anotações da aula sobre crase

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Prof. Carlos Nougué Todos os direitos reservados. ANOTAÇÕES DA AULA SOBRE CRASE Carlos Nougué 1) Sentidos do termo crase na gramática portuguesa: a) fusão de quaisquer vogais iguais (como, por exemplo, em dolor > door > dor); b) fusão da preposição a com: • o artigo feminino a, as; • o pronome demonstrativo a, as; • o a da locução pronominal a qual, as quais; • o “a” inicial de aquele, aquela, aquilo. c) acento indicativo da crase que se dá nos casos abrangidos no item b acima (e também chamado acento grave). OBSERVAÇÃO. Hoje em dia, o acento grave só se usa nestes casos. 2) Portanto, há uma só regra da crase propriamente dia, ou seja, acentua-se o a quando se trata das fusões indicadas no mesmo item b. Exemplos da regra: “Dei o livro à menina”, ou seja, “Dei o livro a a [= à] menina”. E é assim porque “quem dá algo dá este algo a alguém”, e neste caso alguém não só é feminino, mas se antecede do artigo a. Prova: se se substituir este alguém feminino por um nome masculino, aparecerá ao (ou seja, preposição a + artigo o): “Dei o livro ao menino”. “Dei o livro à [a (preposição) + a (pronome)] que o mereceu”; “... àquele [a + aquele] ou àquela [a + aquele] que o mereceu”; “Referiu-se àquilo [a + aquilo]”. “Esta é a obra à [a + a] qual Marcos se referiu”. Prova: se se substituir “obra” por um equivalente masculino, aparecerá ao [a + o] qual: “Este é o livro ao [a + o] qual Marcos se referiu”. 1 1 Observação estilística: em orações como esta, e ressalvados os casos de ambiguidade, é mais elegante usar a que que à qual ou ao qual. Este porém é assunto para outro lugar. 1

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  • Prof. Carlos Nougu Todos os direitos reservados.

    ANOTAES DA AULA SOBRE CRASE

    Carlos Nougu

    1) Sentidos do termo crase na gramtica portuguesa:

    a) fuso de quaisquer vogais iguais (como, por exemplo, em dolor > door >

    dor);

    b) fuso da preposio a com:

    o artigo feminino a, as;

    o pronome demonstrativo a, as;

    o a da locuo pronominal a qual, as quais;

    o a inicial de aquele, aquela, aquilo.

    c) acento indicativo da crase que se d nos casos abrangidos no item b acima

    (e tambm chamado acento grave).

    OBSERVAO. Hoje em dia, o acento grave s se usa nestes casos.

    2) Portanto, h uma s regra da crase propriamente dia, ou seja, acentua-se

    o a quando se trata das fuses indicadas no mesmo item b. Exemplos da regra:

    Dei o livro menina, ou seja, Dei o livro a a [= ] menina. E assim

    porque quem d algo d este algo a algum, e neste caso algum no s

    feminino, mas se antecede do artigo a. Prova: se se substituir este algum

    feminino por um nome masculino, aparecer ao (ou seja, preposio a + artigo

    o): Dei o livro ao menino.

    Dei o livro [a (preposio) + a (pronome)] que o mereceu; ... quele

    [a + aquele] ou quela [a + aquele] que o mereceu; Referiu-se quilo [a +

    aquilo].

    Esta a obra [a + a] qual Marcos se referiu. Prova: se se substituir

    obra por um equivalente masculino, aparecer ao [a + o] qual: Este o livro

    ao [a + o] qual Marcos se referiu.1

    1 Observao estilstica: em oraes como esta, e ressalvados os casos de ambiguidade, mais elegante usar a que que qual ou ao qual. Este porm assunto para outro lugar.

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  • Prof. Carlos Nougu Todos os direitos reservados.

    ATENO:

    No se enquadram na regra casos como Lemos um artigo mdico sobre

    pacientes submetidos a quimioterapia. Veja-se que aqui h somente a

    preposio a, e a prova que, se comutarmos quimioterapia por uma palavra

    masculina, tampouco aparecer artigo: Lemos um artigo mdico sobre

    pacientes submetidos a tratamento quimioterpico. Basta porm que se

    requeira o artigo para que se d a crase: O paciente que se submeteu [a + a]

    sesso de quimioterapia passa bem, ou seja, a esta sesso concreta de

    quimioterapia, razo por que aparece ao em O paciente que se submeteu ao [a

    + o = este] tratamento quimioterpico passa bem. Note-se que neste caso o

    artigo pode sempre substituir-se por esta, este.

    Tampouco se enquadram nela casos como A pretenso da Lingustica a

    cincia, em que tambm s se d a preposio a. A prova , que se comutarmos

    cincia por uma palavra masculina, tampouco aparecer artigo: Sua

    pretenso a tratado cientfico. Note-se que nestes casos a preposio pode

    seguir-se do verbo ser: A pretenso da Lingustica a (ser) cincia.

    Tampouco o fazem casos como Isto cheira a armadilha, em que se trata,

    uma vez mais, da pura preposio. A prova que, se se comuta a palavra

    feminina por uma masculina, se ter ainda a pura preposio: Isto cheira a

    golpe.

    Tampouco, ainda, casos como Jos foi a casa e j volta. Novamente, no

    se d aqui seno a preposio a, e a prova que, se se pergunta onde est Jos,

    se ter por resposta: Est em casa (e no na [em + a] casa). Note-se que, em

    casos como este, se trata da casa do sujeito da orao (aqui de Jos). Basta

    porm que no se trate da casa do sujeito da orao ou que tal casa esteja

    determinada de algum modo para que aparea o artigo e, pois, se d a crase:

    Foi [a + a] casa da irm (Est na [em + a] casa da irm; Foi [a + a] casa

    de campo buscar uns papis (Est na [em + a] casa de campo) e veja-se

    que, conquanto tambm esta casa seja do sujeito da orao, est ela

    determinada por de campo.2 Uma prova de que no se d crase em Jos foi a

    casa e j volta que, se se comuta casa por palcio e este palcio a residncia

    do rei, prncipe, etc., que sujeito da orao, ento tampouco aparecer o

    2 Em muitas regies lusfonas, no entanto, dir-se- Est em casa da irm, do amigo, etc. (como alis em espanhol). uso igualmente legtimo.

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  • Prof. Carlos Nougu Todos os direitos reservados.

    artigo: O rei voltou a [preposio pura] palcio para uma reunio (O rei est

    em [preposio pura] palcio [ou seja, em sua casa]). Ateno ainda:

    Chegamos cedo a casa, porque os verbos de movimento ir e chegar se regem

    da preposio a (e no da preposio em).3

    Tampouco casos como O capito do navio foi a terra, em que ainda s se

    d a preposio pura. Isto se prova mostrando que terra tem aqui o sentido de

    terra firme e que o contrrio de terra firme bordo (de embarcao), razo

    por que, assim como em estar a bordo (de embarcao) se d a preposio

    pura, assim tambm em ir a terra. No confundi-lo, porm, com este outro

    caso: Os astronautas chegaram [a + a] Terra, no qual, obviamente, se d a

    crase porque Terra o nome de nosso planeta e requer o artigo a; nem com

    estes: Iremos [a + a] terra de nossos pais, Queria voltar [a + a] terra

    natal, O fazendeiro dedicava-se inteiramente [a + a] terra, nos quais terra

    igualmente no tem o sentido de terra firme.

    Tampouco se enquadram na regra casos como Foram a Paris para rever

    uns amigos, e a prova que, se se pergunta onde esto eles, se ter por

    resposta: Esto em Paris (e no na Paris). Mas haver crase, sim, em

    Foram [a + a] Espanha para conhecer Toledo, e a prova que, se se pergunta

    onde esto eles, se ter por resposta: Esto na [em + a] Espanha. Note-se

    porm que em Portugal se escrever Foram a Espanha, a frica, etc., porque

    l se diz Esto em Espanha, em frica, etc., ou seja, os portugueses no

    antepem o artigo ao nome de certos continentes e pases a que o antepomos os

    brasileiros.

    Tampouco, ainda, casos como Entregamos o convite a Maria, em que se

    d a pura preposio a. A prova que, se comutarmos este nome prprio

    feminino por um masculino, ainda no aparecer o artigo: Entregamos o

    convite a Paulo. Note-se todavia que, se Maria ou Paulo forem ntimos do

    sujeito da orao, ento se poder pr o artigo e se dar pois a crase:

    Entregamos o convite Maria (ou ao Paulo). O fazer nomes prprios de

    pessoa anteceder-se de artigo (o que de certo modo contraria o carter de

    individualidade nica significado pelos nomes prprios) muito estendido na

    fala de todos os pases lusfonos; mas deve evitar-se na escrita, sobretudo se se

    3 Quando no regidos de de, tambm se regem de a os verbos voltar, retornar, regressar: Voltou a casa, ao bairro de sua infncia, etc.

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    trata de pessoa no ntima do sujeito da orao. So pois de evitar construes

    como Referia-me ao Putin, ao Obama. Escreva-se: Referia-me a Putin, a

    Obama, em que o a a pura preposio de que se rege a forma verbal referir-

    se.

    Tampouco, ademais, casos como Deu o livro a sua amiga, e assim

    porque, uma vez mais, este a a pura preposio, o que se prova, uma vez mais,

    pela comutao do substantivo feminino por um masculino: Deu o livro a seu

    amigo. Sucede porm que, contrariamente ao espanhol, em que nunca

    aparece artigo antes de possessivo, no portugus atual tanto pode aparecer

    como no faz-lo (embora seja prefervel que no aparea em certos casos,

    assunto que, no entanto, extrapola o mbito desta aula). Com efeito, podemos

    dizer indiferentemente: Deu o livro a ou sua amiga, Deu o livro a ou ao seu

    amigo. Sugere-se apenas que se mantenha certa coerncia ao longo de um

    texto: ou se usa o artigo antes de possessivo, ou no se usa, parte

    determinadas situaes em que devemos us-lo tambm por necessidade

    diacrtica.4 Est neste caso o mesmo exemplo Deu o livro a sua amiga, no qual

    no est de todo claro quem deu o livro (ele ou a sua amiga?). Em casos

    assim, sugerimos se use sempre o acento indicativo de crase.5

    Tampouco, por fim, em expresses como cara a cara, face a face, frente

    a frente, semana a semana, etc., nas quais nunca se d o artigo a, mas to

    somente a preposio pura.

    3) Considerando todo o dito acima, pode insistir-se no bvio:

    a) No se d crase na construo a + qualquer palavra feminina no plural

    (Entrega-se a obras de caridade); nem antes de palavra masculina, nem de

    4 Usamos diacrtico em seu sentido etimolgico: do gr. diakritiks, , n, que distingue, separa, e que pois evita anfibologia ou ambiguidade. Neste sentido, como o mostraremos extensamente no curso Para Bem Escrever na Lngua Portuguesa e na Suma Gramatical da Lngua Portuguesa, podem exercer funo diacrtica no s os acentos, mas os sinais de pontuao, as repeties, etc. 5 Sempre se d crase antes de possessivo feminino se no se lhe segue, explicitamente, um substantivo: A admoestao dirigia-se a [preposio pura, embora, com visto, pudesse pr-se a + a = ] minha amiga, no [a + a = nica possibilidade] sua. A prova que, se comutarmos os femininos pelos respectivos masculinos, encontraremos: A admoestao dirigia-se a [ou ao] meu amigo, no ao [a + o = nica possibilidade] seu.

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    verbo, nem de pronome pessoal, nem de pronome indefinido (algum, nenhum,

    etc.), nem dos demonstrativos este, esta, esse, essa, nem dos artigos um, uma.6

    b) No h infrao regra quando se pe: Aquele jovem escreve Euclides

    da Cunha, porque aqui o artigo a -o da palavra feminina elptica maneira:

    Escreve [a + a] maneira de Euclides da Cunha, e a prova que, se se comuta

    maneira por modo, se ter: Escreve ao [a + o] modo de Euclides da Cunha.

    c) Quanto aos chamados pronomes de tratamento, s alguns podem

    anteceder-se de crase: senhora, senhorita. Isto assim porque, em verdade, o

    artigo a PARTE INTEGRANTE destes pronomes, o que se prova se os comutamos

    pelos respectivos masculinos: Eu referia-me [a + a] senhora, Dona Isabel

    (Eu referia-me ao [a + o] senhor...).

    4) Se, pois, como visto, h uma e apenas uma regra da crase, sem excees,

    h porm um uso especial diacrtico do acento grave:7 deve pr-se este

    acento no a que inicia locues adverbiais, prepositivas e conjuntivas com

    ncleo feminino, independentemente de este a ser resultante de crase ou no

    s-lo.

    Exemplos em que h tal crase:

    Falar s [a + as] claras (locuo adverbial).

    O projeto esteve [a + a] beira do fracasso (locuo prepositiva).

    Exemplos em que no h tal crase:

    Venda vontade (locuo adverbial). Observe-se, por um lado, que aqui

    no se d crase, mas somente pura preposio, e a prova que, se se comuta a

    palavra feminina vontade por uma masculina de significado prximo, ainda no

    6 Ateno, todavia: se em Chegaremos a uma hora tardia no se d seno a preposio pura, no assim em Chegaremos [a + a] uma hora, porque neste caso no se trata de artigo, mas de numeral designativo de hora; e a prova que, se substituirmos neste caso uma por qualquer outro numeral designativo de hora, se dar indubitavelmente a crase: Chegaremos s [a + as] duas, trs, dez, doze... horas. 7 Uso praticamente unnime entre nossos melhores escritores at que alguns gramticos viessem negar a tradio e instaurar grande confuso neste assunto. Como dizemos na Suma Gramatical, conquanto o gramtico tenha de ser precipuamente normativo, no pode porm inventar uma lngua: quando comea seu ofcio, depara j com dado estado de lngua, que lhe cabe, sim, normatizar, mas no alterar a seu bel-prazer. Para a definio de padro e de erro, e por que critrios se podem estabelecer como tais, pedimos se espere o curso e a publicao da mesma Suma.

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    aparecer o artigo: Venda a gosto. E observe-se, por outro lado, que, se no

    pusssemos sobre a preposio a o acento grave, a frase padeceria de

    anfibologia ou ambiguidade: trata-se de algum vender livremente ou de algum

    vender sua vontade, por exemplo, ao inimigo?

    Escreva mo (locuo adverbial). Observe-se, por um lado, que ainda

    aqui no se d crase, mas somente pura preposio, e a prova que, se se

    comuta o ncleo substantivo feminino por um masculino do mesmo campo

    semntico, ainda no aparecer o artigo: Seguiu a p. E observe-se, por outro

    lado, que, se no pusssemos sobre a preposio a o acento grave, a frase

    padeceria de anfibologia ou ambiguidade: trata-se de escrever com caneta (ou

    lpis) ou de escrever a mo?

    Exemplo em que no se pode ter certeza de que h tal crase:

    Agiu [a + a] maneira de um lorde (locuo prepositiva). E no se pode

    ter tal certeza porque, se substituirmos maneira por modo, ainda assim no

    encontraremos soluo: porque, com efeito, pode dizer-se tanto ao modo como

    a modo (de um lorde, etc.).

    As locues conjuntivas:

    medida ou proporo que iam chegando...8

    Insista-se pois nesta regra (que s imprpria ou parcialmente pode

    chamar-se regra de crase): deve pr-se o acento grave no a que inicia locues

    adverbiais, prepositivas e conjuntivas com ncleo feminino. Mas por que deve

    pr-se tal acento no a de todas estas locues e no apenas no daquelas em que

    de fato seja resultante de crase e no das locues que impliquem efetiva

    anfibologia ou ambiguidade? Porque, como dizemos ainda em nossa Suma

    Gramatical e na mesma Apresentao desta pgina (a Questes Gramaticais), a

    Gramtica:

    deve dar-se como arte estritamente normativa da escrita, e, dentro de

    certos limites, tambm da fala;

    para tal, deve ter sempre em vista a manuteno e o fechamento de

    paradigmas;

    8 Estas, com efeito, so as duas nicas locues conjuntivas com tal formao. Ademais, no se confunda medida que com na medida em que: esta ltima causal, enquanto a primeira proporcional.

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    consequentemente, deve formular regras o mais possvel simples e de

    abrangncia o mais possvel universal o que implica esquivar, ainda quanto

    possvel, as excees.

    OBSERVAO FINAL. Note-se por esta simples aula que o conhecimento da Gramtica, e pois o bem escrever, no pode atingir-se mediante ms definies e classificaes tortas, nem mediante lies desconexas e no informadas por um todo coerente, nem, muito menos, mediante passes de mgica como os das gramticas de macetes. E assim em toda e qualquer lngua. Mas o que pode o ser humano sem o domnio de sua lngua? Por isso vos convidamos a singrar conosco o rio da Arte Gramatical, cujo curso nos ajuda a alcanar a foz da Sabedoria.

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