ano 22 agosto/2014 tiragem: 20 000 exemplares jihad e ... · um país ensanguentado, os terroristas...

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M ais de uma década atrás, sob o governo de George W. Bush e o pretexto da “guerra ao terror”, os Estados Unidos ocuparam o Iraque. Há pouco, em Mossul, no norte de um país ensanguentado, os terroristas do Isis fincaram a bandeira de um califado jihadista. Numa encenação de forte simbolismo, o Isis derrubou um marco de fronteira que assinalava a linha divisória entre o Iraque e a Síria. Os jihadistas controlam territórios dos dois países, operando em “terra de ninguém”, um vácuo de poder gerado pela falência de ambos os Estados. O espectro do Isis produz realinhamentos inesperados, inclinan- do Washington na direção de Teerã. Sob os impactos combinados da jihad e da geo- política regional, descortina-se um cenário de guerra entre sunitas e xiitas. O conflito não tem raízes no passado remoto ou em supostos ódios seculares entre as duas seitas do Islã, mas nas rivalidades entre poderes estatais. Seu pano de fundo é a retração da influência regional dos Estados Unidos, acelerada pela retirada das tropas do Iraque. Na hora da proclamação do califado jihadis- ta, o líder político dos curdos iraquianos pregou a independência da região autônoma. De agora em diante, a antiga “questão curda” reemerge em novo contexto, recolocando o problema das fronteiras nacionais num Oriente Médio desenhado, cem anos atrás, por um acordo sigiloso entre britânicos e franceses. Veja as matérias às págs. 6 a 9 SOB O TERROR DO BOKO HARAM O Boko Haram, que aterroriza a Nigéria, não expressa o Islã e nem mesmo deriva, em linha direta, do jihadismo da Al-Qaeda. É fruto da falência de um sistema de poder, da pobreza e da degradação do meio natural. O sistema político nigeriano se organiza em torno das elites regionais, que distribuem privilégios com base em critérios étnicos. No norte do país, a miséria e a exclusão social semeiam o terreno onde florescem grupos fanáticos. O Boko Haram surgiu no estado de Borno, às margens do Lago Chade, que perdeu quase 95% de sua superfície no último meio século. O desastre ambiental é o pano de fundo da tragédia social e política em curso. Pág. 5 Há 60 anos, GV cometia suicídio ANO 22 Nº 4 AGOSTO/2014 TIRAGEM: 20 000 EXEMPLARES JIHAD E GEOPOLÍTICA NO ORIENTE MÉDIO © Divulgação © Israel Defense Forces Soldado israelense vigia a Faixa de Gaza a partir de embarcação no Mediterrâneo; nova escalada de violência, com milhares de vítimas civis em Gaza, incluindo mulheres e crianças, ameaça incendiar o Oriente Médio E mais... Três filmes interpretam a Grande Guerra, que com- pleta exatos cem anos. Pág. 2 Editorial – Partidos de extrema-direita, xenófo- bos ou abertamente ra- cistas, obtiveram triun- fos nas eleições para o Parlamento Europeu. Pág. 3 A crise econômica na Europa continua a provocar impactos políticos devastadores. As eleições para o Par- lamento Europeu evi- denciam as dimensões do problema. Pág. 3 A seleção espanhola, campeã mundial em 2010, que voltou der- rotada do Brasil, foi recebida com tristeza, mas com honrarias. A política, mais ainda que o futebol, explica o fenômeno. Pág. 4 O pior IDHM do Brasil corresponde ao municí- pio paraense de Melga- ço. A Região Norte e, em especial, o Pará foram os destaques negativos. Pág. 10 Na Colômbia, a revira- volta que assegurou a re- eleição de Juan Manuel Santos confere novo impulso às negociações de paz com as Farc. Pág. 11 Diário de Viagem – Encravado no Hima- laia, o Nepal é um país de antigas tradições, onde convivem hindu- ístas e budistas de 60 grupos étnicos. Pág. 12 Facebook e Revista Pangea Facebook: Siga-nos em nossa página no Facebook (www.facebook.com. br/JornalMundo). Lá você encontrará textos, infográficos, sugestões de livros, filmes e indicações de sites que fazem toda a diferença do mundo. Revista Pangea: acessando nosso site (www.clubemundo.com.br) e cadastran- do-se, você poderá receber quinzenalmente, por e-mail, textos especialmente selecionados pelos editores de Mundo. Acesse e cadastre-se, é gratuito.

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Page 1: ANO 22 AGOSTO/2014 tiragem: 20 000 exemplares Jihad e ... · um país ensanguentado, os terroristas do Isis ... todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar

Mais de uma década atrás, sob o governo de George W. Bush e o pretexto da

“guerra ao terror”, os Estados Unidos ocuparam o Iraque. Há pouco, em Mossul, no norte de um país ensanguentado, os terroristas do Isis fincaram a bandeira de um califado jihadista.

Numa encenação de forte simbolismo, o Isis derrubou um marco de fronteira que assinalava a linha divisória entre o Iraque e a Síria. Os jihadistas controlam territórios dos dois países, operando em “terra de ninguém”, um vácuo de poder gerado pela falência de ambos os Estados. O espectro do Isis produz realinhamentos inesperados, inclinan-do Washington na direção de Teerã.

Sob os impactos combinados da jihad e da geo-política regional, descortina-se um cenário de guerra entre sunitas e xiitas. O conflito não tem raízes no passado remoto ou em supostos ódios seculares entre as duas seitas do Islã, mas nas rivalidades entre poderes estatais. Seu pano de fundo é a retração da influência regional dos Estados Unidos, acelerada pela retirada das tropas do Iraque.

Na hora da proclamação do califado jihadis-ta, o líder político dos curdos iraquianos pregou a independência da região autônoma. De agora em diante, a antiga “questão curda” reemerge em novo contexto, recolocando o problema das fronteiras nacionais num Oriente Médio desenhado, cem anos atrás, por um acordo sigiloso entre britânicos e franceses.

Veja as matérias às págs. 6 a 9

Sob o terror do boko Haram

O Boko Haram, que aterroriza a Nigéria, não expressa o Islã e nem mesmo deriva, em linha direta, do jihadismo da Al-Qaeda. É fruto da falência de um sistema

de poder, da pobreza e da degradação do meio natural.O sistema político nigeriano se organiza em torno das elites regionais, que distribuem

privilégios com base em critérios étnicos. No norte do país, a miséria e a exclusão social semeiam o terreno onde florescem grupos fanáticos. O Boko Haram surgiu no estado de Borno, às margens do Lago Chade, que perdeu quase 95% de sua superfície no último meio século. O desastre ambiental é o pano de fundo da tragédia social e política em curso.

Pág. 5

Há 60 anos, GV cometia suicídio

■ ANO 22 ■ Nº 4 ■ AGOSTO/2014 ■

tiragem: 20 000 exemplares

Jihad e geopolítica no oriente médio

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Soldado israelense vigia a Faixa de Gaza a partir de embarcação no Mediterrâneo; nova escalada de violência, com milhares de vítimas civis em

Gaza, incluindo mulheres e crianças, ameaça incendiar o Oriente Médio

E mais...● Três filmes interpretam a

Grande Guerra, que com-pleta exatos cem anos.

Pág. 2

● Editorial – Partidos de extrema-direita, xenófo-bos ou abertamente ra-cistas, obtiveram triun-fos nas eleições para o Parlamento Europeu.

Pág. 3

● A cr i se econômica na Europa continua a provocar impactos políticos devastadores. As eleições para o Par-lamento Europeu evi-denciam as dimensões do problema.

Pág. 3

● A seleção espanhola, campeã mundial em 2010, que voltou der-rotada do Brasil, foi recebida com tristeza, mas com honrarias. A política, mais ainda que o futebol, explica o fenômeno.

Pág. 4

● O pior IDHM do Brasil corresponde ao municí-pio paraense de Melga-ço. A Região Norte e, em especial, o Pará foram os destaques negativos.

Pág. 10

● Na Colômbia, a revira-volta que assegurou a re-eleição de Juan Manuel Santos confere novo impulso às negociações de paz com as Farc.

Pág. 11

● Diário de Viagem – Encravado no Hima-laia, o Nepal é um país de antigas tradições, onde convivem hindu-ístas e budistas de 60 grupos étnicos.

Pág. 12

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22014 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

E X P E D I E N T EPANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia)Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)Revisão: Jaqueline RezendePesquisa Iconográfica: Thaisi LimaProjeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise

Endereço: Rua Dr. Dalmo de Godói, 57, São Paulo – SP. CEP 05592-010. Tel/fax: (011) 3726.4069 / 2506.4332E-mail: [email protected] – www.facebook.com/JornalMundo

Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo:• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900, São Paulo Fone: (011) 3283.0340

www.clubemundo.com.br

Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos,

caso se manifestem.

A Grande Guerra (1914-1918) foi escolhida como temática por diversos cineastas que, sob o pano de

fundo do horror do conflito, expressaram ideais pacifistas. O cenário mais aterrador da primeira guerra a receber o título de mundial foi o desumano combate de trincheiras, ícone da inutilidade do persistente derramamento de sangue e raiz de traumas duradouros herdados pelos sobreviventes.

Os primeiros filmes sobre a guerra foram realizados no momento em que a indústria cinematográfica ainda en-gatinhava. De modo geral, tinham como objetivo exaltar o patriotismo nacional e destilar o ódio ao inimigo. Essas películas orientavam-se pelo propósito de expor razões para o esforço de guerra junto a uma população que indagava os motivos da mortandade de jovens nas trincheiras europeias.

A indústria cinematográfica americana, que se tornaria a maior do mundo, só se interessou pela guerra quando o conflito já tinha dois anos. Em 1917, quando os Estados Unidos entraram na guerra, a abordagem inicial de neutralidade foi substituída por um enfoque destinado a oferecer uma visão diabólica do inimigo germânico. Depois de tudo terminado, o cinema deixou de lado a propaganda, e então os filmes adotaram uma visão mais pacifista.

O tempo sempre faz seu serviço. Em meados da década de 1930, quando começava a delinear a possibilidade de uma nova guerra na Europa, o público parecia não mais se interessar pela Grande Guerra. Então, encerrou-se o ciclo do cinema bélico e proliferaram as comédias e os dramas.

Os primeiros movimentos da Segunda Guerra Mun-dial reavivaram a memória cinematográfica da guerra anterior, especialmente nos Estados Unidos. O melhor exemplo de filme desta fase efêmera é Sargento York (de Howard Hawks, 1941). A partir daí, a Grande Guerra praticamente desapareceu das telas, já que o novo conflito ofereceu aos cineastas uma fonte quase inesgotável de possibilidades dramáticas.

No suplemento História & Cultura de maio, Mundo comentou diversos filmes sobre a Primeira Guerra Mundial. Contudo, vale a pena destacar ainda três outras películas: Nada de Novo no Front (de Lewis Milestone, Estados Unidos, 1930), Gallipoli (de Peter Weir, Austrália, 1981) e Cavalo de Guerra (de Steven Spielberg, Estados Unidos, 2011).

Nada de Novo no Front ganhou o Oscar de melhor filme e diretor em 1930. Baseado no livro homônimo do escritor alemão Erich Maria Remarque, publicado em 1929, é considerado por um enorme número de críticos

metralhadoras e ceifavam as vidas das tropas atacantes. A técnica da câmera subjetiva teve o condão de influenciar diversos filmes realizados mais tarde.

O impacto da obra de Milestone transparece em filmes como Glória Feita de Sangue (de Stanley Kubrick, 1957), O Mais Longo dos Dias (de Ken Anakin, 1962), Cruz de Ferro (de Sam Peckinpah, 1976), Agonia e Glória (de Sa-muel Fuller, 1980). De certa forma, estende-se também a filmes mais recentes como O Resgate do Soldado Ryan (1988) e Cavalo de Guerra (2011), ambos dirigidos por Steven Spielberg.

Um filme muito menos conhecido sobre a Grande Guerra é Gallipoli, que teve Mel Gibson como ator principal, numa de suas primeiras aparições no cinema. O enredo articula-se ao redor de um grupo de jovens australianos que, em 1915, embalados pelo sonho de se converterem em heróis, alistam-se no Corpo de Exército da Austrália e Nova Zelândia para, ao lado de soldados britânicos, combater as forças do Império turco-otomano na estratégica Península de Gallipoli.

Situada nas proximidades do Estreito de Dardanelos, a península domina, juntamente com o Estreito de Bósforo, a ligação entre os mares Egeu e Negro, permitindo o acesso à cidade de Istambul, à época capital do Império turco-otomano. Dezenas de milhares de jovens australianos morreram na batalha, vencida pelas forças otomanas sob a liderança de Mustafá Kemal Atatürk, que anos depois fundaria a República da Turquia.

Cavalo de Guerra, o filme mais recente sobre o conflito, tende a descambar para a pura pieguice. Mesmo assim, tem uma virtude notável: a reconstituição quase perfeita do ambiente das trincheiras, o traço mais marcante do grande conflito que começou um século atrás.

como o melhor filme de guerra antibélico da história do cinema. O autor do livro foi perseguido pelo nazismo, e sua obra foi queimada em praças públicas na Alemanha. Hitler cassou-lhe a nacionalidade alemã em 1933, o que o levou a emigrar para os Estados Unidos.

A obra de Milestone retrata a Grande Guerra pelos olhos de um jovem soldado alemão que vai para o front, imbuído de enorme patriotismo, e conhece o horror. O filme oferece aos espectadores duas mensagens: um ino-cente não sobrevive num campo de batalha e na guerra não há vencedores, apenas vencidos.

O filme não tem cores e nem os espetaculares efeitos especiais das películas atuais. Mas um diretor criativo não precisa disso: numa de suas cenas mais marcantes, a câmera faz o papel dos olhos de soldados que manejavam

a primeira guerra mundial no cinema

19º concurSo nacional de redação Mundo e h&C – 2014O 19º Concurso Nacional de Redação de Mundo recebeu 165 trabalhos, vindos de 50 escolas do país. Inúmeras

delas promoveram concursos internos para que fosse feita a seleção das melhores. Por isso, as redações que chegaram até nós representam um universo bem maior.

Somos especialmente agradecidos aos professores, coordenadores e diretores das escolas pelo estímulo a seus alunos, assim como pelo privilégio da parceria pedagógica.

Na edição de outubro de Mundo será publicada a redação vencedora com os comentários da banca examinadora.

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MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO � AGOSTO 2014

O racismO e a xenOfObia estãO em alta na eurOpa, cOmO demOnstram Os resultadOs das eleições aO par-lamentO eurOpeu, realizadas em maiO. num estranhO paradOxO, Os vencedOres fOram Os grupOs que mais se Opõem à existência da própria uniãO eurOpeia, cOm destaque para a anti-islâmica frente naciOnal, da frança, que abOcanhOu 25% dOs vOtOs em seu país. na grã-bretanha, O naciOnalista e xenófObO partidO da independência dO reinO unidO (ukip, na sigla em inglês), cOm 30%, derrOtOu Os dOis partidOs tradiciOnais, cOnservadOr e trabalhista. na Áus-tria, O neOnazista partidO da liberdade (pl) ficOu cOm 21%, um avançO de OitO pOntOs percentuais em relaçãO a 2009 (adOlf dÁ gargalhadas).

O cenÁriO, ameaçadOr, deve ser qualificadO. em primeirO lugar, as eleições caracterizaram-se pOr elevadas taxas de abstençãO. em segundO, Os partidOs

naciOnais de ultradireita nãO representam um mOvimen-tO unifOrme, exibindO distinções impOrtantes.

O ukip tem perfil mais naciOnalista, isOlaciOnista em relaçãO aO cOntinente, cOm a prOpOsta de prOteger a ecOnOmia e Os empregOs britânicOs. a frente naciO-nal é bem mais Ofensiva e restritiva quantO à presença de estrangeirOs (especialmente islâmicOs), pregandO abertamente sua expulsãO dO país. sua líder, marine le pen, filha dO fundadOr Jean-marie, tenta dar uma cara “humanizada” aO racismO, fazendO um discursO palatÁvel para O eleitOradO. em vez de simplesmente atacar O mundO islâmicO, prefere se cOncentrar na disputa pelO empregO. O mais resOlutamente nazista, que inclusive adOta a fOrma de saudaçãO utilizada pOr adOlf hitler, é O pl austríacO.

nO OutrO extremO dO espectrO ideOlógicO, partidOs de extrema-esquerda cOnseguiram avançOs

impOrtantes. eles também criticam a uniãO eu-rOpeia, mas pOr razões OpOstas: acreditam que a uniãO apenas aumenta O grau de explOraçãO dOs trabalhadOres e cOntribui para intensificar O racismO. querem uma espécie de uniãO eurOpeia sOcialista, sem dizer exatamente cOmO issO seria pOssível. O syriza, prOtagOnista nas grandes revOltas na grécia em 2012, cOnquistOu 26,5% dOs vOtOs. na espanha, O partidO pOdemOs, cOm apenas quatrO meses de existência e inspiradO pelO syriza, Obteve 8% (11% em madri).

a crise ecOnômica e pOlítica gesta O perigO dO racismO, da xenOfObia e dO neOnazismO, assim cOmO O dO agravamentO das tensões, cOm O cres-cimentO de grupOs radicais nO OutrO extremO. Os eurOpeus deveriam refletir um pOucO sObre seu própriO passadO...

E D I T O R I A L

raciStaS e xenófoboS contra a europa

A União Europeia sofre a maior crise de credibilidade de sua história,

comprovada pelos resultados das eleições de maio para o Parlamento Europeu. Dois fatos eleitorais suportam a afirmação: o alto índice de abstenção e o crescimento inédito da votação de partidos eurocéticos de extrema-direita. Além de o número de deputados eurocéticos eleitos ter duplica-do, os radicais de direita obtiveram triunfos marcantes em países decisivos, como Fran-ça e Grã-Bretanha. Logo na primeira sessão do Parlamento, eles literalmente deram as costas ao hino do bloco europeu.

As forças pró-europeias no Parlamen-to somam 521 deputados, enquanto os partidos eurocéticos (de extrema-direita, nacionalistas, anti-Europa, xenófobos e neonazistas) contam com o número re-cordista de 142 assentos. Em metade dos países da União Europeia não se elegeu nenhum eurocético.

O índice de 57% de abstenção nas últimas eleições europeias só não superou o recorde histórico de 58% das eleições de 2009. Após oito eleições desde 1979, ano em que os eurodeputados passaram a ser eleitos pelo voto direto dos cidadãos, a abstenção oscilou de 30% até os 57% atuais. Os 751 eurodeputados eleitos irão representar, pelos próximos cinco anos, 500 milhões de cidadãos do bloco, com-posto por 28 Estados-membros.

O desinteresse de uma larga parcela de europeus pelo sufrágio, o ambiente de instabilidade socioeconômica que se

vive na Europa e os índices históricos de desemprego, somados à falta de alterna-tivas políticas, transferiram os votos dos europeus para os partidos eurocéticos. Uma das fontes da escalada dos radicais da direita foi a incapacidade de promover mudanças revelada pelos dois principais blocos partidários europeus, o Partido Popular Europeu (PPE), de centro-direita, e a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), de centro-esquerda.

Na legislatura anterior, quando o PPE detinha 36% das cadeiras no Parlamento e a S&D, 25% (totalizando 61% dos assentos), os dois partidos votaram juntos em mais de 70% dos temas debatidos. Entre os temas, incluem-se os principais com impacto na crise: Assuntos Econô-micos e Monetários e Emprego e Políticas Públicas. A partir de 2014, mesmo com a perda significativa de representatividade,

PPE e S&D ainda dispõem, somados, de maioria, com 51% dos assentos. Votando juntos, esses blocos pró-Europa elegeram o luxemburguês Jean-Claude Junker (PPE), de visão federalista, para substituir o português José Manuel Barroso, também do PPE, para a presidência da Comissão Europeia, o órgão executivo do bloco eu-ropeu, a partir de novembro, com mandato de cinco anos.

A ausência de uma política econômica para o bloco e as respostas desarticuladas de Bruxelas para a crise nos países que, a partir de 2008, enfrentaram cenários de insolvên-cia provocaram questionamentos sobre a representatividade da maioria parlamentar: “Onde estavam os nossos representantes quando os planos de austeridade nacionais, formulados pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), começa-

ram a pipocar nos últimos anos?” Dessa indagação surgiu a onda eleitoral na qual surfaram os eurocéticos.

O Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), que defende a saída britâ-nica do bloco, elegeu 24 eurodeputados (eram 13 em 2009). A xenófoba Frente Nacional, da França, conquistou 25 as-sentos, tornando-se a maior força do país no Parlamento Europeu. Dois partidos de extrema-direita, o Partido Popular (Dina-marca) e o Jobbik (Hungria) – acusado de racismo e antissemitismo –, alcançaram o primeiro e segundo lugares, respectiva-mente, nas eleições para o Parlamento.

A crise sistêmica de alguns países conferiu força aos discursos nacionalistas, que pregam o isolamento dos Estados-nações para, su-postamente, defender os interesses de seus cidadãos. Mas essa premissa é paradoxal nos dias de hoje, uma vez que os planos de aus-teridade, com ajustes orçamentários, brutal aumento de impostos e cortes em salários e benefícios sociais são implementados pelos próprios governos nacionais.

Sob as nuvens escuras da crise, ga-nharam votos partidos situados nos dois extremos do espectro ideológico. Mas o cenário beneficiou mais a extrema-direita que a esquerda radical. Os eleitores ex-pressaram sua desesperança, seu rancor e sua raiva. Contudo, não indicaram saídas viáveis para a maior crise política experimentada pela Europa desde que o francês Jean Monnet estabeleceu a pedra fundamental do projeto europeu, no início da década de 1950.

Renato Mendes é jornalista

eurocéticoS triunfam naS eleiçõeS europeiaSRenato Mendes

Especial para Mundo

Estranho paradoxo: os partidos mais hostis à União Europeia foram os que mais avançaram nas urnas, em maio

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42014 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

Compare o impacto de dois fiascos. A França de 2010 voltou para casa sob pedradas da imprensa, enfren-

tando um justo desprezo da opinião pública; a Espanha de 2014 foi recebida com carinho, tristeza e, acima de tudo, nostalgia. Quais as raízes da diferença?

Os franceses tinham uma seleção poderosa, que cons-truíra algo como uma tradição de altos e baixos. A hora do triunfo foi em 1998, em casa, na final histórica em que o esquadrão de Zinédine Zidane destruiu por 3 a 0 o Brasil de Ronaldo, Rivaldo e Bebeto. Na Copa seguinte, em 2002, o time tricolor fracassou amargamente, não ultrapassando a fase de grupos. Quatro anos mais tarde, em gramados alemães, o velho Zidane conduziu seus ca-maradas até a final, uma derrota nos pênaltis para a Itália. Depois, na África do Sul, em 2010, sem Zidane, sem garra e sem honra, os franceses caíram na fase inicial, amargando derrotas frente ao México e aos anfitriões.

A Espanha, de seu lado, construiu mais que uma tradição: numa era curta, mas gloriosa, a seleção nacional e o Barcelona, sua base, revolucionaram os conceitos do futebol. O ponto culminante foi o triunfo na África do Sul, obtido após quatro vitórias sucessivas pelo mesmo placar de 1 a 0 nos confrontos posteriores à fase de grupos. Dois anos antes e dois anos depois, La Roja sagrara-se campeã da Copa da União das Federações Europeias de Futebol (Uefa), o prestigioso torneio de seleções europeias, enquanto o Barcelona colecionava todos os títulos que um time pode ambicionar.

Os placares magros da campanha de 2010 ocultam o principal. La Roja, como o Barce-lona, elevou a patamares nunca antes vistos um conceito de praticar o futebol. Cerebral, matemática, magistral, a seleção espanhola alcançou a glória quando deixou no passado a marca registrada da correria, que sintetizara no apelido “A Fúria”, concentrando-se no imperativo de dominar o meio-campo. O time atacava e defendia em bloco, desenhando tricôs infindáveis por meio de passes rápidos, curtos, milimetricamente precisos. A trama geométrica, em perene mutação, assentada na habilidade individual de jogadores como Andrés Iniesta, Xavi, Xabi Alonso e Sergio Busquets e numa inflexível obediência tática coletiva, negava de modo absoluto a posse de bola ao adversário.

Não era um raio no céu azul, mas o refi-namento do futebol moderno que emergira com a seleção brasileira de 1970, no México, e com o “Carrossel Holandês” de 1974, na Alemanha. Era, especialmente, uma fusão das melhores qualidades da tradição sul-americana, brasileira e argenti-na, com as ideias táticas aperfeiçoadas pelos times das ligas milionárias europeias. A era gloriosa, contudo, chegou ao fim nos campos do Brasil, depois da goleada humilhante sofrida diante da Holanda (5 a 1, um placar que não pa-

A Espanha se dividiu, de modo amargo e sangrento, na Guerra Civil, entre 1936 e 1939. A divisão se per-petuou na forma da ditadura franquista, estendendo-se até meados da década de 1970. Depois, a Transição curou a funda ferida. O rei Juan Carlos I, fiador da democratização, e o primeiro-ministro Adolfo Suárez, que governou entre 1976 e 1981, administrando a mudança de regime, articularam um duradouro con-senso nacional. A estabilidade política, amparada pela oscilação entre governos de centro-direita do Partido Popular e governos de centro-esquerda do Partido Socialista, propiciou o crescimento econômico e a mo-dernização social. A chama dos separatismos perdeu vigor e os atentados terroristas do ETA declinaram aos poucos, sob o rechaço de amplas maiorias populares. O ingresso na União Europeia e um prolongado ci-clo de prosperidade nutriram o sonho espanhol, que perdurou até o choque financeiro de 2012. La Roja funcionou como representação dessa Espanha feliz, otimista e orgulhosa de si mesma.

La Roja era o Barcelona, mais uns poucos jogadores do Real Madrid. Desse modo, a seleção nacional se converteu em símbolo da unidade, pairando acima das rivalidades entre a capital espanhola e a capital catalã. Os jogadores, atletas educados, modernos e gentis, personificaram a utopia de um país cosmopolita, que não precisava mais recordar a Guerra Civil, a longa

ditadura anacrôni-ca e indicadores de pobreza indignos da Europa Ocidental. A Espanha ensina-va o mundo a jogar futebol , enquan-to definia para si mesma um lugar de destaque no núcleo da União Europeia. Por isso, “a equipe era demasiadamente querida”.

Os 5 a 1 e a pá de cal, nos 2 a 1, foram interpretados pela imprensa espanhola como um sinal de alarme: a hora de voltar à realidade. Suárez está morto. Juan Carlos deixou

o trono. A Catalunha reivindica a independência e, desafiando a Constituição, o governo catalão marcou a data de 9 de novembro para uma consulta separatista. O sonho acabou. Sobraram suas belas memórias: uma nostalgia que não quer passar.

recia viável em confrontos entre grandes seleções até um certo 7 a 1) e da derrota decisiva diante do Chile. Mesmo assim, os campeões batidos voltaram para casa de cabeça erguida, como ícones de um tempo inesquecível.

Uma razão está no próprio futebol: no brilho intenso da seleção revolucionária. “A equipe era demasiadamente querida”, escreveu Santiago Roncagliolo no jornal El País. “Mesmo após a humilhação frente à Holanda, a opinião pública espanhola dedicou-se a animar os jogadores. Quando o Brasil venceu a Croácia por 3 a 1, as manche-tes brasileiras vituperaram contra sua seleção. Quando a Argentina bateu a Bósnia por 2 a 1, a celebração midiática foi discreta. Mas a Espanha perdeu por 5 a 1, e toda a imprensa disse: ‘Vamos, garotos, vocês podem. Não acon-teceu nada.’ Suponho que dizíamos isso a nós mesmos.”

Há, porém, outra razão, talvez ainda mais relevan-te, que se situa no chão da política. No mesmo texto, Roncagliolo escreveu: “A Espanha esteve irreconhecível precisamente por continuar a ser a mesma. As recordações dessa equipe são tão belas que substituíram a realidade. E o mesmo aconteceu com os líderes espanhóis. Desde a morte de Adolfo Suárez até a abdicação de Juan Carlos (...), a televisão voltou a nos enamorar com as belas memórias da Transição. Mas a Transição já transitou. Suas recordações já não podem tomar o lugar da vida real.”

la roja, o time que uniu a eSpanHa

EuRoPa

Derrotada no Brasil, a seleção espanhola foi recebida com tristeza, mas com carinho. A equipe que revolucionou o futebol era, também, o símbolo de uma Espanha feliz e orgulhosa, em paz com si mesma

Integrada majoritariamente por jogadores do Barcelona e do Real Madrid, a seleção

nacional se converteu em símbolo da unidade, acima das rivalidades entre as

capitais espanhola e catalã

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MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO � AGOSTO 2014

O Boko Haram, um dos mais re-pugnantes grupos terroristas do

mundo, não representa os muçulmanos da Nigéria, cujas organizações denunciam sua natureza anti-islâmica. Mohammed Yusuf, líder original do grupo, um fanático jihadista, denunciava a teoria da evolução e a esfericidade da Terra como abomi-nações do pensamento ocidental. Mas o Boko Haram não é uma milícia isolada de extremistas: suas raízes se encontram na crise de um Estado organizado em torno de identidades étnicas oficiais.

A Nigéria nasceu em 1914, por um ato da potência imperial britânica, que traçou uma fronteira no mapa e reuniu cerca de 250 etnias. O poder colonial britânico apoiou-se nas elites cristianizadas dos iorubás e dos igbos, etnias majoritárias no oeste e no sudeste, marginalizando os muçulmanos do norte, em sua maioria hauçás-fulanis. Negociada com a potência imperial, a independência baseou-se numa Constituição federal que dividia o país em Norte, Ocidente e Oriente, consolidan-do o poder regional das três principais etnias. Logo depois, a elite hauçá-fulani estabeleceu mecanismos de cotas étnicas no funcionalismo público da Nigéria Setentrional.

Um líder político do Norte admitiu que, para implantar as cotas, “nós tivemos que ensinar o povo a odiar os sulistas, a enxergá-los como pessoas que expropria-vam seus direitos”. A guerra separatista dos igbos de Biafra, entre 1967 e 1970, assinalou o colapso do Estado nigeriano. Seguiram-se duas reconstruções: a Cons-tituição de 1979 dividiu o país em 19 estados; a Constituição de 1999 ampliou o número de estados para 36. Procurava-se cimentar a unidade nacional em torno de pactos abrangentes entre as elites étnicas regionais. Os pactos conferiam aos go-vernos estaduais a prerrogativa de criar cotas para os “habitantes nativos” no fun-cionalismo, no mercado de trabalho, nas universidades e até na esfera da posse da terra. Junto com os privilégios, espalhou-se o ódio étnico por todo o país.

São 36 estados, mas 250 etnias. As etnias minoritárias e os migrantes estão excluídos das reservas de cotas, pois não ostentam o rótulo de “habitantes nativos”. A miséria, o desespero e a privação de direitos são mais profundos na Nigéria

nigéRia

Organização terrorista extrai sua força da miséria e do desespero gerados pelas políticas étnicas

Em torno do Lago ChadeO mais recente conflito na Nigéria tem um viés ambiental. O estado

de Borno, local de origem e principal área de atuação do Boko Haram, é o único dos 36 estados da federação que tem seu território junto às margens do Lago Chade.

O lago situa-se na borda meridional do Saara, onde convergem as fron-teiras de quatro países: Níger, Chade, Nigéria e Camarões [veja o mapa 1]. É um lago de água doce, com profundidades inferiores a sete metros. Cerca de 90% das águas que o abastecem provêm do Rio Chari e de seu afluente Logone, cujas nascentes situam-se nas regiões montanhosas da República Centro-Africana. Assim, é da parte meridional que o lago recebe a maioria dos fluxos hídricos que o alimentam, já que a parte norte, situada nas áreas semiáridas do Sahel, contribui apenas com volumes pouco expressivos de água, originária de rios intermitentes.

Grandes variações sazonais do volume de água em lagos são fenômenos comuns, mas ao longo das quatro últimas décadas a extensão do Lago Chade diminuiu drasticamente. No início da década de 1960, sua área era de apro-ximadamente 25 mil quilômetros quadrados, superfície que se reduziu para 4 mil quilômetros quadrados em 2001. Atualmente sua extensão é de cerca de 1,5 mil quilômetros quadrados. O antigo grande lago não passa, hoje, de um pântano coberto parcialmente por vegetação [veja o mapa 2].

A “sangria hídrica” das últimas décadas resulta de secas recorrentes que afetaram especialmente a borda setentrional do lago, onde os agricultores tradicionalmente cultivam os solos úmidos do recuo das águas, durante a estação seca. Nas últimas décadas, as chuvas na região diminuíram em cerca de 40%.

Mas o desastre é também consequência das práticas agrícolas e pastoris da população que vive no entorno do lago. Nos últimos 50 anos, essa população mais que dobrou, superando 25 milhões de pessoas. Paralelamente, o uso da irrigação quadruplicou nos últimos 25 anos, para responder às crescentes necessidades alimentares. Além disso, os países ribeirinhos desenvolveram projetos hidráulicos nos rios que abastecem o lago, com vistas a aumentar a produção de alimentos e produzir energia.

Especialistas americanos compararam o peso dos fatores naturais e hu-manos no ressecamento do lago. Eles concluíram que, entre 1966 e 1975, as condições climáticas desfavoráveis (irregularidade e ausência de chuvas) foram responsáveis por 95% da retração da superfície do lago, que perdeu cerca de 30% de sua superfície líquida no período. Contudo, entre 1983 e 1994, foi o aumento das áreas irrigadas que provocou o recuo da superfície do lago em 50% de sua extensão original. Desde então, estabeleceu-se um ciclo vicioso: a degradação do meio natural reforça os obstáculos ao desenvolvimento, e a

pobreza faz crescer a pressão sobre os recursos hídricos, com efeitos desastrosos.A desestruturação da economia rural e o aumento da pobreza atingiram sobretudo os jovens – que, sem perspectivas, tornam-se presas

fáceis dos recrutadores do Boko Haram. A organização oferece escolas corânicas gratuitas para milhares de menores cujos pais não confiam na qualidade do ensino público e não têm condições de pagar as escolas tradicionais. Embora o Boko Haram tenha surgido na Universidade de Maiduguri, a capital do estado de Borno, grande parte de seus membros foi recrutada nas áreas rurais.

Demétrio MagnoliEditor de Mundo

boko Haram evidencia falência do eStado nigeriano

Setentrional, especialmente às margens do Lago Chade [veja o Meio e o Homem, nesta página]. O Boko Haram nasceu nessa parte muçulmana do país.

Yusuf, o fundador do Boko Haram, era um pregador puritano local que rom-peu com a seção nigeriana da Irmandade Muçulmana e se tornou popular entre os jovens pobres da etnia kanuri. Seu assassi-

nato, sob custódia policial, em 2009, abriu caminho para a ascensão de lideranças ain-da mais radicais, que conectaram o grupo a organizações jihadistas do Mali, do Níger e do Chade. O Boko Haram aproveita-se de redes de corrupção para se infiltrar nas Forças Armadas, nos serviços de inteligên-cia e no Parlamento do país.

A bandeira do Boko Haram é a criação

de um Estado islâmico na Nigéria Seten-trional. Diante da discriminação étnica institucional, a miragem de uma igualdade baseada na fé islâmica funciona como po-deroso ímã político. O fanatismo jihadista não é um raio no céu azul, mas o sintoma da falência de um Estado que rejeita o princípio da igualdade perante a lei.

Mapa 1

Mapa 2

Principal área de atuação do grupo Boko Haram

Limites do estado de Borno

O Boko Haram na Nigéria

Lago Chade

NÍGER

GOLFODA

GUINÉ

BENIN

N I G É R I A

CAMARÕES

Abuja

Lagos

BORNO

1

1

Superfície seca ouressecada do lago

Superfície do lago em 2007

O Lago Chade em dois tempos

NÍGER

NIGÉRIA

CHADE

CAMARÕES CAMARÕES

CHADE

NIGÉRIA

NÍGER

LagoChade

LagoChade

Superfície original do lago

O Lago Chade em 1963 O Lago Chade em 2007

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�2014 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

naSce um califado jiHadiSta no coração do oriente médio

país, esfarelou o Exército e produziu um governo xiita hostil à minoria sunita. O re-sultado é que, hoje, a coalizão de governo do primeiro-ministro Nouri al-Maliki somente se mantém no poder graças ao apoio das mi-lícias do líder xiita Moqtada al-Sadr, aliado do Irã. Com o norte curdo praticamente independente do poder central e a guerra civil entre xiitas e sunitas correndo solta, o Estado iraquiano virou peça de ficção [veja a matéria à página 7].

O Isis é o fruto da evolução da orga-nização terrorista Tanzim Al-Qaeda wal Jihad fi Balad al-Rafidain (Organização da Al-Qaeda e Guerra Santa na Mesopotâmia), antes denominada Tawhid wal Jihad (Mo-noteísmo e Guerra Santa), fundada pelo líder da Al-Qaeda no Iraque Abu Musab al-Zarqawi, uma espécie de “emir” de Osama Bin Laden no país, morto em 2006 pelas tropas americanas. Naquele mesmo ano, o grupo adotou seu nome atual. A partir de 2010, a organização passou a ser liderada por Abu Bakr al-Baghdadi, também conhe-cido como Abu Dua, um ativista islâmico com enorme experiência no jihadismo.

quandO Os Jihadistas dO isis (...) twittaram fOtOs de uma escavadeira nivelandO a barreira de terra que fOrma parte da frOnteira entre síria e iraque, eles anunciaram, triunfalmente, que estavam destruindO a “frOnteira sykes-picOt” (...). essa açãO simbólica (...) evidencia a que pOntO um dOs grupOs cOmbatentes mais radicais dO Oriente

médiO de hOJe é inspiradO pelO mitO da inOcência pré-cOlOnial, quandO O impériO OtOmanO e O islã sunita gOvernavam um reinO cOntínuO entre O gOlfO pérsicO e a África dO nOrte – e Os xiitas cOnheciam O seu lugar (...). mas pOr que sykes-picOt é tãO impOrtante? uma razãO é que ele se situa nO pOntO de partida daquilO que muitOs Árabes

enxergam cOmO uma sequência de traições Ocidentais, abrangendO desde O desmantelamentO dO impériO turcO-OtOmanO na primeira guerra mundial até O estabelecimentO de israel em 1948 e a invasãO dO iraque em 2003.

[malise ruthven, “the map isis hates”, The New York review of Books, 25 de JunhO de 2014]

A História acontece duas vezes”, disse o filósofo alemão Georg Hegel, no

início do século XIX, emendado depois pelo pensador e militante Karl Marx: “A primeira como tragédia, a segunda como farsa.” Pou-cas máximas se mostraram tão surradas e, no entanto, tão verdadeiras. A mais recente manifestação de uma farsa histórica ocorreu em maio, quando o presidente ame-ricano Barack Obama pronunciou a seguinte frase: “Retiramos as tropas do Iraque. Vamos finalizar a guerra no Afeganistão. A direção da Al-Qaeda foi dizimada, e Bin Laden está morto.” Dias depois, o grupo jihadista Esta-do Islâmico do Iraque e do Levante (Isis), que teve origem na Al-Qaeda, tomou a cidade iraquiana de Mossul, a segunda maior do país, rica em reservas de petróleo. Na sequência, o Isis anunciou a restauração do califado, entidade abolida em 1924 com o fim do Império turco-otomano e que tem a pretensão de ser um governo islâmico mundial. O embrião de califado do Isis estende-se por uma área que vai do nordeste da Síria ao noroeste do Iraque [veja o mapa].

A farsa de Obama ecoa a tragédia protagonizada por seu antecessor, George W. Bush, em maio de 2003, quando anunciou o fim da guerra no Iraque, semanas antes de tomar corpo no país uma sangrenta insurgência contra a ocupação americana, cujos des-dobramentos se arrastam até hoje. Um desses desdobramentos é justamente o surgimento do Isis em 2004, inicialmente como “franquia” da Al-Qaeda, para resistir à ocupação americana.

A invasão americana do Iraque não apenas derrubou o regime de Saddam Hussein, uma ditadura laica dominada pela minoria sunita, como desmantelou o Estado iraquiano, provocando a balcanização do país, com xiitas, sunitas e curdos se engol-fando em lutas intestinas. Criou-se, dessa maneira, o caldo de cultura perfeito para o florescimento do jihadismo, a “guerra santa” pregada pela Al-Qaeda, fenômeno que até então era desconhecido no Iraque.

No Japão, após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos administraram a ocupação de modo a conservar os pilares do Estado nacional nipônico. No Iraque, pelo contrário, Washington desmantelou as instituições estatais existentes e tentou formar um governo títere, com aliados pró-ocidentais sem legitimidade. O fracasso dessa tentativa fragmentou ainda mais o

Com a eclosão da Primavera Árabe, em 2011, o Isis ampliou sua influência, recrutando militantes jihadistas sunitas de vários países para se juntar a outros grupos fundamentalistas que tentavam derrubar na Síria a ditadura laica de Bashar al-Assad. Fi-nanciado por doadores das teocracias suni-tas do Golfo Pérsico (Arábia Saudita, Catar, Kuwait e Emirados Árabes Unidos), o grupo se caracteriza por uma violência extrema, exagerada até para os padrões da Al-Qaeda, e pela imposição sistemática da sharia (lei islâmica) nos lugares conquistados. Sob o impacto da jihad do Isis, configura-se uma guerra regional entre poderes sunitas e xiitas [veja a matéria à página 8].

A influência crescente do Isis na Síria, onde cobra até “impostos”, colocou-o em rota de colisão com a Al-Qaeda. Isso por-que o atual líder da organização fundada por Bin Laden, o médico egípcio Ayman al-Zawahiri, patrocinava na Síria a Frente Al-Nusra, mais fiel à matriz e mais disposta a lutar em coalizão com outros grupos re-beldes. Em 2013, depois de várias conquis-tas na Síria, Abu Bakr al-Baghdadi exigiu

o comando da Al-Nusra, mas Zawahiri insistiu que ele deveria se concentrar no Iraque. Com mais força e poder do que a Al-Qaeda, a criatura se rebelou contra o criador, e Baghdadi desafiou abertamente a orientação do sucessor de Bin Laden.

A “guerra santa” do Isis ameaça des-truir a unidade tanto do Iraque quanto da Síria, consolidando um Estado jihadista no coração do Oriente Médio. Enquanto isso, “fatigados por uma década de guerras no Afeganistão e no Iraque, americanos e europeus estão desesperados para sair des-se atoleiro”, escreveu Reva Bhalla no site Stratfor. Em consequência, desenha-se uma ironia geopolítica de amplas implicações: com o desmantelamento do Estado central iraquiano e a infindável guerra civil na Síria, a estabilidade na região só pode ser mantida com o apoio do Irã xiita, o arqui-inimigo dos Estados Unidos e tradicional foco de instabilidade no Oriente Médio.

É tudo o que os jihadistas sunitas precisavam...

oRiEntE MéDio

Cláudio CamargoEspecial para Mundo

Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo

Ofensiva do Isis, no Iraque, deixa em escombros o centro de Ramadi, na província de Anbar

Área sob domínio do Isis na Síria e Iraque

IRÃTURQUIA

ARÁBIASAUDITA

Bagdá

Damasco

Mossul

Kirkuk

Tikrit

JORDÂNIA

KUWAIT

SÍRIA

IRAQUE

0 100 km

Rio Tigre

Rio Eufrates

Paísesárabe-muçulmanosPaíses muçulmanosnão árabesÁrea dominadapelo IsisFONTE: Adaptado deThe Economist e Der Spiegel

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MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO � AGOSTO 2014

iraque, um eStado tripartido

naSce um califado jiHadiSta no coração do oriente médioquandO Os Jihadistas dO isis (...) twittaram fOtOs de uma escavadeira nivelandO a barreira de terra que fOrma parte da frOnteira entre síria e iraque, eles anunciaram,

triunfalmente, que estavam destruindO a “frOnteira sykes-picOt” (...). essa açãO simbólica (...) evidencia a que pOntO um dOs grupOs cOmbatentes mais radicais dO Oriente médiO de hOJe é inspiradO pelO mitO da inOcência pré-cOlOnial, quandO O impériO OtOmanO e O islã sunita gOvernavam um reinO cOntínuO entre O gOlfO pérsicO e a África

dO nOrte – e Os xiitas cOnheciam O seu lugar (...). mas pOr que sykes-picOt é tãO impOrtante? uma razãO é que ele se situa nO pOntO de partida daquilO que muitOs Árabes enxergam cOmO uma sequência de traições Ocidentais, abrangendO desde O desmantelamentO dO impériO turcO-OtOmanO na primeira guerra mundial até O estabelecimentO

de israel em 1948 e a invasãO dO iraque em 2003.

[malise ruthven, “the map isis hates”, The New York review of Books, 25 de JunhO de 2014]

Dias depois da conquista de Mossul, numa encenação dirigida aos muçulmanos de todo o mundo, o Isis usou uma escavadeira para destruir um marco de fronteira que assinalava a linha divisória entre o Iraque e a Síria. Desse modo,

emblematicamente, o grupo jihadista declarava o renascimento do califado e a supressão das fronteiras coloniais traçadas um século atrás por britânicos e franceses. No discurso do Isis, a “guerra santa” dirige-se contra o imperialismo ocidental e os governos “infiéis” dos países muçulmanos do Oriente Médio.

As negociações entre os diplomatas britânico Mark Sykes e francês François Georges-Picot se estenderam entre novembro de 1915 e março de 1916, concluindo-se com um acerto secreto que ficaria conhecido como Acordo Sykes-Picot. O instru-mento definia as esferas de influência das duas potências europeias no Oriente Médio após a eventual derrota do Império turco-otomano na Primeira Guerra Mundial.

A França ficaria, basicamente, com áreas correspondentes aos atuais Síria, Líbano e extremo norte do Iraque. À Grã-Bretanha caberia a Palestina, a Jordânia e o Iraque. As fronteiras internas seriam traçadas livremente pelas potências dominantes. Aliada na Tríplice Entente, a Rússia acatou a divisão e adquiriu direitos futuros sobre Istambul, os estreitos de Bósforo e Dardanelos e a Armênia [veja o mapa 1]. No fim de 1917, com a tomada do poder pelos bolcheviques, o governo revolucionário russo denunciou o acordo e publicou seus termos.

O interesse britânico pelas áreas do atual Iraque surgiu anos antes da Primeira Guerra Mundial, na hora da corrida pelo petróleo do Oriente Médio. Tudo começou com a decisão, adotada pelo então primeiro-lorde do Almirantado (ministro da Marinha) Winston Churchill, de modernizar a frota de guerra, convertendo as grandes embarcações movidas a carvão para o óleo combustível. Tratava-se de fazer frente à nova frota alemã, constituída por navios menores, mas capazes de manobrar em velocidade em virtude dos motores de combustão interna, a diesel. A imperiosa necessidade militar de obter controle sobre as fontes do petróleo conduziu a Grã-Bretanha às terras do atual Iraque.

Por recomendação de Churchill, o governo de Londres aquiriu ações da Anglo-Persian Oil Company (Apoc), uma companhia petrolífera que operava no Irã. A descoberta de vastos campos petrolíferos na região de Kirkuk, no atual Iraque setentrional, orientou as estratégias militares e diplomáticas britânicas no Oriente Médio. Não por acaso, a linha divisória do Acordo Sykes-Picot foi traçada um pouco ao norte de Kirkuk, assegurando aos britânicos as almejadas reservas de petróleo. A divisão de esferas de influência representou uma traição aos chefes árabes aliados, que lutaram contra os turco-otomanos acreditando na promessa do agente britânico T. E. Lawrence de criação de um Estado árabe na região da Grande Síria (isto é, os territórios correspondentes aos atuais Síria, Jordânia, Iraque e Israel/Palestina).

Nos tempos otomanos, o atual Iraque dividia-se nas províncias de Mossul, no norte habitado por árabes sunitas e cur-dos, Bagdá, no centro habitado por árabes xiitas e sunitas, e Basra, no sul habitado por árabes xiitas. Os britânicos unificaram as três províncias, reunindo os campos de petróleo do norte ao porto do Golfo Pérsico, no sul, através do núcleo central polarizado pela antiga capital muçulmana de Bagdá. O país resultante, carente de identidade histórica ou coesão social, conservou sua unidade exclusivamente devido à força de autoridades centrais tirânicas [veja o mapa 2].

A monarquia protegida pelos britânicos caiu em 1958. Dez anos depois, um golpe de Estado liderado pelos nacionalistas pan-arabistas do Partido Baath inaugurou o ciclo que alcançaria seu apogeu com a ditadura de Saddam Hussein. O ditador apoiou-se num sistema de partido único, organizado em torno de seu clã e, de modo geral, da minoria sunita (um quarto da população). A maioria xiita (cerca de 60%) e a minoria curda (cerca de 15%) foram excluídas do alto funcionalismo público e da oficialidade militar. Depois da Guerra do Golfo (1991), uma zona de exclusão aérea imposta pelos Estados Unidos propiciou a criação de uma zona de autonomia curda no nordeste do país.

A invasão americana de 2003 provocou a derrubada de Saddam Hussein e a dissolução das estruturas estatais iraquianas, abrindo caminho para um longo ciclo de instabilidade. A retirada das forças americanas acenou o vácuo de poder no qual floresce, agora, sob o influxo dos jihadistas, a guerra sectária entre sunitas e xiitas. O conflito interno iraquiano se entrelaça à guerra civil na Síria e envolve diretamente o Irã, que apoia o frágil governo xiita de Bagdá. Indiretamente, suas ondas de cho-que estimulam o nacionalismo curdo e, por essa via, atingem a Turquia, o país que concentra a maior parte da população curda [veja a matéria à página 9].

As fronteiras desenhadas após o Acordo Sykes-Picot foram obra das potências imperiais europeias. Hoje, contudo, elas são defendidas com unhas e dentes pelos governos árabes xiitas de Bagdá e Damasco, bem como pelo Irã. A cena da escavadeira do Isis destruindo o marco de fronteira é uma mensagem mais ameaçadora para esses governos que para as próprias potências ocidentais.

© A

FP

Mapa 1 Mapa 2

Ofensiva do Isis, no Iraque, deixa em escombros o centro de Ramadi, na província de Anbar

TURQUIA

JORDÂNIA

SÍRIA

ARÁBIA SAUDITAKUWAIT

IRÃ

I R A Q U E

Basra

Mossul

BagdáRamadi

Tikrit

200 KmGOLFO

PÉRSICO

ÁREAS DE POVOAMENTO

DOMINANTEMENTE XIITA

DOMINANTEMENTE SUNITA

DOMINANTEMENTE CURDO

MISTO

PAÍSES ÁRABES

PAÍSES NÃO ÁRABES

TRIÂNGULO SUNITA

FONTE: SELLIER, André; SELLIER, Jean. Atlas des Peuples d’Orient. Paris: La Découverte, 2004. p 73.

IRAQUE: GRUPOS ETNORRELIGIOSOSO Acordo Sykes-Picot

TURQUIA

Alepo

200 km0

IMPÉRIORUSSO

PÉRSIA(IRÃ)

ARÁBIASAUDITA

SINAI(EGITO)

ZONA AZUL

ZONA A

ZONA B ZONAVERMELHA

Mossul

Kirkuk

BeiruteDamasco

AmãJerusalém

Bagdá

Basra

MA

RM

EDIT

ERRÂ

NEO

MAR

VERMELHO

MAR NEGROMAR

CÁSPIO

Tabriz

Zona Azul (sob controle da França)

Zona A (sob influência francesa)

Zona internacional

Zona B (sob influência britânica)

Zona Vermelha (sob controle britânico)

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�2014 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

que todos os grupos em ação no Oriente Médio atuem como um exército disciplinado e disposto a acatar todas as ordens e determinações vindas dos chefes. Por exem-plo, o Isis, que se notabilizou, em julho, por sua ofensiva no Iraque, aparentemente escapa ao controle de quem quer seja, embora seja de origem sunita [veja a matéria à página 6]. Já o palestino Hamas (que, apesar de ser de maioria sunita, durante um certo tempo recebeu ajuda dos iranianos xiitas na luta contra Israel) foi dividido pelo jogo de interesses mobilizados pela guerra civil síria: hoje, uma parte da organização continua a apoiar a ditadura de Assad, pró-Irã, ao passo que outra parte ficou com a oposição sunita, pró-Arábia Saudita.

Finalmente, um outro dado complica ainda mais o imbróglio. Uma parcela dos grupos jihadistas, fundamen-

um xadrez de enlouquecer o profeta

oRiEntE MéDio

Os xiitas, representados principalmente pelo clero que governa o Irã, constituem a ala mais radical e

fanática da religião islâmica. Os sunitas, a outra vertente do Islã, liderados sobretudo pela monarquia saudita – a guardiã de Meca e dos mais sagrados templos muçulmanos –, são em geral moderados e se mostram mais abertos ao diálogo com o mundo ocidental. Dado esse quadro, os conflitos no Oriente Médio derivam, em sua maior parte, da intransigência e do radicalismo xiitas, principais fornecedores de militantes e armas destinadas aos grupos fundamentalistas e terroristas.

Se você concorda, em linhas gerais, com as afirmações anteriores, é melhor dar mais atenção aos estudos sobre o Islã e o Oriente Médio: está quase tudo errado. Não é o “radicalismo” ou a “moderação” que distinguem xiitas e sunitas, mas sim desenvolvimentos históricos que têm sua origem no século VII, quando nasceu o próprio mundo islâmico [veja o box]. Há xiitas “moderados” e há sunitas “radicais”. Osama Bin Laden, por exemplo, era sunita, assim como a Al-Qaeda, o Isis e a organização fundamen-talista Irmandade Muçulmana, que tem células espalhadas por todo o Islã (dentro e fora do Oriente Médio).

A monarquia saudita realmente exerce grande influ-ência sobre os sunitas e mantém uma política de alianças militares com os Estados Unidos e seus aliados. Mas não é verdade que ela seja “aberta ao diálogo” e às influências culturais do Ocidente. Ao contrário, a família Saud, que governa o país como Estado teocrático desde sua criação, em 1932, é adepta da seita fundamentalista wahabita. Até hoje, na Arábia Saudita, consumir álcool em público, por exemplo, pode resultar em prisão e punição física (ou deportação, no caso de estrangeiros); é impossível a uma mulher obter permissão para dirigir um veículo; sob pressão internacional, o rei Abdallah anunciou que, a partir de 2015, as sauditas poderão até se candidatar e votar nas eleições locais para o conselho que supervisiona o legislativo das regiões, um passo extraordinário que ainda terá que ser dado.

Do outro lado, é também verdade que o clero iraniano lidera os xiitas, especialmente após a Revolução de 1979, que destronou o xá Rezha Pahlavi e conduziu o aiatolá Ruhollah Khomeini ao poder. É igualmente certo que o Irã arma e financia alguns dos grupos islâmicos mais radicais, incluindo a própria Guarda Revolucionária iraniana e o Hezbollah (Partido de Deus), que atua no sul do Líbano, além de dar apoio à ditadura síria de Bashar al-Assad (que, por sua vez, é adepto da seita xiita alauíta). Mas, em termos de costumes, o regime dos aiatolás é muito mais “aberto” do que o saudita. Basta mencionar a projeção mundial do cinema iraniano – que, aliás, tem como um dos principais temas a situação social das mulheres e a questão da liberda-de, em sentido geral. Claro que há restrições aos costumes, mas nada comparável ao pesadelo wahabita.

A monarquia (sunita) saudita e o clero (xiita) iraniano disputam o controle do Oriente Médio e usam o discurso religioso como instrumento de mobilização, além de di-nheiro, armas e treinamento militar. Mas isso não significa

O uso de conceitos equivocados e simplificações excessivas mais complica do que ajuda na hora de entender o papel do Islã no Oriente Médio

Luta pelo poder criou as seitasO Islã é a religião que mais cresce globalmente. Genericamente, o mundo muçulmano se estende por uma larga faixa

do globo, desde o ocidente africano até a Indonésia, tendo como núcleo o Oriente Médio. Os sunitas constituem uma das vertentes do Islã: agregam 85% dos 1,4 bilhão de muçulmanos espalhados pelo planeta; os xiitas somam os outros 15% [veja o mapa]. Tanto sunitas quanto xiitas são subdivididos, por sua vez, em inúmeras seitas menores, que se organizam regionalmente ou professam determinadas convicções particulares. Apenas para efeito didático, trata-se de um fenômeno genericamente comparável ao que ocorre entre os cristãos: existem cristão católicos, protestantes, anglicanos, ortodoxos, maronitas, mórmons etc., cada um deles com suas crenças e verdades particulares.

O Islã surgiu no século VII, em Meca (na atual Arábia Saudita), quando um mercador chamado Mohammed relatou ter sido visitado pelo anjo Gabriel, durante um de seus retiros espirituais. O anjo lhe teria revelado a existência de um único Deus (que, em árabe, é Alá), criador do mundo e juiz de todos os homens. O anjo ditou o Corão (livro sagrado) a Mohammed, que passou a pregá-lo, sendo por isso perseguido e ameaçado de morte. Em resposta, Mohammed criou um poderoso exército, que conquistou Meca e iniciou a expansão pelo Oriente Médio e, depois, pelo mundo.

Após a morte de Mohammed, em 632, seus seguidores tiveram que responder quem seria seu sucessor. A questão dividiu o mundo islâmico. Uma parte dos fiéis acreditava que o único sucessor legítimo era Ali ibn Abi Talib, primo e genro do profeta Mohammed. Mas a disputa pelo poder levou ao califado Abu Bakr (632-634), que antes de morrer designou como sucessor Omar ibn al-Khatab, assassinado em 644. Assumiu Otman ibn Affan, também assassinado, em 656. Somente depois disso Ali assumiu o califado, até a morte, em 661, também por assassinato.

A divisão irreversível entre os islâmicos começou exatamente nesse ponto. Os apoiadores do quarto califa, minoritários, passaram a ser denominados “xiitas”, um diminutivo do árabe para “seguidores de Ali”. A maioria denominou-se “sunita”, do árabe “fiéis aos costumes” ou à tradição. Cada uma das duas seitas, a partir daí, passou a desenvolver seus próprios rituais e sua interpretação do texto corânico.

talistas e terroristas que se multiplicam, principalmente no Oriente Médio e na África, usa o discurso religioso apenas como pretexto para obter legitimidade, projeção política e, claro, dinheiro e armas. São grupos que nunca tiveram qualquer relação com o Corão e nem com a fé islâmica, mas que enxergam uma oportunidade de, recorrendo ao discurso religioso, justificar ações de puro banditismo, cujo único sentido é o da afirmação dos interesses de gangue, como no caso do Boko Haram nigeriano [veja as matérias à página 5].

Se, depois de ler tudo isso, você se sente um pouco confuso, então está no caminho certo. O quadro geral é mesmo complicado, não pode ser sintetizado por meia dú-zia de chavões e exige uma leitura mais atenta e profunda do que a possibilitada pelo noticiário de todos os dias.

Islâmicos fazem a peregrinação a Meca, onde nasceu o profeta Mohammed

Mundo muçulmano, muçulmanos do mundo

EUROPA

AMÉRICAS

RÚSSIA

TURQUIA

CHINA

IRÃ PAQUISTÃO

AFEGANISTÃO

ÍNDIABANGLADESH

SUDESTE ASIÁTICO

INDONÉSIA

ORIENTEMÉDIO ÁRABE

ÁFRICA SETENTRIONAL

ÁFRICA SAARIANAE SUBSAARIANA

FONTE: Adaptado de CHALIAND, Gérard. Atlas du Nouvel Ordre Mondial. Paris: Robert Laffont, 2003.

Países e regiões do mundo árabe

Cada quadradinho equivale aaproximadamente 4 milhões de habitantes

Indonésia país com maior número de muçulmanos

Índia minoria muçulmana (+ de 150 milhões)

Irã país com maior número de muçulmanos xiitas

EGITO

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MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO � AGOSTO 2014

Os curdos se revoltaram várias vezes, mas invariavelmente foram reprimidos pelos governos dos países aos quais estavam submetidos, especialmente na Turquia e no Iraque. Na Turquia, em 1984, nasceu o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), organização nacionalista armada que atuou também a partir do lado iraquiano da fronteira comum. Por várias vezes o governo turco atacou bases do PKK em território do Iraque. Depois de décadas de luta, em março de 2013, a organização decretou um cessar-fogo unilateral com o governo turco.

No Iraque, os curdos sofreram com a sistemática repressão da ditadura de Sa-ddam Hussein, baseada na minoria sunita. O cenário mudou após a Guerra do Golfo, quando uma decisão da Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu zonas de exclusão aérea no norte do Iraque para pro-teger a população curda. Em 2003, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, os curdos desempenharam papel importante na derrubada do regime. Em 2005, com a eleição de um governo de transição, os curdos passaram assumir postos relevantes na nova administração, inclusive a Presi-dência do país.

De lá para cá, os curdos iraquianos se contentaram em conservar alguma in-fluência no governo central e preservar a autonomia de seu território, no contexto de um Iraque federalista. O discurso de Barza-ni revela que, agora, a região curda parece

disposta a cortar os laços com um Iraque convulsionado, em vias de implosão.

Mesmo assim, a criação de um Curdistão unificado é quase uma utopia. Nenhum dos países que possuem popu-lações curdas abriria mão da soberania de seus territórios. Além disso, um Curdistão independente seria excepcional-mente rico em petróleo, por conta das jazidas do norte do Iraque, e em recursos hídricos, pois abrangeria as nascentes do Tigre e do Eufrates, no sudeste da Turquia.

Os curdos iraquianos controlam territórios onde se estima existir quase 50 bilhões de barris de petróleo, volume superior ao encontrado na Líbia. A separa-ção do Iraque tornou-se uma possibilidade real, mas nada indica que Barzani esteja disposto a estimular o separatismo curdo na Turquia. É fácil entender a moderação dos dirigentes curdos iraquianos: eles estão faturando alto com as exportações de petróleo para a Turquia, um país ávido por fontes energéticas. A equação petrolífera está, aliás, na base das negociações de paz entre as organizações curdas da Turquia e o governo de Ancara.

o paíS doS curdoS

oRiEntE MéDio

O Iraque já se dividiu, e não somos os responsáveis por isso. A hora che-

gou para que determinemos nosso próprio destino, e não devemos esperar que outros o determinem para nós.” Proferindo essas palavras, no início de julho, o presidente da região semiautônoma do Curdistão do Iraque, Massoud Barzani, colocava ainda mais lenha na fogueira na sangrenta guerra iraquiana.

A Constituição de 2005, redigida sob ocupação americana, determina uma divi-são sectária de poder no Iraque, atribuindo o cargo de primeiro-ministro aos xiitas, a Presidência do Parlamento aos sunitas e a Presidência da República aos curdos. O discurso de Barzani foi feito apenas três dias depois que curdos e sunitas iraquianos abandonaram intempestivamente aquela que seria a primeira reunião do Parlamento iraquiano, cujos representantes haviam sido eleitos em abril.

O grito de independência não surge no vazio. Os cerca de 5 milhões de curdos do norte do Iraque exercem o autogoverno em relativa paz desde que se concluiu a Guerra do Golfo, em 1991. Nas últimas semanas, aproveitando-se da insurgência conduzida pelos jihadistas do Isis, os curdos vêm expandindo seu território. Quando o Isis proclamou um califado baseado em Mossul, as forças curdas ocuparam a estra-tégica cidade de Kirkuk, abandonada pelo Exército iraquiano.

Os curdos formam um enclave cultural na encruzilhada dos mundos árabe, turco e persa. Disper-sos por uma vasta área do Oriente Médio que abrange regiões da Turquia, do Iraque, do Irã, da Síria e da Armê-nia, eles constituem a mais numerosa minoria da região e, também, o maior grupo étnico do mundo que não possui território nacional próprio. O Curdistão, isto é, o almejado país dos curdos, não tem limites precisos, mas se estende das Montanhas Zagros, no Irã, até o norte do Iraque, a porção setentrional da Síria e a Turquia Oriental. De maneira geral, é uma região montanhosa, parcialmente drenada pelos rios Tigre e Eufrates [veja o mapa].

O número exato de curdos é motivo de controvérsias. Algumas fontes falam em 27 milhões, e outras indicam até um total de 36 milhões. As polêmicas decorrem das ma-nipulações censitárias dos países que abrigam populações curdas – e das inevitáveis contramanipulações oriundas dos próprios curdos. Cerca de metade dos curdos do Oriente Médio vive na Turquia, onde representam aproximada-mente 20% da população total. Eles perfazem pouco mais de 15% da população do Iraque, 8% da população da Síria e 7% da população iraniana. Na Armênia, formam apenas pouco mais de 1% do total.

O Curdistão é uma antiga miragem nacionalista que abrange áreas de cinco países do Oriente Médio, inclusive as nascentes do Tigre e do Eufrates e os vastos campos petrolíferos do norte do Iraque

Os curdos não falam uma única língua e nem sequer professam uma religião comum, ainda que parcela conside-rável deles seja adepta do islamismo sunita. Genericamente, podem ser enquadrados em três categorias: os das monta-nhas, os das planícies e os das cidades. Os primeiros vivem basicamente do pastoreio e do comércio informal que ignora as fronteiras nacionais estabelecidas. Essas áreas montanho-sas abrigam mais de 30 tribos, cujas rivalidades tradicionais muitas vezes se sobrepuseram às lutas pela autonomia. Os curdos das cidades estão representados basicamente pelos centros urbanos do Iraque setentrional, ligados à indústria e à prospecção do petróleo, e pelos migrantes estabelecidos em Istambul e Ancara, na Turquia.

Os anseios por um Curdistão independente ganharam força ao fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando se imaginava que o país dos curdos surgiria com o desmantelamento do Império turco-otomano. No final do conflito, o célebre plano de paz do presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, consagrou seu 12º ponto à ideia de uma nação curda. O Tratado de Sèvres (1920) previa autonomia para os curdos, mas o de Lausanne (1923) derrubou aquela aspiração.

Zona de povoamento curdo

Países com maioriade população muçulmana

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Os curdos no Oriente Médio“

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102014 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

No fim de julho de 2013, uma parceria entre a Fundação João Pinheiro, o Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (IPEA) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) Brasil divulgou os dados sobre o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM). O IDHM compreende três indicado-res de desenvolvimento humano (longevidade, educação e renda) e varia de zero a um. Quanto mais próximo de um, maior o desenvolvimento humano.

Localizado na Grande São Paulo, o município de São Caetano do Sul, com 156 mil habitantes, apresentou o maior índice do Brasil (0,862), que o coloca com quali-dade de vida ligeiramente superior à verificada na Grécia (0,860) e inferior à registrada na República Checa (0,873), países situados nas posições 29 e 28 no ranking mundial de qualidade de vida.

O Brasil ocupa a 85ª posição na classificação mun-dial, entre 187 países. A lista é encabeçada por Noruega (0,943), Austrália (0,929) e Holanda (0,910). Ficar atrás dos europeus e dos norte-americanos não é novidade para o Brasil. Também não é surpresa perder para alguns vizinhos latino-americanos que experimentaram etapas coloniais um pouco diferenciadas, como Argentina, Chile e Uruguai. Entretanto, ficar atrás de países como Equador (83º), Jamaica (79º) e Venezuela (73º) evidencia atrasos deploráveis no acesso à saúde e à educação.

O cenário do Pará merece atenção especial. Entre 2000 e 2010, o estado apresentou retração brutal, des-pencando da 20ª para a 25ª posição. Hoje, o Pará supera apenas Maranhão e Alagoas na classificação nacional do IDH. Entre as 20 piores cidades para se viver no país, seis pertencem ao estado, inclusive Melgaço, a “lanterna” da classificação municipal. O pequeno núcleo ribeirinho, situado às margens do Rio Amazonas, na mesorregião do Arquipélago do Marajó, possui 25 mil habitantes e apresenta IDHM de 0,418, comparável ao observado no Sudão (0,414), um dos países mais pobres do mundo, devastado por conflitos étnicos e religiosos e pontilhado por campos de refugiados.

O IDHM revela que São Caetano do Sul e Melgaço estão em situações completamente opostas. A renda per capita mensal da cidade paulista saltou de R$ 1.107,53 em 1991 para R$ 2.043,74 em 2010, um acréscimo de 84,53%. No mesmo período, a pobreza extrema (pessoas com renda domiciliar per capita inferior a R$ 70 por mês) reduziu-se de 1,35% para perto de zero. Por outro lado, em Melgaço, o rendimento médio das famílias subiu de R$ 110,92 em 1991 para R$ 135,21 em 2010, um incremento de apenas 22%. A extrema pobreza, que era de 42,19%, cresceu para 43,92%.

Melgaço é um desastre. Somente 22% da população possui água encanada em domicílio. Cerca de 36% dos

habitantes não dispõem de energia elétrica, mesmo sendo o Pará um dos maiores geradores de eletricidade do país. A coleta de lixo, reali-zada apenas no espaço urbano, atende 23% da população total. Mais de 75% dos habitantes do município vivem na zona rural.

No Pará, sobram motivos para indignação. Como explicar o panorama desolador do IDHM num estado que possui incalculável riqueza bio-tecnológica potencial, derivada da megabiodiver-sidade da floresta amazônica? Como entendê-la no estado onde se situa Carajás, uma das maiores reservas minerais do globo, com vastas jazidas de ferro, manganês, ouro e cobre? Como aceitar tais índices de qualidade de vida num estado com enorme potencial turístico, oferecido pela Ilha

de Marajó, por Alter do Chão e pela própria Belém?

O Pará convive com o para-doxo de grandes obras públicas, vestidas na bandeira do desen-volvimento econômico, como a usina hidrelétrica de Belo Monte, e a realidade da deterioração das condições sociais. O IDHM de-

veria servir como alerta e chamado à ação.

idHm identifica a amazônia como nova “região-problema”bRasiL

Região Norte concentra 13 dos 20 municípios no extremo inferior da lista do IDHM. O Pará retrocedeu cinco posições, ficando à frente apenas de Maranhão e Alagoas

Apesar de tudo, obtivemos melhorias nos indicadores sociais nas últimas décadas. Em 1991, nenhuma cidade brasileira situava-se no patamar do alto desenvolvimento humano. Em 2010, 1.889 cidades, 34% dos municípios do país, atingiram essa classificação. A mudança atesta avanços em áreas como educação, saúde, emprego e renda. Contudo, as desigualdades regionais são gritantes: Distrito Federal, Rio Grande do Sul e Santa Catarina exibem pa-drões de desenvolvimento humano similares aos do sul da Europa, enquanto as regiões Norte e Nordeste situam-se ao lado de algumas das nações mais pobres do globo.

Na esfera do saneamento básico, avanços verificados entre 2000 e 2010 até nas áreas de menor desenvolvimento não foram suficientes para atenuar expressivas desigualda-des regionais nos serviços de coleta do lixo, abastecimento de água e tratamento de esgoto. Nas regiões Sul e Sudeste, mais de 90% da população tem abastecimento de água por rede; na região Norte, o índice fica abaixo de 55%.

O desempenho da Região Norte no ranking nacional do IDHM foi desolador. Entre as cem melhores cidades do país, aparece apenas a capital do mais novo estado da federação. Palmas, no Tocantins, alcançou a 76ª posição, com 0,788. No outro extremo da lista, entre as 20 piores colocações, 13 pertencem a estados da região, contra sete do Nordeste, historicamente considerado a “região-pro-blema” do país [veja o gráfico].

Áthila KzamEspecial para Mundo

Áthila Kzam é mestrando em Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano na Universidade da

Amazônia (Unama) e coordenador do 8º Encontro de Geopolítica na Amazônia

Os 20 piores municípios do Brasil com base no IDHM

FONTE: http://g1.globo.com, 10 jan. 2014.

PI, CaxingóPE, Manari

BA, ItapicuruPI, São Francisco de Assis do Piauí

RR, AmajariPA, AnajásAL, InhapiPA, Portel

AM, IpixunaAM, Santa Isabel do Rio Negro

AM, ItamaratiPA, Cachoeira do Piriá

PA, BagreAC, Jordão

RR, UiramutãPA, Chaves

MA, Marajá do SenaAM, Atalaia do NorteMA, Fernando Falcão

PA, Melgaço

0.4880.4870.4860.4850.4840.4840.4840.4830.4810.4790.4770.4730.4710.4690.4530.4530.4520.4510.4430.418

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MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 11 AGOSTO 2014

voto pela paz reelegeu SantoS

CoLôMbia

Numa virada histórica, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, reelegeu-se no segundo turno

com 51% dos sufrágios, mais ou menos 450 mil votos a mais do que seu adversário, Óscar Iván Zuluaga, que obteve 45% do total. No primeiro turno, Zuluaga ficara à frente com maioria de cerca de 900 mil votos. Analistas falam de um “deficit” de votos do candidato de oposição a Santos, com perda de quase meio milhão de um turno a outro, e se indagam sobre qual teria sido a razão dessa fuga de eleitores e o que ela poderia representar.

Pensou-se em vários fatores de reversão. O primeiro deles, como o próprio Santos admitiu, teria sido a deci-são dos partidos de esquerda de, afinal, apoiarem-no em bloco, arquivando desconfianças em relação ao processo de pacificação do país, de negociação do governo com as duas organizações guerrilheiras vigentes. Havia céticos a respeito à esquerda, mas a determinação de Santos aca-bou se impondo. A direita se juntara a Zuluaga, mas se constatou nas urnas, no final das contas, que não foi em quantidade suficiente para cobrir o “deficit”.

Houve um ingrediente com forte incidência no triunfo de Santos no segundo turno. Antigo ministro da Defesa do presidente Álvaro Uribe (2002-2010), ele chegou ao palácio, quatro anos atrás, pelas mãos da direita, como herdeiro político do uribismo. Por essa razão, as esquer-das e eleitores tidos como vacilantes resistiam a apoiá-lo, mesmo contra Zuluaga, o novo herdeiro do legado de Uribe. Mas, no fim, o presidente venceu as desconfianças do eleitorado favorável ao processo de pacificação, que não dispunha de alternativas mais palatáveis. Santos convenceu a totalidade das esquerdas de que se move com sinceridade, o que deve se refletir na mesa de negociações. Além disso, manteve a fidelidade de parte do eleitorado do centenário Partido Liberal, a principal representação política da elite colombiana e uma fonte de inspiração dos Cem Anos de Solidão, célebre romance de Gabriel García Márquez.

Contou, ainda, o fraco desempenho do candidato opositor na reta final. Diante de um de segundo turno que se tornava desfavorável, Zuluaga tornou-se agressivo e aparentou perder o prumo, em contraste com o com-portamento sereno, de estadista, de Santos. De braços dados com toda a esquerda da Colômbia, depois de passar a limpo um passado de direita, o presidente se beneficiou na boca das urnas de um alardeado “progresso significa-tivo” nas conversações de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A campanha de Santos manteve linha direta com Cuba, local das difíceis negociações de paz.

Oportunamente, num lance eleitoral calculado, re-velou-se que o governo de Santos abrira “conversações preliminares” com o Exército de Libertação Nacional (ELN), grupo guerrilheiro secundário. Em plena campa-nha eleitoral de Santos, o presidente do Equador, Rafael Correa, confirmou tais contatos, estabelecidos em territó-rio equatoriano fronteiriço. O contraste pesou. Enquanto Zuluaga sintetizava uma imagem de volta ao passado

O presidente usou também um tom conciliatório. “Respeitamos diferenças”, disse, dirigindo-se a um Zulu-aga que logo reconheceu o triunfo de Santos, em nítido contraste com seu patrono, Álvaro Uribe. Num discurso inflamado, Uribe acusou o governo, logo Santos, de ser responsável pela mais ampla corrupção da história colombiana, “com abuso do poder e compra de votos”, mas observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA) negaram as alegadas irregularidades. Uribe também acusou Santos de permitir “ameaças de massacres por parte de terroristas, como as Farc”. O ex-presidente tem prestígio político, e isso pode ser um complicador.

Uribe rompeu com Santos em meados de 2012, quando o presidente deflagrou o processo de paz com as Farc, criando um novo partido, o Centro Democrá-tico (CD). Com seu mandato de senador e as 19 outras cadeiras obtidas pelo CD no Senado, Uribe tem cartas poderosas no Congresso. Medellín, uma das duas únicas capitais de departamento onde Santos perdeu, é terra de Uribe. Mesmo assim, a maioria dos analistas avalia que, contando com a fidelidade do Partido Liberal e os apoios da esquerda e dos dos ecologistas, Santos terá meios para cumprir sua agenda, anunciada como de Tercera Vía, e avançar rumo a um acerto de paz definitivo com os grupos guerrilheiros.

Derrotado no primeiro turno, Juan Manuel Santos triunfou no segundo se beneficiando do apoio das esquerdas e dos eleitores das principais cidades do país

sombrio, de décadas de violência, Santos prometia um país sem conflitos. “Estamos no fim de mais de 50 anos de violência”, tornou-se o dístico do presidente.

O amplo apoio dos políticos de esquerda à campanha de Santos atestou a firme opção pela paz, passando por cima de rancores e inimizades pessoais. O apoio de Clara López, líder do esquerdista Polo Democrático, foi um exemplo. Como candidata, no primeiro turno, ela obteve quase dois milhões de votos. Outro apoio importante foi o de Gustavo Petro, o popular prefeito de Bogotá. No turno final, a votação de Santos triplicou na capital colombiana, depois da derrota no primeiro turno para o esquerdista Petro e, também, para Zuluaga.

O oposicionista Zuluaga venceu nas áreas rurais, es-pecialmente em focos de operação das Farc. As cidades, pacificadas há vários anos, inclinaram-se para o presidente, com a marcante exceção de Medellín [veja o mapa]. Apoios urbanos, à esquerda, deram a Santos triunfos em seis das sete maiores capitais de departamentos. Também beneficiou Santos a queda da abstenção nacional de 60% para 53%, em função da polarização política no segundo turno. No discurso de celebração do triunfo, Santos reconheceu o pa-pel determinante jogado pelas esquerdas, prometendo a paz e dizendo que ela criará novos empregos, ajudará a conter a criminalidade, melhorará a educação e fará com que o crescimento econômico beneficie todos os colombianos.

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newton CarlosDa Equipe de Colaboradores

Virada histórica: em 2010, o colombiano Juan Manuel santos chegou ao poder

apoiado pela direita, mas ganhou a reeleição com um programa que propõe o diálogo

nacional, apoiado pela esquerda

Colômbia: geografia do voto (2014)

MAR DO CARIBE

VENEZUELA

PERU

EQUADOR

BRASIL

Bogotá

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Medellín

Bucaramanga

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Áreas ondeIván Zuluagavenceu

Áreas ondeJuan M. Santosvenceu

Áreas deinfluênciadas FarcGrandes cidadesonde SantosvenceuGrande cidadeonde Zuluagavenceu

Cartagena

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122014 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

Templos, bandeirinhas coloridas, caos urbano, arte milenar são alguns dos

pontos que chamam a atenção ao chegar a Katmandu, porta de entrada do Nepal. Aterrissamos em 14 de abril, feriado nacional em comemoração ao Ano Novo nepalês, a inauguração de 2071. O primeiro ano do calendário nepalês corresponde ao ano 57, segundo o calendário gregoriano ocidental.

As ruas caóticas, repletas de transeuntes, carros, bicicletas, animais e muitas motos que buzinam o tempo todo, estavam toma-das por pessoas festejando, fazendo orações e oferendas ao redor das stupas, um tipo de monumento ou parte de um templo em for-ma de torre, circundada por uma abóbada. Originalmente, a stupa era um monumento funerário, mas com o budismo, segunda a tradição, passou a abrigar relíquias do pró-prio Buda. Na base das stupas há pequenas rodas de oração que contêm mantras em seu interior. Ao serem giradas, as rodas espalham simbolicamente esses mantras a todos os quadrantes do Universo.

Na maior e mais importante delas, a de Boudhanath, construída sobre uma mandala octogonal, tendo ao alto da torre os olhos de Buda, milhares de pessoas entoa-vam mantras, dando voltas ao seu redor. Os inúmeros templos se estendem por toda a cidade. Estima-se que existam aproximada-mente 9 mil no vale de Katmandu. Colares coloridos de flores naturais, grãos e leite são oferendas a milhares de deidades. Bandei-rinhas coloridas estavam espalhadas pelas casas, nos templos, nas grutas, no alto das colinas e desfiladeiros. Nelas, estão inscritos mantras que, creem os budistas, flutuam aos ventos difundindo bons fluidos para os mais longínquos recantos do mundo.

No santuário hinduísta de Pashupati-nath, às margens do Rio Bagmati, afluente do Ganges, realizam-se cerimônias fúne-bres nas quais os mortos são cremados, enrolados em lençóis brancos e cobertos por madeira e ervas aromáticas, sob a supervisão de filhos do sexo masculino com vestes brancas. Depois da cerimônia de cremação, esses jovens raspam o cabelo e sobrancelhas em sinal de luto.

As cidades medievais de Bhaktapur e Patan, tombadas como Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) por sua herança cultural, são formadas por ruazinhas estreitas, com

nepal, o paíS doS milHareS de temploS

neide olicEspecial para Mundo

oficinas de artesanato, que desembocam numa grande praça de templos e palácios. Visitar a região agrícola de Laliptur foi uma experiência singular, como se uma máqui-na do tempo nos devolvesse à Idade Média. Nas ruelas, sem nenhuma infraestrutura, mulheres sentadas no chão teciam fios de lã em suas rocas, em meio a cabras, cachorros, patos e muitas crianças correndo atrás de turistas em busca de balas.

O Nepal é um país de veneradas tra-dições [veja o box]. Os casamentos ainda são decididos pelas famílias. Nosso guia, um jovem professor de Filosofia da uni-versidade local, casado há poucos meses,

contou que sua esposa fora escolhida por sua mãe e irmã. Para ele, esta é a maneira correta de acertar matrimônios: só assim todos conviveriam em harmonia, pois a noiva passaria a residir com a família do marido e, portanto, precisaria ser alguém que contasse com a aprovação familiar.

A grande maioria da população segue a religião hinduísta, e pouco mais de 10% professam o budismo. As duas religiões coexistem bem, e os ritos de ambas acom-panham a vida das pessoas desde o nasci-mento até a morte. Parte considerável dos hindus nepaleses venera uma deusa viva, a Kumari, uma menina da comunidade

neide olic, geógrafa de formação, trabalha com papéis recicláveis,

encadernação e restauração de livros

nas montanhas do HimalaiaPaís interior, situado junto às franjas meridionais do Himalaia, encravado entre China e Índia, o Nepal possui área de quase

150 mil quilômetros quadrados, similar à do estado do Ceará. Um dos aspectos geográficos que mais chamam a atenção é a grande amplitude altimétrica de seu território, cujas cotas variam de meros 70 metros, ao sul, na borda da Planície Indo-Gangética, até 8.848 metros, o Monte Everest, na fronteira com a China. Na região himalaiana, que corresponde a cerca de 15% do território, situam-se 14 picos cujos cumes superam 8 mil metros, e cem picos que estão acima de 7 mil metros [veja o mapa].

O Nepal abriga uma população de aproximadamente 28 milhões e se caracteriza por ser um Estado multi-cultural e plurilinguístico, com mais de 60 grupos étnicos e cerca de 70 idiomas. As religiões dominantes são o hinduísmo (68%) e o budismo (11%). Durante grande parte de sua história recente, o Nepal foi uma monarquia. Em 2008, o regime deu lugar a uma república. A mudança se verificou em contexto marcado por confrontos entre forças do governo central e uma guer-rilha de cunho maoísta que vitimaram quase 20 mil pessoas.

A bandeira nepalesa é a única entre os quase 200 países do mundo cujo formato não é quadrado ou retangular. Ela é composta por dois triângulos jus-tapostos. A figura geométrica resultante é considerada sagrada, expressando a lei moral, a virtude religiosa e a harmonia.

A cor dominante da bandeira é a vermelha, que remete ao rododendro, a flor nacional do país, e a borda azul re-presenta a paz. O Sol e a Lua crescente presentes nos dois triângulos são porta-dores das orações hinduístas e budistas. Essas figuras representam também a esperança de que o Nepal sobreviva tanto tempo quanto aquele em que o Sol e a Lua existirem no céu.

Newari selecionada para representar a en-carnação da deusa Taleju, que fica reclusa em um palácio até a puberdade, quando uma nova encarnação é escolhida.

Num país marcado por filosofias de paz, o povo é receptivo, alegre, resignado com o que a vida oferece, acreditando que tem que desfrutar ou pagar por ações de vidas passadas. Talvez a palavra que melhor expresse essa vivência seja namastê, cujo significado é “o Deus que habita em mim saúda o Deus que habita você”.

CHINA(Região autônoma do Tibete)

N E P A L

ÍNDIA

ÍNDIA

PicoEverest

Katmandu

0 50 km

Nepal: um país do “teto” do mundo

Área com altitude superior a 3 mil metros

Área com altitude inferior a 3 mil metros

Picos com altitude superior a 8 mil metros