marcelo Baumann Burgos. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1007. 3ª Ed., p. 180.

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destacam as consequências dessa situação: “esses cursos vão se constituindo em

uma verdadeira continuação da preparação acadêmica, importando ônus em termos

de tempo e de custos, dificilmente compatíveis com os recursos disponíveis pelos

candidatos originários de famílias mais pobres” 27. Entre os candidatos do estrato

social mais baixo, mais da metade não tem condições de frequentar um curso

preparatório.

Outro dado que vem crescendo ao longo dos anos diz respeito ao número de

pessoas que ingressam na Magistratura após mais de uma tentativa. Em 1975-76,

81% dos aprovados não haviam tentado ingressar na carreira anteriormente. Já em

1993-94, apenas 27,3% dos aprovados estavam nessa situação.

Outro ponto problemático desse processo de seleção diz respeito à aplicação de

entrevistas individuais, que muitas vezes ocorrem de forma secreta e abordam

perguntas pessoais relativas à família, casamento, orientação sexual etc. Do mesmo

modo, a entrevista individual pode produzir efeitos no que diz respeito à dimensão

racial.

Recentemente, instaurou-se uma polêmica em torno das entrevistas realizadas pelo

Tribunal de Justiça de São Paulo. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, um juiz

assessor da presidência do Tribunal associou esse tipo de questão à necessidade de

se conhecer melhor os candidatos:

“A banca não pode indagar ao candidato a sua religião? Se ele for um fanático, um

intolerante religioso, sua imparcialidade não estaria seriamente comprometida?

Indagá-lo sobre sua estrutura familiar é desarrazoado? Não se trata de

preconceito, mas de identificar quem é o candidato que deseja ser juiz e as razões

que o movem”28.

27

Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo, Marcelo Baumann Burgos. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1007. 3ª Ed., p 181. 28

Folha de São Paulo, Nem só de técnica se faz um juiz, Rodrigo Capez, 2/10/12.

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Acontece que essas perguntas nada tem a ver com melhores ou piores condições de

se desempenhar bem a função de magistrado. Na verdade, buscam selecionar um

determinado perfil a partir de uma lente que, muitas vezes, pode ser moral ou

ideológica. Um estudo baseado em entrevistas com magistrados conclui que a

chamada “investigação social” que se dá, entre outros, por meio da entrevista, busca

identificar características como discrição e “bons costumes”:

“Ao contrário da ambivalência registrada nos sinais emitidos sobre o feminino e a

feminilidade, sobre a sexualidade ecoa a mesma mensagem: o tribunal é

conservador, as bancas obtêm informações sobre os candidatos e não aprovariam

se houvesse referência a uma postura que torna visível a diferença como

identidade proclamada ou como comportamento destoante. Menciona-se o

conhecimento de poucos colegas gays e é ainda menor a referência a colegas

lésbicas. Obtido o ingresso na carreira, a discrição é o caminho, já que a conduta e

a baixa produtividade seriam os aspectos que deixariam um juiz ou uma juíza

vulnerável na magistratura”29.

Vê-se que pode existir uma forte relação entre as modalidades de seleção dos juízes

e o perfil de juiz escolhido, incluindo sua percepção sobre seu papel e sua concepção

política do corpo judicial como um todo30.

Pode-se dizer, portanto, que o processo de exclusão baseado em fatores que não

apenas o conhecimento de conteúdo se dá em duas dimensões: nas próprias

exigências impostas para êxito no concurso e nos fatores subjetivos que podem vir a

influenciar na escolha por este ou aquele perfil de magistrado.

Assim, a adoção de ações afirmativas no Poder Judiciário passa necessariamente

pela reformulação do método de seleção de magistrados, evitando condições e

exigências que acirrem ou reproduzam desigualdades, tais como: a necessidade de

dedicação integral aos estudos em um período de médio a longo prazo, a

29

Maria da Gloria Bonelli. Profissionalismo e diferença de gênero na magistratura paulista. Civitas, Porto Alegre v. 10 n. 2, maio-ago. 2010, p 286. 30

Claudia Rosane Roesler. Repensando o Poder Judiciário: os sistemas de seleção de juízes e suas implicações, p. 5629. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/claudia_rosane_roesler.pdf

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impossibilidade de êxito sem um curso preparatório oneroso e as entrevistas com

questões relativas à vida pessoal.

Por fim, tendo em vista as diversas questões envolvidas no estudo em

desenvolvimento pelo Conselho Nacional de Justiça e a necessidade de um amplo

debate acerca do tema para que se chegue ao melhor desenho possível dessa

política de ações afirmativas, faz-se necessário incorporar à discussão diversos

setores da sociedade, como bem pontua o pedido de realização de consulta pública

da articulação Justiça e Direitos Humanos - JusDh anexado ao presente parecer.

Pelo exposto, requer-se a Vossa Excelência:

(i) A juntada do presente parecer, que responde ao ofício 10.584 (BF),

aos autos da Comissão n° 0006755-50.2012.2.00.0000;

(ii) A juntada do ofício da articulação Justiça e Direitos Humanos -

JusDh, que segue anexo a este parecer, aos autos do mesmo

processo.

São Paulo, 24 de fevereiro de 2013

Flávia Xavier Annenberg Rafael Carlsson Gaudio Custódio

OAB/SP nº 310.355 OAB/SP nº 262.284