antologia textos 2014-15

16
1 TEORIA DO GOSTO LITERÁRIO 2014-2015 Prof. Doutora Joana Matos Frias Antologia de textos

Upload: claudiasilva

Post on 13-Dec-2015

221 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

lllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll

TRANSCRIPT

Page 1: Antologia Textos 2014-15

1

TEORIA DO GOSTO LITERÁRIO2014-2015

Prof. Doutora Joana Matos Frias

Antologia de textos

Page 2: Antologia Textos 2014-15

2

O POEMA

Um poema como um gole d’água bebido no escuro.Como um pobre animal palpitando ferido.Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.

Triste.Solitário.Único.Ferido de mortal beleza.

Mário Quintana

A minha Musa antes de sera minha Musa avisou-mecantaste sem saberque cantar custa uma línguaagora vou-te cortar a línguapara aprenderes a cantara minha Musa é cruelmas eu não conheço outra.

Adília Lopes

Page 3: Antologia Textos 2014-15

3

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedidodo lirismo comportadoDo lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universaisTodas as construções sobretudo as sintaxes de exceçãoTodos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namoradorPolíticoRaquíticoSifíliticoDe todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

Quero antes o lirismo dos loucosO lirismo dos bêbedosO lirismo difícil e pungente dos bêbedosO lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

Page 4: Antologia Textos 2014-15

4

De resto não é lirismoSerá contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

O OFÍCIO

Recomeço.Não tenho outro ofício.

Entre o pólen subtile o bolor da palha,recomeço.

Com a noite de perfila medir-me cada passo,

recomeço,pedra sobre pedra, a juntar palavras,

quero eu dizer:ranho baba merda.

Eugénio de Andrade

À beira mar. Como abelhas do lixo,Esperam que lhes volte as costas.Havia o odor das vísceras nos contentores.A asa negra dos corvos. A beleza.Desejo-a minha, pinto-a.Sirvo-me da fumaça do escape.(Neste A6 hard backed sketchbook.)

José Emílio-Nelson

Page 5: Antologia Textos 2014-15

5

PERICLITAM OS GRILOS

Periclitam os grilos:a noite é nada.Quem tem filhos tem cadilhos.(Que quadra tão bem rimada!)

Não espere, leitor, que eu diga:«Debaixo daquela arcada...».Não venho fazer intriga:versejo só — e mais nada.

Assim o terceiro versodesta tirada(reparou que é um provérbio?)não significa mais nada.

Se a noite é nada e os grilosnão estão de asa parada,não vou puxar, só por isso,o fio à sua meada,

em poesia que comececomo esta foi começadae acabe como estavai ser agora acabada...

Alexandre O'Neill

Page 6: Antologia Textos 2014-15

6

leitor que me pede a históriaque já traz engatilhada,leitor que não se habituaa que não aconteça nada

ANTIODE(CONTRA A POESIA DITA PROFUNDA)

Poesia, te escrevia:flor! conhecendoque és fezes. (Fezescomo qualquer,

gerando cogumelosraros, frágeis, cogumelos)no úmidocalor de nossa boca

Delicado, escrevia:flor! (Cogumelosserão flor? Espécieestranha, espécie

extinta de flor,flor não de todo flor,mas flor, bolha

Esperava as puras,transparentes florações,nascidas do ar, no ar,como as brisas.

João Cabral de Melo Neto

Page 7: Antologia Textos 2014-15

7

aberta no maduro).

Delicado, evitavao estrume do poema,seu caule, seu ováriosuas intestinações.

Ai dona fea! Fostes-vos queixarPorque vos nunca louv’en meu trobarMais ora quero fazer un cantarEn que vos loarei tôda via;E vêdes como vos quero loar:Dona fea, velha e sandia!

Ai, dona fea! Se Deus me perdon!E pois haverdes tan gran coraçonQue vos eu loe en esta razon,Vos quero já loar tôda via;E vêdes qual será a loaçon:Dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loeiEn meu trobar, pero muito trobei;Mais ora já un bem cantar fareiEn que vôs loarei tôda via;E direi-vos como vos loarei:

Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal

Nunca maisA tua face será pura limpa e vivaNem teu andar como onda fugitivaSe poderá nos passos do tempo tecer.E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.A luz da tarde mostra-me os destroçosDo teu ser. Em breve a podridãoBeberá os teus olhos e os teus ossosTomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver Sempre,Porque eu amei como se fossem eternosA glória, a luz e o brilho do teu ser,Amei-te em verdade e transparênciaE nem sequer me resta a tua ausência,

Page 8: Antologia Textos 2014-15

8

Dona fea, velha e sandia!

Joan Garcia de Guilhade

És um rosto de nojo e negaçãoE eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Le Goût du néant

Morne esprit, autrefois amoureux de la lutte,L’Espoir, dont l’éperon attisait ton ardeur,Ne veut plus t’enfourcher! Couche-toi sans pudeur,Vieux cheval dont le pied à chaque obstacle butte.

Résigne-toi, mon coeur; dors ton sommeil de brute.

Esprit vaincu, fourbu! Pour toi, vieux maraudeur,L’amour n’a plus de goût, non plus que la dispute;Adieu donc, chants du cuivre et soupirs de la flûte!Plaisirs, ne tentez plus un coeur sombre et boudeur!

Le Printemps adorable a perdu son odeur!

Et le Temps m’engloutit minute par minute,Comme la neige immense un corps pris de roideur;— Je contemple d’en haut le globe en sa rondeur

Page 9: Antologia Textos 2014-15

9

Et je n’y cherche plus l’abri d’une cahute.

Avalanche, veux-tu m’emporter dans ta chute?

Ch. Baudelaire

Page 10: Antologia Textos 2014-15

10

Hymne à la Beauté

Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l’abîme,O Beauté? ton regard, infernal et divin,Verse confusément le bienfait et le crime,Et l’on peut pour cela te comparer au vin.

Tu contiens dans ton oeil le couchant et l’aurore;Tu répands des parfums comme un soir orageux;Tes baisers sont un philtre et ta bouche une amphoreQui font le héros lâche et l’enfant courageux.

Sors-tu du gouffre noir ou descends-tu des astres?Le Destin charmé suit tes jupons comme un chien;Tu sèmes au hasard la joie et les désastres,Et tu gouvernes tout et ne réponds de rien.

Tu marches sur des morts, Beauté, dont tu te moques;De tes bijoux l’Horreur n’est pas le moins charmant,Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques,Sur ton ventre orgueilleux danse amoureusement.

L'éphémère ébloui vole vers toi, chandelle,Crépite, flambe et dit: Bénissons ce flambeau!L'amoureux pantelant incliné sur sa belle

La Beauté

Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre,Et mon sein, où chacun s’est meurtri tour à tour,Est fait pour inspirer au poète un amourEternel et muet ainsi que la matière.

Je trône dans l’azur comme un sphinx incompris;J'unis un coeur de neige à la blancheur des cygnes;Je hais le mouvement qui déplace les lignes,Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.

Les poètes, devant mes grandes attitudes,Que j’ai l’air d'emprunter aux plus fiers monuments,Consumeront leurs jours en d’austères études;

Car j’ai, pour fasciner ces dociles amants,De purs miroirs qui font toutes choses plus belles:Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles!

Ch. Baudelaire

Page 11: Antologia Textos 2014-15

11

A l'air d'un moribond caressant son tombeau.

Que tu viennes du ciel ou de l’enfer, qu’importe,Ô Beauté! monstre énorme, effrayant, ingénu!Si ton oeil, ton souris, ton pied, m’ouvrent la porteD’un Infini que j’aime et n’ai jamais connu?

De Satan ou de Dieu, qu’importe? Ange ou Sirène,Qu’importe, si tu rends, — fée aux yeux de velours,Rythme, parfum, lueur, ô mon unique reine! —L’univers moins hideux et les instants moins lourds?

Ch. Baudelaire

Leuad’amigo, que dormides as manhanas frias: todalas aues do mundo d’amor dizian, leda mh and’eu

Leuad’amigo, que dormides as frias manhanas: todales aues do mundo d’amor cãtaua, leda mh and’eu

Todas aues do mundo d’amor diziã do meu amor e do uosso en men’t' auyã, leda mh and’eu

Page 12: Antologia Textos 2014-15

12

Todalas aues do mundo d’amor cãtauã; do meu amor e do uosso y enmentauã leda mh and’eu

Do meu amor e do uosso em met’auyã; uos lhi tolhestes os ramos en que sijam, leda mh and'eu

Do meu amor e do uosso y enmentauã; uos lhi tolhestes os ramso en que pousauã, leda mh and’eu

Vos lhi tolhestes os ramos en que sijam, e lhis secastes as fontes en que beuiã, leda mh and’eu

Vos lhi tolhestes os ramos en que pousauã e lhis secastes as fõtes hu sse banhauã leda mh and’eu

Nuno Fernandes Torneol

— Agora, Cruges, filho, repara tu naquela tela sublime.O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quasi fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente

Page 13: Antologia Textos 2014-15

13

dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro...Cruges achou aquele quadro digno de Gustavo Doré. Alencar teve uma bela frase sobre a imaginação dos árabes. Carlos, impaciente, foi-os apressando para diante.Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir à Pena. Alencar, por si, ía também com prazer. A Pena para ele era outro ninho de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemitério... Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ela na Pena? E olhava a estrada, olhava as árvores, como se pudesse adivinhar pelas pegadas no pó, ou pelo mover das folhas, que direcção tinham tomado os passos que ele seguia... Por fim teve uma ideia.

Eça de Queirós, Os Maias, Cap. VIIIÉ absolutamente desnecessário que uma coisa seja elegante para que possa ser elegantemente estudada. O sórdido, o mau, o violento, têm aspectos súbitos — tais que um desenho fixa ou adivinha — pelo qual assumem elegância e jeito. A maioria das cousas anda à procura de si própria, à busca do modo como deviam ser. A Natureza tem um sentimento estético imperfeito; nem sempre atina com as frases, as cores, os sons que a revelam deveras. Muitos poentes há, muito cantos de ave ou sussurros do arvoredo, que são palpavelmente erros de gosto. O papel daquele produto doentio a que se chama um artista é dar bons exemplos à Natureza, não como queria o

Page 14: Antologia Textos 2014-15

14

Cyril do primeiro diálogo das Intenções, ensinando-a a tomar determinados aspectos, mas uma senhora disse um dia a Whistler: «Vi ontem uma paisagem que me lembrou um quadro seu»... «Sim», respondeu o pintor «a Natureza tem feito progressos». Todo um diálogo de Oscar Wilde podia ter saído, e talvez saiu, desta frase, desenvolvida e concluída (abrindo como um leque o seu sintético sentido).

Bernardo Soares, Livro do Desassossego