antologia de autores brasileiros - alem do tempo e do espaço

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Antologia de Ficção Científica de 13 autores brasileiros, editada em 1963, onde se definia o gênero com o termo CIENCIFICÇÃO, com a intenção de aproximar da versão norte americana SCIENCE FICTION,da mesma forma que foi adotada nos países de língua espanhola: CIENCIA FICCIÓN. Um livro muito raro em papel e inevitavelmente de domínio público hoje em dia.

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ALÉMDO TEMPO

E DO ESPAÇO

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ALÉMDO TEMPO

E DO ESPAÇO

13 CONTOS DECIENCIFICÇÃO

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“Minha vida é muito mais complicada do que uma novela policial” — disse-me o japonês ao erguer-se da mesa do carro-restaurante. E acrescentou: “Um dia contarei tudo ao senhor”.

Ora, nós nos conhecêramos apenas meia hora antes, na-quele trem da Alta Paulista. Conversáramos sobre vários assun-tos e eu lhe dera algumas informações profissionais sobre par-cerias agrícolas. Dos problemas da parceria tínhamos passado aos do cinema e destes aos da novela policial. Hoje estou certo de que a vida de Takeo pode servir de tema a uma novela como-vente.

Trocamos os nossos cartões de visita e dois ou três anos correram sem que eu tivesse notícias do nipônico. Mas um dia fui surpreendido por uma longa carta, de difíceis garranchos que alinhavam uma língua mista e quase indecifrável.

Corri os olhos pelas garatujas e joguei, desanimado, a car-ta ao fundo de uma gaveta. Meio ano depois, ao ter notícia do estranho fato que estava celebrizando o cemitério de S. José do Abacateiro, e recordando que o japonês me falara sobre tal localidade ainda não mencionada nos mapas do Estado, corri à gaveta e iniciei a leitura, tradução e decifração daquelas vinte folhas fechadas pela assinatura de Takeo Matusaki.

I“NASCI EM CHIMABARA”

Não foi fácil arrumar em frases claras o emaranhado de palavras que se acotovelavam no papelório do nipão. Na verdade reescrevi a carta, aproveitando-lhe as idéias e as informações

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e omitindo alguns elementos desnecessários, inclusive o meu nome, que se repetia na abertura de todos os parágrafos, es-tropiado mas reconhecível. A versão que aproveitei é a que tem início na linha seguinte.

“Nasci em Chimabara, cidade plantada no lado oriental de uma ilha perto de Nagasáqui, e tinha onze anos quando o Imperador entrou na guerra mundial. Nessa época morávamos na ilha de Quio-Chu, em Facuoca, e meu pai exercia o ofício de mecânico. A guerra não o deixou em casa: seguiu como mecâ-nico de viaturas. Então eu e minha mãe fomos para a casa de uma tia, em Omura, subúrbio de Nagasáqui. Lá vivemos alguns anos e eu ia crescendo enquanto meu pai servia nas ilhas do Pacífico.

IIO COGUMELO

Apesar de tudo a vida era agradável. As notícias da guerra eram sempre boas e na escola falava-se todos os dias de incríveis atos de heroísmo. Mas houve em nossa vida aquele momento em que ouvimos um estalo, e tivemos a impressão de que a terra se fendera de cima a baixo. Um clarão iluminou o céu, do lado de Nagasáqui, e depois um enorme cogumelo de fumo se plantou, frondoso, sobre a terra e foi subindo vagarosamente.

Os dias seguintes foram marcados por uma chuva de boa-tos e tudo era confuso. Firochima também fora destruída. Eu e outros meninotes começamos então a nos aproximar das cinzas de Nagasáqui, embora tal coisa fosse ferozmente proibida.

Renovavam-se os avisos: ninguém deveria chegar perto da cidade arrasada. Ninguém deveria beber a água dos riachos e das fontes da região. E nós, que ouvíamos as recomendações, jurávamos não beber tal água. Mas a verdade é que — como vo-cês ensinam — ninguém pode dizer “dessa água não beberei”...

IIIOS FRUTOS DA MORTE

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As semanas e os meses correram e as cautelas foram re-laxando. Nos matos apareciam animais deformados, arbustos diferentes, e nas árvores surgiam frutos jamais vistos. As mães recomendavam: “Não comam esses frutos”; mas o fruto proibi-do é uma tentação em qualquer parte, e a água proibida não é menos tentadora. Por isso bebi água de muitas fontes e comi frutos espantosos. Nada me aconteceu, embora tenham morrido alguns rapazes que beberam e comeram. Outras causas os ma-taram, naturalmente.

Alguns meses depois do armistício meu pai voltou incó-lume, apesar dos lança-chamas. Lamentou os parentes mortos em Nagasáqui e resolveu procurar emprego em lugar distante. Achou-o, graças a um camarada de campanha, em Iocoama, o grande porto a meia hora de Tóquio. Seguimos para lá, mas, para não passarmos por Firochima, embarcamos em Nacatso e fomos por mar até Osaca. Lá, apanhamos um trem e passamos por Quioto, Nagoia, Ocasaqui, Odaura, e pronto: estávamos em nossa nova terra. A viagem foi belíssima, apesar da tristeza geral e das tropas de ocupação.

Um mês depois meu pai teve de ir a Camacura e levou-me para que eu visse o Daibutsu. Devo dizer que éramos bu-distas da seita Xin-Xu, fundada pelo veneravel Shinhran. Logo depois fomos conhecer a grande capital do Império. Passamos por Canagáua e Canasáqui e chegamos a Chinagáua, o primeiro subúrbio. De lá meu pai dirigiu o caminhão para Tacanáua e já estávamos na cidade imensa. Ainda me lembro do deslum-bramento com que vi a avenida das Lanternas, tão falada na escola!

A vida ia correndo bem, mas em fins de 46 meu pai co-meçou a queixar-se de sintomas estranhos. Dois meses depois estava num hospital e morreu em princípios de 47. As explica-ções dos médicos não foram nada claras, mas um enfermeiro deu-nos o diagnóstico terrível, com um neologismo não menos maligno: o senhor Matusaki foi nagasaquiado.

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IVLUTO NO ASILO

Ficamos na maior penúria e comecei a fazer alguns ser-viços no cais, para que minha mãe não passasse fome. Essa responsabilidade não pesou sobre os meus ombros muito tem-po. Como o marido, ela começou a definhar e, antes do fim da primavera, fechou as pálpebras.

Ninguém estranhava que pessoas vindas da ilha de Quio-Chu morressem, e por isso eu também tinha medo que chegasse a minha vez. Não sem algum pânico, corri para Tóquio na espe-rança de que certa família amiga me acolhesse. Mas o que essa pobre família — cujos homens tinham morrido, quase todos, nas Filipinas e em Sumatra — pôde fazer por mim, foi recolher-me a um asilo, nos arredores da cidade. Eu já era, porém, taludo e fiquei lá menos de dois anos.

Não foi um estágio tranqüilo. Quando lá cheguei, nem to-dos os meninos eram saudáveis. Alguns tinham vindo de Firo-chima ou arredores e houve mesmo dois ou três que morreram no primeiro ano de minha permanência. Nos três ou quatro me-ses seguintes morreram mais três, que eram, aliás, meus com-panheiros de dormitório. E quando saí de lá, para ocupar um emprego de ajudante de mecânico em Chinagáua, deixei mais dois na enfermaria. Para mim, o pó da morte já se havia espa-lhado por todo o país, e todos nós seríamos nagasaquiados em poucos anos. Esta idéia começou a atormentar-me como uma obsessão na oficina do sr. Susumo Udihara, em Chinagáua.

VA TERRA DA UIÁRA

Às vezes aparecia na oficina o senhor Minesako Udihara, filho mais velho do patrão, e o seu assunto predileto era uma ter-ra distante e cheia de rios, do outro lado do mundo, onde tinha morado alguns anos. Êle nos garantia que naqueles rios — prin-cipalmente no Pararaparema, aparecia uma moça bonita como uma gueixa, que morava na água. Era a Uiára. Êle mesmo tinha

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visto uma e soube, por ela, que os homens mais antigos daquele país tinham ido da Terra do Sol Nascente para lá! Naquele país de árvores altas ninguém morria do mal de Nagasáqui.

Trabalhei muito na oficina Udihara e transformei-me num mecânico hábil. Mas o idoso Susumo não tinha o dom da imor-talidade: em fins de 49 adoeceu e poucos dias depois os seus calcanhares se uniam. O seu filho mais velho, senhor Minesako, já tinha a essa altura voltado para a terra dos grandes rios e por isso a oficina foi fechada. O casal tivera outro filho — Asami— que jazia no bojo de um submarino, no fundo do mar do Coral. É verdade que cheguei a assumir a direção da oficina, mas logo tive a amargura de ver que a viúva Udihara, a idosa senhora Mieko, começava a encorujar.

Desde que chegara a Chinagáua, eu residia na casa de uma família xintoísta, que dava pensão. Meu companheiro de quarto era um jovem jogador de “baseball”, o cristão Akeda. Era bonito ver, sobre a mesma mesa, uma miniatura do Daibutsu ao lado da imagem do mártir São Paulo Miki. Mas o dono da casa, senhor Sugano, nos reprovava e atribuía às crenças “estrangei-ras” as desgraças nacionais. Tudo acontecera porque tínhamos abandonado o culto da deusa Amaterasu, do deus Izanági e dos Kami. Pois bem: o atlético cristão Akeda morreu uma semana depois do enterro do senhor Udihara. E, no pensar nesse e em outros mortos, eu sorri muitas vezes da ingenuidade com que minha mãe me proibira de beber água ou comer frutos dos ar-redores de Nagasáqui. Eu bebera e comera e os outros iam morrendo.. .

VIO ESQUELETO

Em março de 50 deixei Chinagáua, no mesmo dia em que a senhora Mieko era levada para um hospital da cidade. Mine-sako falara muito daquele grande país cheio de sol e uiáras, que ficava do outro lado do mundo. Comecei a cuidar dos papéis para a grande viagem e para fugir do mal de Nagasáqui. Tinha algum dinheiro e arranjei uma pensão perto do centro de Tó-

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quio. A obtenção da licença para viajar e do visto era, porém, demorada, e por isso arranjei um novo emprego, para me agüen-tar durante a espera.

Por várias razões gastei quase um ano e meio até que tudo se formalizasse. Viver durante esse tempo foi, porém, um alívio para mim, pois, se no primeiro ano tudo correu bem na pen-são, nos últimos três meses tinham morrido dois pensionistas. O fato e a causa mortis alertaram as autoridades sanitárias e eu mesmo — com outros hóspedes — fui submetido a longo exame clínico. Mas o meu estado de saúde era aparentemente ótimo — disseram-me.

Um dia, finalmente, recebi o passaporte e demais docu-mentos para a viagem. Na véspera do embarque apanhei a vo-lumosa mala, já pronta, e fui a Iokoama despachá-la. Voltei a Tóquio para passar a última noite na pensão. Ao chegar, tive uma notícia triste, mas já esperada; o dono da pensão, senhor Mizumoto, morrera no hospital.

No dia seguinte, ao amanhecer, eu me preparava para sair, com a minha maleta de mão, quando a pensão foi invadida por policiais e médicos. Em Iokoama o navio me esperava, mas nada pude fazer: fui levado com mais cinco pensionistas para um hospital. Fomos admitidos a vários exames e quando meu dorso foi submetido à radioscopia, o médico soltou um brado de espanto: “o esqueleto deste homem parece feito de luz fluores-cente!”.

VIIÀ GRANDE VIAGEM

Nada me perguntaram, nem ao menos o nome. Meteram-me numa ambulância, talvez para que, confina-

do em alguma cela de cimento, eu acabasse os meus dias. Mas as poucas peças de ferramenta que eu tinha na maleta muda-ram o programa. Após meia hora de viagem arranquei as dobra-diças da porta da ambulância e, na primeira parada, forçada por um cruzamento com o leito da estrada de ferro, desci tranqüi-lamente. Três horas depois o “Osaca Maru” levantava ferros em

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Iocoama e fazia-se ao largo. Num dos seus camarotes de classe geral eu repousava com este esqueleto radioativo que continua-va a luzir dentro de mim.

VIIICOMPANHEIROS

Éramos quatro no camarote e cada um tinha um destino. Só eu não sabia o que fazer depois de saltar em terra. O destino de Iojiro — um de nós — era S. José do Abacateiro, um arraial entre algodoais.

— “Lá é bom. Há banqueiros patrícios que emprestam di-nheiro para comprar terra”.

— “Como é que você sabe?”— “Eu já estive lá. Comprei terra que tinha mais dois do-

nos: João e José. João matou José e foi morto por Antônio, filho do mesmo José. Antônio foi preso e eu fiquei com a terra.”

Fizemos camaradagem e afinal Iojiro convidou-me para trabalhar no sítio dele: — “Há sempre serviço de mecânico” — explicou.

E havia. Êle tinha um trator, um jipe e algumas máquinas agrícolas. Colhemos uma safra, entrou dinheiro e tudo ia bem. Um dia êle foi montar um baio, meteu o pé no estribo, e não teve força para alçar o corpo. Encarei-o: estava pálido. Foi enterrado daí a dois meses e então apareceu Joaquim, filho do defunto João, com uns papéis e soldados. Tomou a terra, o rancho e tudo mais, e eu só pude fugir com o jipe e minhas ferramentas para Bauru.

IXAMOR FATAL

Viver só é muito triste. É mais triste ainda quando mata-mos aqueles com quem convivemos. Na escola de Omura o pro-fessor me ensinara que o rei Midas transformava em ouro tudo o que tocava. Mas eu transformava em defuntos todos os parentes e amigos. Pensei no entanto que poderia casar, desde que não

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tivesse a esposa sempre ao meu lado.Lidia Tsurayuki, uma nissei, era em pouco tempo minha

noiva. Fui buscá-la a Guaraniuva e casamos. Não consegui, po-rém, convencê-la de que deveríamos ter quartos separados e comer em horas diferentes. O caso de Lidia foi, realmente, o de um amor fatal: quando eu esperava que ela me desse, em breve, o meu primeiro nissei, o seu sangue começou a desfazer-se em água. Tudo foi questão de alguns dias e, então, desesperado, resolvi vingar-me de alguém.

XRÁDIO-HOMIC1DIO

Voltei à roça de Inojiro, entreguei o jipe a Joaquim e pedi-lhe perdão e um emprego. O caboclo vivia feliz com a mulher e um filho pequeno, e também com o trator e as máquinas de Inojiro Mizikame. Transformei-me na sombra da família, sempre serviçal e dedicado. Era enxadeiro e mecânico, moço de recados e copeiro. Em seis ou sete meses o extermínio começou. Adoe-ceu primeiro o menino, mas quando me arrependi já era tarde: nem o Buda de Camacura nem S. Jacob Sisaí, de minha nova devoção, me ouviram. Atrás do menino foram os pais e a esse tempo já os empregados e agregados começavam a adoecer. Foi então que se espalhou por aqui a lenda de que sou bruxo, feiti-ceiro e envenenador, de que mato com mau-olhado e com suco de ervas más. Ninguém mais se aproxima de mim, mas sei que, a qualquer momento, cairei na ponta de uma faca ou varado por uma bala”.

XIASSASSÍNIO PÓSTUMO

A conclusão desta história não poderia estar na carta de Takeo Matuzaki. Eu a acrescentarei. Certa manhã o corpo do japonês — disse um jornal — apareceu cortado a faca e cha-muscado pelo fogo. Enterraram-no em S. José do Abacateiro, e alguns meses depois o zelador do cemitério morria anêmico,

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evidentemente nagasaquiado. Ao redor da campa de Takeo as plantas que não secaram mudaram de aspecto. Sob a terra o seu esqueleto continuava — e continuará — a matar, muito em-bora o seu espírito maligno já tenha sido convenientemente es-conjurado por aqueles que estão seguros de que Matusaki foi a própria encarnação do Diabo, o Diabo em carne e osso, ou pelo menos o esqueleto do Diabo.

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Com certeza, no futuro, talvez antes de um século, este episódio pertencerá ao historiador, ao cronista. Por certo, num amanhã não muito remoto, surgirá quem relate todas as minú-cias. Por certo, os bardos cantarão os feitos, surgirá a lenda, criar-se-á paralelamente o mito. Assim como no passado, na era das conquistas, no tempo da expansão sobre a Terra, houve historiadores e cronistas, assim também será no porvir. Não fal-tarão homens como Prescott ou Bancroft, como aqueles escribas que acompanhavam as naus européias nos périplos fantásti-cos demandando o desconhecido. E então a minha história bem pouco valerá. Portanto, mesmo sem a perspectiva das conse-qüências, sem o impacto transcendental e filosófico, lhes dou o meu relato de simples repórter, de olheiro da humanidade que lá ficou. Fui o primeiro que assistiu à cena, atônito e emudecido, na bolha atmosférica que parecia uma gota vista de cima, das elevações que cercam o Mar da Fecundidade.

Eu era o único que não tinha interesse no sorteio. Lá fica-ria quanto quisesse, pois o meu contrato não estipulava prazo. Não era astronauta de profissão, mas apenas um corresponden-te. E, sendo o único, escolhido mais por minhas aptidões físicas do que intelectuais, não tinha compromissos ou concorrência. Anotava, escrevia e, se desejasse, ia pessoalmente no vôo men-sal recolher os meus proventos, entreter-me por semanas com Doroteia, beber com Gustavo, ouvir as lamentações sem fim de Emiliana. Era cômodo, confortável, chegava mesmo a ser diver-tido e, além disso, utilitário que sou, sumamente compensa-dor. Todos comiam por minhas mãos, distribuía meu alimento a peso de ouro. Afinal, como eleito, sem linha política que me

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incompatibilizasse com as duas facções, era sobretudo neutro, e um só, o que reforçava minha independência. Senhor, pois, naquele satélite de escravos, não me importava com os dias de sorteio, esquecendo-me que meus companheiros não pensavam assim.

Vínhamos então pelo vale em passo acelerado, atentos para não transgredirmos as imposições da baixa gravidade, em passos estugados mas bem medidos para não virarmos saltões naquele mundo de pesadelo. Éramos oito, todos do Grupo A, da equipe internacional, do Quadrante Dois, da Base de Petavius. Naquela manhã havíamos tentado algo novo: o alpinismo lunar. Fomos os primeiros a galgar a protuberância mais elevada de Altai e a flâmula da EICLU (Equipe Internacional da Conquista Lunar) ficou estática no cenário espoliado de atmosfera.

Recordo-me que o cansaço nos aniquilava. Caminhávamos com os interfones ligados mas nenhum som se ouvia, apenas chiados de pulmões ofegantes que inflavam ao máximo nossos trajes de pressão, dando-nos aspectos de balões grotescos. Dois integrantes do grupo quase chegaram a perder a consciência. Havíamos abusado. A caminhada fora longa e a ascensão peno-sa. Vários descanços, quase um pedido de socorro. Mas, como previa o Regulamento, até três baixas, tudo era tolerável. Não seria solicitado auxílio a não ser em risco de aniquilamento to-tal. Assim fora na catástrofe de Cassini, por pouco no desastre do Mar dos Humores.

Eu marchava no meio, o único privilegiado que não trans-portava equipamentos. À beira da exaustão, o líder lembrou-se do acontecimento — a ação mágica de certas frases que soer-guem o moral, levantam os ânimos, O chiado parou e a voz veio sem distorção:

— Atenção, camaradas, hoje é dia de sorteio!Um frêmito percorreu a fila indiana. Dir-se-ia que uma

injeção havia retesado os músculos, alteado as derradeiras re-servas, incendiado lembranças, sobretudo despertado desejos. A marcha acelerou-se quase ao limite da gravidade e vozes cru-zadas com acentos eufóricos e interjeições de redivivos, estala-ram nos fones:

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— Tenho certeza que desta vez serei um deles!— Cheguei a apostar por fora. Não me interessa, venderei

meu passe!— Meu filho me espera há mais de um ano. Como estará

êle?— Não adianta, jamais tive sorte, desde menino... Só eu não falei. Como já lhes disse, o sorteio não me in-

teressava. Mas devo esclarecer o que era esse sorteio. Ao todo — naquela Base éramos cinqüenta homens e dez mulheres. A nata da ciência, o sumo da animalidade. Cada aeronave só podia le-var cinco elementos, e cada vôo era mensal, meses terrestres. Maior espaço e mais passageiros naquela década era impossível. E então ? No começo o rodízio, depois o sorteio preconizado pe-los especialistas-tutôres. Uns, os mais afortunados, já haviam regressado à Terra três ou quatro vezes. Outros sem sorte algu-ma, lá estavam havia mais de ano, deglutindo doses de medi-camentos que os ajustavam melhor ao meio planetário. Alguns exemplos: o russo de Odessa fora três vezes em quatro sorteios; o mexicano, técnico em comunicações, fora duas; o belga, gra-duado em biônica, voltara quatro vezes em seis meses.

Outros porém, como o mais moço, o rapazinho cheio de sardas, lá estavam havia mais de ano e meio e jamais tinham conseguido o bilhete. E entre as mulheres? A mesma coisa. Pa-rece que elas sentiam menos a terrível segregação. Os psicólogos tinham razão. De fato, as mulheres se adaptavam melhor, não apresentavam problemas, nem mesmo demandavam pílulas em doses extras, como acontecia com a maioria dos homens. Sônia e Olga haviam regressado uma vez. A inglesa, duas. A mais ve-lha, com certeza norte-americana, voltara quatro vezes, ao pas-so que a mais moça já se aproximava de um ano sem obter o papelucho azul. E, ao que parece, bem pouco se aborrecia com isso. Vivia metida em seu traje vermelho, como que escondendo suas formas que deveriam ser das mais esguias, como afirma-vam os que a haviam visto na bolha, em pleno trabalho, debru-çada sobre o microscópio.

A lembrança do líder produziu o efeito desejado. Antes da hora prevista a distância foi vencida e o pedido de auxílio deixou

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de ser enviado. O jovem sardento caminhava na minha frente. Quando passei a marchar ao seu lado busquei-lhe o rosto sob o elmo. Notei-lhe certa expressão de indiferença e que também não era do cansaço que agora ia ficando para trás, ligado às nos-sas pegadas impressas no pó lunar até o final dos tempos.

Eu não podia falar-lhe diretamente, pois o sistema dos in-terfones estava subordinado à escuta geral. As conversas parti-culares eram proibidas, só permitidas em circunstâncias excep-cionais. Ao líder do grupo cabia a iniciativa e todos os circuitos deviam estar desimpedidos para as ordens e os contatos com a Base e eu, mesmo isento da disciplina, estava de certa forma sujeito aos regulamentos. Mas não raro os esquecia. Quebrava o formalismo e minhas expansões eram toleradas. Afinal, eu era o privilegiado. Segundo a lenda que corria, eu poderia falar com o Presidente com a mesma facilidade com que me comuni-cava com o chefe do meu jornal e isso por certo impunha algum respeito.

Apressei a marcha. Levantava bem pouco minhas botas, evitando assim que a poeira plúmbea flutuasse naquele páramo desolado. Quase me encostei ao rapaz sardento. Como era mes-mo seu nome? Charles ou Bill? José ou Demetrius? Não, creio que não. Depois vim a saber que era canadense, que nascera junto aos Grandes Lagos. Até aquele instante eu só sabia que êle até então não regressara uma só vez à Terra. Recordo-me que nos quatro últimos sorteios seus amigos mais chegados ti-nham começado a preocupar-se. Nas primeiras vezes o jovem dava demonstrações de decepção. Depois se tornou indiferen-te. A princípio — e isto foi o seu companheiro de bolha quem me contou — mal dormia nas vésperas dos sorteios. Largava os livros, esquecia das transmissões terrestres, ficava do lado de fora, encostado a algum pilone fitando o globo azul em torno do qual girávamos mansamente. Pouco falava. Apenas o necessá-rio com os amigos e talvez um pouco mais com os psicólogos, sempre em solidão, metido com seus livros. Com certeza, até àquela época tudo com êle ia bem. Segundo os especialistas, os introvertidos agüentavam melhor. E isso de agüentar e de não agüentar só será bem entendido por quem já viveu no espaço.

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Mas, vamos à minha história, vamos ao que interessa. Lembro-me que sabia apenas que o jovem sardento nunca voltara. Bati-lhe então no ombro e violei a regra. Falei-lhe baixinho, como se entre nós inexistisse o capacete, como se lhe segredasse ao ouvido e minhas palavras não fossem ouvidas por todos os que estivessem com os aparelhos ligados.

— Então? Anime-se. Não ouviu o que o chefe disse? Sim, hoje é dia de sorteio!

Êle era mais jovem. Talvez vinte e um anos, vinte e dois ou talvez menos. Continuei ao seu lado. Fixei-me no capacete do ra-paz, levemente tocado pela poeira, e localizei a resposta para mi-nha indagação. Apenas certo olhar mais detido que serviu para revelar uma atitude de desesperança. Pude ver que êle respirava com dificuldade. Examinei-lhe os registros do oxigênio e pressão interna. Os marcadores estavam bem visíveis do lado de fora dos elmos, como se fossem periscópios, em posição que pudessem ser fiscalizados pelos companheiros. Isso era importante, pois se evitavam assim acidentes fatais. Mas tudo ia bem, êle não estava com deficiência respiratória. Tratava-se de mero cansaço — a altitude da escalada, as longas milhas lunares, o cuidado redobrado na passagem das falésias, a atenção para não levan-tarmos poeira desnecessária, talvez a exaustão de quem está há muito tempo no satélite como um exilado. E os médicos? Como é que não o devolvem aos Grandes Lagos? Porque não o libertam desse mundo monocromático e silencioso que não raro chega a fazer com que ponhamos em dúvida a validade da própria exis-tência? Não entendia. Mas, se nada faziam era porque tudo ia bem. Eles eram eficientíssimos. Oniscientes. Examinavam-nos (e eu, mesmo como agregado submetia-me voluntariamente à rotina) todas as semanas. E não só o físico, mas sobretudo a alma. Sim, meus amigos, a alma. Era importante, fundamen-tal. Agora me recordo. Transmito-lhes este pormenor a título de curiosidade, para colorir minha história, já que em outras reportagens cuidei mais a fundo da matéria. Não foi porventura na Lua que muitos homens se converteram? Não foi na capela triangular de Endimião que muitos tiveram seu primeiro encon-tro com Deus? E por que? Por que? indagavam os psicólogos,

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os sacerdotes e os sábios da Igreja? Porque lá, no astro gelado e abrasador, onde tudo é paradoxal, muitos encontravam-se e dialogavam com suas próprias almas. Lá o homem se achava, estando só. E então? poderiam argumentar os céticos. E então? Esse isolamento também não existia na Terra? Nos desertos, nos mares, nas profundidades oceânicas, nas calotas polares? Não, não era a mesma coisa. Na Terra estavam de qualquer forma lá, abrigados em seus lares, acorrentados ao solo do planeta que os gerara, que os fecundara, indissolùvelmente ligados à mãe que os protege, identificados pelo destino coletivo que cria uma série ponderável de hábitos, motivo pelo qual nenhum espanto decor-re do fenômeno vital. Mas na Lua tudo se desmantelava numa solução antípoda. Lá em cima é que estava a Terra, sobre suas cabeças é que se achavam os lares, lá na esfera assustadora é que se achava albergada a vida. E então a existência de fora se revestia das dimensões do sonho, era um sacrilégio, certa ofen-sa, com o irracional das reincarnações. Na Lua todos se sentiam ressuscitados. E da perplexidade e do pavor nascia o encontro com o espírito. Ficava-se só consigo mesmo e o resultado eram as conversões na capelinha escura de Endimião, protegida pela bôlha-dupla.

Mas tudo isso pouco tem a ver com a minha história.O menino sardento era um daqueles. Nos primeiros meses

não freqüentava o templo. Depois passou a ir amiúde e depois ainda, num comportamento incomum, deixou de ir. Os espe-cialistas-tutôres anotaram o fato. Testes, exames e entrevistas. Mas tudo ia bem com a sua alma — afirmaram.

Quando procurei animá-lo a marcha foi apressada. O líder cortou-me a segunda frase com uma determinação de serviço, e pelo seu tom senti que me repreendia pelo uso indevido do cir-cuito. Cumprindo a ordem, segui a fila até o instante em que as comportas se abriram para receber-nos.

Mas, como se processava o sorteio? Cada homem tinha um número, gravado numa plaquinha dependurada no pesco-ço. Como no passado, se o homem morresse a família receberia a placa de identificação. Tais placas eram depositadas numa semi-esfera posteriormente bem revolvida pelo Administrador.

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Em seguida, ligando-se a certa distância o eletroímã, imprimia-se movimento circular ao receptáculo, que ficava numa coluna sobre um eixo móvel. Pela ação do ímã as chapinhas agitavam-se, empinavam-se debaixo da torcida geral, como que lutando contra o magnetismo atuante. Após segundos, elas desligavam-se e iam flutuando pelo espaço até se fixarem no pólo do apa-relho, que era então desligado. Lia-se em voz alta o número do felizardo. E assim, uma a uma, as placas saíam velozes, criando ou destruindo ilusões, em meio à algazarra que sempre acom-panhava o espetáculo.

O Administrador devolvia-a ao sorteado e no mesmo ins-tante lhe entregava o bilhete azul que era exibido na partida.

Assim foi naquela noite. Tudo decorreu normalmente e só no dia seguinte, pela oitava hora após o embarque, foi que se descobriu tudo sem entretanto compreender-se a causa do de-satino.

Admito que anotei a atitude do jovem sardento durante o sorteio. Como era mesmo seu nome? Charles ou Bill? José ou Demetrius? Não me recordo ao certo. Apenas sabia alguma coisa de sua vida que por êle me foi contada nos períodos de repouso. Naquela época êle tinha outra conduta. Positivamente não era extrovertido, mas falava de si o normal, talvez um pouco menos que a média, dentro dos padrões de quem se achava na segunda fase de ajuste. Seu pai era chefe de usinas solares e dois dos seus irmãos haviam morrido na descompressão de um satélite. Tinha uma noiva ou namorada. As coisas de sempre — saudades, cartas, retratos falados, sem nada de especial que revelasse conduta assintomática. Só não consigo recordar-lhe o nome. Na sala observei que se mantinha isolado, num dos can-tos do bar, trajando ainda as roupas do exterior. Tinha alguma coisa na mão que revolvia com insistência e ao seu lado, sobre o balcão, os copos vazios indicavam que já consumira todos os vales. Não se acercou do grupo formado ao redor do eletroímã. Revirava os dedos o tempo inteiro o objeto brilhante e às vezes ficava de costas para a semi-esfera, em atitude que me pare-ceu ostensiva. Dir-se-ia mesmo que estava sendo perturbado em suas cavilações pelo tumulto. Sua ausência era estranha

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e poderia chamar a atenção dos especialistas. Mas, como suas fichas continham as respostas exatas e os furos satisfatórios, como as máquinas jamais se equivocam nos prognósticos, não havia com o que se preocuparem. Apenas certo procedimento incomum, sem perigo para o equilíbrio coletivo que, como num sistema de vasos comunicantes, devia ser observado sob pena de levar a convulsão a toda equipe. Em função dessa harmonia se justificava o trabalho contínuo dos tutores. Tratava-se ape-nas de um moço que desejava preservar a sua solidão. Proclamo aqui a grande verdade que a esse respeito encontrei no livro de um escritor do passado que gozou de algum renome no século XX. Um certo Thomas Mann, que na sua novela preferida, tal-vez levado pelo romantismo crônico que então se cuidava eterno companheiro do homem, afirmou que a solidão e o silêncio, se amadurecem a originalidade e a beleza audaz, também geram a perversão e o absurdo, incitando as criaturas ao ilícito. A sá-bia assertiva bem se aplica ao franco-canadense, explicando em parte o episódio que desacreditou os especialistas e toda a sua cibernética. Para conhecerem a alma talvez devessem ler os au-tores do passado, meus velhos amigos Dostoievski, Shakespeare ou Kafka, Faulkner ou Stendhall, enfim todos aqueles que há muito foram banidos das bibliotecas por anacrônicos, sediços e inaproveitáveis, alguns deles perniciosos mesmo. Deviam os psicólogos, esquecendo-se das sondas mentais e detectores de comportamento, valerem-se das experiências dos artistas, da intuição incomparável daqueles que nas épocas anteriores eram considerados gênios, o que não mais havia agora em nossa era de progresso. Se assim fosse tudo talvez poderia ter sido previs-to, sem a celeuma e o clamor despertado, afastando-se o inútil das punições.

Terminado o sorteio, os contemplados exibindo os bilhetes passaram ao bar, em triunfo. Em meio à alegria transitória fo-ram poucos os que notaram a reação do rapaz. Este revirou o úl-timo gole, limpou a boca na manga do blusão e saiu às pressas, como se temesse contaminar-se pela euforia dos companheiros que logo deixariam a Lua. Largou no meio dos copos o objeto que tinha na mão e desapareceu em direção aos alojamentos.

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Aproximei-me do bar. Peguei aquilo com que êle brincava. Ape-nas uma pedra, um bloco um pouco maior do que um punho fe-chado, disforme e cheio de arestas, talvez resíduo de meteorito, níquel e manganês, resto de sol morto ou de planeta destruído, apanhado como lembrança das plagas lunares. Segurei o ca-lhau e, sem medir as conseqüências, saí atrás do jovem para devolver-lhe o achado. Apenas um pretexto para vê-lo. Talvez não o devesse ter feito. Devia ter esperado, aguardado melhor oportunidade. Quem sabe se com essa atitude contribuí invo-luntariamente para o crime? Dei com êle deitado em seu catre, na bolha coletiva. Semi-despido, os olhos esbugalhados, um li-vro na mão, o olhar pregado no espaço. Devolvi-lhe a pedra. Êle não respondeu, nem mesmo com um agradecimento. Esticou a mão, balançou o pulso sentindo o peso do mineral e fixou-se em mim com o mesmo ar atoleimado, insatisfeito, mas que conti-nha algo de ameaçador. Fiquei sem saber o que fazer. Senti que quebrara uma cogitação profunda e que isso não era bom, que o havia despertado de um devaneio. Silenciei, não sei se me des-culpei. Antes que eu saísse êle desligou o comutador. Voltei-me ao cerrar o postigo e apenas lhe vi o vulto abatido, com aquela coisa que brilhava na mão.

Na oitava hora depois da partida para a Terra, o respon-sável pelos compressores encontrou a vítima. Estava escondida debaixo de uma das máquinas, dobrada sobre si mesma, ves-tida e equipada para o vôo espacial, apenas sem o elmo que se colocava no momento de deixar a proteção gasosa. O coração batia ainda, havia um tênue alento e o filête rubro escorria da testa infiltrando-se pela camisa junto ao pescoço. Foi de pronto reconhecida. Um dos sorteados, o russo de Odessa que voltara três vezes. E, ao lado do corpo desfalecido, o calhau brilhante que na penumbra refulgia como uma gema preciosa, agora de-positado na mesa do Superintendente, transformado numa das peças principais do inquérito. O bilhete azul não estava mais nas mãos do russo. Alguém o retirara, alguém, protegido pelo anonimato conferido pelas vestes do espaço e que já se acercava dos Grandes Lagos.

A investigação foi sumária, tudo era evidente. Só o jovem

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sardento não foi encontrado. As primeiras medidas foram to-madas, feitas as comunicações com a Terra e transferida para a chefia suprema a responsabilidade do julgamento. Fui ouvi-do sobre os antecedentes e relatei-lhes a reação do rapaz ao restituir-lhe a pedra. Segurei o seixo, aferi-lhe o peso. O golpe fora violento, o russo só escapara por pouco. Mas os motivos, as razões, as raízes diretas e remotas desse comportamento? A equipe dos especialistas-tutôres foi a maior condenada. Tudo conferia, tudo era normal, com os ponteiros, com os gráficos, com as pastilhas, com o físico e com a alma.

A explicação só veio cerca de vinte dias depois, não des-vendada nem mesmo pelo interrogatório do moço. Em plena ma-drugada lunar, no momento em que se procedia à chamada das mulheres para a expedição que partiria para o Mar das Crises. Lá estavam todas. Todas menos uma, a mais moça, a que ali se achava havia mais tempo, aquela que se chamava apenas Ma-ria. Inexplicável sua ausência. Saímos para a busca em grupos organizados, já que não se encontrara no alojamento a bolha individual da jovem. Maria era bióloga, encarregada de pesqui-sas microbianas. Talvez tivesse saído da Base, talvez — pois tinha relativa independência em seus movimentos — estivesse nas imediações, como sempre fazia, colhendo material. Talvez tivesse tido dificuldade no regresso. E lá segui eu com o grupo que se internou pelas alturas de Godenius com a intenção de vasculhar dois décimos do quadrante.

Fui o primeiro a avistar a protuberância, o ponto minús-culo, a pequena gota pousada no Mar da Fecundidade, a menos de duas horas da Base. Apenas fiz um gesto indicando a baixa-da e lancei-me com ímpeto redobrado. Meu sangue de repórter ferveu, queria ser o primeiro a chegar, já imaginando a notí-cia, vislumbrando a possível tragédia. Adiantei-me aos compa-nheiros, e a poucos metros da bolha individual, bem unida a uma pequena cratera, vi em seu exíguo interior certa forma em completo abandono. Aproximei-me. E antes de abrir o invólu-cro assegurei-me de que a jovem estava com suas vestes. Mas era um pesadelo o que eu via. Maria estava por certo morta ou desfalecida. Imóvel, repousava na pequena área de seu abrigo,

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sem o elmo e sem o traje que sempre lhe ocultava as formas. Ao lado, bem unido aos condutos de oxigênio, o capacete reco-bria alguma coisa rosada, envôlta em panos sanguinolentos, e que pulsava lentamente. Compreendi. Afastei-me, recuei alguns passos, tentei ordenar minhas idéias. Pela primeira vez, longe, bem longe da Terra, o milagre renovava-se. Meus companheiros já estavam próximos. Quando de novo olhei para o abrigo, tive tempo ainda de ver, nos limites extremos do Mar da Fecundida-de, o risco chamejante de um grande meteoro que se consumia nos contrafortes da cordilheira. A claridade, o silêncio, o traço persistente no espaço, efeméride cósmica a denunciar a contin-gência humana.

E na semana seguinte a criança foi levada a capela de En-dimião. Com que nome foi batizada? Bill ou Charles? Demetrius ou José? Não me recordo, confesso.

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A loja de antigüidades tinha o cheiro de uma arca de sa-cristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, êle tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi se chocar contra uma imagem de mãos decepadas.

— Bonita imagem, disse êle.A velha fechou no pescoço as pontas do xale.— É um São Francisco.Então êle se voltou lentamente para a tapeçaria, que to-

mava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.

— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado.

O homem estendeu a mão até a tapeçaria mas não chegou a tocá-la.

— Parece que hoje está mais nítida...— Nítida? repetiu a velha pondo os óculos. Deslisou a mão

pela superfície puída. Nítida, como?— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma

coisa nela?A velha encarou o homem. Achou-o tão pálido e perplexo

quanto a imagem do santo.— Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergun-

ta? — Notei uma certa diferença.— Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a

mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido, acrescentou ela tirando do bolso as

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agulhas de tricô. Lançou ao homem um olhar demorado. Foi um desconhecido que me trouxe, precisava de dinheiro com urgên-cia. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar comprador mas êle insistiu tanto. Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos, o senhor sabe? E o tal moço nunca mais me apareceu.

— Extraordinário...A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria

ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros.— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que

não vale mesmo a pena, na hora que se despregar é capaz de cair em pedaços...

O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...

Era uma caçada num bosque: no primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espes-sa. Num plano mais distante, o segundo caçador espreitava en-tre árvores, mas esta era apenas uma silhueta vaga, cujo rosto não passava de um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador de barba, que se assemelhava a um esverdi-nhado bolo de serpentes, tenso na expectativa, à espera de que a caça levantasse para então desferir-lhe a seta.

O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tape-çaria que tinha a côr esverdeada de um céu de tempestade. En-venenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se man-chas de um negro violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, infiltrar-se na roupa do caçador, deslisar-lhe pelas botas e es-palhar-se no chão como um líquido denso. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas vis-cosas e que tanto podiam fazer parte do próprio desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.

— Parece que hoje tudo está mais próximo, disse o homem em voz baixa. É como se... Mas não está diferente ?

A velha apertou um pouco os olhos. Esticou o pescoço:— Não vejo diferença nenhuma...— Ontem não se podia ver se êle tinha ou não disparado

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a seta...— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?— Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou.— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede

já está aparecendo, esses bichos dão cabo de tudo, lamentou ela voltando-se para o tricô. Afastou-se sem ruído com suas chi-nelas de lã. Antes, fêz um gesto evasivo: Fique aí à vontade, enquanto vou fazer meu chá. Fique à vontade.

O homem deixou cair o cigarro apagado. Contraiu dolori-damente os maxilares numa tentativa de sorriso. Sim, conhecia perfeitamente esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfu-me dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmi-do da madrugada, mas isso tudo fora há tanto tempo! Há tan-to tempo, meu Deus! Contudo, lembrava-se de que percorrera aquela mesma vereda e numa madrugada assim verde, de céu baixo... O caçador de barba encaracolada parecia sorrir, um sor-riso perverso embuçado na barba. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Um personagem de tapeçaria! Mas qual ? Fixou-se na touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas sob as folhas, por detrás das manchas negras pressentia o vulto arquejante, a carne em pânico. Compadeceu-se da caça à espera de uma oportunida-de para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse e a seta implacável... A velha não a dis-tinguira mas ela ainda estava no arco, reduzida a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão.

O homem enxugou o queixo no dorso da mão e recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, com as mesmas manchas malignas da tapeçaria. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fêz o quadro? Quase todas as ta-peçarias antigas eram reproduções de quadros, pois não eram? Por isso podia, de olhos fechados, reproduzir a cena nas suas minúcias: o contorno da folhagem, o céu sombrio, o caçador —

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só músculos e nervos — apontando para a touceira... “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?” E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam — não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no origi-nal, a caçada não passava de uma ficção, vira o quadro antes do aproveitamento na tapeçaria...

Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos ca-belos, não, não ficara do lado de fora mas lá dentro, encravado no cenário que hoje parecia mais nítido do que na véspera, mais forte nas suas cores apesar da penumbra. O fascínio que se desprendia dele vinha agora como um miasma mais traiçoeiro. Mais velado.

Na rua, sentiu o corpo moído. As pálpebras pesadas. Anoi-tecia. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, sentia desde já a insônia a vigiá-lo com seus olhos de coruja. Levantou a gola do paletó. Esse frio era real ou a lembrança apenas do frio da tapeçaria? “Que loucura!... E não estou louco”, concluiu num sorriso triste. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.”

Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antigüida-des, o nariz achatado na vitrine, tentando ver a tapeçaria lá no fundo.

Já em casa, fechou-se no quarto e ficou de bruços na cama, os olhos escancarados para a escuridão. Só quando as estrelas empalideceram através da vidraça é que conseguiu dormir. Mas logo veio vindo a voz da velha de dentro do travesseiro, uma voz metida em chinelas de lã: “Que seta? Não estou vendo nenhuma seta...” Misturada à voz da velha, começou o murmurejo das traças em meio de risadinhas abafadas pelo algodão. As vozes se entrelaçavam sinuosas tecendo um pano esverdinhado, com manchas que se alastravam até o retângulo negro da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir mas agora estava aprisionado pela tarja a se alargar como um fosso. Lá no fundo, bem no fun-do podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas ao invés da barba, só encontrou a viscosidade morna do sangue.

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Acordou com o próprio grito que se estendeu lancinante dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Enro-lou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tape-çaria? Revia-a mais nítida ainda e tão próxima que podia sentir até a umidade do vapor subindo em ondas do chão... Fechou os punhos. Ah, haveria de destruí-la, não era verdade que além da-quele trapo havia algo mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira, bastava soprá-la! Soprá-la!

Encontrou a velha varrendo a calçada. Sorriu irônica ao vê-lo:

— Hoje o senhor madrugou, hem?— A senhora deve estar estranhando mas...— Já não estranho mais nada. Pode entrar, pode entrar, o

senhor já conhece o caminho...“Conheço o caminho”, murmurou êle seguindo por entre

os móveis. Dilatou as narinas. E parou num estremecimento ao sentir o cheiro de folhagem e terra. Quis retroceder, agarrou-se a um armário. E suas mãos resvalaram pelo tronco de uma árvore: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés afundando no chão empapado e negro. Em redor, tudo parado, extático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Lançou em volta um olhar esgaze-ado. Inclinou-se arfante. Era o caçador? Ou a caça? Não impor-tava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo, correndo sem parar por entre o labirinto das árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado!.. Passou as pontas dos dedos pelos lábios gretados, enxugou no punho da camisa o suor que lhe pingava do queixo. Então lembrou-se. “Não!” gritou ao mergu-lhar numa touceira. Ouviu ainda o sibilar da seta varando a folhagem.

“Não...” gemeu o homem ao tombar de joelhos. Tentou agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando fortemente o coração.

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Val-t chegou ao elevador particular. A gravidade reduzida levou-o em poucos segundos até seu apartamento de solteiro. Premiu o quarto botão, já manchado pelo uso e daí a pouco comia o seu jantar, um pouco quente demais. Sentia falta de companhia, alguém contente ao seu lado, que comentasse o que ia vendo no “Trêsdê para o jantar”, com fundo musical diges-tivo. Sorriu. Com a mão esquerda desligou tudo. Recostou-se relaxando os músculos ainda tensos e começou a divagar. Não o fazia sempre. Mesmo só, havia uma centena de coisas para se distrair em seu apartamento “categoria especial”. Completara vinte e oito anos e começava a achar falta de u’a mulher. Foi a uma gaveta de documentos e puxou o seu “certificado extrapo-lativo futuro”. Fora analisado aos quinze, vinte e vinte e cinco anos. As conclusões, coincidentes e definitivas. Aos vinte e oito anos seria o tempo ideal para unir-se a sua outra “metade”. Uma velha expressão, de centenas de anos, que agora se aplica-va exatamente.

No dia seguinte acordou com a mesma sensação. Ficou só em casa até a tarde, pois em suas obrigações compulsórias com o Estado tinha liberdade de horário. Nas correias-transporte, encontrou Dab-I, um velho amigo com o qual gostava de discu-tir. Contou-lhe da sua disposição: “Dab-I, chegou o tempo de me unir. Talvez vá hoje a Cibernética Central.”

Dab-I sorriu, com uma ponta estranha de ironia: “Será que você está mesmo com vontade de casar-se, ou o próprio anali-sador que lhe meteu essa sugestão no cérebro?”. Dab-I era um erudito especialista em História antiga. Empregava intencional-mente palavras desusadas e tinha a estranha e perigosa mania

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de se voltar contra a ciência, repetição dos velhos conceitos de discernimento pessoal, sensibilidade, impulsos intuitivos, que desgraçaram em guerras os povos do 21.° século.

É evidente que Dab-I conhecia perfeitamente o artigo 3.° das Tábuas Legais: “A reunião, em cadeia, dos organismos do Instituto Cibernético Central, apresenta resultados e toma deci-sões Justas, Perfeitas, Definitivas”.

Dab-I sabia que os poucos bilhões de suas células cere-brais são alguns centímetros, contra os quilômetros valvitrô-mcos do Computador Gigante. Porém, as novas leis aboliram os recondicionamentos compulsórios e o resultado aí está. O partido secreto dos Avalvitras a perturbar o ritmo de progresso da sociedade.

Val-t deslisava pelos corredores do Instituto Uniocional, o coração batendo mais depressa. Iria submeter-se aos exames e, embora a surpresa que estes lhe trariam, agradável, perfeita e definitiva, fosse certa (com raríssimas exceções), sua emoção era a de um adolescente a jogar pela primeira vez o sexi-bo.

Na sala n. 2 tornou a ler o resumo do processo que todos conheciam: “União amorosa e procriativa total e permanente”.

“1.° — O computador central procederá ao exame em duas horas, nas salas designadas.

“2.° — O pensamento associativo, após a leitura dos textos e a visão das imagens, deverá ser expontâneo, proibida a inges-tão de drogas nos cinco dias anteriores. As faltas serão punidas, conforme o regulamento.

“3.° — As constantes extrapoladas dos pensamentos, am-bições, temperamento e possibilidades, são condensadas em seus impulsos e imediatamente transmitidas para o Instituto Central.

“4.° — As curvas de futuras possibilidades são recompos-tas em bilhões de variações, com os tipos femininos coinciden-tes, já selecionados em triagem inicial.

“5.° — O casal coincidente assinará os documentos de união, dentro do prazo de dez dias, devendo unir-se após cinco dias.”

O resto tratava dos casos especiais e outras precauções

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burocráticas. Val-t acompanhou um funcionário. Chegara sua vez. Sentou-se na poltrona sensível e lhe colocaram o capacete. Com a técnica do hipnocine, cenas reais transcorriam ao seu re-dor. As emoções e pensamentos se registravam dentro da curva analítica, classificando-o com fórmulas que o tornavam perfeita-mente distinto e marcado entre bilhões de semelhantes. O com-putador central separaria entre os outros bilhões de mulheres aquela que seria sua perfeita metade, que nascera especialmen-te para êle. Na antigüidade essa escolha era feita através de um processo intuitivo fisiológico, chamado amor, palavra que até hoje usam, embora desnecessariamente. É curioso saber que o homem, durante séculos, só dispôs desse meio para casar-se, expressão ainda empregada nos departamentos rurais. Através de cálculos retrospectivos, sabe-se que o Amor assim intuitivo só acertava em 0,012 por cento em média geral. Atualmente as uniões perfeitas atingem 95,43 por cento, sendo que 4,57 trata-se de deformações fisiológicas e cerebrais, a maior parte em re-condicionamento nos institutos especializados.

Duas horas e meia se passaram e Val-t tinha nas mãos o retrato da sua “metade”. Era exatamente o que sonhara (o computador bem o sabia), os olhos, um certo trejeito dos lábios, a voz suave... Não se analisa aquilo que nos vem exatamente como desejamos. A aceitação é total, a expectativa ansiosa da posse definitiva. Val-t assinou imediatamente os documentos de solicitação.

A-Rubi (era o nome dela), recebeu comunicado de pro-posta uma hora após. Tinha vinte e dois anos e sua ocasião propícia chegara. Estranhamente, porém, não assinou logo sua anuência. Pensou românticamente no assunto e só decidiu-se no dia seguinte, o que, cientificamente, era um absurdo, pois nossa mente não pode chegar a nenhuma conclusão diferente de um computador, que não seja uma tolice. Enfim, esse era um problema que vinha na raiz dos tempos. Uma das matérias im-portantes do Instituto Central era a análise das “Contradições, paradoxos e decisões ilógicas do grand-pin mental feminino”.

Dias depois, tudo regularizado, eles se encontraram pela primeira vez. A-Rubi viajara milhares de quilômetros tranqüila-

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mente, mas quando Val-t vinha se aproximando no passeio ro-lante, sorrindo para ela, seu coração bateu mais forte. Quando êle a abraçou, beijando-a no rosto, sentiu as pernas bambas, uma vontade de ficar ali, protegida por aqueles braços. Quando fora examinada pela máquina enorme e incompreensível, nunca pensou que ela lhe descobrisse um homem assim, que lhe fazia bater o coração, antes mesmo de conhecê-lo melhor.

Val-t tomou-a pela mão e foram para casa. A-Rubi pare-cia-lhe uma daquelas bebidas proibidas, que trazem alegria e exaltação. Êle era um entusiasta do progresso, seu apartamento tinha mais botões e controles do que os de todos seus amigos. Sabia que um bom computador podia prever um espirro com um mês de antecedência, mas há coisas fantásticas da ciência que não nos dizem respeito, não nos atingem diretamente. Mas sua mulher ali estava e com o passar dos dias sua paixão au-mentava. Trazia-lhe rosas frescas dos campos externos, levava-a a passear pelos lugares da sua infância, contava-lhe as traves-suras, o aparelho voador que fizera aos onze anos e espatifara depois de vôos arriscados, onde puzera em risco a vida dos mo-leques vizinhos. A-Rubi era carinhosa, compreensiva, mas Val-t surpreendia-se às vezes com uma recusa ou discordância que o punha impaciente. Procurava controlar-se, pois o Computador dera-lhe exatamente o que buscava. Logo, aquela ânsia polêmi-ca que êle possuía, devia ser parte do seu temperamento, talvez precisasse mesmo ficar nervoso de vez em quando. Reconhecia que A-Rubi tinha defeitos. Um deles, que o incomodava, era o de ser completamente anti-científica. Nem chegava a isso. Não tomava conhecimento de nenhuma lei cibertrônica nem seus princípios a afetavam. Val-t, ao chegar a tarde, já não apertava o botão correspondente para o jantar. A-Rubi alegara que aque-las refeições preparadas com todos os elementos exatos, não tinham sabor nenhum. Comprara um fogão portátil, que que-brara as linhas exatamente combinadas da cozinha. Um cheiro forte de iguarias inundava tudo. Val-t prometeu ir imediatamen-te adquirir um neutralizador de odores, mas A-Rubi, admirada, o proibiu terminantemente, pois o prazer de preparar e antever uma refeição, incluía aspirar o seu “perfume”. Parecia ter sido

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transplantada de um mundo antigo, pois suas opiniões ela as baseava em convicções, às vezes gratuitas. Val-t nunca a vira procurar uma tabela ou bater uma consulta para o Computador Central. Dizia bobagens como: “Parece que amanhã vai chover”, quando qualquer pessoa recorria à previsão para afirmar fatos exatos. Quando sua mulher pedia-lhe explicações Val-t sentia-se lisonjeado. Fazia-lhe longas exposições, dignas de um au-ditório maior. Êle era senhor de uma lógica perfeita e de um frio raciocínio. A-Rubi olhava-o enquanto falava e era inegável a sua admiração, o brilho orgulhoso de posse que seus olhos contavam. Val-t, entretanto, era extraordinariamente perspicaz e percebia que a mulher admirava e se orgulhava de que ele fosse capaz de saber e dizer todas aquelas coisas. Mas, as con-clusões e aplicações das verdades expostas, isso praticamente não a atingiam. Discutiam animadamente, ela com uma espe-cial habilidade de abandonar o assunto central, para enveredar por meandros onde até Val-t lutava para escapar. Os ânimos se exaltavam, A-Rubi gritava que o detestava, que êle deveria dor-mir com todas as máquinas que adorava.

Val-t orgulhava-se de nunca perder a calma, de não dizer nada que fosse exagerado ou se afastasse da verdade. Realmen-te êle era capaz disso. Sua calma, porém, referia-se ao significa-do das frases, a linha da sua argumentação. Êle possuía uma voz alta e aguda, que conferia às palavras mais simples uma dureza implacável. A-Rubi batia-se com êle valentemente, mas sua resistência era pequena. Os defeitos que Val-t lhe apontava, expondo-os a um frígido exame, iam derrubando suas forças, ela sentia-se derreter para transformar-se numa coisa insigni-ficante e desprezível. Chorava em desespero, para logo atirar-se atrás do companheiro, que ia para o inter-fon chamar um mé-dico. Val-t aceitava contrariado as razões da mulher. Para êle a diferença entre temperamento e doença devia ser medida pelas vibrações do grand-pin mental. Fazia um esforço enorme para suportar os absurdos e nem sequer podia sugerir um recondi-cionamento, pois provocaria uma nova crise, A-Rubi a gritar que não se importava quantas vibrações emitia e que não ia deixar nenhuma máquina alterá-las.

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Isso passava. Val-t tomava mep-14 e reconciliavam-se com mútuas declarações. A-Rubi chorava no seu ombro dizendo que o amava, enquanto êle sentia o prazer de tê-la nos braços, desamparada e frágil, ao mesmo tempo que não se conformava de que ela não se “tratasse” no Instituto Central, o que resolve-ria tudo de maneira simples e científica.

Passavam por períodos calmos, sua vida transcorrendo maravilhosamente. Algo insignificante podia desencadear nova disputa e Val-t resolvera não mais tomar mep-14 para reconci-liar-se. Era um processo artificial e injusto, pois varria todas as suas objeções com uma felicidade condicionada que apagava as divergências, mas não entrava em suas causas. Val-t esforçava-se numa autocrítica severa, procurava mudar seu temperamen-to, adaptar seus modos de ver com os da mulher. O Compu-tador Central, justo e infalível, a escolhera em bilhões como a mais perfeita companheira. Urgia desbastar aquelas arestas es-tranhas, que Val-t não observava em nenhum casal conhecido, geralmente pacífico, concordando-se mutuamente com tudo. Crente justificado na justiça valvitrônica, supunha que talvez fosse êle mais culpado, nas divergências com a mulher. Tentava mudar de métodos, tratá-la de maneira diferente, com e sem resultados. A questão básica, com a qual êle menos se confor-mava, era a recusa de A-Rubi de fazer qualquer tratamento. Sua antipatia pelas máquinas valvitrônicas ou mecânicas era tão grande quanto a paixão que Val-t por elas sentia. A-Rubi reu-nira uma pequena coleção de antigüidades. Eram alguns livros impressos em papel, máquinas fotográficas ainda com películas sensíveis, um rádio-anel etc. Val-t achava tudo aquilo obsoleto e desinteressante. Não o dizia freqüentemente, pois ela se abor-receria, mas julgava que sua teimosia era resquício de épocas ultrapassadas. Embora se controlassem diante de estranhos, às vezes deixavam escapar palavras mais altas. Muitos lhes reco-mendavam um recondicionamento geral o que, pelas convicções arcaicas de A-Rubi, era uma grave ofensa. Em compensação, seus transportes de amor também surpreendiam os outros, que se entendiam com uma boa dose de mep-14 e se amavam depois como alunos bem comportados e contidos dos seus deveres.

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Para um homem tão apaixonado pelo progresso e regulamentos, como Val-t, talvez fossem os eventuais e emocionantes êxtases de amor e compreensão que lhe davam forças para reconciliar-se com A-Rubi, perdoá-la e recomeçarem cheios de esperanças. Embora êle pudesse se considerar um cientista perto da mu-lher, seus arraigados conceitos tentavam novos caminhos. Não ásperos e desinteressantes como se poderia deduzir, mas com aquela porcentagem de imprevisto interesse e selvagem fascina-ção, com os quais os pioneiros desbravaram as selvas de Marte ou enveredavam pela cadeia hibenstein em primitivos foguetes. Afinal, a valvitrônica lhe escolhera a companheira exata. Sentia sua falta, sua companhia lhe era estimulante, e não havia ne-nhum regulamento obrigatório que recomendasse mep-14, ob-nomemória ou qualquer outro recurso fora dos naturais, para garantir a felicidade de um casal. Val-t tinha de admitir que aprendera com a mulher a extrair prazer na leitura de velhos textos. Era fatigante descobrir o significado de palavras esqueci-das, penetrar o drama de situações atualmente impossíveis. Seu amigo Dab-I achava-o mudado, com uma compreensão mais “humana” dos problemas. Val-t não concordava, dizendo não ser essa a explicação. Êle continuava acreditando na sabedoria da nova civilização, onde a palavra “humano” era símbolo de atraso, parcialidade, ambição criminosa etc. Nenhum aspecto ou resolução “humana” poder-se-ia comparar com a Verdade matemática, extrapolada pelo Computador Central. “Veja, por exemplo, a minha união”, argumentava Val-t, “com todas essas incompreensões que ainda não acertamos, como é perfeita, gra-ças a valvitrônica. Eu amo minha mulher porque a soma total de suas características, em todo o universo, é a que mais se adapta às minhas. Fôssemos nos encontrar de maneira intui-tiva e “humana”, como há séculos, e o resultado seria aqueles filhos mentalmente desequilibrados, as traições sexuais resolvi-das por crimes estúpidos”. Este argumento, nas discussões com a mulher, servia a ambos em situações completamente opostas. Quando tudo ia bem, êle o invocava como símbolo da sabedoria valvitrônica que comandava o mundo. Se brigavam, a mulher que o lembrava, para dizer que o Computador Central nada sa-

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bia e que êle não a achava a companheira ideal.O ambiente era tenso, mas também vibrante. Val-t adqui-

riu alguns requintes, como o de preferir esta ou aquela iguaria, que A-Rubi lhe fazia no fogão portátil, sem consultar nenhuma tabela de hidratos de carbono ou vitaminas. Verdadeira regres-são aos tempos empíricos onde o prazer de comer estava aci-ma de suas finalidades funcionais. Os Avalvitras, cujo símbolo um tanto infantil, consistia no desenho de uma válvula positron quebrada, tentavam reconstituir certos valores naturais que eles julgavam melhores às infalíveis decisões valvitrônicas. Val-t os considerava um bando completamente fora da realidade, a reivindicar liberdades antigas, esquecendo-se dos seus funestos resultados. Os Avalvitras, além disso, podiam se dar ao luxo de exaltar liberdades passadas, o homem expontâneo e suas enga-nadoras vantagens. Nenhum deles dispensava as previsões do Computador Gigante, ou deixava as esteiras rolantes para an-dar a pé. Muitos dos mais exaltados eram técnicos cibernéticos, ocupando posições importantes na hierarquia. Dab-I, impres-sionado com as modificações de Val-t, convidou-o para aderir ao partido. Val-t, assegurando-lhe que não o denunciaria, recusou. Não poderia concordar com aquela gente idealisticamente enga-nada que, palmilhando as trilhas da segurança e comodidade que as máquinas lhes davam, investiam contra elas, esquecidos de que foi o homem que as inventou e aperfeiçoou, preenchendo os vazios da nossa capacidade de discriminação. A-Rubi não o condenou por isso. Se suas maneiras de encarar as coisas coin-cidia com a dos Avalvitras, não queria dizer que o fizesse por convicções ideológicas. Ela não tomava conhecimento do parti-do, sendo uma praticante inocente.

As transformações de Val-t já eram uma boa vitória em re-lação ao seu temperamento inflexível. Os próprios amigos perce-biam, admirados, que A-Rubi tinha-o tornado muito mais sim-pático e acessível. Entretanto, muito do que ele fazia ou deixava de fazer para agradar a mulher, surgia de um esforço consciente e pouca convicção. Passavam os meses e explodiam novas dis-cussões, onde tudo vinha novamente à baila, Val-t tornando a pedir exames e recondicionamentos, A-Rubi a acusá-lo com exa-

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gero (que ela não sabia controlar). Entravam no círculo vicioso, as acusações já perdoadas voltando com o mesmo peso, Val-t ameaçando denúncias de toda aquela “anormalidade”. Após um desentendimento, onde ambos se excederam, Val-t saiu, num impulso e foi até o Instituto Uniocional. Um Ciberneta-mental o recebeu, repreendendo-o com veemência por não ter vindo antes. Impunha-se um reexame e nova extrapolação dos dados do ca-sal. O Ciberneta-mental voltou daí a pouco. Estava constrangi-do e foi com hesitações e circunlóquios que explicou a Val-t. Na época em que êle se uniu com A-Rubi, descobriram exatamente 232 casos onde houvera total sabotagem nos resultados. Um partidário Avalvitra, funcionário nos estágios positrônicos, tro-cara um corretor de vibrações, anulando o indicador de defeitos. No dia seguinte vários circuitos estavam fundidos e o crime foi descoberto. Durante aquelas horas, o gigante infalível cometera 232 enganos completos. O Ciberneta entregou-lhe um certifica-do. Com este o Instituto Central anularia sua união, seriam in-denizados, A-Rubi voltaria para seu distante agrupamento e êle se submeteria a um novo e garantido exame, para ganhar, dessa vez, sua legítima metade. Val-t nunca imaginara uma surpresa assim. Voltou para casa e disse a A-Rubi que a união deles fora um erro cibernético. Não eram duas metades, mas pessoas com-pletamente diversas que nem sequer empregaram os empíricos métodos dos antepassados para se encontrarem. Val-t não es-tava com a voz aguda e antipática com a qual discutia. Contou tudo isso em um tom narrativo e cansado. A-Rubi desatou em pranto. Val-t levantou-se calmamente, foi segurá-la pelo ombro: “Não é preciso chorar A-Rubi. Afinal não aconteceu nenhuma desgraça. Veja, aquele prato está se queimando. Vamos comer como todos os dias...” A-Rubi se aquietou, foi terminar a re-feição. Comeram lentamente, conversando com cerimônia em outros assuntos. Val-t olhava para ela, os olhos vermelhos, o trejeito dos lábios, a voz suave... Ao deitarem-se evitavam olhar um para o outro. A cabeça no travesseiro, A-Rubi recomeçou os soluços. Val-t puxou-a para si, beijou as pálpebras úmidas, consolou-a e se amaram como nos melhores dias.

Por falta de tempo Val-t não levava o certificado do engano

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ao Instituto Central para a competente anulação. Na verdade, era uma preguiça quase intencional. O fato de saberem que não eram feitos um para o outro e que não constituíam duas meta-des infalivelmente reunidas, dava-lhes uma inédita compreen-são para evitarem as disputas. A possibilidade de que outro ho-mem de suas relações, pudesse ser mais um pouco a metade de A-Rubi do que êle, fazia Vai-t sentir ciúmes, emoção vergonhosa que há muito o Computador Central tinha sepultado em seus circuitos. A-Rubi tornara-se mais fascinante e sedutora, desde que ninguém a ameaçava mais com o pesadelo das máquinas.

Com o passar doa dias, embora atenuadas, as rusgas re-tornavam. Fosse qual fosse o começo, A-Rubi acabava por se referir ao certificado do engano, devidamente guardado na ga-veta dos documentos. Fazia ironias quanto a sua preciosidade, e desafiava Val-t a levá-lo ao Instituto Central, a liquidar aquela falsa união na qual êle não acreditava.

Desde, jovem, em seu trabalho, Val-t dispunha de com-putadores para as decisões importantes. Condicionado a pouco confiar nas frágeis circunvoluções cerebrais humanas, era lento nas próprias resoluções. Muito do seu equilíbrio era fruto de uma grande força de vontade, a certeza de que todas as decisões tomadas quando as vibrações do grand-pin mental excediam um certo limite, eram perigosas, porque não levavam em conta a fria realidade. Porém, o exemplo da mulher, que dizia o que vinha à cabeça para se arrepender ou transformar depois, aca-bava influenciando-o. Já lançava uns impropérios, nas horas de exaltação. Vindos dele, suas afirmativas adquiriam um valor que impressionava A-Rubi. “Tudo o que eu digo”, queixava-se êle, “você toma como minha exata vontade e pensamento. Não tenho o direito, como você, de gritar tolices e retirá-las depois”.

Como o assunto não mais surgiu, Val-t erradamente acre-ditou que a mulher se esquecera ou não se importava mais com o célebre certificado do engano, com o qual poderiam revogar sua união. Um dia houve uma discussão mais acerba, que lem-brava aquelas violentas de outros tempos. A-Rubi acusou-o de covarde, pois que não a amava nem tinha coragem de se sepa-rar. Que ela própria pegaria o documento e o levaria ao Instituto

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Central. Val-t, num repente, abriu a gaveta, jogou-lhe no colo o papel, mandou que ela fosse imediatamente. A-Rubi devolveu-lhe, dizendo que o odiava, fosse êle mesmo, quando voltasse êle não a encontraria mais.

Val-t saiu com o certificado. Ia terminar com aquele contra-senso. Chegou até o Instituto Central, mas não entrou. Sentou-se em um nicho da praça, uma estranha sensação de melanco-lia e isolamento. Procurava reviver aquele tempo com A-Rubi, analisá-lo racionalmente. Seria submetido a um novo exame e teria então a companheira sonhada. Esforçava-se para imaginá-la uma perfeita mulher, comparando-a com aquilo que o desa-gradava em A-Rubi. Val-t não podia evitar uma angustiada per-turbação. Êle não se conformava em perder a mulher. Mesmo com seus defeitos, comparados com as maravilhas da próxima. Provasse o Valvitron Gigante os seus enganos, Val-t começava a gostar do erro e não queria libertar-se. Naquele nicho isolado na praça imensa, com um sol agradável suavizado pela cúpula, respirando o ar filtrado mais puro do que o marinho, Val-t se debatia na luta dos seus sentimentos contra a indiscutível e in-falível cultura valvitrônica acumulada em séculos. Levantou-se com uma decisão, que lhe dava um prazer secreto, um gosto de enfrentar o problema por si só, embora mais difícil o caminho e maior a responsabilidade. Lembrou-se de que ela ameaçara partir. Passou para o rolante mais rápido, numa ânsia tremenda de chegar depressa. Seu elevador nunca lhe pareceu tão lento. Quando a porta deslizou, êle gritou o nome da mulher. Ela es-tava no quarto, atirada na cama, a mala vazia aberta ao lado. Val-t, sem uma palavra, tirou o “certificado de engano” do bolso, rasgou-o com esforço de ambas as mãos, atirou tudo no incine-rador. A-Rubi olhava, desconfiada, como quem duvida. Depois se abraçaram com desespero e seria impossível reproduzir as palavras de amor, as promessas exageradas, as confissões ditas entre carinhos, inclusive as anti-científicas blasfêmias proferi-das (com enorme injustiça) contra o Computador Central.

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El-Rey Dom Fernando gostava muyto de caça e ia de onde sabia que as havia boas, tendo em isso grande prazer e desenfa-damento; e porque o certificado que em terra da Beira, e por riba de Coa, havia bons montes e porcos em gramde abundância, fez-se prestes com toda sua casa, e da Raynha, e muitos montei-ros, com sabujos e alaãos, e levou caminho daquela comarca.

Em chegando aaquele logar em muyto se espantou de que verde e bello havia. De tantas e tais cores que muyto se enfadou de ali não habitar.

E fazemdo naquelles campos gramdes andamssas, heis um dia encontraram um logar muy destruído e queimado. E es-tranharam que em campos tais a naturesza se houvera tão mal. Pois sy todo ao redor havia de bon, muyto espanto teve com o campo destruído.

El-Rey Dom Fernando pensou em sabedoria: o homem não deve fazer a outrem aquillo que não queria que fosse feito a êlle. E assym pensando viu que em tal campo haveria coisas tais que aa naturesza não combinava. Sobre o que pertence aa virtu-de da prudência, a mym parece que em muy bom sênsso agiu e disse aos seos que se foram e que muy distamte ficassem.

De toda busca que allí perquiriu, de nada encontrou.— Tempo que eu vemçia a todo! — comta-sse que bradava

El-Rey. E antes não o houvera dito, porque então, vimdo de riba um gramde ser sy mostrou, de um tamanho tão gramde, muyto mayor que duas sallas do castelo de El-Rey, de brilho de Sol e a êlle parecido, inda que deitado. E tão gramde era que ao tocar o solo até parecia tremê-lo todo. El-Rey, de muy corajoso que sy mostrava, não pôde em suas reais pernas sy suster, de

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onde ao chão veio. E seos vassalos e sua molher e seos filhos se puzeram a correr que de onde podiam.

E de muy distante sy olhava El-Rey al solo e de estranhos seres que do sol brilhamte dessiam ao chão e a El-Rey falavam. E de nada sy ouvia que de longe sy estava.

Comta-nos El-Rey Dom Fernando:“O estranho dessêo do sol e levantou de pesada mão e inda

parecia acenar quando um romco surgiu de suas entranhas. Apontou para o céo — e outro romco vibrou meos ouvidos! Bai-xou a gramde mão como gaivota que plaina sobre o Mondêgo e apontou o sol brilhamte de omde sayra. Emtão roncou de mais forte inda, raivoso como cão batido. A mya coragem ía e voltava. Em fé que mais ía, do que voltava. Respondí-lhe, tocando com fervor a cruz do Cristo: “Vade retro...” murmurei e com voz firme ainda: “Satanás”! O monstro confirmou sua pestilencial origem repetindo “Satanás, Satanás” em sua infernal voz, e apontando a terra sob nossos pés. “Vade retro!” repetí-lhe dasafiador tocando com unção a cruz em meo peito e Satan a reconheceu dado que inclinou o corpo em respeito. Tal é a essência do Diabo, porém, que ao logo após me cobre de nojo imitando meo gesto, batendo no próprio peito, e falando sua lingua diabólica: “Sssiósss”. En-tão, depois da heresia, procura algo no chão e apanhando um pequeno galho fez-me com a horrenda mão um gesto. Queria mynha real pessoa junto a sy. Com toda a coragem que me levou al combate dos infiéis muçulmanos, vemcendo-os em batalha viril, aproxeguei-me. Apontou êlle o Sol que representa nosso Deos e nossa Vida e desenhou um círculo no chão. Agora eo compreendia todo. Queria êlle jogar a salvação de mynha vida. E — diabólico! — jogá-la com o infantil Jogo da Velha. Sorri, sombranceiro que minha vida ao Demo valesse tão pouco. Num ímpeto apanhei de outro graveto e completei o jogo: dous traços verticais, dous traços horizontais a cruzá-los, e deixei seo cír-culo no centro. O Demo me olhou em pasmo, bem percebendo a sutileza de mynha jogada ao prendê-lo na seqüência certa. Não hesitei mais e desenhei a Cruz de Cristo no canto superior direito tirando-lhe um caminho. O Diaço me olhou com o terror espantando olhos. Bem percebi quão trêmulas suas garras fica-

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ram. E êle apontou a Cruz e a mym. Com um sorriso confiante respondi: “Sy! A cruz de Cristo me protegerá!” Ao que êlle ficou bem contrafeito. Com cautela para não passar sobre meo sinal divino, desenhou outro círculo ao acaso; mas já lhe preparara o jogo e apus minha resposta no caminho da vitória. Belzebú soergueu o corpanzil medonho e sua cabeça luzidia brilhava de furor. Desenhou o terceiro círculo mais distamte, batemdo com insistemcia com o pauzinho, e eo coloquei minha cruz protetora, fazemdo o traço que me deo Vitória! Assy me ergui e voltei-lhe as costas me afastando com orgulho. O Malcheiroso, temente aa Deos meo Salvador, fugiu em seo círculo de chamas para os céos, de onde ao Inferno foi precipitado por Cristo Nosso Se-nhor.”

Essa historia deixo escritto para que a recebam em manda o futuro: de cousas estranhas sy passaram que nom se expli-cam. Por muyta coragem que teve El-Rey, pouco sy pôde comtra o desconhecido, e os moços naturalmente devem obedecer aos velhos, que tem mayor speriencia das cousas y som mais pru-dentes.

E os que isto quiserem bem aprender, leiam-no de come-ço, pouco, passo, e bem apontado, tornando algumas vozes ao que já leram para saberem melhor; porque se o leram ryjo, e muyto juntamente, como livro destorias, logo desprezará, e se enfadarão dele, por não o poderem tão bem entender nem relem-brar, porque regra geral ha, desta maneira se devem ler todos os livros de alguma ensinamça ou sciencia.

De uma crônica do séc. XIV

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Há uma grande diferença entre o viajante ocasional, o tu-rista e o viajante crônico. Sou, por força de minha profissão, um veterano das linhas de ônibus que cruzam os estados do sul do país. Já percorri quilômetros suficientes para duas via-gens de ida e volta à Lua. E qualquer indivíduo, depois de pas-sar constantemente pelas mesmas estradas, perde o interesse pela paisagem e pelos eventuais bate-papos com o companheiro de banco. Os detalhes do caminho são conhecidos, sabe-se em qual parada se pode tomar um bom cafezinho, qual é o boteco do portuga simpático que oferece uns bolinhos deliciosos e ... inofensivos.

A gente aprende, inclusive, a avaliar à primeira vista o vi-zinho de banco e decidir se vale a pena ou não (ah, aquela loira!) manter uma conversação.

Quando farejava um desses chatos itinerantes, eu me transformava na mais impenetrável esfinge, qual fortaleza inex-pugnável aos violentos ataques palradores do colega de viagem, fazendo-o desistir após o terceiro ou quarto assalto.

Sempre tive a consciência de ter agido em defesa de meu próprio sossego e me orgulhava de ter um olho clínico infalível — ao menos até o dia em que aquele velhote subiu no ônibus.

Aparentando uns sessenta anos, malas, capa, embrulhos sobraçados num verdadeiro caos ambulante, veio para meu lado, o guarda-chuva em riste como se estivesse num torneio medieval. Ajeitou precariamente as malas e pacotes na bagagei-ra, sorriu, apontou para o assento vazio a meu lado, junto da janela, e perguntou:

— É o número 16, não é?

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Naquele dia eu estava particularmente mal-humorado.— Hummm! — foi a eloqüente resposta que êle obteve. E

voltei a concentrar-me nas histórias em quadrinhos do jornal que estava lendo.

— Dá licença... Se o senhor preferir a janela pode trocar de lugar, que eu não me importo. — Sorriu de novo, com ar de quem não se iria dar por vencido.

— Hummm, — respondi, levantando-me para lhe dar pas-sagem.

— Vamos ter uma excelente viagem, com a temperatura tão fresca e agradável, não é? Eu detesto viajar antes das qua-tro, pois o calor nesta época do ano é infernal, o senhor não acha?

— É — concordei, num rasgo de eloqüente oratória. Creio que o velhote ficou tão impressionado com meus dons de con-versador que se recolheu humildemente a seu canto, e ficou a observar a paisagem. Depois, abriu uma surrada pasta de car-tão — dessas que as mocinhas usam para carregar músicas. Da pasta saíram, em desordem, várias folhas de papel cheias de garatujas que eu tentei entender. Nem o próprio Champolion conseguiria decifrá-las, àquela distância e com o ônibus saco-lejando daquela forma! Mas o velhote lia cuidadosamente com os olhos um tanto vesgos pela proximidade do papel, mantido a um palmo do nariz em virtude da parca luz do entardecer, das lentes de míope precisando de substituição, e da excelência da estrada — experiência inebriante para turistas que jamais en-traram numa perfuradora pneumática...

Escureceu rapidamente e antes que me propusesse a dar uma cochilada, ainda pude observar meu companheiro anotan-do coisas num bloco de papel, utilizando-se dos mesmos gar-ranchos que cobriam as páginas já escritas, mas com um toque nervoso ali e acolá provocado pelas súbitas oscilações do ônibus. Acordei algumas vezes e percebi que meu companheiro adorme-cera, pelo delicado ruído de trovão gutural que emitia. Dei-lhe uma suave cotovelada e êle interrompeu o ronco. Dormi como um justo até que, sobressaltado, acordei. (Estava sonhando que um monstro se atirara sobre mim). O monstro articulou uma

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desculpa, apanhou suas malas, maletas, embrulhos, a pasta e desceu apressado em busca da cidadezinha que quase passara desapercebida.

Resmunguei alguma coisa gentil a respeito da ascendên-cia de gente que pisa nos pés dos que dormem inocentemente e voltei a recostar-me.

Amanhecera e o ônibus estava chegando em São Paulo quando acordei com aquele gosto característico de maçaneta de porta de repartição pública na boca. Apanhei o cigarro; a caixa de fósforos caiu no chão e ao abaixar-me vi embaixo do banco as folhas manuscritas que o velhote deixara, em seu sono, cair. Provavelmente, na pressa de saltar, esquecera-as.

Recolhi-as e comecei a ler por simples curiosidade. Até hoje me arrependo.

Se alguém quiser saber porquê — e não admito que venha me culpar por sua própria curiosidade — aqui está a cópia do manuscrito.

Leia-a, por sua conta e risco.

O MANUSCRITO

Barbosa definhava. Já não se tratava de um problema a resolver no plano lógico. Era um desafio, alguma coisa de pes-soal entre êle e a Máquina. Em cima da mesa, como um gnomo acocorado a olhar para êle irradiando malignidade, aquela coisa diabólica parecia imóvel em seu perpétuo movimento. Barbosa olhava a Máquina e sentia calafrios. Não era o movimento inces-sante, o girar ininterrupto de rotores e engrenagens. Era mais que isso: era o Indestrutível, o inexorável, o eterno, que estava ali presente.

O zumbido contínuo testemunhava a sua própria impotên-cia. A Máquina descobrira que lubrificação era um fator indis-pensável ao seu estado de rendimento ótimo, e agora sintetizava graxas e óleos a partir de quantidades infinitesimais de lipóides e ácidos graxos presentes no pólen, no suor, no ar exalado pe-los animais e que compunham em traços a atmosfera. Barbosa desconfiava que, ainda em um sistema isolado no espaço, a Má-

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quina seria capaz de criar matéria a partir de longínquas fontes de energia de outras galáxias. Era algo fabuloso — e também horrível. Havia naquela pequena caixa a energia das linhagens biológicas, o mistério da criação de universos e talvez até algo maior, mais incompreensível. Era o Absoluto manifestando-se mecanicamente.

O zumbido não cessa... Ela gira, gira... Os olhos não se despregam do rotor... gira... gira...Há uma semana Barbosa não vai à Repartição. No começo

era uma pilhéria:“Olha, ó Souza: o Barbosa vai ficar rico. Inventou o moto-

contínuo!”Todos se riam; Barbosa também ria e explicava:— Não é só isso; é coisa muito mais importante, A Máqui-

na opera com campos de energia infra-atômica. É indestrutível.E comentou com Januário, na hora da caipirinha:— Mesmo eu não compreendo como é que a coisa aconte-

ceu. Tinha a idéia de que daria certo, mas não esperava realizar experimentalmente as soluções de Kirilov para a criação de ma-téria...

Januário encolhia os ombros:— Não pesquei nada. Mas já que é assim importante, va-

mos a outra rodada para comemorar.Barbosa já não lia mais. Os livros, última possibilidade,

nada lhe sugeriam.A Máquina gira, gira, zumbe... ri, gargalha, maligna!Êle não suporta mais; com olhos injetados, a boca num

rictus, apanha a garrafa vazia e atira-a contra a Máquina. Algo se quebra numa explosão de fagulhas e cacos de vidro. O zumbi-do pára. Há uma reorganização de campos de força, a máquina geme como se estivesse dando à luz a si própria, há uma queda de corrente. As luzes amortecem e depois volta o zumbido mo-nótono.

Barbosa está febril, as mãos se contraindo em raiva impo-tente, a Máquina zumbindo, zombando, zumbindo...

“Seu Barbosa, os outros inquilinos não agüentam mais o barulho. Na semana passada o senhor disse que...”

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“Eu sei, dona Gertrudes. Lhe prometo que amanhã darei um jeito”.

Dar um jeito... que jeito, meu Deus? ... Zumbindo... zombando... zumbindo... Mas deve haver um jeito! Como parar esta maldita coi-

sa?... Zumbindo... zumbindo...Desde ontem não como. Esse demônio não pára; alimenta-

se do nada! Como posso parar a Máquina, se ela só precisa do Nada para existir?... O que é menos que Nada?... Acho que estou ficando louco. Isto é um pesadelo. É a lenda do Frankenstein. Como é possível que eu tenha criado uma máquina e agora não consiga fazê-la parar?

A Máquina gira. Barbosa cerra os olhos. Quisera cerrar os ouvidos!...

Ontem achei uma solução... é isso... a única... Beber até não mais ouvi-la! Me embriagar... dormir ... morrer, quem sabe... Não há dúvidas, estou bêbado, isto é o Hamlet... Maldita! Eu vou parar esse demônio nem que tenha de destruir o Universo para isso!

O martelo bate em louca fúria, arrebentando, destroçan-do, espatifando. A Máquina grita, as válvulas explodem, o zum-bido se transforma num uivo de animal ferido. Súbito tudo pára. Barbosa cái exausto. Silêncio, escuridão. As luzes se apagaram, os fusíveis queimados. ..

Nada, a não ser o ruído de répteis estranhos, rastejan-do pela escuridão do quarto. Um cheiro acre de ozônio, garras, unhas, asas, alguma coisa que se arrasta pelo chão. Barbosa, alucinado, ouve todos os pequenos ruídos como a uma procis-são de demônios desfilando sobre o cadáver da Máquina devas-tada.

...Não é um cadáver... São só ferragens, fios, metal e vidro! E está morta!... Tem de estar...

Lento, grave, depois num crescendo, o zumbido volta a se fazer ouvir.

Um vizinho está no corredor, maldizendo a escuridão. Al-guém pede uma vela, outros acodem com fusíveis e as luzes

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se acendem e a Máquina......a Máquina está de novo girando, girando, zumbindo...

Tudo isso Barbosa não vê,zombando

No banheiro, a gilette ensangüentada,zombando

testemunha a vitória .. .vitória?zombando

de Barbosa, que já não ouve mais o zumbir da Máquina

zumbindozumbindo

zombando...

— E a senhora foi quem achou o corpo?— Foi sim, doutor. Coitado, era tão distinto, quem iria

imaginar...— Como foi que a senhora descobriu?— Bom... eu fui fazer a limpeza do quarto, pois pensei

que tivesse saído para o serviço. Êle tinha deixado aquela coisa funcionando. Mas não suporto essas coisas barulhentas e então desliguei a máquina. Então ouvi o barulho da torneira e...

— Espere. Aqui nas últimas páginas do diário do Dr. Bar-bosa êle afirma que não conseguia fazer parar a máquina e que isso o estava transtornando. Como foi que a senhora, dona Ger-trudes, conseguiu fazê-lo?

— Ora, doutor, não vê que...

*

Neste ponto, ao virar a página, havia uma última folha... em branco. O diabo do velhote, com sua miopia, suas velhas lentes, seus olhos de toupeira, já não conseguia continuar com a pouca luz do entardecer e o violento sacolejar do ônibus.

As noites de insônia, a curiosidade de saber ou aventar com uma solução para o enigma, estão me levando à neurose.

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Se alguém conhecer o velhote, ou o final da história, — por fa-vor! — conte-me como parar essa maldita máquina!

Stanford, novembro de 1963

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I — BERENICE NO HOSPITAL

O doutor Bernstein olhava a clarabóia da sala de jantar. O último temporal introduzira por baixo das telhas algumas folhas secas de plátanos que agora formavam curiosos desenhos por cima do vidro, interceptando a claridade. Esfregou lentamente as mãos e olhou-me.

— Foi terrível — disse em voz sumida.— Não compreendo — disse eu. — Meu primo era um ra-

paz normal. Traria ela, então, alguma tara?— Um dos dois foi responsável, sem dúvida. Trata-se de

um caso positivo, embora extraordinário, de atavismo.— Não posso compreender como é que duas pessoas

sãs...— As leis da hereditariedade são discutíveis. Há casos que

elas não explicam, como esse. Sabe-se que as energias heredi-tárias conservam suas forças e qualidades originais nos genes e a cromatina das células reprodutoras é portadora das heran-ças da espécie, o que chamamos de “mnema hereditária”, princi-palmente dos nossos ascendentes diretos, como Richard Simon deixou claro. Mas...

— Um momento, dr. Bernstein. Que quer dizer isso em linguagem simples?

— Quer dizer que cada um de nós resume a evolução da espécie, desde os mais longínquos antepassados. O embrião hu-mano reproduz, durante a vida intra-uterina, quase todas as fases da evolução do homem. Creio que poderíamos dizer que o homem não morre. Não morreu desde que apareceu a vida sobre

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a terra. Êle vem se transportando, integral, na pequena célula germinativa que dá origem ao seu descendente direto. Todos os nossos antepassados estão latentes em nós...

O doutor foi interrompido pela entrada de um enfermeiro.— Doutor — disse êle — Começou de novo.— Quer vir? — perguntou Bernstein. — É ela. Falava de Berenice, viúva de meu primo Flávio. Levantei-

me e acompanhei-os. Sobre o leito agitava-se uma forma huma-na. Aproximei-me e Berenice me pareceu linda, como sempre. Seus cabelos de ouro tinham admiráveis reflexos fulvos sob a luz esverdeada. Seu rosto, que eu conhecera corado, vivo, ilu-minado pelos brilhantes olhos azuis — estava emaciado pela luz estranha que lhe dava tons de mármore e as formas perfeitas da testa, do nariz, dos lábios, do queixo, destacavam-se na fronha amarrotada.

Meu primo conhecera-a no colégio, em Santa Maria, quan-do tinham 13 anos e logo os uniu indestrutível afeição. Durante os quatro anos que êle passou nos Estados Unidos, estudando física nuclear num laboratório de energia atômica, a saudade parecia querer matá-los e êle voltou, deixando a carreira para se casar. E agora, ali estava ela, tão linda como se tivesse ainda 20 anos. Tinham sido muito felizes. Visitei-os todas as vezes em que vim ao Sul. Depois, meus afazeres me levaram para longe e perdemos contato. Agora, aquele telegrama me chamara e eu ali estava, olhando Berenice que se agitava na cama, dizia frases desconexas, chorava.

— É outra crise — disse o doutor. — Aplique-lhe uma in-jeção.

Esperamos até que Berenice caísse na sonolência benéfi-ca e depois deixamos o quarto. Era hora do almoço e fomos ao Renner.

II — NASCE O MENINO

Flávio e Berenice casaram-se por amor aos 23 anos. E como viviam se adorando, passavam mais tempo isolados na Estância da Serra do que no Sobrado de Santa Maria.

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Quando estava para ser mãe, Berenice quis ter seu filho na estância por mais que Flávio insistisse em que deviam ir para Porto Alegre. Bernstein, velho amigo da família, consulta-do, achou que não havia mal em se atender ao desejo da moça. Estava tudo muito bom. Não era provável que houvesse perigo.

— Tua esposa tem razão, Flávio. Ela sabe o que lhe con-vém. Se quer ter o filho na estância, não sei porque não o há de ter lá. Para que você fique mais tranqüilo, ofereço-me para ir com vocês. Para mim serão férias.

O parto não foi muito fácil e enquanto o dr. Bernstein e uma enfermeira atendiam à moça, no quarto, Flávio suava frio na grande varanda envidraçada. Quando o doutor apareceu tra-zia no rosto sinais de preocupação que impressionaram meu primo.

— Doutor! — disse êle, alterado. — Aconteceu alguma coi-sa?

— Não. Nada. Tudo... normal.Flávio encaminhou-se para a porta do quarto, mas o mé-

dico reteve-o.— Um momento, Flávio. Espere.— Doutor! Diga logo! Que é que aconteceu?— Não grite, Flávio. Berenice vai ouvi-lo. Ela está perfei-

tamente bem.— E a criança?— Está muito bem. Não há por que se preocupar. — Mas por que esse mistério, então? Não os posso ver?— Pode, mas espere um pouco. Quero lhe dizer alguma

coisa...O médico foi caminhando para o fundo da varanda e sen-

tou-se numa espreguiçadeira. Flávio seguiu-o, angustiado.— Diga logo, doutor. Que aconteceu? O meu filho...— Não aconteceu coisa alguma. Os dois estão bem. Ape-

nas... — Houve uma pausa. Flávio falava com os olhos, os lá-bios apertados. — Parece-me que a criança não é perfeitamente normal.

— Que quer dizer?— Êle está bem, reage normalmente. Mas não é uma crian-

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ça como as outras.— Quero ver meu filho! — disse Flávio, num ímpeto.— Um momento. Fique aqui, por agora. Vamos esperar

que Berenice adormeça. Não se trata de nada pavoroso, como você talvez esteja pensando. Mas eu tinha que lhe dizer, antes que o visse. Afinal é isto: Parece que o seu filho não completou a evolução normal. Compreende? Está atrasado, como criança nascida antes do tempo. Mas não apresenta as deficiências des-sas crianças. Compreende?

— Compreendo — disse Flávio, num suspiro, deixando-se cair na poltrona de vime, de certo modo aliviado, pois esperava algo pior — compreendo sim.

— Bem. Assim é melhor.— Berenice já sabe?— Não. Há tempo para isso. Precisamos ter certo cuida-

do.— Conte-me, dr. Bernstein... Como é... êle?— Bem... o pior é que nasceu com um rudimento de cau-

da...Flávio arregalou os olhos angustiados.— Cauda, doutor? Cauda?— Espere. O feto humano, até certo ponto de sua evolu-

ção, no útero materno, tem mesmo uma cauda, você sabe disso. Mas antes dos nove meses, essa cauda é absorvida. Estou certo de que ela desaparecerá em pouco tempo. Compreende? Você é culto, sabe disso.

— Que mais, doutor?— Pequenos indícios de evolução incompleta. Pelagem

avermelhada no corpo todo. Maxilar proeminente. Testa fugi-dia... Unhas...

— Meu filho é um monstro! Diga logo!— Tire isso da cabeça, Flávio. É uma criança sadia, viva,

forte mas imperfeitamente desenvolvida. Veja se aceita isso com calma.

Flávio mergulhou num desespero mudo. Pensava na ale-gria de Berenice ao se aproximar o parto; como ela imagina-va seu filho lindo, louro, perfeito. E agora teria nos braços um

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monstrozinho... de cauda! Esteve assim, mudo, absorto, até que a enfermeira se aproximou trazendo nos braços um volume en-volto na manta azul.

— Aqui está êle, Flávio — disse o médico recebendo o pe-queno fardo e depositando-o cuidadosamente sobre os joelhos. Flávio quase saltou, despertado de seus pensamentos e olhou, fascinado.

A primeira coisa que viu foi um rostinho côr-de-rosa, co-berto de penugem avermelhada, os olhinhos fechados, o maxilar inferior projetado. Reparou nas arcadas super-ciliares, espes-sas, proeminentes; na testa fugidia. Era um rosto humano, sem dúvida. Mais humano do que esperava. Mas tinha algo de ani-malesco.

Dominando-se, esforçando-se para desfazer o nó que sen-tia na garganta, Flávio murmurou:

— Parece um macaquinho, doutor...— Ficou num estágio de evolução anterior. Biològicamen-

te, é admissível. Mas êle acabará por se desenvolver e se tornará normal.

— Acha que sim?— Claro. Não podemos desesperar disso.— E Berenice? Berenice, meu Deus! Coitada! Como é que

ela vai receber essa criança?—- Não se preocupe com isso, Flávio. O amor de mãe faz

milagres. Verá...Quando Berenice viu o filho, sofreu complicada reação.

Dor e piedade. Chorando, abraçava o pequenino que fora lumi-nosa esperança e se transformava em amarga desilusão. O me-nino correspondia às carícias da mãe, mamando frenèticamente e cravando no seio as pequenas unhas como garras. Sugava o leite com tanta sófreguidão que arrancava à moça lágrimas de dor. Ela, porém, acariciava-lhe a cabecinha desconforme e, deli-cadamente, procurava tirar de sobre a pele ferida as mãozinhas cobertas de pelagem avermelhada.

— Meu filho, meu filhinho, meu amor! Berenice chorava e as lágrimas punham pequenas manchas escuras no cabelo avermelhado do menino. Sofria mais pensando que êle teria de

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crescer talvez carregando uma tara que o infelicitaria para toda vida. Como o receberiam as outras crianças? Seria repelido, in-juriado. E depois?

O seio doía-lhe. As pequenas unhas arranhavam a pele, feriam-na.

Flávio fugia de perto. Chegava a sentir raiva daquele filho que viera destruir a felicidade do casal; que, em vez de ser mo-tivo de alegria, era-o de sofrimento. Depois vinha-lhe piedade. Afagava doidamente o menino, beijava-o, deixava-se arranhar por êle.

Durante um mês o dr. Bernstein não se afastou, acompa-nhando atentamente o desenvolvimento do pequeno e sua pre-sença contribuiu muito para atenuar o desespero dos pais. Flá-vio parecia conformado. Pelo menos, dominava-se muito bem, para não aumentar o sofrimento da esposa. Lá no fundo, porém, sentia repulsão pelo pequeno. Jamais o amaria como a um fi-lho.

Passado o mês, o dr. Bernstein, que batizara o menino, teve que voltar para Santa Maria e Flávio, enquanto o levava em seu auto, conversava com êle.

— Então, compadre.. que lhe parece?— Você e Berenice emagreceram. Precisam tomar cuida-

do.— Sim. Mas Carlinhos...— É preciso ter paciência.— Quer dizer que não há esperança de vir a ser uma cria-

tura normal?— A cauda tem diminuído. Desaparecerá... — E o resto? Pode dizer o que pensa.— É preciso esperar. A natureza é sábia. O maxilar, a fron-

te, as unhas parece que não se modificaram ainda...— Diga, Bernstein. Carlos crescerá como um macaco ...— Não, Flávio. Que idéia! Será um homem. Feio, talvez.

Mas homem. A beleza de um homem não está no rosto e nas mãos. Êle pode vir a ser o que se chama “um belo homem”. Co-ragem, compadre! Vocês têm que viver com êle e educá-lo. Seja forte por você e por ela.

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Flávio foi encontrar Berenice chorando. — Que aconteceu, querida?— O menino... O Carlinhos... — soluçava ela.— Que foi? Onde está êle?— Está dormindo... Não aconteceu nada. Êle é tão, tão...

— e Berenice rompeu em pranto convulso.— Tranqüilize-se. — Não se deixe impressionar. Bernstein

me disse ainda agora, que Carlinhos se transformará num belo homem. Êle é muito forte, não é? Está ficando mais bonito, não está?

— Está — respondia ela, entre soluços. — Mas aquele pêlo... Não é como as outras crianças... A cabeça...

— Não se deixe impressionar, querida. De qualquer modo, é nosso filho...

— Mas a voz dele, Flávio. O modo como chora...— Não pense nessas coisas, Berenice. Temos que cuidar

dele, para que cresça feliz.— É verdade, Flávio...Berenice limpou mais uma vez as lágrimas e foi olhar o

campo através das vidraças da varanda. Flávio foi dar ordens ao tratorista que o esperava no alpendre.

III — O MENINO E A MATA

Carlinhos estava com três meses. Todo seu corpo era co-berto de pelagem ruiva; os braços longos demais; as pernas leve-mente arqueadas e fortes; os pés grandes, chatos, de dedos mui-to móveis; caixa toráxica muito desenvolvida. O rudimento de cauda ia sendo absorvido, mas o cóccix se transformava numa calosidade. Cabeça pequena; testa curta e fugidia; arcadas su-perciliares muito grandes; olhos pequenos no fundo das órbi-tas. Não se podia ignorar a semelhança que o rapaz apresentava com os macacos. E tinha nas mãos força incrível. Agarrando os dedos do pai, mantinha-se suspenso por muito tempo, sem dar mostra de fraqueza. As unhas cresciam-lhe duras e escuras. Cortá-las causava-lhe sofrimento.

Como Bernstein dissera, o amor de mãe faz milagres. Be-

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renice dispensava ao garotinho cuidados e carinhos mais apu-rados do que os dispensados por qualquer mãe a um filho nor-mal. Flávio escondia a aversão que o menino lhe provocava e não conseguia se acostumar com êle.

Sobreveio uma nova contrariedade: os outros. As mulhe-res que viam a criança, assustavam-se, penalizavam-se e rara-mente sabiam esconder isso. Algumas mostravam-se excessiva-mente pesarosas. Quando as visitas se iam, Berenice caía em pranto, ferida no fundo da alma.

— Não, Berenice. Não chore. São umas idiotas! — Elas acham Carlinhos horrível, Flávio! Não quero que

o vejam mais!— Não é possível, Berenice! Não podemos trancar o garo-

to!— Não. Mas não receberemos mais visitas. Quero que nin-

guém mais o veja!E assim começou um estranho período da vida do casal.

Flávio mandou erguer um alto muro em volta do grande jardim da casa e ali Berenice e seu filho passavam as horas mais quen-tes do dia, ao abrigo dos olhares curiosos. Flávio tratava dos ne-gócios da estância na outra ala da casa, onde recebia as visitas que não podiam impedir. Raramente saía, porque detestava as perguntas que todos faziam sobre o menino. Pouco a pouco, o administrador e seus auxiliares adquiriam autonomia sobre a propriedade.

E Carlinhos, que ia crescendo isolado de todos, começou a engatinhar pelos quatros meses. Aos seis, punha-se sobre os pés e as mãos e andava alguns metros. Quando o via nessa postura, Berenice se alterava e corria a sentá-lo ou a pegá-lo ao colo. Muitas vezes levou palmadas por isso. O menino era esperto e cedo aprendeu a disfarçar. Quando estava sozinho, só andava de quatro. Mas, pressentindo a aproximação de alguém, sentava-se depressa e ficava quieto.

Aos oito meses estava muito grande e muito forte. Punha-se de pé com facilidade. Comia com apetite voraz. Foi por esse tempo que sua mãe sofreu um profundo desgôsto.

Estavam no jardim murado. Berenice, sentada num ban-

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co à sombra da quaresmeira em flor, lia. Flávio lia ao seu lado. Carlinhos, sobre a grama, resmungava seus sons mal articula-dos e destruía plantinhas. De vez em quando engatinhava ra-pidamente perseguindo algum inseto. Depois, parava quieto e resmungava, satisfeito.

Num dado momento, Flávio levantou os olhos do livro e pôs-se a observar a criança. Sua pelagem ruiva, agora mais ás-pera, brilhava ao sol. De súbito Flávio berrou:

— Seu porco! Não faça isso!— Que foi? — perguntou, sobressaltada, Berenice.— Esse porco!... está comendo não sei o quê... — Flávio

chegara perto do pequeno e viu o que era. Carlinhos comia in-setos. Deu-lhe fortes palmadas e o menino grunhia e gritava de meter dó. Berenice, com o coração oprimido, pegou-o ao colo. Êle se debatia, gritando.

— Não faça isso, filhinho! Não se comem bichos, assim. É porcaria! Faz dodói na barriguinha dele! Não se faz meu amor!

Foi a primeira vez em que o viram a comer insetos. Mas com certeza êle já os comia e continuou a comê-los depois. A mais severa vigilância não impedia que Carlinhos engolisse os insetos que apanhava — e tinha grande habilidade para fazer isso. Muitas chineladas levou por causa desse hábito. E come-çava a reagir ao castigo. Não tinha a submissão de outras crian-ças, dessa idade. Tornava-se um problema.

Quando completou um ano, andava, desajeitado, bambo-leando o corpo. Dificilmente caía e, se o fazia, não se machucava nunca, nem chorava. Os dentes lhe nasciam sem os incômodos comuns em outras crianças.

À tardinha do dia do aniversário, a mesa estava posta para três, com um bonito bolo de velinha espetada no meio. Flávio ouvia o rádio e Berenice arrumava o garoto, no quarto. A sineta tocou e Flávio foi atender.

— Bernstein! Que surpresa! Entre, entre!— Então, compadre? Como vai isso? Vocês enraizaram

aqui? Nunca mais apareceram em Santa Maria! Que diabo é isso? Onde está o aniversariante?

— Está se arrumando. Venha para a sala...

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— Lá está a velinha! Muito bem! Como vai êle?— Maravilhosamente. Saúde invejável. Forte como um

touro...— Ótimo! ótimo! E Berenice?— Está muito bem., muito bem.— Ótimo! Vejo que você está bem disposto. Mas por que é

que não vão mais à cidade?— Estamos acostumados a isto. O sossego... Aproximan-

do-se do corredor, Flávio gritou para dentro que o compadre ali estava. Quando vinha voltando, Bernstein aproximou-se dele:

— E o pequeno... que tal? — Horrível... vai ver.— Mas que há? Horrível em que?— Verá... é disforme. Parece um chimpanzé...Ouviram-se passos miúdos e rápidos. Carlinhos surgiu

na boca do corredor. Estava muito alto para a idade e parecia pouco à vontade dentro da roupa de linho azul com fitinhas de seda. Os longos braços balançavam desajeitadamente quando êle parou ali, enfiado, olhando o padrinho. Flávio, que fitava atentamente o rosto do compadre, percebeu-lhe a expressão de espanto que êle logo dominou quando viu o garoto. Mas Bereni-ce apareceu em seguida. Correu para o doutor e correspondeu comovida ao seu abraço.

— Que bom ter vindo, compadre! Que bom! Estamos tão sós!

— Ora, Berenice... Que bobagem estar chorando agora...Bernstein acocorou-se, estendendo os braços para Carli-

nhos que lá continuava parado à porta.— Então, seu moço! Venha dar um abraço no padrinho!

Vamos! Está com medo de mim?Carlos veio vindo, gingando. Bernstein puxou-o pelos bra-

ços e ergueu-se com êle ao colo. O pequeno grunhia.— Arre! Está pesado! Que garoto forte! Olá! Você me es-

trangula! Calma, rapaz! Calma!— Êle não sabe sorrir, doutor! — disse Berenice num so-

luço.— Doutor? Deixe disso, Berenice! Parece que vocês andam

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enchendo a cabeça com bobagens. É a solidão. Vocês deviam sair.

Não era fácil estabelecer cordialidade mesmo entre os três amigos íntimos que eles eram. O pequeno monstro separava-os como uma incongruência. Berenice, para acabar com o embara-ço, pôs-se a falar e contou tudo acerca de seu filho e porque se tinham isolado ali.

— Vocês deviam era fazer justamente o contrário — disse Bernstein — Os outros depressa se acostumam. Assim, o meni-no se tornará um misântropo, pior ainda, se tomará selvagem, por falta de contato com outras crianças. Para que êle se desen-volva normalmente precisa de companheiros da mesma idade. Mudem-se para a cidade e todos lucrarão.

No decorrer das horas, Bernstein notou que o garoto emi-tia sons guturais que mal davam idéia de palavras. Era, porém, vivo, perspicaz e compreendia perfeitamente tudo o que lhe di-ziam. E êle se punha a pensar por que estranha aberração uma moça bonita como Berenice e um rapaz perfeito como Flávio ti-nham procriado um ser tão diferente de ambos. Por esse tempo, êle não atinara ainda com a verdade, o que só veio a fazer anos mais tarde.

Durante os três dias em que permaneceu na estância, Bernstein observou maravilhado aquele estranho menino. Viu-o comer insetos. Viu como procurava se desfazer das roupas que lhe vestiam. Pareceu-lhe que, assim como adorava Berenice, pa-recia detestar Flávio. Sentiu pena dele e dos pais. Se estes pu-dessem considerá-lo um fenômeno e tratá-lo como tal, tudo iria bem. Mas não. O que eles queriam era um filho.

Ao despedir-se renovou o conselho: deviam mudar-se para a cidade, dar ao pequeno vida social, ou tudo iria pior.

Seguiram o conselho de Bernstein, em parte. Afrontando dissabores inevitáveis, levavam Carlinhos a passeio e deixavam-no brincar com os filhos do pessoal da estância. Mas foi mau. Êle machucava, mordia, arranhava as outras crianças. Peões e suas mulheres começaram a murmurar que o filho do patrão não era gente: era bicho. Berenice adoeceu de contrariedade. Flávio quis teimar ainda, mas sem resultado. Ao fim de seis me-

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ses, a situação era insustentável. Nenhuma criança queria a companhia de Carlinhos, por mais que este desejasse brincar e ser gentil — porque suas gentilezas e brincadeiras eram de-sastrosas. No entanto, Carlinhos sentia-se, evidentemente, mais feliz sozinho. Gostava de solidão. Um dia Flávio descobriu qual o verdadeiro prazer de seu filho: permanecer o dia inteiro no mato, pelas árvores, fazendo artes incríveis, brincando com pássaros e animais. No dia em que o levou à mata, ficou espantado e alegre. Carlinhos ali era outro. Soltava gritos de prazer. Corria, pulava, vivia intensamente.

E nessa noite disse à esposa:— É inútil querer esconder as coisas de nós mesmos, Be-

renice. Nosso filho jamais poderá ser como as outras crianças. No entanto, êle tem direito à felicidade e o que é a felicidade se-não a gente conseguir o que deseja? Sabe o que êle deseja?

Berenice interrogou-o com os olhos, temerosa.— Viver no mato.— Como um animal, Flávio?— Não dramatizemos. Não importa como quê. É o prazer

dele. Passamos o dia inteiro no mato da grota e Carlinhos pare-cia outro. Ri-me com êle.

— E que é que você sugere?— Vou mandar fazer uma casa para nós além do rio, na

beira da mata e vamos lá viver com êle.Berenice pesou rapidamente prós e contras. Compreen-

deu que para o filho era a solução ideal e concordou.Dentro de alguns meses, mudaram-se para a “casa do

mato” e passaram a viver alternadamente nela e na da estân-cia.

Desde então Carlinhos encontrou muitas horas de felici-dade. Aos dois anos, singularmente desenvolvido, percorria o mato livremente. Quando o retinham em casa ficava de mau hu-mor intolerável. No mato sabia encontrar com rara habilidade, frutas, raízes e folhas comestíveis. Em casa era um bicho ma-cambúzio que não queria comer. E os anos se foram passando dentro desse novo arranjo que parecia bom para todos, embora houvesse, inevitavelmente, desgostos para Flávio e Berenice.

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IV — O CAÇADOR

— Aonde está o Carlinhos, Flávio?— Carlinhos! Que mania de chamar de “Carlinhos” a um

rapaz daquele tamanho!— Êle tem apenas 11 anos!— Sei disso, Berenice. Mas é enorme. E êle mesmo não

gosta que o chamem de Carlinhos.— Está bem, Vou deixar de chamá-lo assim. Aonde está

êle?— Deve andar pelo mato. Saiu assim que clareou o dia.

Não percebeu?— Não.— Saiu muito cedo.— Não sei, Flávio... às vezes fico pensando... Quê havemos

de fazer com esse menino?— O que estamos fazendo. Não podemos fazer nada mais

que isso. Êle está satisfeito assim.— Crescendo sem educação, sem escola...— E como o poderíamos mandar à escola? Êle não con-

segue articular direito as palavras. Nós o entendemos, porque estamos acostumados.

— Isso é horrível, Flávio...— Mas não podemos mudar os fatos. Só podemos fazer

o que vimos fazendo até agora. Tratá-lo com carinho e deixá-lo viver como êle prefere.

— Pense no isolamento em que vive...— O melhor, para êle é viver assim, longe de outras crian-

ças. Você bem sabe.— E quando se fizer homem?— Então, veremos. Deixemos correr o tempo, Berenice. É

o melhor.— Não me posso acostumar a pensar nele, assim, sozinho

pelos matos, como um bicho...Era como Carlinhos andava. “Pelos matos, como um bi-

cho”. Gostava de subir aos galhos de uma enorme e frondosa figueira e ali ficar muito tempo quieto, olhando.

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Agora mesmo lá estava êle, imóvel sobre os galhos imen-sos, nu — porque assim que se afastava de casa, tirava o maca-cão que costumava usar, descalçava-se e ficava à vontade. Um esquilo que estava em seus ombros pulou-lhe para a cabeça de emaranhados e ásperos cabelos e se pôs a catá-los. De vez em quando magoava o rapaz, que lhe dava uma palmadinha. O es-quilo, bem agarrado aos seus cabelos, guinchava mas ficava fir-me. Carlos não lhe dava atenção. Continuava imóvel, pensando, ou lá o que era que fazia com seu cèrebrozinho primitivo.

Mas foi subitamente despertado de seus cismares pelo estampido de um tiro. Detestava os caçadores. Odiava-os e te-mia-os instintivamente. Assim que o tiro soou, seus nervos se distenderam e a pelagem vermelha que o cobria eriçou-se. Sa-cudiu o esquilo para longe, desceu da árvore, atento e se pôs a caminhar com seu jeito desengonçado, em direção ao tronco oco onde costumava deixar o macacão e as alpercatas. Estava no maciço de arbustos perto do tronco, quando ouviu uma voz que gritava. Talvez êle não entendesse, mas a voz dizia:

— Olhe, papai! Que bicho!Pelo rumo da voz, Carlos distinguiu, a pequena distância,

um homem e um garoto. O homem trazia, uma espingarda na mão e tanto êle como o menino pareciam assustados. De frente para eles, Carlos fitava-os e ouvia suas vozes. O homem, dizia qualquer coisa em voz baixa e o menino respondia por monos-sílabos, Carlos pressentiu perigo. Ergueu-se mais e gritou-lhes que se fossem embora, em sua linguagem difícil de entender. O homem levou a espingarda ao ombro. Carlos tornou a gritar e o tiro partiu. Carlos sentiu o impacto da bala no braço esquerdo e uma onda de ferocidade lhe tomou conta do corpo todo. Deu um formidável salto para o lado do caçador que tentava recarregar a arma, a qual atirou fora quando viu sua vítima quase em cima de si. Largou a correr, desesperado. O menino ia correr atrás dele mas Carlos, que passava nesse momento, no encalço do caçador, deu-lhe um safanão, atirando-o longe. O homem con-tinuava a correr, mas pouco adiante foi alcançado por Carlos, que o agarrou pela garganta, rugindo e sem fazer caso algum de seus gritos apavorados, que logo se transformaram em regou-

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gos, ao passo que os olhos se arregalavam e a boca se escan-carava. Sentindo-o mole e indefeso, Carlos largou-o e êle caiu ao solo, como um trapo. De volta, deu com o garoto atirado ao chão, sem sentidos, a cabeça sangrando. Obedecendo quem sabe a que instinto, depois de contemplar o menino por alguns momentos, agarrou-o, pô-lo ao ombro e caminhou no rumo de sua casa.

O mato terminava pouco antes do galinheiro, nos fundos da casa e quando êle ia rodeando o galinheiro, sua mãe, que estava na porta dos fundos, viu-o:

— Cadinhos, meu filho! Que é isso? Que aconteceu? — Percebendo que era um menino que seu filho trazia, correu ao encontro dêle. Carlos tartamudeou:

— Lá... no mato... pum!... caiu!Berenice viu o sangue correndo do braço inchado do fi-

lho.— Meu Deus! Você está ferido, filho! Flávio vinha se aproximando do grupo.— Que aconteceu? Quem é esse garoto?— Não sei. Carlos veio do mato com êle nos braços ...

Veja. Êle está ferido no braço...Flávio examinou o braço do filho e sentiu uma onda de

ódio.— É ferimento de bala! Quem fêz isso, meu filho?— Homem... no mato... pum! — tartamudeou o monstri-

nho.Berenice, aterrorizada, empurrou para dentro de casa o

filho que ainda carregava nos braços o outro menino.— Vamos, Carlos. Você está nu! Vamos para dentro. Meu

Deus! E essa criança...Flávio tirou dos braços do filho o garoto desacordado e

entrou, na frente dos outros. Foi colocá-lo no sofá da sala e voltou-se:

— Esse menino tem um ferimento feio na cabeça. Vou a Santa Maria e trago o doutor Bernstein. Cuide dos ferimentos de ambos como puder. Voltarei o mais depressa possível.

Pouco depois seu carro voava para Santa Maria.

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Berenice fêz o que pôde: lavou e desinfetou os ferimentos, vendando-os com gaze. Pouco depois, o menino recobrava os sentidos. Logo que viu Carlos, ficou apavorado :

— Êle me mata! Papai! Papai!— Fique quietinho — disse Berenice tentando afagá-lo. —

Êle não lhe fará mal nenhum. Como é seu nome?— Quero papai! Quero papai!— Seu pai não está aqui agora... — Êle matou meu pai! Foi êle! — e o menino berrava e

apontava Carlos.Aflita, descontrolada, Berenice puxou o filho para si:— Que é que você fêz, Carlinhos? Que aconteceu lá no

mato?— Homem... pum! Matou Carlos. Homem... no mato...

pum!Berenice compreendia que uma tragédia se desenrolara

no mato. Talvez Carlinhos tivesse mesmo morto alguém... Se êle pudesse contar direito o que se passara ...

— Conte, meu filho. Conte devagar. Como foi? Quem ma-tou Carlinhos?

— Homem... no mato... pum! matou Carlinhos.— E você, que é que fêz?— Carlos pegou homem... assim... — E êle agarrou o pes-

coço da mãe, sem todavia apertar.— Você matou o homem, Carlinhos!?— Homem.... pum! matou Carlinhos! — defendia-se êle

vagamente.Berenice compreendeu que seu filho estrangulara, ou ten-

tara estrangular o caçador. Chamou o administrador e man-dou-o, com alguns peões, bater os arredores. Talvez encontras-sem o homem e pudessem salvá-lo.

No entanto, o garoto desconhecido já não estava tão apa-vorado, mas continuava chorando e chamando pelo pai.

Enquanto Flávio, em Santa Maria, apanhava o compadre para levá-lo à estância, o administrador e os peões procuravam em vão o caçador. Viram sangue no chão. Viram sinais de luta, mas o homem desaparecera. Quando eles iam chegando de volta

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à casa, Flávio e Bernstein desciam do carro.— Não encontramos o homem — disse o administrador ao

patrão.— Que homem?— O homem que dona Berenice mandou procurar. Vimos

sangue, sinais de luta, mas o homem... Parece que foi um rolo dos diabos...

— Está bem, Lino. Obrigado. Pode ir.Flávio entrou depois de alguma hesitação e foi encontrar o

médico examinando o braço de Carlos.— É grave, Bernstein?— Não, a bala está no músculo. Fácil de extrair. Dentro

de uma semana êle estará bom, com essa saúde de ferro que tem...

— E esse menino?— Também não é nada grave. Êle deve ter batido a cabeça

numa pedra, de raspão. Arrancou um pouco de couro cabeludo, mas nada grave. Amanhã não sentirá mais nada.

— Você mandou o administrador procurar alguém, Bere-nice?

— Um homem. O pai deste menino. Pelo que Carlos con-tou, êle deve ter agredido o homem, depois deste ter atirado. Talvez o tenha matado. Oh, Flávio! Como isto tudo é horrível!

— É melhor você ir se deitar um pouco, Berenice, enquan-to o compadre cuida dos meninos.

Berenice atendeu dòcilmente e estendeu-se na cama. Quando Flávio voltou do quarto, Bernstein já tinha extraído a bala.

— Carlos nem pareceu sentir — disse êle. — Que menino forte!

— Gostaria que não fosse tão forte, Bernstein. Tenho von-tade de lhe aplicar severa correção... É um animal!

— Isso não é justo, Flávio. Não sabemos o que houve, mas êle pode ter agido em legítima defesa. Levou um tiro.

— E o homem não poderia ter-lhe dado um tiro em legíti-ma defesa?

— Podia, mas não é provável. Ninguém sabe como foi.

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— É um inferno, Bernstein. Estou farto. Esse menino é mau...

Bernstein olhou-o significativamente e perguntou, em voz pausada:

— Quem trouxe o menino ferido da floresta? Flávio baixou a cabeça, vencido. Bernstein, depois de cuidar do ferimento do outro menino, interrogou-os, para saber se podia tirar algo da verdade. Carlos nada fêz senão repetir as palavras sem sentido que já dissera à mãe. O outro pouco podia dizer. Lembrava-se de terem visto Carlos, de este ter corrido para eles, de seu pai ter atirado. Mas nada era claro. No entanto, êle já não fazia a acu-sação contra Carlos. Apesar disso, Flávio não conseguia conter a raiva.

— Este rapaz é o diabo, Bernstein! Ainda nos vai dar gran-des desgostos.

— Você não pode falar enquanto não se souber a verdade. E, depois, mesmo que ele tenha agido mal, como o podemos condenar? Êle não é normal, não vê as coisas como nós.

— Mas tem que aprender, Bernstein. Até os animais apren-dem a nos obedecer. Há meios para isso.

Bernstein procurou, por todos os meios, fazer o compadre compreender que Carlos, ser anormal, de evolução incompleta, não se beneficiava dos instintos próprios dos animais e não ti-nha o raciocínio próprio do homem. Flávio, porém, desesperado, a nada queria atender.

Pelas 19 horas, Carlos comia desajeitadamente na sua mesinha. Antônio, o guri ferido, dormia, depois de ter tomado um caldo. Bernstein, Berenice e Flávio jantavam. O ambiente era silencioso e pesado. Nenhuma conversa conseguia ir para diante. Depois, Berenice recolheu-se e o médico conversava com Flávio, no alpendre. A noite era quente.

— Penso que o melhor seria mandar Carlos para uma casa de saúde, Bernstein. Ali, saberiam cuidar dele. Por mim, já teria feito isso, mas Berenice se opõe tenazmente.

— Também não acho bom, Flávio. Êle não é desequilibra-do. É apenas uma criatura que não chegou ao desenvolvimento final, um estranho fenômeno. Os biólogos e antropólogos é que

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gostariam de estar em contato com êle. Se vocês quisessem con-cordar em deixá-lo comigo. . .

Nesse momento começaram a aproximar-se vozes altera-das. Logo um grupo de homens surgiu diante da porteira, segui-dos por um carro que parou mais atrás. Flávio e o médico foram ao encontro deles.

— Que é que aconteceu? — perguntou Flávio.— É este camarada — disse o administrador apontando

um homenzinho miúdo, encolhido e nervoso. — Diz que um bi-cho o atacou no mato e matou-lhe o filho.

Flávio encarou o homem. Seu aspecto covarde e encolhido causava repulsa.

— Foi o senhor, então, que deu um tiro em meu filho...— Se eu não atirasse, êle me mataria. Avançou para mim...

Primeiro, êle atacou meu filho e o matou. Depois avançou para mim... Tive que atirar...

— Seu filho está aqui — disse calmamente Bernstein. — Tem um ferimento sem gravidade na cabeça. Êle deve ter caí-do...

— Foi aquele... o outro. Pulou em cima do meu filho. Avan-cei para salvar meu filho e êle se voltou contra mim... Pulou-me à garganta... olhe. Veja meu pescoço.

E o homenzinho trêmulo levantava o queixo, deixando ver as manchas que tinha na garganta.

— Livrei-me dele e quis correr, mas êle veio atrás de nós e atacou de novo meu filho. Atirei nele. Que é que eu podia fazer? Me digam...

— Tem razão — disse Flávio, esmagado, sentindo crescer o ódio contra o filho. — Não podia fazer outra coisa. Mas seu filho está bem. Está dormindo, lá dentro. .. Eu lhe pagarei para que não fale mais nisso...

— Não quero nada. Quero só levar meu filho.— Vamos entrar.O homem entrou com eles, pegou o filho e levou-o para o

carro. Flávio não quis mais conversa com o homem. Tornou a oferecer-lhe dinheiro, que êle aceitou, afinal. E se foram. Flávio e Bernstein voltaram ao alpendre. Flávio estava abatidíssimo.

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— Veja que tragédia, Bernstein... Não podemos mais dei-xar o menino sair de casa.

— Não creio no que esse homem falou, Flávio. Êle mentiu. É um covarde, causa repulsa.

— Ponha-se no lugar dele. Ser atacado no mato por um animal desconhecido, um monstro raivoso... Ver o filho sendo morto por êle...

— Não seja injusto, Flávio. Isso não concorda com o cará-ter de Carlinhos. Êle não fica furioso, nao ataca, não é mau. O fato de êle ter trazido do mato o menino ferido é mais importante que tudo o que tenha acontecido, e fala mais do que todas as palavras desse covarde.

— Você viu como estava o pescoço do homem...— Sim. Mas não vi o que se passou na mata.— Carlos não sairá mais daqui de dentro.

V — PAI E FILHO

O choro abafado de Carlos vinha da peça contígua. Seus soluços entrecortados, sufocados, impressionavam mais que o choro normal de uma criança.

Flávio, de mãos atrás das costas, fisionomia contraída, dava passadas na sala, de um lado para outro e Berenice, sen-tada no sofá, de lenço na mão, tinha os olhos vermelhos e secos. Parecia muito envelhecida.

— É preferível que êle chore aqui dentro de casa a andar provocando desgraças lá fora.

— Você está sendo cruel, Flávio. Não há necessidade ...— Prefere que êle vá para o mato atacar as pessoas pacífi-

cas? Prefere que êle ande levando tiros por aí?— Eu sei, Flávio. Mas você surra-o como se tivesse ódio

dele.— Não diga uma barbaridade dessas, Berenice! E agora

você também se põe a chorar! Pois fique sabendo: êle não sai de casa. E toda vez que escapar, levará uma surra de laço, para aprender. Estou farto!

Flávio saiu da sala, num ímpeto colérico e Berenice ficou

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sentada a chorar, até que um ruído a fêz levantar a cabeça. Car-los estava parado à porta. Era demasiadamente desenvolvido para a idade e sua conformação lembrava mais depressa um antropóide que um ser humano, com o grande torso, braços lon-gos, pernas curtas, testa fugidia, maxilares poderosos, queixo forte. E a pelagem ruiva e áspera...

No entanto, havia ternura em seus olhinhos avermelha-dos. Berenice prorrompeu em pranto convulsivo e Carlos correu para ela e abraçou-a, desajeitado.

— Mamãe... chorar... não, não... — tartamudeava êle. Be-renice, cheia de angústia apertava-o ao peito. Quando pôde sol-tar a voz, falou, entrecortadamente:

— Não faça mais isso, meu filho. Não saia para o mato. Não saia...

— Mato... bom...— Bem sei, filho. Mas você tem aqui o pomar, o matinho

da beira do rio... Não passe a cerca. Não pode passar a cerca, querido... — Ela fitava, angustiada os olhos de Carlos. Que se passaria naquele cérebro? Indiscutível era a ternura que havia pela mãe naquele incompreendido coração. E sua aversão pela casa, pelas paredes. Sua mãe e a mata, o ar livre, o espaço lá fora — eis o que aquela alma primitiva desejava para ser feliz. Também era fácil de ver que êle não tolerava e não compreendia o pai, que o temia. O pai era aquele homem que desejava trancá-lo e êle desejava fugir. Havia sempre entre eles intransponível obstáculo que vibrava como um mal sempre na iminência de cair sobre a cabeça lanuda de Carlos. Um impulso cada vez mais forte levava-o a fugir para o mato, onde se sentia bem. Havia algo, porém, que o mantinha preso. Mas qualquer dia êle resol-veria o problema.

Carlos adormeceu com a felpuda cabeça apoiada ao rega-ço de Berenice. E decerto sonhou com florestas e regatos.

VI — O ANIMAL E O HOMEM

Os três cientistas entreolharam-se e o antropólogo falou:— É uma coisa incrível, dr. Bernstein.

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— Bem sei. Mas tenho acompanhado o fenômeno há 12 anos. Vi-o nascer e acompanho seu desenvolvimento até hoje.

O filólogo olhava, incrédulo — Pensa que se trate do elo, do ser intermediário entre o antropóide e o homo? Mas as teo-rias...

— Não me importam as teorias. É um fato que verifiquei pessoalmente. Pareceu-me que os senhores se interessariam em examiná-lo, para decidir se é o que penso, ou se estou engana-do. Não sou especialista.

O geneticista, que estivera calado, ouvindo, opinou: — Não me parece, a rigor, impossível. Pode se tratar de um acaso, uma anomalia qualquer, explicável por outros meios. Um fenômeno de mutação, talvez. O senhor disse, dr. Bernstein, que o pai do garoto trabalhou num laboratório de energia atômica...

— Trabalhou.— Então? Qualquer energia radiante pode provocar mu-

tações nos genes, pode alterar o número de cromossomos na célula reprodutora. E então?

— Creio que o importante é examinar o garoto.— Afinal — disse o geneticista — os princípios da heredi-

tariedade, que parecem sòlidamente estabelecidos, podem não o estar tanto assim que nos levem a negar peremptòriamente um caso como esse. Pode haver surpresas. Pode ser que estejamos diante de um fato assombroso, mas positivo. O embrião humano reproduz, na vida intra-uterina, a longa série de mutações por que passou a criatura desde o ser unicelular até o homem. Pode ser que, nesse caso, o desenvolvimento se tenha detido num estágio remoto. Não sei como a ciência poderia explicar isso, mas...

— Seria, então, o retorno a um estágio vigente há milhares de anos...

— Por que não? — disse Bernstein. — Afinal, os milhares de anos que nos separam do pitecântropus nada são ante os milhões que separam o pitecântropus da primeira forma de vida que evoluiria até êle. Por assim dizer, o homem de Java, ou o de Neandertal, são nossos avós de ontem. Quase nos podemos lembrar deles.

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— Respeitadas as proporções, é isso mesmo.— Então, concordam em ir lá comigo para ver o garoto?— Devemos ir. De qualquer forma, vale a pena.

*

Quando o compadre Bernstein chegou à estância com os três cientistas, Berenice estava só e em lastimável estado de de-solação. Depois de muita insistência contou, entrecortadamen-te, o drama que se vinha desenvolvendo entre Carlos e seu pai, o ódio evidente de Flávio para com o garoto e as conseqüências disso. Agora mesmo, estavam diante de uma das fases do dra-ma. Carlos fugira para a mata e Flávio fora em seu encalço. Era uma caçada que durava desde a tarde do dia anterior. Berenice estava morta de emoção. Bernstein aplicou-lhe uma injeção se-dativa, mandou-a deitar-se e se dispôs a esperar, com seus três companheiros. Isto, era pelas 15 horas e foi às 20 que ouviram vozes e ruídos de um grupo que se aproximava. Bernstein foi à porta para sair e ver o que se passava, mas recuou para dar pas-sagem a um estranho cortejo: quatro homens carregando um vulto humano coberto por um lençol sujo.

— Carlos! — disse o dr. Bernstein.— Não é Carlos — respondeu soturnamente o adminis-

trador, que fechava a marcha. Benrstein encaminhou-se para o corpo, mas nesse instante ouviu o grito de Berenice, que, pálida, desfeita, vinha entrando.

— Meu filho! Carlinhos!Antes que a pudessem impedir, atirou-se ao vulto e des-

cobriu-lhe o rosto. Seus olhos desorbitados fitaram o marido, desfigurado, coberto de sangue. Depois emitiu um grito rouco e caiu nos braços de Bernstein, que se preparava para a ampa-rar.

*

— Lino, estou imaginando o que houve... Foi o garoto, não foi?

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— Foi, sim senhor.Carlos fugira de casa e, horas depois, Flávio, em compa-

nhia do administrador e de mais dois peões, saíra à sua procura, de relho em punho, dominado por violenta cólera. Custaram a encontrá-lo. Quando o viu, Flávio ordenou-lhe que se chegasse e Carlos não obedeceu, quis fugir. O pai atingiu-o com o chico-te por várias vezes. Afinal, Carlos atirou-se a êle. Lutaram por pouco tempo, mas quando o garoto largou o pai e saltou para o mato, fugindo, Flávio era aquilo que se via ali. Ossos partidos, escalavrado, desfigurado.

Depois de alguns momentos Bernstein ponderou que não podiam deixar o garoto solto no mato. Êle seria caçado como uma fera. Muita gente já sabia do ocorrido.

— Vamos procurá-lo — decidiu.Os três cientistas ficaram na casa. Bernstein, o adminis-

trador e os dois peões, no jipe, voltaram à mata. Viram logo que havia movimento. A polícia fora avisada. Homens armados per-corriam o mato em busca de Carlos. Corriam os piores boatos. “Um monstro assassino anda solto no mato!”

— Nossa única chança — disse Bernstein — É achá-lo an-tes dessa gente excitada e violenta. Vamos ver se temos sorte...

Mas não tiveram. Pouco depois ouviram-se alguns tiros de fuzil. Um militar passou por eles, correndo, de arma na mão.

— Não façam isso! — gritou Bernstein. — Êle não é um as-sassino, é apenas um anormal. Nós o pegaremos. Não atirem!

— Não se meta, moço! — gritou outro soldado que ia atrás do primeiro. — Isto é negócio nosso. Dê o fora!

Bernstein e os companheiros meteram-se no mato. Tiros continuavam ecoando na escuridão. Era um perigo para todos. Depois ouviram gritos:

— Por ali! Êle foi por ali!— Está ferido, cuidado!— Todos para este lado. Não o deixem escapar agora!Uma sombra rósea passou, resfolegante, gemendo, perto

deles. Atrás logo depois, passou um soldado.— Olhe! Ali! Êle parou! Agora! Quando Bernstein ia cor-

rer, soaram três tiros e um longo grito de dor.

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O ELO PERDIDO

O almoço terminara havia muito tempo. Fumávamos nos-sos cigarros ante a mesa ainda cheia de migalhas e as xícaras sujas de café.

— Bem. Tenho que voltar ao hospital — disse o dr. Berns-tein. Vem também?

— Mas, afinal, doutor...— É... — Bernstein suspirou. — Os cientistas examinaram

o cadáver do meu afilhado. Concluíram, pelo menos em princí-pio, que êle poderia ser o “elo perdido”, o ser que os antropólogos em vão procuram em todos os depósitos de fósseis da terra. Êle completaria a cadeia ... Mas você sabe como são essas coisas de religião .. . Não pudemos ficar com o cadáver. É uma pena que preconceitos absurdos prejudiquem a ciência. Mas que se vai fazer? Quer ir comigo ao hospital?

Rivera, 1947.Mongaguá, dezembro, 1963.

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Existem no universo homens quanto no firmamento estre-las. Na terra os reis, no céu os astros.

Definindo astronáutica não diria ser somente a ciência que estuda o vôo espacial. Diria ser também a ciência do im-previsível, a busca pela forma e cor, o defrontar com o novo. Para muitos, que nunca saíram de nosso planeta chega a ser o encontro com o absurdo.

Reunidos em nossos alojamentos, esperávamos ordem de embarque para mais uma missão espacial. Falávamos das últimas viagens. Eros, Juno, Icarus... matérias desconhecidas. Cores que fogem ao espectro. Meu amigo Enovacs, o primeiro astronauta a desembarcar em Titã descrevia suas experiências neste planeta. Sua voz baixa e a segurança de um velho lobo do espaço faziam-nos viver a sua realidade.

— “Mutações cromáticas que determinam a marcação das horas. O solo áspero recoberto pela côr violácea, que cambia para o rubro dando uma dimensão dantesca ao sexto satélite de Saturno. Segue o amarelo cromo, o verde, o azul, como se de uma paleta imaginária surgisse o mágico toque de pincel do grande mestre. Mas não somente a côr existe. A forma na mais sublime concepção poética: a flor. Aproximei-me, curvei-me e ví que de perto era ainda mais bela. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando estranhamente uma luz brilhante. E o bater de vento movimentando a haste doce-mente fazia com que a corola traçasse círculos e mais círculos luminosos.”

Enquanto Enovacs falava, aos poucos afastava-me. Meus

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pensamentos eram agora dirigidos para Astrala, Iapetus, Hec-tor... natureza desconcertante. Neblinas fluorescentes.

As vozes se abafam e ouço apenas barulho de possantes turbinas. Fumaça. — Rumo ao nosso mais próximo vizinho do espaço. Oceanus Procellarum, Mare Imbrium, Mare Crisium... la-vas solidificadas irradiando brilho. Crateras. Sensação de infini-to. Meu foguete descia vertiginosamente pela gruta cujas pare-des lisas davam a impressão de serem torneadas pelo homem. Senti que perdia contato com nossa base na Lua, o rádio deixava de funcionar e apenas o ponteiro do velocímetro se movimentava registrando a cada segundo uma maior rotação. Aproximava-me do centro de gravidade. Sombra. Penumbra. Escuridão. Come-cei a ter medo. Sentia o fim. O passado tornava-se presente e o futuro imprevisível. Escuridão. Penumbra. Sombra. Vi que flu-tuava em espaço aberto. A atração ao centro não mais existia. Por várias horas segui sem direção rumo ao desconhecido, mas senti-me aliviado. Olhava atentamente por meu vídeo à espera do inesperado. Imagem apagada que aos poucos se transfor-mava em realidade. Em minha direção um planeta. Conhecido? Desconhecido? Habitado? Inabitado?

Com meus instrumentos compilo os dados que possivel-mente me darão o nome deste novo mundo. Diâmetro equato-rial, sete mil, novecentos e vinte e sete milhas. Massa, seis sex-tilhões de toneladas. Densidade, cinco e meia vezes a da água. Abro meu cartograma de planetas conhecidos confrontando o resultado obtido por meus instrumentos. Meu dedo deslisa pelo abecedário parando subitamente na letra “T”. Pousei em área desolada. Dunas cercavam-me. Cavalos e camelos galopantes deixavam para trás cortina arenosa, que transformava a imen-sidão de uma planície banhada por um sol escaldante, em um furacão de areia. Mundo monocromático. Ocre mortal. Terra dos horizontes. Deserto de Dehna. Soube da minha localização num oásis. Estava na longínqua Arábia. Jamais se imaginaria que do interior da cratera de Clavius, um caminho de forma cilíndrica iria terminar proporcionando-me a descoberta de uma nova rota espacial entre nosso planeta e a Lua. Aos poucos tomei consci-ência da importância de minha missão. Pensei em meu regresso.

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Cortejos e recepções presidenciais, milhares de papéis voando pelas janelas, lenços acenando conquista. Cidade embandeira-da amanhecida de branco. Alexandre Magno. E assim iniciei o retorno. Meu foguete, danificado, não mais serviria como meio de transporte. Teria que trocar minha nave espacial por um dro-medário. Cinco mil milhas por mil metros a hora. Seria mais dificultoso atravessar a região de Dehna do que atingir qualquer dos satélites. Vinte e dois de outubro de mil novecentos e oitenta e dois. Traço meu itinerário. Primeiro El Riad, muros destro-çados, casas abandonadas, rostos que são sinônimos de fome. Depois Meca, beduínos, peregrinação, terra de Alá. Medina, Je-rusalém, a Terra Santa, Ismil e Istambul, berço da riqueza, de-grau para a civilização. Trampolim para Europa. Paris. Viajo no primeiro avião. Estava ansioso para dar a minha mulher e filhos as notícias de minha nova descoberta. O jato sobrevoava a cidade. Campo, casas, prédios e arranha-céus pareciam conver-gir para a mesma direção. Retribuindo, acenava. Do aeroporto à minha habitação leva duas horas. Filmei mentalmente toda minha aventura, voltei a sentir a sensação do vazio e revivi o drama do fim. Mas agora não mais havia motivos para os pen-samentos. Estava dentro da realidade. Chegaria em casa, minha esposa abriria a porta e me receberia com o amor e carinho que tantas vezes demonstrou. As crianças correndo se atirariam em meus braços transformando-me no herói de seus sonhos. Sen-taria na poltrona e contaria minhas viagens espaciais diante de olhos cheios de admiração. Considerava-me um ser feliz, reali-zado. A tarde era bela. Sentia-me como o dono dos campos e do céu, das casas e das estrelas, dos prédios e dos satélites, dos arranha-céus e dos planetas. Dono do universo. Senti-me Deus. O sol brilharia tanto diante do homem? O vento faria com que as árvores se curvassem diante do mortal? Quis andar. Mandei o táxi parar e terminei a pé as poucas quadras que faltavam. Caminho. Não existe o ruído das grandes metrópoles. Uma pes-soa que passa. Sou estranho. Um conhecido que cruza. Não me viu. Um amigo que me encontra. Não existo. Senti-me nervoso. Subi as escadas. Apertei a campainha e ansiosamente esperei. Aquela sensação de humano desaparecia.

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Aperto novamente. Sem resposta. Desço e sento-me na rua à espera de alguém.

Era pequeno quando mudei-me para aquele bairro. Quase todos eram meus amigos. Desde a infância brincava com eles e costumávamos sair sempre juntos. Sou eu, sou eu. Escutem-me... não estou louco... escutem-me. A partir daquele momen-to não mais sabia quem era ou por que transformação havia passado. Meus filhos não mais me reconheciam e a porta de minha casa a fechar-se várias vezes. Que explicação haveria para este fenômeno? A insistência de ser reconhecido fêz-me passar por insano e por pouco não era preso. Meu espírito se tornava assustadoramente confuso. Era como se uma enorme explosão terminasse por aniquilar toda a humanidade, deixando vivo apenas a mim, conquanto aturdido pelo violento choque. Não conseguia separar o sonho da realidade. Sentia-me cansa-do. Adormeci e sonhei.

“Rua. Casas antigas. Paredes velhas em ruína. Sentado num banco, acabava de assistir a destruição total do universo. Era o inferno de Il Civetta que se reproduzia diante de meus olhos estupefatos. Ao chegar a noite, apenas sobrevivia uma constru-ção de pedras seculares, umedecidas pelas ervas que cresciam em suas frestas. Sua estrutura grandiosa, sua atmosfera Elisa-betiana, era o que restava de certa civilização. As portas do ca-sarão se abriam. Cartolas e fraques pretos surgem, formando um perfeito traçado. Linha negra que se movimenta em minha dire-ção. Levanto e caminho ao encontro. Nephthis... Grinalda florida sobre seu rosto pálido, olhos que me transmitem constantes men-sagens. Hipnotizado apenas percebo de seus lábios o murmurar de palavras. “Não me deixe voltar, quebre o espelho, quebre o espelho...” Surge o noivo. Lábios silenciam. Ambos permanecem imóveis. Vejo meu retrato de casamento. As portas do antigo tem-plo voltam a abrirem-se e recebem o cortejo que caminha lenta-mente. Tudo é preto. Encontro-me cercado por quatro paredes, em cada parede quatro celas, em cada cela quatro noivas e o teto coberto por enorme espelho. Sessenta e quatro noivas, dezesseis celas, quatro paredes e o teto coberto por enorme espelho. Do inte-rior o acender de luz vem acompanhado por gritos angustiantes.

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“Quebre o espelho...” Subo pelas grades em direção ao enorme vidro mas paro ante a imagem refletida. Vejo meu retrato de ca-samento. Atiro-me em cima, e caio resvalando pelas paredes de uma gruta sem fim.

Sentado em um banco, acabava de assistir a destruição total do universo. Vejo um vasto campo repleto de cruzes brancas. Caminho para longe”.

Na manhã seguinte, ao acordar recompus meu sonho. Tal-vez nele encontrasse a chave de todo mistério. Meu subconscien-te resolvera e transmitira o enigma. Agora precisava decifrá-lo. A visão de meu retrato de casamento refletindo no espelho me perturbava. Não tinha fome. Queria andar e pensar, mas pre-cisava de alguém. Pela primeira vez senti a verdadeira solidão. Estava num mundo desconhecido. Depois de muito caminhar e fazer várias tentativas de aproximação, voltei a sentar defronte à minha casa. E o ontem voltou a se repetir. Era tarde. A noite chegava. Naquele momento consegui dar uma pausa a meus pensamentos observando os tons que deixavam transparecer a existência da natureza. Pretos avermelhados, pretos esbranqui-çados, pretos pretos. Parada frente a mim uma estranha pediu licença para sentar-se a meu lado. Ansiosamente, consenti com um aceno de cabeça, e antes que ela pudesse pronunciar a pri-meira palavra, perguntei-lhe — “Você sabe o significado de viver com o “retrato de seu casamento refletido num espelho?” A par-tir daquele momento tornaram-se quase obrigatórios nossos en-contros. Conversávamos sobre os mais variados assuntos, mas nunca cheguei a contar-lhe o que se passava comigo. A amizade rapidamente se transformou em amor e senti que a solidão aos poucos se afastava.

Durante um mês, por várias horas, eu me sentava defron-te esperando a solução. Certo dia, ao levantar, olhei-me ao espe-lho e vi minha imagem refletida. Andei e me acompanhou. Todos meus gestos eram imitados. Pensei logo no sonho que tivera e como num jogo de quebra-cabeça comecei a refazer as partes. Talvez um outro “eu” estivesse me substituindo. Talvez esta não era a descoberta de uma nova rota entre a Terra e a Lua. Talvez tivesse caído em outro planeta que não fosse a Terra. Talvez es-

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tivesse num planeta que fosse o espelho da Terra. Sim. Somente poderia ser esta a solução. Fui ao meu encontro. Esperei até que me vi. Confirmava-se toda minha teoria. O mistério estava resol-vido. O quebra-cabeça estava formado. Mas naquele momento algo mais importante se fêz presente. Amava e muito. Voltando, perderia o que de mais importante havia encontrado. Ficando, teria que reiniciar minha vida outra vez. E minha mulher, meus filhos, minha carreira? O herói carregado em triunfo, milhares de papéis voando pelas janelas, lenços acenando conquista, ci-dade embandeirada amanhecida de branco? Alexandre Magno.

Encontramo-nos num bar. Ficamos em silêncio vários segundos. Minutos. Horas. Olhei para fora. O sol não brilha. O vento que curva as árvores se esconde. A lágrima que cai se transforma. Oceanus Procellarum, Maré Imbrium, Mare Cri-sium...

Meu foguete subiu vertiginosamente pela gruta cujas pa-redes lisas davam a impressão de serem torneadas pelo homem. Senti contato com nossa base lunar. O rádio funcionava. Afas-tava-me do centro de gravidade. Escuridão. Penumbra. Sombra. Crateras de Clavius. Diâmetro equatorial, sete mil, novecentos e vinte e sete milhas. Massa, seis sextilhões de toneladas. Densi-dade, cinco e meia vezes a da água.

— O espelho que em minha mão se encontrava não existe mais. Desce lentamente rumo ao fundo do mar formando uma onda gigantesca que cobre o mundo que deixei. Falávamos de nossas últimas viagens.

— “Uma, duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando uma luz brilhante. E o bater de vento movimentan-do a haste docemente fazia com que a corola traçasse círculos e mais círculos luminosos”.

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Com a morte de Robert, no acidente de pouso, George foi, realmente, o primeiro homem na Lua.

Não apenas o primeiro a descer, mas — graças à inutiliza-ção de duas unidades dos reatores do pequeno foguete explora-dor — o primeiro a estabelecer pouso na Lua. O primeiro homem a viver vinte e tantos dias (dos dias de 24 horas lá da Terra) no satélite silencioso.

Êle era, enfim, o primeiro náufrago da Lua e talvez — pen-sou com certo temor — o primeiro homem a morrer na Lua...

Sabia que longe, na base do Centro de Pesquisas Luna-res, do Plano de Exploração Espacial, a segunda expedição já teria sido ativamente preparada, sob o comando do Coronel Her-mann. Tendo certamente antecipado a saída para o primeiro período de enquadramento favorável, já deveria ter partido, há algumas horas, para atender à emergência em Lua-1.

De acordo com os planos, a expedição de Hermann, tinha fixada a partida para 74 dias após a Lua-1, de George e Robert. Mas, também de acordo com o estabelecido matematicamente pelos técnicos, Lua-2 seria antecipada para o primeiro ciclo lu-nar subseqüente no caso de emergência. Seiscentas e quarenta e oito horas... Mais um pouco só e êle, então, já não seria mais o homem perdido na Lua... o primeiro homem na Lua...

George sorriu, e a barba de-quase-um-mês espetou seu rosto dentro do capacete blindado. Com a mão enluvada per-correu o pesado trajo espacial, na altura onde deveria estar seu queixo barbudo. Mas a sua roupa espessa e incômoda apenas produziu um som áspero de roçar de tecidos metálicos.

Era uma autêntica armadura, a sua. Impenetrável e rígi-

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da. Igual, talvez, àquela dos cavaleiros andantes, dos séculos da fábula, que em seus elmos de aço e ferro conquistaram o incógnito mundo das trevas, das garras do mal, das mãos dos infiéis.

Olhou em torno daquele maldito satélite. Sentiu-se, — ves-tido com toda aquela armadura sideral — uma espécie de D. Qui-xote a lutar contra o destino irônico. Nada do que êle soubesse fazer, nenhuma de suas habilitações, conseguidas nos anos de aperfeiçoamento nos centros técnicos da União Européia ou no serviço efetivo e duro das Nações Aliadas, nada poderia ajudá-lo naquele momento. Dependia totalmente dos esforços de Lua-2, com Hermann e seus companheiros. Êle, George, não poderia, agora, mudar o seu futuro.

Sua vida dependia somente de sua boa estrela... uma es-trela luminosa e bela que iria surgir, dentro de pouco, no céu negro daquela negra Lua — e ir crescendo, crescendo, até se tornar na mais esperada chuva de fogo com que êle jamais so-nhara: a nave salvadora de Lua-2.

O calor havia chegado com o novo dia. Os aparelhos da nave não estavam regulando, por certo, e George ao despertar sentiu-se como que mergulhado no vapor de uma sauna. Respi-rou com dificuldade o ar que circulava dentro da nave, há horas sob o sol causticante.

A luz intensa do sol chapava as escarpas da funda cratera em que a cápsula jazia tombada. Até então George só vira aque-las cenas sob o facho do laiser. Mas, agora, sob a luz queimante do sol, cada acidente do terreno, cada depressão, ganhava uma nova dimensão e cada pequena fresta de pedra era um abismo de cores brilhantes ou de sombras. E havia o calor!

Colocou seu capacete novamente, desligou o sistema de aquecimento de sua armadura-espacial e esgueirou-se ofegante para a sombra deixada pela nave, fora. Sentia-se como uma lata de ração vitemim quando se perfura o depósito de cal. Queima-va!

Deitado à sombra das aletas do foguete, imaginou quanto daria, naquele instante, para estar bem calmo, cochilando sob

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a copa verde de uma árvore, no seu delicioso e distante planeta azul...

Aquele, talvez, fosse o preço do sonho: tanto se imaginara na conquista do cosmos... tanto pensara na sua glória — o pri-meiro homem na Lua! E agora, o calor da paixão era, apenas, o calor de um sol escaldante, caindo em toda a plenitude, livre da barreira atmosférica, no seu elmo de cavaleiro andante das galáxias... E como queimava!

George olhou o marcador eletrônico pela milésima vez. Seiscentas e quarenta e tantas horas — quase vinte e oito dias (dos dias de vinte e quatro horas lá da Terra!) desde o instante em que êle tentara, inutilmente, ligar os reatores para evitar aquela maldita cratera onde agora jazia o foguete. E então havia lançado o código de emergência.

Sempre tinha sonhado com a conquista da Lua. Desde sua meninice fora um apaixonado pelas aventuras da ciência e da astronáutica. Não desanimara diante dos muitos concorren-tes — os melhores técnicos de todos os Centros de Exploração Espacial da União Latina, da Liga Asiática, das Nações Unidas... Passara pelos duros cursos de seleção e de aperfeiçoamento que, afinal, indicaram os homens que iriam concretizar o sonho sonhado pelo Homem há mais de um século — agora em vias de se tornar real: pisar o solo de um outro planeta!

O que já se havia conseguido até então era nada, perto da glória desejada e esperada. Agora sim, a conquista do cosmos! A Lua era apenas o primeiro degrau: depois os outros.

George não sabia se poderia chegar até a vitória final, a conquista das galáxias, a aventura no mundo das estrelas, o gosto da posse do “universum nostrum”. Mas, no primeiro an-dar, êle sempre quis pôr os pés.

Não esperou, na verdade, nunca, apesar de toda a sua sonhada paixão, ser um dos primeiros. Foi com verdadeira sur-presa — para não falar na exultante alegria — que fora escolhi-do, juntamente com o experimentadíssimo Mason Roberts, do Grupo das Américas, para a grande aventura! E, infelizmente, com aquele malfadado acidente, George acabara sendo, mesmo, o primeiro homem vivo na Lua.

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Sorriu consigo mesmo... não fora êle, no fim das contas, o primeiro a pisar a Lua. Outro Jorge — diz a lenda — havia esta-do por lá antes dele.

Êle se lembrava de ter lido na sua meninice algumas es-tórias populares — dos tempos da superstição — e gravuras muito antigas, em que um outro Jorge (Santo, diziam) investia de armadura e lança contra o Dragão da Lua, em seu cavalo alado. Aquela fantasia que tanto o impressionava em criança, voltou-lhe com sua lembrança apagada.

Quem sabe se êle também, não seria lembrado um dia pelas gerações futuras (imagens antigas, muito antigas!) como o herói da Lua...

Sentiu o suor escorrer pelo rosto.Respirou fundo, novamente, e o ar quente e úmido que

exalou condensou-se no visor de seu capacete, embaciando-o. Regulou o extrator de umidade do ar — junto da luva esquerda — e olhou para fora.

A cratera ensolarada vista através do elmo embaçado ga-nhou novos coloridos. A luz do sol, coada pelas gotículas con-densadas no plástico, decompôs-se em um breve espectro que emoldurou a paisagem enevoada. As sombras das grotas e das arestas mais aduncas da parede da cratera, vistas assim de trás do visor da armadura, pareceram um cenário de fantasia.

Era como se estivesse, com a sua armadura de cavaleiro andante, sozinho, num país de fábula...

Olhou as sombras negras em contraste frio com a luz ce-gante do sol. Não eram castelos? Torres altíssimas. .. E duen-des! A floresta de negras cavernas... Dragões. ..

E êle, só, ali naquele mundo estranho!Os duendes foram perdendo a forma, movimentando-se

vagarosamente, e as bandeiras côr de arco-íris dos torneios de cavalaria foram aos poucos se desvanecendo.

Duendes... doentes...Doente!George pensou alto:É o calor, sem dúvida! Êle se sentia mole, doente, abafado,

a pensar tolices e a deixar-se levar pela fantasia. Justamente

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quando seu tempo de espera estava por terminar... Era preciso, mais do que nunca, não perder a cabeça agora.

Procurou fazer alguma coisa, para distrair seus pensa-mentos. Encostou-se junto da aleta do foguete. As paredes da cratera subiam num aclive mais ou menos forte até uma altura de uns trinta metros. Lá em cima estava fincada a antena do transmissor — referência visual, para as saídas, do ponto onde estava seu acampamento. Resolveu subir até lá.

Começou a caminhar vagarosamente — apesar da facili-dade de movimentos que a baixa gravidade do planeta lhe pro-porcionava — por causa do calor.

Já perto do alto, parou e olhou em torno. De novo o ar quente de seus pulmões toldou-lhe a visão. Outra vez as ban-deiras coloridas de sol balançaram-se ao vento. E os duendes, novamente, aproveitando-se de sua distração, se agitaram.

Dando as costas para seu feudo no vale iluminado, pene-trou na floresta de sombras negras, entre as estalagmites que brotavam verticalmente do chão.

George era agora verdadeiramente o senhor daquelas ter-ras, ao redor de seu castelo, senhor da Lua. Um Homem na Lua... o Homem da Lua. Era êle, George, cavaleiro de armadura, a passear entre castelos e bandeiras multicores (de arco-íris!) de senhores e duendes ... Era êle o cavaleiro, George, o vencedor do Dragão (pois não era assim que lhe lembravam as gravuras de sua meninice — o Santo em seu cavalo, esmagando numa estocada certeira o diabólico Dragão de asas?)

George — o cavaleiro da Lua — lançou em torno seu olhar triunfante!

Foi nessa hora que êle reconheceu o ronco horripilante, ao mesmo tempo em que uma língua de fogo quase o atingia, cres-tando as pedras da cratera, próximas de seus pés.

O Dragão!Um cheiro nauseante chegou às suas narinas. O rugido

cresceu e as línguas de chamas se aproximaram mais, despe-jadas aos borbotões pelo animal enfurecido, enquanto estendia suas quatro patas ameaçadoras, descendo-as em torno de Ge-orge, procurando cercá-lo!

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George recuperou toda a sua calma. Correu para o topo da cratera, fugindo das chamas expelidas pelo monstro e apanhou a antena espetada lá em cima. Virou-se para o lado de onde vi-nha o ronco endemoninhado, lança em riste, e sorriu. ..

O Dragão — não dizia a história? — ressurgia outra vez; e outra vez o Santo o iria trespassar com sua lança intimorata e vencedora!

Enfrentou o terrível animal — suas patas o cercando len-tamente — descendo sobre êle. Com a fronte erguida, como sem-pre o soubera vencer, preparou o golpe... No meio da garganta, bem dentro das chamas!...

Avançou cegamente contra o bafo violento que o monstro assoprava, juntamente com as chispas que expelia da goela no-jenta. As chamas o cercaram por um instante — um pequeno instante em que George duvidou de sua própria vitória — e viu as quatro patas do réptil alado tocar o solo. Depois tudo su-miu...

No meio do jato flamejante, George foi como um fósforo que em contacto com o fogo brilha intensamente num momento, para depois se apagar, consumido pelas chamas...

Então Hermann, sentindo as quatro aletas de ré apoia-rem-se firmemente na rocha, cortou o combustível dos foguetes, estrangulando os jatos de retrocessão. No silêncio que se fêz, olhou para fora e preparou-se para descer, à procura de Geor-ge.

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Minhas senhoras e meus senhores: Terminando, peço des-culpas por ter alongado tanto esta exaltação a Machado Guerra, orgulho deste Brasil que tanto amamos.” A assistência, em pé, aplaudiu longamente o orador.

À saída do Silogeu, dois dos assistentes comentavam:— Veja você que coisa engraçada. Progredimos tanto nes-

tes 50 primeiros anos do Século XXIII e ainda não conseguimos abolir esta mania das homenagens.

— Mas que quer, respondeu o companheiro. O próprio Machado Guerra é de opinião que não se deve tirar ao mundo as imbecilidades, porque é delas que vivem o orgulho e a satisfação humanas. Veja a concessão que fazemos à gula. Conhecemos o valor alimentício das substâncias. Sabemos que uma pílula nos sustenta, mas o progresso não aboliu ainda os banquetes “à antiga”.

— Perdão. Não estou de acordo. Não se usa mais um fo-gão em cada casa. Comemos hoje magnificamente por meio das usinas centrais os acepipes preparados por mestres-cucas, que seriam antigamente cozinheiros dos Guinles, dos Sebastião Pais de Almeida, dos Mário Simonsen, daqueles milionários de ou-tras eras. Hoje, recebemos estes banquetes em casa, em caixas de papel plástico.

— Mas há de concordar que seja uma concessão ao pas-sado.

— Sim. De acordo. Mas você se lembra, porque as experi-ências são de ontem, o quanto a humanidade definhou quando se procurou, cientificamente, cortar-lhe os vícios. Ficou provado que os vícios é que fazem a felicidade humana.

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— O que se deu ali foi o excesso. Retirou-se até à espécie humana o poder natural da reprodução! Inegavelmente um erro, porque realmente ninguém estava interessado em reproduzir um semelhante sem uma satisfação pessoal. Tivemos de voltar atrás. Esta foi realmente a concessão de maior projeção sobre o progresso. Mas aqui entre nós, convenhamos, bem vantajosa.

— Mas, já pensou que efeito terá sobre o mundo esta des-coberta de Machado Guerra? Para onde marcharemos? Porque até hoje a sociedade esteve orientada num aperfeiçoamento da espécie humana, e toda a máquina social estava montada para isso. Agora tudo se altera. Precisamos começar de novo!

— Homem... E pelo que êle disse, dentro de dois anos, os resultados já serão positivos. O que eu não atinei é com o meca-nismo operacional da idéia dele.

— Bom. Isto não é coisa para nós. É problema de alta ciên-cia, de grande especialidade. Pelo que eu entendi, êle conseguiu, por meio de reprodução fotográfica, impressionar o núcleo da célula de maneira a obrigá-la, por mimetismo, a reproduzir a imagem fotografada. Assim, há dois anos êle vem obrigando um grupo de células locomotoras... isso porque você sabe, — há es-pecialização celular! Há células locomotoras, visuais, sexuais...

— Que malandras estas, hein?!— Pois é. Descobriu que cada célula tem uma função es-

pecífica. Isolando-as êle pôde transformá-las na sua maneira atuante e assim obter modelos humanos aperfeiçoados, último tipo, como mecanicamente se faz com os automóveis, com os aviões. Teremos um modelo anual em exposição nas materni-dades, e os futuros pais poderão escolher os filhos do feitio que quiserem...

— Extraordinário.— Extraordinário e útil, porque êle admite já a correção

de imperfeições. Por exemplo, o homem com rodas, ao invés de pés. Ora, é sabido que a roda é muito mais ligeira do que os pés. Sem se contar ainda com o aperfeiçoamento, que êle prevê, do tipo desligável, de roda livre, que permitirá a descida de grandes declives, sem esforço. O problema das mãos adicionais, que êle explanou com tanta clareza, que dará ao homem um outro po-

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der de contenção. O olho retrovisor...— Mas, você já imaginou como vai ser este mundo?— Inegavelmente melhor do que o passado. Sem a desco-

berta do professor Machado Guerra a humanidade não progre-diria mecanicamente. A humanidade e os bichos. Desde que o mundo é mundo o homem é sempre o mesmo! Assim como os gatos. Repare na monotonia eterna dos mesmos, já com esse formato ao tempo dos faraós pré-históricos. Inventamos o acu-mulador de luz solar...

— E que grande descoberta! Acabamos com a luz elétrica do passado, com postes, fios, lâmpadas... e a humanidade vivia praticamente no escuro. Hoje, com os espelhos dos satélites ar-tificiais não há mais noite! Os automóveis e toda a maquinaria humana se movimenta com a luz solar transmitida pelas ondas hertzianas. O próprio piso das ruas, é construído de fibra de vidro prensado, indesgastável com o atrito. Eterno, à prova de ruído. É uma grande descoberta inegavelmente.

— Sim, mas tudo são pequenas descobertas, perto deste aperfeiçoamento genético por meio da alteração do núcleo celu-lar.

— Mas isto vem criar um problema muito sério, qual seja o do ferro-velho humano. Porque, com o lançamento constante de últimos modelos mais aperfeiçoados os outros vão sendo pre-teridos. E moça nenhuma vai desejar, para marido, um modelo de cinco, seis anos passados...

— Mas o Machado Guerra explicou isso também. Resol-verá o problema como faziam os antigos — por meio de pressão econômica. Encarecendo muito o aperfeiçoamento dos últimos modelos, haverá sempre, por uma questão de preço, pretenden-tes para os modelos antigos. O passado nos ensina muito.

— De um modo ou de outro desfrutamos uma noite agra-dável, embora o homenzinho seja maçante, expressa-se mal.

— Bem: não se pode exigir tudo de um homem só.— Pois meu caro amigo, vamos nos despedir.— Espere aí. Não tinha notado que o seu aparelho voador

era novo!— Ah! Comprei-o ontem. É à prova de raio e de queda.

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— Ah! Já ouvi falar! Como funciona?— Muito simples. Quando em pane êle evola o gás contido

nesta bolsa que é atraído, por endosmose, pela carne humana, e faz com que percamos o nosso peso real. E a queda se dá pela força de gravidade com relação apenas ao peso da indumentá-ria, que por sua vez encontra apoio na resistência do ar.

— Ah!— O segredo todo pois, para que o êxito seja perfeito, é

vestirmo-nos de substâncias leves. Assim, por exemplo, o meu chaveiro é de matéria plástica, e o sapato de fibra de algodão.

— E como evita os raios ?— Por meio deste prisma parabólico que situa o foco fora

do plano eqüidistante, o mesmo acontecendo com a diretriz em relação a esse foco.

— Mas que diabo é isso?— Pois é essa a pergunta que o raio faz a si próprio. No

meio dessa confusão, sem entender o problema parabólico — aliás impossível, — na dúvida se a parábola é logarítmica, cúbi-ca ou divergente, procurando solução, o raio perde sua intensi-dade específica e torna-se inócuo.

— Realmente revolucionário. Pois bem, meu amigo, boa noite. Aliás, que dia magnífico. De primavera!

— E estamos em fevereiro. Não há como o progresso. Bem, até logo.

E os dois amigos se despedem alçando vôo como se fossem passarinhos, cruzando pelo espaço já vazio àquelas altas horas da noite com outros retardatários, que deixavam as boates, os teatros e ébrios, que em vôo inseguro e impreciso, abandona-vam os botequins — eternos vendedores de ilusões, que o álcool, mesmo depois do ano 2.000 continuava a ser o único inspira-dor.

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— Amoa-a — disse êle; e apertou-lhe a mão molenga, se-dosa e morna.

— Você me machuca — queixou-se ela na sua vòzinha sibilante.

E acariciou-lhe o rosto com a mão superior esquerda, e os oito longos dedos sem unhas deixaram-lhe na pele lisa oito rastos de febres.

— Você gosta de mim? — perguntou êle.Ela riu, pondo em pinha a pequenina boca de lábios azuis,

os olhos — estes, sim, humanos, de um verde aguado extrema-mente humano — os olhos brilhando como duas estrelas Lamb-da-umlaut da Constelação da Onça.

—- Claro que gosto — sibilou. — Mas você sabe que prati-camente não tenho sexo: sou uma operadora.

— Sei, sei. Mas sei também que você é uma operadora, não um operador.

Ela sacudiu-se toda numa gargalhada que lhe apertou mais ainda a boca, os olhos verdes fizeram-se azuis, seus qua-tro braços bateram o ar, as duas longas antenas que saíam da ablonga cabeça rósea puseram-se a vibrar.

— Qual é a graça?— Imagine se você se apaixonasse por um operador! Você

sabe distinguir um operador de uma operadora?— Naturalmente. O cheiro. Vocês cheiram a rosas, eles

cheiram a... a gato molhado...— Rosas. .. gato molhado. . . Vocês são muito simples.

Para nós, a coisa é mais complexa. Você não entenderia nunca, você pertence a um mundo metafórico. Ah, poetas: a rose is a

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rose is a rose is a rose... Flores e bichos, crepúsculos e brisas, estelúridas e ôndulas, marmolências e núvolas, pratilunas e vermicásulos.

E abraçou-o molemente pelos ombros e pela cintura. — Que sabe você acerca das secreções operadas peristàl-

ticamente? Dos nossos tubos contrácteis? Êle abaixou a cabeça.— Sou um burocrata. Controlo os estoques de sapatões

imantados dos astronautas de Gândia-Z. Pouco conheço de ci-ência, você sabe.

— Sei. E sei também que faz... ah... versos.— Sou um dos bons poetas do asteróide. Vrona 17-47-y pôs-se pensativa.— Você devia ter-se apaixonado por uma procriadora.— Vrona!— São tão bonitas, Frênio! Aqueles cabelos roxos, os dois

braços carnudos, tão humanos! E as mãos de só três dedos com aquelas unhas jerimum! E os quatro seios tão empinados, e as grossas pernas lisas!... E... bem... o resto...

Ela cerrou os olhos, mordeu os lábios com os pontudos dentinhos negros.

— Eu quero você, Vrona! — êle quase gritou. — Pouco me importam braços carnudos, cabelos, unhas... e o resto! _

O receptor de Vrona, ajustado a uma pulseira do seu bra-ço inferior esquerdo, pôs-se a emitir zumbidos: “tzim... tzim... tzim...”

Levou uma de suas mãos, em concha, aos finos lábios e sibilou:

— Grehen, grehen. Schaft, uhm, uhm. Racht! O receptor grunhiu:— Lak! Unk-lak! Mulahulak! Imp rot tilik! Tritac iversak

malahunduk...E num berro:— Kumm! Frênio empalideceu:— Você tem que ir, querida? — gemeu.Ela fechou a mão, impedindo a transmissão da queixa

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dele. Tapou-lhe a boca com uma das outras mãos. E respondeu ao sibilar do receptor:

— Ab, ab! Kummen! Responderam, numa explosão:— Frok!

* * *

A tarde era um suave desmaiar de cores e ruídos. O sol, embaçado pela imensa cúpula de invisíveis raios condicionado-res, estava azul-oceânico; e o céu, ilhado de nuvens côr de gema, ia-se fazendo verde-querozene. O zumbido das longas correntes de tráfego aéreo ia-se atenuando mercê da ação dos silenciado-res que eram sucessivamente ligados em cada esquina.

Vrona e Frênio, debruçados no parapeito do alto terraço dos propulsores Gândia, contemplavam em silêncio a multidão formigante a arrastar-se pelas calçadas de rolamento, a cami-nho das estações de transaéreos.

— Tenho que ir, Frênio — choramingou ela.— Não fale. Fiquemos assim, quietos. Contemplando a

tarde a deitar-se nos nossos olhos. Lembro-me de um verso de um poeta antigo, velho como o mundo, que ouvi outro dia num memorizador do século XXXII exposto numa loja de antigüida-des: “A tarde se deitava nos meus olhos...”

— Lindo! Quem era o poeta?— Um tal Mário de Andrade. Do século XX terrestre. Não

ficou na história da poesia porque escrevia em brasileiro.— Ué?!— Era uma língua pouco conhecida naquele tempo. A bem

dizer, não existia; era de fato português (você com certeza não ouviu falar do português, a língua-mãe do brasileiro, que é hoje o idioma da Terra, da Lua e de Vênus). Andrade foi um dos pri-meiros a escrever em brasileiro. Mas ficou esquecido porque, do século XXV em diante, só se cuidou de preservar os docu-mentos literários dos países importantes até então. E quando o Brasil dominou a Terra naquele século e se apoderou da Lua e de Vênus e os povoou no século seguinte, mal ligou para o seu

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passado.— Vocês, burocratas, sabem tanta coisa desimportante!

Não conhecem a composição dos intercérebros, o mecanismo da transmissão do ego eterno, nada sabem, mesmo, da teoria dos escambos entre matéria e espírito — a chave dos antigos misté-rios do nascimento e da morte — que qualquer criança, a partir do século XXX de vocês, conhece de cor e salteado.

Olhou-o comovidamente, à luz suavíssima dos modilunos, que já empurrava para o abismo do horizonte a diurna claridade cheia de energia do sol.

— Você não viveria um dia em Zimbra-8. Quando se entre-gasse à audição dos seus velhos memorizadores e ao espetáculo dos seus teleprotovisores, esquecer-se-ia do seu control-viven-cial, das suas cargas sintonizadoras, e sofreria o transfert...

Frênio deu um salto.— Vrona! O transfert, Vrona!— Quê?!— O transfert, criatura, você não entende?Ela olhou-o com grandes olhos bem redondos, entre-abriu

a boca.— Não entendo, Frênio. Êle gritou, e tremia todo:— Você me leva para Zimbra-8. Seu magnum tem dois

lugares, eu sei...

* * *

Ela sorriu; entendera. Vibrava de excitação. Tomou-o pela mão e com êle correu para o dourado magnum, que arfava doce-mente, já tele-acionado de Zimbra-8.

— Entra, entra! — gritou.Êle sentou-se ao seu lado. O magnum zumbiu, num mi-

nuto penetrou na aveludada escuridão espacial.Antes que o rubro esferóide Subzimbra-8 (7), a estação

inferior do grande astro, surgisse das trevas macias, Vrona descarregou das meninges o seu sintonizador. Alheiou-se vo-luptuosamente, colheu no intercérebro o vadio pensamento do

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companheiro, que nem chegara a acionar o seu sintonizador na freqüência de Zimbra-8.

Um ponto vermelho surgiu a dois anos-luz. Vrona tomou a mão do amigo, inclinou-se para êle e beijou-o, a tremer.

— O transfert, Frênio! Agora!Frênio abraçou-a. Houve um deslumbramento. Um clarão

vermelho cegou-os. E, no minuto seguinte, viram se a rodopiar no meio de nuvens da maciez de penas, a princípio alvíssimas, depois da côr dos dentes dos monstros do Museu Polibo chama-dos elefantes, a seguir cinzentas como as chuvas que os tele-protovisores mostravam, enfim quase negras, do negror duro e opaco das noites dos planetas desérticos do ocidente de Vênus.

Quando cessaram de rodopiar, pairavam num ar denso e sulfuroso, acima de algumas rochas de superfície esponjosa. Estavam nus, abraçados, suarentos, malcheirosos; e uma sorte de febre que angustiava e euforizava a um tempo, os empolgava e os fazia chorar e rir, rir e chorar perdidamente. E — oh ma-ravilha! — Frênio não tinha mais o corpo atarracado, a cabeça enorme do crânio calvo; Vrona só possuía dois braços, e suas mãos eram de cinco dedos, e os dedos ostentavam unhas naca-radas. Eram, ambos, exatamente iguais às incríveis “figuras que os museus terrestres conservavam nas suas salas especiais: fi-guras de corpos alongados, de braços e pernas carnudos, com pêlos não só na cabeça como, crescendo em graciosos tufos, noutras partes do corpo.

— Paolo... — murmurou Vrona.— Francesca... — sussurrou Frênio.De sobre uma rocha, dois soturnos indivíduos metidos em

túnicas que lhes chegavam aos tornozelos, olhavam para eles com ar ansioso. Um cobria a cabeça com uma espécie de ca-rapuça, outro tinha os cabelos enfeitados de folhas de reflexos brônzeos.

O da carapuça, sujeito de grande nariz curvo e pequeninos olhos tristes, acenou para eles e lhes falou com voz lamurienta, numa língua de inflexões suavíssimas :

Francesca, i tuoi martiri A lagrimar mi fanno tristo e pio.

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Frênio (Paolo) disse ao ouvido de Vrona (Francesca) :— Fala-lhe. É um poeta. Responde-lhe em versos.— Mas eu não sei fazer versos, Paolo! Fala-lhe tu.— Êle quer ouvir-te a ti. Fala. Soprarei os versos ao teu

ouvido.Fêz de conta que lhe beijava a orelha e foi murmurando

o seu ditado. E ela, os olhos brilhantes, pôs-se a contar ao Po-eta, na mesma língua musical, uma estranha história de amor, adultério incestuoso e assassínio:

Nessun maggior dolor Che ricordasi dei tempo felice...Questi, che mai da me non fia diviso, La bocca mi bacio tutto tremante...

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Robert Carley recobrou lentamente a consciência. Ainda depois de sentado, sentia-se tonto. Havia tentado abrir os olhos enquanto estava deitado mas não conseguira, pois uma forte luz, vinda de cima, magoara-lhe a vista. Mesmo agora, com a mão direita em pala sobre os olhos, tinha de ficar com eles qua-se fechados pois a luminosidade era por demais forte.

Aos poucos conseguiu divisar uma árvore à sua frente: era grande e sem folhas, com galhos longos e retorcidos; do tron-co enrugado saíam raízes negras que entravam vigorosamente no chão. Encolhendo a perna e esticando-a novamente fêz com que o salto do sapato raspasse o solo, e uma nuvem de poeira elevou-se. Aquela terra era ressequida. Ainda com a mão a pro-teger a vista circunvagou o olhar, vendo que a cena da árvore sem folhas, com galhos retorcidos e raízes negras, repetia-se monòtonamente em todas as direções. Não estavam muito espa-çadas, nem dispostas sob simetria alguma, de modo que não lhe foi dado ver numa distância muito grande.

“Devo estar em alguma espécie de deserto...”Tentou nesse instante forçar a memória, mas não se lem-

brou de como viera ter ali. “Depois penso nisso. Agora é tratar de sair logo deste lugar.”

Ergueu-se com extrema dificuldade pois suas pernas tre-miam ligeiramente, e esticando a mão apoiou-se num dos galhos que estavam próximos. Nem bem sua mão tocara a árvore, e já Carley a recolhia violentamente, com a palma crivada de uma enorme quantidade de pequenos espinhos. Olhou enraivecido para o galho, fazendo votos para que não fossem venenosos.

Escolheu uma direção ao acaso e saiu, caminhando deva-

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gar. Já bem mais habituado à terrível claridade olhou para o céu um pouco acima do horizonte: estava intensamente avermelha-do, embora sem nuvens.

“Estranho, um céu dessa côr, estando o sol quase a pino.”

Ao pensar nisso esticou a mão aberta, para ver onde ficava a sombra. No primeiro instante não entendeu o que se passava, pois no solo não aparecia sombra alguma. Ajoelhou-se, deixan-do a mão a uns trinta centímetros do chão: nada! Súbito, viu que, em círculos e ao redor da posição de sua mão, estavam três sombras. Com muita dificuldade as via pois eram por demais fracas; contudo não havia dúvidas: lá estavam elas e eram três.

Sem saber como, num movimento impulsivo, e não dando importância à intensa claridade que vinha de cima, pendeu a cabeça para trás e olhou para onde devia estar o sol. A torrente de luz feriu-lhe a vista violentamente; Carley abaixou a cabeça e apertou os olhos com as mãos. No interior da retina ainda via um extenso clarão. Fogos, foguetes, balões, bolas coloridas de todos os tamanhos. Em poucos momentos elas foram tomando tonalidades vermelhas e amarelas e, em um fundo negro, pôde perceber novamente os três discos brilhantes. Abriu e fechou os olhos várias vezes, olhando na direção do chão — só via os três discos.

Sentou-se e manteve os olhos fechados. Enquanto espera-va as pupilas voltarem ao normal tentou pensar no estranho fe-nômeno. O que poderia ocasionar tal visão? Sobre a sua cabeça brilhavam efetivamente três sóis, mas podia ser devido a alguma ilusão ou a qualquer fenômeno que lhe fosse desconhecido.

Não conteve um sorriso amargurado; por que tentar en-ganar-se? Os sóis que vira eram por demais reais para serem alguma ilusão...

E essas árvores? Esse estranho lugar? A resposta para tudo isso não poderia ser assim tão simples; por enquanto, po-rém, não possuía qualquer explicação. De repente percebeu ba-rulho de passos que vinham da sua frente. Pôs-se de pé e tentou abrir os olhos, esforçando-se por se habituar novamente à cla-ridade. Em seguida colocou a mão em concha no ouvido, dado

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que o ruído diminuía rapidamente e, o mais depressa que pôde, caminhou em sua direção. Logo depois não ouvia mais nada. Já se preparava para gritar, quando achou que não seria prudente. O lugar começava a parecer-lhe misterioso demais para chamar assim, sem mais nem menos, a atenção sobre sua pessoa.

Parou e volveu a cabeça para trás. Parecia que não havia ainda saído do lugar em que estivera, dado que a paisagem era sempre a mesma.

A pequena corrida que deu fêz-lhe ver o quanto estava fra-co; talvez não comesse há mais de dois dias. Começou a imagi-nar um jeito de orientar-se por ali, onde não havia ponto algum de referência. “Quando esse... esses sóis se puserem — e caso surjam estrelas, — poderei orientar-me melhor...”

Virou a cabeça para o lado e ficou quieto: passos, nova-mente! Dessa vez pareciam ser de muitas pessoas. Não queren-do se expor, antes de saber a quem pertenciam, foi caminhan-do na direção deles, sempre perto de alguma árvore. Além dos passos, ouvia vozes, e essas lhe pareceram estranhas. Afinal viu quem eram.

Sua boca, que já estava seca, tornou-se mais seca ainda e suas pernas tremeram mais. Instintivamente recuou em si-lêncio, colocando-se em abrigo atrás de uma árvore. Sentia-se inundado de suor e olhava de uma para outra das árvores sem saber o que fazer.

Que estaria acontecendo afinal e que mundo de pesadelo era aquele? A cena que vira voltava-lhe à mente. No primeiro instante pensara que era apenas um bando de homens mal-trapilhos, mas o que viu logo a seguir foi o que o horrorizou: eram homens, muito magros, bem escuros, com grandes cabe-los, barbas enormes e — pedaços de asas nas costas. “Se eu... não tivesse visto um deles com o torso nu, e com aquelas saindo das costas... oh...”

Com passadas incertas foi caminhando em direção oposta àquela em que passaram os homens. Antes de ver os três sóis e aqueles homens sua cabeça já estava confusa, mas agora quase não conseguia formar direito as idéias.

Caminhou durante longo tempo. O calor dos sóis queima-

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va-lhe a pele, embora tivesse ainda uma camisa sobre o corpo. Em certo momento as coisas à sua volta começaram a girar, a girar, e Robert Carley perdeu de novo a consciência. Caiu no chão sobre alguns pedregulhos; um deles abriu-lhe um talho na testa.

*

O pesadelo terminara. Ao seu lado, com um aventalzinho amarelo, bordado em azul, Joan servia-lhe o almoço.

— Quando vai para o Canadá, Bob?— Quando vou ? Quando vamos! Você irá também.Ela passou-lhe o braço pelo pescoço.— Pensei que as experiências fossem secretas... ! — Qual secretas! É o que há de mais inofensivo; estamos

trabalhando para o Instituto Geográfico Internacional. São as mais pacíficas experiências de que se tem notícia. Nós vamos es-tudar a constituição de certos terrenos ao norte de Alberta. Mas eu lhe garanto uma coisa: você gostará imenso do Canadá.

Joan enrolara um guardanapo no pescoço, à guisa de uma pele que estivesse usando:

— Não dará um jeito de se caçar um mink por lá, querido? Quem sabe você pega um na estrada!

Carley olhou-a atentamente: os cabelos de Joan, muito louros, estavam soltos e caíam-lhe até os ombros. Seu vestido de baile era rosa; dançavam uma valsa quando ela lhe disse:

— Você não me contou que viríamos até aqui para ter bai-les!

— A festa é por conta do clube local; uma homenagem deles à equipe... mas baile é só hoje; amanhã bem cedo começa-remos as provas.

— Oh, Bob, não haverá perigo? Esse negócio de vocês sol-tarem bombas assim.

A contagem em retrocesso seguia o seu binóculo que apon-tava para o vale:

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“...quatro... três..,, dois... um.... zero!”Inconscientemente trouxe a cabeça um pouco mais para

a frente, como para ver melhor a explosão que se daria a nove quilômetros. Em todo o acampamento o silêncio era total.

O estrondo que todos esperavam não se fêz ouvir.— Professor Carley! Deve ter havido um desarranjo no de-

tonador, dizia um dos geólogos. Sua voz vinha de longe, como se fosse dita por um alto-falante.

Sua vida tinha lógica e cronologia, mas careciam os por-menores: mal acabara de ouvir a palavra “detonador”, e já se achava ao lado do engenho que falhara. A bomba atômica fora colocada no fundo de um poço de quinze metros. Carley parou à sua borda, olhou para o fundo e depois, agachando-se, exa-minou rapidamente o detonador ali em cima. Aparentemente as ligações estavam em ordem.

“Vou dar um pulo até o fundo para examinar as demais ligações antes de desmontá-lo.” Lentamente desceu pela escada de cordas, chegou junto à bomba e pisou em algum fio...

Foi quando os demais fios transformaram-se em árvo-res. A terra perdeu qualquer vestígio de umidade e ficou seca e dura... Sua cabeça era apertada em todas as direções e sentia terrível agonia oprimir-lhe o peito. O suor escorria-lhe da testa, do queixo, pelos ombros... As árvores agora dançavam e faziam caretas — não suportou mais e deu um berro...

Um bando de homens maltrapilhos, barbudos e de estra-nhas feições, estava à sua volta. Mantinham-se um pouco afas-tados e olhavam-no com intensa curiosidade. Por cima dos om-bros daqueles homens podia-se perceber nitidamente as asas. Com uma voz rouca, devida à secura em que se encontrava a sua garganta, falou uma saudação e rezou para que fosse com-preendido, embora interiormente achasse improvável.

Vários homens começaram a falar ao mesmo tempo, mas um deles se adiantou e foi o único a continuar falando. Sua lín-gua era absolutamente desconhecida para Carley; falava soltan-do diversos chiados, como se tivesse a língua presa. A seguir Carley deu-lhe a entender por gestos que não estava entenden-do nada e mostrou que estava fraco, com sede e fome. Alguns do

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grupo mostraram os dentes com um sorriso, e êle ficou a pensar se estariam mesmo rindo, ou se mostrar os dentes lhes teria outro significado. Em qualquer caso, aqueles que sorriram pa-receram desinteressar-se por seu caso, pois deram-lhe as costas e foram-se sentar mais adiante.

Esforçando-se, conseguiu sentar-se. Um dos barbudos, o que lhe dirigira a palavra, não se afastou. Chegou-se mais perto, ajoelhou-se a seu lado e entregou-lhe um pedaço de qualquer coisa; pelo jeito era comida. Depois tirou um pequeno saco de dentro da camisa rasgada e mostrou-o, como a perguntar se tinha algum. Vendo que Carley nem sabia o que era aquilo, co-locou-o ao seu lado e deu-lhe a entender que lho oferecia.

— Fssh. Fssh, grunhiu, apontando o saco de couro. Car-ley respondeu com outro “Fssh”, dando a saber que aprendera o nome, e continuou a comer. Tinha a impressão de que estava comendo um pão de algumas semanas ou algum pedaço de cou-ro meio estragado; entretanto, como a fome era grande, não se preocupou em saber o que poderia ser.

Subitamente deu acordo de sua situação: o sonho que ti-vera! Agora lembrava-se de tudo: sim! Joan, o Canadá, os geó-logos, a bomba... !

“A bomba explodiu e eu morri”, pensou de repente. “Se morri, só posso estar no inferno...”

Olhou rápido para a testa do barbudo: não havia indício algum de chifres; nem rabo, tampouco, êle possuía.

“Devo ter morrido. Esses sujeitos de asas... não sei... tal-vez algum tipo novo de alucinação”.

Acabando a comida deu a entender que tinha sede, e o outro limitou-se a apontar o saco de couro. Como Carley olhasse para êle e para o fssh com cara de desaponto, o ser alado mos-trou-lhe por gestos que deveria segurar aquilo na mão e apanhar a água que vinha de cima. “Tenho de esperar que chova!”

A seguir, o outro mostrou-lhe os demais fssh que possuía; estavam todos vazios. Apontou a própria garganta como a indi-car que também tinha sede.

Nesse instante um grito horrível partiu de um grupo que estava mais adiante. O barbudo pôs-se rápido de pé, ao mesmo

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tempo em que tremenda correria se estabelecia entre os pre-sentes. Pondo-se também de pé, Carley viu que uma das ár-vores estava em chamas; os galhos extremamente ressequidos torravam-se em poucos minutos, virando cinzas. Aos poucos os galhos mais longos já começavam a ameaçar as árvores mais próximas. Foi quando viu que vários homens — e nesse instante notou que várias mulheres também — eram agarrados e jogados na árvore em chamas. Dois, três, quatro, depois em grupos de cinco ou mais, foram barbaramente lançados àquela fogueira. Os gritos dos que os jogavam misturavam-se com os lamentos das vítimas.

Atônito Carley olhou para os lados e viu que por entre todas aquelas árvores apareciam mais homens; viu mulheres, crianças, todos com olhares interessados vendo o espetáculo de barbárie.

Virou as costas e caminhou o mais rápido que pôde para longe do lugar.

“A viver num mundo de pesadelo, prefiro matar-me.”A curiosidade impediu-o de tomar tão logo essa última ati-

tude. Era preciso saber primeiro que lugar era aquele, quem eram aqueles homens e por que viera ter ali.

Não chegou a afastar-se muito. Parou, olhou longagamen-te para uma árvore a seu lado e, sem saber como, começou a subir por ela.

“Dali de cima poderei ver o que há além dessa mata mise-rável.”

Não se esquecera dos espinhos, mas para quem já está decidido inclusive a se matar, isso não é muito. A curiosidade de saber o que conseguiria ver lá de cima animava-o. Suas mãos aos poucos, transformavam-se em folhas de catus, tal o número de espinhos; as solas dos pés doíam incrivelmente. O sangue a escorrer pelos braços não o impressionava e aos poucos a curio-sidade se transformava em alegria: no momento em que divi-sasse qualquer coisa — morro, vale, rio, cidade; qualquer cena diferente das árvores, — desceria e tomaria a sua direção. O sacrifício seria compensado. Continuou pois subindo. Às vezes a dor era grande demais e quase perdia o equilíbrio, tendo en-

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tão de se apoiar de costas noutro galho; no entanto o estado de quase alucinação em que se encontrava não permitia que desse conta do seu estado. A dor era posta de lado pelo afã de chegar aos últimos galhos.

À medida que se elevava seu círculo de visão aumentava e o que lhe era dado ver eram mais e mais árvores como aquela. Aqui e ali, grupos de maltrapilhos ; nem tendas nem estradas, nada. A razão lhe dizia, contudo, que tal paisagem deveria fin-dar-se em alguma parte. Como só lhe fosse dado ver à sua fren-te, esperava, ao chegar aos galhos mais altos, poder descobrir alguma novidade olhando em torno.

Finalmente apoiou o pé num dos galhos mais elevados e girou o torso e a cabeça ao redor: só árvores. À medida que a distância crescia elas pareciam estar mais juntas, quase gru-dadas, de modo que no horizonte a paisagem era inteiramente marrom.

Nesse momento sentiu-se só, vazio e desamparado. Olhou o próprio corpo e viu que se transformara em uma só chaga e estava todo vermelho de sangue. Uma atrás da outra as gotas de seu sangue chegavam ao chão.

Em baixo, à volta da árvore, haviam-se reunido vários da-queles pobres diabos e olhavam-no com expressões que lhe pa-receram de piedade e desinteresse. Mais ao longe, caminhando em sua direção, vinha o barbudo que lhe dera comida; fazia-lhe sinais indicando que descesse logo.

Foi quando sentiu a cabeça latejar e passou a mão pelos cabelos: o calor que desprendia fazia ver que teria logo uma in-solação. Começou a descer. Agora, porém, não havia incentivo algum, pelo contrário: o que o esperava era uma terra estranha, miserável e hostil.

Jogou-se pois, lá de cima.Caiu sobre o braço esquerdo e ouviu-o estalar-se. Os que

se encontravam à sua volta afastaram-se resmungando. Só o barbudo seu amigo continuou ali perto.

Obrigando Carley a sentar-se deu-lhe a entender que era necessário porem-se à sombra de uma árvore, devido ao calor dos sóis. Explicou ainda, por sinais, que trataria das feridas.

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Como Carley estivesse muito fraco, não só devido à inanição, mas já agora também pela perda de sangue, não conseguiu por-se de pé. Seu companheiro tentou erguê-lo, mas também estava bastante fraco para tal esforço, e assim o único recurso que teve foi puxá-lo, arrastando-o pelo chão até debaixo de uma árvore. Ser arrastado pelas pedras após ter trepado pelos espinhos não fêz diferença alguma.

Pacientemente seu amigo foi tirando os espinhos. Por di-versas vezes a dor fê-lo desmaiar; quando de novo voltava a si, o sofrimento continuava. Durante horas o tratamento continuou e Carley percebeu que os sóis não se moviam. Sua cabeça para-rá de latejar, mas seu corpo sentia além das dores, um intenso calor. Dentro de algum tempo começariam a aparecer as bolhas de queimaduras para piorar-lhe os sofrimentos.

De vez em quando seu enfermeiro improvisado parava um pouco para descansar, e depois punha-se de novo a tirar-lhe os espinhos. Aos poucos foi tendo a impressão de que êle não tinha nada mais a fazer. Os outros seres ali existentes também lhe davam essa impressão. Embaixo das outras árvores ali per-to sentavam-se em grupos de dois e três. Raramente via algum passando de um para outro lado.

Às poucas vezes que tentou falar Carley percebeu que sua boca ficara tão seca que não conseguia falar ou articular bem as palavras. Conseguiu, no máximo, fazer o que lhe pareceu razo-ável, ou seja, apontar para o próprio peito e dizer seu nome. O outro entendeu-o e repetiu: “Caly-Caley”. A seguir deu seu nome também: “Tss”, e como da mesma forma encontrava dificulda-des para falar, ficou quieto.

Algum tempo depois Tss parou o tratamento, deitou-se ao seu lado na sombra e dormiu. Deitara sobre as asas, de modo que não foi possível examiná-las melhor. “Quando acordar vou fazer-lhe sinais para saber se consegue voar.”

A dor do corpo já era suportável, perto da sede que sentia. Talvez não resistisse muitas horas mais. Ouviu que vinha das outras árvores uma espécie de choro ou lamúria; tentou erguer a cabeça para ver o que era mas não conseguiu devido à extrema fraqueza.

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O sono em que mergulhava pouco a pouco era provavel-mente o sono final; a dor, a sede e as aflições passavam e davam lugar a uma gostosa sensação de descanso: já não conseguia nem abrir os olhos, nem mover os dedos: sentia-se como que paralisado.

Foi quando sentiu a água no rosto e ouviu o vozerio dos homens que se chamavam uns aos outros. Tss ao seu lado dor-mia profundamente e Carley, embora quisesse chamá-lo, não conseguia articular palavra alguma. A própria água acabou por acordá-lo e um instante depois Carley pôde vê-lo, com o rabo dos olhos, estendendo um dos fssh à água que caía.

Recebendo a chuva diretamente na cara conseguiu com grande esforço abrir um pouco a boca e assim aliviar a sensação de secura que sentia. Era uma chuva grossa e pesada, fazendo grande barulho.

Com dificuldade seguiu o movimento de alguns homens, entre eles Tss. Quando um dos fssh estava com alguma água fechavam-no e abriam outro. Para fechá-lo usavam a cordinha que estava presa no próprio fssh.

Tão rápida como veio, a chuva se foi; parou de repente. Das diversas bocas saíam exclamações de tristeza e ira.

Depois disso Tss voltou para o seu lado e como visse que Carley não se mexera e nem pusera água em seu fssh, deu-lhe um pouco a beber. Percebendo que o doente não podia mover-se continuou a tirar-lhe os espinhos.

Daí em diante Tss começou a apontar as coisas e dizer-lhe os nomes, fazendo com que o outro os repetisse. No início tinha grande dificuldade em falar mas aos poucos os movimentos vol-taram.

Lentamente foi-lhe aprendendo a língua; era difícil o en-sino, já que ali existiam poucos objetos para servirem de exem-plos, e não havia nada onde desenhar, a não ser no chão duro. No entanto percebeu que o modo usado por Tss para ensinar-lhe o idioma denotava ter esse bastante inteligência.

Completamente sem noção do tempo Carley não sabia há quantos “dias” já estava ali, nem quantos outros se passaram até poder andar. Dormiu um grande número de vezes e assistiu

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a mais três chuvas. O espaço entre essas era tão grande que a reserva de água chegava ao fim e eles sofriam tremenda sede.

A língua que falavam pareceu-lhe ser bastante evoluída, e não houve dificuldade quanto à gramática, que assimilou ra-pidamente. À medida que aprendia foi-se inteirando da história daqueles homens, e tendo, cada vez mais, a impressão de que tudo não passava de um horrível pesadelo. Tss garantiu-lhe, quando certa vez se referiu a isso, que todos eles também já haviam-se imaginado num sonho mau.

Foi antes de saber toda a história de Tss e seus esfarra-pados companheiros e enquanto aprendia sua língua que soube de onde eles eram. O fato, de certa forma, deixou-o mais con-fortado.

Perguntando a Tss que lugar era aquele ficou espantado quando ouviu a resposta de que não sabia e que, ao que eles já tinham podido informar-se, aquela terra dura, com aquela paupérrima flora, estendia-se igualmente para todos os lados infindàvelmente. A seguir Tss dissera-lhe que tampouco eles eram dali, não sabiam que lugar era e, por uma questão de re-ferência, chamavam-no de Tuj. Ao ouvir isso Carley não conteve uma exclamação de espanto; como nessa altura seu vocabulário não era muito grande, o outro não pôde dizer-lhe como tinham vindo, mas pôde mostrar-lhe de onde originavam.

Com uma pedra — e a muito custo devido à dureza do chão, — desenhou na terra uma bola e apontou para um dos sóis; deu a seguir a entender que representava um sol, mas não um daqueles de cima. Depois desenhou bem próximo uma outra bolinha e com alguns movimentos mostrou que ela girava em torno do astro.

“Diz-me que vem de um outro planeta, mas de onde? Eu posso dizer-lhe a mesma coisa.”

Após desenhar a primeira bolinha Tss desenhou outra um pouco maior, depois outra bem maior e uma quarta a seguir, à qual emprestou um pouco mais de capricho. Apontou então para o próprio peito e indicou a quarta bolinha. Prosseguiu de-senhando mais alguns planetas: um enorme, depois outro pou-co menor, com alguns anéis girando volta...

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Carley olhou então estupefato o desenho que Tss fizera. Seria mesmo verdade o que estava pensando? “Saturno?”

Logo a seguir mais três bolinhas foram desenhadas. Com um gesto Tss deu a entender que eram só aqueles os planetas do seu sol, e entregou a pedra a Carley, para que mostrasse de onde viera.

Carley segurou a pedra mas não começou logo a dese-nhar; os pensamentos voavam em sua mente. Disse a Tss que esperasse um pouco. Apontando para Júpiter fêz um desenho deste um pouco maior, e com algumas faixas atravessadas, que é a forma como o grande astro é visto ao telescópio. Quando acabou de riscar as faixas e perguntou a Tss se assim era, o amigo olhou-o espantado, balançando a cabeça afirmativamen-te. Depois, Carley indicou aqueles que deviam representar Mar-te e Júpiter, colocando entre eles uma série de pontinhos. Tss confirmaria novamente? Duas coincidências já seriam um tanto demais. Olhou-o.

Tss virou-se vagarosamente para êle e confirmou.Não satisfeito, contudo, Carley desenhou mais alguma

coisa: pôs dois pontos em torno de Marte, um em torno da Ter-ra, nove para Saturno e onze para Júpiter.

Antes de terminar já Tss lhe segurava o braço, indicando que mostrasse logo de onde era. Carley apontou a Terra.

*

Só muito tempo depois, quando já sabia se expressar mais ou menos na língua marciana é que veio a saber toda a histó-ria. Após saber que eram marcianos seu sofrimento ficou um pouco mais suportável; achar-se sozinho com alguns marcianos em algum lugar da Terra seria horrível; tê-los como companhia naquele lugar deserto era como se tivesse alguns amigos ou co-nhecidos por perto. No entanto o único que conversava e se in-teressava por sua pessoa era Tss; os demais viviam como loucos ou como animais que não soubessem o que fazer. Aos poucos o mistério foi sendo desvendado e Carley foi novamente ficando desesperado.

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Segundo Tss, Marte encontrava-se em um estágio de ci-vilização bastante adiantado. Tendo alcançado um nível social perfeitamente estável e equilibrado, a ciência caminhava sem tropeços, descobrindo um por um os segredos da natureza.

— É interessante, frizara Tss, como, sem ter atingido ain-da um grau suficiente para lançar-se nos vôos siderais, já con-seguidos na Terra, segundo você me diz, conseguíssemos estar incrivelmente adiantados em outros setores.

Um desses campos era a eletrônica e a física em geral. Segundo soube Carley em Marte a transmissão de energia por ondas era feita normalmente, e a luz já não lhes oferecia segre-dos.

Em certo momento os homens de ciência de Marte qui-seram realizar uma experiência espetacular; seria — segundo declaravam, — a consagração de toda uma civilização. Empre-enderam a construção de uma máquina do Tempo.

Sabia-se, teoricamente, que em determinadas circunstân-cias seria possível enviar alguém ao passado. Anos foram gastos na construção de uma gigantesca máquina. O projeto teve o ple-no assentimento de todo o povo e dos homens do governo.

Pronta a máquina fizeram-se as experiências preliminares com intervalos de tempo curtos, como minutos, horas, e até um ou dois dias. Cientes de que a máquina funcionava tratou-se de realizar um teste com um passado mais longínquo. Cem anos foi o tempo escolhido. A prova foi realizada solenemente, e com toda pompa; um grupo de vinte homens e quinze mulheres — uma verdadeira expedição turística no tempo! — foi enviado ao passado.

— Esse foi o maior erro da ciência marciana, comentara tristemente o barbudo. Quando isso se deu eu era uma criança: pois bem, cresci, estudei e, depois de formar-me, fui trabalhar junto àquele grupo de cientistas. A essa altura Marte gastava verdadeiras fortunas tentando descobrir o que poderia estar er-rado na máquina. Nenhum daqueles homens e mulheres pôde ser trazido de novo...

Cada tanto tempo um grupo de voluntários — em geral homens e mulheres em busca de aventuras, — prontificava-se a

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fazer a viagem, nós os mandávamos para onde julgávamos fosse cem anos atrás.

Até que um dia recolhemos alguma coisa de volta: o cadá-ver de um dos homens que enviáramos numa das experiências. Estava todo roto, assim como nós, e quase sem carnes; pro-vavelmente morreu na viagem de volta. Desde esse dia — você compreende, — começamos a pensar em fazer alguma coisa pe-los desgraçados que já havíamos mandado... O estado daquele homem indicava uma terrível fraqueza. Assim, de tempos em tempos, passamos a enviar alguns pacotes com comida. Não tínhamos a mínima indicação se isso funcionava ou não, já que trabalhávamos no escuro.

Tss parará um pouco e, como a lembrar-se dolorosamente de alguma coisa, continuou:

— Até o dia em que prontifiquei-me a vir... Disse-lhes que, sendo homem de estudo, conhecendo os problemas da máquina, e sabedor de que era possível a volta, eu poderia tentar qualquer coisa para tirar aquela gente do passado, ou pelo menos os que ainda vivessem... Imaginei que pelo menos alguma mensagem eu poderia enviar. Aqui estou e... olhe essas árvores, essa gen-te... Não é possível fazer nada!

— E você conseguiu saber por que só uma vez puderam mandar alguém de volta? — perguntou Carley.

Tss balançou a cabeça em sinal de desânimo e disse:— Não. Já lhe disse que não pude, até o momento, fazer a

mínima conjetura sobre o quê ou onde é o lugar onde estamos. Quando alguém é mandado de Marte para cá a pessoa aparece em qualquer lugar: alguns aqui perto, outros mais para longe. Muitos morrem na hora pois surgem em lugar já ocupado por uma árvore... Você já teve ocasião de ver corpos ressequidos, como se estivessem atravessados pelas árvores, não?

De fato assim era, e Carley lembrou-se de tê-los visto, o que na época constituiu para êle sombrio mistério. Havia mes-mo uma certa árvore que apresentava duas pernas e um braço à guisa de galhos; chegara a supor que os habitantes grudavam ali tais peças devido a algum culto religioso. A verdade era mais estranha ainda.

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— Da mesma forma com os alimentos, que a cada tempo nos são enviados, continuou o outro. Surgem aqui, acolá; se temos sorte de achá-los, livramo-nos da fome por algum tempo, senão... você já está aqui há bastante tempo para saber.

— Sabe o que eu imaginava, Tss? Que esses alimentos que nós achamos em grandes maços por aí fossem deixados por algum outro tipo de habitante do lugar...

Quanto mais os fatos eram esclarecidos, mais as pergun-tas aumentavam.

— Você disse que só uma vez, enquanto você estava lá em Marte é que conseguiram trazer alguém daqui; quer isso dizer que é possível voltar e talvez pudéssemos ...

— Sei onde você quer chegar, cortou Tss; imagina que tal-vez só se consiga voltar ficando em determinado lugar ou coisa parecida, não?

— Certo, é bem possível que seja assim...Nós aqui costumamos marcar o lugar onde aparecem os

alimentos ou, quando possível, alguns de nós mesmos, e nesses pontos colocamos pequenos objetos nossos, pedaços de roupa etc. Cada tanto tempo examinamos os locais para ver se algum deles desapareceu e, quem sabe, voltou para Marte. Infelizmen-te até hoje não conseguimos nada, além do que, como você vê, apenas eu penso em fazer alguma coisa nesse sentido...

*

Tss ficou alguns instantes pensativo, olhando o chão, de-pois começou a riscá-lo com uma pedrinha. Como que distraído, e sem olhar para Carley, continuou:

— Você aqui só tem falado comigo, não? Julga que toda essa gente não liga para coisa alguma, e que vive nesse estado de selvageria porque foi-se embrutecendo aos poucos e esque-cendo a cultura que possuía, verdade?

Sem esperar resposta, prosseguiu:— Depois que você aprendeu nossa língua, nós já con-

tamos um ao outro quase tudo o que sabíamos a respeito de nossa vida... pouca coisa falta para eu lhe contar, Carley, mas é

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justamente o principal...A voz e o tom de Tss tornavam-se mais graves e sérios.

Carley estava certo de que nada mais poderia haver capaz de impressioná-lo; depois de estar vivendo ali, com aqueles homens semi-selvagens, que não gostavam de conversar, passando sede e fome por longos períodos, e agora, depois das palavras de Tss, com a quase certeza de que não mais sairia dali; não haveria notícia, estava certo, ruim o suficiente para impressioná-lo.

— Carley, seguiu Tss pausadamente, como procurando as palavras; todos esses pobres diabos que vivem aqui não re-gulam bem da cabeça; todos eles, sem exceção, estão pratica-mente loucos. .. eles não vivem, como você supõe, apenas como um bando de ignorantes e num estado de barbárie; não... todos eram — com exceção apenas dos que já nasceram aqui, — gente culta e de bom-senso lá em Marte.

— Não sei onde você quer chegar; de fato só sendo loucos poderiam eles pensar em ter filhos aqui... isso só já seria um indício de loucura. Mas por que diz que são todos loucos, e se de fato é assim, por que você é exceção ?

Conquanto a conversa fosse bastante séria não se conteve e perguntou ainda: “Ou não é... ?”

Tss não se abalou com sua pergunta; continuou muito sério:

— Eu já lhe disse que trabalhava na máquina, não? Quan-do aqui cheguei vim disposto a descobrir o que fosse possível para ajudar a volta dessa gente... Eu tinha um pouco mais do que simples cultura, Carley: eu era um cientista, habituado a calcular friamente e não me espantando com coisa alguma que se me apresentasse.

Carley começava a se preocupar indagando de si mesmo o por quê daquele rodeio todo de Tss. Respondeu, tentando se acalmar:

— Ora, eu também não vim preparado para suportar um choque tão grande como esse, e estou em meu juízo... Eu jamais calculei acordar num lugar assim pavoroso...

Sem dar-lhe ouvidos o marciano seguia:— Essa gente não enlouqueceu por ter chegado aqui, nem

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por ter de viver aqui. Eles enlouquecem ao tomar conhecimento de uma certa verdade... Eu não desejo vê-lo louco, por isso tento contar-lhe os fatos vagarosamente.

— Estou pronto, diga!...— Carley, se você tivesse se espetado, como se espetou

aqui, lá em seu planeta: sem tratamento algum você deixaria de morrer?

Com um aceno Carley concordou que não.— Você já imaginou por que períodos nós ficamos aqui

sem comer e sem beber? Desde sua chegada você já viu várias chuvas, não é certo? O sofrimento por que passamos por não ter o que comer ou beber é horrível; fraqueza, garganta ardendo, alucinações. Você mesmo já tentou comer pedras, lembra-se?

Parou por instantes, brincando com uma pedrinha na mão. Seguiu, depois, com o olhar perdido num ponto qualquer à sua frente:

— Pois saiba que se não chovesse mais e não tivéssemos mais comida, nós — eu, você e toda essa gente, — não perece-ríamos.

— Isso não é possível! Você quer dizer que... — É, Carley; e é ao descobrirem essa espécie de imortalidade que todos eles ficam loucos... Nós em Marte, assim como vocês na Terra, temos uma idade para morrer. Aqui também se morre, mas de manei-ras muito especiais...

— É inadmissível, é demais, Tss. E... como sabe disso?— Só temos notícia de alguns poucos casos de morte

aqui... só com a retirada de algum órgão vital, com a perda total de sangue ou coisa semelhante, é que pode-se morrer em Tuj. A maior parte dos alimentos vindos de Marte perde-se por aí; você já pensou bem no mínimo que comemos? Crê que seja possível alimentar um homem só com esse pouco? Além disso... alguns daqueles dez primeiros homens que foram enviados, e que eu encontrei aqui... ? Mandaram-nos quando eu ainda era garoto... e estão vivos ainda... Que sentido tem tudo isso, não me pergun-te. Eu mesmo me faço essa pergunta centenas de vezes e fico sem saber o que pensar.

Carley tentava lembrar-se das coisas que já vira, que já

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tivera conhecimento; de repente ocorreu-lhe algo:— Por isso eles apagam os incêndios jogando alguns no

fogo? Por isso eles sobrevivem mesmo queimados daquela for-ma? Mas, Tss... por que, se é assim, se teremos de agüentar isso indefinidamente, — por que não deixam essa mata incendiar-se de uma vez? Tudo isso virando chamas acabaríamos morrendo, não?

— Claro, Carley, com um calor muito grande, morrería-mos todos... Mas não é isso o que eles querem.

Nenhum deles aceitaria essa idéia, e sabe você por que? Porque a imortalidade, embora a esse preço, deixa-os felizes. Eles — e nós dois também — conseguimos aquilo pelo que a ciência em nossos planetas já tanto lutou...

Ao falar Tss olhava para um bando de esfarrapados que dormia à sombra de uma árvore adiante, de modo que não pôde ver Carley seccionar profundamente os pulsos com uma pedra. Com o sangue esguichando na terra seca, êle, de olhar perdido, como se já não entendesse nada, esperava poder morrer.

Quando Tss afinal olhou para o lado, Carley estava morto, inteiramente banhado numa grande poça formada pelo próprio sangue. O marciano balançou levemente a cabeça, tirou o fssh, bebeu um pouco de água e levantou-se.

Caminhou até debaixo da árvore mais próxima, deitou-se e dormiu.

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Vinha caminhando pela rua, com sua figura miúda e ma-gra, com um passo lento e arrastado. Sua fisionomia, porém, era viva e inquisidora. Parecia curioso de tudo e seus olhinhos bri-lhavam em busca de algo interessante. Na verdade nada poderia haver de novo, e ele conhecia bem tudo que iria surgir nas ruas. A sua curiosidade era mais um ímpeto interior, a procura de alguém ou alguma coisa. O que, não saberia dizer. Não deveria esperar mais nada, senão completar a sua existência e morrer. Entretanto, continuava na sua busca.

Todos os dias saía à rua e, naquele seu passo demorado, que contrastava com a sua expressão tão intensa, percorria as calçadas, sem se importar com a atenção que despertava sua figura modesta. Porque era raro encontrar um velho nas ruas da cidade. Quase todos que atingiam a aposentadoria e passavam a receber a modesta pensão a que tinham direito, recolhiam-se aos Centros mantidos pelo Estado. Ali se encontravam melhor do que no meio dos mais jovens. Levavam uma vida tranqüila, confortável mesmo, sendo suficiente para isso a pensão recebi-da. Conversavam, trocando suas impressões sobre os dias atu-ais e recordando o passado. Assim, reviviam sua vida anterior e o tempo passava mais rapidamente até que a morte os atin-gisse.

Êle, porém, se recusava a isso. Não havia nenhuma lei obrigando o recolhimento aos velhos. Era apenas uma praxe es-tabelecida, que todos cumpriam sem pensar em qualquer outra atitude. Somente êle se rebelara, logo êle que não tinha família nem amigos. Sendo sozinho, com mais razão dever-se-ia esperar que fosso residir num Centro, logo após a sua aposentadoria. Ao

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deixar, porém, o trabalho e, portanto, o alojamento onde sempre vivera, procurou um pequeno quarto para alugar. Fora difícil, pois não existiam mais locações como norma, já que todos vi-viam nos próprios locais de trabalho. Num bairro pobre e “anti-go”, encontrara o que queria. Era apenas um quartinho no porão de uma casa velha, já condenada, que certamente desapareceria num dos futuros planos urbanísticos, assim que novos locais de trabalho fossem necessários. Ali habitavam desajustados como êle, toda aquela gente que o Estado tolerava porque tendia a de-saparecer naturalmente, sem necessidade de qualquer medida violenta.

O velho vivia quase miseravelmente com a sua pensão. Fora o que escolhera, ao decidir viver fora da norma, diferente do que todos faziam. Assim como a sua figura, magra, curvada, de cabelos brancos e rosto enrugado, era diferente no movimento das ruas. Olhavam-no com espanto, com certa piedade pelo seu desajustamente, curiosidade pelo anacronismo que representa-va e a segurança de que logo desapareceria. Dentro de pouco tempo não haveria mais possibilidade de existir gente como êle.

Naquele dia o velho, depois de caminhar sem destino pelas ruas centrais, tomou uma pequena travessa, quase sem movi-mento. Nada o orientava, êle seguia ao acaso, sempre procu-rando, procurando o que, nem êle mesmo sabia. Foi quando viu a loja cujo nome já era uma atração para êle: “Antigüidades”. Nada mais normal que, também obsoleto, fosse atraído por uma loja de objetos de outra época. Encostou-se na vitrina procurou ver o que havia dentro. Uma confusão de coisas, a maior parte das quais nem êle mesmo identificava. Resolveu entrar e olhar aquilo tudo de perto.

A sua entrada não pareceu interessar ao proprietário, atrás do balcão, que, com um simples olhar, o classificara como um freguês improvável. Assim ficou mais à vontade para exami-nar o amontoado de coisas velhas, algumas que conhecia do seu tempo de moço, outras que deveriam ser mais antigas, a maior parte das quais nem chegava a adivinhar o que era ou para que servia. Então, viu a máquina a um canto.

Era um autômato sem dúvida alguma. Mas não um autô-

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mato desses que conhecemos hoje, antropomórficos, flexíveis, com movimento próprio, capaz de fazer qualquer trabalho. Era um modelo antiquado, sobre rodas, ocupando toda uma porção da parede lateral da loja. O velho se lembrava, quando ainda criança, de ter visto máquinas desse tipo. Eram os modelos pri-mitivos de autômatos. Serviam, principalmente, para cálculos, para trabalhos que facilitassem estudos e pesquisas, substituin-do eletronicamente o raciocínio humano. Pelo que se lembrava, eram dotados de voz mas não tinham a iniciativa, dependendo de provocação para dar as respostas necessárias. Sua forma lembrava muito vagamente um ser humano, com rodas subs-tituindo os pés, a fim de ser empurrado de um para outro lu-gar onde fosse necessário, uma grande caixa, cheia de botões e chaves, como se fosse o corpo, um aparelho menor no que seria a cabeça, receptor e emissor. Não havia qualquer peça que pu-desse lembrar braços. Somente já no seu tempo de estudante é que os autômatos se tornavam semoventes, com pernas e pés, e passaram a ter braços, até evoluir para os modelos modernos que imitam tão perfeitamente o ser humano. Aquele tipo primi-tivo, ali no canto da loja, parecia anacrônico e abandonado.

“Como eu mesmo”, pensou o velho e se aproximou da má-quina. Antes, porém, que pudesse tocar no autômato, já o dono da loja estava ao seu lado:

— Deseja alguma coisa? perguntou, conquanto quisesse significar que o melhor seria o velho ir embora pois certamente não poderia desejar nada. Pelo seu aspecto não poderia ser um freguês, não deveria possuir recursos para comprar o que fos-se.

— Essa máquina... gaguejou o velho sem poder dizer mais nada.

— Sim? fêz o dono.Não estava disposto a perder mais tempo com aquele indi-

víduo que apenas servia para incomodá-lo.— Essa máquina... gostaria de vê-la funcionar, conseguiu

dizer o velho.— Por quê? Pretende comprá-la?— Ainda não sei. É muito cara?

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— Custa setenta valores, disse o dono e isso parecia en-cerrar a questão.

O velho engoliu em seco. Setenta valores eram uma quan-tia impossível. Isto é, se êle pretendesse comprar o autômato, para o que não havia razão alguma. Fora movido apenas pela sua curiosidade permanente. Como que se desculpando, agra-deceu e saiu.

Voltou diretamente para casa, para o seu quartinho so-litário e pobre. Nesse dia nada mais fêz senão ficar deitado no seu catre, pensando. A máquina não lhe saía da cabeça, como se fosse uma solução ou como se lhe tivesse enviado um apelo. Apelo que teria de atender.

No dia seguinte voltou à loja, mas não teve coragem de entrar. Procurou ver através da vitrina o autômato, no canto. Lá estava êle, grande demais, pesado e inútil. Parecia-lhe lançar um chamado. Sim, êle também estava solitário, naquela loja, não servindo para mais nada senão para atrair olhares irônicos daqueles que conheciam os robots modernos, tão práticos e efi-cientes. O velho se sentiu preso.

Voltou nos outros dias até que teve força suficiente para entrar de novo. O proprietário não pareceu reconhecê-lo. Levan-tando a cabeça, perguntou secamente:

— Que deseja?— Aquele autômato, apontou o velho poderia experimen-

tá-lo?— Custa setenta valores, disse o dono, considerando res-

pondida a questão.— Sim, eu sei. Mas poderia experimentá-lo?O dono certamente se aborrecera com a insistência. Mas

qualquer coisa na figura patética do velho o fêz abrandar:— Cuidado com êle, não vá estragá-lo. Essas máquinas

antigas são fáceis de quebrar.O velho sabia disso, porque também êle era uma máquina

antiga. Por isso mesmo estava habilitado a lidar com o autôma-to. Os dois se entenderiam. Dirigiu-se ao robot.

A voz era fanhosa e revelava o tempo enorme em que ficara sem funcionar. Tão fanhosa e gasta como a do velho. Os dois se

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compreenderam imediatamente.Depois de uma pequena conversação, em que o entendi-

mento fora perfeito não obstante algumas respostas estranhas, porque o autômato não fora construído para simples conversas amigáveis, o velho resolveu suspender a experiência. Não convi-nha abusar da tolerância do proprietário da loja. Agradecendo, saiu no seu passo lento. Da porta ainda voltou a cabeça e foi como se o robot tivesse dirigido um aceno de despedida. Sim, eles haviam se comunicado, como que uma compreensão mútua surgira entre eles.

Nessa noite o velho ficou pensando. Seus olhos agora ad-quiriam a calma adequada ao seu aspecto idoso e fatigado. Sa-bia que encontrara o que vinha procurando. Alguém com quem compartilhar a sua vida, a sua solidão. Mais que um compa-nheiro, um amigo. Por isso não quisera ir para o Centro. Lá os outros velhos, com seus problemas pessoais, suas recordações, seus egoísmos, seriam apenas habitantes do mesmo lugar. Nun-ca encontraria, entre eles, o afeto de que necessitava, o amigo de que precisava para as longas horas do tempo curto que ainda lhe restava viver. Sabia, agora, que esse amigo fora encontra-do. Velho como êle, deslocado e anacrônico, uma ligação afetiva surgira desde o primeiro encontro. Fora atraído por aquele au-tômato, que não tinha forma humana, mas que o compreendia como nunca fora compreendido pelos outros homens. E tomou a sua decisão.

No dia seguinte, ao entrar na loja, foi direto ao dono:— Tenho uma proposta. Quero comprar aquela máquina,

preciso dela.— São setenta valores.O proprietário parecia não ter mais nada a dizer, como um

aparelho de repetição.— Está certo. Mas não posso pagar de uma vez. Proponho

entregar-lhe mensalmente uma certa quantia, digamos cinco valores, até cobrir o preço total.

Aquilo não era usual. Não se conhecia mais o sistema de venda a prestações, desaparecido na nova estrutura econômica do Estado. Mas o dono sabia lidar com antigüidades. Por estra-

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nha que parecesse, era uma proposta de compra. E aquela má-quina obsoleta tinha poucas possibilidades de ser vendida.

— Está certo, disse. Mas somente poderá levar o autômato quando tiver pago todo o preço.

— Bem, aceito essa condição contanto que o senhor me permita vir vê-lo diariamente, conversar com êle.

No dono surgiu o comerciante, agora que a transação es-tava se efetivando:

— O preço não inclui o transporte. Quando terminar o pa-gamento deverá providenciar por sua conta a retirada.

Aquilo importaria em novo sacrifício. Apesar das rodas, não tinha forças para empurrar aquela máquina pelas ruas, mesmo porque seria tão estranho que certamente teria dificul-dades com a polícia de trânsito. Somente se conseguisse alugar um veículo de carga. Em quanto não ficaria isso? Mas era um problema a ser resolvido mais tarde.

— Está bem. No fim do mês farei o primeiro pagamento.Começou, então, um período de sacrifício intenso para o

velho. Cinco valores representavam a metade do seu ganho men-sal e não havia a possibilidade de obter extras. Com o aluguel do quarto, pouco sobrava para a alimentação, já que em outras despesas como roupas ou distrações nem poderia pensar. Seu aspecto se tornou mais miserável, se é que isso era possível. A precariedade de alimentação o deixou mais magro e amarelo. As roupas se desfaziam, mas o brilho de seu olhar era agora mais intenso, sem aquela nota de curiosidade, como se seu impulso interior tivesse se apaziguado e não houvesse mais necessidade da permanente procura.

Foram meses terríveis, mas o velho encontrava consolo nas horas que passava diariamente junto à máquina.

Já se familiarizara com todos seus pormenores, com as pequenas demoras no funcionamento de alguns setores, com a rouquidão da voz. Tinham se tornado velhos amigos.

Quando, finalmente, depois de quatorze longos e penosos meses, o robot se tornou seu, o velho pareceu adquirir novo vigor. Agora já podia levar o autômato para o seu quarto, tê-lo inteiramente para si, sem a presença incômoda do dono da loja.

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Poderia conversar longamente, sem horário, sem que precisasse se arrastar pelas ruas até aquela travessa. Tão contente estava que se esqueceu do problema de transporte.

Ao entrar na loja para o último pagamento, parecia um novo homem. Com a atitude de quem se sentia rico e seguro, entregou ao dono os últimos cinco valores, que encerravam a transação.

— Está pago, disse com orgulho.— Sim, e agora quando pretende levá-lo? Preciso do espa-

ço por isso trate de retirá-lo logo.Todo o entusiasmo do velho desapareceu. O desgaste físi-

co daqueles meses marcou sua fisionomia e atitude, mostrando um homem que havia perdido sua força vital. Como resolver o problema? Precisaria de pelo menos quinze valores para conse-guir um transporte. E com o setor oficial não poderia fazer ne-gócio a prazo. Teria de dispor da quantia total, o que significava mais uns meses de sacrifício.

— Poderia... poderia deixá-lo mais algum tempo aqui? Preciso economizar para pagar o transporte.

O dono, diante daquela figura lastimável, concedeu:— Está bem, mas cobrarei a taxa de um valor por mês pela

guarda do robot.E novamente o velho teve de agüentar a fome e a miséria,

para que finalmente chegasse o dia em que o autômato seria definitivamente seu, instalado no modesto quarto que era o seu lar.

Chegado, enfim, o momento, já estava quase sem forças. Sentia-se porém, compensado de tudo que sofrerá. O autômato estava em sua casa, em seu quarto. Era o seu companheiro para os dias que ainda lhe restavam a viver. Dias que o sacrifício dos últimos tempos deveria ter encurtado irremediavelmente.

Desde então o velho não mais foi visto vagando pelas ruas. Passava o tempo todo na companhia do robot e os dois pareciam agora um único ser, tão intimamente ligados se tornaram. Am-bos estavam no fim de suas existências, mas nada mais impor-tava ao velho, que se sentia feliz. Sua busca incansável termina-ra, o amigo sonhado fora finalmente encontrado.

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E quando, pouco tempo depois, o Setor de Controle de Nascimentos e Mortes foi notificado, os funcionários acharam o velho sentado numa cadeira em frente ao autômato. Sua fi-sionomia era plácida, com a sombra de um sorriso, como quem morreu num momento de felicidade. Os funcionários se espan-taram de encontrar um autômato de modelo tão antiquado. Ten-taram fazê-lo trabalhar. Mas era muito antigo e seu maquinismo chegara também ao fim. Nunca mais aquele robot voltaria a fun-cionar. Somente serviria agora como sucata.

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ESTE LIVRO FOI COMPOSTO E IMPRESSONAS OFICINAS DA EMPRESA GRÁFICA DA

“REVISTA DOS TRIBUNAIS” S.A., A RUA CONDE DE SARZEDAS, 38, SÃO PAULO,

PARA A EDART, Livraria Editora

EM 1965.

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