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Ano 2 • Edição nº 5 • Julho de 2008 ISSN 1981-9560 Direitos humanos Organização popular e avanço da cidadania

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Ano 2 • Edição nº 5 • Julho de 2008 ISSN 1981-9560

DireitoshumanosOrganizaçãopopular e avançoda cidadania

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CONSELHO EDITORIAL

Aelson AlmeidaPró-Reitor de Extensão da UniversidadeFederal do Recôncavo Baiano

Ângelo PadilhaProfessor titular da Escola Politécnicada Universidade de São Paulo

Dulce CazunniSecretária de Desenvolvimento, Trabalho eInclusão da Prefeitura Municipal de Osasco

Fabiana Augusta Alves JardimDoutoranda do Depto. de Sociologia da Faculdadede Letras, Filosofia e Ciências Humanas da USP

João Carlos Martins NetoCoordenador de Tecnologia Assistiva da Secretariade Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social – MCT

Marilene Corrêa da Silva FreitasReitora da Universidade do Estado do Amazonas

Miriam DuailibiCoordenadora Geral do InstitutoEcoar para a Cidadania

Murilo DrummondConselheiro político-estratégico da AssociaçãoMaranhense para a Conservação da Natureza

Rogério DardeauDiretor Técnico da ONG Moitará

Sandra MagalhãesCoordenadora de Projetos do Banco Palmas

Silvia Picchioni Coordenadora da Área de Combate à Desertificaçãoda Associação Pernambucana de Defesa da Natureza

Targino de Araújo FilhoReitor da Universidade Federal de São Carlos

Teófilo Galvão Filho Coordenador do Programa Informática naEducação Especial – Obras Sociais Irmã Dulce

Projeto Editorial e Realização

DIREÇÃO EDITORIALIrma R. Passoni e Jesus Carlos Delgado Garcia

Coordenação editorialBeatriz Rangel

Edição de textosBeatriz Rangel, Leandro Saraiva e Maurício Ayer

ColaboradoresLuciana Lino e Márcio Kameoka (textos);Henrique Parra e Marcelo Min (fotos)

Edição de arte e diagramaçãoTadeu Araujo e Ohi

IlustraçõesOhi

Foto da capaMarcelo Min/Agência Fotogarrafa

ImpressãoGráfica Copypress

Instituto de Tecnologia Social

Conselho Deliberativo

PresidenteMarisa Gazoti Cavalcante de Lima

Primeiro e segundo vice-presidentesRoberto Vilela de Moura SilvaMaria Lúcia Barros Arruda

Membros• Laércio Lage• Moysés Aron Pluciennik• Roberto Dolci• Paschoalina J. Sinhoretto

Gerente executivaIrma R. Passoni

Equipe de projetos

Coordenador de projetosJesus Carlos Delgado Garcia

Consultores• Adriana Vieira• Beatriz Rangel• Flávia Torregrosa Hong• Gerson José Guimarães• Marcelo Elias de Oliveira• Romeu Lemos• Vanessa Souza

Biblioteca• Edison Luís dos Santos

Secretaria• Edilene Luciana Oliveira• Maria Aparecida de Souza• Suely Ferreira

PROJETO DE COMUNICAÇÃO DO INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL APOIADO PELOMINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA (MCT) – SECRETARIA DE C&T PARA A INCLUSÃO SOCIAL

INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIALINSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIALINSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIALINSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIALINSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIALEndereço: Rua Rêgo Freitas, 454, cj. 73República – CEP: 01220-010 – São Paulo - SPTel/fax: (11) 3151-6499e-mail: [email protected] – www.itsbrasil.org.br

Ministro da Ciência e TecnologiaSérgio Rezende

Secretário de C&T para a Inclusão SocialJoe Valle

Conhecimento – Ponte para a VidaISSN 1981–9560

Os textos da seção Artigo são de responsabilidade de seus autores.

instituto de tecnologia social

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O filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio chamou nossa época de Erados Direitos. A expressão sintetiza uma visão renovada da luta política e so-cial, na qual a plena realização dos direitos humanos funciona como um con-ceito regulador e um horizonte, não apenas ideal, mas pragmático, norteandoum processo histórico da humanidade em direção à igualdade nos direitos, ademocracia e a paz.

O tema é caro ao Instituto de Tecnologia Social e, no momento em que aDeclaração Universal dos Direitos Humanos completa sessenta anos, nossacontribuição para essa caminhada se dá de diversas formas. Uma delas é ocurso à distância Direitos Humanos e Mediação de Conflitos, realizado emparceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da Re-pública (SEDH/PR) e oferecido a militantes de movimentos populares, associa-ções comunitárias e pastorais, gratuitamente.

A 5a edição da revista Conhecimento – Ponte para a vida é motivada poressa experiência. Na matéria de capa, aprofundamos a discussão sobre a situ-ação dos direitos no Brasil. Destacamos a luta coletiva do povo que, cotidiana-mente, sofre violações e, no enfrentamento de necessidades básicas de so-brevivência, organiza sua ação política, fortalecendo o processo da cidadania.

A reflexão se complementa com a entrevista de Perly Cipriano, subsecretá-rio da SEDH/PR, e o artigo de Luis Fernando Lara Resende, pesquisador doInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), sobre a importância de umsistema de indicadores em direitos humanos.

Direito ao trabalho e meio ambiente saudáveis são os temas de fundo paraa reportagem sobre os catadores de materiais recicláveis e sua participaçãonas políticas públicas de gestão dos chamados resíduos sólidos. Estes resídu-os, quando devidamente coletados e separados do resto do “lixo”, podem serreaproveitados na cadeia da reciclagem, evitando que sejam jogados em lixõese aterros ou, pior, em rios e córregos. Escolhemos abordar a questão do lixopelo ângulo das organizações e cooperativas criadas por catadores, sabendoque se trata de um problema bastante amplo, que poderá ser retomado, futura-mente, nesta revista.

Apresentamos, finalmente, o projeto Vídeo nas Aldeias, que tem possibili-tado a dezenas de comunidades indígenas usarem o vídeo para expressar suasvisões sobre a própria cultura, recuperando e recriando tradições. Exibidos nasaldeias, escolas, canais de TV e festivais de cinema, os filmes estimulam umrico diálogo entre os povos e deles com a sociedade não-indígena. O projetocontribui, ainda, para a organização em torno de projetos políticos, educativos,culturais e de preservação do meio ambiente, nas terras indígenas. É um exem-plo bem-sucedido de tecnologia social.

Boa leitura!

Irma R. PassoniGerente executiva do

Instituto de Tecnologia Social

E D I T O R I A L

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sumário

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ORGANIZAÇÃO POPULAR

Gestão do lixo e trabalhoOrganizados em cooperativas, fórunse movimento nacional, catadoresmelhoram sua renda e buscamparticipar das políticas públicas

TECNOLOGIA SOCIAL | RELATO

Índios por trás das câmerasCom oficinas itinerantes, o projetoVídeo nas Aldeias capacitarealizadores indígenas paraproduzirem e compartilharemimagens sobre suas culturas

DIREITOS HUMANOS

Uma era de direitosOs sessenta anos da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos,comemorados em 2008, marcamapenas mais um passo na luta pordignidade e cidadania

ENTREVISTA

Fome de direitosPerly Cipriano, subsecretário daSecretaria Especial de DireitosHumanos da Presidência daRepública, defende “uma ampla redede prevenção às violações epromoção dos direitos humanos”,pela via da educação

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ARTIGO

Direitos sob medidaPor Luis Fernando Lara Resende,pesquisador do Instituto de PesquisaEconômica AplicadaJá temos experiência para organizarum sistema de indicadores quepermita acompanhar os avançosem direitos humanos

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página 16

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HUMANOSDIREITOS

Umaera dedireitos

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Os sessenta anos daDeclaração Universal dosDireitos Humanos,comemorados em 2008,marcam mais um passo naluta por dignidade e cidadania

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HUMANOSDIREITOS

EMárcio Kameoka

m 10 de dezembro de 1948, a Decla-ração Universal dos Direitos Huma-nos foi adotada pela Assembléia Ge-ral das Nações Unidas. O significa-

do desta data é complexo. Para o direito in-ternacional, trata-se de um marco, junto coma Carta das Nações Unidas, para criar um sis-tema universal de proteção aos direitos. Alémdisso, é a culminação de uma luta antiga, queteve como momentos importantes a Indepen-dência dos Estados Unidos (1776), a Revolu-ção Francesa (1789) e a Revolução Russa(1917). O que está na raiz desta luta é umconceito de dignidade e respeito para todas aspessoas, pobres ou ricas, moradoras do cam-po ou da cidade, sem preconceito contra suaorigem, religião, raça, etnia e outras formasde discriminação. Seis décadas depois, é evi-dente que a luta não terminou.

O Brasil é signatário da Declaração e dequase todos os tratados internacionais de di-reitos humanos. A legislação brasileira, a par-tir da Constituição Federal de 1988, contem-pla desde temas básicos como liberdade de

expressão, saúde e educação, até direitos es-pecíficos como os das mulheres, da criançae do adolescente, dos idosos, dos índios, en-tre outros grupos sociais. Para um país queteve sua história marcada por séculos de es-cravidão e opressão, trata-se, sem dúvida, deum avanço significativo. O impacto desseamadurecimento da legislação nas práticasde proteção dos direitos e na garantia da ci-dadania não é imediato, mas um processo,que requer mecanismos institucionais, pres-são popular por espaços de participação, açãoefetiva do Estado na implementação de pro-gramas e políticas públicas e uma mudançacultural, como destaca Maria VictoriaBenevides em seu artigo “A Questão Socialno Brasil”. Um exemplo bastante recente éa Lei Maria da Penha, que entrou em vigorem setembro de 2006, alterando o CódigoPenal para combater a violência doméstica efamiliar contra as mulheres. Considerada umêxito histórico, ao reconhecer a necessidadede uma legislação específica para esse tipode violência, a lei enfrenta dificuldades parasua correta aplicação, que vão da falta deuma rede adequada para o atendimento às

Ao lado,manifestação daUnião Municipalde EstudantesSecundaristas(Umes), emSão Paulo

Fotos Marcelo Min/Agência Fotogarrafa/www.fotogarrafa.com.brNa página aolado, o Semi-Árido nordestinoe o difícil acessoà água,reivindicadacomo direitohumano e bempúblico, apesarda resistênciade empresastransnacionaise governos

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vítimas até a necessidade de ampliar a es-trutura jurídica – com a criação de juizadosespecíficos e adaptação de delegacias aosprocedimentos da nova lei –, passando porbarreiras culturais e mesmo a resistência demembros do Judiciário.

Relatórios de organizações não governa-mentais (ONGs) como a Anistia Internacio-nal e de relatores especiais das Nações Uni-das apontam, sucessivamente, que há umgrande descompasso entre as leis e sua apli-cação, na prática, no Brasil. O relator espe-cial sobre tortura, Sir Nigel Rodley, apontouque, em 2000, as polícias e o sistemacarcerário brasileiros praticavam tortura deforma sistemática e recomendou que medi-das enérgicas fossem tomadas para mudareste cenário. Várias entidades, como a

Conectas Direitos Humanos, apontam quepouco foi feito nesse sentido.

Desde o ano 2000, a ONG Rede Socialde Justiça e Direitos Humanos publica, anual-mente, o relatório Direitos Humanos no Bra-sil, com a colaboração de pelo menos vinteorganizações. O relatório 2007 enfatiza osdireitos sociais, econômicos e culturais, queincluem trabalho, educação, saúde, moradia,segurança, e também sua conexão com asviolações dos chamados direitos civis e polí-ticos. O documento mostra, com base emestatísticas, denúncias, entrevistas e análises,que as comunidades indígenas, ribeirinhas equilombolas estão entre as principais vítimasdos conflitos por terra; a população com rendaaté cinco salários mínimos é a mais afetadapelo chamado déficit habitacional no Brasil,que chega a 7,9 milhões de moradias; boaparte dos 45 a 50 mil homicídios cometidospor ano são contra jovens negros e pobres; e

HUMANOSDIREITOS

À direita, protestode perueiros no

centro de SãoPaulo: confrontocom a Tropa de

Choque da PolíciaMilitar e ônibus

apedrejado

Por falta de rotasacessíveis parapessoas comdeficiência,MariluciFioravante,escrevente doFórum Criminalda Barra Funda,em São Paulo,cruza, todos osdias, o viadutoAntártica, no meiodos carros

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os trabalhadores migrantes e imigrantes con-tinuam sendo alvo do descumprimento dasleis trabalhistas e submetidos a trabalho aná-logo ao de escravo, seja nos canaviais doestado de São Paulo, deslocados do Nordes-te e Minas Gerais, seja nas confecções irre-gulares da capital paulista, vindos da Bolívia.Esse é apenas um pedaço do retrato que orelatório oferece. “Todos os anos, os proble-mas são semelhantes: as violações mais sé-rias são sempre contra a população mais po-bre, seja no campo ou na cidade”, afirma ajornalista Maria Luísa Mendonça, uma dascoordenadoras deste trabalho.

“As causas estruturais das violações es-tão ligadas a questões econômicas e estas nãomudaram. O problema não é tanto de cresci-mento econômico, é de distribuição de renda.Não adianta termos superávit na balança co-mercial, se não se alteram as prioridades comoo pagamento da dívida, os juros altos e os ban-

cos com altos lucros”, avalia. A tensão exis-tente entre os direitos humanos e as decisõestomadas na esfera econômica preocupam osmovimentos e organizações da sociedade ci-vil, que têm trabalhado para esclarecer quaissão as conseqüências diretas para a vida dapopulação, quando o interesse público perdeespaço nessas decisões. Produzir e difundirinformações que ampliem a compreensão des-ses processos, de natureza política e econô-mica, e reforcem a necessidade da participa-ção da sociedade têm se mostrado importan-tes armas de luta. Na opinião da coordenado-ra da Rede Social de Justiça, ao “mostrar paraa sociedade brasileira que os direitos huma-nos estão relacionados ao cotidiano das pes-soas”, ajuda-se a fortalecer a consciência decidadania e combater preconceitos que estãopor trás de uma visão bastante disseminada,porém distorcida, de que direitos humanos são“direitos de bandido”.

HUMANOSDIREITOS

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No 60o aniversário da Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos, o Brasil passou porum processo de avaliação internacional parasaber como está a situação dos direitos hu-manos no país. Trata-se da Revisão Periódi-ca Universal (RPU), instituída pelo Conselhode Direitos Humanos das Nações Unidas. Aidéia da ONU é que, a cada quatro anos, to-dos os países-membros sejam examinados eapresentem sua perspectiva sobre o cumpri-mento dos direitos humanos, frente aos tra-tados internacionais e ao parecer dosrelatores especiais. O Brasil foi um dos pri-meiros países a participar deste processo, emabril deste ano, em Genebra, na Suíça.

Trata-se de um processo de avaliaçãotripartite. O governo de cada país apresentaseu relatório; as agências das Nações Uni-das, como o Unicef (Fundo para a Infância),o Alto Comissariado para Refugiados, entreoutras, reúnem as informações, junto comavaliações dos relatores temáticos; e, final-mente, organizações da sociedade civil apre-sentam seus pontos de vista. Os relatóriossão, então, apresentados e examinados peloConselho de Direitos Humanos, que faz per-guntas e, a seguir, recomendações. O paíspode aceitar ou não estas recomendações,mas todas ficam registradas e pesam nas ro-dadas seguintes da RPU.

No caso do Brasil, as organizações dasociedade civil reconhecem a legislação na-cional e avaliam situações graves, especial-mente de discriminação, conflitos no cam-po e problemas de segurança pública. Já orelatório enviado pelo governo brasileiro re-conhece problemas e relata conquistascomo as quarenta conferências de direitosorganizadas nos últimos anos (SegurançaAlimentar, das Cidades, de Políticas para Mu-lheres etc.), além do Bolsa Família e os be-nefícios do crescimento econômico.

As entidades participantes do processoreconheceram o esforço do Brasil em aco-lher a RPU e levantaram críticas no relató-rio enviado pelo governo à ONU, por in-corporar poucas mudanças sugeridas pelasociedade civil, ter um caráter fortemente

descritivo, com foco nas ações governa-mentais, e não dialogar com os níveis esta-duais e municipais de governo. O poucotempo para a elaboração do relatório e seutamanho limitado a vinte páginas “impuse-ram algumas escolhas de abordagem aotexto definitivo”, conforme explica o docu-mento governamental. Rogério Sottili, daSecretaria Especial de Direitos Humanos daPresidência da República, considera que “aexperiência acumulada para a construçãodo primeiro relatório vai favorecer o pro-cesso, que culminará na próxima revisãodo Brasil, dentro de quatro anos”.

A importância de mecanismos de avalia-ção como a RPU, porém, é relativa. MariaLuísa Mendonça, da Rede Social de Justiçae Direitos Humanos, comenta que “os órgãosinternacionais são importantes porque ser-vem como plataforma para difundir ampla-mente um entendimento sobre direitos. Asvisitas de comitês e relatores especiais têm

HUMANOSDIREITOS

Morador derua mostra

sua carteirade trabalho

em umabatida

policial

ONU examina situação dos direitos h

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um papel educativo na sociedade e aju-dam a exercer pressão sobre o país. Maso limite é esse. Ao contrário do Conselhode Segurança da ONU, o Conselho de Di-reitos Humanos e mesmo a Organizaçãodos Estados Americanos têm reduzida in-tervenção direta. Poucos casos examina-dos nestes órgãos chegam a ações con-cretas. Há problemas de lentidão, falta deestrutura, e mesmo descaso de Estadosque são convocados a estes órgãos”.

Mais do que listar críticas e avanços,espera-se que a RPU estimule um proces-so de avaliação mais permanente eparticipativo, envolvendo uma diversidademaior de entidades. Um sistema de indica-dores de direitos humanos, que a SEDH, oInstituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econô-mica Aplicada (Ipea) estão elaborando,deve funcionar neste sentido. SegundoSotilli, os indicadores serão “selecionadosem ampla discussão, incluindo a socieda-de civil, para permitir o acompanhamen-to da evolução de cada direito no país”.

Famílias sãodesalojas durantereintegração deposse em terrenode uma pedreiraabandonada, emGuaianases, zonaleste de SãoPaulo

Direitos não avançam sozinhosFica evidente que a realização dos direitos

humanos não se dá simplesmente pela criaçãode leis ou pelo crescimento econômico. Parase tornarem lei, aliás, um longo caminho demobilização e luta política precisa ser percorri-do. Perly Cipriano, responsável pela área depromoção e defesa dos direitos humanos naSecretaria Especial dos Direitos Humanos daPresidência da República (SEDH/PR), enfatizaque “os movimentos sociais são a inspiração eo motor para a luta pelos direitos humanos” (leiaa entrevista na pág. 16). Criado em 1996, oórgão procura “fazer com que os ministérios,especialmente os voltados para políticas públi-cas da esfera social, considerem os direitoshumanos nas suas ações”, de acordo com seusecretário-adjunto, Rogério Sotilli.

Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, coordena-dor do Movimento por Moradia no Centro deSão Paulo e da Central de Movimentos Popu-lares, afirma que o desafio maior está em “con-seguir a organização do povo e fazer com quenão fique esperando que alguém faça por ele”.E acrescenta que é ainda mais difícil mobili-zar pessoas que sofrem múltiplas formas deviolações. “Uma mulher com quatro filhos,desempregada e morando em cortiço, precisa

HUMANOSDIREITOS

umanos no Brasil

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1212121212 Conhecimento – Ponte para a Vida ••••• Julho/081212121212

de medidas imediatas. Ela não quer saber dealguém que fala de resgatar a cidadania dela.As pessoas não são atraídas por isso. Temosque trazer esse cidadão pelo mínimo: saúde,educação, um teto sobre a cabeça. A partirdessa linha, você começa a mostrar que estáfortalecendo a cidadania, realizando direitosque a pessoa sempre teve”.

Para que isso seja possível, os movimen-tos sociais pressionam e querem intensificarsua participação para que as políticas públi-cas não tratem os direitos humanos de formaseparada, tampouco privilegiem alguns direi-tos em prejuízo de outros. “Não adianta cons-truir 1 milhão de unidades habitacionais, lá lon-ge na periferia, sem condições de transporte,saúde, trabalho, educação. Se alguém tentaretirar as pessoas que, mal ou bem, vivem etrabalham no centro para mandar para essascasas, está acontecendo uma violência com-parável a um estupro”, resume Gegê. Essavisão ajuda a compreender o que a Declara-ção da Conferência Mundial de Direitos Hu-manos das Nações Unidas, realizada em 1993,afirma: “os direitos humanos são universais,indivisíveis, interdependentes e inter-relacio-nados”. Isso significa que a liberdade políticaestá vinculada ao direito ao trabalho, que aomesmo tempo está vinculado ao direito à saú-de, e assim por diante. Um direito reforça ooutro e eles não podem ser implementados demaneira fragmentada.

Uma experiência brasileiraO momento atual de crescimento econô-

mico tem conseguido melhorar os índices depobreza – uma das principais formas de viola-ção dos direitos humanos –, mas o faz em rit-mo lento. É nesse contexto que se insereminiciativas como o programa Bolsa Família,criado em 2003 pelo governo federal, com oobjetivo de afastar as pessoas da condição demiséria e indigência, transferindo renda às fa-mílias que recebem, no mês, até R$ 120 reaispor pessoa. Na visão do Ministério do Desen-volvimento Social e Combate à Fome, que co-ordena o programa, ele funciona como “portade entrada” a um conjunto de direitos, inte-grando políticas de proteção social. Segundoo responsável pela pasta, o ministro PatrusAnanias, “o Bolsa Família garante o direito à

alimentação regular, em quantidade e qualida-de suficientes para a família, que passa a con-trolar o acesso à educação e aos serviços desaúde, preservando os vínculos familiares ecriando condições para uma preparação ade-quada e digna para o trabalho”.

HUMANOSDIREITOS

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Essa experiência tem como inspiração aproposta da renda básica de cidadania, quereconhece o direito incondicional, de todasas pessoas, a ter uma renda mínima suficien-te para atender suas necessidades básicas.Para concretizar esse direito, ampliando a

transferência de renda para o conjunto dapopulação, empecilhos ainda existem, emespecial a garantia de orçamento, tanto fe-deral quanto dos municípios.

O Bolsa Família é considerado uma me-lhora nos programas anteriores de combate àfome e à pobreza, principalmente pelo núme-ro de famílias que consegue atender, hoje 11,1milhões. No entanto, os programas de trans-ferência de renda, para terem efeitos dura-douros na superação da pobreza e redução dadesigualdade, precisam estar ancorados empolíticas que interfiram nas questões estrutu-rais, como o desemprego e acesso à terra.

Para Maria Luisa Mendonça, o acesso àterra é um dos temas centrais a serem en-frentados na defesa dos direitos humanos, semo que não haverá uma transformação signifi-cativa na estrutura de produção e acesso aosalimentos, na melhoria das condições de tra-balho no campo e também na situação damoradia. “O Brasil é um dos poucos países domundo que não fez a reforma agrária. É umpaís rico, que teria condições de já ter resolvi-do o problema da fome, com políticas sériaspara a questão fundiária. O reflexo disso tam-bém é sentido nas cidades, já que muitos dosproblemas que temos hoje nas áreas urbanasvêm do êxodo rural”, afirma, destacando ocrescimento da população urbana no país, es-timada em 83% pelo Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE).

Organizações internacionais e nacionais,entre elas a própria Rede Social de Justiça eDireitos Humanos, têm se dedicado a inves-tigar os impactos que o aumento das áreasde cultivo de cana-de-açúcar para a produ-ção de etanol pode trazer – e, de acordo comestudos realizados pelas entidades, já estátrazendo –, no combate à fome, com a altado preço dos alimentos, na degradação dotrabalho em área rural e no controle dodesmatamento. “Nós constatamos que exis-te esse processo de expansão da monoculturada cana e ele está causando problemas soci-ais, ambientais e na produção de alimentos”,diz Mendonça, que atualmente pesquisa oassunto no Alto Rio São Francisco, próximoà Serra da Canastra, em Minas Gerais. Se-gundo ela, esse fenômeno está mudando, ra-pidamente, o perfil das propriedades agríco-

HUMANOSDIREITOS

AcampamentoSanto Dias,organizado peloMovimento dosTrabalhadoresSem-Teto, emterreno daempresa alemãVolkswagen, emSão Bernardo doCampo, em 2003

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1414141414 Conhecimento – Ponte para a Vida ••••• Julho/081414141414

las desta região, boa parte delas de peque-nos e médios produtores de alimentos. “Per-cebemos que, nos últimos anos, a mono-cultura da cana dobrou e está expulsandoesses produtores. Também ocorre a violaçãode leis ambientais, com os cultivos chegandoperto das nascentes, o que é ainda mais gra-ve por ser uma área de Cerrado onde nas-cem alguns dos rios mais importantes do país,como o São Francisco”.

Mudando a lógica políticaTendo em perspectiva a história nacional

recente, é possível dizer que, hoje, há umamaior aceitação do enfoque de direitos hu-manos, ao menos entre instituições do Esta-do e organizações não governamentais. Ocoordenador-geral do Centro de Profissio-nalização de Adolescentes (CPA), FlaristonFrancisco da Silva, lembra da época em quefoi membro do Conselho Municipal dos Di-reitos da Criança e do Adolescente de SãoPaulo, durante as gestões Paulo Maluf (1993-1997) e Celso Pitta (1997-2000), e constataque houve uma evolução. "Naquele tempo,não era possível fazer uma discussão de di-reitos. O tom dos debates era apenas de 'so-lidariedade', com uma visão muitas vezesclientelista ou assistencialista." Segundo ele,a lógica dos direitos humanos muda a manei-ra de conceber as políticas, que "deixam deser políticas de para ser políticas com".

À direita,pesagem de

crianças no postode saúde da

favela Santo Elias,em Pirituba,

São Paulo

Em baixa resolução

HUMANOSDIREITOS

Família de AnaMaria da

ConceiçãoMorais convivecom a seca, nosertão do Piauí

Nesse processo de ampliação da cidadania,as pessoas não só se reconhecem como deten-toras e beneficiárias de direitos outorgados peloEstado como passam a participar ativamenteda construção destes direitos. Tornam-se su-jeitos de direitos e deveres. Pela ação política,as organizações populares impulsionam essemovimento e reafirmam, a cada passo, o obje-tivo de uma vida digna para todos.

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INSCRIÇÕES ABERTAS

As pessoas e comunidades, historicamente,têm se organizado, em movimentos, fóruns, as-sociações e sindicatos, para lutar e fazer comque os direitos humanos aconteçam na práticae não sejam tratados apenas como uma cartade intenções.

Percebendo a necessidade de lideranças co-munitárias, membros de pastorais e militantes demovimentos terem oportunidades de formaçãonessa área, a Secretaria Especial de Direitos Hu-manos da Presidência da República (SEDH/PR) eo Instituto de Tecnologia Social lançaram, emmaio, o curso à distância Direitos Humanos e Me-diação de Conflitos.

Mais de 6 mil pessoas estão participando, atéo momento. O curso é gratuito. Os alunos con-tam com acompanhamento de tutores treinadose o único requisito é que tenham acesso a umcomputador com internet.

Com uma carga horária estimada de sessentahoras, o curso apresenta situações práticas e ati-vidades que ajudam a compreender os funda-mentos dos direitos humanos e incorporar esseconhecimento nas diferentes formas de luta. Osalunos são preparados para utilizar métodos demediação popular de conflitos, buscando solu-ções pacíficas para as divergências que podemser mediadas, na sua comunidade ou movimen-to social.

A modalidade de ensino à distância permiteque os alunos, em diversos locais do Brasil, tro-quem experiências e facilita que encontrem in-formações sobre órgãos públicos e organizaçõesda sociedade civil a quem recorrer para denun-ciar violações e defender os direitos humanos.

Curso àdistância

MÓDULOS

1 Direitos humanos e conflitos2 Violência e não-violência nos

direitos humanos3 Direito à vida, à alimentação e à saúde4 Direito à moradia, à terra e à cidade5 Direito à educação, ao trabalho

e à assistência social6 Formas não-violentas de

resolução de conflitos7 Inserindo na luta a não-violência ativa8 Mediação passo a passo9 Experiências de mediação popular no Brasil

10 Solidários na diversidade eiguais no acesso à Justiça

Para saber mais e participar, acesseo site www.dh.educacaoadistancia.org.br.

Realização

instituto de tecnologia social

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ENTREVISTAP E R L Y C I P R I A N O

ITS | Por que é necessária a educação emdireitos humanos?Perly Cipriano | Ninguém nasce precon-ceituoso, autoritário, racista ou homofóbico.As pessoas “aprendem” a ser assim. Então,elas também podem ser educadas a ser dife-rentes. É uma mudança de cultura, na formade encarar o idoso, a pessoa com deficiên-cia, a mulher, criança, entre outros grupos.Mas isso não acontece por decreto: é preci-so uma intensa participação, que a escola es-teja envolvida, a segurança, a mídia, enfim,todos. A criança aprende a ser racista ou au-toritária, muitas vezes, em casa. Se a criançaaprende diferente na escola, quem sabe elaleve o pai a questionar seu racismo?

ITS | E como está o Plano Nacional de Edu-

Perly Cipriano,subsecretário daSecretariaEspecial dosDireitosHumanos

cação em Direitos Humanos (PNEDH)?Cipriano | O PNEDH foi lançado em 2003, oúltimo ano da Década da Educação das Na-ções Unidas. Desde então, o plano foi debati-do em todos os estados. Organizamos tam-bém um encontro com países latino-ameri-canos para debater a educação em direitoshumanos e o próprio plano. Agora estamosna fase de articulação de comitês e planosestaduais, que vão adicionar a diversidade re-gional em diálogo com o plano nacional.Devemos ter comitês em todos os estadosaté o fim deste ano. A idéia é colocar sempreuma visão ampla da diversidade.

ITS | Qual o papel dos movimentos sociaisna promoção dos direitos humanos?Cipriano | Os movimentos sociais são a ins-

Fomede direitos

Ainda que muitos políticos brasileiros tenham participado daresistência à ditadura, nem todos passaram pelo mesmo que oatual subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos,Perly Cipriano. Este “mineiro de nascimento, capixaba por ado-ção” de 64 anos foi preso três vezes, sendo condenado a 94 anose oito meses de prisão. Vítima de tortura, cumpriu dez anos. Comoele diz, “o trabalho de direitos humanos começou na prisão, orga-nizando protestos e greves de fome”. Cipriano foi um dos líderesda greve de fome dos prisioneiros políticos, entre julho e agostode 1979, momento-chave na luta pela anistia, aprovada logo emseguida. O protesto se transformou no livro Fome de Liberdade,que une relatos da greve de fome que repercutiu no Brasil inteiro.Desde 2003, Cipriano trabalha na Secretaria Especial dos DireitosHumanos numa área vasta, que trata desde o registro civil ao ser-viço de proteção a testemunhas até a educação em direitos hu-manos. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

Beatriz Rangel

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ENTREVISTAP E R L Y C I P R I A N O

piração e o motor para a luta pelos direitoshumanos. Quando o sindicato mobiliza os tra-balhadores para lutar por seus direitos, é umtrabalho de direitos humanos. Quando os tra-balhadores sem-terra, e não só o movimen-to, entendem que deveriam ter acesso à ter-ra, há um avanço de consciência. Quandoos quilombolas, os indígenas ou as pessoascom deficiência se organizam, estão tratan-do de direitos humanos. As demandas soci-ais, portanto, surgem dessas movimentações,como também é o caso das mães de favelas,no Rio de Janeiro ou em São Paulo, que seorganizam para pedir justiça depois da per-da de seus filhos, vítimas da violência. Os mo-vimentos populares, muitas vezes, exigem oulevam a mudanças nas políticas públicas,como é o caso do Decreto de Acessibilidadeou do Estatuto do Idoso. Os direitos huma-nos são um pouco assim: é um processo deconstrução permanente, de uma certaincompletude com a qual temos que lidardiariamente. Nessa luta constante pelos di-reitos humanos, os diferentes movimentos de-vem perceber que há diversidade de interes-ses e objetivos, para que não se diluam, quepodem se entender pelo diálogo e, assim, en-tender quais são seus verdadeiros adversá-rios. O grande desafio para nós é que os seg-mentos mais vulneráveis tenham acesso àspolíticas públicas e consciência de seus direi-tos, para poderem, eles mesmos, lutar porisso. É nesse ponto o papel decisivo dos mo-vimentos sociais.

ITS | Quais são as iniciativas da secretariana área da educação não formal?Cipriano | Nossa idéia é organizar, junto àsociedade, uma ampla rede de prevenção[às violações], proteção e promoção dos di-reitos humanos. Tivemos um primeiro cur-so com noções elementares de direitoshumanos e, em seguida, fizemos um cursopara capacitação de conselheiros. Além doconteúdo sobre direitos humanos, o cursofoi importante para fazer que os conselhosdialoguem entre si: o da Mulher com o doIdoso, este com o da Pessoa com Deficiên-cia, este outro com o da Criança e Adoles-cente e assim por diante. Agora estamosorganizando o curso sobre Direitos Huma-

nos e Mediação de Conflitos, em parceriacom o Instituto de Tecnologia Social. É umtrabalho de prevenção. O que queremos éestimular as pessoas, o povo, a discutir suaspróprias contradições. É preciso que, porexemplo, os quilombolas, os sem-terra, osindígenas entendam que podem dialogar.Assim também é em uma favela, que temidosos, crianças, pessoas com deficiência,homossexuais, gente de diferentes religiões,de tudo. Queremos mostrar às pessoas queé preciso respeitar a diversidade, que épossível resolver seus problemas através dodiálogo e da mediação, seja no bairro, naescola ou mesmo na torcida de futebol.Você pode torcer pro Flamengo ou proCorinthians, sem problemas. O que nãopode é uma torcida atacar a outra. Nesseexemplo, podemos imaginar um radialistaou um profissional de televisão agir comomediador: ele pode insistir no respeito en-tre as torcidas. Da mesma forma, o profes-sor, o líder religioso, o conselheiro e mui-tos outros também podem mediar.

ITS | Por outro lado, como quebrar a ima-gem de que direitos humanos são “direitosde bandidos”?Cipriano | Toda pessoa tem direito de co-mer, beber, morar, ser respeitado, ter iden-tidade, trabalho, profissão, enfim, tem di-reitos humanos. Temos que chamar a po-pulação a entender que todos esses sãodireitos, assim como não ser discrimina-do, não ser violentado, não ser preso ile-galmente. O preso, portanto, também temdireitos. Ele responde a um processo, comdireito à defesa. Mesmo condenado, eletem o direito de não ser torturado, de nãopassar fome. É preciso conhecer nossosdireitos e a realidade em que vivemos paraque possamos começar a transformá-la.Mas não vamos transformar a realidadesozinhos. A mudança começa mesmo den-tro de uma família. Cada um dos membrosde uma casa pode ter interesses diferen-tes, seja a criança, seja o idoso ou a mu-lher. Às vezes estes interesses podemconflitar, mas como vamos resolver? Napancada? Não, é preciso diálogo. E é aíque entram os direitos humanos.

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POPULARORGANIZAÇÃO

Gestãodo lixo etrabalhoOrganizados em cooperativas,fóruns e movimento nacional,catadores melhoram suarenda e buscam participardas políticas públicas

Luciana Lino e Beatriz Rangel

o Brasil, 125 mil toneladas de lixodomiciliar são recolhidas diaria-mente, de acordo com a PesquisaNacional de Saneamento Básico,

realizada pelo Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatística (IBGE), em 2000. Apesar dea grande maioria dos municípios dispor de ser-viço de coleta de lixo, o problema da des-tinação final dos resíduos coletados persiste.Embora 47,1% sigam para aterros sanitári-os, considerados uma forma adequada de tra-tar o lixo, 30,5% vão parar em lixões e 22,3%em aterros controlados. Na avaliação do Ins-tituto Pólis, esse tipo de aterro, por ter umaengenharia inferior a do aterro sanitário, podecausar contaminação do solo, das águas e doar. Isso permite considerar que 52,8% do to-tal do lixo produzido no país é gerenciado deforma inadequada.

Ainda segundo a pesquisa do IBGE, ape-nas 8% dos municípios fazem a coleta seleti-va, separando os materiais (resíduos sólidos)que poderão ser aproveitados na cadeia dareciclagem. Destes, cerca de 30% contamcom a participação dos catadores de materi-

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POPULARORGANIZAÇÃO

ais recicláveis. “Há uma década o poder pú-blico pensava que o importante era recolher olixo e colocá-lo em aterros sanitários, serviçopara o qual as empresas privadas eram efici-entes. Com o esgotamento dos aterros, oscatadores ganharam espaço, principalmenteporque conseguem fazer a administração pú-blica cortar gastos”, afirma a professora He-lena Ribeiro, da Faculdade de Saúde Públicada Universidade de São Paulo.

Associar a gestão dos resíduos com a cri-ação de postos de trabalho e a inclusão doscatadores continua sendo um desafio para aspolíticas do setor e uma pauta em torno daqual se mobiliza a categoria, buscando envol-ver também as empresas (grandes geradorasde resíduos) e o restante da sociedade. “Aspessoas têm na cabeça que limpeza e coletaseletiva são responsabilidades só do governo,porque pagam imposto, e não é bem assim:todos têm que fazer sua parte”, defende JairRibeiro, supervisor do programa OsascoRecicla, da prefeitura do município, na RegiãoMetropolitana de São Paulo.

Catar materiais recicláveis é uma ativida-de desgastante. Nas cidades, um catador anda,em média, trinta quilômetros por dia, puxandocarrinhos com até seiscentos quilos, expostoàs intempéries, ao trânsito, à violência das ruase ao estigma social. “Muitos deles já têm cir-cuitos próprios por onde passar, mas as pes-soas que separam e doam o lixo, em geral,fazem por dó, como se fosse uma esmola. Émais uma questão cultural, que não dependesó das leis”, diz Jair Ribeiro.

Diante das expressivas taxas de desem-prego no país, essa ocupação tornou-se umaalternativa de sobrevivência para um númerosignificativo de trabalhadores, excluídos domercado de trabalho formal. O MovimentoNacional de Catadores de Materiais Reci-cláveis (MNRC) calcula que existam entre300 mil e 1 milhão de catadores no Brasil, masuma pequena parcela, 35 mil, está cadastradapelo movimento. A maioria ainda trabalha so-zinha, catando na rua, em lixões ou outros lo-cais de risco.

Foi a partir da década de oitenta, com oauxílio de entidades religiosas, organizaçõesnão governamentais (ONGs) e, em algunscasos, de prefeituras, que os catadores come-

Os catadoresretiram do meioambiente osresíduos quevirariam "lixo" emovimentam aeconomia dareciclagem

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2020202020 Conhecimento – Ponte para a Vida ••••• Julho/082020202020

çaram a formar associações e cooperativas.Dentre as mais antigas estão a Coopamare,em São Paulo, e a Asmare, em Belo Horizon-te (ver quadros nesta página).

Com a categoria começando a se consoli-dar e o número de cooperativas crescendo,em 1999, ocorreu o 1º Encontro Nacional deCatadores de Papel, que deu origem aoMNCR. Sua principal luta é a autogestão do

trabalho e o controle da cadeia produtivada reciclagem. Essa articulação extrapolouas fronteiras nacionais e ganhou força naAmérica Latina por meio de três congres-sos, ocorridos em 2003, 2005 e 2008.

Já o Fórum Nacional Lixo e Cidadaniasurgiu em 1998, com o apoio do Fundo dasNações Unidas para a Infância (Unicef),em uma reunião de dezenove instituições,em Brasília. O Fórum constitui um espa-ço de articulação e planejamento de açõesde apoio à erradicação do trabalho infantilem lixões e aterros e fortalecimento do

AsmareBelo Horizonte coleta 537 toneladas de material reciclável por mês,

segundo o Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre).Desse total, cerca de 450 toneladas são recolhidas e tratadas pelos257 membros da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Maté-rias Recicláveis, a Asmare, localizada na região do Barro Preto, nacapital mineira.

Fundada em 1990 por vinte catadores, com o apoio da Pastoral deRua, a cooperativa teve dificuldades para se manter. “No começo não foifácil. O terreno onde está a cooperativa era ocupado. A sociedade e ogoverno não entendiam o papel do catador”, conta Alfredo de SouzaMatos, diretor de comunicação e cooperado da Asmare. Apenas em1993 é que a prefeitura fez uma parceria com a cooperativa e regularizoua situação do terreno.

A Asmare é reconhecida em todo o país, participando de eventosligados aos catadores e promovendo o Festival Lixo e Cidadania, quereúne cooperativas de todo o país e caminha para a 7a edição. “Hoje, nãoprecisa mais divulgar. As pessoas e empresas fazem o boca-a-boca eentregam o material direto para nós.”

Mesmo assim, não dá conta de atender às demandas dos catadores.“Para ser associado, precisa de um espaço digno. Não adianta colocarum catador pra trabalhar aqui e ele ficar no tempo, passando por sol echuva. Então, para um entrar, um tem que sair”, explica o diretor decomunicação, justificando que a procura se dá porque a Asmare fornececarrinho, espaço para tratar o material, capacitação profissional, unifor-me e vale transporte, além de credibilidade para o catador.

Em média, os catadores da Asmare recebem de 1 a 1,5 salário mínimopor mês, de acordo com a quantidade de material coletado, sendo que asretiradas são feitas semanalmente. Além disso, há a divisão trimestral dolucro geral de todos os galpões de triagem da associação.

A cooperativa conta com dois espaços de lazer, os Reciclos, queaumentam a renda dos catadores. O primeiro, criado em 2000, é umacasa noturna decorada com materiais recicláveis, com capacidadepara 250 pessoas e uma programação musical especializada em sam-ba. O segundo, criado em 2007, é um espaço cultural e gastronômico,que abriga também uma loja, onde são vendidos artesanatos feitosnas oficinas da Asmare. A última conquista, inaugurada em 2005, foia indústria de recicla-gem de plástico, emconjunto com maissete cooperativas deBelo Horizonte. O in-vestimento possibili-ta um domínio maiorda cadeia produtivada reciclagem e, con-seqüentemente, a di-minuição dos inter-mediários.

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ação

A participaçãodos catadoresse dá na coletaseletiva,separação,limpeza e,por vezes,beneficiamentodos materiais

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Coopamare“Hoje, eu me acho igual a todo mundo. Se for entrar

num lugar, dependendo de onde for, vou ser barrado. Masquando falo que sou catador da Coopamare, tudo facilita.As pessoas já atendem.” É assim que Manuel Vítimo Soa-res, representante jurídico da Cooperativa de CatadoresAutônomos de Papel, Papelão, Aparas e MateriaisReaproveitáveis (Coopamare), define o resultado de suaexperiência como cooperdo há quatro anos.

Fundada em 1989, a partir de um projeto de auxílio amoradores de rua da Organização e Auxílio Fraterno (OAF),a Coopamare tem, hoje, cerca de quarenta membros, queutilizam seu espaço na região de Pinheiros, em São Paulo,para separar, limpar, armazenar e vender o material paraas indústrias.

Os cooperados buscam materiais recicláveis em lo-cais pré-determinados, contando com a parceria de em-presas e condomínios. “Não saímos daqui para catar narua. Os catadores passam na rua e, se ela dá o que elebusca, aí ele pega.”

Segundo o código de ética da cooperativa, cada catadortrabalha oito horas por dia. Faz a separação, pesa o mate-rial e recebe pelo que coletou. “O salário, quem vai dizer éa balança.” Na hora de vender, a Coopamare se preocupaem agregar valor ao material. Por isso, a separação é feitade maneira minuciosa, gerando, por exemplo, 26 tipos di-ferentes de plástico e 22 de vidro. A renda mensal média

de cada catador é de dois salários mínimos. A retirada do dinheiroocorre duas vezes ao mês, divididas em 70% e 30% do valor.

Os catadores são capacitados pela OAF, que também disponibilizaum psicólogo para atendê-los. Aulas de alfabetização são dadas porprofessoras da USP, voluntárias.

Os catadores convivem com problemas como a concorrência pelomaterial reciclável de aparistas, ferros-velhos e empresários, donos derestaurante, que separam as latinhas e vendem diretamente para os de-pósitos. “Eles reciclam só o que dá dinheiro, mas a Coopamare não”,diferencia Soares.

Os cooperados têm enfrentado uma disputa com a prefeitura deSão Paulo, que, em 2005, tentou desapropriar o terreno sob o viadutoPaulo VI, onde se localiza a cooperativa. A prefeitura recuou, dianteda mobilização feita pela Coopamare, com apoio de diversas associ-ações e ONGs, e, no final de 2007, autorizou que a cooperativa perma-necesse no local. Em troca, a Coopamare tem “a responsabilidade deorganizar ações e parcerias para melhorar o espaço, priorizando asegurança e a promoção de condições dignas de trabalho”, comoinforma o site da prefeitura. O conflito, entretanto, ainda existe. “An-tes, eram oitenta catadores aqui, mas neste ano a prefeitura tomouuma parte da Coopamare. Espremeu a gente”, afirma o representan-te jurídico da organização.

POPULARORGANIZAÇÃO

trabalho dos catadores. Além da instância na-cional, hoje existem 23 fóruns nos estados edezenas deles nos municípios.

Trabalho cooperadoEstima-se que os catadores recolham en-

tre 10 e 20% dos resíduos das cidades, evi-tando o despejo em lixões e aterros e devol-vendo-os a um circuito econômico lucrativo, oda reciclagem. As indústrias recicladoras, queconseguem beneficiar os materiais em gran-de escala, estão no topo dessa cadeia produti-va, enquanto os catadores ocupam o primeiroestágio, comercializando, geralmente, com in-termediários, donos de pequenos e grandesdepósitos. As cooperativas permitem que oscatadores tenham uma posição mais favorá-vel nesse ciclo produtivo, vendendo quantida-des maiores de materiais, o que aumenta seupoder de negociação. Podem também diver-sificar suas atividades, prestando serviço devarrição e limpeza.

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Uma das dificuldades enfrentadas é a fal-ta de capital de giro, que faz com que os pa-gamentos aos catadores sejam quinzenais ouaté mensais. “Para eles isso é ruim, porqueestão acostumados a ter dinheiro todo diaquando vendem para os atravessadores, mes-mo que ganhem menos”, diz Helena Ribeiro.Por esse motivo, uma reivindicação recor-rente é a de um sistema de crédito, junto àscooperativas, que atenda essa necessidadede renda imediata, comum no cotidiano detrabalhadores que vivem em situação precá-ria e instável.

Essas organizações oferecem mais segu-rança para trabalhar e oportunidades de for-mação, em parceria com a administração pú-blica, a igreja, professores voluntários ouONGs. Por se tratar de uma população, emgeral, com baixa escolaridade e marginaliza-da, cursos e programas de capacitação pro-fissional, alfabetização e tratamento para al-coolismo, entre outros, tornam-se ainda maisfundamentais, pois “recuperam a auto-estimados catadores”, como constata a professora.

Segundo Jair Ribeiro, é função das coope-rativas conscientizar esses trabalhadores so-bre seu valor na garantia de um meio ambien-te saudável, além de representá-los peranteórgãos do poder público, empresas e o con-junto da sociedade. “Enquanto catadores ‘in-dividuais’, eles são invisíveis na cidade. As co-operativas dão visibilidade e conferem valorpolítico ao catador. E fazem ele entender queé explorado quando entrega seu material paraos atravessadores, por um custo muito baixo.”

Na luta por reconhecimento, uma conquis-ta do MNCR, em 2002, foi a inclusão da ativi-dade de catador na Classificação Brasileira

de Ocupações(CBO), do Minis-tério do Trabalho eEmprego. A CBOpermite formalizaras relações de tra-balho e garanteacesso a direitoscomo aposentado-ria, desde que ocatador contribuacom o INSS comoautônomo. José

CoopzumbiA Cooperativa de Carrinheiros Zumbi dos Palmares (Coopzumbi),

que fica no município de Colombo, na Região Metropolitana de Curitiba,foi fundada em 2004 por oito catadores, com o apoio da FundaçãoAlphaVille. Em junho de 2005, a organização não governamental (ONG)Aliança Empreendedora iniciou uma parceria com a cooperativa, com oobjetivo de criar um modelo de gestão para aumentar a renda dos tra-balhadores e tornar o empreendimento sustentável do ponto de vistasocial, econômico e ambiental.

“Quando aceitamos o desafio, havia apenas o necessário para a retira-da dos cooperados, sem um sistema de controle do que era coletado”,conta Daniel Carvalho, coordenador de projetos da Aliança Empreendedo-ra, na área de reciclagem e inclusão de catadores. De início, uma agendade melhorias foi criada, incluindo a organização do espaço, capacitaçãodos cooperados, controle da movimentação do material e coleta externa.

Catadores e equipe da ONG discutiram um novo fluxo de trabalho.Em vez de organizar apenas a entrada e a venda dos materiais, aCoopzumbi melhorou os processos de separação e classificação paraagregar valor aos produtos e negociar diretamente com as grandesindústrias compradoras. “Vimos que elas compravam o material doscatadores com uma qualidade primária e terceirizavam o serviço declassificação para empresas que existem no mercado da reciclagem,informais, um ambiente bem difícil de se trabalhar. Mas são eles quedetêm a informação.”

A Coopzumbi dominava, até então, o processo de separação de umtipo de plástico. “Em cima disso, a gente pensou: vamos procurar essaqualidade nos outros produtos e investigar com as indústrias de Curitibaquais seriam essas oportunidades”, diz Carvalho. A ONG procurou profis-sionais dessas empresas para capacitar os catadores, passando a eles osconhecimentos de como diferenciar as qualidades dos materiais, separá-los e armazená-los de forma adequada.

Para que todos os catadores pudessem se apropriar desse sistemade trabalho, começando pelo começo, ou seja, sabendo preencher asfichas para controlar a movimentação do material, foi preciso organizaraulas de alfabetização. A autonomia do grupo em relação à assessoriada Aliança Empreendedora deve ser o próximo passo.

Hoje, a Coopzumbi é uma cooperativamista de produção e prestação de serviçoscom setenta cooperados. Além de catar narua, eles fazem a coleta nas duzentas resi-dências do condomínio AlphaVille e rece-bem doações de resíduos de empresas, co-légios e um shopping. A renda média doscatadores aumentou 60%. Por meio do pro-grama Reciclagem e Inclusão Total, da pre-feitura de Curitiba, lançado em dezembro doano passado, a metodologia de gestão daCoopzumbi passa a ser referência para maisdez cooperativas de catadores.

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Cardoso, presidente da cooperativa Pró-Re-cife e representante do MNCR na Rede Lati-no-Americana de Catadores, alerta: “aalíquota ainda é muito alta para o catador. Eessa também é uma bandeira do movimento”.De acordo com Jair Ribeiro, mesmo assim, onúmero de cooperativas que incentivam o re-colhimento do INSS tem crescido.

Na criação e implementação de políticasintegradas de gestão dos resíduos, os cata-dores, gestores públicos, empresas e socie-dade devem ter responsabilidades definidas.Discute-se, hoje, no Congresso, um projetode Política Nacional de Resíduos Sólidos,que teria essa função. Esta proposta de re-gulamentação favorece que os municípios– encarregados, por lei, da limpeza urbanae destinação dos resíduos – tenham planosde gestão integrada para o setor, como con-dição para o repasse de recursos federais.Prevê também que as empresas sejam respon-sabilizadas pelo ciclo completo dos produtos,inclusive o pós-consumo, até retornarem à ca-deia produtiva, sempre que possível, viareciclagem.

Uma política nacional possibilitaria, ain-da, transformar o cenário da reciclagem,atualmente restrita a poucos municípios, au-mentando as oportunidades de contrataçãodas cooperativas e associações de catadores.O MNCR acompanha o debate sobre o pro-jeto de lei e reivindica clareza na definiçãodos mecanismos que irão garantir a inclu-são desses trabalhadores. O Fórum Lixo eCidadania enfatiza o papel das prefeituras naexpansão de suas parcerias com as coope-rativas e no apoio em capacitação, infra-es-trutura e tecnologias.

As propostas para a gestão do lixo, no en-tanto, não se resumem à reciclagem. Açõesde educação ambiental são estratégicas paramotivar a participação dos cidadãos e provo-car uma mudança de hábitos, no sentido dereduzir o consumo, combater o desperdício ereaproveitar os materiais. Como sintetiza JairRibeiro: “A preocupação das políticas públi-cas é muito maior do que só pagar as contas.No cálculo que a gente faz, existe um retornoem geração de trabalho e renda, em qualida-de de vida para as pessoas e para a cidade,que precisa ser considerado.”

Pró-RecifeIndependência do poder público e autogestão são os princípios que re-

gem a Cooperativa de Catadores Profissionais do Recife, a Pró-Recife, des-de sua fundação, em 2006, por um grupo de quarenta catadores, no bairro daImbiribeira, na capital de Pernambuco. José Cardoso, atual presidente daPró-Recife, destaca que uma das principais dificuldades é construir umarelação com as prefeituras queseja entendida como parceria,não terceirização. “Para a lici-tação e os contratos de coletaseletiva, tem que haver essaparceria, mas sem limitar aação dos catadores”, diz.

Em dois anos, a Pró-Recifefechou contratos com dezenasde empresas, que compram oudoam materiais recicláveis,garantindo a sustentação dacooperativa. As garrafas PET,por exemplo, são arrematadas pela Frompet, especializada na reciclagemdeste produto, enquanto o grupo Gerdau fica com as latas de aço. “Issofoi conseguido pelos catadores. Não teve técnico nem prefeitura paraajudar. Foi uma relação de confiança da empresa, de acreditar no nossotrabalho, com os catadores, de saberem que ela está preocupada com aresponsabilidade social”, explica o presidente.

Dentre as instituições que fazem doações estão grandes geradoras demateriais como a companhia Wal-Mart, que instalou coletores derecicláveis em sua rede de supermercados Bompreço, e a Natura. “EmRecife, você não vê mais pessoas falsificando perfume com vidro daNatura que achou no lixo. Quando chega aqui ele é destruído.”

O valor que a cooperativa recebe com a venda desse material, forne-cido pelas empresas, é dividido igualmente por todos os cooperados,aumentando sua renda. Além disso, os produtos passam por um proces-so de separação e higienização, que agrega valor. Esse processo gera,em média, R$ 700 por mês para cada catador.

Em relação à formação, uma novidade na Pró-Recife é um centro deinclusão digital, instalado com o apoio do Comitê para a Democratizaçãoda Informática. “Os catadores não vão aprender a bater com o dedo noteclado e abrir e-mail. Vão aprender a usar o computador para trabalhar”,afirma o presidente da cooperativa. O plano é que, futuramente, o centroofereça também cursos de alfabetização, com professores voluntários.

Hoje a cooperativa mantém o número inicial de catadores, “maspretendemos chegar a cem, assim que conseguir estrutura para isso”,ressalva. Uma das formas de se entrar na Pró-Recife é passar por umaentrevista ou ser apresentado por um cooperado. Porém, existe umtrabalho realizado pelos próprios catadores de abordagem de outroscolegas na rua. “Se vemos um catador sendo explorado por intermediá-rios, falamos com ele e explicamos que o caminho são as cooperativas.Depois levamos para conhecer a Pró-Recife.”

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Com oficinas itinerantes,o projeto Vídeo nas Aldeiascapacita realizadores indígenaspara produzirem imagens sobresua cultura. Eles promovem umintercâmbio que atinge trintapovos e a sociedade não-indígenanacional e internacional

Beatriz Rangel

bril de 2008. Zezinho Yube se prepara paraviajar pelo menos três dias de barco, saindode sua aldeia, na Terra Indígena Praia doCarapanã, nas margens do rio Tarauacá, até

a Terra Indígena do Rio Jordão, no estado do Acre. Seuobjetivo é exibir filmes para as comunidades huni-kuisdaquela região. Na bagagem, leva um kit completo deprojeção, incluindo gerador, projetor, equipamento deDVD e de som.

Os huni-kuis, com uma população de cerca de 4 milpessoas no Brasil, estão distribuídos por doze terrasindígenas do Acre, concentradas principalmente nosvales dos rios Purus e Juruá, do qual nasce o Tarauacá.“Aqui, a gente tem pouca oportunidade de visitar ou-tras terras, de outros rios, ou povos de outros estados”,diz Zezinho. “Nas aldeias mais próximas a gente secomunica visitando uns aos outros no final de semana,se junta para bater papo. Com as outras é complicado.

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Uma aldeia tem rádio, a outra tem orelhão, eaqui, na minha aldeia, tem internet. Três meiosde comunicação, um diferente do outro, quenenhuma das outras aldeias tem.”

Nessa situação de isolamento, os filmesque Zezinho levou para mostrar aos huni-kuiscumprem uma função importante. Realizadospor cineastas indígenas, ao circularem por di-ferentes aldeias, territórios e estados, criamnovas possibilidades de intercâmbio cultural.“O papel do vídeo é trazer as outras experiên-cias. Uma vez, eu fiz uma viagem no rio Jordãoe filmei a casa das pessoas, como elas mo-ram, a forma de se organizar, e trouxe para aminha aldeia. Eles piraram, gostaram muito derever seus parentes, certos costumes que jánão praticavam mais aqui e também conhe-cer os filmes dos outros povos. O vídeo fazessa ponte, mostra para a comunidade queoutras aldeias e povos também têm dificulda-des: uns vivem bem as suas tradições, já ou-tros têm um contato muito forte e não falammais suas línguas, têm problemas políticos,sociais e culturais. Isso trouxe muito a vonta-de de ver e fazer filmes.”

Zezinho tem 25 anos e é cineasta huni-kui.Foi em 2003, em uma oficina do projeto Vídeonas Aldeias, na Terra Indígena do Rio Gregório,do povo yawanawa, que ele aprendeu a operaruma câmera e voltou para casa com uma super-VHS. “Fiquei treinando por mais de um ano,filmando as atividades da minha aldeia”, conta.Em 2005, participou de uma nova oficina, destavez em terra huni-kui, e ali começou “a entrarfundo na questão do cinema”. Por quinze dias,acompanhou a rotina do pajé Augustinho, daaldeia São Joaquim, no rio Jordão, e de suamulher e seu sogro, contando com a colabora-ção de outros dois alunos. As imagens resulta-ram no filme Xinã Bena – Novos Tempos.

“A idéia era contar um pouco a história dopovo huni-kui, como viveu no tempo da serin-ga, que chamamos de tempo do cativeiro, ehoje, com a nossa terra demarcada e nós mes-mos fazendo a gestão, como estamos ensinan-do e buscando recuperar alguns rituais, músi-cas, que estavam se perdendo. A seringa mar-cou muito nosso povo. Durante um tempo agente não tinha direito a nós mesmos, a ter anossa língua e as nossas coisas, tudo o que agente trabalhava era para os patrões”, diz. Xinã

Bena recebeu diversos prêmios, como o deMelhor Filme no 10o Forumdoc.bh, o Festivaldo Filme Etnográfico e Documentário de BeloHorizonte, e o troféu Tatu de Prata de FilmeRevelação na 33ª Jornada de Cinema Inter-nacional da Bahia.

Autores da própria imagemCriado em 1987 por antropólogos e educa-

dores da organização não governamental Cen-tro de Trabalho Indigenista (CTI), o projetoVídeo nas Aldeias nasceu com a proposta detornar o vídeo acessível às comunidades indí-genas e promover a apropriação e uso de suaimagem, de acordo com seus projetos políti-cos e culturais.

Dez anos depois, o Vídeo nas Aldeias setornou uma ONG, com gestão própria. Nessamesma época, a formação dos realizadoresindígenas passou a ter um lugar de destaqueno projeto. “A inovação, logo de início [nacriação do projeto], foi os índios terem aces-

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À esquerda,realizadores doColetivo Kuikurode Cinema filmamo cotidiano e osmitos de seupovo, no ParqueIndígena doXingu, no MatoGrosso

No filme Pirïnop –Meu primeirocontato, a índiaAyré relembra1964, o ano emque os Ikpengencontraram osnão-índios

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2626262626 Conhecimento – Ponte para a Vida ••••• Julho/082626262626

so à sua própria imagem. Os índios serem fil-mados não tem nada de novo, muito pelo con-trário, mas dar a eles um retorno dessas ima-gens é o que nunca acontecia”, diz MariCorrea, documentarista e coordenadora doVídeo nas Aldeias.

Depois de uma experiência com oficinasde capacitação na França (os ateliês Varan),ela voltou ao Brasil e procurou o antropólo-go e também documentarista Vincent Carelli,um dos fundadores do Vídeo nas Aldeias.Trazia a proposta de desenvolverem um pro-grama de oficinas de formação dos realiza-dores indígenas, de maneira mais sistemáti-ca, inspirando-se no que acontecia em ou-tros lugares do mundo, como Nova Guiné,Austrália, Canadá, Estados Unidos e Amé-rica Latina. Um fato importante para queesse movimento mundial se ampliasse foi obarateamento e popularização das câmerasde vídeo, nos anos noventa.

“Dar a oportunidade de as pessoas se ex-pressarem é bom, mas muito melhor é ir nadireção da autonomia, ir formando para quepossam, de fato, assumir aquilo de forma in-dependente, embora a gente sempre precisede financiamento para fazer filme. Mas nãodepender de uma pessoa de fora para fazeresse trabalho, de produzir a sua própria ima-gem: esse foi o passo a frente”, resume.

Atualmente, o projeto conta com um acer-vo de sessenta filmes, feitos pelos realizado-res indígenas e pela equipe de formadores. Asatividades de produção audiovisual estão pre-

sentes entre 30 povos indígenas, em quatroestados da Amazônia Legal e, desde o anopassado, também no Nordeste.

Refletir com as imagensCada oficina de formação dos realizado-

res indígenas dura, em média, de três a quatrosemanas. Os alunos, indicados pelas lideran-ças de suas comunidades, aprendem a operara câmera indo a campo, para observar e re-gistrar cenas da aldeia. A equipe do projetonão os acompanha enquanto estão filmando.Ao final de cada dia, as imagens são exibidase todos, índios e não-índios, podem assistir, daropiniões e fazer comentários.

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A circulação dos filmes de autoria in-dígena, produzidos pelo Vídeo nas Al-deias, cresceu ainda mais no final do anopassado. Com o lançamento da ColeçãoCineastas Indígenas, a ONG pretendedistribuir no mercado os melhores filmescriados a partir das oficinas de forma-ção. Como o Vídeo nas Aldeias tambémé um Pontão de Cultura, apoiado peloMinistério da Cultura, essa iniciativa res-ponde a um desafio colocado para osPontos, o de divulgar e comercializarsuas produções.

Legendado em cinco idiomas, o pri-meiro DVD da coleção reúne os filmesImbég Gikegü – Cheiro de pequi e NgunéElü – O dia em que a lua menstruou, doColetivo Kuikuro de Cinema. O materialadicional é farto: dois filmes extras, OsKuikuro se apresentam e O manejo dacâmera, e um encarte sobre os realiza-dores, narradores e lideranças envolvi-das no registro das tradições kuikuros. Acoleção terá mais cinco DVDs, dos po-vos ikpeng, huni-kui, ashaninka, xavantee panará.

Isaac PinhantaAshaninka,professor ecineasta: o vídeoajuda os povos aolharem seu valore refletirem sobresua cultura

CineastasIndígenas em DVD

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Escolher uma pessoa da aldeia e filmar seucotidiano, durante os dias em que dura acapacitação, é um exemplo de exercício pro-posto pelos formadores. Segundo Mari Correa,“saber expor o seu projeto, argumentar e con-vencer o outro a participar, de uma forma ati-va” representa, muitas vezes, nessa primeiraetapa, um desafio maior do que a parte técni-ca, de manuseio da câmera. Neste tipo deexercício, pode estar o embrião de um filmedocumentário, como foi o caso do premiadoShomotsi (2001), do cineasta Valdete PinhantaAshaninka.

Issac Pinhanta, professor e cineasta indí-gena e irmão de Valdete, participou pela pri-meira vez de uma oficina de vídeo em 1998,quando conheceu Vincent Carelli, por inter-

médio da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC). Esse contato fez com que a equipe doVídeo nas Aldeias viajasse, no ano seguinte,para a Terra Indígena Kampa, no rio Amômia,para realizar uma oficina para os ashaninkas,na aldeia Apiwtxa. As imagens trazidas dosexercícios de filmagem deram origem a NoTempo das Chuvas. “A situação seria, nessemomento, começar a se olhar”, explica. “Se-ria olhar a comunidade no seu dia-a-dia e pe-gar a forma que ela reage, nas suas ativida-des. [O filme] foi pensado assim: cada um sevira em acompanhar alguém da aldeia. Se apessoa não se sentir bem, não está mais fa-zendo a sua atividade porque a gente está cor-rendo atrás dela com a câmera, então a gentedeixa e pega outra.”

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Os kuikurosna filmagem deImbé Gikegü –Cheiro de Pequi,primeiro DVDda coleçãoCineastasIndígenas

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As chuvas, que estavam dificultando asfilmagens, acabaram se tornando o temadocumentário. Os mais velhos da aldeia con-duziram a história, falando sobre como a vidacomunitária muda de acordo com as esta-ções do ano. Segundo Isaac, o filme tomouforma durante a montagem, etapa em quefoi preciso voltar a campo para completar omaterial gravado. “Hoje, a gente já tem umacoisa mais pensada, mais elaborada, é umoutro momento”, avalia.

A metodologia usada pelo Vídeo nas Al-deias se baseia na experiência prática de fa-zer filmes, sempre impulsionada pelas discus-sões coletivas. “Não só a pessoa que está fil-mando vai se apropriando daquilo, na medidaem que está fazendo, como as próprias pes-soas que estão sendo filmadas também en-tram na mesma dinâmica. Elas se vêem e ou-vem nossos comentários e os da platéia, por-que sempre tem um monte de gente da aldeiaassistindo. Não é aula teórica e aula prática, areflexão acontece junto. Isso é muitomotivante”, relata Mari.

“Vocês índiosnão sabem filmar”

Os caminhos que levam a um filme sãomuitos. O ponto em comum é a presença docoletivo – na escolha das histórias que a co-munidade deseja contar e na forma derealizá-las – e o diálogo com a equipe doVídeo nas Aldeias.

No caso dos kuikuros da aldeia Ipatse, noParque Indígena do Xingu, a vontade de fazerfilmes surgiu da necessidade de preservar astradições, uma preocupação que levou o che-fe indígena Afukaká a procurar os antropólo-gos Bruna Franchetto e Carlos Fausto, doMuseu Nacional do Rio de Janeiro, para ela-borarem, em parceria, um projeto de registrodos cantos e rituais de seu povo, o Documen-ta Kuikuro. A proposta, financiada com recur-sos do Ministério do Meio Ambiente, se es-tendeu para o registro audiovisual, com a en-trada do Vídeo nas Aldeias. Todo o processode preparação dos filmes e capacitação se tor-nou uma intensa pesquisa com os membrosmais velhos da aldeia, conhecedores das his-tórias relacionadas à origem mítica do pequi,assim como os cantos e danças rituais associ-

ados ao ciclo deste fruto.Mutuá Mehinaku-Kuikuro, professor bilín-

güe e presidente da Associação IndígenaKuikuro do Alto Xingu, foi um dos responsá-veis pela realização das oficinas em sua al-deia. Ele lembra do impacto que a chegada dovídeo causou. “As pessoas não queriam serfilmadas pelos jovens. Elas falavam: ‘Ah,vocês são índios, não sabem filmar, quem sabefilmar são os brancos’. Tinha aquela coisa...”

Durante as filmagens, os kuikuros foramsurpreendidos por um eclipse. Logo, a equipese mobilizou para registrar o fenômeno, comcinco câmeras espalhadas pela aldeia. A ati-vidade acabou funcionando como treino paraos alunos e estímulo para a comunidade, dissi-pando a desconfiança que ainda havia em re-lação ao uso da tecnologia. O resultado foi ofilme Nguné Elü – O dia em que a lua mens-truou, do Coletivo Kuikuro de Cinema.

“Quando saiu esse primeiro filme, aí todomundo gostou e falou: ‘ah, era assim que vocêsestavam fazendo? A gente não sabia’. E co-meçaram a fazer crítica: ‘mas vocês tinhamque fazer assim? Não podiam fazer desse outrojeito?’. Aí nós falamos: ‘era isso o que a gentequeria, antes de fazer o filme: a explicação, aajuda de vocês’. Começaram a pensar sobreisso e, agora, ajudam bem mais”, conta Mutuá.As pessoas que, no início, não queriam ser fil-

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Zezinho Yube,cineasta e agente

agroflorestalindígena, filmou

os “novostempos” do povohuni-kui, depois

do “tempo docativeiro”, nos

seringais

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madas, especialmente dentro de suas casas,se convenceram depois de assistir à projeçãodas imagens a participar do processo de edi-ção. Essa aceitação se manifestou já no re-torno às filmagens do primeiro documentárioe, assim, os jovens do Coletivo Kuikuro deCinema concluíram Imbé Gikegü – Cheirode Pequi. Cenas de ficção foram montadas,tendo os kuikuros como atores, para dar con-ta da narrativa dos mitos sobre o pequi.

“É uma conquista gradual”, diz MariCorrea. “Na medida em que as pessoas vãomostrando o trabalho, ele vai dando certo, vaihavendo um reconhecimento interno e exter-no, a coisa vai crescendo, vai tomando corpo,a relação dos realizadores com a comunidadevai se solidificando, se tornando mais forte, eeles vão ganhando espaço e condição de fa-zer coisas novas, mudar de registro.”

Cultura em movimentoO que filmar? Quais temas e histórias?

Diante da demanda de usar o vídeo para oregistro e a preservação da cultura, os rituaisaparecem, com freqüência, como um temaprivilegiado. Mas as discussões sobre o quesignifica “filmar a cultura” vão muito além.

“A cultura é muito associada ao ritual. Eusempre digo: e aqueles povos que não têm maisesses rituais? Fazem vídeo como? Ou só fazvídeo quem tem ritual?”, questiona a coorde-nadora do Vídeo nas Aldeias. Quando o calen-dário das oficinas não coincide com o das ceri-mônias, e os índios não estão enfeitados compinturas corporais e paramentos, o cotidiano daaldeia desafia os realizadores a investigar ou-tros aspectos da cultura, talvez menos codifi-cados, mas não menos importantes.

Assim, no acervo da ONG, os filmes retra-tam, além dos rituais, o cotidiano de um pa-rente, a visão das crianças sobre sua comuni-dade, as atividades das mulheres, um jogo defutebol, o interior de uma casa com objetostradicionais e da sociedade não-indígena, ohumor, as provocações e brincadeiras sexuaisentre homens e mulheres, apenas para citaralguns exemplos. Já um filme como Pirïnop– O primeiro contato chega a ser uma com-pleta revisão da história da relação do povoikpeng com a sociedade não-indígena.

“Uma coisa é você olhar pelo olho vivo,

outra coisa é olhar pelo visor da câmera, acom-panhar a passada da pessoa, a forma de cadaum agir. Você olha com mais detalhes, se con-centra. É como se estivesse pesquisando avida de alguém”, analisa Isaac Pinhanta, hojecoordenador da Associação de ProfessoresIndígenas do Acre. Ele acredita que esse usodo vídeo ajuda a organizar e aprofundar osconhecimentos sobre a própria cultura.

Para Isaac, o contato com a sociedade não-indígena já provocou mudanças no modo tra-dicional de viver e transmitir os conhecimen-tos e, desde então, o esforço para entender ese apoderar de instrumentos como a escrita, ocomputador e, mais recentemente, o vídeo sedá no sentido de defender as identidades. “Opessoal fala: ‘ah, por que o índio se aproprioude uma câmera?’ Na verdade, podemos nosapropriar de qualquer coisa que existe no mun-do, mas o importante é que vamos fazer dife-rente. Nesse momento de reconhecimento eafirmação nossa, temos que ter essa sensibili-dade”, enfatiza, tendo como contraponto omodelo de produção audiovisual predominan-te na televisão.

Nesse contato com imagens de outros po-vos, o professor indígena vê a criação deuma base de comparação. “Você nunca vaifalar sobre o seu povo se espelhando só nele,tem que pegar algo de fora para comparar,

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O cineastaTakumã Kuikurofilma MutuáMehinakuKuikuro, liderançaindígena e umdos articuladoresdas oficinas devídeo na aldeiaIpatse

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que mundo a gente vive, quem está ao nos-so redor”, diz.

A questão da diversidade também vem àtona na experiência de produção audiovisualdo povo da realizadora Cláudia Truká, de 26anos, que vive na ilha de Assunção, no muni-cípio de Cabrobó, em Pernambuco. “A gentetem toda uma característica física que não éaquela dos índios da Amazônia, que têm pou-cos anos de contato. Nós temos quinhentosanos de contato. Não existe mais aquela coi-sa de índio puro, existe uma cultura que foimisturada entre negros, brancos e índios”,afirma. Em 2007, com a ampliação do proje-to Vídeo nas Aldeias para o Nordeste, Cláu-

dia e mais cinco jovens de sua aldeia deramos primeiros passos na realização dedocumentários. Depois de conversarem comas lideranças locais sobre suas expectativasem relação ao filme que iriam produzir, saí-ram a campo com a proposta de mostrar oque é ser índio no Nordeste. A equipe apro-veitou duas situações que aconteciam em la-dos opostos da ilha – uma manifestação dostrukás contra a transposição do rio São Fran-cisco e um festejo tradicional – e entrevista-ram os mais velhos da aldeia para que con-tassem histórias do passado. Desse proces-

so nasceu o filme Índio mais um tiquinho.Além de realizadora, Cláudia participa da

Organização de Jovens Indígenas Truká e doprojeto Índios On-Line, rede de corresponden-tes de onze povos indígenas do Nordeste. “Agente notou que a juventude do nosso povoestava muito dispersa, por a cidade ser muitopróxima: o que nos separa é só uma ponte. Osnossos mais velhos estavam sentindo a faltada presença dos jovens nos rituais. Tivemosque nos desdobrar. Chamamos os jovens paratomar a responsabilidade para si”, conta. Paraa juventude truká, o vídeo e a internet servi-ram de estímulo para uma mobilização cultu-ral e política, que também ajuda a recuperar aconvivência e o diálogo entre gerações.

Muitos realizadores indígenas são profes-sores e lideranças de entidades locais e re-gionais, criadas para organizar o trabalho doseducadores, a produção agrícola, as açõesculturais, a juventude indígena e o manejodos recursos da floresta, com os agentesagroflorestais.

O vídeo veio se somar a esse movimentoque começou na década de oitenta, com pro-gramas de educação e formação política, etem motivado o compromisso dos jovens nasatividades de organização e representação desuas comunidades. Hoje, os filmes produzi-dos pelos ashaninkas, huni-kuis e outros po-vos, falados em suas próprias línguas, tam-bém são vistos e usados em práticas edu-cativas dentro das comunidades indígenas econtribuem para concretizar algo que lideran-ças e professores como Isaac há muito tem-po reivindicam: uma educação diferenciada,voltada para as realidades indígenas.

Além disso, os filmes do Vídeo nas Aldei-as têm corrido o mundo, participando de festi-vais de cinema e da programação da televi-são, principalmente de canais públicos comoTV Cultura, TV Brasil e o francês France 2.Os realizadores indígenas têm assumido a res-ponsabilidade de criar a imagem de seus po-vos e desenvolvido um olhar próprio para suacultura, que também amplia os seus canais demanifestação e se transforma em função dis-so. Na construção de uma “voz” audiovisualprópria, tornam-se aptos a dialogar diretamentecom outras milhares e milhares “vozes” aoredor do mundo.

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Comunidadeikpeng assiste às

imagensgravadas pelos

realizadores eparticipa doprocesso de

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A R T I G O

Luis Fernando Lara Resende*

Há um razoável consenso, entre aquelesque militam na área de direitos humanos, so-bre a necessidade de se incorporar a ótica dedireitos, além da de desenvolvimento, em aná-lises que tomam por base indicadores diver-

sos. Eventual sucesso na implementação deum sistema de indicadores em direitos huma-nos influenciará o adequado cumprimento des-ses direitos, independente da evolução dascondições econômicas da nação brasileira.

Grosso modo, poderíamos argumentar queum sistema que permita monitorar o cumpri-

(1 ) Este artigo sintetiza os comentários apresentados no Seminário Internacional de Indicadores de Direitos Humanos, ocorrido em junho,em São Paulo, e na mesa “Indicadores de Direitos Humanos: Por quê? Para quê? Como?”, do 31º Encontro Anual da Anpocs, realizada emoutubro, em Caxambu, Minas Gerais.

* Luis FernandoLara Resende é pesquisador doInstituto de PesquisaEconômicaAplicada (Ipea) ecoordenou os trêsrelatórios brasileirosapresentados até omomento paraacompanhar osObjetivos deDesenvolvimentodo Milênio.

Direitossob medida1

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mento dos direitos humanos nada mais é doque uma evolução dos sistemas de indicado-res que têm sido utilizados para mensurar aqualidade de vida da população. Até meadosda década de 1980, prevalecia nas análises oProduto Interno Bruto (PIB), com suas diver-sas variantes e, em particular, o PIB per capita,bem como outros indicadores, como os quemedem as taxas de mortalidade na infância ea expectativa de vida.

Em 1990, o economista paquistanês Mahubul Haq, baseado nos trabalhos do professorAmartya Sen dos anos 70 e 80, propõe o Índi-ce de Desenvolvimento Humano (IDH), quepassa a ser utilizado, três anos depois, peloPrograma das Nações Unidas para o Desen-volvimento (Pnud) em seus relatórios anuais.O IDH é um indicador-síntese, que agregaindicadores específicos sobre saúde, educa-ção e renda. Com ele, o Pnud classifica ospaíses em uma escala que vai de 0 a 1.

Sem entrar no mérito do debate sobre asvirtudes que o IDH apresenta em relação à uti-lização de indicadores dispersos, ele tem pro-vocado algumas incompreensões, seja por par-te do público em geral, que não entende efeti-vamente o que significa IDH, seja por parte degovernos, que se sentem incomodados quando,de um ano para o outro, ocorre uma queda noíndice. Muitas vezes, isso se deve a restriçõesexternas de curto prazo – por exemplo, umarecessão causada por fatores exógenos à eco-nomia do país – que pouco têm a ver com aspolíticas públicas implementadas naquele mo-mento. Em outras palavras, a correlação entreo PIB per capita e o IDH tende a ser elevadano curto prazo, minimizando, assim, o efeito deações que possam estar sendo tomadas nasáreas de educação e saúde.

Em setembro de 2000, em Nova Iorque,ocorreu a Cúpula do Milênio, quando 191 paí-ses assinaram a Declaração do Milênio. Apósdois anos, o Pnud passou a desenvolver umnovo sistema de indicadores, no âmbito dosObjetivos de Desenvolvimento do Milênio(ODM). De acordo com a ONU, o principalintuito dessa iniciativa é sensibilizar as naçõesdesenvolvidas a aumentar a Ajuda Oficial aoDesenvolvimento, de modo que venha a al-cançar pelo menos 0,7% de seu PIB.

Os ODM inovam ao incorporar os princi-

pais indicadores sociais comparáveis inter-nacionalmente, permitindo acompanhar, nomundo inteiro, a evolução dos compromissosassumidos no Ciclo de Conferências da Or-ganização das Nações Unidas (ONU), du-rante os anos noventa.

Também podem ser compreendidos comouma estratégia única, que procura atender aosmandatos das agências e organismos do Sis-tema Nações Unidas, assim como fortalecero multilateralismo no sistema internacional.Praticamente todas as instituições subordina-das ou vinculadas ao Sistema ONU, de umaforma ou de outra, se reconhecem nos ODMe estes ocupam, cada vez mais, um espaço namídia antes reservado ao IDH.

Interessante notar que os ODM têm obti-do sucesso considerável em boa parte dasnações em desenvolvimento, inclusive aque-las consideradas de renda média que, em prin-cípio, não seriam o seu alvo preferencial.

Com esse instrumento, a ONU procura sensi-bilizar três grupos de nações:

1. as nações mais ricas do planeta, quetêm reduzido de forma substancial aAjuda Oficial ao Desenvolvimento(AOD), para que ampliem essaalocação de recursos;

2. as nações mais pobres do planeta, emparticular aquelas que dependem for-temente da AOD. Elas elaboram re-latórios nacionais de acompanhamen-to dos ODM como instrumento paramotivar potenciais doadores bilateraise multilaterais. Nessas nações, os re-latórios costumam ser desenvolvidoscom apoio das próprias agências mul-tilaterais, quando não elaborados inte-gralmente por elas; e

3. as nações de nível médio de desenvol-vimento, dentre as quais se encontra oBrasil. Para este grupo, os ODM tor-naram-se importante instrumento go-vernamental de publicização das políti-cas públicas e seus resultados e, para asociedade civil, de controle social.

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O Brasil já publicou três relatórios nacio-nais de acompanhamento dos ODM, em se-tembro de 2004, 2005 e 2007. Alguns estados,como São Paulo e Paraná, também o fizeram,enquanto municípios como Santo André, BeloHorizonte e Nova Iguaçu, entre outros, esfor-çam-se para aproximar suas políticas públi-cas das metas traçadas pelos ODM.

Parte da sociedade civil organizada, emparticular no meio empresarial, tem dado gran-de apoio a essa estratégia. O Instituto Ethos,que congrega diversos segmentos empre-sariais, lançou dois relatórios sobre os ODMe o Movimento Nacional pela Cidadania e So-lidariedade, em conjunto com o governo fede-ral e o Pnud, promoveu duas edições do Prê-mio ODM Brasil, ofertado a prefeituras e or-ganizações da sociedade civil que se desta-cam por implementar práticas que contribu-em para atingir as metas dos ODM.

Em que pesem as críticas que surgemaqui e acolá e o insucesso dos ODM, pelomenos até o presente momento, em sensi-bilizar as nações mais ricas para aumen-tarem os recursos direcionados à co-operação internacional, a estra-tégia em questão tem consi-derável sucesso no plano na-cional das nações de rendamédia. A pergunta que se fazé: por que isso?

No caso do Brasil, a res-posta parece-me razoavel-mente simples: há uma cres-cente demanda por informa-ções compreensíveis sobre aquantas andam as condiçõesde vida dos brasileiros. E istoos ODM fazem com conside-rável competência. Qualquercidadão com um mínimo de ins-trução consegue compreenderuma proposta de erradicar aextrema pobreza e a fome,universalizar o ensino fundamen-tal, promover a igualdade de gênero,combater o HIV/Aids, reduzir a mortali-dade na infância ou promover a sustenta-bilidade ambiental.

Ao vincular esses objetivos declaratóriosa dezoito metas quantificáveis, que são

monitoradas por um grande número de indi-cadores, os ODM impedem análises genéri-cas, na hora de mensurar o avanço social dasnações. Isso também facilita a mobilização dasociedade civil organizada que, historicamen-te, tem cobrado do Estado ações mais efici-entes e eficazes para solucionar as mazelassociais de um país com considerável nível deriqueza, mas com desigualdades extremas.

Para os governos, os ODM podem ser uminstrumento de medição do bem-estar da po-pulação mais interessante que o IDH, que acada variação do PIB faz com que o paísgalgue posições ou caia no “termômetro dedesenvolvimento humano”, como o índice fi-cou conhecido. Ao considerar um prazo de25 anos (1990 a 2015), inviabilizam que aconquista das metas seja (ou não seja) cre-ditada a um governo apenas. Finalmente,

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permitem aos governos e à sociedade civilacompanhar e compreender a evolução deindicadores básicos, por exemplo, sobre o ní-vel de renda, desigualdade, mortalidade nainfância e materna, o nível educacional dapopulação etc., que raramente são tratadosde forma conjunta. Sem dúvida, isso repre-senta um grande avanço para o controle so-cial das políticas públicas.

Pode-se argumentar, assim, que um siste-ma de monitoramento permanente por meio deindicadores de direitos humanos seria uma evo-lução natural do sistema oferecido pelos ODM,alterando-se, porém, seu olhar desenvol-vimentista para outro, de garantia de direitos.Também é crível prever, dado o impacto po-sitivo dos relatórios nacionais sobre os ODM,que o sucesso na implementação desse siste-ma poderá ter significativa influência em asse-gurar o cumprimento dos direitos, independen-te da evolução da situação econômica do país.

E para quem serviria tal sistema? Atende-ria à população em geral, que requer um acom-panhamento mais detalhado sobre a situaçãodos direitos humanos, e ao Estado, na sua pres-tação de contas à sociedade, no planejamentode médio e longo prazo para a área social eaté mesmo na elaboração de relatórios para aONU ou outros fóruns internacionais.

Já temos um caminhoEstudos realizados pelo Instituto de Pes-

quisa Econômica Aplicada (Ipea) e pela Es-cola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence),vinculada ao Instituto Brasileiro de Geografiae Estatística (IBGE), também podem servircomo importante subsídio para a implantaçãode um sistema nacional de indicadores em di-reitos humanos.

Pelo Ipea, vale destacar o Radar Social,publicado em 2005 e 2006, que analisa as con-dições de vida da população brasileira em setedimensões: demografia, trabalho, renda, edu-cação, saúde, moradia e segurança. Cada ca-pítulo aponta a relevância de uma dimensão,aborda os principais problemas e identifica osgrupos da população mais afetados, fazendouma breve análise da situação de cada umdeles e destacando diferenças em razão doterritório, gênero, raça ou idade. Foram esta-belecidos quarenta indicadores, que podem ser

atualizados anualmente. Além disso, o Ipeadedicou-se a desenvolver, em conjunto com oMinistério do Planejamento, Orçamento eGestão, um levantamento das iniciativas go-vernamentais que incidem na resolução dosproblemas diagnosticados.

Já pela Ence/IBGE há de se destacar o pro-jeto, em desenvolvimento há cerca de quatroanos, com o apoio da Fundação Ford, intituladoProposta de Estruturação de um Sistema deDireitos Humanos segundo a LógicaProcessualista. Essa proposta possui uma ca-racterística da maior relevância para as políti-cas públicas brasileiras: permite criarsubsistemas para grupos sociais específicos,como criança e adolescente, mulher, negro, ido-so, pessoas com deficiência e povos indígenas.É um excelente início para a montagem de umsistema nacional de monitoramento de direitoshumanos, havendo a necessidade, porém, dese iniciar um amplo processo de articulação comsetores representativos do governo e da socie-dade civil para sua validação, por exemplo, pormeio de conselhos paritários.

Assim, dada a experiência adquirida pelogoverno federal, por meio dos relatórios sobreos ODM e do Radar Social, somada ao esfor-ço já realizado pela Ence/IBGE, seria possí-vel o lançamento desse sistema, no médio pra-zo. Caberia agora, mais do que aprimoramen-tos técnicos, estabelecer esse processo am-plo de articulação com todos os interessados.

Finalizando, um alerta: é importante evitarque o sistema a ser desenvolvido venha a setornar demasiado complexo ou de difícil ali-mentação. Agrupamentos de indicadores, adepender de como são realizados, podem maisconfundir do que auxiliar no desenvolvimentode uma perspectiva holística na área de direi-tos humanos. Da mesma forma, a elaboraçãode um “indicador-síntese” para direitos huma-nos pouco agregaria à compreensão que exis-te sobre o tema.

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SAIBA MAIS:• Ipea – Radar Social

www.ipea.gov.br/Destaques/livroradar.htm• Pnud – ODMs

www.pnud.org.br/odm/

• IBGEwww.ibge.gov.br/home/

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Caderno 1 – Tecnologia Social

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CartilhaNosso lugar éa gente que faz

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