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1 ANO IV—#40 Vitória/ES Abril de 2018

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ANO IV—#40 Vitória/ES Abril de 2018

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Editor

Raphael Faé Baptista

Editoração:

Felipe Sellin

Colaboram nessa Edição:

Felipe Sellin

Pablo Machado

Raphael Faé Baptista

Wilson Garcia

Interaja conosco, sua opinião

é muito importante para nós:

[email protected]

Edição n° 41—Maio de 2018

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124 curtidas em publicação

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Editorial

No dia 03 de Maio, desencarnou

Luiz Antônio Gasparetto, um dos

médiuns mais destacados quanto à

fenomenologia e produção mediú-

nica no mundo.

Sem adentrar em pormenores, sua

trajetória traz importantes pontos

de reflexões sobre o espiritismo e a

prática espírita, especialmente na

relação entre mediunidade e dinhei-

ro. Certamente, um tema interes-

sante e espinhoso, que pretendemos

abordar nas próximas edições.

Por ora, no entanto, queremos res-

saltar apenas um ponto: a cultura

da “mediunidade da pobreza nos

olhos dos outros é refresco”. Nessa

cultura, toda a pobreza e todo o

desprendimento são exigidos do

médium. Porém, não foram e não

são poucas as pessoas e as institui-

ções que enriquecem à custa da

produção mediúnica alheia, cujo

dinheiro às vezes é usado em proje-

tos interessantes, às vezes na cons-

trução e manutenção de verdadei-

ros impérios materiais. Logo, para

o/a médium, toda a expiação nunca

é suficiente, dentro dos modelos de

santidade medieval que o público

espírita reproduz ao seu modo. So-

bre ele ou ela recaem todos os olhos

e toda a moral. Mas nada se fala

sobre quem é beneficiado financei-

ramente.

Dizendo isso, não estamos afirman-

do absolutamente nada sobre a re-

lação entre mediunidade e dinheiro.

O que entendemos é que, por falta

de debate (ou de aversão ao deba-

te), ou de achar que tudo se resolve

no “dai de graça o que de graça re-

cebestes”, as questões vão se avolu-

mando e as problemáticas vão sen-

do jogados para debaixo do tapete.

E o que resta, para quem quer fazer

espiritismo dialético, é colocar esse

tema em discussão, com coragem e

aprofundamento doutrinário e mo-

ral.

Desse modo, nas temáticas Espiri-

tismo e Movimento Espírita,

Raphael Faé discute sobre a vitali-

dade do espiritismo a partir de um

tema fundamental: a importância

de se cultivar um espiritismo casei-

ro e familiar e de se questionar toda

e qualquer estrutura que queria ter

o domínio do que é ou não é o espi-

ritismo.

Na mesma toada, reproduzimos a

contribuição, sóbria e lúcida, de

Wilson Garcia sobre Luiz Gasparet-

to.

Por fim, em Espiritismo e Socie-

dade, contamos com a primeira

participação de Pablo Machado so-

bre as cotas raciais e espiritismo.

Um tema pertinente no mês em que

se comemora a “abolição da escravi-

dão”.

Tenham uma excelente leitura!

Raphael Faé e Felipe Sellin

Os editores

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MEDIUNIDADE

Esse texto é um convite a importante re-

flexão sobre a vitalidade do espiritismo

prático: a necessidade de se recuperar o

seu caráter caseiro. A existência de tantos

centros espíritas de grande porte e de um

sistema institucional federativo deveria

nos trazer uma inquietação constante,

pois parece que graves desvios ocorre-

ram, e continuam ocorrendo, no desen-

volvimento do espiritismo no Brasil devi-

do a várias incompreensões e atitudes

antikardecianas.

Claro que há exceções. Há grupos espíri-

tas com uma estrutura quase familiar,

formando vínculos de afeto e amizade, de

estudos abertos e democráticos. Porém,

mesmo estes, de alguma forma, acabam

sendo tragados pela dinâmica de um regi-

me federativo e incorporando sua cultura

e suas regras.

E, enquanto os grupos espíritas, grandes

ou pequenos, deveriam ser e se sentir

livres para experimentar coisas novas,

acabam agindo segundo práticas e carti-

lhas que, sob o nome de “orientações”,

tornaram-se nas referências para dizer o

que é espírita ou não. Aliás, como é co-

mum ouvir “mas, isso não é espiritismo”

ao propor algo fora do que se convencio-

nou chamar de espiritismo. O próprio

Jornal Crítica Espírita é um exemplo.

Alguns acham até que para se sentirem

espíritas precisam estar vinculados a uma

instituição espírita, o que é falso.

Desse modo, a cultura institucional e fe-

derativa (e religiosa) tornou quase impos-

sível pensar o espiritismo para além de

certos padrões e atividades: reuniões pú-

blicas, mediúnica, evangelização (que

nome nefasto!), eventos federativos, etc.

São quase sinônimos “espiritismo” e

“movimento espírita federativo”, da FEB

e das federativas estaduais, que pensam

deter o monopólio sobre o espiritismo no

Brasil e no mundo.

Há uma agravante: a adesão quase imedi-

ata do brasileiro à prática e ao pensamen-

to religioso contribuiu muito com esses

desvios. Uma ciência sem pesquisas não

resiste, e uma filosofia sem crítica morre.

Mas a religião persiste muito bem sem

pesquisa e, principalmente, sem crítica.

Até chamar o centro espírita de “templo”

é sintomático e revela o que as pessoas

EM DEFESA DE UM ESPIRITISMO CASEIRO E FAMILIAR

“[…] no interesse dos estudos e por bem da causa mesma, as reuniões espíritas devem tender antes à multiplicação de pequenos

grupos, do que à constituição de grandes aglomerações. [...]” (O Livro dos Médiuns, p. 507)

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realmente querem com o espiritismo: um

lugar para encontrar religiosidade. Não

que seja errado. Em algum momento isso

é importante, mas não o tempo todo.

Então, o centro espírita se tornou num

“templo religioso” porque tanto a maioria

das pessoas que procuram o espiritismo,

quanto aquelas que criaram os fundamen-

tos da prática espírita por meio da cultura

federativa queriam encontrar a religião, e

não a ciência e a filosofia. Penso que há,

nisso, um importante fator psicológico. A

aversão que alguns mais religiosos, espe-

cialmente os fundamentalistas (sim, eles

existem!), nutrem contra a ciência e a

filosofia tem muito a ver com suas incapa-

cidades de pensar cientifica e filosofica-

mente e com a falta de humildade para

reconhecê-lo. Isso não se trata de disputa

de títulos acadêmicos. Muitos analfabetos

têm mais sabedoria e compreensão de

mundo que doutores. A questão é que

essas pessoas (excessivamente religiosas)

foram criando o seu nicho de poder (onde

poderiam mandar, ser respeitados, sentir-

se importantes) e as justificativas para

suas práticas. E, muitas vezes, reprodu-

zem o seu orgulho e egoísmo sob o discur-

so do amor ao próximo, e escondem sua

ignorância na religião, onde quase tudo é

válido…

Independentemente disso, o ponto cen-

tral é que um sistema federativo e centros

espíritas grandes dão as condições ideais

para tornar a prática espírita num reposi-

tório de vaidades, de

superficialidades e de

aparências, onde a

burocracia e o apara-

to institucional vêm

primeiro que o huma-

no, em lugar de ser

um momento de vi-

vências, de autodes-

cobertas, de questio-

namentos, de aprimo-

ramento real e pro-

fundo do ser.

Kardec estava atento

à problemática de se enredar o espiritis-

mo num contexto institucional. Não foi à

toa que ele sempre enfatizou uma prática

espírita bem caseira, praticamente famili-

ar, especialmente quanto à fenomenolo-

gia mediúnica, aos estudos e à vivência

moral. Para ele, grupos pequenos e afins,

em regra, seriam mais significativos do

que os grandes. Ao perceber que os espíri-

tos não detinham toda a ciência, Kardec

sabia que o espiritismo era uma compre-

ensão de mundo anárquica, plural, com

ênfase na responsabilidade pessoal e na

autonomia, que dialogava com profundas

questões humanas e que deveria estar

acessível a todos, mas que também corria

o risco de se degenerar...

Isso fica claro quando ele afirma, na in-

trodução de “O Livro dos Médiuns” (LM),

que essa obra se destinava “[…] a todos os

que estejam em condições de ver e obser-

var os fenômenos espíritas”. A todos, e

não a grupos específicos! E o “em condi-

ções” é objetivo: que estejam diante do

fenômeno. Após confabular com os espíri-

tos em reuniões familiares, Kardec explica

que: “Depois de havermos exposto, nesse

livro [O Livro dos Espíritos – LE], a parte

filosófica da ciência espírita, damos nes-

ta obra a parte prática, para uso dos que

queiram ocupar-se com as manifesta-

ções, quer para fazerem pessoalmente,

quer para se inteirarem dos fenômenos

que lhes sejam dados observar” (LM,

Introdução, p. 16, FEB).

Portanto, o LM tem o objetivo de auxiliar

qualquer um, em qualquer lugar e em

qualquer condição que queira se ocupar

de tais assuntos: sozinho ou acompanha-

do, na mansão ou no barraco, na cidade

ou no campo, por espíritas ou não, no

Centro Espírita, na Universidade ou em

casa. Aliás, ao questionar sobre a influên-

cia do meio sobre o fenômeno mediúnico,

os espíritos respondem que “Todos os

Espíritos que cercam o médium o auxili-

am, para o bem ou para o mal’” (LM, p.

341). Ou seja, não importa muito “onde”,

mas “quem” e “como” se dá o fenômeno.

Ainda no LM, cap. XXIX, Kardec divide as

reuniões espíritas em geral como sendo

“frívola” (mero divertimento),

“experimental” (em regra, voltada para

manifestações físicas) ou “instrutiva”. Por

óbvio, vamos nos ater à última. Para Kar-

dec, as reuniões instrutivas devem:

1) ser sérias, composta por bons espíri-

tos e participantes em condições que os

permitam vir. “Uma reunião só e verda-

deiramente séria, quando cogita de coi-

sas úteis, com exclusão de todas as de-

mais” (LM, p. 499);

2) ser destinadas à instrução moral

e ao estudo, pois “a instrução espírita

não abrange apenas o ensinamento mo-

ral que os Espíritos dão, mas também o

estudo dos fatos. Incumbe-lhe a teoria de

todos os fenômenos, a pesquisa das cau-

sas, a comprovação do que é possível e

do que não o é; em

suma, a observa-

ção de tudo o que

possa contribuir

para o avanço da

ciência” (LM, p.

499);

3) afastar os es-

píritos mentiro-

sos. “Perfeita seria

a reunião em que

todos os assisten-

tes, possuídos de

igual amor ao bem,

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consigo só trouxessem bons Espíritos.

Em falta da perfeição, a melhor será

aquela em que o bem suplante o

mal” (LM, p. 503);

4) ser coletivas e buscar a maior ho-

mogeneidade possível, com os partici-

pantes unidos nos objetivos da reunião,

sendo que “[…] os círculos íntimos, de

poucas pessoas, são sempre mais favorá-

veis às belas comunicações” (LM, p. 505).

Aliás, Kardec coloca como fundamental a

uniformidade de sentimentos (e não de

entendimentos!) para se obter bons resul-

tados, e nos grupos menores “[…] todos se

conhecem melhor e há mais segurança

quanto à eficácia dos elementos que para

eles entram. O silêncio e o recolhimento

são mais fáceis e tudo se passa como em

família. As grandes assembléias excluem

a intimidade, pela variedade dos elemen-

tos de que se compõem; exigem sedes

especiais, recursos pecuniários e um apa-

relho administrativo desnecessário nos

pequenos grupos. A divergência dos ca-

racteres, das idéias, das opiniões, aí se

desenha melhor e oferece aos Espíritos

perturbadores mais facilidade para se-

mearem a discórdia. Quanto mais nume-

rosa é a reunião, tanto mais difícil é con-

terem-se todos os presentes. [...] Os gru-

pos pequenos jamais se encontram sujei-

tos às mesmas flutuações. A queda de

uma grande Associação seria um insu-

cesso aparente para a causa do Espiritis-

mo, do qual seus inimigos não deixariam

de prevalecer-se. A dissolução de um

grupo pequeno passa despercebida e, ao

demais, se um se dispersa, vinte outros se

formam ao lado. Ora, vinte grupos, de

quinze a vinte pessoas, obterão mais e

muito mais farão pela propaganda, do

que uma assembléia de trezentos ou de

quatrocentos indivíduos” (LM, p.

507/508);

5) ter regularidade. “Acrescentemos,

todavia, que, se bem os Espíritos prefi-

ram a regularidade, os de ordem verda-

deiramente superior não se mostram

meticulosos a esse extremo. A exigência

de pontualidade rigorosa é sinal de infe-

rioridade, como tudo o que seja pueril.

Mesmo fora das horas predeterminadas,

podem eles, sem dúvida, comparecer e se

apresentam de boa vontade, se é útil o

fim objetivado” (LM, p. 505).

Assim, independente do lugar, “[…] qual-

quer que seja o caráter de uma reunião,

haverá sempre Espíritos dispostos a se-

cundar as tendências dos que a compo-

nham” (LM, p. 499). Além dessas consi-

derações sobre o local e as condições das

reuniões espíritas, há outro ponto de mai-

or importância: o caráter educativo e mo-

ralizante das instruções dos espíritos. Em

“O Céu e o Inferno” (CI), no capítulo XI

(1ª parte), Kardec mostra a relevância de

colocar a mediunidade na pauta da socie-

dade ao afirmar que “Repelir as comuni-

cações de além-túmulo é repudiar o meio

mais poderoso de instruir-se, já pela ini-

ciação nos conhecimentos da vida futura,

já pelos exem-

plos que tais

comunicações

nos forne-

cem” (CI, p.

147).

Portanto, Kar-

dec via na

mediunidade

uma fonte de

instrução ge-

ral com rela-

ção à vida

futura e à

instrução mo-

ral. Que a

mediunidade

fosse vivenci-

ada de modo

aberto e cons-

ciente (pois já

ocorre incons-

cientemente),

entrando de

vez em nosso

cotidiano.

Que ninguém

precisasse de

“autorização”

para se instruir nesse campo. Que se pu-

desse conversar com entes queridos e

espíritos familiares e, assim, corrigir ru-

mos e aprumar condutas. Que as pessoas

pudessem ter uma noção mais clara de

seu propósito no mundo (sem suprimir a

vontade e o discernimento dos encarna-

dos). Que as crianças tivessem contato

com a realidade extracorpórea desde ce-

do, crescendo com uma nova percepção

da existência. Kardec queria retirar a me-

diunidade do domínio de grupos e demo-

cratizar o seu acesso pela via do conheci-

mento.

Porém, ao longo do tempo, certa cultura

federativa do movimento espírita brasilei-

ro disseminou várias contradições em

torno da prática do espiritismo. De modos

sutis ou expressos, fecharam as portas da

mediunidade ao vulgo e encerraram o

espiritismo no centro espírita. Isso dificil-

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mente é reconhecido, mas se revela em

falas batidas, de que a mediunidade “é

algo sério”, “não é para qualquer um”, “é

preciso ter muita responsabilidade”, “o

que eles vão fazer com isso?”, “é preciso

antes estudar o LE, o Evangelho, etc.”,

“no centro espírita existe proteção espiri-

tual” e outras do tipo.

Tudo isso pode parecer preocupação.

Mas, tirando a casca de benevolência,

aparecem o egoísmo e orgulho, de que o

outro não é bom o bastante para fazer

algo de bom, que o outro precisa ser tute-

lado, que sou necessário para a boa práti-

ca ou o bom entendimento do espiritismo

ou da mediunidade. Torcem o nariz para

as manifestações na umbanda ou no can-

domblé que, quando muito, são só ani-

mismo. E ao restringirem o espiritismo

prático às paredes do Centro Espírita (e

olhe lá!) e a certas atividades, o que fize-

ram foi repetir os erros milenares daque-

les que deixavam as revelações espirituais

nas mãos de poucos, desde os sacerdotes

do Egito Antigo aos atuais. E tudo com o

mesmo argumento: “o vulgo não saberia

lidar com essas questões. Eles precisam

de nós.”

Por um lado, é claro que há uma justa

discussão sobre a segurança dos trabalhos

mediúnicos. Mas parece que há certo exa-

gero, e a cultura federativa e institucional

foi especialmente fértil em criar medos e

proibições descabidas.

Kardec sabia dos prós e contras de se

institucionalizar o espiritismo e se dedi-

cou a esse tema. Ele estava ciente das

deturpações que os continuadores costu-

mam dar ao pensamento original. Se a

institucionalização tem um lado bom, de

haver pessoas que querem levar uma

mensagem adiante, há o lado ruim: os

seguidores tendem a querer ser os donos

da verdade e chegam a perverter os ensi-

nos ou as virtudes que julgam defender. A

institucionalização do cristianismo gerou

uma série de corrupções, e a Igreja Católi-

ca representa bem isso: ela produz ora

coisas boas, ora coisas ruins; ora está

próxima de Jesus, ora é o próprio anti-

cristo; ora é Santo Ofício, ora é Teologia

da Libertação. O mesmo se diga de qual-

quer outra instituição – associações, uni-

versidades, partidos políticos, sindicatos,

etc.

Quando isso ocorre, a instituição deixa de

ser um meio de reunir pessoas em torno

de um ideal para se tornar no próprio

ideal. Tenho a impressão de que algo

muito parecido ocorreu com o movimento

espírita federativo. Ele deixou de ser um

meio para se tornar no próprio fim… Por

mais bem-intencionado que se esteja, isso

é algo perigosíssimo, e temos a necessida-

de de nos perguntarmos se o que há de

bom (e há) justifica as distorções. O obje-

tivo, aqui, não é assustar nem falar mal de

qualquer instituição. Não é nada pontual.

É o conjunto. Talvez seja hora de reco-

nhecer os monstros criados pela cultura

federativa do movimento espírita brasilei-

ro e buscar formas alternativas quanto à

prática do espiritismo.

Kardec já havia colocado a sua sugestão

sobre a mesa: o futuro e a vitalidade do

espiritismo passam pela sua prática casei-

ra, familiar, que respeite a autonomia dos

envolvidos, a partir da vivência cotidiana,

profunda e significativa do espiritismo

como fenômeno e como moral.

O convite, então, é que cada um possa se

sentir motivado e inspirado a encontrar

formas significativas e relevantes de (re)

colocar o espiritismo na pauta de sua vi-

da, seja no interior da cultura federativa e

institucional, seja em outras possibilida-

des. Aliás, o convite é de Kardec, ao dizer

que: “Conhecemos algumas cidades onde

não há nenhuma sociedade regular e nas

quais há mais espíritas que em outras,

que contam diversas. Aliás, já dissemos

que as sociedades não são uma condição

necessária à existência do Espiritismo;

algumas se formam hoje e encerram

suas atividades amanhã, sem que sua

marcha seja entravada no que quer que

seja. O Espiritismo é uma questão de fé e

de crença, e não de associação. Quem

quer que partilhe de nossas convicções a

respeito da existência e da manifestação

dos Espíritos e das conseqüências morais

daí decorrentes, é espírita de fato, sem

que haja necessidade de estar inscrito

num registro ou matrícula, ou de receber

um diploma. Basta uma simples conver-

sa para dar a conhecer os que são simpá-

ticos à idéia ou a repelem, e por aí se

julga se ela ganha ou perde terre-

no” (Revista Espírita, Jul/1864, p. 269).

Raphael Faé é editor do Jornal Crítica

Espírita

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COTAS RACIAIS

Certa vez estava fazendo aula de inglês

online, e uma professora norte-americana

me perguntou sobre o respeito à diversi-

dade no Brasil. Respondi que somos uma

nação bastante conservadora e que o ra-

cismo ainda é intrínseco no pensamento

da sociedade. A professora ficou surpresa

com a minha resposta, porque todos os

outros alunos diziam sempre o oposto e se

orgulhavam do respeito ao Brasil de todas

as cores, de todos os crédulos, de todos os

sabores. Será que fiquei louco? Vamos

ver.

Segundo dados do IBGE, cerca de 54% da

população brasileira é negra. Mas onde

está essa maioria? Não a vejo nas escolas

particulares, não a vejo nas universida-

des, não a vejo nos shoppings, não a vejo

nos cargos de poder do país. A população

negra ocupa cerca de 76% da população

mais pobre do país e possui apenas 17,4%

representando os mais ricos (IBGE 2014).

A origem dos negros no país se deu atra-

vés da escravidão, e pasmem, sua abolição

foi há apenas 130 anos, em 1888. Essa

abolição foi feita de forma bem traumáti-

ca. Não houve políticas de retratação,

muito menos de inclusão social. Apenas

largaram os trabalhadores à própria sorte

com uma mão na frente e outra atrás, um

tapinha nas costas e um boa sorte. E a

exploração nem para por aí, muitos volta-

ram a trabalhar para os antigos patrões

em situações ainda piores que as anterio-

res. Quanto menos escolhas o trabalhador

tiver, mais propício ele estará a aceitar

condições inadequadas de trabalho e os

escravos foram submetidos a séculos de

exploração, maus-tratos, tortura e nega-

ção educacional.

Foi então que me bateu um estalo depois

de conversar com vários colegas espíritas

e sempre ouvir opiniões contrárias às

cotas raciais. O público que faz inglês na

internet e o que frequenta centros espíri-

tas é o mesmo! Segundo o IBGE, entre os

grupos religiosos, os espíritas possuem os

maiores índices de pessoas com ensino

superior, com 31,5%, taxa de alfabetização

em 98,6%, e também está em primeiro

quando o assunto é rendimento, com

19,7% se declarando com um rendimento

superior a 5 salários. Classe média/alta,

que como já vimos, tem cor. O assunto

cotas raciais não faz parte do cotidiano da

classe média/alta e a mesma peca em não

se colocar na pele dos desfavorecidos pelo

sistema. Nesse ponto, o movimento espí-

rita se desloca de importantes questões

sociais.

ESPIRITISMO E RESGATE HISTÓRICO

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As cotas raciais são ações afirmativas que

visam diminuir as desigualdades econô-

micas e sociais causadas pela nossa histó-

ria. Essas ações são mais comumente apli-

cadas às esferas públicas, como as univer-

sidades e os empregos públicos. Vale lem-

brar que as cotas também são utilizadas

para reparos históricos com outras etnias.

Desde seu início no Brasil em 2005, as

cotas raciais veem trazendo resultados

significativos. O percentual de negros no

nível superior saltou de 5,5% em 2005,

para 12,8% em 2015 (IBGE). A evasão de

cotistas é significativamente menor nas

universidades do Brasil em relação à eva-

são dos não cotistas, diminuindo assim o

investimento público gasto em vagas de

universidades que não geram profissio-

nais com curso superior e provando que

as pessoas negras sabem aproveitar as

poucas oportunidades disponíveis.

Em “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec

questiona os espíritos sobre como reco-

nhecer uma civilização completa, no qual

eles respondem:

“Reconhecê-la-eis pelo desenvolvimento

moral. Credes que estais muito adianta-

dos, porque tendes feito grandes desco-

bertas e obtido maravilhosas invenções;

porque vos alojais e vestis melhor do que

os selvagens. Todavia, não tereis verda-

deiramente o direito de dizer-vos civiliza-

dos, senão quando de vossa sociedade

houverdes banido os vícios que a deson-

ram e quando viverdes como irmãos,

praticando a caridade cristã. Até então,

sereis apenas povos esclarecidos, que hão

percorrido a primeira fase da civiliza-

ção.”

Allan Kardec complementa:

“(...) À medida que a civilização se aper-

feiçoa, faz cessar alguns dos males que

gerou, males que desaparecerão todos

com o progresso moral.(...) somente pode

considerar-se a (nação) mais civilizada

(...) aquela onde exista menos egoísmo,

menos cobiça e menos orgulho; onde os

hábitos sejam mais intelectuais e morais

do que materiais; onde a inteligência se

puder desenvolver com maior liberdade;

onde haja mais bondade, boa-fé, benevo-

lência e generosidade recíprocas; onde

menos enraizados se mostrem os precon-

ceitos de casta e de nascimento, por isso

que tais preconceitos são incompatíveis

com o verdadeiro amor do próximo; on-

de as leis nenhum privilégio consagrem e

sejam as mesmas, assim para o último,

como para o primeiro; onde com menos

parcialidade se exerça a justiça; onde o

fraco encontre sempre amparo contra o

forte; onde a vida do homem, suas cren-

ças e opiniões sejam melhormente respei-

tadas; onde exista menor número de des-

graçados; enfim, onde todo homem de

boa-vontade esteja certo de lhe não faltar

o necessário” (O livro dos espíritos, ques-

tão 793).

O movimento espírita se apropria de dis-

cursos deterministas e responsabiliza

exclusivamente o indivíduo por sua situa-

ção encarnatória, poupando os injustos e

convenientemente esquecendo que é nos-

sa responsabilidade conjunta encontrar as

condições de extinguir as injustiças terre-

nas, rumando para uma sociedade mais

civilizada. A tendência é que ações afirma-

tivas, como as cotas, se propaguem cada

vez mais, até que a população negra ocupe

os diversos espaços de poder e de direito

do qual foram tolhidos, corrigindo, assim,

um sistema que privilegia intrinsecamen-

te uma etnia em relação a outra.

Os motivos para as correções históricas

são diversos e nós, espíritas, ainda possuí-

mos uma motivação extra. Se fomos omis-

sos ou arbitrários e contribuímos com as

causas de mazelas da atualidade, faz-se

necessária a nossa mudança de postura e

o apoio às correções sociais para que pos-

samos evoluir e aproveitar melhor a nossa

existência. Quem sabe, ao tentar corrigir

as ações dos nossos antepassados, não

estamos corrigimos as nossas próprias?

Já pensaram nisso, reencarnacionistas?

Pablo Machado é analista de sistemas e

ativista de causas sociais.

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Conheci-o no começo da década de 1970.

Antes, havia conhecido seus pais, Zíbia e

Aldo, que atuavam como expositores nos

cursos da Federação Espírita do Estado de

São Paulo, onde me matriculei com o de-

sejo de aprofundar meus conhecimentos

espíritas. Zíbia, na ocasião, já despontava

com sua mediunidade psicográfica, tendo

publicado dois livros: O amor venceu e O

morro das ilusões. Já como integrante da

equipe do jornal Correio Fraterno do

ABC, recebi de Zíbia os direitos de publi-

cação do livro Entre o amor e a guerra,

que teve ali duas edições. Zíbia cancelou

os direitos por conta da contrariedade que

teve com uma crítica publicada no Cor-

reio, feita por especialista em literatura,

apontando deficiências técnicas na obra.

Nem a resenha ao lado, exortando as qua-

lidades do conteúdo do livro foi suficiente

para demovê-la da decisão. A partir de

então, Zíbia passou a publicar seus livros

em sua própria editora.

Estive mais próximo de Luiz Antônio Gas-

paretto depois que Elsie Dubu-

gras entregou-me a responsabilidade de

planejar e publicar o livro Renoir, é vo-

cê?, obra bilingue cujo título resultou de

um programa de tv veiculado na Europa,

programa este que teve ampla repercus-

são e foi reprisado inúmeras vezes, no

qual Gasparetto produz telas mediúnicas

com a assinatura do conhecido pintor

francês. Durante o período de preparação

do livro, acompanhei Gasparetto em di-

versas apresentações na cidade de São

Paulo, testemunhando de perto o extraor-

dinário fenômeno, bem como reunindo-

me com ele e Elsie por inúmeras ocasiões.

O livro Renoir, é você? foi o primeiro pu-

blicado sobre a produção mediúnica de

Gasparetto, mas é muito pouco conhecido

hoje e sequer consta da bibliografia do

médium. É assinado por Elsie, Gasparetto

e Espíritos que possuem obras reproduzi-

das no livro.

A saga de Luiz Antônio teve em sua pri-

meira fase a presença forte de Elsie Dubu-

gras. Foi ela que o introduziu na Europa,

abrindo as portas para que se tornasse

conhecido mundialmente, como um fenô-

meno que chamava a atenção das pessoas

nos vários países em que Gasparetto se

apresentou, aumentando, de forma consi-

derável, o interesse por ele no próprio

Brasil. Elsie era a mão de ferro que impri-

mia ao médium uma rígida disciplina

capaz de garantir as condições ideais para

a produção do fenômeno e, sem dúvida

nenhuma, nem sempre encontrando no

médium a aceitação plena. Mas era a con-

dição imposta por Elsie para o seu apoio.

Quando, enfim, os caminhos de Gasparet-

to e Elsie se separaram, o médium deu

início a uma atuação pessoal e indepen-

dente, de forma a imprimir sua própria

marca junto à produção dos espíritos.

Inteligente, tinha o seu olhar pessoal so-

bre as pessoas e o mundo. Foi um proces-

Gasparetto: o médium dos pintores invisíveis

COTAS RACIAIS

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so de libertação de um período em que se

sentia oprimido por lhe ser negada a pos-

sibilidade de comportar-se e exprimir-se

segundo o seu modo de ver, que desde

cedo se opunha à tradição moral das prá-

ticas espíritas.

Daí em diante Gasparetto vai distanciar-

se cada vez mais do movimento espírita e

vai levar consigo toda a família. A mãe,

que fundara e dirigia Associação Cristã de

Cultura Espírita Os Caminheiros, localiza-

da dentro de uma favela na cidade de São

Paulo, cujo trabalho social teve grande

repercussão pela amplitude, cedeu à in-

fluência do filho permitindo-lhe introdu-

zir modificações grandes no funciona-

mento da obra, a ponto de descaracterizá-

la completamente em relação ao espiritis-

mo. Havia em Gasparetto a ideia infeliz de

que a prática do bem, a solidariedade, que

se resume em caridade verdadeira, não

promove o ser humano, só atrapalha, por-

que torna as pessoas preguiçosas e sem

mérito. Dizia que era preciso deixar que

os necessitados se esforçassem, por conta

própria, que pagassem pelos cursos, pa-

lestras e livros, para darem valor ao que

recebiam. Somando-se isso às ideias pes-

soais de Gasparetto que já repercutiam na

sociedade, o fato rendeu-lhe críticas acer-

bas nos meios espíritas, levando-o à deci-

são, bem como de sua mãe, de tornar pú-

blico o seu afastamento do espiritismo.

Era como se o rótulo de espírita trouxesse

a Gasparetto e sua família um certo senti-

mento de vergonha constrangedora.

Gasparetto nutria forte discordância em

relação à maneira como os espíritas, com

base nos ensinamentos doutrinários, de-

fendiam a prática mediúnica desinteres-

sada monetariamente como base no ensi-

no do “dai de graça o que de graça rece-

bestes”, por entender que o médium deve-

ria ter a liberdade de decidir em casos

dessa ordem, não lhe sendo nada imoral

receber pelas obras que produzia e aplicar

os recursos recebidos a seu favor e como

quisesse. De preferência vivendo uma

vida abastada, porque isso resulta de seu

mérito e do direito que tem de saborear o

seu sucesso. Esse pensamento, que se

estendeu à edição e venda dos livros de

Zíbia, levou-o a fazer severas críticas a

Chico Xavier, duramente desrespeitosas,

não aceitando que este vivesse uma vida

quase miserável enquanto seus livros psi-

cografados vendiam aos milhares. Enten-

dia que Chico deveria usufruir dos recur-

sos financeiros que os livros produziam e

viver ricamente. Foi o que Gasparetto fez

com os recursos financeiros advindos da

venda dos quadros que produzia mediuni-

camente, embora já tivesse uma vida pes-

soal e familiar suficientemente farta, filho

que era da classe média alta.

Na ocasião em que essas opiniões de Gas-

paretto vieram a público em entrevista

concedida a uma revista, externamos

também nossa opinião contrária não sim-

plesmente para defender Chico Xavier,

mas especialmente em razão dos ensinos

espíritas, expostos com muita clareza por

Allan Kardec no Livro dos médiuns. A

questão ética – e não simplesmente a mo-

ral e os costumes – é fundamental para o

bom exercício da mediunidade. E a cari-

dade, ou seja, a capacidade de ser solidá-

rio com a dor e as necessidades do outro é

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o caminho de formação do homem de

bem. É dessa maneira que Kardec vê, ao

definir o lema: “Fora da caridade não há

salvação”.

O extraordinário médium tinha divergên-

cias mais amplas com o espiritismo, pois

considerava-o produto de uma época sem

o mesmo valor para os dias atuais, ou

seja, via-o como doutrina ultrapassada,

entendendo que os tempos atuais haviam

introduzido uma outra maneira de viver,

que a moral para ele rígida do espiritismo

não permitia. Mas, assim como muitos

que atribuíram ao espiritismo a pecha de

doutrina ultrapassada, Gasparetto não

logrou oferecer nenhum novo olhar filosó-

fico que pudesse ser acrescentado, por

mais que escrevesse e tivesse seus livros

lidos por imensa quantidade de pessoas.

Esses livros, considerados de autoajuda,

compuseram o período mais superficial

de sua vida, como a própria crítica especi-

alizada reconhece. Aqui e ali, os livros

tentam interpretar este ou aquele princí-

pio básico do espiritismo, sem, no entan-

to, conseguir superar a superficialidade de

seu pensamento e menos ainda se aproxi-

mar da profundidade da obra de Kardec.

A verdade é que Gasparetto construiu sua

trajetória de sucesso sem dispensar um só

e único princípio básico do espiritismo; ao

contrário, prosseguiu utilizando-os à sua

maneira, segundo o seu jeito de interpre-

tar pessoal e nada singular, mas tendo-os

por válidos e até mesmo imprescindíveis.

A imortalidade do espírito, suas relações

com o mundo e os seres nele encarnados,

as vidas sucessivas, a vida no mundo espi-

ritual, etc., estavam no cerne de sua cultu-

ra pessoal e familiar. Sua contrariedade

era firmada principalmente no que cha-

mava de moral católica presente, segundo

ele, na doutrina espírita, moral essa que

lhe dificultava a liberdade de pensamento

e comportamento, dentro daquilo que

pretendia para sua vida em termos de

expressão da sexualidade e da maneira de

praticar a mediunidade. Dir-se-ia que o

médium inigualável trocou a insegura

segurança da prática mediúnica por uma

carreira profissional em que ele, e não

outrem, era o pensador e a fonte.

Desligar-se do espiritismo não era apenas

uma forma de responder aos espíritas que

criticavam aberta ou veladamente o com-

portamento, a moral e as opiniões de Gas-

paretto, especialmente quando ganhou

projeção no rádio e na tv; era mais do que

isso: a maneira de conquistar indepen-

dência e autonomia para dizer ao mundo

que para além do médium existia um ho-

mem capaz de pensar por si mesmo com

propriedade e eficácia, inclusive contrari-

ando o pensamento espírita dominante. A

produção mediúnica, embora lhe trouxes-

se sucesso mundial, não era vista por ele

como obra genuinamente sua, senão dos

espíritos. Os louros que lhe atribuíam

eram mais devidos à sua eficaz

“passividade”, que aparentemente não

resulta da inteligência, mas de uma certa

subserviência à inteligência alheia. Para

quem se sente capaz de pensar e criar com

igual ou até melhor conteúdo, essa situa-

ção se torna, sem dúvida, um peso. Como

aceitar que uma multidão de pessoas fi-

que boquiaberta ante o fenômeno mediú-

nico, enquanto que ao lado existem exce-

lentes ensinamentos que podem tornar

mais livres e mais autônomos esses indi-

víduos ingênuos?

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Dessa maneira, Gasparetto inclui-se entre

os médiuns excepcionais, de capacidade

reconhecida, mas que lutam diuturna-

mente para firmar a ideia de que não são

meros objetos dos espíritos, mas espíritos

iguais ou até melhores que aqueles que

por eles se manifestam. E querem de-

monstrar isso, afinal, pensam e precisam

dizer o que e como pensam, senão para

diferenciá-los dos espíritos que os utili-

zam, também para deixar claro a persona-

lidade carente, merecedora de distinção e

da mesma respeitabilidade. Não querem

parecer-se simplesmente insatisfeitos

com os espíritos que o utilizam, mas aci-

ma de tudo estão contra os que não reco-

nhecem sua inteligência e não são capa-

zes, assim, de o colocarem no mesmo ní-

vel dos espíritos.

Quando do evento da separação da famí-

lia Gasparetto do espiritismo, as lideran-

ças doutrinárias preconceituosas respira-

ram, aliviadas, mas deveriam ter aprovei-

tado a oportunidade para repensar os

rumos dados à doutrina. Gasparetto luta-

va contra a falsidade dos julgamentos, a

moral das aparências, o misticismo igre-

jeiro, não importa se desejoso de divulgar

seu modo pessoal de interpretar tudo isso.

Essa moral dos costumes que enoja e en-

vergonha, porque se prende a julgamen-

tos do comportamento alheio a partir de

uma compreensão superficial da doutrina

e de uma postura condenável de sentine-

las da vida alheia. Não houve nenhum

movimento conhecido nos meios espíritas

para lidar com a situação, apesar de Gas-

paretto e sua mãe já terem dado mostras

suficientes de sua dedicação à causa. Gas-

paretto foi julgado e condenado no silên-

cio dos corações frágeis e comprometidos

com essa falsa moral. Ninguém moveu

uma palha, não se escreveu uma única

linha sequer de reconhecimento ao mé-

dium e da grande contribuição que dera à

divulgação doutrinária. O movimento

espírita foi silêncio tétrico, e nada mais.

Como se dissesse, covardemente: que se

vá o filho infiel e impuro!

Gasparetto parte do corpo físico reconhe-

cendo erros em decisões tomadas, sem

esclarecer quais. Viu uma estranha nuvem

escura nas manchas de seus pulmões e

disse para si mesmo que eram decorren-

tes do abrigo que dera a pensamentos

ruins. Disse também não temer a morte,

mantendo o ensinamento espírita da vida

material breve sucedida pela imortalidade

dinâmica. Mais viveria se pudesse e mui-

tas outras coisas faria se lhe fossem dadas

as condições ideais que ele mesmo negara

ao seu corpo. O tempo escoou pelas fres-

tas do destino.

Eu que o vi pintando com as mãos e os

pés ao mesmo tempo, não consigo tirar da

retina aquele momento fabuloso das telas

saindo de seus poros manchados de cores

e vida, como numa súplica do invisível

para que os seres humanos percebessem

que há muito mais coisas além dos senti-

dos físicos. Se aqueles quadros valiam

algum dinheiro, a mensagem das inteli-

gências por detrás delas continham um

tesouro impagável: o convite à liberdade,

à verdadeira liberdade que é pensar, deci-

dir e agir. Se feriam o olhar extasiado do

homem imaturo, eram mais do que isso,

eram a senha para penetrar no mundo

invisível e, ultrapassadas as sombras do

portal, descobrir a grandeza da vida. Nem

o ouro mais puro reluz tanto.

Wilson Garcia

Publicado originalmente em https://

blogabpe.org/2018/05/11/gasparetto-o-

medium-dos-pintores-invisiveis/, em

11.05.2018, no Blog da Associação Brasi-

leira de Pedagogia Espírita (ABPE)