conto alice vieira rosa minha irma rosa 58pag (2)

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Alice Vieira Rosa, minha irmã Rosa EDITORIAL CAMINHO Digitalização e Arranjo Agostinho Costa Publicado em 1980 1

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Alice Vieira

Alice Vieira

Rosa, minha irm Rosa

EDITORIAL CAMINHO

Digitalizao e ArranjoAgostinho Costa

Publicado em 1980

Captulo 1

Quando a minha irm nasceu, o meu desapontamento foi to evidente que a minha me, abafada entre lenis e cobertores da cama do hospital, me disse:- Ela vai crescer num instante!Assim como se me pedisse desculpa nem ela saberia ao certo de qu.Num instante.Num instante?Num instante descia eu a rua para ir a casa da Rita trocar cromos (no te compro mais enquanto no colares na caderneta todos os que tens!, dizia a me tantas vezes), ou para lhe emprestar um livro, ou ela a mim.Num instante bebia eu o leite nos dias em que me atrasava, para apanhar a carrinha da escola, a voz de Margarida nos meus ouvidos: Olhe que por sua causa vamos chegar tarde!Num instante ficava em gua o gelo, em tempo de calor - e o que eu e a Rita tnhamos rido no dia em que a Chica estava cheia de medo que os cubos de gelo entupissem a pia...No, a minha irm no ia crescer num instante.E eu no entendia por que razo a minha me tinha dito aquilo, se ela sabia, to bem como eu, que no era verdade.Desse dia lembro-me ainda que fui dormir a casa da minha av Elisa, que me encheu os bolsos de rebuados, e me deixou ir para a cama mais tarde e sem se importar de saber se eu tinha lavado bem os dentes. J deitada, ouvi o telefone tocar muitas vezes, e sempre a minha av respondia:- outra rapariga... Correu tudo bem...O sono no vinha, por mais que fechasse os olhos com muita fora, como a Rita me ensinara. O colcho da minha cama era rijo (faz bem espinha!, dizia o pai) e o colcho da av era mole, to mole, com uma cova no meio. Alm disso a av Elisa tinha muito medo das constipaes e no me deixava abrir nem uma gretinha da janela. Alm disso...Alm disso faltava-me a voz da me (v, dorme, que amanh tens de te levantar cedo para a escola!), faltavam-me as suas mos a aconchegarem-me ao corpo a roupa da cama. Faltava-me saber que ela estava ao p de mim mesmo que no a visse nem ouvisse.Mas isso eu no dizia a ningum, nem Rita. Toda a gente gritava aos quatro ventos que eu j era crescida, havia de ser bonito se me vissem ali, encolhida na cama, lgrimas nos olhos e na garganta, com saudades de casa e da me. At a Rita havia de rir, com certeza. Mas a verdade que era isso mesmo que eu sentia. Isso mesmo: saudades. E era s por isso que no conseguia adormecer.- Correu tudo bem...E como teria sido se tudo tivesse corrido mal?E o que quereria dizer, ao certo, "correr bem?"A me e o pai tinham-me explicado como tudo acontece, logo no momento em que a barriga dela comeara a crescer: o pequeno, invisvel gro a colocado pelo pai, o ovo a desenvolver-se dia a dia l dentro, isso eu sabia.Lembro-me que um dia at achei graa ao ver mexer a barriga da me.- o beb a virar-se c dentro - disse ela.- Com tanto pontap at capaz de vir a algum jogador de futebol - disse o pai.Mas tudo agora no passava de palavras, de histrias que me tinham contado. Talvez fosse isso que a Margarida queria dizer todas as vezes que, l na escola, lhe acontecia algum aborrecimento e ela bichanava para a Teresa:- Pois , a gente s sabe dar o valor quando nos toca a ns!Eu no sabia bem o que quereria exactamente ela dizer com essas palavras, mas l que havia coisas que ficavam muito diferentes quando saam dos livros para a nossa vida, l isso havia.

Captulo 2

O Pedro avisou-nos que amanh temos provas de avaliao. A av Elisa diz que no tempo dela no existiam estas coisas: uma pessoa chegava escola, aprendia a ler, a escrever, a contar, e no fim do ano fazia um exame. Por isso ela encolheu os ombros quando Lhe falei nas provas, e ficou toda escandalizada por eu chamar Pedro ao professor.- Se alguma vez isso se admitia no meu tempo! Levvamos logo uma data de reguadas e ficvamos o dia todo no fundo da sala virados para a parede sem podermos falar com os outros... De resto, nem a gente se atrevia, credo! Era "minha senhora", ou "senhor professor", e tudo com grande respeitinho... Mas vocs agora sabem l o que isso ...Reguadas, no sei, no. (E, aqui para ns, no tenho grande pena dessa minha ignorncia.) Mas respeito, sei. S que me parece falar das mesmas coisas com palavras diferentes das que usa a av Elisa.No outro dia ela disse-me:- A tua amiga Rita tem grande respeito ao pai.Eu no respondi porque estava entretida a colar cromos novos na caderneta, mas fiquei a pensar naquilo durante muito tempo. E ainda penso. Sobretudo quando converso com a Rita l em casa. Ainda aqui h poucos dias.- Se eu estivesse na minha sala com um frasco de cola e um pincel, como tu ests, levava logo do meu pai - disse ela.- Levavas o qu? - perguntei eu.- s vezes parece que s parvinha ou que andas a navegar por outros mundos... Levava uma tareia, o que havia de ser?E riu, como se tivesse acabado de contar a histria mais divertida do sculo XX.- Mas levavas uma tareia porqu? - insisti.- Ora... Porque podia sujar a sala, porque a sala para as visitas, sei l por que mais... Por tudo... Por isso que eu fujo logo para o meu quarto mal oio o meu pai entrar em casa. E mesmo assim... Rita, no desarrumes nada!, Rita, no te sujes!... sempre isto, mesmo quando estou quieta no meu canto... A me diz que a casa tem de estar sempre arrumada e que eu desarrumo tudo.- E no desarrumas?- No, no desarrumo. O que acontece que arrumo de outra maneira, e sempre de uma maneira de que a minha me nunca gosta... De resto, as coisas nunca mudam de lugar l em casa. Um dia o meu pai bateu-me porque eu pus o cacto em cima da secretria dele...O cacto era meu, parecia quase uma rosa verde com muitas folhas, e eu pensei que ele gostasse de ter uma planta bonita a fazer-lhe companhia, quando estivesse a trabalhar... Mas ele s disse que eu tinha entornado terra e gua e agora a secretria estava manchada... Nem sequer reparou se o cacto era bonito ou feio... Eu olhei para a mesa e no vi l nada, mas ele teimava que se via muitssimo bem uma mancha mais clara no stio onde eu tinha posto o vaso... E que mais desastrada que eu no conhecia ningum...Nunca falei nestas coisas Rita, mas penso que medo que ela tem do pai, e no respeito, como pensa a av Elisa. E acho que deve ser horrvel ter medo de algum, sobretudo se esse algum for nosso pai ou nossa me. E tambm acho que deve ser muito triste viver numa casa onde no podemos mexer em nada, numa casa to arrumada como a da Rita. claro que eu gosto de casas arrumadas (a minha irm ir mexer nas minhas coisas?...), mas a casa da Rita cheira a museu, no cheira a casa onde vive gente. Lembro-me de uma tarde ouvir a minha me dizer para o meu pai:- Aquilo um lugar sem vida, quase nem nos atrevemos a respirar l dentro com medo de sujar os vidros.E era da casa da Rita que estavam a falar.Onde a av Elisa diz que h tanto respeito. Talvez no seu tempo fosse assim. Por isso eu gosto de viver agora, apesar de a minha me ainda no estar em casa, apesar de a minha irm no ser nada como eu pensava, apesar das provas de avaliao marcadas para amanh. As tais de que a av Elisa nunca ouviu falar. As provas de texto livre, de desenho, de gramtica, no me assustam. S me assusta um bocadinho a de matemtica. Mas o Pedro disse que eu produzia o suficiente", por isso acho que no vai haver complicaes.Mesmo assim vou ver se trabalho um pouco mais.

Captulo 3

Texto livre

A minha irm nasceu h quatro dias. muito feia, tem a cara toda s rugas e eu ainda no estou muito certa se gosto dela ou no. Pelo menos penso que nunca vou gostar dela como gosto da Rita, que mora na minha rua e a minha melhor amiga. Como diz a av Elisa, a famlia aumentou. S que eu gostava que a gente pudesse escolher a nossa famlia tal qual escolhe os amigos. Porque assim eu havia de gostar da famlia inteira. E nela estariam a me, o pai, a av, a Rita, o Pedro, o Sr. Joo da tabacaria, que s vezes me d mais uma carteira de cromos do que aquelas para que chega o dinheiro que levo.Mas no a tia Magda, que s tem boca para palavras azedas, e s gosta de flores caras com nomes complicados, como os antrios e as estrelcias, que a minha me lhe compra no dia dos anos. Quando estou triste, gosto de ter flores ao p de mim. Mas no preciso que cheirem ou que sejam daquelas de ps muito altos a dormir na montra das floristas. S preciso que estejam ao p de mim. Que eu olhe para elas e sinta que estou to acompanhada como se elas fossem pessoas. Sinto que h flores que nunca me poderiam fazer companhia. Os antrios e as estrelcias, por exemplo, a delcia da minha tia Magda.A minha me conta que a primeira vez que me levou a casa da tia eu passei o tempo todo a gritar dentro da alcofa. Ainda hoje, para ser sincera, me apetece gritar quando a vejo. J sou crescida e as pessoas diriam que me estava a portar mal. Mas a verdade que no gosto muito da tia Magda, embora a av Elisa esteja constantemente a meter-me pelos ouvidos dentro que a gente deve sempre gostar da nossa famlia.O que eu no compreendo muito bem. No ano passado, chegaram a minha casa uns primos vindos do Brasil, que eu nunca tinha visto e de quem raramente ouvia falar. Estiveram comigo uns dois ou trs dias e seguiram para o Norte. No voltei a v-los, nem penso neles. E acho que ningum me pode obrigar a gostar deles s pelo facto de serem da minha famlia. No posso gostar de pessoas que no conheo, e de quem nada sei. Mas posso gostar muito de pessoas que no so meus primos, nem tios, nem avs. De pessoas que no me so nada, como costuma dizer a tia Magda para me arreliar. Ento a Rita, por exemplo, no nada para mim? Se eu no posso estar um dia sem a ver, sem brincar com ela, sem conversar com ela - isto no importante? Por isso eu digo que se escolhesse a minha famlia havia de l pr tambm a Rita.E as flores. As que me fazem companhia de gente, nunca os antrios e as estrelcias.E o Zarolho, que nada no aqurio da entrada.E a Zica, j s com um brao, um olho muito claro na cara preta, uma carapinha roda das traas, mas ainda a boneca preferida.E a rvore da minha rua, com o rouxinol que todas as Primaveras nela mora, e canta, e me faz contente nem sei porqu.E a vizinha do prdio em frente, o dia inteiro agarrada mquina de costura.E o meu quarto e tudo o que dentro dele me pertence de verdade.E tambm os livros. E os patins. E as minhas cadernetas de cromos coloridos.Neste momento ainda no sei se a minha irm que nasceu h quatro dias vai pertencer minha famlia.

Mariana (2.o ano - 2.a fase)

Captulo 4

A me volta amanh para casa.Mas a casa est diferente, e tenho medo que a me tambm o esteja.A cama de grades, de madeira castanha, que serviu para mim, j est posta no seu quarto, embora por agora a minha irm v dormir na alcofa. A banheira pequena, de plstico azul, tambm j est na casa de banho, pronta a servir. H montanhas de fraldas brancas dentro de uma gaveta, mas a av Elisa passa o tempo todo a queixar-se de que ainda so poucas.O pior de tudo foi que tive de ceder duas gavetas da cmoda do meu quarto para l meterem coisas do beb, pois parece que no cabia tudo na cmoda da minha me.- Como que uma criana to pequena pode precisar de tanta coisa?Foi isto mais ou menos que perguntei minha av, mas ela estava to atarefada a contar pela milionsima vez as fraldas da minha irm, que s resmungou entredentes:- Isto vai ser bonito, vai...No percebi o que que ia ser assim to bonito, mas decidi no a preocupar, absorvida que estava na contagem das fraldas.Desde que a minha irm nasceu, s vejo o meu pai a correr, quando ele tem tempo para ir jantar a casa da av.- Queres ir amanh comigo buscar a me? - perguntou ele.- No posso. dia de ginstica e saio mais tarde da escola.Vi que tinha ficado um bocado aborrecido comigo, mas tambm eu andava aborrecida com muita coisa e ningum parecia incomodar-se muito com isso.- pena. Podias ajudar a trazer as coisas da me, que ainda est um bocado fraca. Mas deixa l, havemos de nos arranjar de qualquer maneira. No me tinha lembrado da ginstica, desculpa.No sei porqu senti um n no fundo do estmago, uma estpida vontade de chorar, mas abri muito os olhos e fechei as mos com fora (a Rita tinha-me ensinado este truque de reter o choro quando ele estava mesmo beirinha dos olhos) e no disse nada. S que o caldo-verde, feito de propsito pela av para mim, de repente deixou de ter sabor.Foi nessa altura que ouvi o meu pai perguntar:- Ento e o nome?- Qual nome?- Qual havia de ser... O nome para a tua irm! Ou tu queres que ela se v chamar Jaime?Apesar de toda a minha m disposio ainda consegui sorrir com a ideia. De facto, todos tnhamos andado nove meses a falar no irmo que ia nascer, chamando-lhe Jaime para aqui, Jaime para acol, como se a vinda de um rapaz fosse coisa to certa como as 24 horas do dia.A tia Magda, que sabia sempre tudo, e lia todas as revistas de todas as tabacarias de toda a cidade, tinha prevenido:- Olhem que vai ser outra rapariga! Eu tenho c um sexto sentido que no falha...Ningum lhe ligou, e por isso ela agora quando nos v no pra de resmungar:- Eu bem vos tinha avisado...Porque alm de dizer palavras azedas e de gostar de antrios e estrelcias, a tia Magda tem outro defeito: s ela sabe sempre tudo, s ela tem sempre razo. Quando a vejo, tenho a sensao de que a tia Magda j nasceu assim, com bigode e pele enrugada, ares autoritrios e um dente de ouro a espreitar-lhe da boca.De sbito a imagem da minha tia, j velha, mas deitada numa cama de beb, fez-me rir.- Que foi? - perguntou o meu pai.- Nada - disse eu. - Estava a pensar noutra coisa.- Ento acho melhor que vs comeando a pensar tambm no nome da tua irm - disse ele.E acrescentou, com ar meio srio meio divertido:- No gosto que uma cidad deste pas esteja muito tempo sem nome...Pensei no rosto engelhado daquele meio metro de gente que tinha visto no bero do hospital, e disse para comigo que, se todas as cidads tivessem aquela cara, o Pas estava bem arranjado...E ainda estou para saber o que me deu para, no fim do jantar, agarrar o brao do meu pai e dizer-lhe:- Vou contigo amanh buscar a me.

Captulo 5

Dantes havia outra av em casa.Era me do meu pai e chamava-se Ldia. Lembro-me dela todos os dias, apesar de ter morrido h quase um ano.Mas no me lembro de nenhum av, penso que nem sequer cheguei a conhec-los. Isto, como costuma dizer o meu pai, casa de mulheres... Talvez por isso a gente se tivesse mesmo convencido de que vinha a um Jaime para mudar os ares:...A av Ldia contava histrias dia e noite. Tinha sempre uma histria para tudo, e a gente nunca chegava a compreender bem se elas eram inventadas ou se lhe tinham acontecido, nos seus tempos de nova.Que a minha av Ldia sempre foi nova at morrer. E se vivesse hoje, ainda continuava a ser nova. E mesmo que chegasse aos cem anos, seria nova, nova, mais nova do que eu. Ao contrrio da tia Magda, que j nasceu com mil anos em cima.A av Ldia ria muito quando contava as histrias. s vezes ainda ia a meio e j ria tanto que ns tambm comevamos a rir, como se j soubssemos a graa final da histria.As histrias da av Ldia raramente metiam fadas nem bruxas, nem duendes, nem coisas assim. Eram quase todas passadas com gente como ns, e talvez por isso eu gostasse tanto de as ouvir. Eram quase sempre histrias de quando ela era pequena, e de tudo o que de desastrado ento lhe acontecia. Porque, ao contrrio do que as pessoas crescidas costumam fazer, a av Ldia no escondia de mim os disparates e as coisas ms da sua infncia. Jamais lhe ouvi dizer eu nunca menti, ou ento eu nunca desobedeci aos meus pais, como a tia Magda constantemente me diz, sabendo eu to bem que aldrabice...A av Ldia contava muitas vezes a histria da sua fuga de casa procura da Frana, que era o lugar para onde tinha ido o pai dela. Toda a gente da aldeia a procurou durante um dia e uma noite, at que foram encontr-la debaixo de um pinheiro no meio da mata, perdida de todos, mas repetindo baixinho a Frana, a Frana...- Apanhei uma tareia mas nunca ningum me tirou da cabea a vontade de ir ver onde era a Frana - costumava ela dizer.Vontade que nunca satisfez. Lembro-me de ouvir o meu pai dizer no dia em que ela morreu:- Nunca me perdoo de no a ter l levado. Mas a gente tem tanto que fazer que pensa sempre que h-de haver tempo para tudo noutra altura. E vamos adiando tudo...Nunca vi o meu pai to triste como no dia em que a av Ldia morreu. Segundo ele diz, a av Ldia teve uma vida muito dura e poucos tero sido os seus dias felizes.- Pode-se dizer que s teve um pouco de descanso e alegria nestes anos em que viveu na nossa casa - disse um dia o pai, em conversa com a me.Por isso ainda fiquei a gostar mais da minha av Ldia, que andava sempre a contar histrias e a rir, como se nunca alguma coisa m lhe tivesse acontecido na vida.E agora penso que Lhe devia ter dito mais vezes como gostava dela, e como o seu riso e as suas histrias enchiam esta casa.E como s vezes me faz falta.A minha irm j no vai saber quem era a av Ldia. Mesmo que algum Lhe conte as suas histrias, j no a mesma coisa. Era preciso ouvi-la rir, rir, rir. Era preciso ouvi-la contar que bom era ir com os irmos mais novos at ao sapateiro, na vspera de Natal, e esperar que os sapatos novos sassem, fresquinhos como bolos, das suas mos. A minha av Ldia tinha mais doze irmos e s uma vez por ano que havia dinheiro para dar sapatos aos mais novos.Contava ela:- Os mais velhos que tinham de andar calados porque j trabalhavam. Agora os mais pequenos tinham que aguentar descalos a maior parte do tempo. Por isso quando vinha o Natal era uma festa... O nosso Pai Natal era aquele homem, trabalhando at tarde para acabar os nossos sapatos. E ns ali todos ao p dele, sem tirarmos os olhos daquelas mos.A minha irm j no vai ouvir nada disto. Olho para ela, a dormir dentro da alcofa, cheirando a leite e a sabonete, e tenho vontade de lhe dizer:- Sou muito mais velha do que tu, bem feito!

Captulo 6

Desde que a minha irm chegou, nunca mais houve sossego nesta casa.A minha me anda nervosa, diz que j est destreinada, que no se entende com tanto bibero e tanta fralda.A av Elisa, na ajuda que vem dar todos os dias, diz que a menina est a engordar pouco, e que eu com a idade dela era muito mais desenvolvida.A tia Magda vem c dia sim dia no, e diz que a menina est cheia de sede, e que nunca se h-de esquecer como, se no fosse ela, eu teria morrido com falta de gua exactamente naquela idade.S o meu pai vai mantendo a calma no meio disto tudo.Para ajudar festa, tem sido um corropio de visitas e familiares (daqueles que s vemos l de ano a ano e depois olham para ns e dizem mas que crescida!), todos a quererem ver o beb, todos a quererem saber mais do que os outros, todos a quererem mostrar como se trata de crianas.No outro dia a minha prima Isaura disse para a minha me:- J nem sabes pegar na menina como deve ser!Fiquei a olhar para ela muito espantada. A prima Isaura nunca casou, no tem filhos, como h-de pretender ensinar a minha me, que j me teve a mim h dez anos?Foi por isso que eu lhe disse:- Ento mostre l como !Ela tirou a minha irm da alcofa, passou-lhe um brao por volta do pescoo e outro pelas costas, que a minha irm ficou toda aninhada e as mos dela pareciam um barco ou um bero.- Vs? - disse-me ela. - assim. L saber de crianas, sei eu. E os seus olhos ficaram de repente diferentes. No sei bem se era tristeza, mas era um olhar que quase nos dava vontade de chorar ou de lhe fazer festas sem razo.Notei que todos se tinham calado e a minha me fingiu andar procura de um alfinete-de-ama pelo cho, mas eu bem vi que era para disfarar e que ela sabia que no havia nenhum alfinete por ali cado.A prima Isaura ps a minha irm de novo na alcofa, sorriu e disse:- V! Volte para a sua cama que no lhe quero criar maus hbitos.E tudo pareceu voltar ao normal.Mais tarde o pai explicou-me que a prima Isaura tinha criado os irmos todos como se fossem seus filhos. A me morrera quando nascera o mais novo (de repente pensei nas palavras da av Elisa ao telefone naquela noite em que a minha irm nasceu - correu tudo bem! - e sinto c por dentro uma espcie de arrepio ao pensar que ela podia ter dito correu tudo mal...), e o pai passara depois muitos anos na priso. O meu pai diz que nunca conheceu homem to bom como o pai da prima Isaura, e que dantes as pessoas eram presas quando lutavam para que todos tivessem comida, e casa, e trabalho. Eu no sei como que se luta por isso, mas hei-de um dia perguntar ao meu pai. E hei-de conversar com ele sobre estas coisas todas.Mas por agora impossvel conversar nesta casa. Anda tudo volta da minha irm, todas as conversas comeam ou acabam nela, coisa to pequena que, de repente, enche uma casa e se torna na pessoa mais importante da famlia.Agora a menina ela.Se algum telefona e pergunta a menina?, j sei que isso deixou de ser comigo. Eu agora sou a Mariana e mais nada. No que me importe, pelo contrrio, at me d certo ar de rapariga crescida. S que algum podia ter tido a delicadeza de me prevenir.Quando a confuso aumenta, geralmente por volta das sete horas, a minha vontade era meter-me no meu quarto e no voltar a sair de l. Mas nessa altura que todos se lembram de mim.Mariana vai pr a mesa.Mariana olha o telefone.Mariana apanha o sabonete.Porque s sete horas hora de tudo e no h tempo para nada. hora do banho da minha irm, hora do bibero, hora do pai chegar, hora de ter o jantar pronto e - nunca percebi bem porqu - hora de toda a gente se lembrar de telefonar c para casa. E hora em que j no h ningum para ajudar. Esquisito, como todas as pessoas querem ajudar quando no so necessrias, e desaparecem na altura exacta em que precisamos delas...Por isso o meu pai ao chegar a casa fez-me uma festa e disse:- Tens que ter pacincia... Isto sempre assim ao princpio... Contigo ainda foi pior... Mas daqui a uns dias vais ver como tudo caminha bem.

Captulo 7

Depois de muita discusso (felizmente que a tia Magda no estava) ficou decidido que a minha irm se vai chamar Rosa.O meu pai queria por fora chamar-lhe Ldia, mas a saltei eu, como se me estivessem a roubar uma parte de mim prpria.- No quero! No quero que ela se chame Ldia! No quero! No quero!Bati com fora a porta da sala e corri para o meu quarto enquanto os ouvia dizer:- Esta criana anda uma pilha de nervos. claro que esta criana era eu.No gostei e decidi armar-me em forte (l vinha o truque da Rita: abrir muito os olhos e fechar as mos com fora) e voltei para a sala. Ningum me fez perguntas e nessa altura j se discutiam outros nomes.Ins, Sofia, Margarida, eram-me perfeitamente indiferentes. Foi quando o meu pai disse:- Isto tem que ficar hoje resolvido, nem que a gente esteja aqui a noite inteira! No quero ir amanh para a festa com uma filha sem nome.Amanh o 25 de Abril e vamos todos para o parque. At mesmo a minha irm, dentro da alcofa, e decerto cheia de mantas como quando chegou a casa. A minha me j tem um saco de coisas que podem l ser precisas - onde, evidentemente, no faltam os biberes e um monte de fraldas.Por mim, no levo nada: gosto de ter as mos livres para brincar, dar cambalhotas na relva, segurar no balo que o meu pai costuma comprar. Encontro sempre muitas pessoas amigas no parque e sinto que ento a gente gosta mais delas do que nos outros dias.- pena no se poder chamar cravo... - disse a minha me, rindo.- Mas pode chamar-se rosa... - disse eu, j esquecida da minha m disposio de minutos antes.E comecei a cantarolar:

"A rosa jurou ao lrio amizade sem ter fim..."

J h muito tempo que no ouvia a minha me e o meu pai rirem de qualquer coisa que eu tivesse dito ou feito.At porque - eu reconheo - nestes ltimos tempos no tenho andado assim com muita graa, no.- Por acaso era uma ideia... At gosto do nome - disse o meu pai.- Pronto, est resolvido, chama-se Rosa - disse a me.E aqui estou eu, quase sem dar por isso, a escolher o nome da minha irm. Que grande responsabilidade, diria a tia Magda (e dir, decerto, quando souber...). Esta outra das palavras grandes que ela adora. O que me parece que ela no vai gostar l muito do nome, a no ser que haja perdida pelo meio da famlia alguma bisav ou trisav Rosa que eu no conhea.A minha me costuma contar que no dia em que lhe disseram que eu ia chamar-me Mariana, a tia Magda virou a cabea e resmungou:- Mariana, s conheo a Alcoforado, e que eu saiba no era da nossa famlia.Porque a tia Magda acha que as crianas que nascem tm de ter sempre nomes de pessoas da famlia, e essa Mariana Alcoforado de que ela falava era uma freira que viveu em Beja h muitos anos, e ficou conhecida por ter escrito um livro que a me j me prometeu dar a ler quando eu for crescida.Por isso eu digo que a tia Magda no deve gostar muito do nome que, por simples acaso, escolhi para a minha irm. E se calhar preferia v-la com o nome de alguma bisav antiga, ainda que fosse feio e cheirasse a bafio pelo meio das letras... Quem gosta de antrios e estrelcias, e tem um dente de ouro a sair boca fora, capaz de tudo...S duvido que seja capaz de entender por que que eu no quis chamar Ldia minha irm. O meu pai tambm no entendeu:- No percebo por que ficaste to zangada! Tu gostavas tanto da av Ldia!Precisamente por isso - ia eu a responder. Mas achei melhor no dizer nada. E peguei no frasco da cola para ir colar uns cromos novos que tinham sado numas carteirinhas que a av Elisa me tinha trazido da tabacaria do Sr. Joo.- Deixa-a... - ouvi a minha me dizer baixinho. E depois, em voz alta: - Rosa... Rosa um nome muito bonito... No sei como ainda ningum se tinha lembrado dele! Foi uma bela ideia, Mariana!Estupidamente deu-me uma vontade doida de assobiar. O pior que, apesar dos esforos desesperados da Rita para me ensinar, eu no sei assobiar. Sai-me o ar todo por entre os dentes, no se percebe nada da msica. Mas quando me sinto contente, um desejo danado que tenho, e no h nada a fazer. A Rita assobia que nem um melro. Para grande escndalo da av Elisa. Ela diz que no seu tempo era uma vergonha as meninas fazerem tal coisa.Como deviam ser tristes as meninas do tempo da av Elisa, com tantos exames, reguadas, medo do professor, e sem poderem ao menos assobiar...J passava das dez, mas como era feriado no dia seguinte ningum estava com pressa de me mandar para a cama. De resto, aquela era uma noite diferente: a minha irm j tinha nome: E isso devia ser muito importante, porque num quadro que a me tinha posto na parede do meu quarto, com um menino de olhos tristes e muita coisa escrita por baixo, a primeira frase dizia:

"Todas as crianas tm direito a um nome".A minha irm era Rosa. Era o seu direito.

"agora namora um cravoas rosas so sempre assim"

Cantei eu, s para mim. E descobri que estava a morrer de sono.

Captulo 8

Ontem tarde fui Baixa com a minha me. As duas sozinhas, como no tempo em que Ha menina era eu.Subimos e descemos ruas, entrmos e samos de muitas lojas e sempre ela me dizia:- Cada dia as coisas esto mais caras. Por este andar no sei onde iremos parar.E por isso muitas vezes entrvamos e saamos das lojas de mos vazias. Olhvamos as muitas coisas bonitas, mas elas ficavam apenas nos nossos olhos, e o dinheiro nunca chegava para as levarmos para casa. s vezes penso por que ser que as coisas bonitas tm sempre de ser caras. Ou por que ser que o dinheiro s d para as coisas feias.E sempre a voz da minha me:- Nem sei onde iremos parar...Eu acho que nem era comigo que ela falava. Era assim um atirar das palavras para o ar, talvez espera que alguns ouvidos as apanhassem e as coisas ficassem, de repente, mais baratas.Por isso no respondi e comecei outra vez o jogo de quando ando nas ruas da Baixa: nunca pisar o risco dos passeios. Mas havia muita gente e tive de desistir, at porque j tinha empurrado a umas duas ou trs senhoras e a minha me ralhara:- V se tens mais cuidado, Mariana!Passmos por muitas floristas, mas tambm as flores custavam muito dinheiro. Por isso as montras estavam to cheias e as casas to vazias.- Que acontece se as pessoas no comprarem estas flores e elas murcharem todas nas montras? - perguntei.A minha me encolheu os ombros.- Sei l!... Tens cada ideia!Mas depois acrescentou:- H sempre enterros todos os dias... Ao preo a que esto as flores, acho que mesmo s para isso que as pessoas ainda as compram...- Por que que as pessoas levam flores para os que morreram, me?- Porque a ltima prenda que lhes podem dar.- E no era melhor dar-lhes flores quando esto vivos? Tu agora no levas flores para nossa casa porque elas esto muito caras. Foi o que disseste h bocado. Mas se algum de ns morresse, tu levavas. E elas continuavam a estar caras, no era?- No brinques com essas coisas, Mariana! s muito pequena, no entendes bem...Isto o pior que me podem dizer e a minha me sabe-o. E eu tambm sei que ela me responde assim quando no descobre o que me h-de responder.Meu Deus, como difcil viver numa famlia! Quando a Rosa crescer tenho de lhe explicar tudo muito bem explicadinho, para ela no ficar como a Rita, bicho-do-mato, sempre com medo de tudo e de todos. Eu c parece-me que medo, medo, aquilo que se pode chamar medo, s tenho da broca do dentista.Uma vez a av Ldia contou-me que, no tempo em que ela era mida e vivia l na aldeia mais os doze irmos (ou melhor, os onze, que a tia Magda veio muito cedo para Lisboa), nem sempre havia boa disposio em casa.- Tu sabes, Mariana, a culpa nem era da minha me, coitada, a trabalhar dia e noite para que houvesse sempre um bocado de po na mesa. E tambm no era do meu pai, morrendo aos poucos l em Frana, sonhando sempre juntar algum dinheiro para nos mandar. A culpa no era de ningum, afinal. Ou ento daqueles que deixavam que as coisas continuassem assim... Assim... Uns a terem de mais, outros a no terem sequer o suficiente. Mas eu era mida e no percebia. E s vezes davam-me c umas raivas e fazia toda a espcie de disparates que me vinham cabea s para arreliar a minha me. Era assim uma espcie de vingana. S que ela, coitada, no o merecia. E s vezes perdia a cabea connosco e era tareia de meia-noite. Sabes, a gente costuma dizer que casa onde no h po, todos ralham e ningum tem razo, e bem verdade. Claro que ns fazamos asneiras, sabamos que amos levar pancada...E ento s vezes eu procurava esconder-me ou fugir. Mas o meu irmo Jorge (esse teu tio que est no Brasil) agarrava-me e dizia: No vale a pena a gente fugir, Ldia. A gente tem sempre de voltar e ento ainda pior...E para me animar acrescentava a rir: no nos vo matar, pois no?, e encolhia os ombros, como se nada mais tivesse importncia. Acredita que essas palavras nunca saram da minha cabea. Mesmo j mulher, quando as coisas no me corriam bem e tinha receio de enfrentar certas pessoas, dava comigo a repetir, como o Jorge: no me vo matar, pois no?. E tudo se tornava mais fcil, e o receio acabava por desaparecer. Que a gente nunca deve ter medo de ningum, Mariana, nunca.Por isso quando eu s vezes grito que ningum me mete medo, o meu pai diz logo:- Sais tua av Ldia.E porque eu no quero que a Rosa tenha medo das pessoas que lhe hei-de explicar esta coisa complicada que ter uma famlia.

Captulo 9

O Pedro no anda l muito contente comigo por causa da matemtica. Diz que eu s ligo ao portugus, e que assim no pode ser, e que a matemtica muito importante, e que sem a matemtica no se pode viver, e que sou uma cabea no ar, e que, e que, e que.Em casa o pai disse-me exactamente o mesmo, acrescentando ainda:- Olha que as provas finais de avaliao esto porta e eu no gostava muito que tivesses de repetir o ano por causa da Matemtica.Se fosse a av Elisa comeava j a falar no seu tempo, e como ento as meninas eram estudiosas.Quando a minha me a ouve, ri-se:- A Mariana tambm estudiosa, me. Os assuntos e as maneiras de ensinar que mudaram... Dantes davam-nos coisas para decorarmos e pouco mais. Tudo dependia de termos ou no boa memria. Ningum se preocupava muito em saber se tnhamos compreendido... No pense que eram melhores tempos porque no eram.No entanto, segundo ouo s vezes o meu pai conversar com a minha me, parece que agora tambm ainda no est tudo como deve ser.- Quando a Rosa entrar para a escola talvez as coisas estejam j a levar caminho - diziam eles no outro dia.A comecei eu a pensar se tambm iria alguma vez falar do meu tempo, como a av Elisa. E se a minha irm ir rir do que eu disser, como eu rio (s escondidas, evidente) daquilo que diz a av.Mas o que certo que tenho mesmo de me agarrar matemtica, e o Pedro tem razo quando diz que s ligo ao portugus. O pai da Rita proibiu-a de pegar na caderneta dos cromos enquanto o Pedro no mandasse dizer que ela j estava bem na matemtica. A Rita anda para a a chorar pelos cantos, que eu bem vejo, embora se faa forte. Mas eu conheo-lhe o truque e quando lhe noto os olhos muito abertos e as mos fechadas, j sei que aquilo anda mal.A Rita a minha melhor amiga e no gosto de a ver triste. Acho que, tal como eu, ela sabe que tem de estudar um bocado mais a matemtica, e no era preciso proibir-lhe nada. Era preciso s explicar-lhe melhor, ter mais pacincia, sei l...Mas o pai dela assim. No outro dia quando o Pedro mandou para casa a folha do nosso aproveitamento escolar, ele deu-lhe uma prenda porque na folha vinha escrito: "cumpriu". Acho que no faz sentido ter-lhe proibido agora os cromos, como no fez sentido ter-lhe dado ento a prenda. Os meus pais do-me prendas quando podem, quando esto felizes, quando fao anos ou Natal, mas nunca por fazer aquilo que tenho de fazer.- Se tu no aprenderes, o mal s para ti - diz sempre o meu pai.E comea logo a ler o jornal, que sinal de que a conversa acabou.Pego no livro das fichas de matemtica e num lpis e comeo a trabalhar at serem horas de jantar. A minha irm choraminga no bero - rudo a que me vou habituando nesta casa. Antes de me deitar pego nos meus cromos da coleco Maravilhas da Natureza e escolho alguns dos mais bonitos para levar amanh Rita.

Captulo 10

No domingo no fomos sair porque a minha irm estava com febre. Todo o mundo doido, o que , o que no , a av Elisa agarrada ao telefone procura do mdico que no estava em parte nenhuma, a tia Magda a perguntar para c de cinco em cinco minutos se a menina no estaria com sede, que ela bem se lembrava do Que tinha acontecido comigo, a prima Isaura a recomendar gua morna com acar, a vizinha do lado a garantir que tudo passava com um banho frio, at a me da Rita afirmando:- So convulses.- Um dente! Vocs vo ver que no mais do que um dente a querer romper - dizia o pai, que nestas coisas sempre aquele que fica mais calmo.- Quando era da Mariana nunca te vi assim to tranquilo! - resmungava a av Elisa, os dedos continuamente discando o nmero de telefone do mdico.- A Mariana era o primeiro filho. Nunca sabemos nada nessa altura. Mas aprendemos muito. Acho que nunca aprendi tanto na minha vida como no ano em que a Mariana nasceu. Penso que at aprendi a compreender melhor as pessoas, a gostar mais delas, sei l. E aprendi a no me assustar, a no entrar em pnico, a no perder a cabea. Por isso, enquanto no se encontra o Dr. Cunha, deixem estar a Rosa sossegada, dem-lhe um bocadinho de aspirina e, pronto, daqui a bocado j ela est fina, vocs vo ver.Enquanto toda a gente sofria com o primeiro dente da minha irm, peguei na caderneta, na Zica, no casaco, e fui para casa da Rita, que nesse domingo tambm no tinha sado. J ia na rua quando me lembrei: e a matemtica?. No era que me apetecesse muito estudar ou fazer fichas com um dia to bonito. Mas a verdade que tambm no me apetecia faz-las quando os dias estavam feios. O que, infelizmente, queria dizer que nunca me apetecia faz-las. E eu sabia que no podia ser assim.Voltei a casa e num instante agarrei no caderno das fichas e l fui para casa da Rita. A me dela ficou muito satisfeita quando me viu entrar de caderno de matemtica debaixo do brao. To satisfeita (assim que , Mariana, aproveitar o tempo todo para estudar!) que nem sequer reparou nas Maravilhas da Natureza que vinham debaixo do outro brao.Entrei logo para o quarto da Rita, que ficou muito contente por me ver. A Rita tem a mania que, desde que nasceu a minha irm, eu no estou tanto com ela como dantes estava. Mania da Rita, mais nada. S que s vezes a minha me pede que a ajude e eu no posso dizer que no. E l tenho de trocar algumas tardes com a Rita por algumas tardes de pr e tirar fraldas e de biberes preparados a horas certas, seno a Rosa abre as goelas e no h quem a sossegue.Mas a Rita no tem irmos, no entende nada disto. Amua e repete constantemente:- s tu que no queres vir! Eu bem sei que s tu!Hoje quando entrei no quarto, riu-se e veio logo pegar na Zica. Sentmo-nos no cho e l fomos misturando fichas e flores, ngulos agudos e anfbios, conjuntos e rochas, fraces e rpteis, nmeros complexos e aves estranhas, trs-vezes-nove-vinte-e-sete e mamferos de nomes nunca vistos nem ouvidos.Quando voltei para casa tudo estava muito mais sossegado, incluindo a Rosa, que dormia na alcofa, to longe ainda destes problemas da matemtica. Gostava de lhe poder soprar ao ouvido:- Aproveita agora que ningum te maa, que podes dormir o tempo que te apetecer, que no tens de te levantar cedo para apanhares a carrinha, que no sabes o que so conjuntos, que podes berrar e gritar quando estiveres mal-disposta sem que te venham dizer que vergonha!, que podes fazer todos os disparates possveis porque h sempre a justificao dos dentes a quererem romper... Aproveita agora a sorte que tens em no seres ainda crescida...s vezes gostava realmente de lhe dizer isto tudo. Mas depois penso:Dormir o dia todo tambm no deve ser l muito divertido. Estar sempre deitada na alcofa de manh noite, ou ento ter de andar de colo em colo sempre que aparecem tias e primas e visitas e parentes... No poder brincar com os amigos, nem andar de patins, nem saltar corda, nem ler livros, nem comer gelados ou batatas fritas... No, afinal acho que a Rosa no tem uma vida muito divertida, no... E vai ser bom ela crescer depressa, como disse a me.Crescer depressa e arranjar ainda mais depressa os dentes todos, que para a gente no andar nestas aflies e poder sair aos domingos.

Captulo 11

Se A interseco com B for igual a 3 e 4; se A unio com B for igual a 1, 2, 3, 4, 5 e 6... Se C for igual a 8, 9, 10 e 11, e a relao inversa de C para A Z - 7 = X... Rita, Rita, como eu gostava de ter assim um nome destes, nomes que soam to bem, cheios de letras que parecem msica...Fecha os olhos e diz comigo: iguana, salamandra, madrpora, lisambra, atlia, zimbro, centurea, hibisco, albatroz, acar... Se o ngulo A tiver 50 graus e o ngulo B tiver 210 ento as flores vo encher esta sala, do cho ao tecto, flores que podem ser lrios; tulipas, helicnias, accias, rododendros, e todos os insectos do mundo viro poisar no ngulo A, quer tenha ou no 50 graus, e as abelhas ho-de procurar o plen por entre a interseco de A com B, e havemos de ver as formigas nos seus carreiros perfeitos procurando as companheiras na relao inversa de C...Rita, Rita, traz tambm o teu cacto para a nossa festa e ele ser baptizado de guiabento, grandifloro ou flor-de-baile, e dos meus bolsos h-de saltar o Zarolho, que todos iro conhecer pelo ttulo de combatente de Sio, que o nome dos peixes mais belos e valentes que existem em todas as guas dos oceanos, e ningum se h-de rir por ele ter s um olho, e em vez de lhe atirarem cara com para que quero eu um peixe zarolho c em casa, como disse a minha me quando o meu pai o comprou, iro antes desfazer-se em mesuras e procurar a melhor gua e a mais verde vegetao, que tudo ser pouco para o grande combatente de Sio.Rita, Rita, olha como de repente se erguem os nmeros pares e mpares, e fogem dos nossos cadernos, e danam de roda com as circunferncias, e trepam pelos losangos, e andam de baloio nas vrgulas, e adormecem cansados e felizes nos lagos azuis dos ngulos rasos. E eu apanho um ramo de nmeros pares e tu apanhas um ramo de nmeros mpares e eles tm a resistncia dos minerais, e ento abrimos a nossa caderneta e vamos col-los, e ao 2 chamamos, por exemplo, ametista, e o 4 poder ser galena, e tu dars ao 1 o nome de opala, e ao 3 chamars azurite, e havemos de rir como ria a av Ldia.E no quadro o Pedro manda fazer uma mquina com duas sadas, e por uma sada voam os teros dos nmeros 4, 6, 8, 9, 12, I5, 18, e de repente da mquina salta o rouxinol da rvore da minha rua, ele, no pode ser outro, e com ele os rouxinis de rvores espalhadas por outras ruas, e cada um procura amigos perdidos nos jardins desconhecidos de todos os pases, e vo encontr-los estampados nos nossos cromos, e so os rouxinis que trocam com eles de lugar para que eles possam respirar um pouco de ar fresco - e a ave-do-paraso poisa na minha cabea e ri-se da mquina de duas sadas, e tu agarras nas mos o bico-de-tesoura e escreves no quadro:No ms de Novembro passei 300 horas a dormir, 105 horas a trabalhar, 60 horas a comer, e 255 horas em coisas que no me lembro.E toda a aula desata s gargalhadas, e o Pedro grita viva a matemtica!, e todas ns gritamos vivam as 255 horas!, e o barulho tanto que a av Elisa espreita porta e abana a cabea dizendo, se fosse no meu tempo..., e a tia Magda entra com um grande jarro de gua e vai salpicando todas as flores que enchem a sala, do tecto ao cho, lrios, tulipas, helicnias, accias, rododendros, no as deixem morrer sede!, diz ela, enquanto pergunta ao Pedro:- Por que razo no esto aqui estrelcias nem antrios? perfeitamente inadmissvel! Vou queixar-me ao Ministrio da Educao!E depois de ela sair da aula a Joana ps-se de p na cadeira e comeou a recitar:- Eu sou um nmero inteiro com quatro algarismos. Se me aumentassem uma unidade eu continuaria com quatro algarismos, mas se me diminussem duas unidades ficaria com trs algarismos. Quem sou eu?E todos ns fizemos uma roda em volta dela, gritando: s a Joana! s a Joana!, e o Pedro batia com a mo na mesa e escrevia cartas para os nossos pais dizendo tm de se aplicar mais na matemtica.E o Lus Miguel, para no ficar atrs das raparigas, recitou por sua vez:- Gastei cem escudos a comprar um monte de livros; se paguei com uma nota de quinhentos e me deram o troco em notas de vinte, quantas notas me deram?E ento eu gritei do fundo da sala:- Com cem escudos no podes ter comprado assim tantos livros, com certeza!...E a minha me fez-me sinal do lado de fora da janela:- No sei onde iremos parar, Mariana!E a Margarida bateu ao de leve na porta da aula para avisar que eram horas do almoo e concordou com as palavras da minha me, acrescentando, como sempre:- E a gente s sabe dar o valor quando nos toca a ns...Rita, Rita, vamos correr para o ptio, apanhar borboletas que nos cromos se chamam lisambras, catagramas e vanessas, mas tm mesma as cores do arco-ris dentro de si, deixar na sala os algarismos e os ngulos, e guardar em ns o sol desta manh de Maio.E corro atrs de uma castanha e dourada at tropear numa pedra do caminho e bater com a cabea no cho. E de sbito a pedra transforma-se num gigantesco nmero de trs algarismos que a pouco e pouco se vo definindo, at ficar 255, e o nmero-pedra grita para mim:- Que fizeste de ns no ms de Novembro?E eu no sei que responder, digo apenas: - Novembro j foi h tanto tempo...Mas o nmero-pedra insiste: - - No importa! Quero saber que fizeste de ns, em que foi que gastaste o nosso tempo? As nossas horas?E o 255 agarra-me pelos ombros, e sacode o meu corpo enquanto vou gritando:- No tenho medo de ningum! No tenho medo de ningum!E de repente tudo se mistura dentro dos meus olhos, Rita, Rita, onde ests?Quando a minha me me acordou, toda eu transpirava. Mas era decerto por causa do calor que fazia.Porque eu no tenho medo de ningum, nem de nada.Muito menos de um sonho.

Captulo 12

O marido da av Ldia chamava-se Joaquim, e segundo ela contava, tinha comeado a trabalhar aos cinco anos. Quando penso nisso at fico com a cabea um pouco tonta, pois por mais que faa no consigo entender o que trabalhar aos cinco anos. Cinco anos metade da minha idade - e que faria eu se me mandassem trabalhar?Mas o av Joaquim, que eu nunca cheguei a conhecer, tinha cinco anos e j ia com o pai dele para o campo. E no era com certeza para apanhar borboletas.- O teu av aprendeu muito cedo o valor das coisas e a sua verdadeira importncia. Mesmo depois quando deixou o campo e se empregou na loja, horas e horas atrs de um balco ou a carregar e descarregar fardos, a vida, nunca foi coisa fcil para ele. E olha que apesar disso nunca foi homem de zangas nem de maus tratos.E como ele adorava o teu pai! Ainda me lembro de o ver meter as poucas moedas que conseguia economizar dentro de uma caixa de fsforos. Depois, quando era dia de feira, pegava nela, dava-a ao teu pai e s dizia: encontrei ali esta caixita... No sei se tem alguma coisa l dentro, mas fica com ela... E o teu pai j sabia que ia l encontrar uns tostes para gastar na feira. S no sabia o que essas poucas moedas tinham custado a arranjar. E como cada uma delas fazia parte das poucas alegrias que o teu av tinha - e de que desistira: um mao de cigarros que no comprava, um copo que no bebia ao fim do dia com os amigos, eu sei l. Mas como os olhos dele se riam quando via o teu pai sair de casa todo feliz com a caixa de fsforos no bolso...Acho que a minha av Ldia aprendeu com o av Joaquim a estar sempre contente, e a esperar sempre o melhor das coisas, das pessoas, e dos animais.Porque a av Ldia tinha uma paixo por todos os bichos. No dia em que o meu pai comprou o peixe vermelho para o aqurio, ela passou horas seguidas a v-lo nadar de um lado para o outro. E foi ela que, de repente, descobriu:- Mas este peixe s tem um olho!Corremos todos ao aqurio. Era verdade. O peixinho vermelho, acabado de chegar a nossa casa, no tinha o olho direito. Nem sinal dele.- Para que quero eu um peixe zarolho c em casa? disse logo a minha me, que no gosta l muito de bichos.- Mas ele com um olho v to bem como com dois - disse o meu pai. - Olha como ele encontra logo a comida que a gente lhe deita...Lembro-me: o peixinho corria, feito doido, de um lado ao outro do aqurio mal a gua se enchia de pequeninas folhas rosadas que vinham dentro de um frasco que o pai comprara com ele. E era to engraado quando se virava do lado em que devia haver olho e no havia.. Nem nas minhas "maravilhas da Natureza" eu encontrava coisa que se parecesse com isso. E l conseguimos convencer a minha me a aceitar o Zarolho.E agora ele faz parte da casa. Parte da famlia. O meu pai at garante que ele o conhece quando, por volta das sete, mete a chave porta.- verdade que conhece os meus passos, a minha voz! At comea logo a nadar mais depressa. Pudera! J sabe que de mim que lhe vem a comida...No outro dia lembrei-me disto quando a minha me disse para a av Elisa:- A Rosa j me conhece to bem! Assim que eu entro no quarto fica logo em alvoroo...Foi ento que eu disse:- O Zarolho tambm fica assim quando o pai chega ao p dele... E s tem um olho... Que faria se tivesse os dois..- Mariana, mas que comparao! - disse logo a av Elisa.Francamente no entendo por que que ela ficou to escandalizada. No fundo a minha irm no assim to diferente do Zarolho... No fala, tambm tem de ser alimentada (e muitas vezes ao dia, enquanto ele fica satisfeito s com uma refeio), precisa que lhe mudem as fraldas assim como ele precisa que lhe mudem a gua... Acho que no foi assim nada do outro mundo aquilo que eu disse.E eu bem percebi que a minha me contou ao meu pai, e que eles se fartaram de rir. Mas eu nem tinha dito aquilo para ter graa. Aquilo era mesmo o que eu pensava. mesmo o que eu penso.Srio que .

Captulo 13

A tia Magda adoeceu e tivemos de ir todos l a casa v-la. Todos, menos a Rosa.- No se devem levar bebs a casa de pessoas doentes disse a minha me.E eu pensei que a minha irm estava cheia de sorte por ser to pequena e poder ficar em casa.Passmos antes por uma florista, onde a minha me comprou um ramo de estrelcias, o que decerto seria meio caminho andado para a cura da tia Magda.A casa da tia Magda cheia de sombras e tem um corredor que a gente nem v onde acaba. Alm disso tem uns reposteiros onde apetece jogar s escondidas, coisa de que nem me atrevo a falar ao p dela, pois penso que s a ideia a faria cair morta... Os mveis so escuros e altos, e as tbuas do cho rangem quando a gente passa, e os vidros da cristaleira at parece que tocam msica.Acho que h muitos anos que ningum abre aquela cristaleira, que ningum bebe por aqueles copos nem por aquelas chvenas. Deve estar tudo cheio de p, com certeza.A casa onde a tia Magda vive era da madrinha dela, que um dia a foi buscar aldeia e a trouxe para Lisboa.- Para criada! Para criada que ela a trouxe costumava dizer a av Ldia.Mas o meu pai no gostava de a ouvir.- No diga isso, me! Olhe que a senhora depois de morrer deixou-lhe a fortuna toda... Era porque gostava dela, com certeza!Mas a av Ldia sabia bem o que dizia.- Tu j no te lembras, filho... Tu sempre a conheceste assim... Mas eu bem sei o que vi quando uma vez vim a Lisboa, logo a seguir ao meu casamento, e a fui visitar... Ela hoje est rica, verdade, mas bem lhe saiu tudo do corpinho...A minha me diz que desde que a madrinha da tia Magda morreu, ela nunca mudou nada dos lugares. E por isso tambm que no usa a loia da cristaleira.- Isso loia muito cara - costuma ela dizer. - s para as visitas.Tudo em casa da tia Magda para as visitas.H uma sala sempre fechada - para as visitas.H um quarto onde nunca ningum dorme - para as visitas.H uma arca a meio do corredor imenso cheia de roupa que ela nunca usa - porque para as visitas.O mais engraado disto tudo que a tia Magda nunca tem visitas, embora passe a vida espera que elas Lhe batam porta.- Ficou-lhe essa ideia do tempo em que a madrinha era viva - diz sempre o meu pai. E acrescenta logo: - Essa e outras...Porque, segundo ouo dizer, a tia Magda igualzinha madrinha.- To criada dela a fez que a obrigou a pensar da mesma maneira, a dizer as mesmas palavras, a ter o mesmo feitio.. - costumava dizer a av Ldia, mas s quando o meu pai no estava ao p...Por isso hoje a tia Magda s fala com palavras complicadas. S gosta de estrelcias e antrios. E sabe sempre tudo o que as outras pessoas no sabem. E tem sempre razo. E nunca se engana. E em criana nunca mentiu nem fez disparates. E tem um dente de ouro. E s gosta dos nomes de famlia.- A minha me muito chorou quando ela veio para Lisboa! Mas ns ramos tantos irmos e era to pouco o dinheiro que entrava em casa que ela no conseguiu dizer que no - dizia a av Ldia tantas vezes.Depois ria, como s ela sabia rir, e rematava:- Ao menos assim andou sempre calada... Ao menos ela nunca teve de esperar pelos sapatos do Natal...Olho para a tia Magda, agora deitada na cama, e penso que deve ser muito triste uma pessoa sair de casa para ir viver noutra terra, longe da me e do pai e da gente de quem se gosta. Mas penso que tambm deve ser muito triste no ter sapatos, nem a comida que nos apetece, nem uma casa quentinha no Inverno. E ter de ir trabalhar aos cinco anos, como o av Joaquim.Acho que quando for crescida vou ser ministro ou presidente da Repblica para no deixar que estas coisas aconteam.

Captulo 14

No h nada pior que um domingo de chuva.Agora que a Rosa no tem febre e que os dentes parecem crescer em sossego, comeou a chover.A av Elisa diz que no tempo de chuva, mas que desde que os homens andam l por cima, isto anda tudo baralhado. O meu pai ri-se quando a ouve.- Se calhar eles andam l a mexer nas nuvens..- Ora, ora, l o que eles andam a fazer no sei, mas desde que comearam a ir Lua a gente nunca mais se entendeu com o tempo. Chove no Vero, faz calor no Inverno. Tambm ainda estou para saber o que deu na cabea das pessoas para irem Lua... Bem melhor seria que pusessem as coisas direitas na Terra antes de se meterem nestas aventuras.Que a av Elisa culpa as viagens Lua, os astronautas e os foguetes de tudo o que de mau acontece.E quando o meu pai lhe tenta explicar que a cincia e a tcnica tm sempre de avanar seno ainda hoje estvamos a andar de burro ou de canoa, ela encolhe os ombros e diz:- Olha, no meu tempo e no tempo dos meus avs no havia nada dessas coisas e a gente vivia.Uma vez foi engraado, eu conto j.Chovia assim como hoje e era Vero, Vero mesmo, com frias e sandlias e gelados. E a av Elisa tambm disse que a culpa era dos astronautas que andavam l em cima a misturar o tempo, e que dantes se vivia bem melhor sem estas manias do progresso. Foi mesmo assim que ela disse e a minha me no gostou mas calou-se. Depois noite, acho que por causa da chuva, houve uma avaria nos canos e s corria um fiozinho nas torneiras. A av comeou logo a barafustar, que no podia ser, e como que ela ia lavar a loua com gua fria, que assim a gordura nem saa, e por a fora...- No me diga que no tempo dos seus avs havia gua quente canalizada l em casa! - disse a minha me, que andava a remoer aquela das manias do "progresso"... E acrescentou logo:- E com certeza que viviam, no viviam?A av Elisa fez que no ouviu (ela tambm tem os seus truques...), mas deixou a loua toda a um cantinho da chamin para lavar no dia seguinte - quando o "progresso" j estivesse a funcionar como devia.Eu acho que a av Elisa s no gosta do progresso que ela no entende. Daquele progresso que ela acha que no serve para nada. Mas eu penso que tudo serve para alguma coisa, mesmo que a gente ao princpio no entenda bem para qu. At as estrelcias e os antrios devem servir para alguma coisa nem que seja para pr a tia Magda bem-disposta.Uma vez a minha me comprou uma garrafa muito pequenina, de vidro transparente, cheia de vidrinhos coloridos, e colocou-a numa prateleira do armrio da sala.- Para que serve isso, me?- Gostas?- Gosto muito.- Achas que bonito?- Muito.. Muito bonito...- Ento pronto, para isso que serve: para ser bonito. bom a gente ter coisas bonitas nossa volta. S que a minha me diz que as coisas agora esto to caras que a gente tem de usar o dinheiro para comprar coisas que sirvam sempre para alguma coisa mais do que serem bonitas... Hei-de perguntar av Elisa se a culpa das coisas estarem caras tambm dos astronautas...Olho pelos vidros da janela do meu quarto e continua a chover. Se a Rosa fosse mais crescida podamos estar agora as duas a conversar, ou a fazer jogos... Como as crianas crescem devagar!... E o pior que, por este andar e com esta velocidade de caracol cansado, quando a Rosa for crescida j no me serve para nada! Quando ela tiver dez anos se calhar j eu estou casada com algum rapaz muito bonito, loiro e de olhos azuis, chamado Rodrigo, que o nome de rapaz que eu gosto mais.Agora que ela devia estar crescida, como eu, para conversarmos as duas. Assim, metida l no bero, para que que ela me serve?Estava eu a comear a ler um livro novo que o meu pai me tinha comprado (olhando de vez em quando para a janela espera que a chuva parasse) quando ouvi a Rosa chorar. Que a minha irm assim: quando lhe d para encher os pulmes, vai-se o sossego da casa...Fui at junto do bero dela.- V, tome l a chucha e no chore mais, sua tontinha!E a Rosa comeou a rir, a rir, como nunca tinha rido.E eu dizia:- Tontinha! Tontinha!E cada vez ela ria mais, at parecia que se engasgava. Como ria a av Ldia quando contava histrias.E eu comecei a rir com ela.E era bom.E descobri que a Rosa j servia para alguma coisa. Como os vidrinhos coloridos dentro da garrafa da sala.

Captulo 15

As pessoas no entendiam muito bem e depois disso chamaram-lhe maluca e outras coisas assim. Nem eu entendi tambm, mida que ento era, ainda um pouco a pensar pela cabea e pelas palavras dos outros. Devo ter-lhe chamado maluca muitas vezes. E todas as outras coisas que lhe chamavam. E afinal vejo agora como tudo era to simples de entender. E como todos fomos to cruis.Mas a verdade que as pessoas no compreendiam e chegaram a pensar que a tia Emlia tinha perdido o juzo com o desgosto do marido. Talvez tivesse perdido de facto. Mas nunca me lembro de a ouvir falar noutro nome que no fosse o da Malhada.No entanto agora penso se no h animais que no fazem mais falta do que muitas pessoas. Do que tantas pessoas. No sei se te devia estar a contar isto a ti, que s to pequena. Dizem que h coisas de que s se deve falar aos adultos porque s eles so capazes de entender. No estou muito certa disso. s vezes penso que h coisas que s mesmo as crianas so capazes de entender e aceitar.Penso, por exemplo, que tu eras capaz de ter entendido a tia Emlia. E talvez no tivesses sido to cruel como ns fomos.A Malhada... Se tu a visses...No tinha estrela na testa como aquelas de que falam os livros de histrias. Mas nunca vi olhos to doces como aqueles. E ns estvamos to habituados a ela como tia Emlia. Fazia parte da casa, entendes? Era assim uma espcie de outro brao da tia Emlia, e sem ela a vida era impossvel. Mulher sem filhos, com o marido entrevado sempre ao canto da lareira, era da Malhada que aquela mulher vivia. Da Malhada que lhe dava o leite, a manteiga, o queijo, o requeijo, um vitelo por ano.s vezes amos dar com a tia Emlia sentada junto da Malhada, fazendo-lhe festas e chamando-lhe todos os nomes de ternura que um dia se inventaram para as mes chamarem aos filhos. J nessa altura se dizia que a tia Emlia no tinha o juzo todo. J nessa altura os rapazes corriam atrs dela gritando "velha tonta, velha tonta". Mas ela nem os ouvia: s tinha ouvidos e olhos e corao para a Malhada.Nunca cheguei a saber o nome do marido. Para todos ele era "o da tia Emlia", e duvido mesmo que algum soubesse ao certo como ele se chamava, ou que idade tinha. Se que ele tinha nome ou idade.Sentado ao canto da lareira no Inverno, ou porta de casa no Vero, nunca da sua boca sara som algum, uma ligeira baba sempre a pender-lhe pelo queixo.Contava a minha me que ele tinha ficado assim h muitos anos, depois de um tractor lhe ter esmagado as pernas. Sem mdicos nem dinheiro para os ir buscar cidade, nada lhe pde valer, e para ali foi ficando, ao canto da lareira ou entrada da porta.Porque mdicos era coisa que no havia na aldeia. E se precisssemos de um remdio tnhamos de ir busc-lo farmcia, a 40 quilmetros de l. E isto se houvesse dinheiro para o pagar, claro. Por isso morreu tanta criana que se podia ter salvo. Tu no podes imaginar bem como era, mas eu digo-te que eram tempos muito duros.Talvez que o marido da tia Emlia se tivesse podido salvar se estivesse na cidade e tivesse dinheiro para o mdico e para os tratamentos. Assim, para ali ficou, mais morto que vivo, olhando as pessoas sem dizer palavra, a baba sempre a cair-lhe pelo queixo. E quando era tempo de trovoada metia os braos roda da cabea e chorava, chorava, nunca a gente sabia porqu.Foi no dia em que ele morreu que a Malhada adoeceu. As pessoas da aldeia enchiam a casa da tia Emlia e todos procuravam consol-la da morte do marido. Ela tinha os olhos muito abertos e parecia no entender uma palavra do que lhe diziam, no entender sequer o que se tinha passado. De vez em quando desaparecia e amos dar com ela no estbulo, a fazer festas Malhada, que gemia e no conseguia pr-se de p, e eram ainda mais doces os nomes que lhe chamava.Mas ns no percebamos algumas coisas. Por isso rimos de a ver assim. Ela olhou para ns e disse apenas:- Se ela morre o que vai ser de mim?A gente ainda riu mais, e saiu c para fora a gritar- A tia Emlia est maluca! A tia Emlia est maluca!E as mulheres de preto vieram ter connosco e deram-nos razo. Disseram que tinha sido o desgosto que a tinha transtornado daquela maneira. Que s assim se entendia. Quiseram lev-la para dentro de casa, mas ela agarrou-se com fora ao estbulo e s repetia:- Se ela morre o que vai ser de mim? Se ela morre o que vai ser de mim?E de novo as palavras de ternura guardadas durante anos para os filhos que nunca chegara a ter.Conseguiram lev-la ao enterro do marido amparada por duas vizinhas. Mas logo descida do cemitrio para casa a sua preocupao voltava:- E se ela morre?No morreu.O ferrador l da aldeia fez-lhe um tratamento e depois de muitos dias a Malhada arribou. Mas a tia Emlia parecia ter envelhecido dez anos naqueles dias.As pessoas diziam ento:- A morte do marido que a ps neste estado. Foi um grande choque para ela.Porque as pessoas s vezes esquecem depressa. Mas ns, que ramos midos nessa altura, sabamos que no tinha sido assim que as coisas se tinham passado. Tnhamos rido, tnhamos-lhe chamado doida, como os outros, mas no fundo sabamos que no havia loucura nenhuma na cabea da tia Emlia.E que sem o leite, a manteiga, queijo, o requeijo e os vitelos que vendia, difceis seriam os dias que a tia Emlia ainda tinha para viver. Quem iria cuidar dela se a Malhada morresse? por isso que eu digo que a gente pode amar tanto as pessoas como os animais. Dever-lhes a vida, quantas vezes. E quantas vezes tambm somos injustos ou esquecidos. As mais das vezes por falta de tempo, eu sei.H que trabalhar, fazer pela vida, e fica pouco tempo para pensarmos nisso. E pena. Porque depois, quando temos tempo, j eles morreram, ou se perderam por esse mundo, e j no lhes podemos mostrar como os ammos, como a nossa vida teria sido diferente se os no tivssemos encontrado. Como teramos ficado mais pobres e vazios.Para a tia Emlia a Malhada era uma pessoa. Tenho a certeza. E embora ns no consegussemos ouvir nada, eu ia jurar que as duas conversavam longamente todos os dias.Isto contava muitas vezes a av Ldia.Acho que sou capaz de me lembrar de todas as palavras para um dia o contar Rosa. S que no lhe vou dizer que havia quem chamasse maluca tia Emlia.E tambm acho que no faz mal se eu disser que a Malhada tinha uma linda estrela na testa. Tal como acontece nos livros de histrias.

Captulo 16

Texto livre

L em casa todos os caminhos vo dar Rosa, que a minha irm que nasceu h trs meses. Nunca mais houve tempo para nada, h pessoas a visitarem-nos s horas mais incrveis, e at os objectos mudaram todos de lugar.A minha me passa o dia a fazer biberes e a lavar biberes, a mudar fraldas e a lavar fraldas, e eu fico a pensar como que ela pde Querer mais esta filha, se comigo com certeza j devia ter tido os mesmos trabalhos..A minha tia Magda anda sempre a dizer que mais um filho uma grande responsabilidade para a famlia, e a av Elisa no diz nada, mas eu, que a conheo bem, acho que ela deve culpar os astronautas e os foguetes pelo nascimento da Rosa.Olho para ela, sempre dentro da alcofa, e penso que j que ela veio a gente no pode ir deit-la a afogar, como eu sei que h quem faa aos pobres gatinhos recm-nascidos. Mas no compreendo muito bem por que que os meus pais tiveram tanta necessidade de ter outro filho, estando c eu que, no para me gabar, mas no sou m rapariga. Com a vantagem de j saber ler e escrever, de caminhar pelo meu p, de ter os dentes todos (a no ser os que me caram a semana passada), de poder conversar com eles, e de no precisar de biberes de cinco em cinco horas e de fraldas mudadas de cinco em cinco minutos. Mas enfim, eles l sabero. s vezes oio a minha av Elisa dizer que a Rosa nasceu por minha causa, para me fazer companhia porque - como ela afirma - filho nico d sempre asneira.Isto que eu no percebo o que quer dizer, mas como h muita coisa de que eu no gosto e que tambm dizem que para me fazer bem, pode ser que o nascimento da Rosa tenha sido mais uma. Assim como as vacinas que tenho de apanhar, e os remdios amargos, e a broca do dentista. Ao princpio, custa - mas sempre para nos fazer bem...De resto isto tambm um pouco o que eu penso em relao matemtica. A Chica, por exemplo, resolve todos os problemas sem qualquer dificuldade, mas h coisas que no entende. Como aquela dos cubos de gelo a entupirem a pia (o que eu e a Rita nos rimos...). Eu percebo que, se os cubos de gelo derretem num instante, nunca podero entupir pia nenhuma, mas tenho algumas dificuldades nos problemas da matemtica. Isto, como diz a av Elisa, cada qual como .... S que temos de fazer um esforo para melhorar naquilo em que no somos assim muito bons. Porque, tal como as vacinas, os remdios e as brocas (e quem sabe se tambm a Rosa...), tudo para nosso bem.Se eu no souber fazer problemas de matemtica, como que vou saber quantas carteiras de cromos posso comprar com o dinheiro que o meu pai me d?Se eu no souber matemtica, como que vou entender o preo das coisas e conversar com - a minha me e o meu pai quando eles se queixam da vida cara? (e para filha muda tm eles a Rosa...).Se eu no souber matemtica, como que posso contar o dinheiro que tenho economizado no mealheiro para comprar um gira-discos como o da Rita - e saber quanto ainda falta?Talvez que a Rosa venha a ser precisa para a minha vida como a matemtica, quem sabe. O que acho mau ela crescer to devagar. Mas a minha prima Isaura, que criou quatro irmos, afirma a ps juntos que a Rosa est muito crescida para a idade, de maneira que sou eu quem deve estar errada.Mas gostava que ela fosse j assim da minha idade e pudesse conversar comigo como a Rita. Comeo a pensar que no dia em que ela tiver a minha idade j eu tenho vinte anos, j estou decerto casada com o Rodrigo loiro e de olhos azuis, e que portanto j no devo sequer ter tempo para ser amiga dela. E at aos dez anos, palavra que no sei para que serve uma criana. Mas se h crianas a nascer todos os dias porque devem servir para alguma coisa. Quanto mais no seja para a gente gostar delas. Gostar s por gostar. Por isso acho que tempo de eu ir aprendendo a gostar da Rosa.E de matemtica.

Mariana (2.o ano - 2.a fase)

Captulo 17

Hoje desisti de ser locutora de televiso.At aqui era o que sonhava ser quando crescesse: aparecer todos os dias nos crans, muito cheia de caracis e sorrisos, a dizer todas aquelas notcias importantes s pessoas.Mas a partir de agora decidi ser cientista, ou astrnoma, ou fsica, e saber coisas que mais ningum sabe, e descobrir coisas em que ningum pensou ainda mas que devem andar por a, mesmo beirinha dos nossos olhos, espera de serem descobertas.Tudo por causa das histrias de pasmar que me contou um amigo do meu pai que esta tarde c veio ver a Rosa.Acho que eram as histrias mais surpreendentes do mundo, e ele ria do meu ar espantado e s dizia que tudo era verdade, que no estava a inventar nada, que um dia quando eu estudasse talvez ainda viesse a saber mais do que ele.O meu pai tambm ria e de vez em quando aproveitava para meter a sua piada...- Isso, isso... V se a convences com essas histrias que pode ser que ela se decida a pegar na matemtica a srio.Eu no respondi mas bem me apeteceu dizer que, se a matemtica da escola fosse assim to divertida, de certeza no havia melhor aluna do que eu.- Verdade, Mariana! Tudo isto verdade - garantia o amigo.E contava - que a estao do ano que sentimos c fora no a mesma que se sente por baixo da terra; que se for Inverno debaixo do cu, ainda Outono a trs metros de profundidade; que o momento mais quente do ano chega a trs metros de profundidade com um atraso de 76 dias, enquanto o mais frio leva 180 dias a l chegar.E ento a gente fez as contas e chegou concluso de que se o dia mais quente deste ano for, por exemplo, no dia 25 de Julho, a trs metros de profundidade esse calor s vai chegar no dia 9 de Outubro, e ento eu fiquei toda contente por ter sido capaz de fazer as contas de cabea e ter dito o resultado certo quase ao mesmo tempo que o meu pai, tambm muito divertido com a brincadeira.- Verdade, tudo verdade! - repetia o amigo.Que continuava a contar coisas espantosas.Que logo hei-de contar Rita, e depois a todos l da escola. Quem sabe mesmo se o Pedro no ir fazer cara to espantada como a que eu fiz. Pois eu bem sei que os professores no sabem sempre tudo, e isso no vergonha nenhuma, que eu bem oio a minha me repetir que a gente est sempre a aprender coisas novas durante a vida inteira. Menos a tia Magda, claro, que j deve saber tudo o que h para saber e mesmo aquilo que s ser descoberto daqui a muitos anos...Mas como o amigo no conhecia a tia Magda, foi sempre contando coisas de que eu nunca tinha ouvido falar, em dez anos que levo desta vida.- Aprende-se sempre muito, mesmo com coisas que nos parecem muito simples e sem mistrio - dizia ele. - claro que os mistrios acabam sempre por se explicar, mas s vezes preciso trabalhar anos e anos para isso. E digo-te: quando um dia as coisas aparecem, de repente, claras aos nossos olhos, assim como se tivssemos acabado de descobrir um mundo novo. Havia um fsico ingls do sculo passado que um dia escreveu: mesmo que uma pessoa dedique toda a sua vida a estudar uma bola de sabo, h-de sempre encontrar nela novos ensinamentos de fsica.- Ests a ver... uma simples bolinha de sabo, daquelas que tu, com certeza, muitas vezes deves ter feito e soprado janela... por isso que importante estar atento a tudo o que se passa nossa volta, no virar a cabea a nada, nunca pensar que h coisas que no tm importncia, que so insignificantes. Tudo importante para o equilbrio da nossa vida, tu hs-de aprender isso, Mariana.Fiquei a pensar em tudo o que ele contou e confesso que h coisas que ainda me fazem uma certa confuso.Talvez por isso mesmo tenha decidido hoje desistir da televiso e ser fsica. Tive um livro de histrias em que os fsicos andavam todos vestidos com fatos at aos ps e chapus de bico como se fossem fadas. Se calhar nessa altura as pessoas deviam pensar que eles tinham qualquer coisa de fadas, para saberem coisas to estranhas e misteriosas...Mas hoje os fsicos andam vestidos como toda a gente e ainda bem, que devia ser muito incmodo andar com aquilo na cabea o dia todo e com fatos a arrastar que nem as noivas que posam para a fotografia do casamento aqui num jardim ao p de minha casa.s vezes penso no que ser a Rosa quando crescer.E se quando ela for crescida haver profisses que no h hoje. Isto porque, segundo anda sempre a dizer a minha av Elisa, as coisas mudam de um dia para o outro. Se no meu tempo a gente alguma vez pensou em ver mulheres a guiar txis!Tambm se as coisas no mudassem, que graa tinha a vida?Se as coisas no mudassem, ainda hoje se davam reguadas em todas as escolas. Ainda hoje os midos iam para o campo trabalhar com cinco anos como o av Joaquim. Se calhar ainda o pai da prima Isaura estava preso.Se as coisas no mudassem, l tinha eu que andar de fato comprido e chapu de bico se quisesse ser fsica.

Captulo 18

A Rosa j no cabe na alcofa. Bate com a cabea e com os ps, e l comea o berreiro do costume. Por isso a me passou-a para a cama de grades que foi minha e j estava no quarto desde que a Rosa nasceu.Eu sei que alguns casacos que ela veste tambm foram meus, e acho graa pensar como cabia eu dentro deles, que Zica devem servir.. Mas a me est constantemente a dizer que a roupa deixa de lhe servir de um dia para o outro, e que sempre preciso estar a comprar coisas novas, e que por isso que to caro ter um filho. Isto para no falar das papas. E das latas de leite que enchem a despensa. E de todas as vezes que tem de ir ao mdico, mesmo que no esteja doente. claro que tambm a mim as roupas deixam de servir. Mas sempre aguentam um ano ou coisa assim. E a minha me l consegue pr bainhas abaixo, inventar bainhas onde elas no existem, alargar, tirar daqui para pr ali, e sobretudo dizer-me:- Tem pacincia, isto ainda tem que aguentar at ao fim do ano, que j no vale a pena comprar roupa antes do Inverno. Rosa que intil a gente pedir que tenha pacincia. Alm de no entender, ela cresce todos os dias enquanto eu, segundo li no sei onde, s creso uns trs centmetros por ano.Gostava mesmo de saber se a Rosa no entende aquilo que se lhe diz. No outro dia riu-se s porque lhe chamei tonta. Mas teria ela percebido, ou riu s por ter achado graa aos sons?Quando chego da escola vou muitas vezes para junto dela colar cromos ou fazer fichas de matemtica, e comeo a contar-lhe histrias. J lhe expliquei que sou irm dela, que sou muito mais velha, mulher quase. J lhe disse tambm que fui eu que para ela escolhi o nome e que se ela no gostar dele quando crescer porque tem mau gosto. Ela ouve (ouvir?) e l vai palrando ao mesmo tempo que brinca com as mos e os ps, os seus brinquedos preferidos..E vou-lhe assim contando as minhas histrias - que eu j li mais livros do que um professor, um rei ou um presidente da repblica.E de vez em quando, sempre que o sono no vem e estou na cama, farto-me de viajar por pases que no esto no mapa. J descobri tantos que possvel que um dia me faam tambm uma esttua como fizeram ao Infante D. Henrique. S espero que ningum se lembre de me pr na cabea um chapu como o dele.No primeiro pas que visitei, as pessoas nunca tinham pressa, nunca precisavam de correr para o autocarro, nem os meninos precisavam de engolir o leite a escaldar pela garganta abaixo para chegarem a tempo escola.Ningum andava aos encontres, sempre a repetir desculpe e com licena, e chegava-se sempre a horas a toda a parte. Os despertadores no gritavam de manh nas casas ainda adormecidas, acho at que ningum sabia o que era um despertador, e toda a gente acordava hora certa e sem resmungos. As ruas tinham rvores e flores e era bom andar a p, e a escola era mesmo perto das nossas casas e a gente caminhava de manh cedinho at l, e ainda tnhamos tempo para muita coisa antes de comearmos a trabalhar.Quando estive nesse pas tinha um co que andava sempre comigo, at para a escola ia, e estava quase a aprender a tabuada toda num dia em que acordei cedo de mais do sonho, e por isso que no teve tempo de passar para l da dos cinco. J tentei sonhar isso outra vez, para ver se ele conseguia aprender tudo at ao fim, mas ele fica sempre no meio. No sei se o defeito do meu sonho ou do co que dentro dele meti...E nesse pas tenho tambm um pssaro, que vem de manh poisar no meu ombro e nunca mais me larga, e s no canta to bem como o rouxinol da minha rua porque um pssaro inventado, e toda a gente sabe que no h pssaros que to bem cantem como os verdadeiros.Tambm j estive noutro pas onde queriam que eu fosse rainha. Ainda experimentei uns dias, mas tropeava sempre no manto real e a coroa andava sempre torta por mais que a endireitasse no espelho do meu quarto.Um dia tive uma grande zanga com o meu primeiro-ministro, que era l quem mais mandava no pas e no deixava que eu pusesse a Zica num trono ao lado do meu.- Mas, Majestade, no pode ser! No v que ela s tem um olho!Isto dizia ele, mas eu que no me convencia assim com tanta facilidade.- Primeiro-ministro: fique sabendo que a Princesa Zica v mais s com um olho do que muita gente com dois!Mas ele insistiu:- Mas, Majestade, no s isso! No v que ela j tem a serradura toda a sair pela cabea!- Primeiro-ministro: se calhar o senhor tambm tem serradura na cabea, s que ainda no se v!A eu sei que ele ficou muito ofendido e s no me mandou prender porque eu era rainha, e com as rainhas no se brinca. Mas tirou a espada que j vinha do tempo de D. Afonso Henriques ou do D. Carlos (isso agora que no estou bem certa) e gritou:- No pode ser, Majestade! No pode ser porque ela preta, e eu no quero que haja prncipes nem princesas pretas neste pas. Se fosse para encerar o cho do palcio (que, por acaso, bem precisado est...) ou para dar palha aos cavalos, ainda v que no v. Mas para se sentar num trono ao lado de Vossa Majestade, nunca!Ento achei que o primeiro-ministro estava completamente tontinho da cabea, pois s assim se compreendia que no gostasse da Zica por ela ser preta. Como se ser preto, amarelo, encarnado, branco ou cor-de-rosa tivesse alguma importncia na vida das pessoas.O meu conselheiro ainda me bichanou ao ouvido:- Mande j tirar-lhe o corao pelas costas!Que era o que ele tinha lido, dias antes, num livro de histria. Mas como eu era boa pessoa, no queria fazer barbaridades dessas, de maneira que respondi:- No! Isso tambm de mais! Acho que o melhor acordar aqui mesmo!E foi o que fiz.Peguei na Zica, despi o manto, atirei com a coroa para um qualquer canto do palcio, e passados cinco minutos estava j bem acordada, na cozinha, a beber o leite para ir para a escola.E nunca mais quis ser rainha de pas nenhum, por muito que continuem a insistir comigo.

Captulo 19

Este tempo maluco de ora faz sol ora faz chuva pe as pessoas diferentes c em casa, comeando pela Rosa, que de noite se farta de tossir e de chorar. Eu bem meto a cabea debaixo dos lenis, s vezes mesmo debaixo da almofada, mas no consigo deixar de ouvir. Levanta-se a me, levanta-se o pai, do-lhe o xarope que o mdico mandou, e depois ficam os dois para ali a olharem para ela sem saber que mais lhe ho-de fazer.A me pensa em tudo que poder causar aquele choro - fome, fralda molhada, que sei eu.. - mas nunca nada disso e a Rosa chora e tosse, tosse e chora, que os meus ouvidos j quase no aguentam e qualquer dia rebentam.A verdade que se eu tenho tosse, a me manda-me engolir uma enorme colher de xarope e comea logo a dizer:- Se no tivesses comido o gelado quando estavas a transpirar j no tossias.Ou ento:- So as vaidades de no quereres vestir casaco de manh quando vais para a escola.E no acorda de noite, nem se preocupa em saber se de noite a tosse continua ou no, nem vem para junto da minha cama olhar para mim como olha agora para a Rosa.Bem sei que sou crescida e que, como tantas vezes me diz a av Elisa, se queres ser crescida para umas coisas, tambm tens de ser crescida para outras. Mas s vezes parece-me que no sou assim tanto como a minha me e o meu pai devem pensar.Quando conto estas coisas Rita, ela diz sempre:- Deixa l os teus pais mais a tua irm e vamos mas colar os cromos na caderneta, que daqui a pouco acabamos por perder alguns e estes ltimos so muito difceis de encontrar.Como no quero dar parte de fraca, l pego no frasco de cola e comeo a pr aquilo tudo em ordem. Mas as coisas continuam a remoer-me c dentro da cabea e, se no fosse um grito da Rita, acabava por colar a foca da Gronelndia no lugar do jacar do Nilo...Se a culpa dos astronautas ou no, pouco me importa saber, mas a verdade que este tempo assim esquisito, com Vero onde dantes era Inverno, e Inverno onde dantes era Vero, transtorna a cabea. Gostava de saber se l por baixo, nesses tais trs metros de profundidade, tambm anda tudo como aqui por cima, e se to depressa l chega calor como frio. Quando o amigo do pai c voltar tenho de lhe perguntar tudo isso. claro que, em anos normais, nesta altura andava j tudo a pensar nas frias. Mas tal palavra ainda no se ouviu este ano. Parece que ningum pensa em tal coisa. A me diz que para o ms que vem tem de voltar a trabalhar, pois j gastou o tempo todo de frias que lhe do para tratar do beb. Aqui para ns, sempre gostava de saber quem que pode chamar frias a este tempo de trabalho que a minha me tem tido, com a Rosa a chorar e a tossir, os montes de fraldas para lavar e engomar, os biberes a preparar de cinco em cinco horas, e ainda o resto do servio da casa para fazer. verdade que a av Elisa vem dar uma ajuda todos os dias, mas eu bem vejo como anda a minha me, e se isto so frias, vou ali e j venho... Acho mesmo que a minha me quando voltar ao trabalho vai sentir um alvio enorme, quanto mais no seja por se ver livre disto durante umas horas. Se fosse comigo, era assim que eu sentia, mas a gente sabe l o que pensam estas pessoas crescidas, que s vezes me parecem saber tudo, outras vezes me parecem no saber nada de nada.O meu pai tambm no fala em frias e s diz que, por mais que estique o ordenado, cada vez o dinheiro menos e maiores os meses. Penso que vou ter de ficar em casa, nariz encostado aos vidros das janelas, olhando os avies que passam e pensar que sou eu que vou l dentro, e que em poucas horas estou a aterrar num pas desconhecido, igual queles onde vou em sonhos.A av Ldia contou-me um dia uma histria (entremeada com aquele seu riso que nunca mais ouvi a ningum desde que ela morreu) que sempre me pareceu aldrabice mas em que vou comeando a acreditar agora.Ela sempre afirmou que era verdade, que bem se lembrava de ter lido aquilo nos jornais.Era um anncio que dizia s isto:"Por 2$50 ensinamos-lhe a maneira mais barata de viajar. Responder para este jornal."As pessoas respondiam e mandavam os vinte e cinco tostes pedidos pelo homem que pusera o anncio. Ele gastava dez tostes num selo de carta - que era quanto custava um selo nessa altura - e respondia o mesmo a toda a gente:Lembre-se que a terra d muitas voltas e que, sem saber, voc percorre milhares de quilmetros por dia. Se gosta de vistas pitorescas, abra os vidros da sua janela e contemple o quadro esmagador do firmamento.O que a minha av ria ao contar isto! Contava tambm que o homem tinha acabado por ser preso e condenado a pagar uma multa, o que eu acho que foi uma grande injustia, pois sempre deu um bom conselho aos pobres que no podem ir de frias, como se calhar me vai acontecer este ano.Por aquilo que estou a ver, tambm no me vai restar outra soluo seno contemplar o quadro esmagador do firmamento...

Captulo 20

s vezes ponho-me a pensar no que aconteceria se, por exemplo, sasse uma lei qualquer a estabelecer que, a partir deste dia, as horas passavam a ter mais minutos, os dias mais horas, os meses mais dias, os anos mais meses, os sculos mais anos; e por a fora. Ou ento o que aconteceria se, de repente, a Terra parasse e deixasse de andar volta do Sol. Acho que era possvel que tudo fosse pelos ares, como num grande ciclone que eu vi uma vez no cinema. E quem tivesse dez anos, como eu, era j uma pessoa velhssima, cheia de horas e meses enormes, sem quase caberem no calendrio. Penso que os fsicos e os cientistas devem saber estas coisas todas e entender tudo o que se passa.Entender at por que faz sol no Inverno e chuva no Vero. Entender por que esto as pessoas to diferentes, que at a minha av Elisa costuma dizer que anda tudo cheio de electricidade... Entender mesmo por que no pra a Rosa de tossir e eu me sinto to infeliz com isto tudo.Isto tudo.Nem sei bem ao certo dizer o qu.Isto tudo.Dantes, h mais de um ano, quando a Rosa ainda no tinha nascido, as coisas eram bem melhores c em casa. Eu chegava da escola, a av Ldia arranjava-me sempre po com queijo, e para ali ficvamos as duas a rir, ela a contar-me pela milionsima vez a histria da Piriquinha e do Piriquinho, a quem uma madrasta malvada enganava e acabava por espetar um alfinete mesmo no cocuruto da cabea. E a voz dela repetia a cantilena:

Piriquinha vai para a mestraPiriquinho para a lioquele que chegar primeiroEu vou dar queijinho e po

A mim o que verdadeiramente me fazia aflio nesta histria era a Piriquinha ir aprender costura e o Piriquinho ir aprender a ler. Mais do que os terrveis alfinetes espetados pela cabea abaixo (a gente j sabia que a Piriquinha ia nascer outra vez no dia seguinte, com um enorme ramo de flores nos braos, por isso mais alfinete menos alfinete a desgraa no era grande), mais do que a malvada madrasta igual a todas que h nessas histrias, aborrecia-me aquela coisa de a rapariga ir passar o dia a fazer bainhas e remendos, e o rapaz ir para a escola aprender todas as coisas boas que na escola se aprendem, e brincar com os amigos, e jogar bola, e voltar para casa de mos nos bolsos, a assobiar...A av Ldia ria-se quando eu lhe dizia isto. Encolhia os ombros e s respondia:- Que que tu queres... As pessoas s vezes pensam que as mulheres foram feitas s para estarem em casa a tratar da roupa dos maridos e dos filhos, a fazer a comida, limpar o p e mais nada. E dantes, a por essas aldeias, ir escola era quase um luxo. Por isso ainda hoje h tanta gente sem saber ler. Gente que de pequenino teve de ir trabalhar sem tempo para outra escola.Eu comia o po com queijo que ela me dava e sabia que, ao fim do dia, a me e o pai chegavam do escritrio e tinham sempre tempo para conversarem comigo, e saberem como tinha corrido a escola e essas coisas todas. s vezes o pai at tinha tempo para ver comigo a caderneta dos cromos que nessa altura se chamava "Povos de Todo o Mundo".Hoje tudo est diferente.A me passa o dia todo em casa mas parece ter muito menos tempo para mim do que quando s a via de manh e noite. A av Ldia morreu, e a av Elisa j no a mesma coisa, e alm disso nenhuma pessoa pode substituir outra pessoa. J ningum fala s em mim, mas em mim e na Rosa. J no dizem "tu", dizem "vocs". De repente, sem dar por isso, deixei de ser eu para me tornar em ns, e isso ainda no entra bem na minha cabea.Dividir com a Rosa os objectos, o espao da casa, o tempo, as pessoas, coisa a que ainda no me habituei.Por isso fico contente por ela no conhecer a av Ldia, no ir ouvir as suas histrias, no ir comer po com queijo arranjado por suas mos. Assim eu nunca terei de dividir a av Ldia com ela. Por isso no quis que tivesse o seu nome. Para que a av me pertencesse s a mim. Tal como a Zica, com a pintura preta a cair da cara e a carapinha cheia de traa, mas ainda e sempre a boneca que enche o meu corao inteiro.Isto anda tudo to diferente...Isto anda tudo to diferente que chego a pensar se no ter a Terra subitamente deixado de andar volta do Sol sem ningum ainda ter dado por isso.

Captulo 21

Na janela em frente da janela do meu quarto, no prdio do lado de l da rua, a minha vizinha cose mquina. Atravs da sua varanda consigo ver tudo o que l se passa.De cada vez que olho para ela, vejo-a debruada na mquina, a pedalar, com montes de roupa ao seu lado. Quando vou para a cama ainda ela fica naquilo, sem tempo sequer para vir varanda, olhar c para fora, respirar.Nem sequer sei como ela se chama. Agora reparo que, nestes anos todos, ainda nem sequer a vi de p. Sempre sentada, sempre curvada naquela mquina. Olho para ela todos os dias e tenho a certeza de que ela nem d por mim, nem sabe que eu existo, que moro a poucos passos da sua casa, que talvez pudesse ser sua amiga, quem sabe se no teremos at o mesmo nome? Penso que se desse um grito da minha janela ela iria ouvi-lo l onde est, mesmo com o rudo da mquina de costura. Mas a verdade que eu nunca gritei por ela. Nem ela por mim.Acho estranho tudo isto.Como se explica que eu saiba tanta coisa dos romanos, e dos mouros, e no saiba nada da minha vizinha?!Como se explica que eu saiba quantas toneladas pesava a espada do D. Afonso Henriques e no saiba quanto pesa a mquina de costura da minha vizinha?!Como se explica que eu saiba como viveram as pessoas h milhares de anos e no saiba como vive a minha vizinha?!Como se explica que eu saiba que Isabel era o nome da mulher de D. Dinis e no saiba nem o nome da minha vizinha?!Olho s vezes para as janelas dos prdios da minha rua e fico a pensar que no sei nada de quem l vive, que no sei nada do que se passa ao p de mim, todos os dias. Parece-me que as janelas dos prdios so assim uma espcie de gavetas de um mvel muito grande de que se perdeu a chave.Dantes no devia ser assim, seno como saberamos tantas coisas de gente que viveu h milhares de anos?Quando fizemos uma visita de estudo a Conmbriga, o Pedro ensinou-nos muita coisa.Que at um qualquer bocadinho de loia nos pode dizer quando se construiu uma casa ou quando ela foi destruda, ou se teria sido edificada sobre outra, alguns anos mais antiga do que ela. E ns andvamos por aqueles caminhos e sabamos que por eles tambm j tinham andado lusitanos e romanos h mais de dois mil anos. E que naquele stio de que agora pouco restava tinha vivido gente como ns durante trezentos anos seguidos. E que para a defender dos inimigos se destruram monumentos, palcios e esttuas, e com essas pedras se construiu uma grande muralha de defesa, at que mais tarde foi possvel outra vez reconstruir a cidade.Mas, como nos explicou o Pedro, j na escola, nada voltou a ser como tinha sido. E muitos povos inimigos vieram ocupar a cidade. E de cada vez ela ia ficando mais pobre, at que as pessoas no tiveram outro remdio seno procurar outro stio para viver longe dali, e Conmbriga ficou a parecer-se cada vez mais com um deserto, onde a terra se amontoava e as silvas iam crescendo.amos atravessando aqueles estreitos caminhos e pensvamos como era possvel que ali mesmo tivesse havido lojas, e tendas, e gente a conversar e discutir preos, como hoje a minha me faz nas lojas onde entra. Como era possvel que por ali tivessem corrido crianas a jogar cabra-cega, e quem sabe se tambm a pensar como teria sido a vida antes delas...Daqui a dois mil anos as pessoas que ento viverem sabero alguma coisa de ns? Algum poder saber como viviam as pessoas da minha rua, saber as lojas que ela tem, e o stio exacto onde est o hospital, a tabacaria do Sr. Joo, o caf, a igreja, a farmcia, o supermercado, o lugar da fruta do Sr. Lopes, o quartel, o cinema, a livraria, a escola?Daqui a dois mil anos algum ir saber que a minha vizinha passou a vida inteira agarrada mquina de costura, sem tempo para vir varanda, para olhar c para fora, para respirar?Tenho de falar sobre tudo isto com a Rosa, assim que ela crescer, e depois com os meus filhos. E com os meus netos. E estes com os filhos e os netos que um dia tiverem. Para que ningum esquea nada. Para que daqui a dois mil anos as pessoas todas saibam que o Zarolho foi o peixe mais importante que nadou nas guas do meu bairro.

Captulo 22

Acordei de repente com a luz do relmpago a entrar pelos meus olhos dentro e o barulho da trovoada logo a seguir.A Rosa chorava e tossia.Levantei-me e corri para o quarto dos meus pais. Eu no quero com isto dizer que tenho medo das trovoadas - que eu no tenho medo de nada e ningum nos vai matar, como dizia a av Ldia. Mas nestas alturas d-me sempre vontade de ter gente ao p de mim, de no ficar sozinha. Os meus pais estavam acordados e tentavam acalmar a minha irm.- Nunca a vi assim - dizia a minha me, com ela ao colo. - Devem ser dores de ouvidos. E esta tosse que no pra, vai dar cabo dela!Naquele momento percebi que as dores de ouvidos e a tosse da Rosa eram a maior tempestade daquela casa, e que os meus pais quase nem davam pelo que se estava a passar para l do vidro das janelas. Ainda tentei conversar:- Esta trovoada...Mas logo me interromperam:- V l se tens medo das trovoadas! Vai mas para a cama para no te constipares, e alm disso amanh dia de escola e depois um sarilho para acordares.Corri a meter-me na cama, assim com uma espcie de n na garganta, que eu nem sabia se me apetecia chorar se me apetecia beber gua. Tal como naquela noite em que a Rosa nasceu e eu fui dormir para casa da