ao arrepio

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AO ARREPIO

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Chamada ‘Bíblia do Decadentismo’, da autoria de Joris-Karl Huysmans e traduzida por Daniel Jonas.

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AO ARREPIO

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Título original: À Rebours

© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008Todos os direitos reservados

ISBN: 978-972-795-273-1

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Joris-Karl Huysmans

Ao Arrepio

Tradução

de

Daniel Jonas

Livros Cotovia

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Devo regozijar-me para lá dos confinsdo tempo... ainda que o mundo sejaavesso ao meu regozijo, e na sua grosserianão saiba o que digo.

Ruysbrœck o Admirável

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PRÓLOGO

A julgar pelos poucos retratos preservados no Châteaude Lourps, a linhagem de Floressas des Esseintes havia con-sistido, em dias idos, em guerreiros másculos e cavaleiros deaspecto feroz. Confinados ao aperto daquelas velhas moldu-ras que lhes prensavam os amplos ombros, possuíam olharesimplacáveis e assustadores, bigodes em forma de iatagãs, pei-torais arqueados cabendo em cheio na concha das suas cou-raças.

Esses eram os ascendentes. Faltavam os retratos dos seusdescendentes. Havia uma lacuna na fileira de rostos dessa raça.Apenas uma tela servia de intermediário, de ponto de suturaisolado entre passado e presente: uma cabeça misteriosa ematreira, de traços sem vida e abatidos, as maçãs do rostoacentuadas com um toque de maquilhagem, cabelo com bri-lhantina, mosqueado de pérolas, o colo contraído e pintado,saindo das caneluras de um rígido colarinho de pregas.

Neste retrato de um dos mais antigos favoritos do Duqued’Épernon e do Marquês d’O, os vícios do temperamentodebilitado e a predominância de linfa no sangue eram já apa-rentes.

Era claro que a decadência desta casa antiga seguira umcurso normal e inevitável; os machos foram-se tornando cadavez mais efeminados, e, para completar a obra do tempo, osdes Esseintes foram-se unindo entre si, ao longo dos séculos,em casamento, desperdiçando o resto do seu vigor na consan-guinidade.

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Dessa família, antes tão numerosa que ocupava pratica-mente todo o território da Ile-de-France e de Brie, restava ape-nas um rebento, o Duque Jean, um homem frágil com os seustrinta anos, anémico e nervoso, de faces cavas, olhos frios deum azul-aço, nariz direito mas com narinas dilatadas, e mãossecas e esguias.

Por um estranho fenómeno de atavismo, o último descen-dente assemelhava-se ao seu antepassado, o eterno benjamim,na barba pontiaguda de um alourado extraordinariamentepálido e na expressão ambígua, a um tempo enfastiada eesperta.

A sua infância fora lúgubre. Propenso a escrófulas e aba-tido por febres obstinadas, conseguiu, apesar de tudo, com aajuda de ar fresco e de cuidados extremosos, superar os esco-lhos da nubilidade, quando, refeito, o seu sistema nervoso foijá capaz de lidar com os langores e os abandonos da clorose econduzir o crescimento ao seu pleno desenvolvimento.

A mãe, uma mulher alta, silenciosa e descorada, morreude fraqueza; por sua vez, o pai sucumbiu de uma doença inde-terminada; des Esseintes chegava então aos seus dezasseteanos.

Não guardou dos pais mais do que uma recordação assus-tada, divorciada de afeição ou gratidão. Ao pai, que residianormalmente em Paris, conhecia-o mal; da mãe lembrava-sede estar deitada imóvel no retiro de um quarto escuro do Châ-teau de Lourps. Raramente marido e mulher se juntavam, e osseus encontros eram frios e cinzentos, com pai e mãe sentadosem frente um do outro diante de uma mesinha de centro ilu-minada unicamente por um candeeiro com um grande e densoquebra-luz, pois que a Duquesa não podia suportar claridadee ruído sem recorrer a uma crise de nervos; na sombra, tro-cava-se uma ou duas palavras a custo, depois o Duque levan-tava-se friamente e atirava-se a todo o vapor para o primeirocomboio.

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No colégio de Jesuítas, para onde o pequeno Jean foi des-pachado, a sua existência tornou-se mais benévola e mais doce.Os Padres mimaram esta criança que espantava pela inteligên-cia; mas, a despeito dos seus esforços, não conseguiram que elese dedicasse a um programa de estudos disciplinado; ele tinhagosto em certas actividades, adquiriu um domínio prematurodo latim, mas, em contrapartida, era absolutamente incapaz dese entender com umas poucas palavras de grego e não mostravaqualquer aptidão para as línguas vivas, mostrando, sim, umacompleta obtusidade no que tocava a encaixar os princípiosmais básicos de ciência.

A família ralava-se pouco; de tempos a tempos recebia avisita de seu pai: “Olá, adeus, juízo, veja lá se se aplica.” Asférias do Verão ia passá-las ao Château de Lourps; a sua pre-sença não acordava a mãe dos seus devaneios; ela mal dava porele lá, contemplando-o durante alguns segundos com um sor-riso quase doloroso para depois se entregar de novo à noitefactícia com que os espessos cortinados das janelas envolviamo seu quarto.

Os criados eram enfadonhos e velhos. O rapaz, abando-nado a si próprio, folheava alguns livros nos dias de chuva eerrava pelas tardes soalheiras do campo.

O seu maior gozo era ir descendo pelo valezinho atéJutigny, uma vila plantada no sopé das colinas, um pequenoamontoado de casinhas com uns chapéus de colmo, juncadosde tufos de saião e ramalhetes de musgo. Ele deitava-se noprado, à sombra das altas medas, escutando o barulho surdodas azenhas, sorvendo o ar fresco do Voulzie. Por vezes ia atéàs turfeiras, até ao lugarejo verde, escuro de Longueville, outrepava às encostas das colinas varridas pelo vento de onde avista era imensa. Ali, tinha de um lado, debaixo dele, o vale doSena, fugindo do olhar e confundindo-se com o azul do céu aolonge; do outro, lá no alto do horizonte, as igrejas e a torre deProvins pareciam tremer ao sol na pulverulência dourada do ar.

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Lendo ou sonhando, embebia-se em solidão até ao anoi-tecer; de tanto meditar nos mesmos pensamentos, o seu espí-rito concentrou-se e as suas ideias ainda indecisas amadurece-ram. A seguir a cada período de férias, voltava aos seus mestresmais reflectido e mais obstinado. Essas mudanças não lhesescapavam. Perspicazes e retorcidos, habituados de ofício asondar o mais profundo da alma, não eram ludibriados poresta inteligência viva mas intratável. Eles percebiam que jamaiseste seu pupilo haveria de contribuir para a glória da suaescola, e como a sua família era rica e parecia desinteressadano futuro dele, renunciaram rapidamente a encaminhá-lo paraescolas com elevados horizontes de expectativa profissional; epor mais que lhes mostrasse todo o empenho em debater comeles as doutrinas teológicas que lhe chamavam a atenção pelasua subtileza e argúcia, não lhes passava pela cabeça prepará--lo para entrar na Ordem, pois que apesar dos seus esforços asua fé continuava débil. Em último recurso, por prudência,por medo do desconhecido, eles deixavam-no trabalhar nasdisciplinas que lhe agradassem em prejuízo de outras, não que-rendo alienar esse espírito independente submetendo-o às pir-raças de formadores laicos.

Vivia assim perfeitamente feliz, mal sentindo o jugo pater-nal dos padres. Continuou os estudos latinos e franceses a seubel-prazer, e, ainda que a teologia não fizesse parte do seu pro-grama de estudos, ele retomou a aprendizagem dessa ciênciaque tinha começado no Château de Lourps, na bibliotecalegada pelo seu tio-bisavô Dom Prosper, um antigo prior doscónegos regulares de Saint-Ruf.

O momento chegara, contudo, em que era forçoso deixara instituição dos Jesuítas; atingira a maioridade e era agorasenhor da sua fortuna. O seu primo e tutor, o Conde de Mont-chevrel, fez-lhe uma estimativa das suas posses. As suas rela-ções foram pouco duradouras porque não podia haver pontode contacto entre eles, já que um era jovem, o outro velho. Porcuriosidade, por ociosidade, por educação, des Esseintes che-

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gou a frequentar a casa da família do Conde e a passar longasnoites naquele seu palacete da Rue de la Chaise, onde paren-tes suas, velhas como o mundo, se entretinham a conversarsobre esquarteladuras, luas heráldicas e cerimoniais ultrapas-sados.

Mais do que as viúvas nobres, os homens reunidos emtorno da mesa de whist revelavam-se eternas nulidades; ali, osdescendentes dos denodados de outrora, as antigas vergônteasda genealogia feudal, apareciam a des Esseintes na figura develhadas catarrosos e maníacos, repisando insípidos discursose frases centenárias. Tal como ocorre com um talo cortado deum feto, uma flor-de-lis parecia ser a única coisa gravada napolpa amolecida desses crânios decrépitos.

O jovem sentiu uma compaixão inexprimível por aquelasmúmias amortalhadas nos seus hipogeus ao estilo Pompadourcom os seus revestimentos rococó, por aquelas lesmas enfado-nhas que viviam de olho constantemente pregado numa vagaCanaã, numa Palestina imaginária.

Depois de alguns serões ali passados, resolveu-se, nãoobstante os muitos convites e outras tantas censuras, a não pôrmais os pés naquele lugar.

Começou a dar-se então com gente da sua idade e do seumundo.

Uns, educados como ele em internatos religiosos, aindamantinham a marca distintiva de tal educação. Iam aos servi-ços litúrgicos, comungavam na Páscoa, frequentavam os círcu-los católicos e, baixando os olhos, escondiam-se como de umcrime dos assaltos que faziam a meninas. Era gente, na maiorparte, com boa aparência, mas estúpida e submissa, uns mise-ráveis bem sucedidos que esgotaram a paciência dos professo-res, mas que em todo o caso lá conseguiram satisfazer a von-tade destes de verem depositar-se na sociedade criaturasobedientes e pias.

Outros, educados em colégios do estado ou em liceus,eram menos hipócritas e mais livres, mas nem por isso mais

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interessantes ou menos estreitos. Eram estroinas, doidos poroperetas e por corridas, jogadores de lansquené e bacará, queapostavam fortunas nos cavalos, nas cartas, em todos os pra-zeres caros a cabeças ocas. Após um ano de experimentação,um imenso cansaço foi o que ficou dessa comandita de exces-sos baixos e fáceis, cometidos sem discernimento, sem umarrebatamento, sem qualquer sobreexcitação no sangue e nosnervos.

A pouco e pouco, foi-se desviando deles, aproximando-sede homens de letras junto de quem esperava encontrar maisafinidades e sentir-se mais à vontade. Novo logro; ficou revol-tado com as suas opiniões rancorosas e mesquinhas, com assuas banalidades de porta de igreja, com as suas discussõesenjoativas e a sua tendência para avaliar livros em função dassuas vendas e do número de edições. Ao mesmo tempo passoude relance por livres-pensadores, doutrinadores da burguesia,gentes que reclamavam todas as liberdades de modo a pode-rem estrangular as opiniões dos outros, puritanos ávidos e des-carados que, a seu ver, e no que toca à educação, não chega-vam às solas do sapateiro da esquina.

O seu desprezo pela humanidade recrudesceu; finalmentechegou à conclusão de que o mundo era composto por sacri-pantas e imbecis. Decididamente não tinha nenhuma espe-rança de descobrir em outrem as mesmas aspirações e as mes-mas aversões, nenhuma esperança de se associar a umainteligência que se comprazesse, como a dele, numa estudiosasenescência, nenhuma esperança de se juntar a um espíritopicuinhas e burilado como o seu, próprio de um escritor ou deum letrado.

Irritadiço, desconfortável, indignado pela insignificânciadaquela negociata de ideias, foi-se tornando aquele tipo depessoas resumida em Nicole, as que são dolorosas por todo; asua pele sensível e sofrida esfolava com as constantes frioleirasdebitadas em nome do patriótico e do social pelos jornais damanhã, e os sucessos que um público todo-poderoso reserva

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sempre e invariavelmente a obras desprovidas de ideias e deestilo achavam nele um empolamento e uma ressonância des-mesurados.

Já aspirava a uma tebaida refinada, a um deserto acolhe-dor, a uma arca imóvel e agradável onde se refugiar longe dodilúvio incessante da estupidez humana.

Uma paixão apenas, a mulher, poderia retê-lo nesse des-dém universal que o atormentava, mas até mesmo essa estavagasta. Ele provou do festim carnal com um apetite de homemsujeito a acessos, tomado de malacia, consumido de fomecanina mas a quem um palato enfraquecido e embotadodepressa traiu; nos tempos em que privava com a fidalguiarural, participou em demorados repastos onde, à sobremesa,mulheres bebidas até não poderem mais se desacolchetavam ebatiam com a cabeça na mesa; frequentou igualmente os bas-tidores do teatro onde experimentou actrizes e cantoras, masonde teve ainda de suportar, para além da inata burrice dasmulheres, a vaidade delirante dos cabotinos; depois entretevemeninas já de fama, contribuindo para a fortuna de agênciasque forneciam, mediante um tanto, prazeres questionáveis;enfim, saciado e cansado de luxos sempre iguais, de caríciassempre as mesmas, mergulhou nas pocilgas da sociedade,esperando revitalizar os seus desejos por contraste, cuidandoestimular os seus sentidos adormecidos através da excitanteindecência da imundície.

Por muito que tentasse, sempre um enfado que o oprimiase instalava. Assanhou-se, recorreu à ternura profissional eousada da virtuosa, mas então a sua saúde degradou-se e o seusistema nervoso exacerbou-se; a nuca já lhe andava sensível ea mão tremia-lhe; ainda fiável quando se tratasse de agarrarum objecto pesado, mas capricante e pendente quando haviaque equilibrar coisas leves como um pequeno copo.

Os médicos que consultou assustaram-no. Era altura deparar com aquela vida, de renunciar a essas práticas que lheprostravam as forças. Durante uns tempos andou tranquilo;

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mas cedo o cerebelo se exaltou e de novo incitou às armas. Talcomo rapariguinhas nas vascas da puberdade, ao ansiarem porcomidas alteradas ou abjectas, ele começou a ansiar por actosinvulgares e depois a comer de gozos desviantes; era o fim:como que satisfeitos de terem esgotado todos os recursos,como que esfalfados de esforço, os seus sentidos caíram emletargia e a impotência adivinhava-se.

Voltou a si, sóbrio, abandonado, horrivelmente cansado,implorando um fim que só a indolência do seu corpo impedia.

As suas ideias de se encolher a um canto, afastado domundo, de se calafetar num retiro, de abafar o tumulto contí-nuo e inexorável da vida, tal como se abafa a palha os ruídosda rua para se proteger o sossego de gente enferma, ganhavamforça redobrada.

Em todo o caso, era tempo de se decidir; o estado das suasfinanças era assustador; gastara a maior parte do seu patrimó-nio em folias e patuscadas, e o resto, investido em proprieda-des, não lhe trazia um retorno que passasse o irrisório.

Decidiu-se a vender Lourps, ao qual não o prendianenhum laço emocional ou memória grata, para além de quesimplesmente já não o usava; liquidou igualmente os outrosbens e adquiriu títulos do tesouro; reuniu assim um rendi-mento anual de cinquenta mil francos e pôs também de parteuma soma significativa destinada a mobilar a casita onde espe-rava banhar-se numa definitiva quietude.

Pesquisou os arredores da capital e descobriu um casebrepara venda, no cimo de Fontenay-aux-Roses, num sítio iso-lado, sem vizinhos, próximo do forte. O seu sonho fora aten-dido; neste lugarejo pouco tocado pelos parisienses, tinha acerteza de estar a salvo; a dificuldade das comunicações,pouco obviadas por um ridículo caminho-de-ferro que paravado outro lado da vila e por pequenas tranvias que pareciampartir e funcionar quando queriam, dava-lhe a confiançanecessária. Imaginando a nova existência que ele procuravaobter, experimentou um contentamento tão mais real quanto

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já se via ali a seco naquela riba, longe o suficiente para estar asalvo da torrente ameaçadora de Paris, perto o suficiente parasentir uma solidão torrencial. E, com efeito, dado que bastahaver a impossibilidade de se estar num lugar para que logoum desejo de lá se chegar nos consuma, havia boas possibili-dades, ao poupar-se a um corte radical na estrada, de não serassaltado por qualquer recaída de sociedade, por quaisquerarrependimentos.

Pôs as mãos de pedreiros à obra na casa que adquiriu, edepois, bruscamente, um dia, sem dar satisfações a ninguémdos seus planos, desembaraçou-se da sua velha mobília, des-pediu a criadagem e desapareceu, sem deixar qualquermorada com o porteiro.

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Mais de dois meses passaram antes que des Esseintespudesse imergir na paz e no silêncio da sua casa de Fontenay;toda a espécie de compras obrigava-o ainda a deambular pelasruas de Paris, palmilhando a cidade de fio a pavio.

E, contudo, a que aturadas pesquisas não se entregou, aque elucubrações não se dedicou, antes de poder confiar o seular a decoradores!

Há muito se especializara na arte de distinguir o que é sin-cero nas tonalidades do que é capcioso. Em outros tempos,quando ainda recebia mulheres, concebera uma câmara onde,entre finas mobílias esculpidas na pálida cânfora do Japão, sobuma espécie de dossel cetim rosa da Índia, os corpos recebiamum doce rubor da luz que hábil se infiltrava nos tecidos.

Esse quarto, onde espelhos se espelhavam e reflectiamuma série infinita de aposentos róseos nas paredes, fora um diafamoso entre as meninas que um dia ensoparam a sua nudeznestes banhos de ardor rúbeo, perfumados pelo aroma a hor-telã-pimenta exalado das madeiras da mobília. Mas, pondomuito embora de parte os benefícios de tão artificial atmos-fera, que parecia transfundir sangue novo em peles cansadas egastas pelo abuso da cerusa e das noites, ele experimentara,naquele ambiente langoroso, satisfações pessoais, prazeresredobrados, estimulados, num certo sentido, por lembrançasde aflições passadas, de dissabores ultrapassados.

Assim, num gesto de desprezo desprendido de uma pro-funda aversão à sua infância, pendurara no tecto deste apo-

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sento uma pequena gaiola de arame de prata, de onde um grilorecluso crilava, tal como haviam crepitado os grilos das cinzasdos fogões de sala do Château de Lourps; quando escutavaeste canto tanta vez ouvido, todas aquelas noites mudas e sufo-cadas na casa de sua mãe, todo aquele abandono de umajuventude sofredora e reprimida se desprendiam da sua clau-sura, e então, nos abanões da mulher que mecanicamente aca-riciava, cujas palavras ou gargalhadas interrompiam a sua visãoe o traziam abruptamente de volta à realidade, ao quarto, àterra, um tumulto se apoderava de sua alma, uma necessidadede vingança pelas vicissitudes suportadas, um instinto demacular estas recordações familiares, um desejo furioso de sedeitar, ofegante, em almofadas de carne, de consumir até àúltima gota os mais ferozes e amargos excessos carnais.

E outras vezes ainda, quando a prostração o oprimia,quando em outonos chuvosos o nojo das ruas, da sua própriacasa, do céu barrento e amarelado, das nuvens alcatroadas, oassaltava, refugiava-se no seu abrigo, agitando ligeiramente agaiola, olhando as suas reflexões num jogo de espelhos infi-nito, até que os seus olhos intoxicados se apercebessem de quea gaiola não se movia de todo, mas antes o quarto inteiro,girando, rodopiando, enchendo a casa com a sua valsa cor-de--rosa.

Mais tarde, durante o tempo em que entendeu necessárioconcentrar em si todas as suas atenções, des Esseintes sentiutambém necessidade de criar decorações pomposas e singula-res, dividindo o seu salão numa série de nichos, diversamenteatapetados e harmonizados por subtis analogias, por relaçõesindeterminadas de tons, vivos ou sombrios, delicados ou bár-baros, segundo o carácter das obras latinas e francesas quetanto apreciava. Instalava-se então num desses nichos cujadecoração melhor lhe parecesse corresponder à própria essên-cia da obra que o capricho do momento o levara a ler.

Por fim, tratou de preparar uma sala alta destinada a rece-ber os seus fornecedores; entrariam, sentar-se-iam uns ao lado

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dos outros em estalas de igreja, e ele subiria a um púlpitomagistral e pregaria sermões sobre dandismo, exortando osseus sapateiros e os seus alfaiates a conformarem-se, damaneira mais escrupulosa, às suas breves em matéria de corte,ameaçando-os com excomunhões pecuniárias caso não seguis-sem à letra as instruções contidas nas suas admoestações e nassuas bulas.

Tinha adquirido a reputação de excêntrico, reputaçãoessa que rematava com fatos de veludo branco e coletes bor-dados a ouro, pondo, em lugar de gravata, um ramalhete devioletas de Parma no decote chanfrado de uma camisa. Eratambém o tempo em que costumava receber homens de letraspara jantares muito comentados, um em particular, uma cópiade um banquete do século dezoito, onde, a fim de celebrar amais fútil das desventuras, organizou um repasto fúnebre.

A sala de jantar forrada a negro abria para um jardimtransformado do dia para a noite com áleas polvilhadas de car-vão, o seu pequeno lago agora orlado com basalto e cheio detinta com sebes de ciprestes e pinheiros. O jantar foi servidosobre uma toalha negra, decorada com açafates de violetas esaudades, iluminada por candelabros onde bruxuleavam luzesverdes e por castiçais onde ardiam círios.

Enquanto uma orquestra escondida entretinha os seusconvivas com marchas fúnebres, mulheres negras despidas,calçando chinelas e meias de fio de prata, semeadas com lágri-mas, faziam as vezes de criadas.

Em pratos bordados de negro servia-se sopa de tartaruga,pão de centeio russo, azeitonas maduras da Turquia, caviar,ovas de mugem, morcelas fumadas de Frankfurt, caça nummolho cor de extracto de alcaçuz e graxa, caldo de trufas,natas ambreadas de chocolate, pudim inglês, nectarinas, com-potas de fruta, amoras e ginjas-garrafais; e de bebidas, emcopos escuros, os vinhos de Limagne e Rousillon, Tenedos, Valde Peñas, Porto; e a seguir ao café e ao licor de casca de noz akwass, a porter e a stout.

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Os convites para este jantar oferecido em memória davirilidade temporariamente finada do seu anfitrião assemelha-vam-se em tudo a cartas a participar um enterro.

Mas estas extravagâncias que foram outrora a sua glóriaeram coisa do passado; agora sentia desprezo por essas osten-tações pueris e desusadas, por esse vestuário insólito, por essabizarra decoração de interiores. Agora desejava apenas chegar,para seu prazer pessoal e não mais para espanto alheio, a umdomicílio mais íntimo e confortável, ainda que nem por issomenos excepcional, um retiro singular e tranquilo, apropriadoàs necessidades da sua solidão futura.

Quando, finalmente, Fontenay se deu por pronta e asintervenções do arquitecto mostravam ter seguido à risca ostrâmites dos seus desejos e planos; quando já não faltava senãodeterminar a decoração e a mobília, de novo ele, e com consi-derável morosidade, passou em revista uma gama completa decores e respectivas gradações.

A sua preocupação girava em torno de cores cuja expres-são se afirmasse à luz artificial de candeeiros; pouco lhe impor-tava se à luz do dia parecessem insípidas ou rudes, já que erade noite que ele realmente vivia, crendo que se está melhor noabandono da nossa casa, e que o espírito apenas desperta e seaclara quando em comunhão com as sombras da noite; sentiaum gozo particular num quarto bem iluminado, em ser o únicoacordado e a pé, no meio de casas adormecidas e apagadas,uma espécie de prazer que talvez incluísse um toque de vai-dade, uma satisfação anormal, como aquela que é experimen-tada por trabalhadores em horas extraordinárias, tardias,quando, ao afastarem as cortinas das janelas, verificam quetudo à volta deles está apagado, tudo está mudo, tudo estámorto.

Vagarosamente experimentava, um a um, os tons.O azul é quase um falso verde à luz das velas; se é escuro,

como o cobalto ou o indigo, torna-se negro; se é claro, apro-

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xima-se do cinzento; um sincero e doce azul, como o turquesa,empalidece e arrefece.

Assim, a menos que fosse associado a outra cor, à laia decoadjuvante, o azul não poderia ser o tom dominante numquarto.

Por outro lado, os cinzentos-ferro tornam-se ainda maispesados e carrancudos; os cinzentos-pérola perdem o seu azulceleste e metamorfoseiam-se em branco sujo; os castanhospõem-se letárgicos e frios; quanto aos verdes escuros, tal comoo verde-imperador e o verde-murta, comportam-se como osazuis e confundem-se com os pretos; ficam, pois, os verdesmais pálidos, como o verde-pavão, os cinábrios e as lacas, masaí a luz lava-lhes o azul, deixando somente os amarelos, porsua vez falsos e turvos.

E os salmões, os maíses e os rosas estão fora de questão,pois o seu carácter efeminado contrariaria pensamentos inspi-rados pelo isolamento; nem tampouco se equacione os viole-tas, que se estiolam; só o vermelho resiste, e que vermelho!Um vermelho com um v de viscoso, de vulgar, de vinho; masainda assim lhe parecia inútil recorrer a tal cor, já que bastaingerir-se santonina em doses apropriadas para se ver violetaem tudo, sendo assim fácil alterar o tom do forrado das pare-des sem precisar de lhe tocar.

Afastadas estas cores, apenas três sobravam: o vermelho,o laranja, o amarelo.

De entre todas preferia o laranja, assim confirmando peloseu próprio exemplo a verdade de uma teoria que declarava deuma exactidão quase matemática: a saber, que existe uma har-monia entre a natureza sensual de um artista verdadeiro e a corque os seus olhos vêem da forma mais pronunciada e signifi-cativa.

Com efeito, se ignorarmos o comum dos mortais cujasretinas grosseiras não discernem nem as cadências particularesde cada cor nem os encantos misteriosos das suas gradações edas suas subtilezas; se ignorarmos igualmente os olhos bur-

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gueses, insensíveis à pompa e ao triunfo de tons vibrantes eenérgicos; se apenas considerarmos aquele que se pode jactarde possuir pupilas refinadas, exercitadas pela literatura e pelaarte, parecer-nos-á evidente que o olho desse indivíduo queaspira ao ideal, que anela a ilusões, que procura algum mis-tério na cama, é geralmente atraído pelo azul e seus deri-vados, como a malva, o lilás, o cinzento-pérola, contanto quepermaneçam ternos e não passem a fronteira onde perdem a identidade e se assumem como puros violetas e cinzentosfrancos.

Em comparação, os que agem à bruta, os pletóricos, osbelos sanguíneos, os machos sólidos que não se prendem comos preliminares nem com os incidentes acessórios e perdem acabeça e se precipitam, esses, na sua maior parte, comprazem--se no clarão cegante dos amarelos e dos vermelhos, nas estri-dências dos vermelhões e dos cromos que os cegam e os into-xicam.

Por último, os fracos e os nervosos cujo apetite sensualpede iguarias apuradas pela fumagem e pela salmoura, ossobreexcitados e hécticos prezam, quase sem excepção, essacor irritante e achacada, com os seus esplendores artificiais eos seus febris ácidos: o laranja.

A escolha de des Esseintes não admitia assim a menordúvida. Todavia permaneciam ainda incontestáveis dificulda-des. Se o vermelho e o amarelo se magnificam à luz das velas,o mesmo não é sempre verdade com o seu composto, o laranja,que se inflama e amiúde se transforma num vermelho-fogo,num vermelho-fogo desmaiado.

Ele estudara todas essas mudanças à luz das velas, e des-cobriu uma que lhe parecia garantir uma certa estabilidade,não frustrando as expectativas em torno dela; terminados osprolegómenos, decidira evitar, pelo menos no que ao seu estú-dio dizia respeito, tecidos e tapetes orientais, tornados, agoraque comerciantes endinheirados os compravam com descontonos armazéns de novidades, fastidiosos e vulgares.

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Resolveu-se, no fim de contas, a forrar as suas paredescomo os livros, em marroquim, com gorgorões, usando peledo Cabo, calandrada por duras placas de aço, sob uma forteprensa.

Uma vez adornados os lambris, mandara pintar as mol-duras e os altos plintos de um indigo carregado, lacado, seme-lhante àquele que os cocheiros aplicam nos painéis das car-ruagens, e o tecto, levemente abobadado, igualmente forradode marroquim, mostrava, como uma imensa clarabóia engas-tada na sua pele de laranja, um círculo de firmamento de umazul-real seda no centro do qual serafins de prata, gravados hámuito tempo pela confraria dos tecelões de Colónia para umacapa, batiam as suas asas em plena ascensão.

Quando tudo ficou pronto e no seu devido lugar, o efeitoera, à noite, harmonioso, e todos os temperamentos se conci-liavam; o azul dos revestimentos, agora estáveis, era sustentadoe como que aquecido pelos laranjas, enquanto estes, por seuturno, mantinham a sua integridade apoiados e, de algumaforma, atiçados pela proximidade insistente dos azuis.

No que toca à mobília, des Esseintes não tinha grandespesquisas a fazer, consistindo o único luxo daquele quarto emlivros e flores raras; mais tarde haveria de decorar o revesti-mento despido com alguns quadros e alguns desenhos; maspor ora contentava-se em instalar prateleiras e estantes deébano na maior parte das paredes, a espalhar peles de animaisselvagens e pele de raposa azul pelo parquê, e a colocar juntoa uma mesa maciça de cambista quatrocentista fundas poltro-nas de orelhas e um velho púlpito de capela, em ferro forjado,uma dessas estantes de coro antigas onde outrora o diáconodispunha o antifonário e que agora sustentava um dos pesadosin-fólios do Glossarium mediae et infimae latinitatis de DuCange.

As janelas, cujas vidraças fendidas, azuladas, empoladascom fundos de garrafa e proeminências mosqueadas de dou-rado, não permitiam a vista para o campo e apenas permitiam

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Page 23: Ao Arrepio

uma luz simulada, revestiam-se, por seu turno, de cortinas fei-tas de antigas estolas, cuja urdidura dourada e fumada seextinguia na trama de um ruivo quase morto.

Finalmente, sobre a lareira cujo exterior fora favorecidocom um sumptuoso estofo de uma dalmática florentina, entredois ostensórios de estilo bizantino em cobre dourado prove-nientes da antiga Abbaye-au-Bois de Bièvre, estava um cânoneeclesiástico maravilhoso com três compartimentos separados,trabalhado como uma renda, contendo, sob o vidro do seu cai-xilho, copiadas em velino genuíno, três obras de Baudelaireem letra de missal admirável e esplêndidas iluminuras: àesquerda e à direita, os sonetos: ‘La Mort des Amants’, ‘L’En-nemi’, e no centro um poema em prosa: ‘Anywhere out of theworld’.

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