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Ano 27 • N° 15 janeiro/junho 2020 ISSN 2238-6807 Antes que o céu desabe Populações tradicionais e o temor de novas pandemias

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Ano 27 • N° 15

janeiro/junho 2020 ISSN 2238-6807

Antes que o céu

desabePopulações

tradicionais e o temor de novas

pandemias

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Senac – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

Departamento NacionalAv. Ayrton Senna, 5.555, Barra da TijucaRio de Janeiro - RJ - Brasil - 22775-004

www.dn.senac.br

Conselho NacionalJosé Roberto Tadros

Presidente

Departamento NacionalSidney CunhaDiretor-Geral

A revista Senac Ambiental é uma publicação semestral produzida pela Assessoria de Comunicação do

Senac Nacional. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Sua reprodução em

qualquer outro veículo de comunicação só deve ser feita após consulta aos editores.

Contato: [email protected]

www.dn.senac.br/senacambiental

ExpEdiEntE

EditorFausto Rêgo

Colaboraram nesta ediçãoAna Mendes, Cristina Ávila, Elias Fajardo, Francisco

Luiz Noel e Lena Trindade

EditoraçãoAssessoria de Comunicação

Projeto gráfico e diagramaçãoCynthia Carvalho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(Maria Auxiliadora Nogueira - CRB-7/3773)

Senac ambiental / Senac, Departamento Nacional. – n. 1 (1992)- . – Rio de Janeiro: Senac/Departamento Nacional/Assessoria de Comunicação, 1992- . v. : il.

Semestral. Absorveu: Senac e Educação Ambiental. A partir do n. 8 (2016) passou a ser disponibilizada no endereço: www.dn.senac.br/senacambiental. ISSN 2238-6807.

1. Educação ambiental – Periódicos. 2. Ecologia – Periódicos. 3. Meio ambiente – Periódicos. I. Senac. Departamento Nacional.

CDD 574.505

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Em frente!Editorial

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Esta edição já estava sendo produ-zida quando começamos a viver os efeitos da pandemia de covid-19, em meados de março. Precisamos mu-dar alguns planos e acertar o passo, mas não interrompemos o trabalho. Contornamos as dificuldades e se-guimos em frente.

E é a própria chegada do novo coro-navírus que motiva a nossa reporta-gem de capa, que mostra a maneira como os povos tradicionais, histori-camente mais vulneráveis, reagiram à doença e reflete sobre a perspec-tiva, temida por cientistas, de que o desequilíbrio ambiental traga novas pandemias no futuro.

Embarcamos também em uma ex-pedição pelo rio Jari, entre o Amapá e o Pará, acompanhando o dia a dia de um grupo de castanheiros. Uma aventura fascinante.

Contamos ainda a história do Jardim Botânico da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. O espaço foi criado em uma área de Mata Atlântica resgatada da especu-lação imobiliária.

Mostramos, por fim, a atuação de grupos que, em grandes cidades, se dedicam à prática de atividades co-letivas de sustentabilidade. E faze-mos um passeio pela natureza, pela cultura e pela história do arquipé-lago de Cabo Verde, no continente africano.

Esperamos que você goste!

Dedicamos esta edição a Washington Novaes, uma referência no jornalis-mo ambiental.

Ilha de São Antão, Fontainhas, Cabo Verde

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Sumário

4Extrativismo

Contra a correntezaCristina Ávila acompanha o dia a

dia de castanheiros na região do rio Jari, entre Amapá e Pará

36Capa

Antes que o céu desabeAna Mendes retrata o impacto do

novo coronavírus sobre quilombolas e indígenas, que temem por novas

pandemias

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14Vida Sustentável

Ecologia urbanaElias Fajardo mostra projetos que estimulam a sustentabilidade em

grandes centros urbanos

46Viagem

Ilhas de natureza, história e cultura

Lena Trindade nos conduz em uma viagem pelo arquipélago de Cabo Verde, uma terra de

encantos que vão além da beleza natural

24Educação Ambiental

De condomínio a jardim botânico

Francisco Luiz Noel conta como área verde em Juiz de Fora foi salva da especulação imobiliária e virou espaço de pesquisa e preservação

56Estante Ambiental

Sumário

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Ultrapassar os muitos trechos de águas turbulentas do Jari exige cautela. O rio está cheio de piranhas

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Extr ativ iSmo

Contra a correnteza

Uma expedição pela região do rio Jari, na fronteira de Amapá

e Pará, na companhia de castanheiros

Cristina Ávila (texto e fotos)

A canoa avançava no segundo dia de viagem, prestes a cruzar mais um dos revoltosos pontos encachoeira-dos do rio Jari, quando por instantes se rendeu à correnteza. O leito ro-choso desse afluente do baixo Ama-zonas, na divisa de Amapá e Pará, favorece a formação de turbilhões em longo trecho de 25 quilôme-tros. Na competição entre o motor de pouca força e a brutalidade das águas, a embarcação desacelerou, estancou por segundos, imobilizada, e em seguida começou a navegar de ré. Foram três repuxos até retomar o trajeto. Ali, fracassos podem resultar em mortes. Cair do barco e bater nas pedras pode ser fatal. Se não for, qualquer ferimento sangrento atrai piranhas, sempre ávidas por carne.

Três homens da família Castelo es-tão a bordo – Braz, 63 anos, o irmão dele Mariolando, 55, e o sobrinho Maciel, 32. No outro dia estarão na Floresta Estadual do Paru (Flota Paru), do lado paraense. Quando pisarem na margem da unidade de conservação, a primeira luta será contra terríveis formigas tucandei-ras, conhecidas pela severa picada de prolongada dor. Serão eliminadas com fogo, ateado com gasolina nos paus de um acampamento do ano anterior. Assim, se livram também

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A coleta da castanha é um dos principais meios de sobrevivência para quem vive no Vale do Jari

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de lacraus e santos-pés, como os ribeirinhos chamam escorpiões e centopeias. Eles levam motosserra, terçados, pregos e reforçam a es-trutura meio podre com esteios. O suficiente para sustentar redes, mos-queteiros e a cobertura plástica que os abrigará das tempestades.

Esta expedição começa em Laran-jal do Jari, onde eles moram, ao sul do Amapá, cidade com 50 mil habi-tantes, distante 268 quilômetros de Macapá pela BR-156, estrada sem asfalto e com 25 pontes de madei-ra. Transitável em boa parte do ano, é suscetível a cheias. Neste final de abril, por exemplo, o rio Cajari su-biu cerca de três metros acima da ponte de Água Branca, chegando a cobrir telhados de algumas casas do distrito, localizado a cerca de 60 quilômetros desta que é a segunda principal cidade do interior amapa-ense. Insumos médicos que chega-vam da capital para enfrentamento ao coronavírus tiveram de atravessar as águas de canoa. O escoamento,

entretanto, é rápido. No outro dia, o tráfego estava restabelecido.

Laranjal do Jari tem praticamente todo o território protegido por leis ambientais. De seus 30,2 mil km², 24,5 são unidades de conservação (81%) e 4,1 mil são terras indígenas (13,64%). Do território total do es-tado, de 142 mil km², 100 mil são unidades de conservação e terras indígenas, com cerca de 90% do território coberto por florestas bem conservadas. O secretário da Câ-mara Municipal, Marcelo Padilha, no entanto, aponta uma perversa lógi-ca nesses números. Faltam políticas públicas que adaptem as instituições governamentais às vocações regio-nais. “O Banco da Amazônia, por exemplo, não consegue desenvolver uma política de financiamento para o extrativismo porque os castanheiros não têm documentos da terra. Aí fica a cargo dos moradores tradicionais desenvolverem essas atividades sem incentivo nenhum”, lamenta. O vere-ador também ressalta que a casta-

Um redemoinho: mais um obstáculo na

subida do rio

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nha produzida no Amapá é escoada pelo Pará, em função das alíquotas de impostos menores, sem retorno para os cidadãos amapaenses.

O menor estado da Amazônia tem cenários legalmente protegidos e espetaculares. A capital, de aspecto interiorano, tem 400 mil habitantes e é totalmente horizontal, à mar-gem do portentoso Amazonas, que emociona – um gigante sem fim – quando observado na decolagem do aeroporto desta terra que tem como única saída por estrada a BR-156, em direção à Guiana Francesa. Mas al-

gumas rotas exigem sangue frio. No ano passado, por duas vezes, a famí-lia Castelo sucumbiu à força do Jari. Em uma perdeu o motor do batelão; em outra, a preciosa carga de quase um mês de trabalho nos castanhais. Na margem, desesperado, Braz le-vantou as mãos e rogou a todos os deuses e encantados das águas quando viu o sobrinho afundar. So-breviveu por milagre e lucidez. “Eu olhei pro Rural [nome do experiente piloto] e pensei: ‘Vou fazer o que ele fizer’”, lembra Maciel. E pulou no rio antes do choque com as pedras.

Braz é o nome-apelido de infância de Sebastião Araújo Castelo, um senhor que no 13º dia da viagem se levantou febril da rede para levar nas costas duas cargas de 50 quilos de castanhas. Uma de cada vez, da mata ao acampamento, aprontando o retorno pra casa. Ele fez coletas di-árias em quatro a 12 quilômetros em vaivéns na selva. Sua tarefa principal foi “amontoar” ou “embolar” ouriços para serem quebrados por Mario-lando e Maciel com machadinha de cabo curto antes de virarem o conte-údo em sacas. Neste período, chove todos os dias na Amazônia. Muitas vezes, as roupas dos castanheiros secaram no corpo. As botinas, po-rém, nunca secam. Eles trabalham até o sol começar a desaparecer. É hora, então, do banho de rio e da conversa antes da janta – geralmente peixe, mas também um rabo de ja-caré ao leite da castanha ralada com raiz da palmeira paxiúba. O cansaço os leva rápido às redes. A caça é le-galmente permitida na floresta.

“Você viu como as crianças caíram no prato de macaco assado na bra-sa e vinho de cupuaçu com leite de castanha? Pareciam uns papagaios, alegres”, diverte-se Mariolando. Cha-mam de vinho as frutas maceradas e bebidas como suco. Ele está falan-do do pouso na casa de Maria So-corro, por causa da tempestade, na margem mais encachoeirada do Jari.

Braz Castelo costura as sacas para levar as castanhas até a fábrica de beneficiamento

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Eles se conhecem desde criança. No terreno tem a diversidade natural de frutas e muitas plantadas. Açaí, ba-caba, biribá, limão, cupuí, taperebá, pequiá, banana e o caju vermelho nativo com perfume de framboesa que cai de árvores de 30 metros. To-das maduras nesta época. A flores-ta não desampara. “Porco não crio, porque a onça come aqui na porta. Pato também não, a sucuri perturba no grotão”. A morada é abundante em águas, com belo igarapé que cor-re ao lado. “Galinha o gavião atenta, mas espanto e voa embora”.

Casa típica da Amazônia longínqua. Um belo fogão de barro com gave-tas de madeira pra guardar lenha e alguns utensílios. Não tem energia elétrica. Varanda larga, sempre pron-ta pra pendurar redes de visitas, tem fixa uma despolpadeira manual de açaí, que Socorro vende em sa-quinhos quando há movimento no rio. Também vende castanha a atra-vessadores. Comem muita farinha crocante feita nos roçados de ma-caxeira. Nas viagens são comuns en-latados de carne. Ela vive com Rural, o exímio piloto em fretes ao longo do Jari. Tem também Maria, sobri-nha, 25 anos, mãe de três crianças cuja idade ela não sabe dizer, mas que parecem ter de sete anos pra menos. Há histórias que não são boas de contar. A família tem um passado desordenado. Um irmão morreu em conflito no garimpo. Outro “alagou” – morreu afogado. As crianças não frequentam escola, e diferentemente de indígenas não estão agregadas a uma comunidade que as acolha social e culturalmente. Têm apenas o núcleo familiar. Essa parte é triste. Um Brasil de abando-no. De sobreviventes.

Os homens se despedem cedo no outro dia. Têm mais sete horas de viagem de canoa. Este será o pri-meiro mês em que vão coletar cas-tanhas. O trabalho atrasou devido a outros compromissos na gestão da

Amilton Carvalho, o Tota, chega em casa no Quilombo

São José, em Laranjal do Jari (AP)com o paneiro cheio

Cooperativa Mista Agroextrativista dos Produtores do Vale do Jari (Co-operFlora), que os irmãos Castelo fundaram em 2010 para fugir dos preços baixos do produto in natura, negociando castanhas beneficiadas em um galpão na cidade que fun-ciona durante as safras e congrega cerca de 50 colaboradores, os quais recebem os valores de acordo com o rateio da comercialização. Este ano tudo atrasou, inclusive o beneficia-mento terá de esperar, em função do coronavírus. Antes eles trabalhavam como associação, desde 2006. Para

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conquistar o mínimo, trabalham o máximo. Conseguem bons núme-ros nas vendas, mas os resultados são pequenos pelo alto custo nos processos. Seria preciso obter finan-ciamento para fazer render melhor a produção.

Braz começou há décadas esta tra-jetória. Não frequentou escola, mas foi formado, nos anos 1970, por pas-torais católicas de organização de camponeses e se vinculou na década de 80 ao movimento deflagrado por Chico Mendes no Acre que culminou na fundação do Conselho Nacional dos Seringueiros. Da luta acriana surgiu o conceito de reserva extrati-vista, unidade de conservação fede-ral com permissão de usufruto. Ele foi uma das lideranças fundamentais no Amapá para a criação da Reser-va de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Iratapuru, em 1997, em frente à Flota Paru, corredor ecoló-gico entre o Parque Nacional Mon-tanhas do Tumucumaque, a Reserva Extrativista Cajari, a Terra Indígena Waiãpi e a Estação Ecológica do Jari, entre os dois estados.

A família vive na cidade, mas as raízes e as rotinas estão nos igara-pés que desembocam no Jari. Braz aprendeu a conhecer ervas com o pai, Florêncio, “verdadeiro extrati-vista de castanha e da borracha”. Com três dias de nascido, a mãe de Florêncio morreu, e ele foi doado a uma mulher chamada Guilhermina, que conseguiu amamentar o filho adotivo. “Vieram das ilhas do Marajó, e aqui ela fez o meu parto”. Os co-nhecimentos tradicionais ajudaram Braz a se salvar da morte no mês de fevereiro. Foi picado por uma com-boia. “Na hora, tem de caçar o remé-dio na mente. Raspei a casca de uma jeniparana, que tem o contraveneno, junto com o talo da folha do açaizei-ro. Botei na água e fui logo bebendo, a noite toda. Nem inchou”.

“Temos conhecimentos tradicio-nais, mas sabemos a importância de alianças com a ciência”, ressalta Ma-riolando, que é o presidente da Co-operFlora. Ele menciona que contam com orientações de profissionais de instituições como a Universidade Fe-deral do Amapá, o Instituto Federal

As cargas de castanha são levadas nas costas e chegam a pesar 50 quilos

Castanheira

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de Laranjal, Secretarias de Estado, Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Senai e poder público municipal. Por conta das raízes an-cestrais e da facilidade de conversar, conseguiram, em 2015 e 2018, auto-rizações dos governos para explorar a castanha em faixas de 5 a 10 qui-lômetros na unidade de conservação da margem esquerda do Jari, e de 1,5 a 5 quilômetros na reserva do esta-do do Pará, na margem direita.

Sem políticas públicas para peque-nos empreendimentos da castanha, criatividade, saúde e destemor im-pressionantes são a receita para as incertezas dos negócios. Os equi-pamentos da CooperFlora são pro-vas de inteligência e persistência. A equipe de engenharia criadora são os dois irmãos, um eletricista e um soldador de portões. Com a resistên-cia de um ferro elétrico, construíram a máquina para selar os sacos de alumínio que embalam as amêndo-as, que funciona com um pedal de automóvel. Um compressor de ge-ladeira foi transformado em instru-mento para sugar o ar, formando o vácuo necessário. O secador indus-trial é improvisado um pouco pelo sol e depois em bandejas de madeira com lâmpadas. Para descascar a fina película que envolve as sementes, adaptaram o vapor produzido por duas panelas de pressão de 50 litros.

Economicamente, a estratégia é al-ternar o extrativismo com outras espécies. A cooperativa colhe anual-mente, de outubro a março, uma mé-dia de 36 toneladas de camu-camu e vende há mais de 20 anos. O cliente mais antigo é a empresa Centro Flo-ra, de Botucatu, em São Paulo, há oito anos. Há três anos também tem negócios com as empresas Bela Iça e São Pedro, da cidade paraense de Castanhal, e a L’Oreal de Paris. Em seu site, a indústria de cosméticos internacional divulga que a frutinha

amazônica “é a maior fonte de vita-mina C conhecida no Brasil” e revela que a utiliza por ser fonte de antioxi-dantes que ajudam na prevenção do envelhecimento.

A safra da castanha-do-brasil é de janeiro a julho, quando estão no chão os frutos, que são os ouriços, não comestíveis, com textura seme-lhante a uma casca grossa de árvore. Antes disso, nem se pode entrar nos castanhais, pois a queda deles de alturas de 40 metros pode ser fatal. A CooperFlora vende as sementes descascadas em embalagens a vá-cuo, para estados como São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Norte e Ceará. Em média, 3 mil cai-xas com 20 kg cada uma, um total de 60 toneladas. Nos últimos anos, caiu para 40 toneladas, e a safra de 2020 será a menor de todas: 12 toneladas. Mas a menor safra ainda é a de ca-cau nativo, quatro a cinco toneladas colhidas de fevereiro a junho. Ven-didas em amêndoas secas, prontas para triturar e fazer chocolate, para as empresas De Mendes Cacau, em Santa Bárbara, no Pará, e Santo An-dré Cacau Fino, em São Paulo.

As sementes descascadas são

vendidas em vários estados

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O Vale do Jari é uma região geopolítica formada pelos municípios de Laranjal e Vitória do Jari, no Amapá, e Almeirim, no Pará, onde vivem em torno de 100 mil habitantes, a grande maioria concentrada nas zonas urbanas, com população rural distribuída em cerca de 180 pequenas comunidades, 60% delas com o máximo de 20 famílias (100 pessoas). A castanha é um dos meios de sobrevivência da maioria.

“No tempo do meu avô, os escravos que não trabalhavam iam pra muxinga, pra sola [açoite]. Hoje o dinheiro só dá pro boião [espécie de fogão rudimentar que os seringueiros usam na defumação do látex]”, queixa-se Antônia Carvalho Pinto, matriarca do quilombo São José, que fica a 1h30 de Laranjal em canoa motorizada. Este ano foi de crise, especialmente para os produtores que vendem castanha em casca. A filha dela, Moni, registra num caderno as varia-ções de preços e volumes de vendas feitas a regatões. “Em um mês, entre 5 de fevereiro e 2 de março, a barrica caiu de R$ 150 pra R$ 120”, revela. Chegou a R$ 80 no final de abril. Em 2019, o valor bateu nos R$ 420 pela barrica”. Os jargões do comércio variam ao longo do Jari. Barrica, saca, hectolitro ou medida significam quase a mesma coisa. Mas geralmente a barrica tem 120 litros e o hectolitro tem 100 litros.

O marido da moça, Marcelo Pantoja da Conceição, faz o cálculo. De janeiro a abril a castanha rendeu R$ 111.300, distribuídos entre as famílias das 16 casas da comunidade. Na calculadora, são R$ 6.956,25 para cada uma em quatro meses de trabalho, o que significa R$ 1.739,06 por mês. “Mas nem esse dinheiro recebemos todo”, frisa. Ele calcula que pelo menos 50% sejam gastos de viagem e montagem dos acampamentos. Seu pai, Antônio da Conceição, diz que a construção da Usina Hidrelétrica Santo Antônio, próxima ao quilombo, acabou com os gran-des açaizais que complementavam a renda, além de ter reduzido a capacidade de captura de peixes no Jari, alterado para a construção da barragem. Também foram perdidos muitos castanhais próximos para a realização de grandes obras, tornando as viagens para produção bem mais longas.

“O extrativismo como atividade de comércio, diferentemente da coleta, que não tem essa ca-racterística, começou no Vale do Jari com o coronel José Júlio de Andrade, aproximadamente de 1927 a 1943. Naquela época, ele conseguia exportar as sementes com casca para Estados Unidos e Europa com a marca Castanha do Jari, em média 100 mil hectolitros por ano”, relata o analista da Embrapa-Amapá Walter Paixão de Sousa, que fez mestrado e doutorado sobre o extrativismo na região e também pesquisou o seu comércio internacional em toda a Amazônia.

Paixão diz que depois desse período a exploração dos castanhais entrou em decadência e chegou quase a desaparecer. “Retoma já na década de 1970, com um grupo de usineiros de Belém, a família Mutran, que põe um representante que ainda atua na região para ser o grande comprador de castanha. Em termos de volume, minhas coletas de dados mostram que hoje existe um decréscimo muito grande. Varia de ano, mas pouco mais de 60 mil hectolitros de castanha se produzem em toda essa região do Vale do Jari, metade pro lado do Pará e a meta-de pro Amapá. Houve diversas ações de governo, mas pouca efetividade. Praticamente 100% saem in natura”, relata.

Pôr-do-sol no Quilombo São José, em Laranjal do Jari, no Amapá

Presente e passado

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Bolívia exporta castanha brasileira

Evidências de mudanças no comércio mundial de cas-tanhas surgiram a partir de 1998, quando as importa-ções de amêndoas descascadas começaram a superar as importações do produto em casca. As estatísticas dos maiores compradores permaneceram em cinco pa-íses do hemisfério norte, mas Estados Unidos e Reino Unido perderam a liderança dos principais comprado-res do Brasil, porque outros países passaram a ser con-sumidores, em função de novos hábitos alimentares. Nesse contexto, a Bolívia se consolidou como maior player exportador de castanha com casca, além de a própria produção boliviana ter ultrapassado a brasileira em 2000, tornando o país o maior produtor mundial.

Essas informações são do analista da Embrapa-Amapá Walter Paixão, em sua tese de doutorado, defendida em 2018. Ele aponta que vantagens climáticas favoreceram o país vizinho, mas principalmente a prioridade brasilei-ra ao agronegócio tradicional e os investimentos feitos pelos bolivianos, como infraestrutura de escoamento pelo Pacífico através do Peru. O especialista também ressalta reformas políticas do governo federal bolivia-no na década de 1990. Três leis afetariam fortemente o setor florestal, favorecendo grandes fábricas de be-neficiamento, mas também pequenas cooperativas: a Lei da Participação Popular (1994), a lei que criaria o Serviço Nacional de Reforma Agrária e o novo Código Florestal (1996).

O beiradão e o multimilionário LudwigLaranjal do Jari nasceu a partir de palafitas. Casas pobres de madeira apropriadas ao modo de vida ribeirinho, com canoas acostadas nas va-randas de treliças. Simplicidade exuberante com edificações agregadas por passarelas em ripas assentadas com a métrica bem-feita da carpin-taria nativa. Esse núcleo, hoje bairro Beiradão, se formou em torno do multimilionário projeto do norte-americano Daniel Ludwig, que pretendia criar na região um polo agroindustrial, trazendo para a floresta tropical uma termelétrica e uma fábrica de celulose construídas sobre uma plata-forma flutuante no Japão. Uma verdadeira cidade navegante, com altura equivalente a um prédio de 15 andares, que viajou nos anos 1970 pelos oceanos Índico e Atlântico, entrando pelo Amazonas, para se instalar na margem do Jari, em uma propriedade privada de 1,2 milhão de hec-tares, depois de realizar um corte raso de 400 mil hectares de florestas, inclusive castanhais, para o plantio de eucaliptos. O empreendimento mudou de dono, passou por excelentes expectativas de negócios, mas amarga instabilidade financeira, embora continue funcionando por meio de um grupo de diversas atividades empresariais.

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vida SuStEntávEl

Ecologia urbana:

caminhos e propostasAlimentação e compostagem

no centro de projetos transformadores

Elias Fajardo Nas grandes cidades brasileiras, estão surgindo grupos dedicados à prática de atividades coletivas relacionadas à eco-logia. Parte da sociedade está se mobili-zando para fazer face aos inúmeros de-safios que têm se colocado. Compostos principalmente de jovens, esses grupos atuam nas áreas de compostagem, ali-mentação e educação ambiental, cientes de que cada parte que se faça acrescen-ta uma contribuição ao bem-estar e à saúde do planeta.

O Favela Orgânica nasceu nas comuni-dades Babilônia e Chapéu Mangueira, no Leme, Rio de Janeiro. Criado por Regina Tchelly, tem a intenção de mudar a re-lação das pessoas com a alimentação, evitando desperdícios e ensinando a es-colher, comprar e preparar alimentos. O Ciclo Orgânico mostra que os resíduos orgânicos, em vez de irem para lixões e aterros sanitários, podem ser tratados para se transformarem em adubo. Os participantes distribuem baldinhos para separar o lixo, que depois é colocado em composteiras. O Carpe – Agricultura In-teligente atua para construir uma relação harmoniosa entre os cidadãos e o meio ambiente em escolas, residências e insti-tuições públicas e particulares.

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A gastronomia de Regina

Enquanto mexe uma panela e or-ganiza o fluxo de picar legumes, a criadora do Favela Orgânica afirma sorrindo: “O termo orgânica, que compõe o nome do projeto, tem o sentido de valorizar a intimidade que deveríamos ter com aquilo que nos nutre e com a relação entre nosso corpo e o meio ambiente. O Favela Orgânica atua no ciclo da vida e no do alimento. O ciclo da vida é a gente se enxergar de dentro pra fora, acre-ditar em si, respeitar o meio, pensar nas pessoas e em tudo que é neces-sário para estar bem. Já que estamos na nossa casa, o planeta Terra, de-vemos saber das nossas responsa-bilidades. Sendo assim, quando falo do ciclo do alimento, a proposta é devolver para a terra o que ela nos dá e democratizar a alimentação de verdade para todo mundo, sem levar em conta classe social. A comida, do solo ao prato, é um direito de todos.”

O grupo nasceu nas comunidades Babilônia e Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio de Janeiro, criado por Regina com o capital inicial de R$ 140,00. Uma iniciativa pioneira

em uma comunidade carioca, tra-balhando, entre outras propostas, no sentido de contribuir para acabar com a fome.

Com uma bela vista para a praia de Copacabana, dispõe de cozinha e algumas mesas para os convidados. Aceita encomendas e faz entregas. Tem também uma pequena horta que utiliza técnicas naturais e pro-duz folhas e tubérculos. Já levou suas oficinas e palestras até Bahia, Per-nambuco, Paraíba, Ceará, Minas Ge-rais, São Paulo, Santa Catarina, Pa-raná, Maranhão, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, além de ter viajado à França, à Itália e ao Uruguai. Regi-na conta, animada: “Trabalhamos há oito anos aqui na Babilônia e esta-mos hoje com 65 alunos. Quarenta são crianças e adolescentes; 15 são adultos. Tenho 16 parceiras que atu-am comigo direta e indiretamente, moram na favela e em outros lugares do Rio de Janeiro e até da Europa, e vêm contribuir.”

Regina e suas colaboradoras usam partes geralmente descartadas, cozi-nhando com os elementos tradicio-nais dos vegetais mas empregando também cascas, talos e sementes. Por isto pode-se dizer que buscam

Nascido nas comunidades Babilônia e Chapéu Mangueira, no Rio de Janeiro, o Favela Orgânica pretende mudar a relação das pessoas com a alimentação, evitando desperdícios, ensinando a escolher e preparar os alimentos

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um aproveitamento integral de ali-mentos.

A cozinha não para, é preciso aten-ção a todas as fases do preparo. Ela continua: “Uma casca de banana--verde tem um gosto de azeitona, um sabor de peixe, ela pode ficar com o gosto que você quiser. Um salga-dinho pode ser saudável, gostoso, nutritivo e de baixo custo, mas com um valor muito grande de nutrientes que fazem bem pro nosso organis-mo. Com poucos ingredientes, po-demos fazer cinco, seis pratos, o que sua imaginação der, e o que você não conseguir usar deve ser com-postado. E assim o ciclo continua: algumas sementes a gente come, outras a gente planta; algumas raízes a gente come, outras a gente devolve para a natureza”.

O grupo também procura promover uma mudança na cultura de consu-mo e desperdício, ou seja: com me-nos elementos, gerar mais comida, na medida em que são aproveitados integralmente. A criadora do Favela Orgânica continua, com um olho na entrevista e outro no fogão: “A gente vem, de maneira mais organizada, procurando multiplicar o alimen-to seja no plantio, na panela ou no

prato. Hoje trabalhamos com 70% de orgânicos fornecidos por alguns parceiros e todo o nosso cardápio é vegano. É possível comprar menos e ter mais comida saudável. Este ris-sole sairia ‘carésimo’ se fosse outra pessoa a fazer. Mas aqui nós faze-mos com poucos elementos. Ima-gine: se todas as pessoas soubes-sem respeitar os ciclos, não haveria desperdício, mas sim cooperação. O orgânico tem a ver com organização, vida, refletir sobre o que estamos comendo, pensar em quem produz”.

Num equipamento simples instalado no muro na sede do grupo, horta-liças florescem viçosas. Ao longo dos anos, as atividades foram se ampliando e hoje incluem divulga-ção, criação de hortas comunitárias em espaços ociosos, decoração de muros e paredes da comunidade com dicas e receitas rápidas, e ain-da realizar e estimular compostagem caseira. No outono carioca, o dia está lindo com um céu sem nuvens. Regina aproveita para recordar como começou: “No dia em que cheguei no Rio de Janeiro, vi um monte de comida sendo jogada fora em uma feira livre. Nesse dia, já fiz o almoço com partes dos alimentos que um feirante disse que não serviam nem

O Favela Orgânica mantém uma pequena

horta que utiliza técnicas naturais para produzir

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para os animais comerem. O óleo que uso hoje pra fritar é entregue na mão da dona Lourdes, morado-ra da Babilônia. Com ele faz sabão pra depois usarmos na cozinha no-vamente. Coisa linda! Respeitamos o planeta, dona Lourdes aumenta sua renda de casa e nos ajuda a ser mais conscientes”.

O rissole está quase pronto e o cheiro que vem da cozinha é muito estimulante. Lucicleide Alves da Sil-va interrompe o trabalho e dá seu depoimento: “Cheguei à comunida-de há quatro meses, meu filho veio participar de uma aula e vim com ele. Estou gostando muito, porque é uma coisa nova pra mim. Aproveitar alimentos que jogava fora é um in-centivo. As crianças gostam porque é uma comida colorida, feita com amor, e a gente vai cada vez apren-dendo mais. O ambiente aqui é har-monioso e caloroso”.

Julia Hara também é colaboradora do grupo. Paulista, estuda Relações Internacionais na Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro. “Ajudo bastante em todos os projetos, vim pra cá por-que acho uma iniciativa fantástica, é bom participar de um projeto para empoderar e capacitar as pessoas da favela, democratizar a alimentação. O Brasil é um dos países que mais desperdiçam alimento, está em déci-mo lugar na lista da FAO [órgão das

Nações Unidas para Alimentação e Agricultura]. Acho muito importante fortalecer este tipo de projeto quan-do a gente tem a chance.”

Outra colaboradora, Fabiana Telácio Monteiro, mora na Babilônia e pa-rece contente ao dizer: “Estou aqui hoje fazendo uma receita orgânica. Isto, pra mim, é um grande aprendi-zado.”

Lucas e a compostagem

O Ciclo Orgânico foi criado em 2015, com a proposta de desconstruir o conceito tradicional que se tem do lixo, em que as pessoas não se pre-ocupam com o destino dos resíduos que geram – geralmente despejados em aterros sanitários ou lixões –, e mostrar a possibilidade de viabilizar um outro tipo de destinação em que os participantes podem acompanhar o processo. É a primeira empresa do Brasil com o sistema de coleta de bicicleta em casa e com baldinhos para separar os resíduos, que se tor-nam uma fonte de vida: o adubo.

O engenheiro ambiental Lucas Chia-bi é o fundador do Ciclo Orgânico. Ele se entusiasma ao falar do pro-jeto. “Antes de trabalhar com este tema, percebi que tinha muita gente interessada em compostagem, mas achava que não ia dar certo, pois morava em apartamentos e não ti-nha espaço nem tempo pra me de-dicar a isto. Como poderia criar mi-nhocas e fazer compostagem?”.

Pesquisas indicam que hoje as so-bras e restos de alimentos repre-sentam mais da metade do que jogamos fora todos os dias e se tornaram um problema muito signi-ficativo para a sociedade brasileira. A compostagem é um processo de decomposição de matéria orgâni-ca, principalmente restos de frutas, verduras e legumes. Ela é realizada por micro-organismos e animais

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Cascas, talos e sementes: aproveitamento integral dos alimentos

Mão na massa, com saúde e carinho

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invertebrados que, na presença de umidade e oxigênio, se alimentam desta matéria e propiciam que seus elementos químicos e nutrientes se-jam transformados. O resultado final é o adubo. Esta técnica vem sendo utilizada há mais de cinco mil anos pelos chineses.

Na faculdade, Lucas costumava se-parar o lixo orgânico em um balde e depois levava para processar na própria universidade. Daí veio a ideia de ampliar este sistema para outras pessoas. E há anos o trabalho de facilitar a compostagem vem sendo realizado.

O Ciclo Orgânico recolhe o lixo do-miciliar e cada participante paga de 35 a 90 reais por mês, de acordo com a quantidade de resíduos que gera. Lucas continua: “A gente co-leta nas casas, composta e devolve um pouco de adubo e sementes de hortaliças a cada um. Informamos aos clientes quanto eles coletaram e a quantidade de adubo gerada. Aten-demos cerca de 1.500 famílias nos bairros da Tijuca, Grajaú, Maracanã, Barra da Tijuca, Leblon, Jardim Botâ-nico, Flamengo, Laranjeiras, Catete, Cosme Velho, Glória e Centro”.

São dez ciclistas e mais algumas pessoas atuando em triciclos de carga com três rodas. Cerca de 1.500 baldinhos já foram distribuídos pela cidade e, em quatro anos, foram re-colhidas 882 toneladas de resíduos orgânicos que geraram mais de 547 toneladas de adubo, evitando que centenas de toneladas de CO2 fos-sem emitidas na atmosfera. O CO2, composto de um átomo de carbono e dois de oxigênio, é responsável pelo efeito estufa, que aumenta a temperatura global, prejudica o planeta e a vida de animais e seres humanos. Os integrantes do grupo calculam que em 2018 foram realiza-das mais de 34 mil coletas.

Lucas considera que os participan-tes são cidadãos conscientes e que

também têm a possibilidade de pa-gar pela coleta. Tem gente de todas as idades, com destaque para os jo-vens e as mulheres, que representam cerca de 70% da clientela e demons-tram estar muito interessadas nas questões ambientais. O principal tra-balho que o cliente tem é, em vez de jogar os resíduos na lixeira do prédio ou de casa, depositá-los no baldi-nho. São feitas coletas semanais, quinzenais ou mensais, dependendo do plano que a família escolher.

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Lucas Chiabi, fundador do Ciclo Orgânico

Empresa coleta lixo orgânico domiciliar e entrega adubo e

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No início não foi nada fácil. Eles co-meçaram a atuar no Parque do Mar-telo, no Humaitá, mas a área não foi suficiente. Passaram então para uma escola no Jardim Botânico e hoje tra-balham em Duque de Caxias, num sítio que tem melhores condições de abrigar a atividade sem causar incô-modo aos vizinhos, pois, dependen-do do tamanho da compostagem, ela pode causar algum odor. Depois de feita a coleta, juntam todo o ma-terial, que é levado para Caxias duas vezes por semana.

“Os participantes vibram com a ati-vidade e compartilham os resultados com a família, os amigos e vizinhos”, diz Lucas. “Escolhemos o nome Ci-clo Orgânico porque a gente está propondo uma volta ao ciclo natural. Na natureza não existe lixo, todo re-síduo gerado por uma floresta, por exemplo, se transforma em adubo na própria floresta, sendo responsável pela nutrição das plantas. Criamos este nome para lembrar o conteúdo do nosso projeto”.

Como a maioria dos ambientalistas, o engenheiro tem em mente o con-ceito de desenvolvimento sustentá-vel e a batalha para chegar a con-cretizá-lo. “É difícil dizer se estamos ganhando ou perdendo a luta pelo desenvolvimento sustentável. O que sei é que estamos evoluindo. Há dez anos não se falava em compostagem e hoje já se toca no assunto nas es-colas, nas casas, nas instituições pú-blicas e privadas, e tem muita gente interessada em colaborar e dar con-tinuidade ao trabalho. E por aí vai”.

Desde menino, Lucas Chiabi sem-pre foi interessado nos temas que se relacionavam aos resíduos. Um de seus sonhos era ser motoris-ta de caminhão de lixo. Um passo significativo na sua trajetória foi um estágio na empresa VideVerde, em Magé, que ampliou-lhe a visão a res-peito dessa temática. Na realidade, um mergulho mais aprofundado na área proporcionou uma militância

que tem lhe dado possibilidades de contribuir para uma melhor qualida-de de vida na cidade onde vive e no seu entorno.

Thamyris Soliva é a esposa do Lu-cas. Ela trabalha com comunicação e marketing em mídias sociais e no Ciclo Orgânico. Sorri ao dizer que também se transforma em ajudante de caminhão, pois costuma ajudar a carregar o veículo para fazer a com-postagem. No sítio em Caxias o ca-sal cria galinhas e está fazendo uma horta.

“Atuar nesta área traz um impacto positivo para o meio ambiente e, ao mesmo tempo, para a sociedade”, ela conta. “Em média, cada cidadão gera cerca de dois quilos de resídu-os por dia. Em torno de 70% deste total é orgânico. Se cada pessoa fizer compostagem, podemos redu-zir grande parte daquilo que hoje é destinado a ir para aterros sanitários e lixões”.

Há dois anos, a designer Paula No-gueira participa do Ciclo Orgânico. Ela afirma: “Guardo cascas de ovos e frutas, pó de café, sobras de comi-da. Isto diminui o resíduo em casa, pois quase não há o que jogar fora. Faço a minha parte. Se todo mundo fizesse a sua, haveria menos lixo não aproveitável”, diz.

Paula sempre foi ligada nesse tema. Na Fundação Nacional de Artes (Fu-narte) onde trabalhava, assistiu a uma palestra de Tião, um ex-catador que ganhou notoriedade com o fil-me “Lixo extraordinário”, do artista plástico Vik Muniz, e hoje atua or-ganizando quem vive dos resíduos. “Ele [Vik] se emocionou e chegou a chorar quando eu disse que separa-va resíduos numa época em que esta prática ainda não estava difundida.”

Paula Nogueira menciona ainda ou-tros filmes que ajudaram a desenvol-ver sua consciência: “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado, tem o nome do aterro gaúcho onde se passa a ação.

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Lucas: “Percebi que tinha muita gente interessada em compostagem, mas achava que não ia dar certo, pois morava em apartamentos e não tinha espaço nem tempo. Como poderia criar minhocas e fazer compostagem?”

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Mostra como o lixo considerado inadequado para porcos é distri-buído entre mulheres e crianças. É considerado pela crítica o melhor curta-metragem brasileiro. E “Esta-mira”, de Marcos Prado, é protago-nizado por uma senhora dada a re-flexões filosóficas que viveu 22 anos no aterro sanitário de Gramacho, no Rio de Janeiro.

Tomás e a agricultura inteligente

O geógrafo e agricultor Tomás Men-donça atua na Carpe – Agricultura Inteligente e Horta Sintrópica, cuja proposta é transformar os espaços em busca de sustentabilidade e criar novas relações harmônicas por meio de três linhas: agricultura inte-ligente com a agrofloresta urbana e no campo, educação e transforma-ção de resíduos.

Agroflorestas são formas de uso ou manejo da terra que combinam ár-vores frutíferas ou madeireiras com cultivos agrícolas ou criação de ani-mais e ajudam na redução da erosão e na recuperação de áreas degrada-das [ver reportagem na revista Senac Ambiental, edição nº 14].

Segundo Tomás, “a gente faz proje-tos em diferentes escalas de plantio na cidade. Então temos os Quintais Comestíveis, em apartamentos e casas. Um deles é localizado num terraço numa chácara em Laranjei-ras onde são plantadas hortaliças. Trabalhamos também há três anos num grande quintal em Niterói com muitas hortaliças. Nele já colhemos também banana, mandioca e outros vegetais”.

A Horta do Amanhã é uma parceria com o Museu do Amanhã e funciona na área externa do museu, na Praça

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Tomás Mendonça, da Carpe: proposta é criar novas relações

harmônicas por meio de agroflorestas, conscientização e

transformação de resíduos

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Mauá, centro do Rio de Janeiro. Lá, em algumas caixas de um metro qua-drado, são plantadas hortaliças, tem-peros e plantas alimentícias não con-vencionais, as Pancs [ver reportagem na revista Senac Ambiental, nº 13]. Para viabilizar estas atividades, há uma oficina mensal gratuita aberta ao público e semanalmente é feita a manutenção do plantio. Os membros do grupo ensinam técnicas de agri-cultura urbana, um trabalho pedagó-gico que inclui colheita e replantio.

O projeto Gestão em Escolas atua em instituições escolares, empresas e apartamentos para organizar o descarte de resíduos e a destinação correta deles, evitando que sejam depositados em lixões e transfor-mando-os em adubo.

Tomás sente uma diferença entre a época da criação da Carpe, em 2011, e o que acontece hoje: “Ao longo destes anos, a demanda aumentou muito. A cultura das pessoas vem mudando à medida que os anos vão passando. Quando começamos, não havia grupos com esta proposta. De lá pra cá surgiram vários, trabalhan-do em diferentes áreas no universo ambiental urbano”.

E existe alguma diferença entre o trabalho ambiental que se faz na ci-dade e no campo? Tomás responde: “Iniciativas ambientais são de suma importância tanto no campo como nas cidades. O campo alimenta a ci-dade em grande parte, mas a cidade também tem capacidade de produzir, e isto é um pouco esquecido quan-do se fala em agricultura, pois o foco geral é só a produção agrícola rural. Nossa proposta é mudar um pouco isto, mostrando que a floresta pro-dutiva que propomos para o campo pode ser adaptada para o contexto urbano”.

É preciso considerar também que, embora a realidade da vida urbana seja bem diversa da rural, existem pontos em comum, como uma pre-

ocupação cada vez maior com a ali-mentação na proporção em que cres-ce a consciência de que somos o que comemos. Tomás continua: “Grande parte dos alimentos produzidos no campo já não é saudável, mas con-taminada por produtos agressivos e defensivos agrícolas. Além disso, as condições de transporte e conserva-ção acabam prejudicando a qualida-de. Na cidade existe a questão pre-ocupante da poluição, mas tem sido possível fazer nela a recuperação de solo sem venenos usando o mane-jo ecológico, limpando e adubando tudo de forma natural. Assim, pode-mos esperar que o alimento se torne cada vez mais saudável”.

Sejam quais forem sua natureza e seus projetos, os grupos de ecologia urbana cariocas têm uma preocu-pação comum: a luta para mudar os hábitos dos cidadãos com relação a resíduos. Tomás analisa aqui este as-pecto: “O brasileiro precisa entender a importância de um processo básico na natureza, que é a decomposição. A gente perdeu um pouco a noção de que tudo o que é produzido de forma manufaturada, inclusive o plástico, se transforma. É preciso mudar a maneira de olhar os produtos e os ci-clos. Cada material dá origem a uma nova coisa, então devemos entender que materiais e resíduos estamos gerando e qual a destinação correta. Uma casca de banana, por exemplo, vai virar terra, então precisa ser leva-da para a compostagem”.

Mas ao longo do tempo o ser hu-mano tem inventado materiais in-dustriais de difícil reciclagem, como a borracha. O que fazer com eles e como resolver esse problema? “É preciso, no dia a dia, dar prioridade a materiais degradáveis e usar menos os mais agressivos”.

Tudo isto remete novamente ao conceito de desenvolvimento sus-tentável, há décadas discutido pelos interessados em meio ambiente em todo o mundo. Há quem acredite

Pequenas hortas abrigam hortaliças, temperos e plantas alimentícias não convencionais

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Rissole de inhameIngredientesTrês inhames médios, essência da flor azul comestível de feijão borbo-leta, uma cebola média, seis cascas de banana-verde, dois dentes de alho, um pimentão pequeno, dois tomates, cheiro-verde, temperos a gosto, azeite, sal, dois copos de fari-nha de trigo, farinha de rosca.

PreparoCozinhar o inhame. Batê-lo sem cas-ca no liquidificador com alho, cebo-la, azeite e sal. Levar ao fogo até virar um creme ralo. Colocar a farinha de trigo aos poucos. Quando desgrudar da panela a massa está pronta. Co-

que seja uma utopia, mas Tomás não pensa assim: “Hoje entendemos isto a partir de um olhar diverso. Cada lugar precisa ter um desenvolvimen-to pensado pra ele, não tem como usar uma receita de bolo, não existe mágica pra criar um modelo. Temos de construir uma cultura sustentável pra cada situação. Na Carpe pensa-mos em sustentabilidades no plural, evitamos a lógica de um modelo úni-co. Mesmo que não tenhamos dado esta virada, hoje a cultura que bus-ca alimentos sem veneno e prioriza materiais biodegradáveis aumentou muito. Estamos evoluindo”.

A entrevista com Tomás foi realizada no Largo Professor Silva Melo, no Cosme Velho, uma área pública de amortecimento do Parque Nacional da Tijuca, local histórico por onde corre o rio Carioca, importante na formação da cidade do Rio de Janei-ro. Por isto a iniciativa foi batizada de Agrofloresta Comunitária do Rio Carioca e revelou aspectos arqueoló-gicos que deixam o geógrafo e agri-cultor entusiasmado:

“Começamos em 2018, removemos muito resíduo daqui. Capinamos, encontramos até um poste retirado da Avenida Rio Branco na época do

prefeito Pereira Passos (1902-1906) e também uma garrafa de guaraná de 1980. Recolhemos tudo e começa-mos a fazer um novo plantio de co-lonização. Como é uma área sombre-ada, o plantio foi muito baseado em frutíferas e raízes. A agrofloresta é baseada na sintropia, uma agricultura de processos. Começamos devagar e vamos adubando o solo, nutrindo--o e aos poucos para que recupere a qualidade e gere boas plantas. É um processo a curto, médio e longo prazos. Depois de um ano já come-çamos a produzir bananas. Em três anos surgem os primeiros cacaus”.

No Largo a equipe da Carpe plan-tou banana, cacau, jaca, atemoia, inhame, abacaxi, cúrcuma, gengibre, chaia (uma hortaliça arbustiva da qual se consomem as folhas) e aroei-ra. A ideia, além de ter plantas saudá-veis, é que elas também sejam úteis pra quem mora por perto. O peque-no largo se transformou em uma ilha verde que se destaca nas proximida-des do Túnel Rebouças e do Largo do Boticário. Martim, o filho de Tomás, gosta de acompanhar as atividades do pai e observa atento os passarinhos, as borboletas e as plantas.

Receitas de dar água

na boca criadas por

Regina Tchelly

locar flor de feijão azul e trabalhá-la como massa de pão e reservar. Para fazer o recheio, cozinhar as cascas de banana, cortá-las bem finas, fazer um refogado e juntar cebola picada, pimentão, tomates, cheiro verde e um dente de alho.

Montagem Abrir a massa e cortá-la com um copo para obter fatias redondas. Co-locar nelas o recheio e fechar como um pastel. Depois de prontos os rissoles, fazer um creme com água, farinha e temperos e passá-los nesta mistura. Em seguida, passá-los na fa-rinha de rosca. Eles podem ser fritos, assados e também se pode congelar.

Salada crocante de repolho e milho Ingredientes Duas xícaras de milho verde cozido e fresco; uma xícara de chá de repolho roxo cortado bem fininho; uma xíca-ra de chá de repolho verde; uma xí-cara de chá de couve-manteiga; uma xícara de chá de tomate-cereja; suco de um limão; cheiro-verde, coentro e manjericão a gosto

Preparo Higienizar todos os alimentos se-paradamente. Cortar bem fininhos os repolhos roxo e verde e a couve--manteiga. Cortar em quatro partes os tomates-cereja. Picar bem o co-entro e o cheiro-verde. Misturar o milho cozido sem sal com os demais ingredientes e, por último, rasgar o manjericão com a mão, acrescentar o azeite e o limão.

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Salva da especulação imobiliária, área verde de Juiz de Fora se consolida

como espaço de pesquisa e conscientização

Francisco Luiz NoelUma velha propriedade reflorestada pela força da natureza desde a dé-cada de 1930 tornou-se o xodó eco-lógico de Juiz de Fora, no sudeste de Minas Gerais, dez anos depois de ter sido salva de uma ofensiva imobili-ária que visava à construção de um condomínio residencial. Comprada pela universidade federal da cidade em 2010, a área reconquistada pela flora da Mata Atlântica foi transfor-mada em jardim botânico pela ins-tituição, que fez do lugar – o antes privado Sítio Malícia – o mais impor-tante espaço público de educação ambiental da Zona da Mata mineira.

Com 83 hectares, o antigo sítio foi protegido das motosserras graças à iniciativa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em nome de uma mobilização ambiental que durava desde março de 2004. Pelo projeto apresentado nesse ano, a constru-tora Carmel Empreendimentos, que havia adquirido a área em 2001, pre-tendia pôr abaixo parte da floresta para edificar o empreendimento de luxo Residencial Parque Brasil, com 90 casas. Diante dos protestos, o

Educação ambiEntal

De condomínio

a jardim botânico

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número cairia a 72 unidades, substi-tuídas depois por 12 prédios com 21 andares, para que a derrubada fosse menor.

O empreendimento chegou a ter, em janeiro de 2007, licença prévia concedida pelo Conselho Munici-pal de Meio Ambiente (Comdema) e autorização do Instituto Estadual de Florestas (IEF) para o corte de 350 árvores – medidas assentadas na alegação de que a Mata Atlântica do lugar não é original, mas fruto de recuperação ocorrida havia 70 anos. Como a controvérsia sobre o destino da propriedade prosseguia, a cons-trutora se dispôs a vender o sítio, intocado, e a UFJF manifestou, em-bora não contasse com recursos, o interesse de ter um jardim botânico.

Símbolo de resistênciaA alternativa para preservar o verde do Sítio Malícia foi viabilizada por nove deputados federais mineiros, liderados pelo parlamentar Júlio

Delgado (PSB), que juntaram-se à mobilização ecológica e propuseram emendas ao Orçamento da União a fim de dotar a UFJF de verba para comprar a área. O negócio seria fe-chado em 3 de fevereiro de 2010, por R$ 5,3 milhões, com escritura de compra lavrada um mês depois, formalizando o triunfo ambiental ao fim de embate que arrastara grande parte da população para a trincheira de defesa de uma das últimas matas de Juiz de Fora.

Ações judiciais, confronto de pare-ceres técnicos, abaixo-assinado com 20 mil signatários, debates acalora-dos entre organizações civis e auto-ridades municipais, estaduais e fede-rais – houve de tudo nos seis anos da controvérsia sobre o destino do Malícia. Na Associação pelo Meio Ambiente de Juiz de Fora (AMA-JF), que encabeçou o movimento, o co-ordenador de projetos, Theodoro Guerra, faz o balanço: “O resultado foi favorável sem desvantagem para

Os visitantes têm amplo contato com a natureza e podem fazer atividades físicas

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o empreendedor, que não saiu com o dinheiro que esperava ganhar com o condomínio, mas ficou sem o pre-juízo que alegava iria ter.”

A vitória dos preservacionistas foi “emblemática” em face do históri-co de desflorestamento da cidade, diz Guerra. “Não tínhamos, em Juiz de Fora, notícia de mobilização tão grande que tivesse conseguido im-pedir um empreendimento imobiliá-rio. Hoje, no lugar onde haveria um condomínio e que seria de uso priva-do, temos um espaço que as pesso-as podem visitar para aprender so-bre a Mata Atlântica e ver espécies raras”, afirma. O caso, ele observa, pode servir de modelo para movi-mentos semelhantes diante de ame-aças ambientais na Zona da Mata.

Prova do interesse dos juiz-foranos pela conquista ambiental foi a frequ-ência no primeiro ano de funciona-mento do Jardim Botânico. Por seu portão, localizado no bairro Santa Teresinha e aberto na segunda se-

mana de abril de 2019, passaram 58 mil visitantes até o fim de dezembro – entre eles, oito mil estudantes em visitas guiadas de 208 escolas. “Es-tamos garantindo ao cidadão o direi-to de acesso à biodiversidade, que é um bem comum”, assinala o diretor, Gustavo Soldadi, professor do De-partamento de Botânica do Instituto de Ciência Biológicas (ICB).

Para estimular a população a visi-tar o novo endereço verde, a UFJF adota a gratuidade de entrada. O diretor lembra que o artigo 225 da Constituição assegurar que “todos têm direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o de-ver de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Gustavo Soldati acrescenta: “Mesmo que cobrássemos uma quantia sim-bólica, algumas pessoas poderiam não vir conhecer”.

Laboratório Casa Sustentável: criado pela

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF, oferece aos visitantes a experiência de uma moradia ecológica

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Matas típicasO Jardim Botânico da UFJF é parte da chamada Mata do Krambeck, encla-ve de floresta atlântica regenerada, com 374 hectares, na zona norte da cidade. Seu nome faz referência ao descendente de alemães aos quais pertenceram o Sítio Malícia e duas propriedades vizinhas, desmembra-dos de uma antiga fazenda de café e pecuária. A última área adquirida pela família, que possuía um grande curtume, foi o Sítio Malícia, em 1938. Como o lugar ia virar loteamento, Pedro Krambeck resolveu comprá--lo, receoso de perturbações com vizinhos, e passou a morar ali.

À beira do rio Paraibuna, a Mata do Krambeck é Área de Proteção Ambiental (APA) desde novembro de 1992, por lei estadual. O Malícia seria, porém, excluído dessa prote-ção pela Assembleia Legislativa um

ano depois, sob alegação de que à floresta regenerada somam-se mar-cas humanas, como lagos artificiais e edificações. O sítio e as duas pro-priedades vizinhas formam a maior área verde de Juiz de Fora, que tam-bém preserva restos de Mata Atlân-tica nas reservas biológicas de Poço da Anta e Santa Cândida, no Parque Municipal da Laginha e no Morro do Imperador.

A vegetação do Jardim Botânico se enquadra no tipo que os biólogos chamam de floresta estacional se-midecidual, a exemplo dos demais fragmentos florestais da cidade, incluída a Mata da Remonta, per-tencente ao Exército, vizinha à do Krambeck. A classificação distingue essas matas, menos úmidas e mais baixas, da floresta de Mata Atlântica do litoral, denominada ombrófila. No caso juiz-forano, as áreas verdes so-frem influência do clima subtropical

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de altitude e das chuvas copiosas e temperaturas altas do verão, além da distância do oceano.

Com 569 mil habitantes, Juiz de Fora é a maior cidade da Zona da Mata e a quarta mais populosa do estado. Da floresta que cobria seus 1,4 mil quilômetros quadrados, no tempo dos índios Coroado e Puri, os rema-nescentes somam 20%, mas apenas 4% têm proteção legal. A devastação teve início com a abertura do Ca-minho Novo, em 1703, para trans-porte do ouro de Minas até o Rio de Janeiro. A derrubada em grande escala seria promovida no século 19 pela cafeicultura tocada pelo braço escravo e a pecuária, e no século passado, pela arrancada da urbani-zação.

Mais de 500 espécies da flora convi-vem no Jardim Botânico, distribuídas por milhares de plantas que formam

a mata montanhosa do lugar, das quais quase 10 mil estão cataloga-das. Dessa rica biodiversidade, 436 espécies de árvores, arbustos, cipós, trepadeiras e epífitas foram registra-das pela bióloga Camila Neves Silva, que de 2011 a 2014 coletou amostras para a dissertação de seu mestrado em Ecologia, no ICB. Metade dessa riqueza vegetal é formada por árvo-res, incluídas 14 espécies cultivadas, como o pau-brasil (Paubrasilia echi-nata).

As espécies relacionadas no traba-lho fazem parte de 96 famílias e 270 gêneros. As famílias mais ricas são a Fabaceae, das leguminosas, com 35 espécies; a Melastomataceae, que inclui árvores como a quaresmeira e é uma das mais representativas da

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Mata Atlântica, com 27; e a Rubia-ceae, do café, também com 27 es-pécies. Na Melastomataceae, é mar-cante o gênero Miconia, que abrange a popular canela-de-velho. Outra espécie do gênero, aponta Camila Neves Silva, é a Miconia urophylla (pirixica, na voz do povo), endêmica em terras mineiras, fluminenses e paulistas.

Corredor ecológicoDiversas plantas da Lista Nacio-nal Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção, do Ministé-rio do Meio Ambiente, estão no Jar-dim Botânico. Entre as vulneráveis, o jacarandá-da-bahia (Dalbergia nigra) e a braúna (Melanoxylon brauna); em perigo, a canela-sassafrás (Ocotea odorifera) e o pau-brasil (Paubrasilia echinata); quase ameaçados, o ipê de Minas (Handroanthus impetigi-nosus) e o camboatá (Tachigali ru-gosa.). Da Lista Vermelha da Flora de Minas, o carapiá (Dorstenia arifolia), a pindaíba-branca (Guatteria villo-

sissima) e o ipê-amarelo (Handroan-thus albus).

“A característica marcante da flora do Jardim Botânico é ser represen-tativa não somente da cobertura vegetal do município, mas também de toda a Zona da Mata mineira”, observa Camila, professora do De-partamento de Geociências, do Ins-tituto de Ciências Humanas (ICH). Ela destaca, porém, uma singulari-dade: por ter topografia semelhante a um anfiteatro, com áreas planas contrapostas a encostas íngremes, cobertas por vegetação, o lugar tem ambientes úmidos e sombreados que abrigam espécies comuns a flo-restas ombrófilas como as do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Por conta das particularidades am-bientais, o Jardim Botânico da UFJF e o restante da Mata do Krambeck contribuem para fazer de Juiz de Fora um importante corredor eco-lógico a ligar as serras do Mar e da Mantiqueira. Pela localização, todo

São mais de 400 espécies de árvores, arbustos, cipós, trepadeiras e epífitas

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esse patrimônio verde favorece o deslocamento de espécies da fauna e o aumento da cobertura vegetal na região, como resultado da dispersão natural de sementes. “Esse corredor ecológico é de grande importância para a manutenção da biodiversida-de da Região Sudeste”, afirma Cami-la Neves Silva.

Fatores ambientais como esses, su-blinha a bióloga, tornam o Jardim Botânico um espaço privilegiado para iniciativas de conservação e educação ambiental. Lembrando que a Mata do Krambeck possui espécies introduzidas pelos antigos donos, ela considera que o lugar também pode gerar aprendizado so-bre o cultivo de plantas – algumas, de uso tradicional na medicina ca-seira. “Essa flora abre espaço para educação ambiental mais próxima da comunidade”, diz Camila, para assinalar que muitas pessoas do lu-gar têm histórias de vida associadas à floresta.

À biodiversidade da flora soma-se a da fauna abrigada no Jardim Bo-tânico e matas vizinhas. Entre os mamíferos estão o macaco bugio, o mico-estrela, o lobo-guará, o ca-chorro-do-mato, a paca, a capivara, o quati, a cutia, a lontra e espécies ameaçadas como a cuíca-de-três--listras (Monodelphis ihering) e o rato-do-mato-laranja (Rhagomys rufescens). A variedade de aves tam-bém é grande, do beija-flor ao ga-vião, passando pelo tucano e o jacu. Répteis como serpentes e lagartos e insetos de diversas famílias – entre eles borboletas e vespas sociais – completam a riqueza animal.

Educação e conhecimento

Para a UFJF, o Jardim Botânico era o espaço que faltava para o desenvol-vimento de ações de ensino, pesqui-sa e extensão no campo ambiental. O lugar vem sendo usado por profes-

No contato com a natureza, é possível fazer caminhadas livres ou percursos guiados

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sores e estudantes de disciplinas de cursos de graduação e pós-gradua-ção e tem proporcionado campo li-vre para pesquisas acadêmicas, que antes sofriam limitações pelo fato de a área estar sob domínio privado. A prioridade da universidade é, po-rém, a realização das atividades de extensão, assinala o diretor, Gustavo Soldati. “A educação ambiental é a nossa coluna vertebral”, diz.

Os visitantes do Jardim Botânico têm, com orientação de monitores, opções de roteiros formados por pontos situados ao longo dos ca-minhos da área aberta ao público. Esses trajetos guiados cobrem cin-co temas: grandes grupos vegetais, diversidade vegetal e etnobotânica,

processos e relações ecológicas, socioambientalismo e mitos, heroínas e heróis brasileiros. No contato com a natureza, também podem fazer cami-nhadas livres e participar de percurso guiado, no interior da mata, pela chamada Trilha da Juçara, em alusão à abun-

dância local dessa palmeira.

Outras atrações são os dois la-gos, a casa-sede do antigo Sítio

Malícia e o Laboratório Casa Sus-tentável, além da Casa de Educação Ambiental. Na sede, a história do Jardim Botânico é contada sob a forma de linha do tempo, em mostra a que serão agregadas exposições de arte. O laboratório, que oferece aos visitantes a experiência de uma moradia ecológica, construída com materiais e técnicas que minimizam impactos no meio ambiente, foi cria-do pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF para difundir princípios sustentáveis de constru-ção bioclimática, conforto ambiental e eficiência energética.

A Casa de Educação Ambiental é a porta de entrada dos estudantes em grupos, para orientações pré-vias à visita, guiada por monitores

do Jardim Botânico. Na edificação, um painel conta o “Causo da Onça”, que manteve a cidade em suspense durante mais de duas semanas em 2019. O episódio foi protagonizado por uma jovem onça-pintada, ma-cho, procedente de floresta de outra região mineira, que instalou-se na Mata do Krambeck dias depois da inauguração do Jardim Botânico, fe-chado por medida de segurança. O animal, que andou por ruas vizinhas, foi capturado por uma força-tarefa coordenada pela UFJF e levado para uma floresta distante no estado.

O caso deu publicidade ao Jardim Botânico. “Passei a ter interesse de conhecer depois que a onça apare-ceu. Os guias sabem exatamente por onde ela andou”, conta Rayza Mara de Assis, que fez a visita em agosto do ano passado, num grupo de cem secundaristas do Instituto Estadual de Educação, do Centro. A profes-sora Cristiane Costa do Carmo, que leciona Biologia na Escola Sebastião Patrus de Sousa, no bairro Cente-nário, é uma das muitas que leva-ram alunos, em novembro. “Foi uma oportunidade de os alunos, todos do 3º ano do ensino médio, verem na prática tudo aquilo que estuda-ram de forma teórica sobre Ecolo-gia”, ela destaca.

A incorporação do Jardim Botânico à vida juiz-forana implica, para a UFJF, o desafio de difundir entre a popu-lação a consciência da finalidade dos espaços dessa natureza, que vai além de atividades de lazer. “Um jar-dim botânico não é um parque, mas, sim, um lugar de estudo”, salienta Gustavo Soldati. Além de dispor de projeto político-pedagógico de edu-cação ambiental e de equipe com 50 monitores, composta por bolsistas de vários cursos de graduação, o Jardim Botânico reserva a pesquisa-dores o sábado. Nesse dia, não abre para o público, ao qual estão des-tinados o domingo e o período de terça-feira a sexta.

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Em 2019, logo após a inauguração, uma onça

pintada apareceu na mata e causou alvoroço na cidade

até ser capturada

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A confusão em torno dos objetivos do Jardim Botânico foi alimentada por projeto, lançado em 2012 pela direção anterior da universidade, de instalação de teleférico e trenó de montanha na área. Gastos R$ 23 milhões, os trabalhos foram parali-sados em meio a uma disputa con-tratual com a construtora, travada na 2ª Vara Federal de Juiz de Fora. As estruturas de concreto permanecem inacabadas junto à mata e as cabi-nes do teleférico estão retidas na Suíça. A UFJF precisaria de R$ 19,6 milhões para terminar a obra, que a direção atual a considera alheia à fi-nalidade do Jardim Botânico.

Projeto em consolidação

Campo aberto para o estudo e a pe-quisa na UFJF, a floresta do Jardim Botânico é usada para atividades científicas desde a aquisição da área pela universidade. De 2010 para cá, estudantes de graduação e pós-gra-duação, assim como professores, participaram de levantamentos da flora, fauna e recursos hídricos para mais de 50 estudos – trabalhos de conclusão de cursos, dissertações de mestrado e teses de doutorado.

Além de contribuir para a formação e especialização profissional, as pesquisas produzem conhecimentos úteis para o manejo desse laborató-rio vivo.

Em um desses trabalhos, o biólogo Breno Moreira, vice-diretor do Jar-dim Botânico desde 2018, estudou um trecho de mata no qual o café era cultivado em meio a árvores até o início do século 20. “Temos aqui florestas em diferentes estágios de sucessão ecológica, de médio a avançado, o que reflete o histórico de sua utilização”, diz Moreira, que dedicou o mestrado em Ecologia ao tema, em 2014. A mata ainda precisa de algumas décadas para tornar-se madura, com as copas das árvores formando um dossel uniforme. No entanto, livre de ameaças graças à ação protetora da UFJF e à vigilância ambiental dos juiz-foranos, seu futu-ro está garantido.

Patrimônio sob responsabilidade da Pró-Reitoria de Extensão Universitá-ria, o Jardim Botânico é empreitada em plena execução. Em paralelo com o avanço do conhecimento da biodiversidade local, salienta o dire-tor, Gustavo Soldati, há demandas

O espaço vem sendo usado por professores e estudantes de disciplinas de cursos de graduação e pós-graduação

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em várias frentes para a consolida-ção do espaço – entre elas, a instala-ção de laboratórios, a construção de viveiro de mudas nativas e a criação de coleções botânicas, como de or-quídeas e bromélias. Esta iniciativa, ele ressalta, “é importante tanto para a educação ambiental quanto para o armazenamento de germoplasma”, material genético que pode ser obje-to de intercâmbio com outros jardins botânicos.

Com o espaço de ensino, pesquisa e extensão na Mata do Krambeck, a UFJF entra no pequeno grupo de universidades que possuem jardins botânicos, como a de São Paulo (USP) e a Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mais novo do Bra-sil, o de Juiz de Fora ainda não inte-gra o Sistema Nacional de Registro de Jardins Botânicos (SNRJB), geri-do pelo do Rio de Janeiro, o mais antigo. Gustavo Soldati diz que o pedido de registro será encami-nhado assim que o Conselho Na-cional do Meio Ambiente (Conama) terminar de rever a resolução (339, de 2003) que dispõe sobre criação e funcionamento dos jardins botâ-nicos no país.

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Terra Indígena em Caarapó (MS). Com a pandemia, práticas alimentares e medicinais tradicionais foram abandonadas

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Antes que o céu desabe

Como as populações tradicionais têm enfrentado o novo coronavírus e seus temores quanto ao futuro

Ana Mendes (texto e fotos)

Comunidades tradicionais, popula-ções rurais e povos indígenas não precisaram do Sars-CoV-2, o novo coronavírus, para sentir as perdas decorrentes do confinamento. Proi-bições de deslocamento, dificuldade de subsistência e restrição dos afetos são habituais na rotina desses gru-pos, que lutam para viver e sobrevi-ver em terras exíguas e impactadas, nas quais é impossível cultivar, colher e caçar sem precisar ir ao mercado nos centros urbanos mais próximos para complementar a alimentação e a renda. A pandemia só agravou essa situação. E o distanciamento social, imposto pela maioria dos estados e municípios, conforme as recomen-dações da Organização Mundial da Saúde (OMS), tem sido impraticável para muitos deles. A vida em comu-nidade, na qual quase tudo é com-partilhado e trocado, e as más con-dições de moradia, em alguns casos, os deixam em riscos ainda maiores. E o número de infectados nas comuni-dades cresce.

Confeccionando as próprias másca-ras na máquina de costura, Rose de Jesus Pereira, quilombola de Itama-tatiua, no município de Alcântara, no Maranhão, conta que todas as

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terças-feiras várias pessoas da sua comunidade, composta por cerca de 180 famílias, vão ao município de Bequimão fazer compras e sacar dinheiro. “Terça-feira é o dia autori-zado. Tem dois carros que fazem li-nha pra lá”, ela conta. A prefeitura de Bequimão, no norte do Maranhão, fez um cronograma para controlar a circulação de pessoas no muni-cípio. Conforme essa agenda, cada comunidade pode passar a barreira sanitária em dias preestabelecidos. Conforme Rose, a média de idas a cidade continua semelhante ao que era antes da pandemia. Entretanto, para tentar cumprir a quarentena, o acesso ao quilombo está restrito “só entram os carros que abastecem os mercadinhos”, afirma. Nas redes sociais de Itamatatiua, na internet, estava o aviso: “Lembramos que se-guimos em isolamento social para o melhor de todos!”

Antes mesmo que houvesse uma decisão por parte dos entes fede-rativos, diversas aldeias indígenas e comunidades rurais, por conta pró-pria, começaram a cancelar eventos e atividades internas e restringir as

saídas e entradas, principalmente de “brancos”, ou seja, pessoas estran-geiras aos seus territórios. Os guara-ni-kaiowás, no Mato Grosso do Sul, a segunda maior população indígena no Brasil, montaram mais de 22 bar-reiras sanitárias. “Ficam nas barreiras as lideranças e os agentes de saúde indígenas, pra impedir a circulação do vírus nas comunidades, cuidando de quem entra e quem sai”, relata Ja-queline Gonçalves, da Kuñangue Aty Guasu, o conselho de mulheres gua-rani-kaiowá. “Só entram profissionais da saúde, segurança pública e ajudas humanitárias. E a gente faz o traba-lho de formiguinha de conseguir aju-da e doações pra manter as barrei-ras”, explica Jaqueline, contando que a manutenção dos serviços em cada barreira custa 3 mil reais mensais.

Vítimas de sucessivas negligências estatais, as comunidades decidiram isolar-se como medida preventivas ao vírus, mas também à vulnerabili-dade a que sabem que estão expos-tos. “O coronavírus é uma doença universal, mas o grau de letalidade não é o mesmo. Na população negra é mais letal, pois reflete o desenho

Quebradeira de coco em Viana (MA): dificuldade para alimentar a família

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econômico do país e o acesso à saú-de”, diz o quilombola Danilo Serejo, assessor jurídico do o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe).

De fato, pretos e pardos estão mor-rendo mais de covid-19 do que bran-cos, como apontou pesquisa do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois), do Centro Técnico Científico da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, lançada no fim de maio. O estudo analisou 30 mil casos graves confirmados para covid-19. “Quase 55% dos pretos e pardos faleceram, ao passo que en-tre os brancos esse valor ficou em 38%”, atesta a nota técnica nº 11 do Nois.

Avaliando as desigualdades de aces-so a tratamentos, o Índice de De-senvolvimento Humano Municipal (IDHM) e o grau de escolaridade, a pesquisa afirma que as chances de morte entre pacientes pretos ou par-dos analfabetos são 3,8 vezes maio-res do que em pacientes brancos com nível superior.

“Os guarani-kaiowás estão muito mais vulneráveis que os brancos”, alerta Eliel Benites, professor na Faculdade Intercultural Indígena (Faind), na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). São cer-ca de 50 mil indígenas que vivem em condições diversas. Alguns em terras e áreas de reserva, outros em retomadas e os que estão em piores condições são aqueles que estão nas beiras de estradas, nos acam-pamentos. “Nas reservas, as casas são muito juntas, ou seja, as famílias normalmente não têm muros como na cidade, as casas são divididas imaginariamente”, esclarece Eliel. “E nos acampamentos as barracas são muito abertas. Além disso, tem falta de alimentação e de nutrição neces-sária”, completa.

Um estudo realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Universidade Federal de Mi-nas Gerais (UFMG) levantou o grau de vulnerabilidade epidemiológica e social das terras indígenas. No Mato Grosso do Sul, elas “tiveram notas muito próximas à média de todas as

Mutirão para construção de casa no

território Akroá-Gamella também em

Viana

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terras indígenas do Brasil, cerca de 0,5”, diz Antonio Oviedo, pesquisa-dor do ISA. “Quanto mais próximo de 1, maior o risco”, explica. A pes-quisa cruzou dados de vulnerabilida-de social, disponibilidade de leitos hospitalares, números de casos por município, número de óbitos, perfil etário da população indígena, vias de acesso e outros fatores relacionados com a estrutura de atendimento da saúde indígena e mobilidade territo-rial. Oviedo observa que os casos da covid-19 no Mato Grosso do Sul não são poucos. “Esses casos estão cres-cendo a uma taxa de 10% a 12% ao dia, o que reforça a necessidade de medidas urgente nesses territórios”, observa.

O quilombo de Itamatatiua tem dois pontos comerciais, uma hospedagem e um centro de produção de cerâmi-ca que rende mensalmente cerca de R$ 1.800 às famílias que se dedicam a esse trabalho. Famosas, as cerâmi-cas locais pararam de ser vendidas. Neide de Jesus, uma das ceramistas, conta que o dinheiro está fazendo falta, mas calcula que, se fosse ne-cessário, “daria pra ficar um mês sem ir à cidade comprar”. Isto porque o quintal da sua família tem galinhas e algumas hortaliças. Além disso, mais

longe de casa, há uma roça de ma-caxeira, da qual fazem a farinha e o beiju. Da cidade, portanto, é preciso trazer arroz, feijão, café, açúcar, sal e gás.

Evanice Pereira Soares, sertaneja da comunidade Gameleira, em Itatim, no Sertão do Pajeú, em Pernambuco, não precisaria ir à cidade para bus-car alimento com tanta frequência. Entretanto ela tem de sacar mensal-mente o Bolsa Família, que sofreu um acréscimo por causa do auxílio emergencial, repasse do governo fe-deral para enfrentar a pandemia – “a dificuldade de tirar esse dinheiro, só ‘tu vendo’”, diz.

O município de Brejinho, onde ela normalmente vai fazer as transações, tem somente uma casa lotérica. “Quando chega na décima pessoa pra sacar, o dinheiro da cidade aca-bou” conta. A dificuldade de Nice é a mesma de outras milhares de pes-soas beneficiárias dos programas de transferência de renda e, agora, do auxílio emergencial: os deslocamen-tos para as áreas urbanas são obri-gatórios, pois o dinheiro tem de ser sacado em datas específicas. “Isso também impede de fazer a quarente-na”, lamenta.

Jardinagem na comunidade Lagoa da Favela, no Sertão do Pajeú (PE)

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Em Esperantina, no Piauí, Helena Gomes da Silva, quebradeira de coco e diretora da filial estadual da Coope-rativa Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (CINQCB), conta que, no seu caso, pode ficar, no má-ximo, uma semana sem ir à cidade. “Aqui em casa, ou a gente cria ou a gente tem roça”, diz ela, que vive com mais três familiares em um terreno de 200 por 50 metros, às margens de uma fazenda, no assentamento Ter-ritório Fortaleza. “Pra ficar mais dias sem ir à cidade, eu teria de começar a trocar produtos com os vizinhos, pra eles me darem o que não tenho”, acrescenta, pensando em qual seria a estratégia adotada para continuar alimentando a sua família no caso do fechamento mais intenso das áreas urbanas.

As 130 mulheres cooperadas da CIN-QCB do Piauí estão com dificuldade de vender seus produtos derivados. Helena administra oito unidades de produção espalhadas pelo estado. Diversas parcerias comerciais foram suspensas e o dinheiro já está fa-zendo falta no orçamento familiar, principalmente as vendas para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), uma ação federal que destina parte da produção da

agricultura familiar para as escolas. “Nós conversamos com os secretá-rios de Educação dos municípios, mas eles suspenderam o azeite e o mesocarpo [farinha de coco baba-çu]”, reclama Helena, contando que os diversos municípios para os quais elas fornecem os derivados do coco mantiveram somente a compra do óleo do babaçu. “É pouco pra quem tinha seu sustento”, lamenta.

O PNAE investe cerca de 1 bilhão de reais anualmente na agricultura fa-miliar, valor relativo aos 30% obriga-tórios a serem destinados para esse fim, conforme a lei 11.947, de 2009. Ele foi suspenso por algumas prefei-turas e estados imediatamente após a paralisação das aulas e só foi reto-mado quase um mês depois, quan-do foi publicada a lei 13.987, de 7 de abril, que autorizava a distribuição de cestas básicas às famílias de crianças matriculadas nas escolas, mesmo sem o retorno das aulas. Mas nem todos voltaram a comprar os pro-dutos. “A nossa reivindicação é que as prefeituras e os governos estadu-ais sigam comprando da agricultura familiar. É muito importante que o PNAE não pare”, alerta Denis Montei-ro, secretário executivo da Articula-ção Nacional de Agroecologia (ANA).

Coleta de juçara na comunidade Arenhengaua,

em Alcântara (MA)

Ao centro, menino limpa o galinheiro

na Comunidade Jatobá, também no

Sertão do Pajeú

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Os números da queda nas compras do PNAE ainda são desconhecidos, mas, conforme enfatiza Denis, “as rupturas de mercado foram muito significativas e generalizadas”.

Por causa da crise alimentar que o coronavírus pode provocar, a ANA elaborou uma proposta de aplicação emergencial de 1 bilhão de reais na agricultura familiar. Assinado por 877 organizações, redes e movimentos sociais de todo o Brasil, o documen-to de 23 páginas, intitulado “Comida saudável para o povo”, afirma que a garantia da segurança alimentar du-rante a pandemia do novo coronaví-rus é o fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que destina gêneros alimentícios produzidos por agricultores fami-liares para redes socioassistenciais, restaurantes populares, bancos de alimentos e hospitais. Uma nota téc-nica lançada em maio pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fundação vinculada ao Minis-tério da Economia, reafirma a neces-sidade do aporte de 1 bilhão de reais no PAA e mostra o crescimento no Produto Interno Bruto dos municí-pios que acessaram o programa nos anos anteriores.

Segundo a nota do Ipea intitulada “O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA): instrumento de dinamismo econômico, combate à pobreza e promoção da segurança alimentar e nutricional em tempos de covid-19”, 1 bilhão de reais beneficiariam cerca de 208 mil produtores e movimenta-riam 420 mil toneladas de alimentos. “A agricultura familiar tem uma gran-de capacidade de responder à polí-tica pública. Então, se o Estado diz ‘vamos comprar a produção do PAA e do PNAE’, os agricultores produ-zem mais, diversificam a produção. É muito importante que o governo faça essa sinalização”, explica Denis.

Para este ano estavam previstos so-mente 186 milhões de reais para o PAA, o menor investimento desde que o programa foi criado, em 2011. Mas uma boa notícia veio em 27 de abril, quando foi publicada uma Me-dida Provisória destinando 500 mi-lhões de reais para que o Ministério da Cidadania garanta a segurança alimentar durante a pandemia. “A situação de fome e má alimentação nas periferias é grave. A situação de perda de alimentos no campo tam-bém é grave, por isso a gente insiste

Área urbana de Alcântara (MA), onde comunidades tradicionais decidiram isolar-se preventivamente

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no aporte de 1 bilhão de reais. Mas de fato é uma notícia importante”, destaca Denis, observando que os alimentos plantados no campo che-gam, claro, às cidades. A nota téc-nica do Ipea recomenda que sejam ampliadas as ações do programa nos anos subsequentes. “É emergencial, mas é também estruturante”, finaliza.

No norte de Minas Gerais, a Coo-perativa dos Agricultores Familiares Grande Sertão, que conta com 262 sócios, sentiu o impacto da suspen-são das feiras livres e das vendas, de modo geral. Tentando encontrar uma solução para não perder ali-mentos, Wagner Pereira dos Santos, presidente da cooperativa, conta que “a gente começou a distribuir”. E distribuíram quatro mil cestas em 21 municípios, pois a ideia cresceu. A Fundação Banco do Brasil subsi-diou a ação, que custou R$ 411 mil. Os produtos, conforme Wagner, vie-ram de outras seis cooperativas par-ceiras. “Conseguimos mobilizar 144 toneladas”, diz ele, afirmando que o engajamento dos agricultores foi imediato para a montagem de uma cesta com 11 itens, que contou com produtos regionais tais como óleo de pequi, derivados de leite e polvilho, além de frutas e legumes. “O recurso conseguiu atender às duas pontas: os agricultores, que não estavam conseguindo vender, e as famílias, que estavam com necessidade”.

Pés de cafés que “ninguém” plantou são encontrados em meio ao pouco que sobrou de mata nativa, na Bai-xada Maranhense, no território indí-gena Akroá-Gamella, que tem cerca de 10 mil hectares. As plantações são herança das gerações anteriores, que cultivaram café em quantidade suficiente para alimentar núcleos fa-miliares extensos. “Penso ser urgente o debate sobre a soberania alimen-tar em nossos territórios. Enquanto a gente depender do supermercado, sempre seremos dominados.”, afirma Kum’Tum Akroá-Gamella, que vê no

momento da pandemia a necessida-de de reforçar um debate que sempre foi importante aos povos indígenas e comunidades tradicionais: o da segu-rança e soberania alimentar.

A questão, entretanto, encontra um empecilho prático: a falta de terra e a dificuldade de acessar locais de cole-ta e caça. “Sem acesso livre a guari-manzais, juçarais, rios e lagos, bacu-rizais, babaçuais e lugares sagrados”, relata Kum’Tum, “as práticas alimen-tares e medicinais tradicionais foram abandonadas”. O café abundante na terra Akroá-Gamella, hoje em dia, é só uma memória de tempos passa-dos, quando o território ainda não havia sido atravessado por uma ro-dovia e uma linha de energia elétrica. A passagem dos empreendimentos e também a grilagem retalharam a ter-ra. “O resultado foi o confinamento numa pequena porção do nosso ter-ritório”, conta Kum’Tum.

O confinamento é experimentado por muitos outros povos indígenas e populações tradicionais. Ele é fruto dos impactos dos empreendimen-tos, desmatamentos, monoculturas e outras atividades, que podem passar ao largo ou dentro dos territórios, mas que, de qualquer modo, afetam a vida e os ciclos naturais de plantas e animais e, consequentemente, a qualidade da vida das pessoas que vivem junto à floresta. “Como posso explicar pra uma pessoa que está há um mês fechada em seu apartamen-to numa grande metrópole o que é meu isolamento?”, indaga Ailton Kre-nak no livro “O futuro não está à ven-da”, lançado em março pela editora Companhia das Letras, logo no início da quarentena.

Ailton está em isolamento social na Terra Indígena Krenak, às margens do rio Doce, em Minas Gerais. Ele conta que o seu povo está há mui-to tempo triste e em luto por causa da morte gradual do rio e que certa vez, quando lhe disseram que “usa-

Papagaio nas casas Guarani e Kaiowá, na Terra Indígena

Guyraroka em Caarapó (MS)

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riam a tecnologia para recuperar o rio Doce”, ele respondeu que para o rio sobreviver seria necessário “parar todas as atividades humanas” que in-cidem sobre ele. Como resposta ou-vira, na época, um retumbante “isso é impossível, o mundo não pode parar”. Recentemente, entretanto, o impossível desejo de Krenak aconte-ceu. Não no rio Doce, mas em outras localidades do planeta.

A paralisação temporária de ativida-des econômicas durante a quaren-tena adotada por diversos países fez com que o surpreendente fenômeno da despoluição acontecesse, por exemplo, na cordilheira do Himalaia, na Índia. A mais alta cadeia monta-nhosa do mundo ficou visível nova-mente, para a surpresa dos habitan-tes de pequenas cidades ao norte do país. Estupefatos, eles publicaram nas redes sociais fotos do evento, que não acontecia havia anos. Tam-bém na China, onde o vírus apareceu pela primeira vez, imagens de satélite publicadas pela Nasa, agência espa-cial norte-americana, em março mos-traram uma visível redução da polui-ção atmosférica, o que,“ao menos em parte”, conforme a agência, é causa-do pela desaceleração econômica resultante do período de quarentena imposto pela pandemia.

No Brasil, nada disso aconteceu. O vírus foi incapaz de conter as degra-dações ambientais e o desmatamen-to na Amazônia já bateu recordes. O alerta trimestral do Instituto Na-cional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que nos meses de janeiro, fevereiro e março houve um aumen-to de 51,45% no desmatamento da Amazônia se comparado ao mes-mo período de 2019. O número é superior também aos quatro anos precedentes. Para o mês de abril, o boletim mensal do Instituto do Ho-mem e do Meio Ambiente da Ama-zônia (Imazon) trouxe dados ainda mais alarmantes: o desmatamento na Amazônia Legal, segundo o Sis-tema de Alerta de Desmatamento, aumentou 171%. Esse número supera o registrado na última década para o mês de abril. Para maio e junho ainda não havia dados disponíveis até o fe-chamento desta edição.

“Surtos epidêmicos estão atrelados às atividades de desmatamento”, é o que afirma o pós-graduando em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Joel Henrique Ellwanger. Jun-tamente com outros 12 autores, en-tre eles Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Ellwanger publicou nos Anais da Academia Brasileira de Ciência um texto sobre os impactos do desmatamento da Amazônia em doenças infecciosas. Os autores ex-plicam que a dengue a febre amarela e a malária são decorrentes, entre outras coisas, da supressão da flo-resta, que funciona como uma bar-reira natural contra a propagação de doenças comuns aos animais nos se-res humanos. “O problema é quando a gente perturba o equilíbrio dos pa-tógenos e seus hospedeiros. Aí é que as doenças podem acabar emergin-do”, esclarece. “Agora o mundo está acordando, mas o pessoal alerta há muitas décadas que existe um perigo e que outras epidemias podem vir no futuro”, anuncia Fearnside.

Reunião da Coordenação de Licenciamento Ambiental com os Akroá-Gamella em Viana (MA)

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O vírus trouxe para o centro da discussão, portanto, questões am-bientais e econômicas. Rob Walace, biólogo evolucionista estadunidense, autor do livro “Pandemia e agronegó-cio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência”, publicado no Brasil pela editora Elefante, conta que, pesqui-sando o H5N1 – o vírus da gripe avi-ária, que surgiu em Guangdong, na China, na década de 1990 –, come-çou a examinar a geografia econômi-ca das áreas onde a doença ocorria, “particularmente como um setor agrícola modifica as trajetórias dos patógenos”. Percebeu que o vírus era resultado do modo como passamos a criar animais nos últimos 40 anos. “Na minha área, epidemiologia evo-lutiva, cheguei à conclusão de que a Big Food entrou em aliança estratégi-ca com a gripe”, diz ele, responsabi-lizando o método de criação de aves em cativeiro como um banquete para os micro-organismos.

No Mato Grosso, um dos estados que mais desmataram a Amazônia em 2018 e 2019, está isolado Raoni Metuktire, o cacique Raoni, da etnia Caiapó. Por vídeo, Raoni alerta: “Se não pensarmos no amanhã, logo virão outras coisas piores”. O líder indígena recordou as inúmeras vezes

em que mencionou o risco de gran-des catástrofes caso a destruição das florestas não fosse interrompi-da. Assim como Raoni, o yanomami Davi Kopenawa, autor do livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, também associa o fim da humanidade à destruição am-biental. No livro, teorias indígenas e científicas coincidem, pois quando a floresta for totalmente destruída os xamãs “não serão capazes de es-pantar as fumaças de epidemias”. E os cientistas concordam: “Provavel-mente estamos no limite em termos de quanto desmatamento deve ser permitido. É importante entender as razões para não desmatar mais”, afir-ma Fearnside.

O que cientistas e xamãs estão alertando é a mesma coisa. Se o desmatamento avançar, o novo co-ronavírus e a pandemia que esta-mos vivendo serão só o começo de um ciclo de doenças epidêmicas. Ou seja, é o prelúdio da “queda do céu” descrita por Kopenawa, quan-do tanto indígenas quanto brancos “morreremos uns atrás dos outros”. Todos os xamãs acabarão morrendo, diz Kopenawa. E quando não houver mais nenhum deles vivo, o céu vai desabar, prevê.

Iniciativas e doações

Diversas inciativas indepen-dentes e da sociedade civil

organizada têm surgido para minimizar a falta de alimen-tos, itens de higiene, medi-camentos e equipamentos de proteção nas comunida-

des camponesas, tradi-cionais e indígenas. Rifas, fundos, vaquinha on-line,

cursos e lives colaborativas são algumas das iniciativas listadas nos sites e redes sociais que passaram a reunir uma infinidade de

campanhas que estão sendo criadas o todo momento.

A organização não--governamental Instituto

Socioambiental lançou duas plataformas de monito-ramento da situação dos

povos indígenas e quilom-bolas diante da pandemia. Nelas cadastrou mais de 60 campanhas de arrecadação administradas pelas próprias

comunidades. Para conferir, acesse

www.covid19.socioambiental.org e

www.quilombosemcovid19.org.

Acampamento Guarani e Kaiowá às margens da estrada em Dourados (MS)

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Pescadores da ilha São Vicente

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viagEm

Ilhas de natureza, história e cultura

Uma viagem ao arquipélago de Cabo Verde, terra de encantos que vão muito além da beleza

natural

Lena TrindadeÉ África, sim! Mas sem leões, gira-fas, elefantes, nem grandes exten-sões de savanas. E no entanto, a cada dia, atrai mais e mais turistas e olhares do mundo inteiro. A que se deve tamanho interesse por Cabo Verde? Podemos elencar uma série de fatores que vão muito além de uma fauna excepcional e tudo o mais que povoa o imaginário desse continente.

Por ser um país insular, Cabo Verde oferece uma variedade paisagística incomum. Tem clima quente durante o ano inteiro. E, diferentemente das famosas reservas ambientais africa-nas, tem uma riqueza cultural imen-sa, sobretudo na música. Ou seja: vai muito além da geografia, que tam-bém reúne grandes atrativos.

São dez ilhas vulcânicas pequenas e montanhosas que formam esse belo arquipélago localizado a apenas 450 quilômetros da costa africana e si-tuado na região central do oceano Atlântico. Às vezes de um verde-es-meralda deslumbrante; em outras, azulado e com areias muito brancas; ou ainda de areias e pedras pretas

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de beleza singular. Praticamente to-das as dez ilhas são habitadas, com exceção da Ilha de Santa Luzia, clas-sificada como reserva natural e usa-da para estudos científicos. As ou-tras são Ilha do Sal, Ilha do Fogo, Ilha de Santo Antão, Ilha de São Vicente, Ilha de Santiago, Ilha Brava, Ilha de São Nicolau, Ilha de Boa Vista e Ilha de Maio.

HistóriaAté o século 15, essas dez ilhas eram desabitadas. Então chegaram os portugueses, no auge do período das grandes navegações marítimas, que se estendeu até o século se-guinte. Portugal precisava ter maior participação no comércio europeu, por isso investiu pesado nos estu-dos náuticos, tornando-se um país comercial com os melhores portos e formando grandes navegadores. É dessa época a famosa Escola de Sagres.

O objetivo maior era chegar ao grande polo comercial no orien-te: as Índias. Para isso precisavam contornar a costa africana. Con-quistar novas terras, chegar aos territórios ricos em metais precio-sos, criar um amplo mercado e ter acesso às especiarias asiáticas, um comércio altamente rentável na época: estes eram os objeti-vos e interesses econômicos na expansão marítima. Foi momento de grandes avanços na constru-ção naval, na ciência astrolábica, na cartografia etc.

Além dessa motivação econômica, havia também motivações de ori-gem cultural. Como, por exemplo, o desejo de propagar a fé cristã e en-contrar o éden, o paraíso na Terra. Sem esquecer que o ser humano é movido pelo espírito de aventura e que na época os portugueses eram os mais preparados para realizar tais desejos.

Mural em homenagem à cantora Cesaria Évora na capital, Mindelo

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Os colonizadores chegaram ao ar-quipélago de Cabo Verde em 1462 e encontraram dez ilhas desabitadas numa localização ideal para o co-mércio dos escravos no Atlântico. O arquipélago fica no meio do Atlân-tico, o que favorece o reabasteci-mento das embarcações. Não havia naquelas terras atrativos naturais como metais preciosos, especiarias e outras riquezas que atraíssem a cobiça do colonizador, mas sim-plesmente um excelente ponto de referência no meio do oceano. Cabo Verde – mais especificamente a Ilha de Santiago, onde hoje fica a capital do país, Praia – vem a ser o primeiro assentamento português europeu permanente nos trópicos, prospe-rando intensamente, até o século 16, com o intenso comércio de es-cravos. Até hoje, essa localização estratégica favorece a economia e o turismo, que ganha maior relevância a cada dia.

Cabo Verde, sobretudo a Ilha de San-tiago, cresceu e teve grande impor-tância como entreposto comercial e de abastecimento. Esse crescimento repercutia em todos os segmentos da vida cabo-verdiana. As ilhas fo-ram visitadas pelo grande naturalista Charles Darwin em 1832, quando ele aportou seu Beagle pela primeira vez na cidade de Praia.

Essa situação de prosperidade per-durou até 1876, quando o tráfico de escravos foi abolido. A educação cabo-verdiana foi, no período colo-nial, um patrimônio do sistema co-lonial português. Mesmo assim, nos anos de 1842/43, mais de 38 escolas de ensino primário foram criadas, o que trouxe melhorias significativas ao sistema de ensino. Além disso, data também dessa época o surgi-mento da imprensa no país, com o surgimento de vários jornais e re-vistas trazendo uma dinâmica nova no universo cultural. A língua por-tuguesa era, e ainda é, a oficial do arquipélago. Mas é o crioulo, uma mistura do português com diversos dialetos africanos, a língua originária ainda hoje bastante falada. Por ser formada de vários dialetos, mostra pequenas diferenças de ilha pra ilha.

Com a abolição do tráfico de escra-vos (em 1876), a Europa deixa de ter grandes interesses comerciais em Cabo Verde e o arquijpélago entra num período de declínio. Só bem mais tarde, por volta de 1945/50, essa relação comercial volta a existir e a se intensificar – agora, claro, com novos interesses e novas bases.

Mesmo com Portugal a dar as cos-tas, depois de abolido o tráfico dos escravos, Cabo Verde não sucumbiu, embora tenha passado por grandes dificuldades. Havia uma parte da população, mais esclarecida, que já relutava em aceitar a maneira como a metrópole portuguesa respondia aos veementes protestos e reivindi-cações. A imprensa cabo-verdiana

Mercado na Ilha de Santiago

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tinha uma atuação importante nessa luta pela independência de Portugal. Por volta de 1950, Cabo Verde se aliou à Guiné Bissau e formou um movimento pela libertação e inde-pendência dos povos africanos. Esse movimento, que teve líderes como Amílcar Cabral, resultou na criação do Partido Africano para a Indepen-dência da Guiné Bissau e Cabo Ver-de, que após a segunda Guerra Mun-dial ganhou força, culminando com a Independência, em julho de 1975.

Cabo Verde hojeO cabo-verdiano é um povo orgulho-so e, muitas vezes, até parece negar sua africanidade. Alguns estudiosos chegam a dizer que eles se sentem superiores porque são mestiços. “Há sempre uma elite, mesmo mulata ou negra, que se acha superior”, diz o sociólogo Redy Wilson em uma en-trevista. “Mestiço”, afirma, “é uma identidade oportunista”, pois quan-do se quer ser branco, se é; quando se quer ser negro, também”. Mas é bom lembrar que a África é o tercei-ro continente mais extenso, com 30 milhões de quilômetros quadrados, e o segundo mais populoso da Terra. Com seus 54 países, reúne mais de um bilhão de pessoas. Impossível, portanto, achar unidade. São inúme-ros dialetos, várias línguas oficiais, diversas religiões, diferentes tipos de habitações, habitats naturais que vão de desertos a densas florestas e vastas savanas, regimes políticos e atividades econômicas bem distin-tos. Há uma África subdesenvolvida e outra desenvolvida e rica.

Cabo Verde é o quarto país da África com maior IDH. Tem um governo de-mocrático e estabilidade política. Em 2008, ganhou status de país em de-senvolvimento, já não se vê miséria nas ruas. A escola primária é gratuita e obrigatória até os 14 anos de ida-de. “As relações políticas e econômi-cas são progressivas. Mas será que as relações sociais são tranquilas? A

sociedade ainda tem traumas pro-fundos da escravatura, do colonialis-mo, de violência racial” diz César S. Cardoso, ativista cultural contempo-râneo. Os intelectuais de Cabo Verde recusam essa mitologia que associa a África ao selvagem, ao obscuro, ao oculto e ao mistério.

E, na verdade, é inegável o crescente desenvolvimento em quase todos os segmentos. Os transportes aéreos, marítimos e terrestres vêm mostran-do grande impulso para atender às constantes demandas da vida mo-derna. Cabo Verde tem uma locali-zação privilegiada, o que favorece o turismo, de relevância progressi-vamente maior. Cada ilha tem uma atração diferente, mas as ilhas de Sal, Boa Vista e Fogo são as de atra-ções naturais mais procuradas. As ilhas de Santiago e São Vicente são as mais cosmopolitas e oferecem um cardápio variado de atrações cultu-rais, com música, arquitetura, arte-sanato, bares, restaurantes e casas noturnas. Praia, capital de Santiago, é a mais populosa do arquipélago, com aproximadamente 150 mil habi-tantes, e é o centro político e econô-mico de Cabo Verde. A primeira a ser povoada, em 1615. Mindelo, capital de São Vicente, foi eleita em 2003 a capital lusófona da cultura. É a se-gunda maior cidade cabo-verdiana. A falta de recursos naturais e as se-cas prolongadas são compensadas pelo clima acolhedor e alegre do povo, que até criou a palavra mora-beza, que expressa esse jeito simpá-tico e sedutor de receber as pessoas.

Por não ter nascentes, a Ilha de Sal ficou desabitada até a segunda década do século 19. Apenas em 1833 se investiu em um sistema de captação das águas chuvosas. Só então Sal começou a ser povoada e a exploração das salinas criou uma economia que trouxe dinamismo e gente para a região. A ilha é plana, árida, chove muito pouco e o vento e o sol são constantes, o que garante

Artesão da cerâmica trabalhando, na ilha de Santo Antão

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Piscina natural na ilha do Sal

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o ano inteiro a prática dos esportes como a pesca, o kitesurf e o mergu-lho. Além de praias lindas, há em Sal uma atração imperdível: a Buracona, uma cratera feita de lava vulcânica e invadida pela água cristalina do mar, formando uma piscina natural ro-chosa irresistível. Pela manhã, a luz do sol atravessa um buraco escuro entre as pedras e revela um “olho azul” nas profundezas.

A capital de Sal é a cidade de Espar-gos, que tem aproximadamente 20 mil habitantes. Toda a ilha tem em torno de 40 mil. A estrutura hotelei-ra é bem forte e o clima sem chuvas garante um fluxo de turistas quase o ano inteiro. Quem conhece o Mar Morto vê semelhanças na paisagem e no interessante flutuar devido à alta concentração de sal. Na ilha de Sal, o aeroporto Amilcar Cabral é ponto de chegada e partida de voos internacionais. Do Brasil saem voos diretos de Fortaleza, Salvador e Recife.

Outra ilha que atrai muitos turistas é a ilha do Fogo. O clima de todo o ar-quipélago é árido ou semiárido, mas aqui a aridez encontra sua expres-são mais verdadeira. É comum anos a ocorrência de anos seguidos sem chuva. Pouco verde, muito sol, qua-se nenhuma sombra e ventos cons-tantes e cortantes, sobretudo nos meses de dezembro a julho, quando esses ventos vindos do deserto do Saara ficam mais fortes, chegando mesmo a provocar a interrupção dos serviços nos aeroportos.

Mas toda essa singularidade lhe garante uma beleza única e, apesar de toda a improbabilidade, as terras nessa ilha são férteis, garantindo uma produção de café e vinho de qualidade apreciada. Parece ser isso atribuído à característica do solo de “lafite” que é um material de constru-ção mais leve e mais resistente que a areia. É realmente surpreendente, para uma topografia comparada à Lua, plantar, colher e produzir um vinho de qualidade como é o vinho

Ilha do Fogo: topografia comparada à Lua

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Chã, da região de Chã das Caldeiras, nas encostas de um vulcão.

Fogo é beleza e perigo. Talvez por isso mesmo atraia cada dia mais turistas. O perigo é vivo e real, pois é uma ilha vulcânica que se eleva a quase 3 mil metros acima do nível do mar e tem seu cume a 2.829 metros, no Pico do Fogo. Sua última erupção é recente – de novembro de 2014 a fevereiro de 2015 – e destruiu várias aldeias da região. Felizmente sem ví-timas, pois houve tempo de todos os habitantes locais se retirarem.

Em pouco tempo se conhece a pe-quena ilha, cuja capital é São Filipe. São aproximadamente 40 mil ha-bitantes e um casario agradável de sobrados, herança da colonização portuguesa.

Arte e culturaPor todo o arquipélago, a agradável música cabo-verdiana se faz presen-te. Hotéis, aeroportos, mercados, restaurantes, casas noturnas... Onde

quer que se esteja, ouvem-se os va-riados tipos de música local: a mor-na, o batuque, a coladeira, o funamá ou o colá, que expressam sentimen-tos de alegria, euforia, nostalgia ou tristeza. Inegavelmente, Cesaria Évora – também conhecida como a Cantora dos Pés Descalços – é a voz de Cabo Verde. Sua linda e macia interpretação de Sodade projetou o país internacionalmente. No Brasil, gravou Caymmi (“É Doce Morrer no Mar”) com Marisa Monte. Natural da ilha de São Vicente, faleceu em 2011. Hoje seu nome batiza o aeroporto internacional de Mindelo. Indiscuti-velmente, a música mostra a força cultural de Cabo Verde e é atrativo certo nas diversas casas noturnas e festivais.

Outro segmento cultural de grande poder na cultura cabo-verdiana é o artesanato, que tem na tecelagem e na cerâmica a real expressão da identidade do povo. O pano de terra tem lugar de destaque por ser obra artesanal originalmente importante

Em Santo Antão, agricultura na cratera de

um vulcão extinto

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na indumentária local. Produzidos em teares rudimentares, os panos de terra, ou panos de obra, são fai-xas estreitas e longas com motivos geométricos usados no vestuário e também como peça decorativa.

O designer têxtil brasileiro Renato Imbroisi, que prepara uma exposi-ção para o Sesc São Paulo (Países Espelhados) sobre as semelhanças herdadas por nós dos países africa-nos, esteve recentemente em Cabo Verde e se impressionou com a qua-lidade e semelhança do artesanato em várias modalidades, sobretudo na cerâmica (moringas, cuscuzeiras e panelões de barro). “Na cestaria, encontrei vários tipos de cestos e tramas que são feitos idênticos no nordeste brasileiro”, contou.

Além das diversas semelhanças, o designer destaca a originalidade do artesanato em pedra porosa de lava vulcânica produzido na ilha de Fogo. “Artesanato ainda sem mui-ta variedade, mas de grande po-tencial pelo uso do material local”, diz Renato. Ele encontrou ainda muitos pontos de identificação na gastronomia (cachupa e nosso co-zido, por exemplo, à base de milho, mandioca, cana-de-açúcar e peixe); na arquitetura, na língua, na dança, na música... Afinal, nossa formação tem as mesmas raízes: África e Por-tugal. São Vicente é a ilha em que o artesanato tem mais força e vita-lidade. Na capital, Mindelo, fica o Centro Nacional de Artesanato, que forma artesãos e divulga a produ-ção cabo-verdiana.

A reconhecida jornalista Adélia Borges, especializada em design e autora do livro “Design + Artesa-nato: o Caminho Brasileiro” (Editora Terceiro Nome), tem uma estreita relação com Cabo Verde, particular-mente no segmento de design. Ela nos passou suas impressões: “Sou apaixonada, é um país sui-generis, com uma geografia peculiar, situa-

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do entre três continentes – África, Europa e América. A ida de africa-nos do continente e de europeus para a colonização gerou o que é considerada a nação em que a ex-periência da miscigenação foi mais longe. Alguém me disse: ‘Meu pai é café, minha mãe é leite e eu sou cappuccino’. Parece que a frase é comum. Me impressionou a beleza das pessoas – homens e mulheres, jovens e velhos, em lindos matizes de cores de pele contrastando, não raro, com olhos verdes”.

À luta pela independência política se seguiu a luta pela independência cultural, levada a cabo desde 1975, quando foi criado o Centro Nacional de Artesanato (CNA), hoje transfor-mado em Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD). “Te-nho acompanhado muito de perto a atuação desse centro, que a meu ver está na vanguarda, hoje, no cenário

internacional da promoção da cul-tura como vetor de desenvolvimen-to social”, continua Adélia. “Ele está vinculado ao Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, que atua em várias outras linguagens cultu-rais com uma competência de fazer inveja a nós aqui do outro lado do Atlântico. O Ministério foi um dos responsáveis pelo reconhecimento da morna – o gênero musical imor-talizado por Cesária Évora – como Patrimônio Cultural Imaterial da Hu-manidade pela Unesco, em 2019. O CNAD fica em Mindelo, na Ilha de São Vicente. Chegar ali é uma ale-gria sempre, ainda num aeropor-to que é batizado com o nome de Cesária. Deve ser ignorância minha, mas não conheço outro aeroporto com nome de mulher. À distância, só me resta curtir a saudade – ou sodade, em crioulo, a língua do povo cabo-verdiano – ao som de suas vozes potentes”, conclui.

À esquerda, no alto, a Ribeira Grande, em Santo Antão. Na parte de baixo,

o Mercado da Praia: beleza, riqueza cultural e

diversidade

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A terra inabitável: uma história do futuro David Wallace-Wells

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Qual o valor da natureza?Daniel Braga Lourenço

Editora Elefante, 448 páginas

A pergunta do título norteia a busca do autor pela fundamentação teórica de uma ética do meio ambiente, seu valor intrínseco e os direitos dos seres vivos. A compreensão do lugar que o ser huma-no ocupa no mundo e de suas relações com os demais elementos naturais pode lançar um novo olhar sobre o que estamos ou não autorizados a fazer.

Mude de alimentação e salve o planeta: o Plano OMD Suzy Amis Cameron

Editora Senac SP, 368 páginas

Uma pequena mudança na alimentação pode proporcionar melho-ria geral da saúde e redução à metade da pegada de carbono: é o que defende a autora neste livro. Ela apresenta um programa ali-mentar – o Plano OMD – que consiste em trocar uma refeição por dia à base de carne ou laticínios por outra de origem vegetal.

O antropoceno e a ciência do Sistema Terra José Eli da Veiga

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Estaria a humanidade comprometendo a biosfera de maneira irre-versível? Um dos principais estudiosos brasileiros do desenvolvi-mento sustentável analisa a emergência do antropoceno à luz dos debates científicos mais recentes e discute os parâmetros episte-mológicos que poderão ajudar de uma nova ciência.

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