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Adriano Rodrigues de Souza José Ricardo Soares Pontes Maria Salete Bessa Jorge Experiências em Situação de Crise de Sujeitos em Sofrimento Psíquico: Análise de Narrativas

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Adriano Rodrigues de SouzaJosé Ricardo Soares PontesMaria Salete Bessa Jorge

Experiências em Situação de Crise de Sujeitos em Sofrimento Psíquico:

A n á l i s e d e N a r r a t i v a s

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

ReitoR

José Jackson Coelho Sampaio

Vice-ReitoR

Hidelbrando dos Santos Soares

editoRa da UeceErasmo Miessa Ruiz

conselho editoRial

Antônio Luciano PontesEduardo Diatahy Bezerra de Menezes

Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso Francisco Horácio da Silva Frota

Francisco Josênio Camelo ParenteGisafran Nazareno Mota Jucá

José Ferreira NunesLiduina Farias Almeida da Costa

Lucili Grangeiro CortezLuiz Cruz LimaManfredo RamosMarcelo Gurgel Carlos da SilvaMarcony Silva CunhaMaria do Socorro Ferreira OsterneMaria Salete Bessa JorgeSilvia Maria Nóbrega-Therrien

conselho consUltiVo

Antônio Torres Montenegro | UFPEEliane P. Zamith Brito | FGV

Homero Santiago | USPIeda Maria Alves | USP

Manuel Domingos Neto | UFF

Maria do Socorro Silva Aragão | UFCMaria Lírida Callou de Araújo e Mendonça | UNIFORPierre Salama | Universidade de Paris VIIIRomeu Gomes | FIOCRUZTúlio Batista Franco | UFF

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1a Edição

Fortaleza - CE

2018

Adriano Rodrigues de SouzaJosé Ricardo Soares PontesMaria Salete Bessa Jorge

Experiências em Situação de Crise de Sujeitos em Sofrimento Psíquico:

A n á l i s e d e N a r r a t i v a s

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S729e Souza, Adriano Rodrigues de Experiências em situação de crise de sujeitos em sofrimento psíquico: análise de narrativas [recurso eletrônico] / Adriano Rodrigues de Souza, José Ricardo Soares Pontes, Maria Salete Bessa Jorge. - Fortaleza : EdUECE, 2018. Livro eletrônico. 219 p. : il. ISBN: 978-85-7826-717-9 (E-book) 1. Saúde mental. 2. Sofrimento psíquico. 3. Doenças mentais. I. Pontes, José Ricardo Soares Pontes. II. Jorge, Maria Salete Bessa. III. Título.

CDD: 616.89

EXPERIÊNCIAS EM SITUAÇÃO DE CRISE DE SUJEITOS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO: ANÁLISE DE NARRATIVAS

© 2018 Copyright by Adriano Rodrigues de Souza, José Ricardo Soares Pontes e Maria Salete Bessa Jorge

Impresso no Brasil / Printed in BrazilEfetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECEAv. Dr. Silas Munguba, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria – Fortaleza – Ceará

CEP: 60714-903 – Tel: (085) 3101-9893www.uece.br/eduece – E-mail: [email protected]

Editora filiada à

Coordenação EditorialErasmo Miessa Ruiz

Diagramação e CapaNarcelio Lopes

Revisão de Texto

Ficha CatalográficaLúcia Oliveira CRB - 3/304

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PREFÁCIO

O que dizer se o trabalho sustenta uma crise?

Em cinco prefácios para cinco livros não escritos, Frie-drich Nietzsche já nos dava a pista de que não se pode pre-tender fazer um pré-texto de um bom texto! Mas como não reagir quando se trata de questão tão “crítica” que os compa-nheiros e companheiras do Ceará, que lutam cotidianamente por uma ciência e uma sociedade menos desigual, e traba-lham para que o mundo seja mais digno e justo, me fazem ler e dizer o que penso de um trabalho tão oportuno quanto corajoso?

O nordestino é antes de tudo um forte! E é essa força que Adriano Rodrigues de Souza, José Ricardo Pontes e Maria Salete Bessa Jorge nos trazem, ao falar com intensidade de experiências vividas, as quais se universalizam para o mun-do quando se trata do sofrimento vivido durante as “crises” psíquicas, transcrito no rigor de um trabalho acadêmico bem construído, que pode expressar um problema que extrapola territórios, cidades, estados, nações.

Qual seja, a crise psíquica dos que sofrem com seus transtornos mentais, e que pode acontecer em qualquer lugar, com qualquer pessoa, com qualquer família… em qualquer solidão!

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Trazer “o desejo de dar voz aos sujeitos em sofrimen-to mental”, de início com o sentido de produzir uma tese de doutoramento de um de seus autores, e que cresce com a solidária companhia dos demais que assinam o livro, trazem nesse trabalho a alquimia de juntar narrativas singulares de sujeitos em sofrimento, com uma descrição de processos de trabalho nos episódios de intervenção examinados numa rede de cuidados, numa região do Nordeste do Brasil.

Uma equação complexa, do que deve importar na in-tervenção à “crise”, está presente para os que se importam com o cuidado à enfermidade mental em todas as suas nuan-ces, particularmente as mais graves. Para isso ouviram cui-dadosamente usuários em crise, seus familiares, profissionais, discutindo com intensidade o que iam vendo com diferentes autores, numa bibliografia impecável!

Ao desvelar a rede estruturada de saúde mental de For-taleza, a partir das narrativas de seus usuários, permitindo identificar graves nós-críticos, oportunizando o direito à voz de pessoas habitualmente desassistidas nas suas necessidades, e que, sem escuta, não têm como fazer valer seus direitos, o livro nos vai revelando um mundo habitualmente evitado e ocultado, por incomodar muito!

O sofrimento cotidiano de familiares e pessoas em so-frimento, vivendo em situação de crise psíquica, é trazido de modo profundo e transparente, revelando dificuldades sen-tidas na pele e na alma dos que estão desamparados… à sua sorte… quando mais precisariam de ter o urgente cuidado pressuposto na nossa Carta Magna: “saúde como um direito de todos e um dever do estado” (C.F.1988).

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“Que esperanças trazem familiares e sujeitos em crise para resolver seus problemas e seguirem vivendo suas vidas”? Os autores discutem o modelo de Saúde Mental Comunitá-ria, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como “o modelo”. Conceitos e questões como saúde mental e direi-tos humanos, doença mental e estigma são aqui desen volvi-dos com competência.

No que se refere ao planejamento e avaliação de serviços, estamos testemunhando um momento mais que propício para uma (re)organização dos cuidados de saúde mental e do apoio social para o enfrentamento das crises psíquicas, numa pers-pectiva da reabilitação psicossocial, tendo a desinstitucionali-zação como objetivo sempre presente, desde a situação crítica mais dramática para os sujeitos em sofrimento que se configu-ra como “crise”, até o pós-crise, quando uma rede complexa de ações há que ser acessada para que o abandono e a recaí-da não sejam o horizonte pré-definido. Inclui-se aqui, como nos induz os autores, ter em mente a não institucionalização e buscar na mobilização de res postas comunitárias de cuida-do humanizado e suporte psicossocial, não necessariamente de serviços e estruturas, mas em todos os níveis de atenção intersetorial, da crise à superação das sequelas, a atenção às necessidades sentidas para a garantia de uma sobrevida digna.

A existência de canais de comunicação e infor mação en-tre a ciência e a investigação de um lado, e, pesquisadores, decisores políticos, profissionais, com seus interesses específi-cos, suas formações, do outro lado, se faz necessária, para que sejam tomadas as decisões mais adequadas e efetua das as me-lhores abordagens na prática do dia-a-dia, para atingir desejos

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e necessidades dos que precisam e aguardam respostas efica-zes, me despertaram o interesse em saber no texto instigante.

As questões relacionadas com a saúde e a doença mental são complexas porque afetam as pessoas como um todo, na sua individualidade, e, na sua relação com os outros e o meio envolvente. Por isso é necessário nos debruçarmos sobre os conceitos de saúde e doença mental e sobre os mitos que estão associados a esta doença, herança que recebemos de muitos séculos de marginalização e estigma, que lamentavelmente ainda está fortemente enraizada na nossa cultura. Isso está realçado neste trabalho, acenando com novas alternativas de enfrentamento e superação.

Lutar coletivamente contra a estigmatização e a desi-gualdade de oportunidades, e corresponsabilizar e apoiar as pessoas com transtornos mentais e suas famílias, de forma que possam recuperar ativamente suas vidas e suas histórias, é a grande esperança que os autores, militantes acadêmicos e históricos da reforma psiquiátrica brasileira, mas, sobretudo batalhadores pela dignidade humana, acima de quaisquer di-ferenças, nos instigam a ler nessas entrelinhas!

Que esse bem-vindo trabalho possa iluminar o cenário brasileiro sombrio com que estamos sendo obrigados a convi-ver, de refluxo do movimento pela reforma psiquiátrica bra-sileira, e que a cegueira e paralisia que estamos acometidos, nesse momento de profundos retrocessos na política de saúde mental, possam merecer, com essa leitura, novos olhares e no-vos destinos para a Saúde Mental.

Ana PittaAbril, Outono de 2016

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Sumário1 INTRODUÇÃO .................................................................11

2 ESTADO DA ARTE ............................................................142.1 O manicômio: lugar de “saber-poder” do sofrimento psíquico ..142.2 Os novos espaços de cuidado em saúde mental .....................232.3 O contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira: uma revisita ..312.4 O sujeito de sofrimento psíquico em situação de crise: definições conceituais .................................................................................372.5 O sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise na rede de atenção de saúde mental de Fortaleza. ...................................41

3 MÉTODO ..........................................................................583.1 Marco-conceitual: O pensamento da hermenêutica de Paul Ricoeur ..583.2 Trajetória da pesquisa e procedimentos ................................603.2.1 Cenários da pesquisa ..........................................................603.2.2 Sujeitos investigados ...........................................................643.2.3 Técnicas e questões norteadoras para busca das narrativas .....663.2.4 Análise e interpretação das experiências ...............................703.2.5 Narrativas e produção textual .............................................723.2.5.1 A história de Geia ...........................................................723.2.5.1.1 Contexto e caracterização ...........................................723.2.5.1.2 A narrativa .................................................................743.5.2.2 A história de Íris ............................................................903.5.2.2.1 Contexto e caracterização ...........................................903.5.2.2.2 A Narrativa .................................................................923.5.2.3 A história de Orfeu .......................................................1013.5.2.3.1 Contexto e caracterização .........................................1013.5.2.3.2 A narrativa ..............................................................1023.5.2.4 A história de Héstia .....................................................1063.5.2.4.1 Contexto e caracterização .........................................1063.5.2.4.2 A narrativa ..............................................................1073.5.2.5 A história de Afrodite ....................................................111

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3.5.2.5.1 Contexto e caracterização ..........................................1113.5.2.5.2 A narrativa ...............................................................1123.5.2.6 A história de Hera .........................................................1153.5.6.2.1 Contexto e caracterização ..........................................1153.5.2.6.2 A narrativa ...............................................................1163.5.2.7 A história de Atena ........................................................1243.5.2.7.1 Contexto e caracterização ..........................................1243.5.2.7.2 A narrativa ...............................................................1253.2.6 Questões éticas ................................................................132

4. O FENÔMENO (DES)VELADO DAS NARRATIVAS ....1334.1 Explicação causal do sofrimento mental a partir da visão dos sujeitos do estudo. ....................................................................1334.2 Do reconhecimento da crise a busca por apoio terapêutico e seus descaminhos. ............................................................................1434.3 A rede de atenção em saúde mental como recurso de apoio buscado pelos sujeitos. ..............................................................1544.3.1 SAMU ............................................................................1544.3.2 Polícia e bombeiros..........................................................1594.3.3 Hospital Mental de Messejana .........................................1604.3.4 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ...........................1614.4 O Cuidado e suas dimensões: perspectiva da família e da rede ..1634.5 O porvir na visão do familiar e do sujeito em crise .............174

5 COMPREENSÃO DAS HISTÓRIAS DOS SUJEITOS DO ESTUDO: REFLEXÕES ......................................................181

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................198

REFERÊNCIAS ...................................................................203

LISTA DE ILUSTRAÇÕES, QUADRO E TABELA .............216

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1 INTRODUÇÃO

Ao iniciar a escrita desta tese de doutorado, agora trans-formada em livro, trago o desejo de dar voz aos sujeitos em sofrimento mental. Muitos estudos já foram realizados abor-dando a doença mental, a saúde mental e principalmente a reforma psiquiátrica brasileira, no entanto, estudos direcio-nados aos sujeitos em sofrimento psíquico e seus familiares ainda são escassos.

Nos últimos anos, houve diversas transformações no campo da saúde mental brasileira, em que o processo de desospitalização e ressocialização do sujeito em sofrimento psíquico tem se estabelecido como forma transformadora do cuidado. Todavia, um país continental como o Brasil apresen-ta diversidades na estruturação de novas formas de assistência, causando desigualdade na implantação de um novo modelo de gestão da assistência, fato visivelmente percebido na refor-ma psiquiátrica brasileira.

É fácil encontrar essa divergência administrativa, prin-cipalmente, nas grandes metrópoles e isso tem tensionado o sistema de assistência ao sujeito psíquico, com o fechamento, às vezes prematuro, de estabelecimento de assistência, sem a prévia estruturação de um serviço substitutivo. Este fato tem levado as redes de assistência, como a de Fortaleza, a viven-ciarem situações-limite com os sujeitos em situação de crise e com o dilema de qual destino dar a este usuário, pois, o mu-nicípio não dispõe de leitos de observação em hospitais gerais,

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tendo apenas como retaguarda a emergência tradicional de um único hospital psiquiátrico.

A constante vivência com essa situação-limite fez emer-gir alguns questionamentos: como o sujeito em sofrimento psíquico vivencia as situações de crise no cotidiano dos es-paços assistenciais da rede de saúde mental? Como ocorre o cuidado diante da situação de crise psíquica? Qual o fluxo de atendimento dos sujeitos em situação de crise psíquica na rede de atenção em saúde mental de Fortaleza? Quais as fa-cilidades/dificuldades encontradas pelos sujeitos e familiares diante das situações de crise psíquicas?

Como forma de responder a todos estes questionamen-tos, objetivamos compreender as experiências vivenciadas por sujeitos em sofrimento mental e a de seus familiares, na busca por assistência na rede de atenção em saúde mental de For-taleza, quando em situações de crise. E mais especificamente, identificar o itinerário de sujeito e familiares durante a aten-ção às situações de crise psíquica, bem como descrever como acontece a assistência ao sujeito em sofrimento psíquico du-rante as situações de crise no município de Fortaleza.

Desta forma, este livro tem como escopo desvelar a rede estruturada de saúde mental de Fortaleza a partir das narra-tivas de seus usuários, permitindo identificar graves nós-crí-ticos, principalmente, na assistência às situações de crise. A relevância deste estudo centra--se, primordialmente, na possi-bilidade de fornecer espaço de reflexão crítica sobre a atenção em saúde mental para sujeitos em situação de crise no Sistema Único de Saúde (SUS) de Fortaleza, além de oportunizar o direito de expressão a um grupo de pessoas marginalizadas e desassistidas em suas necessidades de atenção à saúde.

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Pretendemos, a partir de seus relatos, propiciar o rompi-mento do silêncio sobre essa situação existencial de sofrimen-to dos sujeitos e suas famílias, oferecendo subsídios que o re-direcionem as políticas de saúde mental no enfrentamento da questão, além de denunciar a relevância social do problema.

Neste desvelar, o leitor se deparará, inicialmente, com um resgate histórico de todo o contexto do cuidado em saúde mental, desde seus primórdios aos dias atuais, perpassando pelos acontecimentos marcantes no mundo, no Brasil, no Ceará e principalmente, em Fortaleza.

O percurso metodológico nos apresenta, além nos pas-sos seguidos na estruturação da pesquisa, os relatos marcantes dos entrevistados, com uma riqueza de detalhes, o que pos-sibilitará o leitor a adentrar o sofrimento diário de familiares e sujeitos em sofrimento psíquico, permitindo uma reflexão profunda na situação de cuidado prestado pela rede de saúde mental de Fortaleza.

O corpo do livro inicia com o conflito causal de saúde/doença a partir da visão dos protagonistas do estudo, seguido pelo itinerário terapêutico percorrido por sujeito e familiares na busca pelo atendimento terapêutico na rede de saúde men-tal de Fortaleza, o que nos levará ao cuidado e suas dimensões na perspectiva da família e, por fim, o porvir. Que esperan-ças trazem familiares e sujeitos em resolver seus problemas de crise, fechando com uma reflexão compreensiva das histórias destes sujeitos.

Espera-se que este novo texto posto à disposição da sociedade, da academia e da gestão municipal seja fonte de transformação da organização assistencial prestada hoje aos sujeitos em sofrimento psíquico.

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2 ESTADO DA ARTE

2.1 O manicômio: lugar de “saber-poder” do sofrimento psíquico

A concepção de sofrimento psíquico vem sendo encara-da de diversas formas ao longo da história, sempre acompa-nhada por padrões culturais, sociais e político de cada época. Historicamente, a doença mental tem se apresentado como um fenômeno social que teve como modelo de atenção “na idade clássica” o internamento, cujas estruturas hospitalares foram reformadas, adaptadas e construídas com objetivo de recolher, alojar, alimentar os que para lá eram enviados (FOUCAULT, 2009).

Estes locais estabelecem-se como um poder semijurídi-co, estabelecido pelo rei entre a polícia e a justiça, permitindo decidir, julgar e executar punições, tratamento e internamen-tos contra qualquer indivíduo considerado sem-razão. Por séculos, a estrutura para o tratamento da loucura centrava-se em instituições hospitalares conhecidas como manicômios (FOUCAULT, 2009).

Etimologicamente, manicômio é um lugar de “cuidar de loucos” ou “casa de loucos” (BARRIENTOS, 1999). O manicômio era entendido como um espaço de observação sistemática que permitia descrever e classificar as alterações apresentadas pelo louco. O primeiro exemplo de adequação manicomial foi visto em 1656, no Hospital Geral de Paris, que passou por reformas e reorganização administrativa para

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receber os loucos (FOUCAULT, 2009). Enquanto isso, a Ale-manha criou e expandiu por seu território as casas de correção (FOUCAULT, 2009).

O constituir desses espaços instituiu a Grande Interna-ção, em que se encarceram indivíduos marginalizados, perver-tidos, miseráveis, delinquentes e, entre estes, os loucos em cri-se (FOUCAULT, 2009; AMARANTE, 2010). Vários espaços de cuidado se organizam nesse período, recebendo diversos termos como: madhouse, ou casa de loucos e asylum, encontra-dos em texto em inglês; em obras italianas, os termos utiliza-dos são asilo e hospício. “O manicômio seria a instituição que se caracterizaria por acolher os doentes mentais e dar-lhes o tratamento sistemático esperado” (PESSOTI, 1996, p. 152).

A instituição desses espaços de coação tiveram como de-limitantes as situações de crise que se apresentavam nas for-mas mais variadas possíveis, como: violências do furor, culpa-bilidade, isolamento social, deterioração do funcionamento social, comportamento estranho, deterioração do trato pes-soal e higiene, embotamento afetivo ou afeto inapropriado, alteração do discurso, crenças e pensamentos mágicos, per-cepção incomum das experiências e falta de iniciativa, interes-se ou energia (CARVALHO; COSTA 2008). A permanente necessidade de conter e imobilizar a doença mental estabelece o manicômio como estrutura de força, espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes constituídos, decide, julga e executa a contenção e o isolamento do sujeito em furor (FOUCAULT, 2009).

Pessotti (1996), em sua análise sobre a loucura e as formas de concebê-la ou tratá--la em diferentes épocas, considera que o século XIX merece o título de “século dos manicômios”, pois:

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Em nenhum outro século o número de hospi-tais destinados a alienados foi tão grande; em nenhum outro a terapêutica da loucura foi tão vinculada à internação; em nenhum outro sécu-lo o número de internações atingiu proporções tão grandes das populações. Mais ainda, em nenhum outro século a variedade de diagnós-ticos de loucura, para justificar a internação, foi tão ampla. Como decorrência, a atenção dada à loucura e ao manicômio, nos ambientes culturais e médicos, jamais foi tão grande e tão difusa. E a medicina da loucura, em conseqüên-cia, nunca floresceu tanto antes do século pas-sado [séc. XIX] seja como etiologia, seja como semiologia ou terapêutica. O manicômio foi o núcleo gerador da psiquiatria como especialida-de médica (PESSOTI, 1996, p. 9).

É nesse espaço segregador que, durante o século XIX, Pinel encontrara os loucos e lá os deixara, mas, sem antes, se vangloriar por “libertá-los” (FOUCAULT, 2009). A libertação acontece com a retirada das correntes dos alienados de Paris, fato que se constituiu em um grande progresso no tratamento do louco. Pois, a mera liberdade de movimentar-se e de loco-mover-se os restituía à condição humana (PESSOTI, 1996).

Ao analisar a obra de Pinel em seu Tratado, datado de 1809, considerado fundador da psiquiatria médica moderna, Pessotti (1996, p. 69) destaca que o papel fundamental do manicômio é

Sustentar a origem passional ou moral da alie-nação e propor que a essência dela e o desarran-jo de funções mentais destoavam gritantemente da atitude vigente até o final do século XVIII. [...] Com Pinel, o manicômio se torna parte es-

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sencial do tratamento, não será mais apenas o asilo onde se enclausura ou se abriga o louco, será um “instrumento de cura”, conforme o de-finiu Esquirol.

Assim, estabelece-se a função curiosa do manicômio do século XVIII: lugar de diagnóstico e classificação, retângulo botânico, cujas espécies de doenças são divididas em compar-timentos cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas, tam-bém, espaço fechado para um confronto, lugar de uma dispu-ta, campo institucional onde se trata de vitória e de submissão.

Foucault (2009), na Microfísica do Poder, em estudo clássico sobre o tema, afirma que a internação é uma criação institucional própria do século XVIII.

...Antes do século XVIII, a loucura não era sis-tematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no começo da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quime-ras do mundo; podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas extre-mas ou perigosas. Nestas condições compreen-de-se a impossibilidade do espaço artificial do hospital em ser um lugar privilegiado, onde a loucura podia e devia explodir na sua verdade. Os lugares reconhecidos como terapêuticos eram primeiramente a natureza, pois que era a forma visível da verdade; tinha nela mesma o poder de dissipar o erro, de fazer sumir as qui-meras. As prescrições dadas pelos médicos eram de preferência a viagem, o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da cidade. Esquirol ainda considerou isto quando

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ao fazer os planos de um hospital psiquiátrico. Recomendava que cada cela fosse aberta para a vista de um jardim. Outro lugar terapêutico usual era o teatro. Natureza invertida. Apresen-tava-se ao doente a comédia de sua própria lou-cura colocando-a em cena. Emprestando-lhe um instante de realidade fictícia. Fazendo de conta que era verdadeira por meio de cenários e fantasias, mas de forma que, caindo nesta ci-lada, o engano acabasse por estourar diante dos próprios olhos daquele que era sua vítima. Esta técnica por sua vez também não tinha desapa-recido completamente no século XIX. Esquirol, por exemplo, recomendava que se inventassem processos aos melancólicos, para que sua ener-gia e seu gosto pelo combate fossem estimula-dos (FOUCAULT, 2009, p. 120-121).

A prática do internamento no começo do século XIX coincidiu com o momento em que a loucura era percebida menos com relação ao erro do que com relação à conduta regular e normal. Momento em que aparece não mais como julgamento perturbado, mas como desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser li-vre. Enfim, em vez de se inscrever no eixo verdade-erro-cons-ciência, se inscreve no eixo paixão-vontade-liberdade.

Qual poderia ser então o papel do asilo nesse movimento de volta às condutas regulares? Certamente, ele teria de iní-cio a função que se confiava aos hospitais no fim do século XVIII. Permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, possa mascará-la, confundi-la, dar-lhe formas aberrantes, alimentá-la e também estimulá-la. Mais que um lugar de desvelamento, o hospital,

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cujo modelo foi dado por Esquirol, é um lugar de confron-to. A loucura, vontade perturbada, paixão pervertida, deveria encontrar uma vontade reta e paixões ortodoxas. Este afron-tamento, este choque inevitável e, a bem dizer, desejável, pro-duzirá dois efeitos: a vontade doente, que podia muito bem permanecer inatingível, pois não é expressa em nenhum delí-rio, revelará abertamente seu mal pela resistência que opõe à vontade reta do médico; e, por outro lado, a luta que a partir daí se instala, se for bem levada, deverá conduzir a vontade reta à vitória, e a vontade perturbada à submissão e à renúncia.

Técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX - isolamento, interrogatório particular ou público, tra-tamentos-punições como a ducha, pregações morais, encora-jamentos ou repreensões, disciplina rigorosa, trabalho obri-gatório, recompensa, relações preferenciais entre o médico e alguns de seus doentes, relações de vassalagem, de posse, de domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico - tudo tinha por função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”, aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, acalma e a absorve depois de tê-la sabiamente desencadeado.

Soma-se a isso o pensamento de periculosidade do louco que estabelece a necessidade de isolamento (internamento), tornando-se fundamental a criação e manutenção de mani-cômios, em que se utiliza o poder absoluto para fechar nestas casas habitantes sãos, como fez Simão Bacamarte, no alienis-ta, qualquer sinal de desrazão, violência, furor ou insanida-de mental fazia-se necessário o cerceamento (FOUCAULT, 2009; ASSIS, 2007).

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Pinel vai estabelecer ações que modificam a forma de tra-tamento disponibilizado aos loucos, de regra, este tratamento ficava a cargo de pessoas sem formação médica e religiosa. Tra-tamentos alheios ao saber médico e que se agravam quando se tratava de sujeitos perigosos (PESSOTI, 1996). Isso antecipou e expandiu a necessidade de reformar a instituição manico-mial e instituir atividades que exercessem funções básicas de observação sistemática do comportamento de sujeitos, bem como a de assegurar experiências reais que corrigissem peda-gogicamente os vícios de razão desviada (PESSOTI, 1996).

Para essas funções se instituírem, Esquirol, o primeiro e mais destacado discípulo de Pinel, constituiu um novo pro-cesso de trabalho em manicômios, organizando estatistica-mente as enfermidades mentais da época. Lentamente, esta organização gerou as primeiras formas de tratamentos tera-pêuticos (PESSOTI, 1996; BASTOS, 2009).

Nesse período, Emil Kraepelin, ainda, era estudante e nem imaginava que teria seu nome ligado ao movimento da psiquiatria. Kraepelin classificou e documentou os primeiros diagnósticos da loucura para o século XX. Finalizou sua obra com a criação de uma sistemática nosológica e distinguiu as alienações endógenas das exógenas, o que permitiria conside-rá-lo o ‘pai da psiquiatria moderna’ (AMARANTE, 1996). Como professor, sua primeira lição era que “todo alienado constituísse de algum modo um perigo para seus próximos, porém em especial para si mesmo” (OLIVEIRA, 2009, p. 31).

A contemporaneidade da psiquiatria foi marcada pelo destaque de diversos autores organicistas, que ampliaram os conhecimentos das doenças mentais em uma perspectiva psicológica, destacam-se: Freud (1856-1939), Pavlov (1849-

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1936), Kurt Lewin (1890-1947) (PESSOTI, 1996). Destes, Freud tornou-se genial, criando a psicanálise.

As escolas médicas contestaram a descoberta de Freud. Como admitir a existência de algo independente e mais po-deroso que a consciência (inconsciente)? Este algo indepen-dente e mais poderoso revelou a parte animal do ser humano, fazendo o sujeito ser movido por forças que desconheciam o verdadeiro sentido de experiências que estavam em um lugar cuja consciência não poderia chegar (BEZERRA, 1989).

A destituição do sujeito de sua razão, realizada por Freud, permite-o a tornar-se parte de seu processo terapêutico. Freud inclui o sujeito no processo de descoberta de seus desejos, a partir da cadeia discursiva seria possível promover o deci-framento do saber inconsciente (RIBEIRO, 2006). Livrar-se das amarras do consciente fez com que o sujeito produzisse articulação discursiva que o levaria a distintas cenas do seu inconsciente. Freud, ainda, contribuiu para o diagnóstico dos alienados quando afirmou que o homem se aliena de si ao retirar o sentido de seus desejos. Repressão, recusa e rejeição são os mecanismos utilizados para este fim, engendrando as doenças mentais (TENENBAUM, 2010).

Com os novos conceitos idealizados por Freud, a alienação mental passou a ter estrutura caracterizada por uma perda do relacionamento com o mundo, com o eu e a instituição, trazen-do com isso mudança, convocando os prestadores de assistência em saúde mental a uma atualização conceitual e ética, com a finalidade de modificar os modos assistenciais; buscando por desenvolver uma intervenção à doença baseado em projeto tera-pêutico que incluíam as percepções dos sujeitos em sofrimento mental (AMARANTE, 1994; SILVIA; FONSECA, 2005).

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Todavia, não foram os conceitos freudianos que se esta-beleceram durante o século XX, mas a nosologia de Kraepelin que inseriu o conceito de personalidade psicopática, implan-tando a noção de anormalidade (AMARANTE, 1996). Neste sentido, ocorreu mudança na concepção do saber médico, marcada pela substituição da doença mental - século XIX - para a concepção de anormalidade do século XX.

A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença, a anormalidade. A Medicina ganha, ao longo do con-texto histórico, o direito de restabelecer a harmonia, o equilí-brio, expulsando a doença e restaurando a saúde. Em vez de se estabelecer como terapêutica e resolutiva, opta por discutir e gerar diversos sistemas classificatórios de enfermidades, prin-cipalmente da doença mental.

Após a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se o movi-mento psiquiátrico que propôs a transformação da assistência psiquiátrica, estabelecendo que a mesma devesse ser transfor-mada ou abolida, pondo em contestação a assistência ofer-tada pelo hospital psiquiátrico. Este movimento mobilizou a sociedade, que passou a dirigir seus olhares para as formas de cuidados disponibilizados pelos hospícios, descobrindo, assim, as condições de vida oferecidas aos sujeitos psiquiátri-cos internados e percebendo que em nada se diferenciavam daquelas dos campos de concentração: o que se podia consta-tar era a absoluta ausência de dignidade humana! Nascendo, assim, “as primeiras experiências de Reformas Psiquiátricas” (AMARANTE, 2007, p. 40).

A concentração em uma única forma terapêutica provo-cou a superpopulação nos manicômios. Com isso, os custos de manutenção destes espaços tornaram-se inviáveis e em vez

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de lugares de reeducação das ideias e dos hábitos, passaram a se distanciar da proposta idealizada (PESSOTI, 1996). Deste modo, passaram a explicitar o preconceito, o abandono e as más condições de tratamento e cuidado às pessoas internadas.

Isso caracterizou o movimento de Reforma Psiquiátrica instalado pelo mundo, pois se tornou primordial enfrentar ao mesmo tempo as faces do problema, estabelecendo cuidado cidadão ao sujeito em sofrimento psíquico.

2.2 Os novos espaços de cuidado em saúde mental

Desde a criação do isolamento como forma de trata-mento, ainda, hoje, em vigor em instituições, a psiquiatria tem tentado instituir as mais variadas formas de cuidar de doentes, focando em um processo de desconstrução do mo-delo manicomial instituído.

A desconstituição do manicômio como único modelo de cuidado do sujeito em sofrimento psíquico obriga a instituir serviços com características de acolhimento, cuidado e trocas sociais. Serviços que aprazam relação integral entre profis-sionais, instituição e usuário, através do estabelecimento de princípios libertários, humanitários e sociáveis que resultem em reintegração deste sujeito. A reinserção exige substituição das práticas psiquiátricas para práticas de cuidado por ações de cuidado que respeitem a dignidade e a necessidade do su-jeito em sofrimento psíquico (OLIVEIRA, 2009; GONÇAL-VES; SENA, 2001).

Pode se compreender o cuidado como a essência huma-na estabelecida através de um processo de comunicação. Boff

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(2008) afirma que o cuidado entra na natureza e na constitui-ção do ser humano e torna-se uma das coisas fundamentais da vida. O cuidado vai além de um ato, de uma atitude, abrange um momento de atenção, de zelo, de responsabilização com o outro. Este processo de responsabilização, nos novos aparatos de atenção em saúde mental, procura compartilhar com fami-liares e comunidade as obrigações de criação de um estatuto de cidadania e autonomia dos sujeitos (SILVA, 2007).

O projeto reformista do campo da saúde mental vem sendo direcionado pelo projeto de desinstitucionalização da loucura, iniciado na França, em que se impulsionaram os mo-vimentos reformistas contra os manicômios, pregando que deveriam ser retirados destes espaços o maior número possível de sujeitos. Desenvolveram-se modificações e críticas, tanto de ordem conceitual quanto prática, que passaram a contestar a eficiência do manicômio no tratamento do sujeito mental. Esta conjuntura transformadora idealizaria as novas formas de assistência e uma destas seria a ideia de que o contato com a vida normal traria boa recuperação aos doentes, contudo, se buscava reduzir os crescentes números de internados e, auto-maticamente, abater-se-iam os gastos públicos com este tipo de tratamento (PESSOTI, 1996).

O rompimento epistêmico do manicômio se estabele-ceu de acordo com os diferentes contextos históricos em que foram criados. O termo manicômio foi substituído gradati-vamente pela especificação de hospital psiquiátrico, este, por sua vez, oficializou-se como casa de correção, “não sendo necessário obter a permissão oficial para abrir um hospital ou casa de correção: todos podem fazê-lo à vontade” (FOU-CAULT, 2009, p. 54).

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No entanto, este rompimento não aconteceu com essa facilidade, ao contrário, a desconstrução do modelo percorreu décadas para sofrer modificação significativa. Toda modifica-ção, mesmo as mais simples, acarreta consequência significa-tiva, por isso a liberação dos doentes mentais de espaço secu-lar precisou ser realizada com o cuidado e a garantia de que este rompimento não causaria danos a eles.

O rompimento teve como objetivo a aproximação do doente, da doença e das práticas terapêuticas, visando resgate desse sujeito e o rompimento da relação “objetal profissional x sujeito para construção de um novo olhar, recorte teórico, relações interpessoais e estratégias de abordagem terapêutica que resgate a condição de sujeito do doente mental” (OLI-VEIRA, 2005, p. 42).

Sobre essa óptica, movimentos de abordagem terapêuti-cos se estruturam no cenário mundial, dos quais se destaca-ram: a Psiquiatria de Setor, na França; as Comunidades Tera-pêuticas, na Inglaterra; a Psiquiatria Preventiva, nos Estados Unidos (EUA); e a Desinstitucionalização Italiana.

As Comunidades Terapêuticas (CT), no Reino Unido, constituíram-se as primeiras experiências nesse campo, tendo como objetivo recepcionar e atender aos soldados que retor-navam da guerra e precisavam de cuidados psíquicos, pois a rede hospitalar era isoladora e segregante.

A expressão “comunidades terapêuticas” foi cunhada por Tom F. Main, em 1946, em referência ao trabalho iniciado em 1943, por Wilfred R. Bion e John Rickman, no Northfield Hos-pital. O termo foi aplicado também ao trabalho de Maxwell Jones, em Mill Hill (1941 – 44), Dartford (1945), na divisão

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de reabilitação industrial de Belmont (1947 – 59) e no Dingle-ton Hospital, em Melrose, Escócia. Esses psiquiatras ampliavam os recursos terapêuticos para além da relação médico/sujeito, envolvendo os auxiliares médicos e próprios doentes no tra-balho de cura e reabilitação (BARROS, 1994). Essas comu-nidades se estabeleceram por permitir uma “democratrização das opiniões, tolerância, comunhão de internações e objetivos e confronto com a realidade” (DESVIAT, 1999, p. 35).

Vanguardista desse período, a França instituiu a Psiquia-tria de Setor e a Psicoterapia Institucional. A Psiquiatria de Setor acreditava que as experiências do modelo hospitalar estavam esgotadas, e que o mesmo deveria ser desmontado, isto é, deveria ser tornado obsoleto a partir da construção de serviços assistenciais que iriam qualificando o cuidado tera-pêutico. Com isso, o modelo liberal viu-se ameaçado por um serviço de psiquiatria que planejava, assumia compromissos e proporcionava novas formas de assistência (AMARANTE, 2007; DESVIAT, 1999).

A Psicoterapia Institucional foi cunhada por Georges Daumézon e Koechlin, em 1952, em referência a experiências alternativas francesas que exploravam terapeuticamente as atividades laborativas, como terapia ocupacional. Os primei-ros trabalhos de referência foram desenvolvidos em Saint – Alban (1941) e na clínica privada de La Borde (1953), tendo como referência a Psicanálise e a Sociologia. Buscava-se por promover intervenções junto ao doente e espaço institucional (BARROS, 1994).

Nos EUA, desenvolveu-se a Psiquiatria Preventiva, que também ficou conhecida como Saúde Mental Comunitária e apresentava como entendimento que todas as doenças mentais

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poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente. Como bases teóricas, seu idealizador, Gerald Caplan, escreveu a obra “Princípios de Psiquiatria Preventiva”, que tinha como modelo inspirador a “História Natural da Enfermidade”, de Leavell e Clark, porque a doença mental também apresentava uma História Natural e, detectada precocemente, poderia ser prevenida. Assim, foram estabelecidos três níveis de preven-ção, de acordo com o momento evolutivo da doença mental:

... Prevenção Primária [como]: intervenção nas condições possíveis de formação da doença mental, condições etiológicas, que podem ser de origem individual e (ou) do meio; preven-ção secundária [entendida como] intervenção que busca a realização de diagnóstico e trata-mento precoces da doença mental e prevenção terciária: que se define pela busca da readapta-ção do sujeito à vida social, após a sua melhora (BIRMAN; COSTA, 1994, p. 54).

Dessa forma, ocorreu deslocamento da psiquiatria em duas linhas: a primeira deslocou a psiquiatria para a saúde mental, resgatando também a noção de modo psicossocial, o que representa sem dúvida ampliação do campo conceitual e inovação no aspecto ético da psiquiatria. O segundo des-locamento provocou a saída do hospício para a comunidade (AMARANTE, 2007).

Completando o quadro das novas alternativas de aten-ção à doença mental, têm-se também a Antipsiquiatria, termo cunhado nos anos de 1960 e que ficou identificado a uma atitude de mera contestação e rebeldia (GOULART, 2007;

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AMARANTE, 2007). O movimento congregou críticas à psiquiatria e às instituições psiquiátricas, por entender que a loucura e a doença mental eram construções sociais, ven-do a instituição psiquiátrica como agência de controle social (GOULART, 2007).

Porém, o movimento de maior impacto acontecido no contexto da Reforma Psiquiátrica mundial foi o processo de desinstitucionalização italiana que representou rompimento com o hospital psiquiátrico, com o modelo comunitário tera-pêutico inglês e com a política de setor francesa, conservando destes movimentos apenas a democratização das relações e a ideia de territorialidade (BARROS, 1994).

O movimento italiano tornou-se referência histórica importante nos movimentos de Reforma Psiquiátrica que emergiram no mundo (GOULART, 2007), pois estabeleceu-se por recomendar um tratamento alternativo ao modelo tra-dicional. Seu idealizador, Franco Basaglia, psiquiatra, profes-sor universitário, foi pressionado a gerenciar o manicômio da província de Gorizia, no extremo norte da Itália, localidade sem o menor destaque do ponto de vista político e acadêmico (AMARANTE, 1996).

Inicialmente, Basaglia reconheceu o convite como um sepultamento de sua vida acadêmica, no entanto, seguindo orientação do Prof. Belloni, assumiu e tornou-se o nome mais importante de todo o conjunto de atores sociais e políticos que participaram do movimento de reforma italiana. Foi, nas inquietações, reflexões e ações desse psiquiatra que se revelou paradigmaticamente a construção de um sentido alternativo às normas e cultura vigentes da época em relação ao sujeito em sofrimento psíquico (GOULART, 2007).

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A transformação paradigmática não foi fácil, a chega-da ao manicômio de Gorizia foi tão intensa que fez Basa-glia recordar do período que passou preso, pois encontrou os internos fechados à chave (AMARANTE, 1996). Após um período de reflexão, assumiu o desafio, pois vislumbrou uma experiência inovadora, sintonizada com a psiquiatria social europeia do pós-guerra.

Basaglia encontrou em Gorizia uma arquitetura que contava com oito setores fechados, quatro femininos e qua-tro masculinos, totalizando 629 internos, classificados como “agitados”, “crônicos” e “tranquilos”, segundo os cânones da psiquiatria clássica (GOULART, 2007). Basaglia iniciou por contestar a psiquiatria, isso se expressou no princípio de “ne-gação do mandato institucional” (BASAGLIA, 1985). Para isso, proibiu a contenção dos sujeitos nos leitos e estabeleceu, paulatinamente, novas regras de organização e comunicação. Este seria, na opinião de Antônio Slavich, o momento fun-dante de todo o movimento que se desenvolveria posterior-mente (GOULART, 2007).

O momento veio atrelado à implantação de novos con-ceitos, como o de desinstitucionalização. Esta é abordada no movimento sobre a tríade da construção de uma nova política de saúde mental, com centralização no trabalho terapêutico, objetivando enriquecer a existência global e a construção de es-truturas externas substitutivas à internação manicomial (RO-TELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001). Como consolidação do processo desinstitucionalizador, teve-se o movimento que denunciou os maus-tratos, as formas prisionais e ineficazes dos manicômios, resultando na desconstrução destes serviços as-sistenciais e na consolidação do movimento antimanicomial.

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A despeito da evolução ocorrida em Gorizia, a experiên-cia de Basaglia não pode ser utilizada como bem-sucedida, pois não se concretizou a sonhada desinstitucionalização ou fechamento do manicômio (GOULART, 2007; BARROS, 1994). No entanto, foi na cidade de Trieste que a experiên-cia mais bem-sucedida e conhecida da Reforma Psiquiátrica italiana ocorreria (GOULART, 2007). Nesta região, cons-tituiu-se uma estratégia de transformação que privilegiou o momento externo sem preocupar-se com o desmontar do ma-nicômio, esperando que enfraquecesse por si, após o advento dos serviços territoriais (BARROS, 1994).

Dessa experiência, eclodiu a Lei 180 (Lei Franco Basa-glia), que proibiu a construção de novos manicômios, impe-dindo novas admissões, regulamentando as internações com-pulsórias e garantindo os direitos de autodefesa e autotutela (GOULART, 2007). Ademais, ressalta-se que a Psiquiatria Democrática, com matriz teórica no marxismo, intentava revolucionar concepções e terapêuticas médicas vigentes me-diante análise crítica da cultura manicomial e do saber psi-quiátrico (RANDEMARK; JORGE; QUEIROZ, 2004).

A Psiquiatria Democrática passou a contestar a posição da doença mental, já que, historicamente, havia sido reduzida à loucura, na conceituação da Medicina da época, e o sujeito aprisionado em seu mundo, juntamente com sua patologia. A Psiquiatria Democrática não negou a existência da doença mental, a proposta de Basaglia foi colocar entre parênteses a doença e, assim, destituir o indivíduo daquilo que poderia ser rótulo para defini-lo (GOULART, 2007; BASAGLIA, 1985).

Assim, objetivou-se produzir uma reformulação na rela-ção sujeito-médico, sujeito-terapêutica e sujeito-instituição,

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redimensionando os objetivos institucionais, tendo como princípio norteador as necessidades reais dos sujeitos, colo-cando-os como foco central da atenção e não mais a doença, que na visão basagliana ficaria aprisionada. Destituíam-se as ideias de que o doente mental era um indivíduo incompreen-sível e, como tal, perigoso e imprevisível, impondo-lhe, como única alternativa, a morte social (BASAGLIA, 1985).

A luta teve por objetivo a mudança cultural, profissio-nal e social, visando maior tolerância e menor autoritarismo diante do sujeito mental (GOULART, 2007). Por esse moti-vo, a Reforma Psiquiátrica italiana foi respaldada e recomen-dada pela Organização Mundial de Saúde a converter-se em parâmetro para a reorientação das políticas de saúde mental em todo o mundo, inclusive no Brasil (BARROS, 1994).

2.3 O contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira: uma revisita

Foram os êxitos apresentados pelo movimento reformis-ta italiano, liderado por Franco Basaglia, que fizeram com que o psiquiatra e seus colaboradores viessem ao Brasil em duas situações históricas. A primeira, em 1978, para o I Congres-so Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições, no Rio de Janeiro, e a segunda, em 1979, para o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, em Belo Horizonte. As referidas vindas contri-buíram decisivamente para constituição do movimento refor-mista brasileiro (AMARANTE, 2007).

Os encontros foram o culminar de um movimento re-formista idealizado por trabalhadores da Divisão Nacional de

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Saúde Mental (DINSAM), em 1978, que denunciaram as más condições assistenciais dos hospitais psiquiátricos brasileiros, co-locando em xeque a política psiquiátrica brasileira (AMADOR, 2010). A visão de descaso na assistência ao sujeito psiquiátrico, denunciada pela DINSAM, foi constatada e mostrada por Fran-co Basaglia, quando, em uma dessas estadas no Brasil, visitou o Hospital Psiquiátrico de Barbacena, expondo para sociedade brasileira a crueldade e violência da assistência psiquiátrica que era prestada aos sujeitos mentais (AMARANTE, 2007).

O destratar do sujeito mental e a expansão da rede psi-quiátrica particular capitanearam significativos movimentos contrários à forma de assistência psiquiátrica que se instituía no país, massificando-se, assim, as denúncias de maus-tratos e desassistência aos sujeitos mentais, fazendo com que os mani-cômios fossem afrontados, questionados e que novas formas interpretativas da loucura fossem elaboradas.

Indignando-se com o descaso da assistência ao sujeito mental e com as péssimas condições de trabalho, emergiu-se o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM)1, como movimento social que empunhou o lema: “Por uma Sociedade sem Manicômios” (NICK; OLIVEIRA, 1998). O referido lema consolidou a influência da “tradição basa-gliana”, no movimento de reforma brasileira, que passou a centrar sua luta contra o hospitalocentrismo, instituindo-se o movimento de desinstitucionalização (OLIVEIRA, 2005).

Para Rotelli, Leonardis e Mauri (2001), a palavra desins-titucionalização pode assumir diferentes conceitos e objetivos,

1 Esse movimento nasceu no Rio de Janeiro, deflagrado por uma crise na Divisão Nacional de Saú-de Mental (DINSAM). Teve, inicialmente, um caráter trabalhista, com reivindicações por melhores condições de trabalho, para depois ampliar-se e causar impacto político (AMARANTE, 1995).

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a depender do contexto cultural e político nos quais está inse-rida. No Brasil, é fácil identificar linhas distintas na aplicação do processo de desinstitucionalização, tendo reformistas que aplicam a conotação de desospitalização, com política de altas hospitalares, de redução de leitos e fechamento dos hospitais psiquiátricos, enquanto outra linha institui a desinstituciona-lização como processo social, complexo, que transforma não apenas o modelo assistencial, mas o lugar social da loucura, da diferença e divergência (AMARANTE, 2009).

Independente da forma de utilização do processo de desinstitucionalização, este se tornou um marco epistêmico do movimento da Reforma Psiquiátrica. As visões instituídas pelo processo da desinstitucionalização motivaram a reorien-tação do modelo de atenção à saúde mental brasileira, em que se tentavam modificar o modelo centrado na doença mental, executado no interior dos manicômios, para inclusão de um modelo centrado nos cuidados à saúde mental, sem estigma e discriminação (BRASIL, 2004).

A reorientação proposta para o modelo de atenção ao sujeito em sofrimento mental e o processo de desospitalização criaram a perspectiva de modificação das estruturas assisten-ciais de atenção a este sujeito, instituindo, assim, as estruturas extra-hospitalares, que deveriam assistir os sujeitos egressos de hospitais psiquiátricos e constituir um filtro contra hospitali-zações ulteriores (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001).

O MTSM observou que para empreender o processo de reforma e instituir os aparatos extra-hospitalares, reque-ria-se a mobilização de diversos seguimentos sociais, em que se integraram o Movimento Popular em Saúde (MOP), os militantes do Partido Comunista Brasileiro e do Partido dos

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Trabalhadores (em estruturação na época), lideranças reli-giosas, movimentos estudantil e, principalmente, familiares e usuários dos serviços mentais que passaram a aderir ao mo-vimento, desempenhando papel relevante na implantação de serviços alternativos ao manicômio (GOULART, 2007; BRASIL, 2005; NICK; OLIVEIRA, 1998).

Essa mobilização civil incentivou a sociedade brasileira a incorporar-se na discussão da loucura e assistência prestada em instituições, instigando congressista, como Paulo Delgado (1989), a apresentar projetos de lei que propusessem a subs-tituição da rede de assistência hospitalar por um sistema de serviços substitutivos de atenção ao sujeito mental (SOUZA, 2007; OLIVEIRA, 2005).

Delineou-se, então, a construção de uma política de saú-de mental inovadora, que diversificava em distintas estratégias a forma de atenção ao sujeito mental, que nesta nova atenção, tornava-se “usuário” (OLIVEIRA, 2005). Este cuidado tem se dado através de vários dispositivos, os quais se destacam os núcleos e Centros de Atenção Psicossociais: unidades locais/regionais que se constituem em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas à saúde mental, contando com população adscrita definida pelo nível local e oferecendo aten-dimento de cuidados intermediários entre o regime ambulato-rial e a internação hospitalar (BRASIL, 2010a); as Residências Terapêuticas (RT) para egressos de hospitais psiquiátricos com registro de longas internações, que não possuem mais suportes sociais e nem laços familiares (BRASIL, 2000), e o Programa Federal “De volta para casa”, programa de reintegração social de pessoas acometidas de transtornos mentais, egressas de lon-gas internações psiquiátricas, e proporciona o pagamento de um auxílio-reabilitação psicossocial (BRASIL, 2010).

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Porém, essa diversidade estrutural de serviços não foi su-ficiente para criar uma rede de dispositivos articulados e mui-to menos para estabelecer a Reforma Psiquiátrica na agen-da estatal, justamente pela falta de linhas de financiamento específicas para a área (GODOY, 2009). Por esse motivo, o processo de reforma apresentou implantações distintas entre as regiões do país, sendo que a heterogeneidade apresentada não prejudicou a instituição deste novo modelo de atenção ao usuário de saúde mental, uma vez que não houve precedente de implantação de uma reforma deste tipo em um país com as características (geográficas, políticas, sociais) do Brasil (BE-ZERRA JÚNIOR, 2007).

Com base nesses motivos, considera-se o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira consequência natural de uma transformação da própria ciência, que busca por produzir atenção em saúde, focada na égide dos princípios do SUS, proporcionando ao usuário compromisso de qualidade na as-sistência terapêutica dispensada, preservando os direitos do sujeito mental e, com isso, contribuindo para transformação do modelo hospitalocêntrico (AMARANTE, 2007).

Para os gestores nacionais da Política de Saúde Mental brasileira, as alterações ocorridas em três componentes com-provam a modificação do modelo de atenção à saúde mental. Trata-se da expansão da rede comunitária, da redução de lei-tos com reconfiguração do porte dos hospitais e da inversão do financiamento (DELGADO, 2007).

Afirmações desse tipo tendem a considerar a macro po-lítica, desconsiderando o contexto político-administrativo de municípios que apresentam em suas realidades uma transição deficitária, já que não oferecem uma rede extra-hospitalar

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sustentável que disponha de estrutura mínima, como: CAPS, emergência psiquiátrica, leitos psiquiátricos em hospitais ge-rais, em quantidades suficientes e em funcionamento. A au-sência desta estrutura é, facilmente, percebida em diversos municípios brasileiros, proporcionando, com isso, desassistên-cia aos sujeitos em sofrimento psíquico em situação de crise.

Os novos serviços psiquiátricos estruturados pela Refor-ma não atende

à nova cronicidade que ultrapassa as consultas ambulatoriais. São novos padrões de cronicida-de de grande ubiquidade, onipresente em todas as reformas, independentemente dos sistemas sanitários e de cobertura social que as susten-tam, em especial o grupo dos “jovens adultos crônicos”, de comportamentos psicopáticos, que com seus atos interpelam tanto o sistema de saúde quanto os serviços sociais e o aparato judicial (DESVIAT, 1999, p. 77).

Assim, tendem a apresentar priorização de demanda a partir da oferta, proporcionando consultas rápidas e com in-tervalos de tempo demorados entre si, realidade vivenciada nos CAPS de Fortaleza, cujo intervalo médio é de 45 a 60 dias entre as consultas, incentivando, assim, a utilização da terapêutica farmacológica que transforma o usuário em con-sumidor de medicamentos psicotrópicos; visando, essencial-mente, contenção de sofrimento abordado, exclusivamente, como sintoma de uma doença, sendo que a ausência desta medicação motiva o sujeito à crise (GODOY, 2009; SOUZA, 2007; OLIVEIRA, 2005).

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2.4 O sujeito de sofrimento psíquico em situação de crise: definições conceituais

A descontinuidade no processo de assistência acontecido nos novos serviços de atenção em saúde mental tem contri-buído para um aumento exacerbado da terapia farmacológica, como também, para um desencadear de situações de crise psí-quicas por parte dos sujeitos em sofrimento psíquico. Por esse motivo, delimitamos como recorte para este estudo as situa-ções de crise ocorridas com sujeitos em sofrimento psíquico no espaço urbano-territorial-assistencial, em uma capital de grande porte do nordeste do Brasil. Tal escolha se justifica e concretiza pelo simples motivo de ter sido a situação mais vivenciada pelo autor em seu percurso profissional, e por con-siderá-la uma das mais dramáticas no contexto atual da rees-truturação da rede de atenção em saúde mental em Fortaleza.

Devido à diversidade de termos presentes na literatura (transtorno, distúrbio, doença, sofrimento), usados nos estudos de saúde mental para designar anomalias, sofrimento ou com-prometimento psicológico ou mental, utilizamos neste estudo a terminologia sofrimento psíquico, que remete a pensar um su-jeito que sofre (AMARANTE, 2007). Neste sentido, entende-mos como sofrimento psíquico o que Sampaio (1993) define:

O conjunto de mal-estares e dificuldades de conviver com a multiplicidade contraditória de significados, oriundo do antagonismo subjeti-vidade/objetividade. Caracteriza-se por dificul-dade de operar planos e por definir o sentido da vida, aliado ao sentimento de impotência e de vazio, o eu experimentado como coisa alheia (SAMPAIO, 1993, p. 407).

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O sofrimento psíquico, de uma forma geral, é uma expe-riência negativa complexa, associado, geralmente, à dor e à infeli-cidade. Está relacionado com uma condição aversiva e apresenta diversas formas de manifestação (COSTA, 2006). Geralmente, apresenta caráter essencialmente subjetivo, pois está ligado à sig-nificação que assume no tempo e espaço, bem como no corpo de cada indivíduo. Sendo que as manifestações e reações se agravam de acordo com o ambiente desfavorável, no qual o indivíduo encontra-se inserido (BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2003).

Logo, o sofrimento psíquico pode ser entendido como uma manifestação subjetiva e exclusiva de cada indivíduo. E, quando este sofrimento se manifesta de forma grave “remete a noção de crise como sendo um momento de ruptura ou uma mudança de curso de um equilíbrio...” (COSTA, 2010, p. 80).

Etimologicamente, a situação de crise é definida como o estado ou condição de uma pessoa que atravessa uma situação crítica (FERREIRA, 2012). Em termos técnico-científicos, a crise pode ser compreendida de diversas formas, como no mo-delo clássico da psiquiatria, que a classifica como uma situação na qual há grave disfunção, e ocorre, exclusivamente, em de-corrência da doença; ou, como no modelo psicossocial, em que é concebida como a expressão de uma crise existencial, social e familiar, que envolve a capacidade subjetiva do sujeito em responder às situações desencadeantes (AMARANTE, 2007).

Crise será compreendida neste estudo como:

...um momento individual específico, no qual efervescem questões, afetos, gestos e compor-tamentos variáveis singulares, que afetam em graus diversos a vida cotidiana da própria pes-soa e daqueles de seu convívio, e costumam

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ser determinante das demandas e intervenções em serviços de Saúde Mental (JARDIM; DI-MENSTEIN, 2007, p. 183).

A situação de crise específica no estudo caracteriza-se como um quadro psicótico, compreendido como “perda do teste de realidade” (COSTA, 2006).

A palavra crise em sua origem grega, krisis, caracteriza um estado, no qual uma decisão tem quer ser tomada. Neste con-texto, crise não aborda apenas a experiência individual e nem será um privilégio dos sujeitos em sofrimento psíquico (FERI-GATO; CAMPOS; BALLARIN, 2007). A utilização, pela pri-meira vez, do termo crise foi atribuída a Erich Lindernann’s, em 1944, que trouxe à luz a “teoria da crise” que abordava as conse-quências psicológicas causadas nos seres humanos após tragédias ou catástrofes (FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2007).

Conforme Desviat (1999, p. 64),

A crise é um ‘estado limite’, um rompimento da continuidade habitual, um momento difícil da vida de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. Portanto, a crise não é uma entidade, nem ma-nifestação específica, é uma alteração do corpo ou do sujeito que requer técnica de intervenção terapêutica diferenciada.

Geralmente, a crise é precipitada por uma ou mais cir-cunstâncias que, às vezes, ultrapassam a capacidade de o indi-víduo ou sistema de manter a sua homeostase (FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2007). São de fase costumeiramente curtas e estão associadas à sobrecarga mental por perdas im-previstas (DESVIAT, 1999).

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No contexto psiquiátrico, Dell’Acqha e Mezzina (1998, p. 58) caracterizam como “situações de crise”:

As que respondem a pelo menos três destes cri-térios: grave sintomatologia psiquiátrica; grave ruptura no plano familiar e/ou social; recusa do tratamento; recusa obstinada de contato e situação de alarme em seu contexto de vida e incapacidade pessoal de afrontá-las.

Esses parâmetros “identificam aquelas situações que por alarme ou gravidade eram enviadas ao hospital psiquiátrico com internação forçada, além de definidas como perigosas para o sujeito ou para os outros” (DELL’AQCUA; MEZZI-NA, 1988, p. 59). A evolução conceitual de loucura e, con-sequentemente, o conceito de crise teve sua constituição no contexto social de cada época, o que hoje se denomina de crise psiquiátrica, entendida outrora como manifestação de sabedoria, de possessão demoníaca, bruxaria, de subversão da ordem social e, por fim, como doença (FOUCAULT, 2006; FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2007).

A crise também receberá a definição de desequilíbrio psí-quico, no qual o sujeito se encontra desprovido de suas com-petências, levando-o a situações de conflito (COSTA; CARVA-LHO, 2008). Este desequilíbrio pode ser de ordem passageira ou se estabelecer permanentemente, podendo ser classificado em:

Crises Evolutivas geradas pelos processos ‘nor-mais’ de desenvolvimento físico, emocional ou social. Na passagem de uma fase a outra do processo evolutivo (...) conflitos podem ser gerados, levando à desadaptação, que não sen-do elaborados pela pessoa podem conduzir à

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doença mental; Crises Acidentais, imprevis-tas, precipitadas por uma grande ameaça de perda ou por uma perda, que por sua capaci-dade de perturbação emocional teria a ca-pacidade de poder levar futuramente à doença (BIRMAN; COSTA, 1994, p. 57).

Uma pessoa em crise, geralmente, precisa de ajuda e, em alguns casos, esta deve ser imediata (JARDIM; DIMENS-TEIN, 2007) pois as crises tornam o indivíduo suscetível ao adoecimento psíquico, podendo desencadear, agravar e cro-nificar a loucura.

2.5 O sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise na rede de atenção de saúde mental de Fortaleza.

Nos últimos anos, o município de Fortaleza tem opta-do pela implantação de uma política de substituição da rede hospitalocêntrica. Com isso, o município vem estruturando e implantando ações estratégicas de substituição a este aparato assistencial, exemplo disso é a expansão dos Centros de Aten-ção Psicossocial (CAPS), que passaram de três, em 2005, para 14, em 2006, sendo seis CAPS do tipo geral, um por Secretaria Executiva Regional (SER), seis CAPS ad, um por SER, e dois CAPS infantil, um na SER III e outro na SER IV. Ainda, há 16 leitos psiquiátricos em hospital geral, três Ocas Comunitárias e duas Residências Terapêuticas, um serviço hospitalar de álcool e outras drogas - com leitos de observação e dois consultórios de rua2. Nesta rede, ainda, há presença de cinco hospitais psi-

2 São dispositivos públicos clínico-comunitários que fazem oferta de cuidados em saúde aos usuá-rios em seus próprios contextos de vida, adaptada para as especificidades de uma população com-plexa (BRASIL, 2010).

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quiátricos. No momento da escrita deste texto, havia sido fe-chada a Casa de Saúde São Gerardo (2007) e a Clínica de Saú-de Mental Dr. Suliano LTDA (2010) (FORTALEZA, 2011).

No intuito de atingir os princípios norteadores e orga-nizativos do SUS, a Secretaria de Saúde de Fortaleza opta por instituir um modelo integral de atenção à saúde, criando o Sistema Municipal de Saúde Escola (SMSE), composto por Redes Assistenciais (Estratégia Saúde da Família, Especializa-da, Urgência e Emergência, Saúde Mental), Vigilância à Saú-de (Inteligência Epidemiológica – vigilância epidemiológica, sanitária e ambiental), Gestão, Pesquisa e Controle social (Fi-gura 1) (FORTALEZA, 2007). Isso motivou diálogos cons-tituídos com outras áreas do conhecimento, fortalecendo a organização e o funcionamento do modelo integral de saúde.

Figura 1 – Redes Assistenciais da Atenção Integral à Saúde do Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza-CE.

Fonte: ANDRADE, 2006.

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A estrutura organizacional de redes de atenção à saúde teve início na década de 1920, no Reino Unido, concepção dawsoniana que tomara forma de sistema integrado de saúde no início dos anos de 1990, nos Estados Unidos, e foi inovada com adaptações necessárias, para ser hoje o Sistema de Saúde Público (MENDES, 2007).

Na perspectiva de desenvolver uma atenção à saúde mental, organizada em ações articuladas e compartilhada entre gestão e sociedade civil, estrutura-se a Rede de Saú-de Mental (RASM) de Fortaleza. As estruturações de uma RASM articulada, através de ações intersetoriais e interinsti-tucionais, buscam por enrijecer as parcerias entre poder pú-blico e movimentos sociais.

Os novos arranjos organizacionais estabelecidos com a instituição das redes de saúde vêm colaborando para a consti-tuição de um processo democrático, emancipatório e inovador na forma de assistir o sujeito de sofrimento psíquico. Nesta conjuntura, foram realizados discussões e debates na elabora-ção da Política de Saúde Mental, realizada contratação de asses-sores e supervisores para acompanhar a Rede de Saúde Mental, ampliação do número de serviços e profissionais na rede e esta-belecimento de parcerias com as demais redes, principalmente, com a Célula de Atenção Básica (CAB) e o Serviço de Aten-dimento Móvel de Urgência (SAMU) (FORTALEZA, 2007).

Esses pontos foram importantes para a consolidação da RASM, contudo a ampliação dos aparatos assistenciais foram os que mais impactaram na estruturação da rede. Em 2004, o município contava com uma assistência psiquiátrica foca-da no hospitalocentrismo, com a presença de sete hospitais psiquiátricos: Hospital São Vicente de Paulo, Casa de Saúde

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São Gerardo, Hospital de Saúde Mental de Messejana, Ins-tituto de Psiquiatria do Ceará, Instituto Espírita Nosso Lar, Hospital Mira y Lopes, Clínica de Saúde Mental Dr. Suliano LTDA. e apenas três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), localizados nas SER III, IV e VI (CEARÁ, 2008).

A expansão dos novos serviços de atenção em saúde men-tal em Fortaleza acontece lenta e, geralmente, impulsionada por resoluções do Conselho Municipal de Saúde (CMSF). Em 2001, em sua 14ª reunião extraordinária, o CMSF de-liberou sobre a necessidade da existência de uma política de Saúde Mental para o município de Fortaleza, centrada nos CAPS e em ações de saúde mental por área de abrangência (FORTALEZA, 2001).

Todavia, essa deliberação não surtiu o efeito esperado, tendo como possíveis causas o desinteresse político e a pressão da indústria hospitalocêntrica, que sempre procurou por de-monstrar a importância do hospital psiquiátrico ao tratamen-to do sujeito de sofrimento psíquico. No entanto, em 21 de dezembro de 2004, na 33ª reunião extraordinária do CMSF, decidiu-se por aprovar a proposta, da Comissão Municipal de Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica, de instituir uma Polí-tica de Saúde Mental para Fortaleza, a qual teria como base a consolidação do Modelo de Atenção Integral à Saúde Mental, com o sistema de referência e contrarreferência, tendo a aten-ção básica como porta de entrada do sistema e a retaguarda dos serviços especializados, como os CAPS, Hospitais-Dia e Hospitais Gerais (FORTALEZA, 2004).

A aprovação culminou com a mudança de gestão mu-nicipal, que implicou em um projeto de reformulação da ad-ministração pública. Na saúde, a proposta de implantação

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de uma política de saúde mental, ancorada nos princípios do SUS e centrada em uma rede de serviços públicos substitutivos (CAPS, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência etc.), é fundamentada no compromisso de qualidade na assistência, na defesa dos direitos dos sujeitos de sofrimento psíquico e na desconstrução do modelo manicomial (FORTALEZA, 2007).

A despeito disso, o município não tem se isentado da polêmica da hospitalização psiquiátrica, que tem se instalado com severas críticas à política de atenção disponibilizada pelo município. As contestações tiveram início em 2007, com o fechamento da Casa de Saúde São Gerardo, segunda estrutura hospitalar implantada no Ceará (1935), primeira privada. No ano do fechamento, a unidade hospitalar contava com 154 leitos privados e 97 mantidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (FORTALEZA, 2008).

O fechamento foi impulsionado pelos dados positivos da redução de internações psiquiátricas que o município apre-sentava e também pelo compromisso assumido pela gestão municipal da ampliação da rede substitutiva, principalmente, com a implantação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Esta ampliação foi possível devido à articulação entre o Hos-pital Batista Memorial3, o Instituto Vandick Ponte4 e o muni-cípio de Fortaleza, que resultou na Unidade de Saúde Mental, no Hospital Geral Ana Carneiro5, inaugurada em julho de 2007, com capacidade operacional de 30 leitos.

3 Unidade hospitalar que teve início em 03 de julho de 1967, funcionando hoje com 106 leitos e atendendo a Clínicas Médicas, Cirúrgica, Obstétrica e exames (HOSPITAL BATISTA, 2011).4 Instituição implantada em 2005, sem fins lucrativos, que realiza atendimento a sujeitos de sofri-mento psíquico (FONSECA, 2012). 5 Unidade psiquiátrica em hospital geral que prestava assistência a sujeitos em sofrimento psíquico graves e aos usuários de substâncias psicoativas. Os usuários são assistidos por uma equipe que atua de forma interdisciplinar (FONSECA, 2012).

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Em 2009, com o rompimento entre as entidades, cessou-se a Unidade de Saúde Mental Ana Carneiro. Uma redução de 30 leitos psiquiátricos ocorreu. A partir deste fato, constatou-se es-tagnação na expansão da rede substitutiva do município de For-taleza, fosse pela não restituição dos leitos em hospitais gerais e não abertura ou ampliação de novos serviços substitutivos. Essa inércia potencializou o hospital psiquiátrico, o qual se tornou o único local de amparo aos sujeitos de sofrimentos psíquicos em crise. Mesmo que a rede implantada proporcionasse impac-tos terapêuticos, como demonstraram os dados de internações, ainda não era suficiente para suprir as necessidades de atenção aos usuários. A inexistência de uma estrutura de retaguarda aos CAPS, principalmente na questão da crise psíquica, é facilmente encontrada na rede de atenção à saúde mental de Fortaleza.

Todavia, a ampliação ocorrida, em 2006, promoveu re-sultados satisfatórios. Exemplo disso foi a redução das inter-nações psiquiátricas que, mesmo com a diminuição de leitos, apresentaram declínios. Consoante ao Relatório de Gestão da CCSM de 2006, houve redução de 34% (922) das in-ternações psiquiátricas de pessoas com transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool e 11% (4.719) em relação às pessoas com transtornos esquizofrênicos, esquizo-típicos e delirantes (FORTALEZA, 2007). Quando correla-cionado às internações entre os anos de 2006 (ano da implan-tação da RASM) e 2012, a redução ampliou-se para 42,4% (531) nas internações psiquiátricas de pessoas com transtor-no mentais e comportamentais devido ao uso de álcool e de 24,3% (3.163), em relação às pessoas com transtornos esqui-zofrênicos, esquizotípicos e delirantes. Registro de elevação foi identificado entre os usuários de substância psicoativos, justificado pela disseminação do crack (BRASIL, 2010).

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Figura 2 - Distribuição das internações psiquiátricas por ano.

Fortaleza, CE, Brasil, 2008 a 2014.

Em 2011, o Colegiado de Saúde Mental, em continuida-de ao processo de implementação da Política de Saúde Mental de Fortaleza, que teve como modelo de atenção em Saúde Mental a implantação de uma rede de serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, continua com o processo de de-sinstitucionalização de pessoas com transtorno mental.

Ao utilizar-se da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos do sujeito em sofrimen-to psíquico e redireciona o modelo assistencial em saúde, o Colegiado de Saúde Mental de Fortaleza desenvolveu a Co-missão de Avaliação da Clínica de Saúde Mental Dr. Sulia-no, com vista ao seu descredenciamento junto ao SUS. No discurso do Colegiado, este descredenciamento resultaria na implantação da segunda residência terapêutica do município (FORTALEZA, 2010).

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O fechamento ocorreu em fevereiro de 2011, sendo de-sativados 96 leitos psiquiátricos públicos (credenciado pelo SUS) e 4 (quatro) particulares. Em março do mesmo ano, o Instituto de Psiquiatria do Ceará (IPC) comunicou ao Conse-lho Municipal de Saúde de Fortaleza (CMSF) o fechamento de 80 leitos, inicialmente cerrados para reforma, que terminou com o fechamento definitivo em dezembro de 2011. Com isso, somaram-se 180 leitos psiquiátricos a menos na rede de atenção à saúde mental de Fortaleza. Como consequência des-ta drástica redução, a central de regulação de leitos do mu-nicípio passou a registrar um aumento na fila de espera por leitos psiquiátricos, com média de 16 sujeitos por dia. Essa concentração de sujeitos resultou no aumento das internações psiquiátricas em julho de 2011 e em 2012 (BRASIL, 2011).

A acentuada redução no número de leitos de interna-ção psiquiátrica no município passou a pautar as redações dos jornais locais e a estimular as audiências públicas na Câmara Municipal, na Assembleia Estadual e Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde Pública. Manchetes como: Hospital Mental: 25 doentes disputam uma única vaga, de 13/05/2011; Reduzir leitos psiquiátricos, mas com reposição de vagas, de 23/05/2011; Seis horas é limite máximo de espera por leito psiquiátrico, de 18/11/2011, publicadas no Diário do Nordeste. Soma-se a es-sas a matéria vinculada no jornal O Povo, com título: Audiên-cia discute a falta de leitos, de 13.08.2011.

Nas abordagens, a discussão principal foi a redução de leitos psiquiátricos e o sofrimento enfrentado pelos sujeitos de sofrimento psíquico em conseguir vaga de internação. Repor-tagens retrataram a situação dos sujeitos que se encontravam largados no chão, sem espaço para internação, e familiares

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angustiados, “acampados” há mais de uma semana na entrada do Hospital Mental de Messejana. Transcorridos seis meses deste relato, o jornal retornou ao hospital e se deparou com a mesma situação: gritaria por todos os lados, sujeitos empilha-dos e dormindo ao relento, com água e comida minguada à espera de atendimento hospitalar (GIRÃO, 2011).

A disputa por leitos desencadeou uma sequência de au-diências nos mais diversos espaços políticos e jurídicos do muni-cípio de Fortaleza. Uma das primeiras ocorridas foi na Câmara Municipal de Fortaleza, em 19/05/2011, convocada pelo verea-dor Ronivaldo Maia (PT), que debateu o fim dos manicômios. Em 18/10/2011, a convocação de audiência foi realizada pelo vereador João Alfredo (PSOL) e aventou as condições físicas e estruturais do CAPS da SER IV. Em nível de Assembleia Es-tadual, a comissão de seguridade social vem convocando este debate, através do deputado Heitor Ferrer, que convocou au-diência para discutir o fechamento dos leitos de hospitais psi-quiátricos de Fortaleza (FORTALEZA, 2011; FÉRRER, 2012).

Sem dúvida, a audiência de maior impacto foi a promo-vida pela Promotoria de Justiça de Defesa de Saúde Pública, ocorrida em 13/08/2011, que teve como tema central o im-pacto da redução dos leitos psiquiátricos e a capacidade e qua-lidade oferecida pelos CAPS da capital (GONÇALVES, 2011).

Exausta por esperar resolução e não obter, e solidária ao sofrimento dos sujeitos em sofrimento psíquico e seus fami-liares, a Defensoria Pública da União (DPU) solicitou liminar contra a União, o Estado do Ceará e o Município de Fortaleza, exigindo que os réus impelidos restituíssem o funcionamento dos 106 leitos fechados no Estado. Através desta interpela-ção, o juiz da 6ª vara federal, Ricardo Arruda, determinou,

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em decisão liminar, que os sujeitos em sofrimento psíquico em crise, com indicação de internação, não poderiam esperar mais que seis horas por um leito (GIRÃO, 2011).

Com a determinação, gestores estaduais e municipais tinham tempo limitado para traçar estratégias que solucio-nassem a situação de precariedade apresentada na atenção aos sujeitos em sofrimento psíquicos em crise. O Município defendeu-se relatando a expansão de sua rede substitutiva e prometendo, para o mais breve possível, a implantação de um CAPS tipo III, com funcionamento 24 horas (inaugurado em abril de 2012), assim como a abertura da segunda Residên-cia Terapêutica (em funcionamento desde março de 2012), e o que se figura, ainda, como promessas municipais, a dis-ponibilização de 20 leitos para internações psiquiátricas nos hospitais gerais do município. O Estado garantiu a abertura de 21 leitos na cidade de Sobral e negociação de vagas para os hospitais Albert Sabin e Waldemar de Alcântara.

Ao pressupor a inexistência de serviços específicos em atenção à crise psíquica junto aos novos serviços, o sujeito constrói um itinerário terapêutico baseado no significado que atribui à doença e que, por um processo cultural de aflição causado pela patologia, leva-o à rede hospitalar. Em Fortaleza, os sujeitos em situação de crise psíquica são conduzidos ao Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM), geralmen-te, conduzidos por ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).

Conforme indicadores do Ministério da Saúde (MS), estima-se em, aproximadamente, 20% a prevalência de trans-tornos mentais na população, em Fortaleza. Este percentual corresponderia, hoje, a 489 mil pessoas, utilizado para o cál-

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culo a população de 2.447.409 (OLIVEIRA, 2011), necessi-tando de algum cuidado em saúde mental. Ao mesmo tempo considera-se que 3% da população necessita de atenção emer-gencial em função de situações de crise, o que equivaleria ao quantitativo de 73 mil pessoas (BRASIL, 2011).

No entanto, a cobertura desta estrutura não é capaz de absorver a demanda da população de Fortaleza, princi-palmente de pessoas com transtorno mental cronificado, re-forçando a existência dos hospitais psiquiátricos (BASTOS, 2009). Acrescente-se a isso a ausência de serviços de atenção substitutivos de 24 horas, a inexistência de emergência psi-quiátrica municipal, a carência de uma rede de referência e contra referência entre as redes de atenção. Esses fatos fa-zem com que os diversos casos de crise psiquiátrica sejam atendidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e encaminhados à emergência psiquiátrica estadual do HSMM.

Dados do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) apontam a grande demanda oriunda das crises psi-quiátricas, fato que motivou a disponibilização de uma ambu-lância exclusiva para o atendimento desta demanda. Em 2011, esse serviço atendeu 2.548 chamados, sendo 27,5% (701) por agitação psicomotora, 17,2% (439) por surto psicótico e 2,7% (69), tentativa de suicídio. Entre os hospitais de destino, tem-se o Hospital de Saúde Mental de Messejana com 64% (1.625) dos encaminhamentos (FORTALEZA, 2011).

A Resolução 60, do CMSF, que implanta a política de saúde mental de Fortaleza, orienta para uma organização de serviço que tenha como porta de entrada a Atenção Básica. Quanto às crises psiquiátricas, devem ser atendidas nas Ur-

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gências Psiquiátricas instaladas nos Hospitais Gerais (HG) municipais ou no Instituto Dr. José Frota (IJF) Centro (FOR-TALEZA, 2004).

Porém, o que se observa é a centralização das urgências psiquiátricas no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). A família, por dificuldade de transportar a pessoa adoecida até o aparato assistencial, quando esta se encontra em crise, termina acionando este serviço, mesmo sabendo que, na maior parte dos casos, a intervenção é muito trau-matizante (CAVALHERI, 2010). O SAMU de Fortaleza tem como critério de prioridade, para atendimento pré-hospitalar da urgência em saúde mental, a presença de comportamento agressivo auto ou heterodirigido, seguindo o protocolo de ur-gências psiquiátricas (Figura 3) (FORTALEZA, 2011).

Figura 3 – Protocolo de urgências psiquiátricas de Fortaleza.

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O sujeito, geralmente, é removido diretamente para uma unidade hospitalar, uma vez que os HG recusam-se a recebê-lo, mesmo quando o quadro é clínico e não psíquico. Experiência parecida acontecia em Triste6, quando no modelo anterior à Reforma havia relação fechada entre hospital geral e hospital psiquiátrico no itinerário da pessoa em situação de crise: quando esta chegava à sala de emergência do HG, sem que se considerasse a natureza ou os motivos para a crise, após exame superficial, era enviada, compulsoriamente, ao hospi-tal psiquiátrico (NORCIO, 2001).

A resposta às emergências psiquiátricas deve ser signi-ficativa, com prevenção e redimensionamento da própria situação, procurando por priorizar a prestação de melhores cuidados. O despreparo da rede de saúde mental, no aten-der ao sujeito de sofrimento psíquico em situação de crise, resulta na transferência e delegação dessa tarefa aos serviços de emergências psiquiátricas, fato que permite que a rede de saúde mental valorize o hospital psiquiátrico, pois esta não apresenta recursos substitutivos e profissionais habilitados na atenção à situação da crise psiquiátrica.

Torna-se comum observar redes de atenção à saúde mental reféns de emergências psiquiátricas, por não terem em suas estruturas órgãos de maior complexidade na atenção a estas crises, fortalecendo, assim, o fluxo de internamentos, sem terem controle desta porta de entrada, pondo em risco os preceitos da Reforma Psiquiátrica (JARDIM; DIMENS-TEIN, 2007).

6 Cidade do nordeste da Itália, no mar Adriático e comuna italiana da região do Friul-Vene Júlia, com cerca de 209.520 habitantes. Estende-se por uma área de 84,49km2 (ISTAT, 2015).

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A RASMF pode ser considerada uma dessas reféns, pois a porta de entrada das internações encontra-se centrada na úni-ca emergência psiquiátrica do Estado, HSMM. Segundo Bas-tos (2009) isso acontece porque o grupo conservador elabora estratégias para manutenção do sistema hospitalocêntrico, muitas vezes, não enfrentando o grupo transformador, mas, utilizando-se do poder cedido pelo município de Fortaleza – controle da porta de entrada para o sistema através de interna-ções psiquiátricas – para consolidação de prática reprodutora.

Porém, é facilmente observada, na rede de atenção à saú-de mental de Fortaleza, a lógica seletiva de organização de serviços, em que constantemente os serviços (Atenção Básica, Hospitais Gerais e CAPS) lançam mãos, por conta própria, do reenvio da demanda a outras estruturas assistenciais, des-responsabilizando-se e abandonando as situações e os usuá-rios considerados graves (NICÁCIO; CAMPOS, 2004).

Souza, Sales e Gomes (2011) referem que a sobrecar-ga de chamadas é facilmente encontrada em relatório diário do SAMU de Fortaleza e que o aglomerado encontrado no início de cada plantão se constituí em fator estressor aos pro-fissionais da unidade. As tensões diárias dessa atividade, os riscos físicos e psicológicos que provoca e os baixos salários ofertados pela área somam-se para contribuir com o déficit de profissionais disponíveis a trabalhar nessa atividade.

Ressalta-se que o processo de trabalho em saúde, no campo dos transtornos mentais, apresenta potencial risco de periculosi-dade e insalubridade e, mesmo expostos a esses riscos, os profis-sionais do SAMU de Fortaleza que trabalham com o sujeito em sofrimento psíquico não contam com gratificações adicionais. Outro fato constado pelo estudo foi a ausência de integralidade

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nos serviços de saúde, relato esse que caracteriza a desintegração da rede de assistência, além de sinalizar a sobrecarga e a difi-culdade no desenvolvimento das atividades devido à ausência e diminuição dos leitos psiquiátricos (SOUZA et al., 2011).

O estudo, ainda, evidenciou a necessidade de estabele-cer maior vínculo entre a equipe do SAMU e a RASM, pro-porcionando ampliação deste serviço de resgate e transporte dos sujeitos em sofrimento psíquico. No entanto, a reflexão extraída deste trabalho aludiu ao fato de que o sujeito em sofrimento psíquico continua segregado e excluído da rede de atenção à saúde, necessitando recorrer aos hospitais psiquiá-tricos para suprir angústias (SOUZA et al., 2011).

A restrição e ausência de respostas aos problemas e sofri-mentos dos sujeitos em situação de crise fazem com que as si-tuações de crise produzam a prova de realidade que o psiquia-tra precisa para funcionar enquanto médico, constituindo em doença mental a demanda que chega a ele, conduzindo e au-torizando internamento (JARDIM; DIMENSTEIN, 2007).

Enquanto a RASMF não implantar, no seu atual cená-rio de Reforma Psiquiátrica, novas composições e conexões entre os diferentes programas, ações e serviços das redes subs-titutivas, que sejam capazes de absorver o sofrimento físico, psíquico e sociocultural dos usuários envolvidos nesta rede, não conseguirão produzir respostas às situações de crise que possibilitem a superação da demanda de internação no hos-pital psiquiátrico (NICÁCIO; CAMPOS, 2004). Para isso, é preciso distanciar-se do discurso do fechamento do hospital psiquiátrico e partir para a implantação de dispositivos, como o CAPS tipo III e a emergência psiquiátrica do município, estruturas que ocuparão lugar estratégico nesse itinerário.

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Não se pode admitir a aflição do sujeito em sofrimento psíquico, os preceitos da reforma transformaram os modos de tratamento deste sujeito, cuja doença cede lugar ao cuidar do sofrimento do indivíduo e sua relação com o corpo social (CAVALHERI, 2010). Este foco pressiona os serviços a mo-dificarem sua forma tradicional de atender o sujeito, não se admitindo mais sua “redução à condição de objetos, ou de algo muito mais próximo ao estado de coisa do que de sujei-to” (CAMPOS, 1997, p. 243).

A precariedade na atenção ao sujeito em sofrimento psí-quico, no momento das crises, gera tensões nos integrantes do núcleo familiar. Isso faz a instituição familiar não se mos-trar favorável ao processo de desisntitucionalização, princi-palmente por não identificar aparato capaz de substituir os hospitais psiquiátricos, no momento das situações de crise dos entes.

Diante dessa situação, a rede de atenção à saúde mental deve proporcionar resolubilidade a esse problema, centran-do a atenção na integração do sistema de redes assistenciais. A instabilidade produzida pela rede extra-hospitalar no mo-mento da crise, resultante de despreparo institucional e pro-fissional, motiva o abandono do tratamento desses sujeitos, bem como a rápida cronicização das estruturas alternativas (DESVIAT, 1999). Todavia, pesquisas demonstram o reco-nhecimento valorativo da assistência extra-hospitalar.

... foi bom para a pessoa adoecida, mas não ne-cessariamente para eles. Além disso, apontam que, em muitos momentos se sentem solitários, desamparados, e sem ter a quem recorrer, pois, embora o serviço passe a ser referência para o

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sujeito e funcione ininterruptamente, não con-ta com todos os técnicos, em especial com o médico, durante 24 horas e nem em finais de semana e feriados (CAVALHERI, 2010, p. 55).

Evidenciam, também, a insegurança e a incerteza en-frentadas por familiares no momento que requerem atenção mais próxima, o que faz com que a figura do hospital psiquiá-trico não se apague da memória.

A família, primordialmente o cuidador, associa a extin-ção do hospital psiquiátrico à transferência de responsabilida-de, ordem, controle e verdade sobre a doença do familiar para si. Produzindo, assim, o enclausuramente deste ser, processo que se mostra calamitoso para quem cuida, pois o destitui de sua vida própria, o conduzindo ao padecer conjunto (CAVA-LHERI, 2010).

Portanto, a transformação tão esperada pela Reforma Psiquiátrica se concretizará no momento em que for garan-tida, ao familiar, que o doente terá retaguarda assistencial no momento da crise psíquica e que os serviços extra-hospitala-res se estruturarem para atenção do sujeito em crise ou croni-ficado. E, para isso, é preciso coragem, competência, audácia e ciência. É preciso arte, interdisciplinaridade e espírito de união para enfrentar o cuidado ao doente mental e à cuidado-ra (GONÇALVES; SENA, 2001).

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3 MÉTODO

3.1 Marco-conceitual: O pensamento da hermenêutica de Paul Ricoeur

Paul Ricoeur foi um dos grandes filósofos e pensadores francês, nasceu em 27 de fevereiro de 1913 e faleceu em 20 de maio de 2005. É através do método hermenêutico que ele inicia sua transição de pensamento, que o conduzira para transforma-ção da fenomenologia pura em fenomenologia hermenêutica, tendo como marco as concepções de símbolo e interpretação. “O símbolo é a mediação universal do espirito entre nós e o real; ele pretende exprimir antes de tudo a não imediatidade de nossa apreensão da realidade” (RICOEUR, 1977, p. 21).

No que concerne ao distanciamento, Barreto (1999, p. 110) alerta que “à medida que se interpreta, mais evidente se torna a necessidade de um maior distanciamento para uma compreensão mais ampla e maior aproximação da essência do texto interpretado”. Pois, o distanciamento conserva a subje-tividade do texto, mas confirma a finitude do existir.

O distanciamento não é uma imposição metodológica; ao contrário, é a possibilidade de o homem se conhecer e en-frentar ilusões em uma dialética de distanciamento da apro-priação. À medida que se distancia, sai do acidental, chega ao essencial (BARRETO, 1999). A apropriação ocorre quando o intérprete se apodera do significado de um texto, em que busca se apropriar das propostas de sentido, compreendendo e explicando o sentir contido no texto (BONA, 2010).

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Quanto à explicação e compreensão, Ricoeur (1989, p. 182) explica que:

A compreensão é, antes, o momento não metó-dico que, nas ciências da interpretação, se forma com o momento metódico da explicação. Este momento precede, acompanha, limita e também envolve a explicação. Em contrapartida, a expli-cação desenvolve, analiticamente a compreensão.

A explicação e a compreensão provocarão a oposição da obra de Ricoeur, a saber, a oposição entre explicação da natureza e a compreensão do espírito (BONA, 2010). Neste contexto, entende-se que não se objetiva compreender o dis-curso, mas sua significação, o seu sentir assim o “discurso (...) é realizado como acontecimento, mas compreendido como sentido” (RICOEUR, 1989, p. 116).

“O texto é um discurso fixado pela escrita” (RICOEUR, 1989, p. 141). Para Ricoeur, não existe diálogo no texto, não há troca, o leitor não responde para o autor e nem vice-versa. “Porque o texto é o discurso fixado pela escrita” (RICOEUR, 1989, p.142), para compreendê-lo, é preciso se colocar sob as leis da compreensão do outro que se manifesta no texto, pois, a interpretação não está no que foi dito no texto, mas, na com-preensão do outro que nele se expressa (RICOEUR, 1988).

Para que se alcance a essência desta compreensão, é pre-ciso que se distancie do texto e, assim, possa determinar a ob-jetividade do sentido que nele está contido. Logo, o homem somente consegue conhecer “a si mesmo através das suas ex-pressões e só pode enfrentar as suas ilusões numa dialética de distanciamento e apropriação” (BARRETO, 1999, p. 98).

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É a distanciação que a ficção introduzirá como forma de apreendermos a realidade. Essa distanciação proporcionará relação entre o afastamento e a aproximação desta realidade. Neste distanciamento proposto por Ricoeur (1989), o sujeito distancia-se do texto, libertando-se de ilusões e conceitos pré-definidos, conseguindo, assim, novas formas de compreender os objetivos do texto.

3.2 Trajetória da pesquisa e procedimentos

3.2.1 Cenários da pesquisa

O estudo foi realizado no município de Fortaleza-CE, centrado na Rede de Atenção em Saúde Mental (RASM), tendo como foco de produção dos dados o Sistema de Aten-dimento Móvel de Urgência (SAMU).

O município de Fortaleza foi criado em 1725, através de Carta Régia, e tem a denominação toponímia proveniente da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção. Encontra-se locali-zado no nordeste do Estado, apresenta clima tropical quente subúmido, com temperaturas em torno de 26º a 28º. A eco-nomia do município gira em torno da atividade de serviços, comércio, indústria e, nos últimos anos, do turismo. A cidade tornou-se um grande polo turístico, apresentando média de acréscimo no fluxo desse setor de 16,5% ao ano entre 1995 e 2000 e tornando-se um dos destinos turísticos mais procura-dos do Brasil, nos anos de 2004 e 2005, segundo a Associação Brasileira de Agentes de Viagem (ABRAV) (CEARÁ, 2010).

A sede do município segue divisão regionalizada reali-zada por meio da reforma administrativa promovida pela Lei

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8.000, de 1º de janeiro de 1997, que modificou a distribuição das atribuições e da administração pública municipal. Hoje, existem seis Secretarias Executivas Regionais (SER), que con-gregam 116 ou 117 bairros onde residem 2.447.409 habitan-tes (OLIVEIRA, 2011).

Figura 4 - Distribuição geográfica do município de Fortaleza-CE por SER.

Na área da saúde, o município encontra-se habilitado na Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde (GPSMS), pela Portaria nº1452/GM, de 13 de agosto de 2002, e é sede da Macrorregião Estadual de Saúde, sendo referência para di-versos municípios da região metropolitana e do restante do Estado.

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O Sistema de Saúde de Fortaleza é composto de 4.156 unidades, destas, 823 (18,8%) clínicas especializadas, 104 (2,4%) Unidades Básicas de Saúde e 47 (1,1%) hospitais especializados, destes últimos, cinco especializados em trata-mentos psiquiátricos (Tabela 1).

Tabela 1 - Tipos de Estabelecimentos de Saúde do município de Fortaleza cadastrados no CNES, em março/2015*. Fortaleza, CE, Brasil, 2012.

DESCRIÇÃO TOTAL %

CENTRO DE SAÚDE/UNIDADE BÁSICA 107 2,2

POLICLÍNICA 9 0,2

HOSPITAL GERAL 34 0,7

HOSPITAL ESPECIALIZADO 39 0,8

PRONTO SOCORRO ESPECIALIZADO 7 0,1

CONSULTÓRIO ISOLADO 3398 70,9

CLÍNICA/CENTRO DE ESPECIALIDADE 1009 21,0

UNIDADE DE APOIO DIAGNÓSE E TERAPIA (SADT ISOLADO) 72 1,5

UNIDADE MÓVEL TERRESTRE 2 0,0

UNIDADE MÓVEL DE NÍVEL PRÉ-HOSPITALAR NA ÁREA DE URGÊNCIA 31 0,6

FARMÁCIA 3 0,1

UNIDADE DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE 6 0,1

COOPERATIVA 22 0,5

HOSPITAL/DIA – ISOLADO 9 0,2

LABORATORIO CENTRAL DE SAÚDE PÚBLICA LACEN 1 0,0

SECRETARIA DE SAÚDE 8 0,2

CENTRO DE ATENÇÃO HEMOTERAPIA E/OU HEMATOLOGICA 2 0,0

CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 14 0,3

UNIDADE DE ATENÇÃO À SAÚDE INDÍGENA 2 0,0

PRONTO ATENDIMENTO 9 0,2

TELESSAÚDE 2 0,0

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DESCRIÇÃO TOTAL %

CENTRAL DE REGULACAO MÉDICA DAS URGÊNCIAS 1 0,0

SERVICO DE ATENÇÃO DOMICILIAR ISOLADO (HOME CARE) 2 0,0

CENTRAL DE REGULAÇÃO DO ACESSO 1 0,0

CENTRAL DE NOTIFICAÇÃO, CAPTAÇÃO DE ÓRGAOS ESTA-DUAL 3 0,1

TOTAL 4.793 100Fonte: Ministério da Saúde – Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil * Atualizado em: 24/03/2015

Como exposto, a Rede de Atenção em Saúde Mental do município encontra-se integrada ao Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza e conta com os seguintes aparatos assis-tenciais:

a) Catorze Centros de Atenção Psicossocial – serviços vol-tados ao atendimento da população com transtornos mentais do município. É distribuído pelas seis regionais administrativas da cidade, um CAPS geral e um CAPS ad por SER e ainda dois CAPS infantis que dividem o atendimento da cidade em dois grandes blocos;

b) Duas Residências Terapêuticas – espaços de moradia para oito pessoas que perderam ou não possuem mais vínculo familiar. Hoje, a RT tem possibilitado processo de resso-cialização e de resgate da cidadania;

c) Uma Emergência Psiquiátrica Especializada – no Hospi-tal Estadual (HSMM), que funciona como porta de en-trada das crises psiquiátricas;

d) Cinco Hospitais Psiquiátricos – ofertam a internação hospitalar em seus 1095 leitos, sendo 885 integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e 196 não SUS;

e) Nove Emergências Clínicas – em funcionamento nos Hospitais Gerais do município;

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f) Três Ocas Comunitárias – serviço que objetiva discutir e realizar, na comunidade, trabalho de saúde mental pre-ventiva e curativa, contando com massoterapia, argilo-terapia e Ofurô. Encontram-se instaladas nos bairros do Bom Jardim (SER V), Pirambu (SER I) e Conjunto São Cristovão (SER VI);

g) Dezesseis equipes de Apoio Matricial em Saúde Mental – serviço estruturado que objetiva assegurar retaguarda especializada a equipes de referência da Atenção Básica, de forma dinâmica e interativa;

h) Uma unidade básica do Serviço Móvel de Atendimento às Urgências e Emergências (SAMU) em saúde mental - ser-viço que oferta atendimento às crises psíquicas da comuni-dade fortalezense (FORTALEZA, 2010; BRASIL, 2011).

É importante ressaltar que a RASM de Fortaleza é ampla e diversificada. No entanto, a coleta de dados se concentrou no serviço móvel de urgência, por considerá-lo absorvedor dos po-tenciais participantes do estudo. Porém, não se anulou os demais serviços como potenciais fornecedores de sujeitos da pesquisa.

3.2.2 Sujeitos investigados

Os sujeitos da pesquisa (sete entrevistados) constituem uma amostra intencional que foi identificada e selecionada, tendo como fonte de referência principal a demanda daqueles usuários do sistema público de saúde em crise psíquica que utilizaram os serviços de urgência psiquiátrica do SAMU do Município de Fortaleza (seis sujeitos); embora, em alguns ca-sos específicos, tenham sido usados alguns espaços diferentes (dois sujeitos), conforme as redes esquematizadas.

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Figura 5 - Esquema de captação dos entrevistados.

Na formação dos dois grupos de entrevistados foram utilizados os seguintes critérios de inclusão e exclusão.

Quadro 1 - Critérios de inclusão e exclusão.

Critério de inclusão Critério de exclusãoFamiliar ou responsável pelo tratamento do sujeito em situação de crise, residente em Fortaleza.Sujeito com sofrimento psíquico residente em Fortaleza.

Sujeito sem condições emocionais e cognitivas de responder às questões da entrevista.

Para organização dos critérios de inclusão, foram prio-rizados os familiares de sujeito com sofrimento psíquico que passaram por situações recentes de crise com o familiar, o que facilitou a narrativa do fato. Em relação ao sujeito de sofri-mento psíquico, a prioridade foi para aqueles que receberam cuidados de saúde mental e que os familiares participaram do estudo. Isto facilitou o contato, pois havia sido estabelecido vínculo com o familiar.

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3.2.3 Técnicas e questões norteadoras para busca das nar-rativas

Em busca da melhor forma de reconstituir as histórias de crise vivenciadas pelos sujeitos da pesquisa e de obter am-plas narrativas destes momentos, optamos pelo referencial teórico-metodológico estruturado na história oral temática que, consoante Meihy e Holanda (2010), consiste em prá-ticas de apreensão de narrativas realizadas por meio do uso de recursos eletrônicos e destinadas a recolher testemunhos, promover análise de processos sociais do presente e facilitar o conhecimento. História Oral, como metodologia, divide-se em três ramos: a história oral de vida, a tradição oral e a histó-ria oral temática (MEIHY; HOLANDA, 2010).

História Oral de Vida (HOV) foi idealizada por W.O. Thomas e F. Zananiecki, em 1927, na Escola de Sociologia de Chicago. Trata-se de narrativas dos fatos da vida que depen-dem da memória, dos ajeites, dos contornos, das derivações, imprecisões e até das contradições naturais da fala (MEIHY; HOLANDA, 2010). Para isso, a HOV estabelece o propósito de fidelidade de experiências e interpretações do sujeito sobre seu mundo; o entrevistador, como captador destas experiên-cias, deve estabelecer medidas para assegurar que o narrador relate informações necessárias, sem que fatos sejam omitidos e que estes sejam checados e confirmados através de documen-tos ou informações de outros sujeitos (HAGUETE, 2003).

Com objetivo de captar o relato mais fidedigno do nar-rador, o entrevistador deve proceder como estimulador ao depoente, deixando-o em total liberdade de expressão para que possa relatar a experiência pessoal vivenciada. Agindo desta forma, o entrevistador conseguirá recuperar informa-

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ções não registradas de outra forma e constituir visão do todo; esta totalização pode ser obtida de forma única, através do confronto entre a experiência vivida e os questionamentos do entrevistador (HAGUETTE, 2003).

É importante evidenciar que o entrevistador oral é algo mais que um coletador de gravações. Geralmente, passa a assumir papel ativo na pesquisa. Este tipo de ação pode ser demonstrado na tradição oral, que estabelece como forma de captação o viver junto aos informantes-chave, estabelecendo condições de apreensão dos fenômenos, de maneira a favo-recer o conhecimento do universo dos pesquisados, apresen-tando como complexidade o reconhecimento do outro nos detalhes autoexplicativos (MEIHY; HOLANDA, 2010).

O adentrar na realidade do sujeito torna a tradição oral difícil, intrigante, mas bela, pois não se limita a encontrar o sujeito e aplicar-lhe a entrevista, mas busca conviver com o grupo de entrevistados, “estabelecendo condições de apreen-são dos fenômenos de maneira a favorecer a melhor tradução possível do universo mítico do segmento” (MEIHY; HO-LANDA, 2010, p. 40).

Por esse motivo, a tradição oral toma mais tempo do en-trevistador, além de exigir conhecimento aprofundado do ob-jeto de pesquisa, estabelecendo a necessidade de compreender a conjuntura cultural do espaço da pesquisa. Portanto, a com-plexidade da tradição oral se estabelece no reconhecimento do outro e em seus detalhes autoexplicativos de sua cultura. Ricoeur (1989) afirma que a narrativa pode ser mediadora entre a experiência vivida e o discurso proferido, superando, assim, o distanciamento entre o explicar e compreender.

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Os relatos orais englobam explicitamente a experiência subjetiva do narrador, podendo repousar em testemunhos ocu-lares, boatos ou em uma nova criação a partir da diversidade de textos orais existentes. Este fato foi considerado limitação des-te método, mas, atualmente, essas histórias são reconhecidas como virtude da história oral, já que para entender o passado, é necessário construir, processar e integrá-lo à vida dos indiví-duos (FERREIRA; AMADO, 2006; ZERBO, 2010).

A individualização dos relatos orais conduz à terceira metodologia da história oral, a história oral temática, que se apresenta com caráter social e conceitual, centrado no teste-munho e na abordagem de um recorte temático, admitindo e utilizando questionários que promovam as discussões especí-ficas sobre um assunto (MEIHY; HOLANDA, 2010).

A possibilidade de gerar políticas públicas inovadoras e a necessidade de trilhar um percurso metodológico, que proporcione contemplar a relevância social da temática em estudo, reconhece na história oral temática o método ideal para este estudo. Para isso, alguns pontos nortearam a escolha da história oral temática como metodologia. Inicialmente, a possibilidade de fornecer voz a pessoas e/ou setores despreza-dos, seguido da proposta de relevância social, a qual define a situação de um grupo em determinado local e em um acura-do tempo (MEIHY; HOLANDA, 2010); e, finalmente, por acreditar que a narrativa histórica de uma patologia envolve pluralidade de ações, fatos e acontecimentos marcantes na vida do indivíduo e familiar que a vivencia.

O caráter eminentemente social, desenvolvido pela história oral temática, possibilitou o confronto das narrativas dos sujeitos da pesquisa com as políticas públicas implantadas pela Rede de

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Atenção em Saúde Mental (RASM) de Fortaleza para atenção ao sujeito de sofrimento psíquico em situação de crise. A centrali-zação em um único foco, no caso, a situação de crise, concorreu para obtenção de um esclarecimento deste ou forneceu suporte para identificar o sofrimento psíquico enfrentado por usuário e família na busca por um cuidado à situação de crise.

A narrativa dessa peregrinação, através da história oral, conduziu ao âmbito subjetivo da experiência humana, parte central desse método, possibilitando esclarecer as nuanças da vida de sujeito em sofrimento psíquico, em situação de crise, e de familiares, identificando as limitações produzidas pela doença e as dificuldades encontradas na busca pelo tratamen-to (FERREIRA; AMADO, 2006).

A entrevista, como ferramenta da história oral, foi a es-tratégia escolhida para apreender as narrativas dos sujeitos. As entrevistas junto ao corpus, formado por familiares e sujeitos em sofrimento psíquico, constituíram a documentação oral desta pesquisa (MEIHY; HOLANDA, 2010; FERREIRA; AMADO, 2006).

Ferreira e Amado (2006) definem corpus como um gru-po de pessoas que se dispõem a depor sobre um determinado tema. Para constituição do corpus foi preciso o estabeleci-mento de relações de confiança entre o narrador e o pesqui-sador. Nesta pesquisa, o processo dialógico se colocou como fundamental para o estabelecimento da confiabilidade entre os sujeitos, facilitando, assim, a coleta das informações.

As entrevistas, como estratégia da história oral, foram gravadas, sendo solicitado o consentimento para utilização do meio eletrônico (gravador). Para constituir as entrevistas, ti-vemos dois roteiros de perguntas semiestruturadas (Apêndice

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A e B). Foi lido e explicado aos sujeitos o Termo de Consenti-mento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual foi assinado, como forma de assegurá-los da confidencialidade e privacidade das informações. Utilizamos os codinomes Gregos - Geia, Orfeu, Íris, Hera, Héstia, Afrodite e Atena - como forma de preservar o anonimato dos sujeitos.

As gravações tornaram-se o ápice desta pesquisa, uma vez que materializaram a informação, mas a apreensão da narrati-va conseguida no estudo somente foi possível devido à escolha do corpus, pois o caráter testemunhal definiu a qualidade do dossiê documental que obtivemos. A partir desta qualidade, é possível compreender a conjuntura da vida social dos sujei-tos em sofrimento psíquico em situação de crise (ONOCKO; CAMPOS; MIRANDA, 2008; STRAUSS, 2008).

3.2.4 Análise e interpretação das experiências

Neste estudo, a compreensão das experiências ocorreu a partir do referencial metodológico de Ricoeur (1989), que con-sidera a compreensão como ordenação do enunciado narrativo e, quando esta estrutura organizacional não se estabelece, não é possível compreender a narrativa, requerendo explicação. Assim, deve-se ter um olhar desde a explicação à compreensão, isto é, quando não compreendo espontaneamente, solicito explicação.

Com o propósito de proporcionar a compreensão do contexto narrativo, a análise, como compreensão ingênua, torna-se compreensão esclarecida, através da explicação (RI-COUER, 1989). A explicação, no campo do sofrimento psí-quico, é mais subjetiva do que nos demais campos de pesqui-

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sa. Geralmente, estudos neste campo vão além do compreen-der, pois, intentam transformar realidades.

De posse das narrativas, optamos por utilizá-las em sua totalidade, pois consideramos que, dessa forma, contribuiria para refletir a realidade dos relatos. Antes, realizamos a trans-crição literal das narrativas tais como foram gravadas. Na se-gunda etapa, realizamos o que Meihy (1998) denomina de textualização, organizando a narrativa, suprimindo as pergun-tas e dando-lhe sentindo a partir de uma frase de destaque surgida durante a entrevista. Na terceira etapa, realizamos a transcriação, redigimos as narrativas com pequenas interferên-cias do autor como forma de organizar um sentido ao texto.

Os dados de identificação e as impressões sobre a con-dição da entrevista, que constam no início de cada narrativa, foram resultantes das anotações realizadas no diário de cam-po, registro procedido antes de iniciar a entrevista e logo após terminá-la. Hesitamos em categorizar os resultados obtidos nas narrativas desde o início da análise dos resultados, con-tudo era necessário permitir que as narrativas falassem por si, em vez de aplicar sobre os dados um conjunto de conceitos ou categorias predeterminadas (TERTO JÚNIOR, 2000). A partir desta conjuntura, resolvemos correlacionar as narrati-vas coletadas e traçar dimensões comuns na problemática da situação de crise psíquica, capazes de fornecer suporte à pro-blematização proposta pelo estudo.

A compreensão profunda das experiências desvelou os núcleos de sentidos que foram utilizados na organização dos resultados da investigação apresentados posteriormente, quais sejam: itinerário terapêutico e suas diversidades; o cuidado e suas dimensões na perspectiva da família em relação à rede assistencial; o porvir: a visão do familiar e do sujeito em crise.

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3.2.5 Narrativas e produção textual

Inicialmente, procuramos efetivar o processo de tex-tualização e transcriação das narrativas dos sete entrevistados desta pesquisa, objetivando contextualizar descritivamente o fenômeno estudado através das percepções dos próprios su-jeitos entrevistados. Esta apresentação se encontra disposta em duas partes: na primeira parte consta o nome fictício que identifica o narrador, seguido de dados gerais elaborados a partir da entrevista e das notas de campo. Procuramos, de forma sucinta, relatar as impressões marcantes que ocorreram durante o encontro, na tentativa de situar o leitor.

A segunda parte caracteriza-se pela utilização de uma frase que caracteriza de alguma forma o narrador ou a situa-ção por ele vivenciada, seguida da entrevista transcriada na ín-tegra. Buscamos conservar termos e características linguísticas típicas da região para não perder a originalidade.

3.2.5.1 A história de Geia7

3.2.5.1.1 Contexto e caracterização

Geia, 37 anos, nascida em Fortaleza, casada, dois filhos, formada em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC), tem como ocupação os afazeres do lar e vive com renda média de dois salários mínimos. Residente no bairro Jockey Clube, que compõe a Secretaria Executiva Regional III. O filho encontrava-se doente há seis anos, tinha 14 anos.

7 Deusa da terra, a mãe terra. Mãe geradora de todos os deuses. Aqui representa uma mãe que deseja ver seu filho bem e ter uma vida normal (GRAVES, 2008).

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No contexto da doença, foram seis internações e diversas si-tuações de crises psíquicas.

A entrevista foi realizada em duas seções, com média de 50 minutos cada. O primeiro contato com Geia ocorreu na Câmara Municipal de Fortaleza durante audiência pública que debatia a situação da rede de saúde mental de Fortaleza. Geia, neste dia, dirigiu-se à tribuna e fez um relato emocio-nante do seu sofrimento com as situações de crise vivenciadas com o filho. Após sua fala, aproxime-me, mantive o primeiro contato e convidei-a para participar da pesquisa. De pronto, ela se colocou à disposição.

A primeira entrevista ocorreu no Centro de Atenção Psi-cossocial infantil da SER III, local onde o filho fazia terapia. Na narrativa, Geia tomou a iniciativa de relatar sua história, então, somente me restou ligar o gravador e escutá-la. Esta nar-rativa foi a mais longa dos dois encontros que tivemos, quando ela iniciou com sua identificação e relatou sua história de vida. Este relato, em alguns momentos, foi carregado de emoções. A entrevistada não apresentou dificuldade alguma de relatar sua história, ao contrário, foi um relato rico de detalhes. Nesse dia, a entrevista foi encerrada pelo retorno do filho da terapia. Tive a oportunidade de constatar a dificuldade que Geia tem em contê-lo, colocando-me à disposição para levá-los até a parada de ônibus, o que enriqueceu minhas observações.

Mesmo dispondo de diversidade de narrativas, percebe-mos a necessidade de um segundo contato, o qual foi marcado com a mesma receptividade e ocorreu no hall de um hospital psiquiátrico de Fortaleza, pois o filho havia apresentado mais uma crise psíquica que o levou a hospitalização. Nesse dia, Geia se apresentou sofrida e cansada; como na primeira entre-

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vista, ela foi logo relatando todo o sofrimento vivenciado na última situação de crise. Porém, nesta entrevista intervi mais do que na primeira, devido à situação que se apresentava. Mas, as intervenções não foram prejudiciais à coleta da narrativa, pelo contrário, foram estimuladoras de relatos ainda inéditos.

3.2.5.1.2 A narrativa

Meu filho nunca precisou ser contido por eles, por-que quando eles chegam à crise já passou.

Assim que soube que estava grávida, eu namorava o pai dele, nós não vivíamos juntos. Ele tinha terminado o namoro, então eu fui contar e ele aceitou muito mal, ele me tratou mal, não quis assumir, não quis reatar o namoro, então na-quele momento foi um momento de crise para mim.

O rompimento não veio da gravidez, veio por outros motivos, mas eu não sabia que estava grávida. Eu comecei a perceber nele atitudes muito esquisitas, ele era uma pessoa que tinha ideias meio nazistas, assim, tipo: “Para acabar o sofri-mento dos africanos é preciso exterminá-los”, “Eles vão mor-rer e não vão mais ficar sofrendo”. De início, quando eu ouvia isso, eu achei que era brincadeira, não levava a sério de forma nenhuma. Era universitário, fazia mestrado e gostava de be-ber, só pode estar bêbado para dizer uma coisa dessas, mas em outras ocasiões, ele dizia outras coisas também. Por exemplo, que era fã de Friedrich Nietzsche, o filósofo, ele estava certo, os fortes tinham que dominar os fracos, haveria que ter uma supremacia de uma raça superior. Eu comecei: “Esse cara é maluco, eu acho que eu vou terminar esse namoro”.

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Eu não sabia como dar esta notícia para os meus pais, porque eu tinha vinte anos, filha única e isso gerou em mim um desespero. Então, eu acho que todo este desespero passou para o feto. Foi um dia muito difícil na minha vida. Neste dia, eu tomei um grande porre, quase entro em coma alcoólico, desmaiei, fiquei vendo tudo preto, escuro, baixou a glicose, baixei a pressão, eu fiquei muito fria, muito gelada. No dia que contei para ele que eu estava grávida. Eu já deveria estar perto de um mês de gravidez. Depois desse primeiro momen-to difícil, eu fiquei em casa, os meus pais me aceitaram, não me colocaram para fora de jeito nenhum, eles me amavam, só que eu entrei em depressão, não tinha vontade de comer, eu vomitava muito, já por conta da gravidez. Não tinha vontade de fazer nada, eu só queria dormir, eu não queria sair, eu não queria que as pessoas me vissem, eu não queria conversar com ninguém. Algumas vezes passou pela minha cabeça algumas ideias suicidas... assim tipo enfiar uma coisa, um prego dentro de uma tomada.

Mas, ao mesmo tempo, a minha mãe estava perto de mim, me apoiava. Mas eu não tomei nenhum tipo de remé-dio. No pré-natal, ela contou para a médica sobre a minha depressão e a médica disse que não acharia conveniente eu tomar antidepressivo na gravidez. Então eu tive que supor-tar os seis meses de gravidez com depressão. Por mais que eu quisesse reagir era difícil, eu não conseguia dormir direito, tinha pesadelos. Só aceitei meu filho depois de três meses de nascido, tinha que amar esse filho que tinha nascido. A minha família fez um chá de bebê para mim, para me animar.

No dia do nascimento, eu não estava sentindo uma dor na unha. O médico tinha feito um ultrassom no dia anterior,

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numa sexta-feira, era um médico de confiança da minha mãe e ele disse assim: “Olha, vamos fazer logo esse parto, porque ela já está uns dez dias antes, - isso era dia 11 de agosto e esta-va previsto para 18 de agosto - vamos fazer logo esse parto, é um sofrimento sem necessidade!” Porque eu estava urinando muito, a bexiga baixa, dor nas costas e a barriga muito grande para meu tamanho. No dia seguinte, eu fui sem sentir nada, ele fez um parto induzido, mas normal e foi o que me pre-judicou, porque era para ele ter feito cesariana. Ele botou o soro que eu ia sentir contração, então, quando deu meio-dia, antes da hora que ele foi almoçar, ele estourou a bolsa e disse que quando ele chegasse do almoço, eu já estava próxima de ter o nenê. Só que eu não estava próxima, eu fui até 17:15, eu fiquei sem a água na bolsa, sentindo contrações e sangrando, sentindo muita dor. Um assistente dele fez o meu parto.

Meu filho foi crescendo e aprendeu a mamar, ele mama-va bem, ele se alimentou bem, ele pegou logo peso, ele ficou bem gordinho. Mas ele era assim, ele não era igual aos outros porque ele era muito calmo. Quando ele tinha assim uns sete meses, por exemplo, ele começou a assistir televisão, a gen-te o botava no carrinho de frente para televisão e ele ficava olhando para televisão, e ele não reclamava de ficar olhando a televisão. Não queria sair ou ir para o meu braço ou para o braço da avó e a vizinha achou isso estranho. O tempo foi passando e ele não falava, ele andou com um ano normal, andou... mas ele não falava, ele fez dois anos e ele não falava... ele dizia cinco palavras, ele dizia tudo com bobo, bobó, que era vovô e vovó.

Não me chamava de mãe, não chamava mamãe, às ve-zes ele esboçava alguma coisa chamando, era baú, que era

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mingau, aba que era água, e eu acho que ele me chamava de nenê. Eu ficava dizendo: “Mas esse menino já está andando, correndo, e ele não fala, ele só fala cinco palavras. Tem meni-no de dois anos que já está contando uma história!” Mas as pessoas falavam assim: “Ele vai falar, não se preocupe!” Passou um ano, ele fez três anos, eu resolvi botar ele no maternal, ele já falava mais um pouco, mas não muita coisa... ele não dizia uma frase, ele dizia só as palavras que ele queria dizer, ele dizia: “Coca-cola”, “Bife”, “Me dá”, “Eu quero!”. Com três anos, ele não dizia uma frase, dizia uma palavra por vez. Levamos para o maternal, escolinha particular. Na primeira semana, a diretora me chamou, ela disse: “Olha mãezinha a sua criança é um pouco diferente dos outros. Primeiro que ele não fica na salinha do maternal, ele sai correndo, ele não quer brincar com as outras crianças, ele vai para um canto e fica com um brinquedo só para ele e ele não está fazendo nenhu-ma atividade, de pintar, de usar a massa de modelar, nada”.

Disseram que eu o levasse na neuropediatra. Quando eu o levei para essa primeira consulta, ele era muito inquieto, muito hiperativo, ele não ficava no meu colo, ao contrário de quando ele era bebê, depois de dois anos, ele ficou o opos-to de quando ele era bebê, ele ficou super agitado, ele não dormia de noite, a gente, revessava eu e a minha mãe, para ver se ele dormia, ele tinha insônia, ele queria passar a noite brincando ou cantando, fazendo barulhos, menos dormir. A gente, então, fazia chá de camomila, chá de erva doce, suco de maracujá, e não sabia o que fazer para o menino dormir direi-to. Falei com a médica, mas como ele só fazia quatro anos em agosto, ela disse: “Vai remarcar essa consulta”, e me indicou o Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) para fonoau-

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diologia. Eu fui e comecei a fazer o tratamento dele de fala e quando ele fez quatro anos eu retornei na médica e ela passou ritalina8, meio comprimido por dia e pronto. Tomando meio comprimido por dia ele ficou estranho, ele ficava babando, ele não falava direito, a minha mãe dizia que ele estava grog, a gente usou ainda umas quatro caixas até voltarmos na dou-tora e dissemos que ele tinha ficado um pouco mais quieto, mas que a gente não estava satisfeito com a maneira que ele estava. A doutora disse: “Mas o remédio para a hiperatividade é esse, se vocês não estão satisfeitas, então vocês procurem ou-tro profissional!”. Nós procuramos, começamos a ir no Albert Sabin, ele começou a ser consultado lá. Eles tiraram a ritalina e ele passou a tomar benerim em gotas. Coloquei no Jardim I depois, mas foi a mesma coisa, as mesmas reclamações na escola, que ele não interagia com os meninos, de que ele deu chute na caixa de som que estava para as crianças ouvirem música, de que ele mexia no som onde as crianças ouviam CD infantil, que ele era um transtorno para a escola toda, de que ele subia escada e não tinha quem segurasse ele. Eu resolvi tirar ele da escola regular e botei no recanto psicopedagógico com cinco anos. Aí ele ficou dos cinco aos seis anos no Recan-to Pedagógico. Eu comecei a ver uma melhora significativa na fala, ele aprendeu a falar tudo, ele falava muito bem, ele aprendeu a ler.

Quando meu filho fez seis anos, minha mãe morreu e ele teve uma regressão enorme. Ele queria a minha mãe todo 8 Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH): O TDAH era anteriormente conhecido como distúrbio de déficit de atenção ou disfunção cerebral mínima. Ritalina é indicado como parte de um programa de tratamento amplo que tipicamente inclui medidas psicológicas, educacionais e sociais, direcionadas a crianças estáveis com uma síndrome comportamental caracterizada por distratibilidade moderada a grave, déficit de atenção, hiperatividade, labilidade emocional e im-pulsividade. O diagnóstico deve ser feito de acordo com o critério DSM-IV ou com as normas na CID-10 (BRASIL, 2010).

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dia e não chorava, não chorava, mas demonstrava que algu-ma coisa muito ruim estava acontecendo, então ele pegava às vezes um garfo e pinicava a parede para ver se caia o reboco, ficou mais hiperativo ainda, ficou mais difícil ainda de lidar com ele. Uma vez ele pegou uma faca e fez assim, apontou a faca para mim, a faca da cozinha desse tamanho, aí meu pai tomou logo dele, ele dizia: “Olha isso aqui não é brinquedo, isso aqui é perigoso, corta o dedo sai sangue”. Foi difícil para ele aceitar que a minha mãe tinha morrido, eu dizia que es-tava no céu. Ele queria subir na árvore, na goiabeira, porque eu acho que na cabeça dele ele queria chegar perto do céu e eu tinha medo que ele caísse, então a vida ficou muito difícil.

Nesse período, eu tinha passado no vestibular e então, o coloquei em uma escola próxima da Universidade Federal do Ceará (UFC). Nessa mesma escola que ele estuda hoje, o Centro de Defesa da Criança e Adolescente (CEDECA), assim eu ia para UFC e ele ia para escola e a gente estava no mesmo horário. Lá ele desenvolveu uma escrita que dava para entender, uma escrita de letra de forma, mas que dava para entender, ele fazia as tarefas. De vez em quando é que ele en-louquecia, como por exemplo, um dia que choveu, ele tirou a farda e ficou pulando no meio da chuva. Ele não quis obe-decer à professora de jeito nenhum, a pessoa se agarrava com ele para vestir o calção dele, mas ele empurrava. Entendeu?! Tinha força, ele já tinha uns sete para oito anos. Quando eu cheguei lá, ele estava encharcado. Ela disse: “Olha, foi muito difícil hoje, ele não quis sair da chuva de jeito nenhum, não quis vestir o calção de jeito nenhum, empurrou as professo-ras, e se agarrou com a gente, e deu chute na canela, e aí está ele molhado”.

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Então resolvi pagar uma consulta numa psiquiatra, uma psiquiatra infantil. Ela fez uma anamnese bem feita, uma con-sulta de uma hora quase, ela ficou primeiro comigo, depois ficou mais de meia hora sozinha com ele. Propôs várias coisas, desenhos, um monte de teste e ela disse que ele era autista com toda certeza, sem sombra de dúvidas, ele era autista, por tudo que eu contei. No primeiro momento, eu fiquei triste, mas fiquei feliz por já ter certeza do que ele tinha. Ela disse que uma vida normal... normal não, mas ele poderia ter uma vida próxima do normal, ele poderia até quem sabe terminar os estudos. Ela disse que existiam autistas que conseguiam terminar os estudos, e que existiam autistas que conseguiam trabalhar, desde que fosse um trabalho bem focado. Ela me deu essa esperança! Eu saí de lá meio triste, arrasada. Ela disse que é a genética, a pessoa já nascia assim, como poderia rever-ter uma doença que já vinha nos cromossomos?

Depois desse quadro da infância, ele começou a piorar, ele começou a ficar agressivo. Por volta dos 10 anos, ele... ele pegava o cabo de vassoura e batia no meu pai e saía até sangue às vezes. O meu pai batia nele de cinturão, eu batia nele de cinturão para ele entender que ele tinha que ter limites, para ele entender que não podia fazer isso com o vovô e que ele tinha que respeitar o vovô e a mamãe, mas só que ele ficava mais agressivo ainda, entendeu. Então ele começou a quebrar as coisas dentro de casa... ele quebrou uma cadeira de plásti-co, arremessou a cadeira contra um muro, ele quebrou um som, eu lembro que ele, nessa época tinha 10 anos... era um som portátil que ele quebrou.

O meu pai ficou muito preocupado, porque como é que vai ser daqui para a frente? Esse menino tem 11 anos, esse me-

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nino já tem a força de quebrar uma televisão de 14 polegadas, esse menino arranca a borracha da geladeira, quebra a porta do armário, quebra a maçaneta da outra porta, dá chute nas portas e quando ele ficar adolescente, quando ele ficar maior, como vamos contê-lo? Nesse período, ele estava tomando a medicação Risperidona9 e frequentava a Casa da Esperança10.

Meu pai morreu em 2007, ele tinha feito 12 anos, então ele piorou ainda mais, apresentando uma crise mesmo feno-menal. Quando ele voltou do velório do meu pai, ele que-brou tudo, ele pegou um armário, ele tacou no chão, tinha vidros... ele pegou um balcão maior que era mesa, arrastou e começou a tirar os compensados. Eu nunca tinha visto ele assim, eu chamei os vizinhos e eles seguraram ele. Mas, eles também ficaram assustados, porque a gente sabia que ele era um menino que quebrava as coisas, mas não nesse sentido de destruição total.

Eu o tranquei no quarto e ele ficou chutando a porta do quarto, chutando, chutando, chutando, então foi um dia dificílimo para mim. No dia seguinte, eu abri o quarto de

9 Risperdal é indicado no tratamento de uma ampla gama de pacientes esquizofrênicos, incluindo: - a primeira manifestação da psicose - exacerbações esquizofrênicas agudas - psicoses esquizofrê-nicas agudas e crônicas e outros transtornos psicóticos nos quais os sintomas positivos (tais como alucinações, delírios, distúrbios do pensamento, hostilidade, desconfiança), e/ou negativos (tais como embotamento afetivo, isolamento emocional e social, pobreza de discurso) são proeminen-tes. - alívio de outros sintomas afetivos associados à esquizofrenia (tais como depressão, sentimen-tos de culpa, ansiedade). - tratamento de longa duração para a prevenção da recaída (exacerbações agudas) nos pacientes esquizofrênicos crônicos. Risperdal é indicado para o tratamento de curto prazo para a mania aguda ou episódios mistos associados com transtorno bipolar I. Risperdal é in-dicado para o tratamento de transtornos do comportamento em pacientes com demência nos quais os sintomas, tais como agressividade (explosão verbal, violência física), transtornos psicomotores (agitação, vagar) ou sintomas psicóticos, são proeminentes. Risperdal também pode ser usado para o tratamento de irritabilidade associada ao transtorno autista, em crianças e adolescentes, incluin-do sintomas de agressão a outros, autoagressão deliberada, crises de raiva e angústia e mudança rápida de humor (BRASIL, 2010).10 A Casa da Esperança é uma fundação que atua no atendimento integral e na defesa dos direitos de pessoas com transtornos do espectro autista. Nosso trabalho é reconhecido nacionalmente, e já colaborou com centros internacionais de pesquisa e atendimento (DOURADO, 2013).

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novo porque eu queria pelo menos varrer, tirar os bagulhos, enquanto existia uma coisa que lembrasse meu pai, ele não parou de destruir, ele só parou quando não tinha mais nada, só a parede e a janela. O quarto ficou com dois armadores, a parede a janela e as telhas. As lembranças que tinha, ele destruiu tudo... televisão ele quebrou quatro televisores, toda hora, de repente do nada, ele rebolava a televisão no chão, quebrava a televisão. Eu não tinha uma grade para botar, hoje eu tenho. Isso ocorreu durante o ano de 2008.

Não o internei, eu achava que ele era muito novinho, tinha 12 anos, quando ele teve essa crise. Eu o levei até a mé-dica, ela prescreveu três novos medicamentos: Risperidom, três vezes ao dia, e 40 gotas de Neozine11 de manhã, 40 gotas de Neozin de tarde e noite. Mas não tinha jeito, continuaram as crises e foi a primeira vez que eu chamei uma ambulância para ele tomar uma injeção, porque estava de uma manei-ra destruindo tudo. Ele estava tentando arrancar a porta do banheiro, ele já tinha 13 anos, ele conseguiu arrancar uma porta, deixar só os pedaços, entendeu? Então estava de uma maneira assim impressionante. Ele subia em cima de uma pia e pulava, sabe, para ver se a pia desabava no chão. Quando o SAMU chegou lá, ele não estava mais quebrando, porque estava suado e exausto. Ele fez muita força para arrancar essa porta, então ele não tinha mais força, ele já estava sentado no chão suado, sujo, nu e comendo as coisas que tinha dentro da geladeira, ele estava quieto, estava exaurido, quando cheguei lá, eu apenas banhei ele, vesti e levei-o. Não deu trabalho ne-nhum para entrar na ambulância, aí a gente o levou ao hos-pital de Messejana, foi a primeira vez que eu pisei no hospital

11 Apresenta um vasto campo de aplicação terapêutica. Está indicado nos casos em que haja ne-cessidade de uma ação neuroléptica, sedativa ou antálgica (BRASIL, 2010).

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de Messejana para dar uma injeção. Nesse dia, eu estava cho-rando, aflita, sem saber o que fazer, porque eu nunca imaginei que ele chegasse a tanto, aí ele tomou uma injeção e foi para o Mira y Lopes e ficou na intercorrência clínica, com 13 anos.

A maior dificuldade em cuidar dele é porque ele já é um adolescente e quando está em crise é muito forte, ele é pesa-do, é alto e eu sempre necessito da presença do meu esposo na hora da crise. Eu não posso contar com a presença dele o tempo inteiro. Então, ele faz coisa arriscada, põe a vida dele em risco: ele corre, atravessa em frente de carro, de ônibus, ele foge de casa, ele me agride fisicamente. Ele rasga as coi-sas, destrói móveis. Faz várias coisas perigosas. A dificuldade é contê-lo, segurá-lo para ele não se machucar, não machucar a mim. Como conter se ele é um rapaz e eu ainda sou uma pessoa frágil, pequena, eu não consigo. Então, já pensou se o Estado pagasse, para essas determinadas pessoas, um cuida-dor, para que você pudesse ter mais esse suporte domiciliar. Seria muito melhor, a gente não precisaria estar internando a pessoa o tempo todo, a gente poderia cuidar da pessoa em casa, se houvesse um cuidador, alguém que fosse, ficasse na sua casa, por um determinado período, te ajudando. Na hora de uma crise, o rapaz o conteria, o segurava. A última crise começou, ele já vinha há vários dias fazendo coisa que não deveria, ele, na segunda feira, vou fazer um retrospecto, na segunda feira, ele chegou da Casa da Esperança e ele saiu cor-rendo, atravessou Avenida Lineu Machado, que já é um risco muito grande e foi correndo até a casa de um amigo meu, que ele sabe que lá tem palmeirinha que ele gosta. Ele invadiu a casa e destruiu o jardim inteiro da pessoa. A esposa do meu amigo estava lá, ele trabalha na Casa da Esperança, por sorte

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ele sabe. Ele não ficou chateado, mas se fosse um estranho, ele teria chamado o Ronda, porque ele quebrou um jarro de cimento enorme, ele destruiu todas as plantas, ele arrancou tudo com os dentes, as mãos. E eu não sabia como fazer para ele parar... então, consegui, com muito custo e com a ajuda da esposa (do dono da casa), que ele saísse e levei-o para casa. Na terça feira, ele também tentou fugir de casa e destruiu alguns objetos em casa. Rasgou roupa, rasgando a camisa de malha dele e tudo mais, mesmo assim a gente ainda conseguiu que ele fosse para Casa da Esperança. Na terça feira, ele chegou a rasgar o banco do transporte escolar com uma mordida, na quarta-feira, eu fui com ele para evitar isso, fui e voltei com ele no transporte escolar. Assim que o rapaz o desceu de dentro do carro, que eu abro a casa e coloco a bolsa dentro, ele saiu novamente pelo portão, atravessou avenida e foi nova-mente quebrar todos os galhos, árvores que ele encontrou na rua Goiânia, que é a minha rua, aí eu peço ajuda a um amigo na rua, ele me dá uma corda, então eu amarro as pernas dele para ele não correr e também amarro a mão dele com a camisa dele. Você vê? É muito constrangedor, você ter que amarrar seu próprio filho e sair amarrado com ele pela rua. Só assim consegui chegar a casa com ele.

Quando cheguei a casa com ele, ele foi arrancar um ga-lho e bateu na minha mão aqui... que arrancou um pouco a pele do meu braço. Ele chegou em casa muito agressivo, ele me chutou, chutou meu joelho, ficou arrancando meu cabe-lo, puxando meu cabelo. Aí eu resolvi desistir, desistir de ficar perto dele, porque eu vi que ele ia me machucar. Eu desço as escadas, aí ele pega a cômoda e tenta arremessar a cômoda escada abaixo, para ver se a cômoda pegava em mim. Chamo

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a ambulância, chamei o SAMU. O SAMU demora muito... demorou quatro horas. Como é apenas uma ambulância, que é um caso até de denúncia, então não pode uma cidade como Fortaleza com mais de dois milhões de habitantes ter apenas uma ambulância psiquiátrica, então a espera é enorme. Se um sujeito em crise matar uma pessoa, quando a ambulân-cia chegar vai estar só o cadáver, não vai mais dar tempo de fazer nada, porque eu chamei a ambulância uma hora e eles chegaram às quatro e meia da tarde, quatro horas depois que eu chamei. Quando eles chegam... meu filho nunca precisou ser contido por eles, porque quando eles chegam a crise já passou. Aí ele entra bem, é bem atendido pelos rapazes lá da ambulância e tal, até eles conversam comigo e tal, já me conhecem, mas se houvesse mais ambulâncias teria um aten-dimento melhor porque não é possível uma pessoa esperar quatro, cinco, seis horas por um atendimento. O atendimen-to é prejudicado pela falta de ambulância.

Nós fomos com ele para Messejana, é mais outra espera grande, que eu tive que dormir no chão, muita humilhação, as pessoas têm que dormir no chão, inclusive uma pessoa lá dos funcionários molhou o chão sabendo que as pessoas esta-vam dormindo no chão. Eles não têm respeito pelas pessoas. As pessoas estão ali humilhadas, realmente necessitando da-quele atendimento, se submetem a essa coisa degradante, de ficar no frio, no chão sujo, tem que se submeter ou então ficar a noite inteira sentada numa cadeira até de manhã.

Eu acho que os fatores que dificultam os atendimentos na própria Casa da Esperança, ou no CAPS quando ele fazia, ele precisa muito desenvolver a comunicação, ele precisa de um atendimento “fonoaudiólogico” bom, e ele não tem. Se

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ele conseguisse expressar mais o que ele quer, o que ele deseja, ele diminuiria as crises. Como ele não consegue dizer o que ele quer, ele fica nervoso. Isso também faz com que ele fique nervoso, então se ele tivesse um atendimento, ele precisava fazer uma hora de fono praticamente todos os dias para ele conseguir se comunicar, era o primeiro passo, porque, antes quando ele era pequeno, ele conseguia falar direito e a gente conseguia entender o que ele queria, a partir de uns dois anos para cá vem perdendo a condição de dizer as palavras, ele não abre direito mais a boca, ele fala entre os dentes, muito difícil. Como eu não consigo compreender, eu tento compreender, mas às vezes nem eu consigo, que sou a mãe, imagina os ou-tros, aí ele surta, também quer falar e não consegue ser ouvido.

É tudo muito deficiente, porque não há, por parte de nenhum desses lugares, empenho. Não quero ver esse sujeito melhor, eu quero ver ele se desenvolvendo. O que eu tenho de crítica em relação, por exemplo, a Casa da Esperança onde ele está agora, eles têm muito mais empenho com as crianças pe-quenas. Eu acho que dá até para entender, a criança pequena tem mais progresso, eu entendo isso. Então ele que já tem 16 anos, eles não se empenham tanto, então tem um empenho maior em cuidar dos pequenininhos, dar mais assistência aos pequenos e naqueles meninos que mostram que tem a capaci-dade de escolarização é feito um trabalho melhor com eles. O meu filho aprendeu a ler e escrever com quatro anos, hoje em dia ele está regredindo nesses processos porque ele não está tendo uma ajuda. Eu tento, me esforço, eu até tentei matricu-lar ele numa escola regular para ver se lá ele melhorava, mas como ele sempre está em crise, fica difícil levar ele, a escola não vai compreender o problema dele.

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A escola não aceita um aluno especial. É lei, mas eles, também, não vão conseguir conter ele numa crise. Aqui, por exemplo, aqui nem se fala, aqui o pessoal tem que se virar sozinho (hospital). O sujeito que não tem um acompanhante, ele está meio que jogado à própria sorte... claro, tem a alimen-tação garantida e tal, o banho e tudo mais, mas assim, a gente não vê um trabalho de terapia ocupacional regular com eles. A gente não vê, é a sexta vez que eu estou no hospital, eu sei como é que é. A gente não vê um empenho de uma psicóloga querendo saber a história deles, para ver se dá um jeito de melhorar eles. O que a gente vê é que aqueles sujeitos que têm família próxima têm mais um cuidado, mas aqueles que não têm família, são abandonados.

Minha opinião é que precisa de uma série de coisas para melhorar. Primeiro, o CAPS deveria funcionar para esses su-jeitos o dia inteiro, era um CAPS que deveria ter tempo inte-gral, que eles pudessem ser atendidos por vários profissionais, psicólogo, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo e ter um médico, claro, um médico é importantíssimo também para acompanhar a medicação. Que eles pudessem chegar oito ho-ras da manhã e vir para casa às cinco horas da tarde, era o ideal, eles almoçariam no CAPS entendeu? Teriam reuniões regulares com os familiares para explicar como lidar com eles em casa. E nesses casos que o sujeito tivesse apresentando um quadro muito difícil, ter um cuidador que pudesse ir até a casa da pessoa quando ele não pudesse ir, eu não posso levá-lo de ônibus quando ele está assim. Ele faz uma loucura dentro do ônibus também, dentro de qualquer lugar ele pode fazer. Então, nesses casos que eu não posso levar, ter uma pessoa que fosse até a minha casa, ter um terapeuta ocupacional que

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fosse até a minha casa atendê-lo. Aí quando ele estivesse me-lhor, voltaria para essa rotina dele. A Casa da Esperança dis-ponibiliza o serviço de tempo integral, mas tem que ser pago e é caro, é um salário mínimo para cima e nem todo mundo pode. Eu já pago trezentos reais de transporte escolar, porque o Estado não disponibiliza, por exemplo, o transporte escolar para as pessoas que não têm condições de ficar pagando o transporte para levar para o tratamento. Se você não pode pagar ou levar de ônibus, você não leva, você fica em casa.

Então, seria isso, uma atenção maior, um cuidado maior, junto com a família. Não dá para você dizer que uma pessoa vai melhorar se ficar uma hora, uma vez por semana, ela não vai melhorar, ela vai continuar do mesmo jeito. E no hospital, contratar mais pessoal para atender, porque são muitos e eles não têm uma equipe que dê para atender tantos. Não dá para fazer uma coisa personalizada porque são muitos sujeitos, e no hospital, para ter um maior cuidado, uma maior atenção para saber a história deles, para ver se existe uma recuperação, porque é só dar remédio, comida e ele ir pra casa.

A gente vê muita reincidência... ele vai, vai para casa, está mais estabilizado, daqui a um mês ou dois ele volta, então fica nesse vai e volta o tempo inteiro. Não seria melhor fazer um trabalho para que ele ficasse muito mais tempo em casa e pou-cas vezes no hospital, o hospital ser realmente uma emergência. Para certas pessoas, o hospital é a casa deles porque eles pas-sam muito mais tempo no hospital do que em casa. Ás vezes, a família nem quer mais eles em casa. Eu conheço uma mãe, claro que não vou dizer quem é, que o filho dela está aqui. Ela interna o filho dela desde os 12 anos de idade. Ele tem trin-ta e tantos... Naquela época não existia Estatuto da Criança e

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do Adolescente, podia fazer isso, ela interna o filho dela desde criança, praticamente, porque ela não pode, não tem condições de cuidar. Ele já não tem mais como ficar em casa, ele já não se habitua a ficar mais em casa. Então existe uma série de coi-sas que tem que mudar: mais ambulâncias, pelo menos umas quatro, para fazer esse transporte para levar para Messejana e em Messejana, as pessoas não terem mais que dormir no chão, que é absurdo a família ter que passar por isso; mais vagas, mais leitos hospitalares, e mais cuidados mesmo. Ver eles como seres humanos e não como uma subpopulação. Eu vejo alguns aqui de uma forma tão massacrada, doente, magro, que eu comparo eles com aqueles judeus no campo de concentração, sabe? A aparência física deles, é tão maltratado de uma maneira que você pensa: “Não é possível, eles não são tratados feito gente!”

Olha, sinceramente, é triste eu dizer isso, mas eu acho que é uma esperança em Deus, porque eu não vejo nesse tra-tamento uma melhora nele não, do jeito que está hoje eu não vejo. É triste dizer isso porque eu queria muito viver numa casa com meus móveis, minha cama direitinho, com tudo direitinho, sabe? Eu queria ver meu filho bem. Eu queria ter uma vida digamos quase normal, porque é difícil você dizer vida normal com uma pessoa com transtorno, é muito difícil, mas uma vida próxima à vida que as outras pessoas têm, eu não tenho essa vida, eu durmo no chão porque ele não deixa eu ter uma cama. Então eu vejo pouca esperança, do jeito que está hoje, eu não vejo muito jeito não, sabe? Eu tenho pena de dizer que eu agora posso estar com ele no hospital, porque ele é menor de idade e quando ele ficar de maior, eu vou ser obrigada a deixar ele sozinho, vou ser obrigada a vê-lo apanhar dos outros, acontecer uma coisa de ruim com ele, até

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um estupro de um sujeito com outro, que acontece isso, in-felizmente. Eu vou ver meu filho nesse estado. Eu não queria ver ele nesse estado, eu queria ver tudo diferente, por isso que eu estou no movimento Crítica Radical porque eu acredito que um dia, não agora, mas haverá a sociedade de emanci-pação humana, se a gente não conseguir lutar por ela hoje, a gente não vai vê-la construída daqui a 20, 30 anos. Então eu já estou lutando por isso hoje, fazendo minha parte e só tem um jeito mesmo, é acabar com o sistema capitalista porque do jeito que está, não tem como ficar.”

3.5.2.2 A história de Íris12

3.5.2.2.1 Contexto e caracterizaçãoÍris, 57 anos, casada, dois filhos, ensino médio comple-

to, do lar, com renda média de um salário mínimo. Residente no bairro Colônia, que compõe a Secretaria Executiva Regio-nal I. É responsável pela sua irmã há 25 anos, mesmo tempo de sua doença. Durante este período da doença, foram mais de 15 internações, sendo uma por ano.

Íris foi identificada através das chamadas do Serviço Móvel de Urgência e Emergência (SAMU) e sua escolha ocorreu pela quantidade de chamadas realizadas a este serviço. Mantive conta-to com Íris via telefone, quando ela iniciou, ainda por esse meio do telefone, a relatar suas angústias. De forma delicada, consegui

12 Íris, a deusa mensageira, sempre pronta para transmitir mensagens dos deuses aos mortais. Descia suavemente através do arco-íris que ligava o céu a terra. Representa na tese a irmã revoltada e mensageira de um serviço sem resolutividade. As ambulâncias são mostradas, mas quando a gente precisa é dificuldade toda. Eu não tenho nada a dizer por isso, porque não adianta...(GRAVES, 2008).

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marcar um encontro pessoalmente e desligar a chamada, mas no dia agendado, não consegui comparecer. Mantive contato com Íris, novamente, e ela me informou que sua irmã se encontrava em crise e que ainda não havia conseguido ambulância.

Nesse dia, comentei que trabalhava na Secretaria Muni-cipal de Saúde de Fortaleza (SMS) e ela solicitou que eu fosse para ajudá-la. Na semana seguinte, liguei para Íris e agendei a realização da entrevista. Neste dia, compareci e tive dificulda-de em identificar a residência da entrevistada. Depois de um tempo, encontrei-a e vale este relato, porque, no contexto da narrativa, essa localização terá muito influência no relaciona-mento das redes sociais que Íris tem. A casa fica atrás de outra residência, como fosse o quintal da casa da frente.

A recepção não foi das mais calorosas, percebi que Íris estava com um tom agressivo e grosseiro. Ela relatou logo de cara que o sistema de saúde não era eficiente e que trazia mui-tos transtornos. Depois de conversamos por alguns minutos, ela concordou em gravar a narrativa.

Quando iniciei a gravação, apareceu um senhor de idade mediana, que me pareceu sob efeito de álcool e começou a criticar o procedimento. Referiu que não passava de enrolação e que era coisa política - infelizmente, o período político elei-toral encontrava-se em pleno desenvolvimento. Depois destas intercorrências, consegui iniciar as entrevistas.

Íris relatou com facilidade o quadro psíquico de sua irmã, mas, por mais de uma vez, a entrevista foi interrompida pelos filhos e neto. Como a entrevista foi realizada na casa de Íris, isso atrapalhou bastante, mas foi possível perceber como a família sofre a influência da doença do ente querido.

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3.5.2.2.2 A Narrativa

O que eu queria saber, já até perguntei para o médico, doutor, porque ela tomando o remédio ela entra em crise?

Bom, no começo não era muito ruim cuidar dela porque ela me obedecia. Eu dizia faça isso, vá dormir, vá tomar banho e ela ia. Mas, agora, ultimamente, de uns quatro para cinco anos, ela não me atende mais... ela está agressiva comigo, ela salta na minha cara. Um dia desses ela tacou a bacia na minha cara, quebrou meu nariz... que eu mudei até os óculos. Ficou isso aqui meu todo dolorido. Por esse motivo, eu a deixo pas-sar a semana sem tomar banho, porque não posso obrigar, ela me agride. É muito difícil, muito difícil mesmo. Tem hora que a gente pensa até em abandonar, mas, como vai aban-donar... vou deixar esta criatura morrer no meio da rua? Não tenho coragem, tenho que enfrentar e aguentar até o dia que Deus quiser.

Eu cuido dela há uns 20 anos. No começo, ela sempre ia passar o final de semana na casa dos irmãos, mas, ultima-mente, ela estava se perdendo e não acertava voltar. Então, eu insisti e ela aprendeu meu endereço. Quando ela se perdia, ela chegava para as pessoas e dizia que estava perdida, queria voltar para casa, que morava na Colônia, na Rua Francisco Colaça, o povo dava dinheiro para ela pegar o ônibus, a bo-tava no ônibus e mandava ela descer na igrejinha. Mas, da última vez, ela se perdeu, ela não conseguiu voltar, passou quatro dias fora. Andei procurando tudo, fui aos CAPS, li-guei para Messejana, já estava certa de ir até lá e dar uma busca. No hospital de Messejana, a assistente social que me

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atendeu disse: “...a senhora vem amanhã que vamos resolver este problema”. Quando foi no outro dia, ela apareceu, sem nada mais apareceu ali. Tinha sofrido um acidente, mas ela não me contou como foi o acidente. Ela disse que fumou um cigarro, segundo ela um baseado, e passou mal, acharam ela para as bandas de Maracanaú. Por lá levaram ela no hospital e não fizeram nada, só deram o remédio para dor, ela disse que estava com dor de cabeça.

Eu sei que a bichinha chegou com as costas toda arra-nhada, o braço arranhado, arrancado o pedaço, o tornozelo, sabe, toda ferida. Eu perguntei, ligamos para lá, minha filha foi lá, conversou com eles lá, eles disseram que aparentemen-te, ela estava bem. Ninguém fez nada não, só fez dar um re-medinho para dor e deixaram ela repousando. Vieram deixar em casa, quando foi com dois dias, ela começou a sentir dor de cabeça, chorava com dor de cabeça. Eu levei para o Frotão, deixei chegar o dia de levá-la ao Centro de Atenção Psicos-social (CAPS), porque ela faz um tratamento lá e tinha que levar ela lá, se não ela perdia a consulta. No dia que eu levei ela para o CAPS, eu peguei um táxi e levei-a até o Frotão. Cheguei lá, deu traumatismo crânio encefálico (TCE). Ela estava com o olho todo roxo, ela ficou uma semana interna-da, passou três dias lá e veio terminar o tratamento aqui no Fernandes Távora, porque o médico neurologista trabalhava aqui e era pertinho da minha casa. Ela passou uma semana lá e ficou boa. Graças a Deus!

Nesta última crise, eu a internei ontem. Deste problema que ela teve, ela nunca mais ficou boa. Só que as crises dela sempre eram assim, mas, desta vez, foi pior e eu internei. Saí na segunda feira de madrugada, porque os vizinhos chama-

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ram a polícia, porque ela estava desesperadamente gritando, ultimamente ela só faz gritar, ela não chora. É tipo chorando, mas não sai uma lágrima, é só grito e falando que os tara-dos tão transando com ela e começa a gritar. Ela começou a gritar, o vizinho chamou a polícia, quando eles chegaram conversaram comigo. Contei a história, que já tinha tentado a ambulância e não tinha conseguido, disseram que estava na fila de espera. Eu ligava para lá e ela me dizia que tinha vá-rios na minha frente, eu fiquei esperando, até o dia de chegar minha vez. Só que neste dia, ela foi demais, ela gritou dia e noite, o vizinho foi e chamou a polícia. Não foi por maldade não, chamou para ver se eles resolviam como de fato, graças a Deus, resolveu.

Chegaram, conversaram comigo, eu contei a história, eles ligaram para a ambulância, num instante a ambulância veio, duas horas da madrugada. Passei o resto da manhã to-dinha lá em Messejana... quando no dia seguinte, às 11 horas da noite, ela foi internada. A gente vai para Messejana porque lá é tipo um anexo, vai e fica aguardando a vaga, aí eu fiquei aguardando esta vaga de madrugada, o dia todinho e quando deu dez horas da noite ela saiu de lá, eu sei que o internamen-to dela foi feito mais de onze e meia, terminado lá vou eu saindo para pegar ônibus no meio da rua, sozinha. Eu estava na João Pessoa, que é ali no São Vicente de Paulo, sem conhe-cer nada. Ela foi para lá de Kombi, que foi cheia de sujeito.

Antes de interná-la, eu fui falar com a assistência social para conseguir uma vaga para falar com o médico, eu fui à médica dela lá do posto que era aqui na Álvaro de Lima, mas, agora mudou lá para o Carlito. Falei com a doutora, contei todo o problema dela, ela mudou o remédio. Mudou para

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Risperidona, começou a tomar Risperidona e não deu certo, ela continua do mesmo jeito, ela tomou quatro meses: janei-ro, fevereiro, março, abril. Quando foi agora, no começo do mês, no mês passado, fim do mês passado de julho de 2012, eu fui de novo porque tinha um médico lá, botaram um mé-dico plantonista. Este médico é para atender estas pessoas, graças a Deus. Muito bom o médico, muito bom mesmo, eu falei com ele, contei o problema todinho e ele mudou o re-médio dela para um Olanzapina13, pronto, mas também não deu certo. Então, comecei a ligar para ambulância, porque eu não queria levá-la para internar, porque eu sei o sofrimento, eu sei como é. Só levo quando ela fica sem comer e sem tomar o remédio. Como ela estava... eu estava aguentando os gritos delas, os estresses dela, porque eu sabia que era da doença. Mas, mesmo assim não consegui. Por fim, ela já não estava mais comendo, dizia que eu colocava comida para ela em um prato de defunto. Não estava mais tomando banho, porque a roupa também era do meu irmão que morreu e eu dei para ela. Tudo coisa da cabeça dela, aí foi o jeito internar. Mas eu só interno no último caso.

Liguei para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgên-cia (SAMU). Ficou a dificuldade para conseguir esta ambu-lância. Acho que demorou uns quinze dias. Uns 15 dias da primeira vez que eu liguei. Porque é tipo assim, ela queria que a gente ligasse todo dia. Só que é aquela coisa que às vezes você fica com abuso, que dá é desgosto, a gente pensar que vai ouvir a mesma coisa. Olhe, ligava de manhã, eles diziam assim: ligue à tarde, quando eles mandavam ligar à tarde, eu

13 Esquizofrenia e outras psicoses que apresentem delírios, alucinações, hostilidade e  isolamento emocional (MOMENTO TERAPÊUTICO).

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não ligava, ligava no outro dia, entendeu. Eles diziam: “Ligue à noite!” Eu ficava comigo: “Se ligam de dia eles não vem, a noite é que eles não vêm mesmo!” Eu desistia de ligar, eu nunca liguei à noite, eu já tenho levado ela à noite, mas sabe como eu levo? Tinha um rapaz que é primo do meu marido que trabalha no SAMU, ele é motorista e ele conseguia, falava com o médico lá e conseguia a ambulância. Era assim.

Mas, eles mesmos não mandavam o socorrista não. Vi-nha o motorista. Uma vez veio o motorista e uma enfermeira, eles me deram aquela... aquele bichinho para conter o sujeito. Eles ficaram olhando, eu pedi, me ensinem pelo menos como é que a gente faz. Ela estava lá na rua, não a deixei nem entrar no portão, para exatamente facilitar para eles... uma criatura, ela é magrinha, ela não mete medo em ninguém. Ela só é estressada com a gente, porque é da família. Ela não agride ninguém de fora não, aliás agride, mas com palavras, ela só agride a gente. Deram-me estas ataduras para colocar nela, mas eu não consegui... começou a me agredir, tive ajuda da minha sobrinha, minha cunhada, um policial que mora aqui e meu filho para poder conter ela, e eles olhando lá, porque se eles tivessem chegado, conversando direitinho, ela tinha ido. Esta foi a penúltima crise dela.

Nessa última foi numa boa. A polícia veio, falou comi-go, eu contei a história, contei todinha, aí eles solicitaram o SAMU. O SAMU veio rapidinho, disse que tinha três ocor-rências, mas não deu para ele atender três ocorrências não, porque deu meia hora, eles chegaram. O rapaz ligou, eu acho que era uma hora, antes das duas horas chegaram. Ela estava do lado de fora, porque quando ela começa a se estressar, ela abre a porta, pode ser a hora que for, de madrugada, duas,

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três horas. Ela abre a porta e fica rodando os quintais, por isso incomoda os vizinhos. Ela abre a porta e fica gritando no quintal, eu fecho tudo para ela não entrar e não se esconder debaixo das coisas, porque a menina já tinha ligado para am-bulância, só que ela não tinha ligado para ambulância, tinha ligado para polícia. Eu a deixei no quintal e fui lá falar com a polícia, eles ligaram e ambulância veio.

Quando eles chegaram, quando a moça chegou, eles fi-caram com medo. A gente vê mesmo na televisão que eles so-frem atentado, os sujeitos os agridem e eles ficam com medo. Mas eu disse que eles poderiam ir que ela não fazia nada. Só que ela estava atrás das pedras, tinham umas pedras ali atrás. “Vixe, mas junto com as pedras?” Não, podem ir que eu ga-ranto que não faz nada não. Ela faz comigo, mas com vocês ela não faz não, mas eles tiveram medo. Eu disse: “Deem-me uma lanterninha porque lá é escuro, a gente vai!” e fui na frente, cheguei lá, ela quis me agredir e eu disse: “Calma ninguém vai fazer nada com você, tenha calma, saia daqui”. Ela começou a me esculhambar, querendo pegar em um pau, sabe? Mas, se a gente ficar com medo é pior, eu não tenho medo dela, eu não tenho, porque eu sei que ela não vai fazer nada comigo, mas a gente nunca sabe, mas eu tenho confian-ça. Aí, quando eles viram que ela não era tão agressiva, eles chegaram, se aproximaram e disseram, vamos. Ela disse: “Vou não, vou não, podem ir embora que eu não vou!”. “Vamos, não vamos fazer nada com você, vamos para o médico”. Pe-garam na mãozinha dela e ela foi numa boa, amarraram as ataduras e foi tudo numa boa mesmo.

A família é meio incompreensiva, eles se estressam, re-clamam, não dão muita atenção a ela. Ela não aceita que nin-

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guém converse com ela, a gente vai conversar com ela: “O que foi tia?”, meu filho vai perguntar, ela responde: “Não quero conversar contigo!” e começa a chamar palavrão, a gente tem de sair de perto e isolar ela, entendeu? Se a gente tenta conver-sar, ela acha ruim e chama palavrão com a gente, esculhamba a gente e se a gente não conversa, ela reclama: “Vocês não ligam nem para mim. Não prestam nem atenção quando eu estou chorando”. Se a gente comentar que ela esculhamba, a situação piora. A gente tenta isolar porque é isso que é melhor para ela e para a gente. Pode não ser para ela, mas para a gente é o melhor.

As meninas do CAPS vêm aqui e lá no CAPS ela é bem tratada. Não tenho o que reclamar do CAPS. As meninas todo mês vêm dar uma injeção nela, a enfermeira veio, eu marquei uma consulta com este médico que chegou lá. Elas vieram buscar ela na Kombi, ela é bem tratada lá, ela é que não gosta de ir, não gosta de fazer a terapia, não gosta nada disso. O que eu queria saber, já até perguntei para o médico: “Doutor, por que ela tomando o remédio e entra em crise?” Mas ninguém me responde e nem eu sei o porquê. Porque ela toma, eu sou consciente que eu dou o remédio, eu a vejo tomando e ela entra em crise. Eu não sei por quê. Só que depois que ela entra em crise, ela só fica boa se ela se internar. Não fica boa às minhas custas, quer dizer, eu ajudando aqui em casa, só se for ao hospital.

Uma coisa importante que eu vejo atualmente são as formas de assistência dos hospitais, quando o sujeito melhora um pouco, eles jogam para casa, teve uma vez que fizeram isso com ela, ela melhorou um pouquinho e botaram para casa. Passou foi tempo para ela ficar boa. Não sei o que poderia ser

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feito, mas isso aí eu acho um ponto muito negativo, porque, às vezes, a pessoa não está completamente boa. Ontem mes-mo eu vi uma menina lá que estava de alta, a menina toda impregnada, de olho duro, eu pensei que ela estivesse se inter-nando, ela estava saindo. Inclusive ela morava até no interior, estava tentando fazer uma ligação para conseguir chamar o carro de lá, foi a maior burocracia.

Do CAPS eu não tenho muito que reclamar, porque o CAPS é que está me ajudando da maneira que eles podem. O difícil é porque tem muita gente, mas sinceramente, eu não tenho o que reclamar do CAPS. O médico custa muito a ver o sujeito, a última consulta dela foi marcada com oito meses, quer dizer, vai ser em dezembro ainda, mas na hora que a gen-te precisar do remédio, a gente vai falar com o outro médico, só que o outro médico não pode fazer nada. Para a gente con-seguir falar com o médico da pessoa, a gente tem que marcar uma consulta extra. Para isso, você marcar uma consulta com a assistente social, vai dizer tal dia, vai lá fala com a doutora, quando é que a senhora pode atender, ela marca para tal dia. Eu acho as consultas de lá e os retornos muito prolongados. Se o sujeito tiver em crise, amanhã e a gente chamar vamos ao médico? Eu não posso fazer isso, entendeu? Eu vou receber o remédio, é um remédio que passa com a assinatura dele, mas ele não pode mudar nada. Nem o horário do medicamento eles podem mudar. Só quem pode é o médico do sujeito e isso está certo. Só que eu acho que, como eu lhe disse, o retorno é muito demorado.

Última consulta dela foi trinta de três e o retorno está marcado para dezessete do doze. No dia trinta tem uma con-sulta extra que eu pedi e depois só em dezembro. Fazendo as

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contas do mês de abril são oito meses. Não tem condições! Não era assim, o máximo entre as consultas eram de três me-ses. Aí passou para quatro, passou para cinco e está assim ago-ra. Ela tentou fazer terapia, mas ela não quer, foi uma única vez e não quis mais ir. Ela diz: “Não vou, eu não sei de nada, eu sou burra”. Eu digo: “Não, mulher, mas vamos ao menos para se divertir. Tu fica lá e eu fico contigo”. Só uma vez que ela foi. Está aqui o remédio que ela está tomando olonzam-pina, quinze miligramas não, alguém deve ter botado errado, porque ela recebe uma caixa com dez miligramas. Estou com a receita aqui, mas ela recebe outra caixa com cinco miligra-mas, são quinze no total. Ela toma dez miligramas durante a manhã e cinco à noite e à noite toma mais dois Haldol de cinco miligramas, não serve de nada, é mesmo que tomar um copo d’água. Não dorme um cochilo ontem ela passou o dia todinho em pé lá no hospital, passou a manhã, a madrugada e o dia em pé, eu não sei como é que ela aguenta.

No hospital, a assistente social pega os dados, faz algu-mas perguntas e anota lá, depois a gente vai para o médico. Fui bem tratada e ela tomou uma injeção e logo ela melho-rou comigo, ela se acalmou, ficou minha amiga, conversou comigo. Mas, o estresse dela com esse negócio de gritar, de chorar não passaram, ontem até a hora dela se internar não tinha passado. Comigo ela já está numa boa, já tinha passado a raiva de mim.

Eu acho o seguinte: que mesmo que eu tenha alguma coisa a dizer, não vai adiantar nada. Porque nós não somos maioria e a gente fala, fala, porque o que a gente vê na tele-visão são as ambulâncias sendo mostradas e os anjos da noite socorrendo não sei quem. E quando a gente precisa é uma di-

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ficuldade toda, eu não tenho nada a dizer por isso, porque não adianta nada. Bem que eu teria, mas eu não vou dizer, porque não vai adiantar, não vai adiantar o meu pedido, bem que eu queria dizer “Faça isso, eu gostaria que fizesse assim”, porque não adianta. Inclusive eu até me estressei com o senhor, mas é porque faz raiva mesmo, a gente está precisando de uma coisa e não ser atendido. Eu teria bem o que dizer mesmo, mas dei-xe para lá, não adianta, não vou reclamar porque não adianta.

3.5.2.3 A história de Orfeu14

3.5.2.3.1 Contexto e caracterizaçãoOrfeu, 31 anos, solteiro, graduado em Letras, fala qua-

tro idiomas, é professor de línguas. Tem uma renda média de quatro salários mínimos, reside sozinho no bairro Damas, Secretaria Executiva Regional IV. É responsável pela irmã que apresenta transtorno bipolar e vem apresentando crise cons-tante há quatro anos.

O contato com Orfeu foi através do relatório do SAMU e a sua receptividade à pesquisa nos facilitou coletar sua narrativa. No momento do contato, sua história mereceu atenção, pois relatou que não era uma única irmã e sim duas. Comentou que as duas irmãs moravam sozinhas e que uma cuidava da outra.

Retornei à ligação e agendei a entrevista que ficou mar-cada para uma tarde, lembro que Orfeu relatou que deveria

14 Orfeu, poeta e médico. Era o poeta mais talentoso que já viveu. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para escutar e os animais selvagens perdiam o medo (GRAVES, 2008). O entrevistado era um sujeito estudioso, graduado em Letras, poliglota e professor de línguas.

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ser na hora exata, pois seria no intervalo de suas aulas e que teríamos duas horas para a conversa. A primeira dificuldade encontrada foi na localização da residência de Orfeu. Ao che-gar, fui bem recebido, preparei tudo para começar e iniciei a coleta da narrativa.

Orfeu, como professor e estudioso, colocou-se à disposi-ção para relatar tudo novamente, pois não consegui captar os detalhes relatados no primeiro momento. Tudo transcorreu normalmente e como Orfeu foi bem disponível, solicitei que fizesse o contato com sua irmã para que eu coletasse a narra-tiva da mesma e tudo ocorreu bem.

3.5.2.3.2 A narrativa

Eu prefiro acreditar não numa cura completa, mas no tratamento com a família.

Eu lembro que desde pequena, entre cinco e dez anos, ela já apresentava algumas anomalias em termos de compor-tamento. Ela nunca foi uma criança totalmente carinhosa ou afetuosa, quando a gente levava à escola, ela não admitia de forma alguma que ninguém pegasse na mão dela para atra-vessar a rua ou para caminhar nas avenidas mais perigosas. Ela sempre demonstrava ter uma aversão, nojo, dos irmãos ou da mãe, não queria que ninguém pegasse na mão dela ou tocasse nela. Até mesmo quando minha mãe demonstrava um carinho, pegava no cabelo dela, ela sentia nojo, corria onde houvesse água para se lavar e isso foi ficando cada vez mais comum.

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Quando maiorzinha, entre 12 e 14 anos, ela começou a demonstrar que era intolerante a qualquer tipo de ruído ou conversa, não suportava escutar a voz de algumas pessoas da família, ela se incomodava. Quando ela estava no quarto dela e tinha alguém conversando na sala, ela começava a bater na parede com o pé, com a mão, seja com o que fosse, para que parasse de falar. Neste mesmo período, ela desenvolveu um problema na coluna vertebral, apresentou um desvio forman-do tipo um `S´ e uma das minhas irmãs, que hoje mora fora, foi quem fez o acompanhamento de todo o tratamento dela sobre esta questão. Ela tinha muita vergonha deste problema, porque era algo que a gente percebia. Ela já tinha consciência que não haveria solução, poderia melhorar um pouco, mas não tinha solução e que ela ficaria com o tronco um pouco atrofiado. E isso a deixava com uma vergonha muito grande. É tanto que quando o médico falou que o problema dela era quase sem solução, ela ficou insistindo para fazer uma cirur-gia. Ele disse que era possível, mas era de muito risco e que talvez, mesmo com a cirurgia, ela não ficasse totalmente re-cuperada, totalmente perfeita. Mas, ela insistia e o problema se agravou porque ela conseguiu uns três aparelhos para usar, mas nunca usou o aparelho de forma correta. Isso era uma coisa que me incomodava muito, ela terminava de tomar ba-nho, se vestia e não botava o aparelho. Ela queria brincar, correr, como toda criança, queria se divertir, queria brincar, andar de bicicleta, subir no muro, pular, mas ela não podia, ela tinha que ter todo esse acompanhamento. Precisava usar o aparelho direto, mas ela nunca usou nenhum dos três que ela conseguiu, então o problema dela se agravou muito. Hoje, ela tem o tronco muito atrofiado, devido à questão da coluna.

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O desenvolvimento do problema dela atual ocorreu de-pois dos 16 anos de idade, quando ela já era uma mocinha mesmo e tinha esse problema, eu acredito que esse problema da coluna afetou muito também. Apesar de outros proble-mas, para mim é como se fosse um somatório de problemas que foram se acumulando e teve um estopim. A primeira crise ocorreu com 16 anos, nesta época, a minha mãe e minha irmã a levaram para a igreja, apelaram primeiro para a questão da religião. Ela, desde a primeira crise, é uma sujeita que tinha alguns momentos de violência, sendo necessário levá-la ao hospital, mas ela não passou por internamento na primeira crise, foi só medicada.

Nas últimas crises, as características apresentadas foram bem semelhantes, sendo que nas duas últimas, ela não foi tão violenta como as do meio do processo. Como a família é grande, cada um acredita numa forma de tratar particu-lar, uns acreditam mais na questão da religiosidade, apelaram para fé e para o exorcismo, outros acreditavam mais no tra-tamento da saúde, através da medicação, acompanhamento e internamento. Já no meu caso, eu prefiro acreditar não numa cura completa, até porque eu acredito que o problema tam-bém seja genético pelo fato de ter uma avó e um primo que têm o mesmo problema. Mas, eu acredito no tratamento com a família. No momento de crise de violência, acredito que seja necessário tomar uma medicação para se acalmar, mas eu não acredito na questão da recuperação completa e, também, não acredito no tratamento com internação, no isolamento.

Ela já fez um tratamento no Centro de Atenção Psicos-social (CAPS), mas resolveu abandonar o tratamento. Como minha mãe deixou a casa, não conseguiu mais lidar com a si-

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tuação, porque ela já é uma pessoa de idade, ela ficou morando com minha irmã, que também tem problema, mas, resolveu não tomar mais nenhum medicamento. Ela fazia o acompa-nhamento, mas, resolveu desistir por conta própria. Ela é uma que inicia muitas coisas e não termina, como: curso de idio-mas, pré-vestibular, até mesmo trabalho, ela já trabalhou. Ela trabalhou em uma empresa grande como a Norsa (indústria de bebidas), representante da Coca-Cola no Ceará, mas, não pas-sou muito tempo. Ela ficou cerca de dois meses, nesse período, ela chegou até morar comigo, dividindo aluguel, mas, é uma pessoa muito difícil para conviver, porque ela é muita cabeça dura mesmo, as coisas dela são do jeito dela. Ela chegou a alu-gar uma casa para ficar aqui perto mesmo e trabalhava durante a semana, de sete às dezessete horas e passava o resto do dia dormindo, o final de semana todo dormindo. E retomava as atividades na semana seguinte, nesse período, ela trabalhava e fazia o curso de inglês aos sábados. Logo após sair do trabalho, mais ou menos duas ou três semanas após, ela entrou em crise.

De fato, eu não confio no tratamento com isolamento, internação. Os CAPS, eu aprovo, até o ponto em que eles tenham espaço para se ocupar com alguma atividade, para ter um acompanhamento com psicólogo, com psiquiatra, com a questão da medicação, e reprovo no sentido de misturar os sujeitos que são dependentes químicos, usuários de drogas, com sujeitos que têm apenas crises de sofrimento psíquico. Eu, particularmente, não acredito numa cura total, mas, na amenização do problema a partir do tratamento adequado que, para mim, seria um acompanhamento com a família. A família tem que ser muito bem esclarecida para lidar da forma mais correta possível com o problema. Compreender o sujei-

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to, controlar, porque em alguns momentos a gente chega a ter raiva, outro momento a gente chega a ter pena. Controlar es-ses sentimentos, visto que a gente se considera pessoa normal diante deles que têm um problema que consideramos anor-mais. Então, a gente tem que se comportar - diante de uma crise – de uma forma adequada, mais adequada possível para não magoar o sujeito, nem de forma física e nem psíquica.

Eu não concordo com a questão dos hospitais, que fa-zem tratamento com internação, porque, pela experiência que eu tenho visto, eles não estão realmente em condição de tratar. As estruturas físicas, no meu ponto de vista, não são adequadas para tratar um sujeito desse tipo, falta alimentação de qualidade, terapeutas ocupacionais, recurso material, para criar atividades que envolvam esses sujeitos e profissionais mais qualificados, porque alguns dos funcionários deixam muito a desejar. Funcionários que não tratam o interno com amor, que chegam a “xingar” com palavrões, que eu cheguei a ver, funcionários que negam água.

3.5.2.4 A história de Héstia15

3.5.2.4.1 Contexto e caracterizaçãoHéstia, 24 anos, solteira, universitária, tendo como úni-

ca ocupação o estudo. Renda média de um salário mínimo, residia com sua irmã que apresentava transtorno bipolar há 12 anos, no bairro Messejana, Secretaria Executiva Regional

15 É a deusa grega dos laços familiares, simbolizada pelo fogo da lareira (GRAVES, 2008). Repre-senta aqui a irmã dedicada que cuida da irmã e quando ela está iniciando a crise “eu corro faço um suco de maracujá, eu vou procurar uma erva para fazer alguma coisa para acalmar ela”.

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VI. O contato com Héstia se deu através de seu irmão Orfeu e nosso objetivo inicial era coletar a narrativa da irmã que apresentou a situação de crise psíquica.

Ao chegar à casa de Héstia, esta iniciou o seu relato de vida sem solicitação, como todas as pessoas que convivem com alguém em sofrimento psíquico, a mesma encontrava-se ansiosa para descarregar seu sofrimento.

Constatei logo no início que Héstia também apresentava algum sofrimento psíquico, durante sua narrativa revelou que sofria de síndrome do pânico e que já havia sido internada no Hospital Mira y Lopes. Mas, procurou logo registrar que estava curada e agora só se dedicava a cuidar da irmã. Mesmo na ânsia de relatar seu sofrimento, Héstia não foi descuidada, no momento de assinar o Termo de Consentimento, solicitou para não colocar o número completo de seu documento.

3.5.2.4.2 A narrativa

No meu caso é diferente, porque eu sei o que eu faço, eu sei o que eu estou fazendo e ela esquece que ela está em si e ela não faz as coisas certas.

Eu lembro que ela fala que foi pela perda do meu irmão que cometeu o suicidou. Ela fala que não aceitou, a gente era criança e ela mal falava. Ela se fechava, não queria falar com ninguém. Última crise dela foi no mês passado, ela chegou aqui não queria comer e ficou alterada, querendo bater. Eu terminei chamando a polícia para ela, porque ela estava muito agressiva.

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Geralmente, nas situações de crise, eu chamo a ambu-lância, mas não vem. Às vezes preciso chamar duas, três vezes, mas sempre não vem. Neste último caso, chamei a polícia porque ela estava muito agressiva, foi o jeito chamar. Nas situações de crise, eu já chamei bombeiros, foi quando ela estava trancada não queria abrir a porta. Neste dia, eu fiquei assustada, a gente fica assustada de qualquer forma, mas a mulher me disse que não tinha como conter.

Eu já estou bem acostumada a lidar com este tipo de situação, porque minha avó tinha problemas mentais, a gente sabe que a pessoa fica nervosa e tudo, mas, a gente fica assus-tada. Vê que a pessoa não está fazendo a coisa certa, a gente pede para a pessoa fazer uma coisa e ela faz o contrário. Aí, a gente vê que não é uma atitude de pessoa normal. Inclusive eu já tive muito nervosa, que fiquei assim muito assustada, muita alterada e isso acontece com todo mundo. No meu caso, é diferente, porque eu sei o que eu faço, eu sei o que eu estou fazendo e ela esquece que ela está em si e ela não faz as coisas certas. A gente diz faça isso, ela faz o, tipo não sei, coisa paranormal, não sei.

Ela até fazia um tratamento no CAPS geral da Secreta-ria Executiva Regional (SER VI), eu sempre disse para ela, tem que se tratar, não pode passar a noite toda acordada. A gente quer dormir, os vizinhos querem dormir e ela passa a noite acordada. Isso incomoda, com certeza, tanto a mim, que estou aqui dentro de casa, quantos aos vizinhos que têm criança, tem pessoas idosas. Quando ela está assim, ela fala muito alto, chega a incomodar, isso é chato. Quando percebo o quadro dela alterando, eu corro faço um suco de maracujá, eu vou procurar uma erva para fazer alguma coisa para acal-

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má-la. Graças a Deus, tem dado certo, pois quando eu vejo que ela está alterada, vou ali fazer uma coisa com alface, ou alface e mel para acalmá-la. Ela toma e é instantâneo, ela já fica calada, calma.

Atualmente, ela não toma nenhum medicamento. Na última crise que ela foi para o hospital eu não sei, porque das vezes que levaram para medicá-la, eu não fui. Às vezes, a gente não está com condições de ficar com a pessoa em casa, ela fica muito assim, elétrica, não para, não sei explicar, só sei que é difícil. Não sei porque ela deixou o tratamento no CAPS, aquele ambiente é pesado e eu não gosto de está ali, não sei. Não gosto de estar em um ambiente daquele. As psicólogas já vieram aqui falar com ela, mas, é uma coisa que não depende só do CAPS, depende muito dela. Porque para a pessoa se tratar, a pessoa tem que querer, depende primeiro da pessoa, mas, quando a pessoa não quer o tratamento, fica difícil.

O hospital deixa a desejar, não sei se é falta de profis-sionais. Assim, quando a pessoa está precisando de um tipo de assistência, a gente quer uma ajuda de uma pessoa para orientar, o que devo fazer quando ela está assim? E não tem, fica a desejar. Tem o problema da alimentação, a alimentação de lá não é legal. É um local que têm pessoas delinquentes, pessoa que já mataram, já praticaram muitos erros na vida. E, quando a gente vai e fica perto dessas pessoas, é estranho. Porque o comportamento delas é diferente, quando você fica perto delas e olha para elas, a gente ver que não é um olhar normal. É um olhar assim querendo agredir você, agridem a gente com o olhar, é ruim esse ambiente. Se eu tivesse em casa seria melhor, porque a gente não consegue dormir, não con-segue fazer nada que a gente gosta, não é um ambiente sadio.

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Eu lembro que fiquei alterada, fiquei nervosa e fui tomar uma medicação, depois dormir. Bem, o que eu lembro que foi o estresse do dia a dia, eu ainda não cuidava diretamente da minha irmã, mas eu auxiliava em alguma coisa. A gente fica assim, pelas raízes familiares, árvore genealógica e tudo. O hospital é ruim porque é um ambiente com um monte de pessoa, sei lá, eu acho até que seja um preconceito, que eu te-nha preconceito com esse tipo de pessoa. Porque uma pessoa que se comporta normal, como qualquer outra pessoa, está no meio daquele tipo de pessoas, é ruim.

Eu percebo a pessoa que está com uma boa intenção e qual a pessoa que já está querendo uma ajuda, mas, daquele tipo de ajuda que a gente fica sempre com o pé atrás, com a intenção da pessoa. A minha mãe foi uma pessoa que me ajudou, eu fui levada pela família, fizeram uma triagem, todo aquele processo. Fizeram um monte de pergunta e eu respon-di, eles ficam fazendo muitas perguntas, eu acho até chato. Que tem pergunta que não precisava nem fazer, porque ele está vendo a situação. Quando eu estava lá, a minha mãe me visitava, outra vez foi o meu irmão, meu pai. Mas, a pessoa que eu mais gostava quando me visitava era a minha mãe e foi também uma vizinha, que já chegou até a falecer.

Hoje, isso já passou, não significa mais nada, porque o que passou, passou. Não vai alterar nada, porque o que eu estou vivendo hoje é uma coisa diferente e o passado não vai me afetar em nada. Porque o passado já passou. A perspectiva de vida é com certeza crescer é “galgar” meu caminho. Eu não preciso ficar me martirizando, porque eu vivi isso, porque minha família fez isso comigo, e sim criatura tu vai ficar nessa até quando? Sim, tu não vai tirar proveito de nada deste fato para sua experiência de vida?

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3.5.2.5 A história de Afrodite16

3.5.2.5.1 Contexto e caracterizaçãoAfrodite, 33 anos, solteira, ensino médio completo,

vendedora ambulante. Renda média de um salário mínimo, residia com sua irmã no bairro Messejana, Secretaria Execu-tiva Regional VI. Doente há 12 anos, com histórico de várias crises psíquica e três internações psiquiátricas.

Após entrevistar Héstia, solicitei a permissão para falar com sua irmã e o primeiro contato foi meio receoso, tanto de minha parte como de Afrodite. Ao chegar à sala, Afrodite perguntou à sua irmã se eu era da saúde e após explicar meus objetivos, ela sentou e concordou em conversar. Como vinha da minha atividade profissional, encontrava-me com uma blusa que tinha escrito “Enfermagem” e ela comentou que enfermagem era da saúde.

Depois de realizado os trâmites burocráticos, iniciei a coleta da narrativa que, no caso dela, tornou-se quase uma entrevista, pois a mesma apresentava resposta sucinta, ne-cessitando ser estimulada a aprofundar a narrativa. Depois de coletados todos os seus relatos marcados, principalmente, pela preocupação do sujeito com a mãe, ela foi até o quarto e voltou com seu artesanato e me deu de presente. Tentei pagar pela sua arte e ela não aceitou e ainda me deu uma foto sua, segundo ela só poderíamos ser amigos se eu tivesse uma foto dela. Insisti que me tornaria seu amigo mesmo sem a foto, mas, a mesma não aceitou e tive que trazer a foto que está guardada junto com os Termos de Consentimento.

16 É a deusa do amor, da beleza e da sexualidade na mitologia grega (GRAVES, 2008). Representa a entrevistada, pois ela se referia muito ao amor.

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3.5.2.5.2 A narrativa

Eu tenho 34 anos e tenho o diagnóstico de trans-torno bipolar.

Eu iniciei o problema com 12 anos, quando meu irmão tirou a vida dele. Eu fiquei perturbada. Todos nós aqui somos da Igreja Batista e vamos sempre à igreja, sempre buscar a Deus. Desde este dia em diante, fiquei perturbada, perturbou meu humor, eu fiquei assim. A minha mãe teve que tomar diazepam17 também, ela passou apresentar um batimento for-te, porque ela trabalhava muito e fazia calo, assim como eu. Quando eu começo a trabalhar, começa a dá calo nos meus pés, eu fui criada trabalhando igual a minha avó. A minha avó saia vendendo as coisinhas dela, chiclete, bombons, essas coisas. Eu fui criada trabalhando e não me canso não. Eu te-nho 34 anos e tenho o diagnóstico de transtorno bipolar, tem vezes que eu fico só chorando, porque eu não sou uma pessoa violenta, eu sei me comportar, eu sei entrar, eu sei sair. Eu só sou nervosa.

Última crise? Lembro não. Eu só sei que fico lembran-do-me das coisas ruins que acontecem, das coisas ruins que eu vejo. Assim como se alguém estivesse me perseguindo. Eu fico com a cabeça toda baratinada, tem vez que eu saio para vender as coisas e fico com uma tontura. O povo diz “minha filha, quando você tiver com estas tonturas não saia para ven-der”. Às vezes eu vejo as coisas, as coisas ruins e as coisas boas que acontece, eu já ouvi vozes.

17 O diazepam é usado no tratamento de estados de excitação associados à ansiedade aguda e ao pânico, assim como na agitação motora e no delirium tremens (MOMENTO TERAPÊUTICO).

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Quando eu estou assim, quem cuida de mim? É Deus! Aqui na terra é a família, a família que gosta da gente. É a minha irmã quando está em casa, que cuida é quem está em casa. Eu sei que não preciso ir para nem um local, porque aqui é meu lugar, o lugar certo. Eu não estou fazendo ne-nhuma coisa errada, não estou maltratando ninguém. Eu me controlo, eu sei me controlar. Eu tomo um chá de erva doce e eu consigo dormir, eu não atrapalho a vida de ninguém. Eu concordo com o pessoal da saúde, mas não concordo em tomar estes remédios velhos, eu tomava sete tipos de remédios e ficava toda impregnada assim [fez a forma].

Eu não preciso dos remédios, eu já me desintoxiquei e mais nunca na minha vida vou precisar, porque pedi minha libertação a Deus, e não foi a ninguém da terra não. Foi a Deus, não preciso mais. Eu continuo fazendo o tratamento no CAPS, só que vou quando eu estou precisando mesmo, quando eu estou precisando conversar eu vou lá. Nesse mês, eu ainda não fui nem uma vez. Eu já me desintoxiquei dos remédios porque eu só dormia com eles, vivia com a cabeça inchada feita um bicho, toda suja, sete remédios: clorproma-zina18, diazepam, menino, era tanto remédio do cão que eu não tomo mais não. Eu só tomo chá de erva doce e consigo dormir. Depois de deixar os medicamentos, só tive uma crise, depois do medicamento, foi só uma crise grave. Eu durmo, mas eu fico assim só chorando, só pensando. Os pensamentos negativos vêm porque todo mundo pensa ruim, mas eu tento controlar para não fazer mal a ninguém e nem a mim mesmo, porque eu fico só chorando pensando nas coisas ruins.

18 Clorpromazina está indicado no controle de manifestações de desordens psicóticas; no controle de náusea e vômitos; no alívio da agitação e apreensão antes de cirurgias; na porfiria aguda intermi-tente; como adjuvante no tratamento de tétano (MOMENTO TERAPÊUTICO).

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A minha mãe é a mãe que mais cuida da gente. A mamãe se preocupa tanto que entra em choque, ela se esquece de co-mer, ela passa cinco dias sem dormir. Isso também me abala. Oh! Meu Deus, a mãe não merece isso, nem uma pessoa no mundo merece sofrer tanto. Ela sofre. Eu já tentei me apo-sentar três vezes, mas não consegui, por causa deste engancho de ter que morar só. Eu preciso, eu necessito porque quan-do eu tiver velha, coroca [Risada]. Quem vai cuidar de mim, imagino isso para o futuro, porque vendedora autônoma, as vendas têm dia que não vende dez reais, dá para fazer o que com dez reais? Fico preocupada, isso fica assim preocupando minha cabeça. Às vezes eu fico desorientadinha, sem saber o que fazer. Eu estava vendendo as coisas e o meu sobrinho disse que eu coloquei o dinheiro no aparelho e dei a descarga, eu estava tão perturbada do juízo de um jeito que fiz isso. Eu não sei o que eu fiz, ele disse que eu tinha botado o dinheiro no aparelho, não fui eu, foi uma força.

Quando eu estou em crise, eu peço muita força a Deus, eu não sou violenta, nunca na minha vida eu encostei a mão em ninguém. Graça a Deus! Eu só fico me tremendo assim, somente o nervosismo, assim cansada. Eu não gosto de ver as coisas que eu vejo de errado no mundo, aí isso me preocupa. A gente ver que ninguém vem assim para ajudar, por exem-plo, minha senhora, está com peso, posso ajudar? Porque hoje em dia não existe mais hospitalidade, eu sofro com isso. Porque eu não gosto de ver isso, isso é horrível. Não chega ninguém, chega para beber seu sangue, tomar café. Cadê a merenda? Testemunha de vista, meu avô que morreu, ele dizia testemunha de vista é a pior coisa que existe em sua casa.

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Você está na sua casa, passa o dia trabalhando, vai fazer sua comida, quer ter um sossego, paz, chega gente. O que tem para comer? Abre a geladeira. Testemunha de vida é isso, entendeu? O que você comprou? [murmurou]. Ela foi para onde? Quantas sacolas ela vem na mão? Fica assim, isso me perturba muito. Eu só sou nervosa, o meu problema é só ner-vosismo.

3.5.2.6 A história de Hera19

3.5.6.2.1 Contexto e caracterizaçãoHera, 54 anos, casada, ensino fundamental incompleto,

do lar. Vivia com uma renda familiar de um salário mínimo, residia com o marido na Granja Portugal, Secretaria Executi-va Regional V.

Mesmo agendando a visita com Hera, quando cheguei à sua residência, ela estava chegando com uma filha e ficou surpresa com minha chegada. Solicitou-me um tempo para um rápido descanso para que pudéssemos iniciar a conversa. O contato com Hera foi mediado pelo genro, já que foi ele que fez o contato com o SAMU e seu relato me marcou por dois motivos: primeiro por ser a primeira crise e o segundo pela violência que marcou a situação.

Hera organizou umas cadeiras na garagem e ficamos conversando por uns quinze minutos antes de iniciar a coleta. Iniciei a coleta e logo ela se emocionou, vale ressaltar que,

19 É a deusa do casamento, esposa de Zeus, rei dos deuses, e rege a fidelidade conjugal (GRAVES, 2008). Retrata aqui a mulher dedicada que não quer ver seu marido sendo maltratado.

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durante a conversa informal, a filha de Hera estava presente e no início da gravação da narrativa, ela se ausentou; acredito que isso fez para que Hera ficasse à vontade para se expressar. Durante alguns momentos da entrevista, Hera se emocionou e parou por alguns momentos, mas não ocorreu choro.

3.5.2.6.2 A narrativa

Mais como eu digo, não quero que ninguém o maltrate, ele fez o que fez, mas eu não quero que ninguém maltrate...

Tudo começou quando viajamos para Canindé. Daí para cá, foi muito sofrimento para mim. Sofri muito lá no Canindé, porque foi nesse dia que nós nos separamos, lá na rodoviária do Canindé. Porque ele quis me matar, ele bateu em muita gente lá. A morte que ele diz ter feito, ele não fez, ele diz para todo mundo, mas ele não matou ninguém, por-que eu já fui lá me informar e não tem essa morte, mas ba-ter em muita gente lá, ele bateu. Daí para cá, ele vem assim violento, os filhos tiveram que se esconder porque ele queria matar todos. Meu menino mais novo teve que sair daqui por causa dele, porque queria matar ele, a mulher e o menino, desde esse dia, ele ficou desse jeito.

Agora recentemente, meu menino conseguiu pegar ele e levar para internar, mas ele está marcando o menino, dis-se que o menino está jurado para morrer. Eu não sei como vai ficar o caso dele, porque os médicos não dizem, quando se pergunta, um diz que ele não tem nada, outros diz que

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tão cedo ele não vai sair. Porque tem que fazer estes exames, eletroencefalograma (EEG), para saber como vai ficar. Ele é muito revoltado com as pessoas, principalmente com minha filha, ele não era assim, ele ficou nessa situação agora, ele era uma pessoa boa, uma pessoa normal, ele ajudava as pessoas. De repente aconteceu isso.

O motivo é o seguinte: ele tem um filho que ele não se une desde os dez anos de idade, que não se une um com ele. Quando chegamos ao Canindé, na casa da madrasta dele, ele ficou 12h em ponto em cima de uma pedra gritando pelo nome do menino. Onde você está? O que você está fazendo? Ele não quer que ninguém fale o nome deste filho, mas nesse dia aconteceu isso, daí para cá, ele passou fazer as coisas que o filho fazia, ele passou fazer idêntico ao filho, ele detestava pessoa com a faca na mão, ele só estava querendo andar arma-do, do jeito que meu filho colocava a faca no coes, ele estava botando. Nos lugares onde meu menino perdia dinheiro em-prestado, que era para me visitar no interior, porque eu estava muito mal, ele passou em todos os cantos pedindo dinheiro, dizia tudo que meu menino dizia, as coisas ruins que meu menino dizia ele estava dizendo.

Por esse motivo, a gente está achando que o meu filho não existe mais. Inclusive nesta semana, a gente vai andar nos hospitais, no Instituto Médico Legal (IML), para ver se a gen-te encontra alguma coisa sobre ele. Porque o meu marido foi naquela Igreja Universal do Centro e eles disseram para ele que ele estava com um encosto de um jovem que perseguia ele, então, esse jovem para nós é ele. Está com mais de um mês que um amigo meu viu meu filho e ele disse que ele esta-va falando bem arrastado, só os ossos, ele disse para este meu

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amigo que só ia sossegar quando tirasse a vida do pai dele. Diz que ele não fala em outra coisa, somente isso.

O pai dele expulsou porque ele queria tirar as coisas da gente para gastar, ele queria obrigar a gente ficar dando di-nheiro a ele para ele usar drogas e a gente nunca aceitou esse tipo de coisa. A polícia não faltava na minha porta, quando não era a polícia era a gangue fazendo quebradeira na minha casa atrás de matá-lo, eu não vou encobrir isso, eu tenho que dizer. Então o pai teve que se obrigar a dizer que não queria mais ele na casa, a gente arranjava emprego para ele, a gente botava nos cantos bons, a gente só arranjava canto bom para colocá-lo e ele só fazia desordem. Por último, foi arranjada uma casa da igreja aqui, a do irmão A. Ele estava bem gordi-nho, bem limpinho o irmão cuidava dele direito. Sabe o que ele fez? Aproveitou a ausência do irmão, escolheu os aparelhos mais caros que tinha na Igreja e tirou para usar as coisas dele lá, desta época para cá, ele sumiu.

A gente ouvia o povo, ele está em tal parte, mas quando foi hoje, este rapaz disse que a última vez que o viu faz mais de mês, só a casca. Ele disse que ele estava pedindo ajuda. Eu dis-se para ele que se visse ele em algum canto, ele voltasse e viesse me dá as dicas onde ele estava para tomarmos as providências. Mas sem o pai dele saber, porque o pai dele não quer ver e nem ouvir o nome dele, só neste dia que ele chamou por ele, eu não sei como vou reagir com tanta coisa. Alias, só eu venho dominando ele 24h, porque eu não queria que ninguém o maltratasse, ele não queria ir para o hospital e ficava falando não me leve à força e eu dizia eu não vou levar à força o que der para fazer por você, eu faço. E eu disse a ele: “O que puder fazer por você eu faço” e tudo que ele pediu, eu fiz por ele.

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Quando eu fazia algo ele dizia assim: “Não está pres-tando, você não fez direito!”. Eu dizia “Está bem, está certo”, eu não o agitava, eu combinava tudo, tudo que ele pedia, eu fazia. Neste momento, era só eu, porque os outros da família não encostaram e os meus filhos como estavam jurados, só faziam entrar em contato através do telefone escondido, para que eles não se apresentavam para não complicarem mais. Quando eu queria falar com eles, eu vinha aqui para dentro de casa, eu entrava no banheiro e comunicava com os meni-nos: “Está assim” e eles diziam: “Pois mãe, qualquer coisa, a mãe entra em contato que a gente chega por aí, a gente ver como está, a gente chama uma ambulância”. Mas, tudo eu fazia, uma polpa de maracujá e dava a ele, botava um remédio dentro, tranquilizava-o e eu ia vencendo, mas chegou o mo-mento que não teve mais jeito, não tive condição de controlar mais.

Mas, como eu digo, não quero que ninguém o maltrate, ele fez o que fez, mas não quero que ninguém maltrate, por-que o que eu puder fazer por ele, eu faço e um dia, eu estarei vivendo em nossa casa de novo igual nós vivíamos. Deus vai nos ajudar, as pessoas que podem nos ajudar a controlar isso, as pessoas dizem “Por que é que tu tens tanta força?”. Porque eu peço ajuda a Deus e eu já passei pelo CAPS, eu já vi muito sofrimento das pessoas lá e eu já sei como é que é, já assisti muitas reuniões no CAPS e então, eu tenho que seguir do jeito que elas passaram na reunião. E, assim, vou levando ele, meu menino é que diz: “Mãe, você tem muita paciência”. É porque eu ouvi no CAPS, nas reuniões, elas explicam como a gente deve lutar com as pessoas assim, portanto eu vou lutar até quando Deus quiser.

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Ontem, eu fui vê-lo, eu não tinha mais visto ele. Porque a gente entrou em contato com o meu menino que mora lá na Messejana, a minha menina se comunicou com a vizinha que está com o filho dela internado também e ela disse: “Olhe, chame a ambulância ao chegar, aqui entra um na frente, fica conversando com ele, o rapaz da ambulância vai conversar com ele e assim a gente fez”. Quando meu menino entrou, ele estava lavando esta área, o meu menino entrou, conversou e ele disse: “E essa ambulância?”. “Pai, essa ambulância é do amigo aqui da dona S.”. O rapaz ficou escutando ali fora, o rapaz se apresentou, entrou falou com ele. “Sr. F., o senhor vai agora ao hospital comigo”, e ele disse: “Não, eu não vou para o hospital, não estou sentindo nada”. O rapaz disse: “O senhor vai se consultar porque o senhor não está bem”.

Quando ele quis se alterar, o rapaz disse: “Como é que é? O senhor quer ir numa boa ou quer ir amarrado?” “Não, amarrado não, eu vou numa boa. Não sei o que vocês vão fazer comigo, mas vou numa boa”. E entrou na ambulância e foi normalmente e se internou. Meu filho foi com ele, eu não me apresentei neste momento, eu estava na casa da minha irmã. Meu menino mais velho foi quem foi assinou um termo para ele entrar e ele só sair se meu filho assinar o termo para ele sair. A médica que atendeu falou: “Teu pai só sai daqui se tu vieres assinar, enquanto tu não assinar para ele sair, nós não deixaremos sair”. Está nesta situação, ele só sai se o meu menino for assinar para ele sair. Quando ele estiver de alta tudo bem, quando elas derem alta a gente vai trazer ele. O meu menino não assina para ele sair, ele disse: “Mãe, só vou assinar para o pai sair quando ele ficar bom, quando vermos que o pai tem condições de vir para casa, enquanto não, nós não vamos levar o pai”.

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Meu filho está sendo bem atendido, ele está sendo bem cuidado, a gente leva as coisas para ele. Lá ele está em local re-servado porque ele tem problema de diabetes, hipertensão, os rapazes disseram que eles estão tendo muito cuidado com ele lá, porque estas pessoas com estes problemas devem ter vários cuidados para que não tenham complicações, mas o problema dele é o peso. Porque está perdendo peso rápido demais, da doença para cá, ele perdeu 22 quilos, vou ter quer ir ao Cen-tro de Diabetes marcar a consulta dele, porque é duas consul-ta por ano. Neste período, era para eu ter marcado, mas com este problema todo, eu não consegui ir, nesta semana eu vou ao Centro de Diabetes, eu vou falar com a médica dele para ver como vai ficar esta situação. Vou contar como ele está, falar que o peso dele está caindo rapidamente, porque não é para está perdendo deste jeito, era para perder os poucos, mas ele está perdendo muito, tá ficando magro, ele está tomando medicação para inchaço, para o coração, porque ele tem pro-blema de coração crescido e para diabetes e hipertensão.

Quando ele chegou lá, teve que tomar as medicações psicotrópicas, para ir controlando. Não estou me sentindo muito bem não, porque nós nunca nos separamos desta for-ma, 36 anos nós nunca nos separamos. Assim, nos deixamos por um momento, mas foi besteira de casal, como o senhor sabe. Mas, desta forma, assim, nós nunca tínhamos nos sepa-rado e toda vida eu cuidei muito bem dele, porque ele sempre foi uma pessoa muito legal, nunca deixou eu ficar com as mi-nhas coisas na cabeça, sem ter condições. Graças a Deus, isso nunca aconteceu, sempre foi uma pessoa que nunca deixou faltar nada dentro de casa. Eu estou sofrendo, porque eu não posso ficar direto na minha casa, eu venho, cuido de alguma

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coisa, do uma geral e vou para casa da minha menina, para casa do meu menino, vou para casa da minha irmã, fico neste jogo, eu não me sinto bem, eu me sinto bem na minha casa.

Eles cuidam bem, é todo tempo com cuidado em mim, mas eu não me sinto bem como no meu canto. A família da parte dele, não procura ele, só a da minha parte está assumin-do. Da parte dele tem irmão, irmã, mas ninguém quer ouvir a voz dele por causa destes problemas, mas eles podiam colocar na realidade que não foi o primeiro. Ele está abandonado pela família dele, só é eu e os meus filhos tomando conta dele e eu digo vocês têm que visitar ele, vocês têm que entrar em contato com ele, porque são irmãos e eles querem que eu vá à visita e avisem como ele está para poderem ir visitar. Hoje, eu vou ver se dá tempo de ligar para eles, porque eu tenho muita coisa para resolver, eu estou me sentindo só, coisas que eu não resolvia agora, eu tenho que resolver.

Ele disse lá no hospital que eu estou sofrendo muito, eu não estou me alimentando direito, ele já sabe quem sou eu, eu não tenho é força de vencer a batalha. Ele fica colocando aquilo na cabeça que eu não estou me alimentando, que eu estou sofrendo, que eu não gosto disso, eu não gosto daquilo e ele sabe tudo, ele está internado, mas ele está sentindo o que eu estou passando, eu só sei que farei o que puder fazer por ele, eu vou fazer até o fim. Se for problema da cabeça, eles podem resolver, mas se tiver outras coisas pelo meio, já não é pro-blema deles, porque lá por essa igreja disseram que ele estava com espírito, até orientaram ele procurar um centro espírita porque era para tirar, mas ele disse que não. Ele chegou a se zangar até com uma mulher lá no Canindé porque a mulher falou isso para ele, ele não gosta que fale este nome para ele.

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Eu não sei depois que baterem este eletro da cabeça, a gente pode saber a realidade, se ele tem alguma coisa na ca-beça, se aconteceu alguma coisa, porque as pessoas dizem que Acidente Vascular Cerebral (AVC) dá de vários tipos e ele já teve começou de infarto, foi só um começo, mas todo eletro que ele tira do coração acusa que ele teve e a médica disse tenha cuidado, porque de uma hora para outra você pode ter uma coisa mais forte. Por isso, eu fiquei com medo neste período agora, porque ele está fraco, não quer se alimentar, o negócio dele é só água, para ele tomar um copo de sopa, um suco era um sacrifício, tudo tinha mau cheiro.

Eu estou com esperança que vão resolver o problema dele e ele vai se recuperar para a gente viver a vida da gente, resolvendo as coisas, porque desse jeito, ele lá e eu cá, não dá certo, é muito complicado, eu quero é que ele se recupe-re. Minhas irmãs dizem assim, “não, se ele ficar bom e vocês ainda voltarem, nós não somos mais suas irmãs”, mas elas deviam entender, elas não vivem mais com os maridos dela porque Deus já levou. Mas eu tenho que fazer minha parte, porque eu não posso viver toda vida no poder dos filhos e de irmã. Eu tenho que viver no meu canto, até quando Deus quiser. O pior não é o que eu estou passando, porque ele está lá se tratando, está lá guardado. O pior eu estava passando vendo a hora acontecer algo com ele, porque ele chibatava todo mundo, ele parava todos os carros e perdia para os car-ros matarem ele, esculhambava todo mundo. Disse: “Pronto aqueles mendigos no meio da rua”, um policial fez foi dizer: “Senhora tenha cuidado, porque o seu marido insulta todo mundo, principalmente estes mendigos, estes mendigos não têm nada a perder, uma hora podem pegar ele sozinho, po-

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dem fazer alguma coisa com ele”. Eu não posso fazer nada, tem que internar, mas ele respondia que não podia levar ele à força não, quando ele ficava batendo nas pessoas, a polícia vinha.

Um dia ele falou com a polícia da farda verde lá de Ca-nindé, eles olharam assim e disseram não podiam fazer nada, “Vocês não podem fazer nada não?”, porque os mendigos estavam insultando com ele, “Eu vou mostrar como eu vou fazer”. Pegou o sujeito e meteu a porrada. Quando ele esta-va chibatando o criatura, eles deram a volta pelo outro lado e foram assistir e ainda disseram: “Rapaz, por que você fez isso?”, ele respondeu: “Eu pedi a ajuda de vocês e vocês não fizeram nada e ficou por isso”. Na praça azul, ele chibatou um homem que estava atrás de roubar, chamou o Ronda, “Não posso fazer nada não”, quando o Ronda saiu, ele pegou o su-jeito e meteu a pancada, porque ele estava querendo roubar a mercadoria lá e ficava por isso.

3.5.2.7 A história de Atena20

3.5.2.7.1 Contexto e caracterizaçãoAtena, 54 anos, viúva, ensino fundamental completo,

costureira, com renda familiar de um salário mínimo e meio. Residia com os filhos e uma neta na Granja Portugal, Secreta-ria Executiva Regional V.

20 Deusa da guerra, da civilização, da sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade (GRAVES, 2008). Representa uma mãe que busca cuidar de seu filho adotivo que apresenta sofri-mentos psíquicos graves.

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A entrada de Atena na pesquisa foi interessante, após coletar a narrativa de Hera, entrei no meu carro e antes de sair fui abordado por Atena, ela me perguntou se eu era do SAMU e eu perguntei o porquê. Ela respondeu que tinha um filho internado e que a última crise dele tinha sido gravíssima. Parei o carro e prontifiquei a ouvi-la, logo no início de seu relato, Atena começou a chorar, precisando interromper um pouco a coleta dos dados. Após se recompor, Atena relatou seu sofrimento com riqueza de detalhes.

O jovem que apresenta as crises psíquicas era um filho adotivo, mas que Atena preocupou-se logo em justificar que não havia diferença. Retornou sua narrativa que somente foi interrompida pela neta, filha deste jovem internado. A co-leta da narrativa de Atena ficou um pouco prejudicada por ter sido realizada na calçada e sofrida influência do ambiente externo. O que marcou esta narrativa foi a forma como foi captada a narradora.

3.5.2.7.2 A narrativa

É difícil, só quem conviver com louco é que sabe do tamanho do perigo que está correndo.

A minha situação é muito difícil, porque é complica-da, às vezes a gente está sozinha em casa, ele quebra as coisas dentro de casa. Ele, aqui em casa, eu não tenho mais nada, porque ele quebra tudo. Quebrou a televisão, o som, a porta. Esse portão aqui já é o terceiro portão que eu boto e ele que-bra, estraga tudo. Então, é difícil, muito difícil, ainda mais

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que esses hospitais estão fechando, estão querendo fechar os hospitais de louco. Já tem é muito fechado e vai fica mais difí-cil, porque esses CAPS não adiantam, porque não tem como a gente se socorrer no CAPS. Nos CAPS não tem médico, se tem médico, mas está em crise, não fica lá, manda para os hospitais, então é difícil, complicado. A gente que trabalhar com pessoas especiais porque as pessoas assim são especiais.

É muito difícil porque têm uns familiares que entende e têm outros que não entende. Uns diz que é “sem-vergonhi-ce”, outros diz que eu só “puno” por ele. É porque a gente vê a necessidade, porque a pessoa que é doente mental, a gente conhece só no conversar. E quando ele está em crise, ele fica muito revoltado, tudo ele fala, tudo ele reclama. Por exemplo, a minha filha, ele não gosta da filha da minha filha, ele não gosta do esposo da minha filha, então ele fica rejeitando as pessoas, fica difícil a convivência em casa.

Quando ele está em crise, quebrando tudo, eu tenho que chamar a ambulância. Então, o amarram e colocam dentro do carro e leva ele para tomar medicamento. Muitas vezes não tem carro e muitas vezes não vão porque tem medo dele vi-rar o carro, porque fica pulando dentro do carro fica fazendo coisas, “estrebuchando”, fica difícil, é complicado. A ambu-lância é muito difícil para conseguir para ele agora, tive que recorrer a um amigo pastor, porque ele fez muita ligação, eu fiz muita, mas só diziam que não tinha ambulância, que não tinha ambulância. Mas, eu conheço um pastor que trabalha nessas ambulâncias, foi que eu liguei para ele e ele veio aqui e levou-o. Ele veio com a turma dos bombeiros, e amarraram-no e levaram.

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Eles o amarraram e ainda passou dois dias amarrado no hospital. Porque não tinha como ele ficar solto porque ele queria quebrar tudo. Dizia que ia bater até nos médicos, é difícil. Aqui ninguém dorme de noite, porque ele passa a noi-te todinha querendo derrubar as coisas, quebrando as coisas, tendo visões, ouvindo vozes. Faca, garfo é tudo escondido, nada aqui de arma a gente deixa assim, pau, ninguém pode deixar por perto, nem nada, porque é perigoso.

Ele é meu filho adotivo, eu o crio desde um mês. Nas-ceu e botaram na minha porta. Depois, com dois ou foi três anos, a mãe dele apareceu, mas ela não queria saber dele e eu já gostava dele, já o amava como meu filho. Só Deus sabe quanto eu o amo! [Choro]. Sei que é difícil, muito difícil. Em 2006, na primeira crise dele, foi porque ele estava bebendo na pracinha, então um cara roubou um depósito e veio com um “bocado” de papel, com vários contracheques, não sei o que mais e botaram em cima dele. E quando ele entra em crises, ele anda com os papéis para cima e para baixo, entendeu. Quando a pessoa está normal, não faz um negócio desses.

Então, a polícia veio e prendeu-o, como ladrão, foi que ele enlouqueceu mesmo, ele pirou de uma vez, que não teve mais cura. Só sei que ele se internou, passou mais de um mês internado e pronto, daí para cá, ele ficou nas crises direto. Pe-garam o ladrão, está com seis, sete meses que chegou um papel do fórum, informando que ele está com a ficha limpa. Tiraram o nome dele, não tinha prova que tinha sido ele, outra coisa, ele não fez mais isso. Porque isso não foi ele, porque a mãe conhece o filho, a mãe conhece porque eles começam a roubar dentro de casa. E, aqui em casa, ele nunca tirou nada, não é porque eu quero punir por ele não, isso aqui o deixou com a

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ficha limpa. Mas, quando foi agora que fomos internar ele, pu-xaram a ficha dele e disse que ele tinha um problema na Coor-denadoria Integrada de Operações de Segurança (CIOPS), um negócio aberto para ele, só que eu não sei o que é. Se ele fez alguma coisa por aí, eu não sei, porque quando ele está assim, ele anda muito, ele anda sem destino, ele não para quieto em canto nenhum, mas se tivesse, já tinha vindo à minha porta, tem meu endereço, eu estou com os papéis do fórum aqui.

Eu tenho que até resolver este negócio para poder tirar os documentos dele, porque ele não tem nenhum documen-to, ele rasga, quando ele está assim em crise, ele rasga tudo. Antes dele vim para o hospital, ele rasgou a roupa dele todi-nha, ele não tem uma roupa mais, ele só está com a roupa do corpo lá, ainda bem que lá não precisa levar roupa porque dão, mas eu tenho que comprar roupa para ele porque quan-do ele vier, ele tem que ter roupas. É por tudo isso que eu digo que é muito difícil, é muito difícil a situação, lutar com uma pessoa doente mental, muito difícil. E eu acho isso revoltante, este governo, meu irmão, querer fechar estes hospitais, que na hora da necessidade, só quem nos acolhe é eles.

Porque dentro de casa não dá para cuidar de louco não, essa crise que ele teve agora, o médico disse para mim: “Mi-nha filha, faça um quarto lá no fundo do quintal e bote ele dentro, a senhora bote grade”. E eu disse: “O senhor vai preso no meu lugar? Porque se eu fizer isso eu vou presa, então, onde tem que ficar é nos hospitais, não é dentro de casa preso não, porque preso dentro de casa não tem vaga não”. Eu só sei que neste dia ele não quis internar porque tinha que esperar não sabe quanto tempo, era lá em Messejana, onde a gente fica lá fora no chão deitado com esses doidos, dão medica-

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mento a eles lá no chão. Eu passei dois dias com ele lá, foi que graças a Deus abriu uma porta e surgiu uma vaga no São Vicente de Paulo e o botei ele lá. Eu que acompanho, desta vez foi eu e minha filha, porque não dava para ficar só, porque fiquei tão nervosa que passei mal. Eu já estou tomando remé-dio controlado para poder aguentar o barco da doença dele.

Os CAPS não resolvem, não resolvem porque o sujeito só vai quando ele quer e o meu não vai, não tem nem perigo dele ir. Para dizer que ele nunca foi neste tempo todinho, ele foi umas três vezes, ele não vai, ele diz: “Eu não vou, eu não vou” e bate o pé e não vai... Eles não dão receita sem ver o sujeito, porque é obrigação deles quando estava tendo uma reunião lá, eu sempre vou para as reuniões, que era obrigação do pessoal dos CAPS virem na casa da gente ver o sujeito, já que o sujeito não vai, eles têm como vir em casa e eles não vêm. Ele estava este tempo todinho sem ir ao CAPS que fica aqui no Bom Jardim, eles me disseram que tinha que fazer uma triagem, ia marcar um dia de uma triagem para eu levá-lo para poder fazer. Eu disse: “Minha irmã, se ele não vem sem triagem, imagina com triagem, aí é que ele não vem mesmo”. Quando eu falei para ele, ele enlouqueceu e não foi, ele já estava nas crises.

No dia que eu estava lá no hospital tinha um rapazinho, um jovem de 17 anos, bem bonitinho, o bichinho fazia era pena, louco, louco e vinha do CAPS, porque no CAPS não tinha como ficar lá. Estes CAPS não eram para existir não, era para existir hospitais, abrir estes hospitais que estão todos fechados, abrir para colocar este pessoal para dá sossego a gen-te, porque a gente não tem sossego. Quem convive com louco não tem paz, porque muitas vezes eu não como, porque não

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dá para comer. A gente não se alimenta direito, não dorme direito, não tem sossego, principalmente no final de semana que tem bebedeira e o pessoal dão bebida para louco. O pes-soal sabe, conhece, mas ainda dão, porque o meu toma por-que o pessoal fornece e assim fica mais difícil lutar com louco e com bebida, quando juntam as duas coisas e o remédio que ele toma o caboclo fica mais doido. Assim, ele adoece todo muito, todo mundo fica nervoso, é muito difícil. Eu chamei muitas vezes, já passei dois dias aqui chamando direto, mas direto, pense e eles só diziam que não tinha ambulância hoje não, para essa área não tem ambulância, só consegui através deste pastor. Eu ligava de 10 em 10 min e fui conseguir atra-vés deste pastor, porque ele estava trabalhando e eu liguei para ele e ele trouxe a ambulância. Mas, o SAMU, não traz a am-bulância de jeito nenhum.

Quando teve a reunião lá no hospital disseram que era bom que as mães e os pais se reunissem e fossem lutar para que os hospitais não fechem, mas se uma vai, duas não vão e assim fica difícil uma andorinha só não faz verão. Eu disse lá, se reunir um grupo, eu garanto ir com vocês, mas uma pessoa só não adianta, porque se eu for sozinho, o que eu vou fazer lá, porque não adianta eu só falar, tem que ter multidão, para sermos ouvido temos que ter multidão.

Esta aqui é a filhinha dele, é linda! Ele é um rapaz novo, bonito, trabalhador. Mas é assim mesmo a vida da gente, mas um dia melhora, tudo é prova que Deus nos dá para ver se a gente aguenta a luta. Eu creio que Deus vai transformar aquela vida, ele pode curar, ele tem todo o poder de curar e libertar, porque Deus tem o poder, nós não podemos nada, mas ele pode, porque ele é o médico dos médicos. Eu creio

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que um dia ele vai fazer a obra, porque para mim é mais difícil porque eu não tenho marido, porque se eu tivesse um homem que me ajudasse nesta caminhada, um marido, um esposo, mas não tenho. O pai dele e nada é a mesma coisa, é um pai que não tem amor por ele, me manda botar ele no meio da rua, isso é coisa de pai? Lugar de doido é no hospital, o que ele diz é isso com o filho, no lugar de ajudar, só atrapalha cada vez mais, porque ele o vê dizendo isso, ele coloca na cabeça, mesmo assim ele é louco pelo pai. Quando fui visitá-lo on-tem, ele foi logo perguntando, “mãe, cadê o pai? Não vem me ver não?”, “Meu filho, não se preocupe com seu pai, quando ele tiver tempo ele vem”. “Vem não, mãe, vem não”.

Quando ele está em crise, eu percorro os seguintes ca-minhos, primeiramente, a Deus, porque se não fosse Deus a gente não vencia esta batalha e segundo é procurar hospitais, procurar a medicina para vê se a gente tem um pouco de paz, é aonde eu vou. Primeiro a Deus, sem Deus a gente não tem força, se eu não tivesse fé em Deus eu não estava nem viva, porque ele já quis me matar, ele disse que viu um velho com um olho que entrava e saia e que este velho queria me matar, então ele agarrou na minha garganta dizendo que era a gargan-ta do velho. É difícil, só quem conviver com louco é que sabe do tamanho do perigo que está correndo com aquela pessoa, principalmente ele, porque ele muda de repente, ele está aqui bonzinho e de repente ele dá aquele surto. Tem que acompa-nhar 24h, porque é perigoso. Este rapaz que está entrando aí, ele já quis matá-lo. Nós estávamos aqui e de repente lá vem ele correndo lá de dentro com a faca na mão, eu vou matar ele, vou matar ele, é um perigo, é muito perigoso. Tem que está tudo escondido, se ele pegar uma faca e der um surto nele

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ali mesmo, ele mata um, porque ele não sabe nem o que está fazendo, porque é de repente, a mente dele muda. Eu sei que é complicado, mas eu creio que Deus tenha solução para tudo.

3.2.6 Questões éticas

O projeto foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC), e apro-vado conforme parecer nº 111/11. Os sujeitos que aceitarem participar da pesquisa assinaram voluntariamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (Apêndice C) que contém justificativa, objetivos, metodologia, riscos e be-nefícios do estudo.

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4. O FENÔMENO (DES)VELADO DAS NARRATIVAS

4.1 Explicação causal do sofrimento mental a partir da vi-são dos sujeitos do estudo.

As narrativas apresentam um complexo diversificado de causalidade atribuído pelos sujeitos como originárias do de-senvolvimento do problema psíquico, variando desde causas mais concretas até fatores abstratos, como rituais e persegui-ções espíritas. Entre as causas concretas estão a finitude da vida e as consequentes perdas dos entes familiares de alto grau de relação afetiva, como avô, avó e irmão. Essa concepção multicausal vem estabelecer a dimensão coletiva para o fenô-meno saúde-doença mental.

Podemos perceber a presença da multicausalidade no trecho da narrativa:

O desenvolvimento do problema dela atual ocorreu depois dos 16 anos de idade, quando ela já era uma mocinha mesmo e tinha esse pro-blema, eu acredito que esse problema da coluna afetou muito também. Apesar de outros proble-mas, para mim é como se fosse um somatório de problemas que foram se acumulando e teve um estopim (Orfeu) [Grifos nossos].

A multicausalidade é representada a partir de fatores mais concretos. É possível perceber que esses fatos foram mar-cantes no sentido de isolar, embotar e perturbar os sujeitos,

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levando-os a vivenciarem seus mundos na via do sofrimento psíquico. Observamos que se estabelece uma fronteira entre o normal e o patológico a partir das crenças e dos rituais. Mesmo após séculos de descoberta do processo saúde-doença e como este se estabelece, o processo de adoecimento perma-nece marcado por uma visão não natural no desenvolvimento dos sofrimentos mentais.

A interpretação do processo de instalação do sofrimento psí-quico é marcada por essa multicausalidade durante a vida. Desta forma, o processo saúde-doença está atrelado à forma como o ser humano lida com suas amarguras, angústias e temores.

Eu iniciei o problema com 12 anos, quando meu irmão tirou a vida dele. Aí eu fiquei per-turbada. Todos nós aqui somos da Igreja Batista e vamos sempre à igreja, sempre buscar a Deus. Desde este dia em diante eu fiquei perturbada, perturbou meu humor, ai eu fiquei assim. A minha mãe teve que tomar diazepam também, ela passou apresentar um batimento forte [...] (Afrodite).Eu lembro que ela fala que foi pela perda do meu irmão, que se suicidou. Ela fala que não aceitou, a gente era criança e ela mal falava. Ela se fechava não queria falar com ninguém (Hés-tia) [relato sobre Afrodite].Ele é meu filho adotivo, eu o crio desde um mês. Nasceu e botaram na minha porta. Depois, com dois ou foi três anos a mãe dele apareceu, mas ela não queria saber dele e eu já gostava dele, já o amava como meu filho. Só Deus sabe quanto eu o amo! (Choro). Sei que é difícil, muito difí-cil. Em 2006, na primeira crise dele foi porque ele estava bebendo na pracinha, então um cara

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roubou um depósito e veio com um bocado de papel, com vários contracheques, não sei o que mais e botaram em cima dele. E quando ele en-tra em crises ele anda com os papéis para cima e para baixo, entendeu. Quando a pessoa está normal não faz um negócio desses. Então a po-lícia veio e prendeu-o, como ladrão, foi que ele enlouqueceu mesmo, ele pirou de uma vez, que não teve mais cura. Só sei que ele se internou, passou mais de um mês internado e pronto, daí para cá, ele ficou nas crises direto (Atena) [gri-fos nossos].Tudo começou quando viajamos para Canin-dé. Daí para cá foi muito sofrimento para mim. Sofri muito lá no Canindé, porque foi nesse dia que nós nos separamos, lá na rodoviária do Ca-nindé. [...]. Ele tem um filho que ele não se une desde os dez anos de idade, que não se une um com ele. Quando chegamos ao Canindé lá na casa da madrasta dele, ele ficou 12h em ponto em cima de uma pedra gritando pelo nome do menino (filho dele). “Onde você está? O que você está fazendo?” Ele não quer que ninguém fale o nome deste filho, mas nesse dia aconteceu isso, dai para cá ele passou fazer as coisa que o filho fazia, ele passou fazer idêntico ao filho, ele detestava pessoa com a faca na mão, ele só estava querendo anda armado, do jeito que meu filho colocava a faca no coes ele estava botando. Nos lugares onde meu menino perdia dinheiro emprestado, que era para me visitar no interior, porque eu estava muito mal, ele passou em todos os cantos pedindo dinheiro, dizia tudo que meu menino dizia, as coisas ruins que meu menino dizia ele estava dizendo (Hera) [grifos nossos].

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Além disso, há busca pela compreensão do fenômeno adoecimento na religião. Portanto, podemos atribuir dois sentidos: 1) ele acreditava naquela igreja ou 2) ele queria pa-rar de sofrer. Pois cabe lembrar que o slogan da igreja que o esposo de Hera procurou é “Pare de Sofrer!”. Nesse caso, a doença assume o significado de “um encosto”.

Porque o meu marido foi naquela Igreja Uni-versal do Centro e eles disseram para ele que ele estava com um encosto de um jovem que perse-guia ele, então, esse jovem para nós é ele (filho). Está com mais de um mês que um amigo meu viu meu filho e ele disse que ele estava falando bem arrastado, só os ossos, ele disse para este meu amigo que só ia sossegar quando tirasse a vida do pai dele. Diz que ele não fala em outra coisa, somente isso (Hera) [grifos nossos].

Outro aspecto importante é o contexto em que se mani-festam as causas de forma que a conjuntura do meio influen-cia no estabelecimento das causas da doença.

Eu lembro que desde pequena, entre cinco e dez anos, ela já apresentava algumas anomalias em termos de comportamento. Ela nunca foi uma criança totalmente carinhosa ou afetuosa, quando a gente levava à escola ela não admitia de forma alguma que ninguém pegasse na mão dela para atravessar a rua ou para caminhar nas avenidas mais perigosas. Ela sempre demonstra-va ter uma aversão, nojo, dos irmãos ou da mãe, não queria que ninguém pegasse na mão dela ou tocasse nela. Até mesmo quando minha mãe demonstrava um carinho, pegava no cabelo

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dela, ela sentia nojo, corria onde houvesse água para se lavar e isso foi ficando cada vez mais comum (Orfeu). Eu iniciei o problema com 12 anos, quando meu irmão tirou a vida dele. Aí eu fiquei per-turbada (Afrodite) [grifos nossos].Quando maiorzinha, entre 12 e 14 anos, ela co-meçou a demonstrar que era intolerante a qual-quer tipo de ruído ou conversa, não suportava escutar a voz de algumas pessoas da família... ela se incomodava. Quando ela estava no quar-to dela e tinha alguém conversando na sala, ela começava a bater na parede com o pé, com a mão, seja com o que fosse, para que parasse de falar. Neste mesmo período ela desenvolveu um problema na coluna vertebral, apresentou um desvio formando tipo um `S´ e uma das mi-nhas irmãs, que hoje mora fora, foi quem fez o acompanhamento de todo o tratamento dela para esta questão. Ela tinha muita vergonha deste problema, porque era algo que a gente percebia. Ela já tinha consciência que não ha-veria solução, podia melhorar um pouco, mas não tinha solução e que ela ficaria com o tronco um pouco atrofiado. E isso a deixava com uma vergonha muito grande (Orfeu) [grifos nossos].

Um aspecto importante é que o processo de sofrimento psíquico não se instala de repente, mesmo que ele apresente fator desencadeador do processo. Mas, a história de vida do indivíduo acometido apresentará fatos e causas que se somarão e serão fundamentais para o desenvolvimento da patologia.

Fatos esses marcados pela interface existente entre os sofrimentos psíquicos e os fatores comportamentais, sociais,

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culturais e ambientais. Quando estas interfaces são desconsi-deradas e não há valorização na identificação das causas en-volvidas e na forma como participam no processo da doença, o indivíduo fica vulnerável à influência do meio, fato que pode comprometer seu estado de saúde e levá-lo a desenvol-ver uma patologia.

A representação sintomatológica advém no próprio esta-do patológico, em que a narradora tem dificuldade de contro-lar os seus pensamentos em coisas negativas.

[...] Eu dormia, mas eu ficava assim só choran-do, só pensando [...] Quando os pensamen-tos negativos vêm, porque todo mundo pensa ruim. Mas eu tento controlar para não fazer mal a ninguém e nem a mim mesmo, porque eu fico só chorando pensando nas coisas ruim [...] (Afrodite).

Estes pensamentos são resultantes da instalação da doen-ça e são consequência da alteração do quadro psíquico e da transformação ocorrida no bem-estar pessoal da informante.

Eu só sei que fico lembrando-me das coisas ruins que acontecem, das coisas ruins que eu vejo. Assim como se alguém estivesse me perse-guindo. Eu fico com a cabeça toda baratinada, tem vez que eu saio para vender as coisas e fico com uma tontura assim. O povo diz, minha fi-lha, quando você tiver com estas tonturas não saia para vender não. Às vezes eu vejo as coisas, as coisas ruins e as coisas boas que acontece, eu já ouvi vozes (Afrodite).

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No caso do sofrimento psíquico, diversos fatores podem ocasionar a instalação do estado patológico e o não acom-panhamento correto deste estado resulta em um processo de desequilíbrio, que não ocorre instantaneamente, mas é resul-tante da somatória de momentos difíceis não solucionados, de frustrações, de desencantos e desesperança. Às vezes, o es-tado de crise é resultante de conflitos existentes no contexto familiar, motivado pela imposição da família em controlar o sujeito, por acreditar que ele não tenha condições de gerir sua própria vida ou pelas exigências e caprichos deste sujeito.

Bom, no começo não era muito ruim cuidar dela porque ela me obedecia. Eu dizia faça isso, vá dormir, vá tomar banho e ela ia. Mas agora, ultimamente, de uns quatro para cinco anos, ela não me atende mais... ela está agressiva co-migo, ela salta na minha cara. Um dia desses, ela tacou a bacia na minha cara, quebrou meu nariz... que eu mudei até os óculos. Ficou isso aqui meu todo dolorido. Por esse motivo eu a deixo passar a semana sem tomar banho, por-que não posso obrigar, ela me agride (Íris).

...as coisas dela são do jeito dela e aí ela chegou a alugar uma casa para ficar aqui perto e traba-lhava durante a semana, de 7h às 17h da tarde, e passava o resto do dia dormindo, o final de semana todo dormindo (Orfeu).

Para a família do sujeito em sofrimento psíquico, ele tem que se comportar de acordo com as regras estabeleci-das por ela e quando estas regras são rompidas, instalam-se os conflitos. O sujeito, geralmente, é tratado como incapaz

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e incompetente na execução de seus afazeres e os familiares tendem a definir por este o que devem fazer. Estas definições desencadeiam os conflitos entre os sujeitos e seus familiares, instalando-se as situações de crise. A família tem a intenção de definir a forma de viver do seu ente.

É necessário que a família compreenda que cada indiví-duo tem seu estilo e sua forma de viver, bem como procure perceber que algumas condições consideradas inadequadas à vida não podem ser motivo de culpabilidade deste indivíduo. As imposições de um modo de vida aos sujeitos em sofrimen-to psíquico, estabelecido por suas famílias, podem resultar em situações de crise severas.

É muito difícil... tem hora a gente pensa até em abandonar, mas como vai abandonar? Vou dei-xar esta criatura morrer no meio da rua? Não tenho coragem, tenho que enfrentar e aguentar até o dia que Deus quiser. Para a família é meio compreensivo, eles se estressam...não dão...atenção para ela...ela não aceita que ninguém converse com ela...o que foi tia? Meu filho vai perguntar. Não quero conversar contigo não... começa a chamar palavrão...[então ele] sai de perto e isola ela...se a gente tenta conversar ela acha ruim e chama palavrão...esculhamba...e se... não conversa, ela reclama, vocês não ligam nem pra mim...não prestam nem atenção quan-do eu estou chorando...se...for falar...a gente não olha porque tu esculhamba...é pior...a gen-te tenta isolar porque é isso que é melhor para ela... e para a gente. Pode não ser pra ela, mas para gente é o melhor [...] (Íris).

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É uma pessoa muito difícil para conviver, por-que ela é muito cabeça dura ...as coisas dela é do jeito dela e aí ela chegou a alugar uma casa para ficar aqui perto e trabalhava durante a semana, de 7h às 17h da tarde, e passava o resto do dia dormindo, o final de semana todo dormindo. E retomava as atividades na semana seguinte... nesse período, ela trabalhou e fazia o curso de inglês aos sábados. Logo após saiu do trabalho, mais ou menos duas a três semanas após ela teve a [primeira crise] (Orfeu) [grifos nossos].

O conflito está presente em todos os relacionamentos humanos. No contexto familiar, estes conflitos são mais com-plexos, pois cada indivíduo é singular na sua história, tem-peramento, idade, composição genética, etc. Entretanto, na família em que existe um sujeito em sofrimento psíquico, es-ses conflitos ficam mais proeminentes, pois cada pessoa forma sua própria percepção com relação ao problema de saúde que seu ente apresenta.

É muito difícil porque têm uns familiares que entende e têm outros que não entende. Uns diz que é “sem-vergonhice”, outros diz que eu só “puno” por ele. É porque a gente vê a necessi-dade, porque a pessoa que é doente mental, a gente conhece só no conversar. E quando ele está em crise ele fica muito revoltado, tudo ele fala, tudo ele reclama. Por exemplo, a minha filha, ele não gosta da filha da minha filha, ele não gosta do esposo da minha filha, então ele fica rejeitando as pessoas, fica difícil a convivên-cia em casa (Atena).

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Observamos que a “superproteção” tende a ampliar os conflitos entre familiares e potencializar os desejos do filho com sofrimento psíquico, que passa a exigir, com mais vigor e revolta, que seus desejos sejam atendidos.

Quando ele está em crise quebrando tudo [...] (Atena).

O não gerenciamento dos focos de conflito e a não imposição de limites aos desejos do sujeito com sofrimento psíquico fazem com que se instale o estado de crise, que, ge-ralmente, é marcado por atos violentos e por fatos que põem em risco de vida o sujeito e seus familiares.

[...] ele destruiu tudo... televisão ele quebrou quatro televisores, toda hora, de repente do nada, ele rebolava a televisão no chão, quebrava a televisão... eu não tinha uma grade para bo-tar[...]hoje eu tenho..[...] estava de uma maneira destruindo tudo[...]ele conseguiu arrancar uma porta, deixar só os pedaços, entendeu?... então estava de uma maneira assim impressionante. Ele subia em cima de uma pia e pulava, sabe, para ver se a pia desabava no chão [...] (Geia).

Quando cheguei em casa com ele, ele foi ar-rancar um galho e bateu na minha mão aqui [...] que arrancou um pouco a pele do meu bra-ço... ele chegou em casa muito agressivo, ele me chutou, chutou meu joelho, ficou arrancando meu cabelo, puxando meu cabelo... aí eu resolvi desistir, desisti de ficar perto dele, porque eu vi que ele ia me machucar... eu desço as escadas... aí ele pega a cômoda e tenta arremessar a cômo-

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da escada abaixo, para ver se a cômoda pegava em mim (Geia).

Um dia desses, ela tacou a bacia na minha cara, quebrou meu nariz [...] que eu mudei até os óculos. Ficou isso aqui meu todo dolorido (Íris).

[...] ele quebra as coisas dentro de casa. Ele, aqui em casa, eu não tenho mais nada, porque ele quebra tudo. Quebrou a televisão, quebrou som, quebrou porta. Esse portão aqui já é o ter-ceiro portão que eu boto e ele quebra, estraga tudo (Atena).

[...] não tem nenhum documento porque ele rasga, quando ele está assim ele rasga tudo. Antes dele vim para o hospital ele rasgou a roupa dele todinha, ele não tem uma roupa [...] (Atena).

4.2 Do reconhecimento da crise a busca por apoio tera-pêutico e seus descaminhos.

Compreender a forma como se manifestou o adoecer, além de como tem se dado o itinerário da assistência após a instalação do sofrimento mental em cada indivíduo, ajuda a reconstituir os descaminhos de desassistência e o sofrimento gerado, ou ampliado, nesse percurso. Nesse sentido, itinerário terapêutico será compreendido como:

... um determinado curso de ações, uma ação realizada ou um estado de coisas provocado por elas (...) é um nome que designa um conjunto de planos, estratégias e projetos voltados para um objetivo preconcebido: o tratamento da aflição (RABELO; ALVES; SOUZA, 1999, p. 133).

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A maior dificuldade em cuidar dele é porque ele já é um adolescente e quando está em crise é muito forte... ele é pesado, é alto e eu sempre necessito da presença do meu esposo na hora da crise. [...] Então ele faz coisa arriscada, põe a vida dele em risco... ele corre, atravessa em fren-te de carro, de ônibus, ele foge de casa, ele me agride fisicamente. Ele rasga as coisas, destrói moveis. Faz várias coisas perigosas. A dificulda-de é contê-lo, segurá-lo para ele não se machu-car, não machucar a mim. Como conter se ele é um rapaz e eu ainda sou uma pessoa frágil, pequena, eu não consigo (Geia).

A última crise começou... ele já vinha há vá-rios dias fazendo coisa que não deveria... ele na segunda feira... vou fazer um retrospecto... na segunda feira [...] ele saiu correndo, atravessou Avenida Lineu Machado... que já é um risco muito grande e foi correndo até a casa de um amigo meu[...]. Ele invadiu a casa e destruiu o jardim inteiro da pessoa[...] ele quebrou um jarro de cimento enorme, ele destruiu todas as plantas, ele arrancou tudo com os dentes, as mãos. E eu não sabia como fazer para ele pa-rar... então, consegui com muito custo e com a ajuda da esposa (do dono da casa) que ele saísse e levei-o para casa. Na terça feira, ele também tentou fugir de casa e também destruiu alguns objetos em casa. Rasgou roupa... rasgando a ca-misa de malha dele e tudo mais [...] Na terça feira ele chegou a rasgar o banco do transporte escolar de uma mordida... na quarta-feira eu fui com ele para evitar isso, fui e voltei com ele no transporte escolar. Assim que o rapaz o desceu de dentro do carro [...] ele saiu novamente pelo portão... atravessou avenida e foi novamente

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quebrar todos os galhos, árvores que ele encon-trou na [...] minha rua... aí eu peço ajuda a um amigo na rua... ele me dá uma corda... então eu amarro as pernas dele para ele não correr e também amarro a mão dele com a camisa dele. Você vê... é muito constrangedor, você ter que amarrar seu próprio filho e sair amarrado com ele pela rua. Só assim consegui chegar a casa com ele (Geia) [grifos nossos].

Um ponto em comum é o comportamento de destrui-ção que se instala no momento das crises. Infelizmente, esses atos violentos são direcionados aos familiares mais próximos.

[...] Ela só é estressada com a gente, porque é da família. Ela não agride ninguém de fora não, só agride, mais com palavras, ela só agride a gente da família (Íris).

Última crise dela [...], ela chegou aqui não que-ria comer e ficou alterada, querendo bater. Eu terminei chamando a polícia para ela porque ela estava muito agressiva. Geralmente, nas situa-ções de crise eu chamo a ambulância, mas não vem. Às vezes preciso chamar duas, três vezes, mas sempre não vem. Neste último caso cha-mei a polícia porque ela estava muito agressiva foi o jeito chamar a polícia. Nas situações de crise eu já chamei bombeiros, foi quando ela estava trancada não queria abrir a porta. Neste dia eu fiquei assustada, a gente fica assustada de qualquer forma, mas a mulher me disse que não tinha como conter (Héstia).

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Importante destacar que o sujeito até busca como pri-meira opção de apoio a ambulância, mas como não é atendi-do, este tenta outros meios de ajuda e proteção para a família. A presença desses atos violentos corrobora a ideia de que todo doente mental é violento e agressivo, no entanto, as agres-sividades se manifestam após horas, dias e, até meses, sem assistência adequada durante a instalação das crises.

Não desejamos descartar que o sujeito em sofrimento psíquico no estado de crise não apresente um risco aumenta-do à violência, porém é o discurso em torno da crise psíquica – devido ao risco de atos violento e agressivos – que desperta-rá na sociedade o sentimento de medo e trará para o cenário social a noção de periculosidade (WILLRICH et al., 2010).

Porém, a violência somente se instalará se nada for pro-cedido para conter e controlar o estado de crise em que este sujeito se encontra. Quando se institui uma comunicação e uma escuta terapêutica a este sujeito, reduzem-se os riscos de sequestro da liberdade do mesmo.

Ela, desde a primeira crise, é uma sujeita que tinha alguns momentos de violência, sendo ne-cessário levá-la ao hospital, mas ela não passou por internamento na primeira crise, foi só me-dicada (Orfeu).

O sujeito em situação de crise deve receber atendimen-to imediato, tendo direcionado a ele atenção redobrada que estabeleça vínculo e diálogo terapêutico. Em alguns casos, os atos de violência já se apresentam na primeira situação de crise, requerendo, com isso, atendimento mais estruturado e adequado para a contenção desta situação.

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Infelizmente, a condição mental que os sujeitos apre-sentam, no momento de crise, inviabiliza o discernimento entre o certo e o errado, portanto, uma assistência adequada pode prevenir que eles se tornem objetos ou agentes de atos violentos.

A grande sobrecarga do cuidado do ente com sofrimento psíquico, geralmente, fica a cargo das mães, por esse motivo é que as principais narrativas foram realizadas com elas. Essa sobrecarga tende a ocasionar sofrimento físico e psíquico às mães que, constantemente, assumem atitudes que são incom-preendidas pelos demais familiares, motivando os conflitos.

As situações de crise, quando não controladas, tendem a desenvolver situações de emergência que se caracterizam por situações de risco significativo (vida ou injúria grave), para o sujeito ou outros, necessitando de intervenção terapêutica imediata. A ausência, em Fortaleza, de uma rede eficiente de assistência em saúde mental vem contribuindo para o agrava-mento e, até mesmo, desencadeamento de situações de crise em sujeito em sofrimento psíquico. Hoje, Fortaleza conta, apenas, com uma emergência psiquiátrica, a qual funciona no Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM) e se encontra em implantação um CAPS tipo III, que está dispo-nibilizando vagas para atender sujeitos em situação de crise (FORTALEZA, 2013).

A escassez deste serviço contribui para potencializar a violência nas crises psíquicas.

... só quem convive com louco é que sabe... do tamanho do perigo que está correndo com aquela pessoa... principalmente ele, porque ele

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muda de repente, ele tá aqui bonzinho e de repente ele dá aquele surto... tem que estar de olho 24h nele, porque é perigoso. Este rapaz que está aí ele já quis matar ele, nós estávamos aqui lá vem ele correndo lá de dentro com a faca na mão, eu vou matar ele, vou matar ele... é um perigo, é muito perigoso. Tem que estar tudo escondido, se ele pegar uma faca e der um surto nele ali mesmo ele matar um, porque ele não sabe nem o que está fazendo, porque é de re-pente... a mente dele muda de repente (Atena).

Já que a rede de saúde mental de Fortaleza disponibiliza apenas uma ambulância voltada para atender essas situações, por esse motivo, as famílias permanecem em completa desas-sistência.

Rapaz, eu acho que demorou uns quinze dias: liguei para o serviço de atendimento móvel de urgência (SAMU). Ficou nesta dificuldade para conseguir esta ambulância. Uns 15 dias da pri-meira vez que eu liguei (Íris).

Quando o SAMU chegou lá ele não estava mais quebrando, porque estava suado e exausto. Ele fez muita força para arrancar essa porta, então ele não tinha mais força... ele já estava sentado no chão suado, sujo, nu e comendo as coisas que tinha dentro da geladeira... ele estava quieto, estava exaurido... quando cheguei lá eu apenas banhei ele, vesti e levei-o... não deu trabalho ne-nhum para entrar na ambulância...(Geia).

... ele chegou em casa muito agressivo, ele me chutou, chutou meu joelho, ficou arrancando

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meu cabelo, puxando meu cabelo... aí eu resolvi desistir, desistir de ficar perto dele, porque eu vi que ele ia me machucar [...] aí eu chamo a am-bulância, chamei o SAMU. O SAMU demora muito [...] demorou 4 horas [...] (Geia).

Como é apenas uma ambulância... que é um caso até de denúncia... então não pode uma ci-dade como Fortaleza com mais de dois milhões de habitantes terem apenas uma ambulância psi-quiátrica... então a espera é enorme. Se um sujei-to em crise matar uma pessoa, quando a ambu-lância chegar vai estar só o cadáver, não vai mais dar tempo de fazer nada... porque eu chamei a ambulância uma hora e eles chegaram às quatro e meia da tarde, quatro horas depois que eu cha-mei [...], mas se houvesse mais ambulâncias, aí sim, teria um atendimento melhor porque não é possível uma pessoa esperar quatro, cinco, seis horas por um atendimento. O atendimento é prejudicado pela falta de ambulância (Geia).

Eu desistia de ligar (para ambulância), mas sabe como eu levo? Eu desistia de ligar eu nunca li-guei à noite, eu já tenho levado ela à noite, mas sabe como eu levo? Tinha um rapaz que é primo do meu marido que trabalha no SAMU ... ele é motorista e ele conseguia, falava com o médico lá e conseguia a ambulância. Era assim (Íris).

Acometidos por essa completa desassistência, as famílias tendem a lançar mão de diversos recursos para tentar superar esses momentos de crise. As diversas formas de tentar intervir na situação de crise de seus familiares são apresentadas por meio de um fluxograma (Figura 6). O fluxograma representa

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sucintamente os caminhos ou meios utilizados na tentativa de anular o estado de crise de seu familiar. Inicialmente, a família utiliza tratamentos alternativos de seu conhecimento, geralmente, oriundos de saberes populares ou familiares.

Figura 6 - Fluxograma seguindo pelos familiares na busca por assistência no momento da crise.

A tradição de utilizar plantas capazes de aliviar o sofri-mento dos doentes esteve presente neste estudo. As respostas terapêuticas conseguidas, em alguns casos, e os relatos popu-lares que valorizam este tipo de tratamento tendem a gerar um clima de confiança e valorização deste tipo de tratamento.

Esgotados os recursos das terapêuticas à base de ervas, as famílias recorrem à ajuda espiritual, encaminhando os fami-liares às igrejas ou outras crenças de sua confiança.

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Eu tomo um chá de erva doce e eu consigo dor-mir [...]. Eu concordo com o pessoal da saúde, mas não concordo em tomar estes remédios ve-lhos. Eu tomava sete tipos de remédios e ficava toda impregnada assim (fez a forma). Eu não preciso dos remédios. Eu já me desintoxiquei e mais nunca na minha vida vou precisar, por-que pedi minha libertação a Deus, e não foi a ninguém da terra não. Foi a Deus, não preciso mais [...]. Eu já me desintoxiquei dos remédios porque eu só dormia com eles, vivia com a ca-beça inchada feita um bicho toda suja, sete re-médios: clorpromazina, diazepam. Menino, era tanto remédio do cão que eu não tomo mais não. Eu só tomo chá de erva doce e consigo dormir (Afrodite).

É possível observar um entrelaçar de tratamentos que se buscam para tentar conseguir a cura ou controle das doenças. Primeiramente, os tratamentos alternativos são utilizados, em seguida inicia-se a ajuda espiritual e, com isso, passa-se a descartar os recursos medicamentosos tradicionais porque se acredita que a cura já foi estabelecida.

Eu fazia uma polpa de maracujá e dava a ele, bota-va um remédio dentro, tranquilizava-o e eu ia ven-cendo, mas chegou o momento que não teve mais jeito, não tive condição de controlar mais (Hera).

A automedicação está associada aos tratamentos alterna-tivos. Essa associação se configura como grave problema de saúde para população. Importante destacar que não estamos apontando os efeitos negativos das terapias complementares, sobre as quais não nos detemos neste estudo, e sim apontamos

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que a associação do uso de ervas medicinais com o tratamento medicamentoso, sem orientação de profissional competente, é um problema de saúde que precisa ser enfrentado.

Comumente, as medicações são indicadas por vizinhos ou familiares que estão utilizando-as em algum tratamento. A medicalização social vem apontando falsas soluções para o sofrimento, de forma que as pessoas passam a fazer uso de analgésicos, anti-inflamatórios, ansiolíticos, antidepressivos e antipsicóticos por conta própria. Na maioria das vezes, con-forme assinala Tesser (2010), os sujeitos que buscam a auto-medicação são mães que perderam seus filhos vítimas da vio-lência nos bairros, cidadãos em condições de trabalho desu-manas, subempregados, pessoas que migram para as capitais e perderam seus referenciais de solidariedade e pertencimento.

A gente, então, fazia chá de camomila, chá de erva doce, suco de maracujá, e não sabia o que fazer para esse menino dormir direito (Geia).

Quando percebo o quadro dela alterando, eu corro faço um suco de maracujá, eu vou pro-curar uma erva para fazer alguma coisa para acalmá-la. Graças a Deus, tem dado certo, pois quando eu vejo que ela está alterada, “vixe” vou ali fazer uma coisa com alface, ou alface e mel para acalmá-la. Aí ela toma e é instantâneo, ela já fica calada, calma (Héstia).

O contexto espiritual alcança forte conotação, seja pela busca das causas que levaram o sujeito ao desenvolvimento do sofrimento psíquico, seja na busca por tratamento. A reli-giosidade pode ser considerada como um suporte protetor ao sofrimento destes indivíduos, pois a fé e a confiança em Deus

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lhes darão a resignação necessária para enfrentar as fraquezas e males ocasionados pela patologia. Vale destacar que a pa-lavra Deus, com exceção dos nomes dos deuses gregos com que foram nomeados os informantes, aparece trinta vezes no conjunto das sete narrativas. Todos os informantes buscavam Deus como ajuda ao adoecimento.

Quando ele está em crise eu percorro os seguin-tes caminhos, primeiramente, a Deus, porque se não fosse Deus a gente não vencia esta batalha e segundo é procurar hospitais, procurar a medi-cina para vê se a gente tem um pouco de paz, é aonde eu vou. Primeiro a Deus, sem Deus a gen-te não tem força se eu não tivesse fé em Deus eu não estava nem viva, porque ele já quis me matar, ele disse que viu um velho com um olho que en-trava e saia e que este velho queria me matar, en-tão ele agarrou na minha garganta dizendo que era a garganta do velho (Atena) [Grifos nossos].

Porque o meu marido foi naquela Igreja Uni-versal do Centro e eles disseram para ele que ele estava com um encosto de um jovem que perse-guia ele, então, esse jovem para nós é ele (Hera).

Se for problema da cabeça, eles (médicos) po-dem resolver, mas se tiver outras coisas pelo meio já não é problema deles, porque lá por essa igreja (Universal) disseram que ele estava com espírito, até orientaram ele procurar um centro espírita porque era para tirar, mas ele disse que não (Hera).

Todos nós aqui somos da Igreja Batista e va-mos sempre à igreja, sempre buscar a Deus [...]. Quando eu estou assim quem cuida de mim? É

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Deus! [...]. Eu não preciso dos remédios, eu já me desintoxiquei e mais nunca na minha vida vou precisar, porque pedi minha libertação a Deus, e não foi a ninguém da terra não. Foi a Deus, não preciso mais (Afrodite).

A primeira crise ocorreu com 16 anos, nesta época a minha mãe e minha irmã a levaram para a igreja, apelaram primeiro para a questão da religião (Orfeu).

4.3 A rede de atenção em saúde mental como recurso de apoio buscado pelos sujeitos.

4.3.1 SAMU

Primordialmente, os familiares recorrem ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), seja pelo fato de que a crise psíquica se encontra em uma situação de urgência ou porque é essa a referência que os familiares já adquiriram em busca de uma estrutura que possa proporcionar uma con-tenção desta crise.

A porta de entrada da rede de saúde mental de Forta-leza são os serviços secundários de assistência. Desta forma, é possível observar que os serviços da rede de assistência em saúde mental de Fortaleza não são resolutivos. Um dos aspec-tos que demonstra essa situação é que a porta de entrada da rede de assistência tem sido o SAMU, ou seja, é este o serviço que os familiares têm buscado nas situações de crises. Entre-tanto, observamos que familiares e sujeitos em situações de necessidades urgentes não têm encontrado assistência junto

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aos equipamentos e recursos institucionais da rede de saúde mental. A estrutura atual da rede não corresponde às deman-das que a população com sofrimento psíquico apresenta.

Eu desço as escadas... aí ele pega a cômoda e tenta arremessar a cômoda escada abaixo, para ver se a cômoda pegava em mim. Aí eu cha-mo a ambulância, chamei o SAMU. O SAMU demorou 4 horas. Como é apenas uma ambu-lância... que é um caso até de denúncia, como pode uma cidade como Fortaleza com mais de dois milhões de habitantes ter apenas uma ambulância psiquiátrica? Então a espera é enor-me. Se um sujeito em crise matar uma pessoa...quando a ambulância chegar vai esta só o ca-dáver, não vai mais dá tempo de fazer nada, porque eu chamei a ambulância, a ambulância uma hora e eles chegaram às quatro e meia da tarde, quatro horas depois que eu chamei...fo-mos com ele para Messejana [...] (Geia).

Mas a ambulância é muito difícil vir. Porque eu consegui pra ele agora, porque foi através de um pastor (Atena).

Quando o SAMU chegou lá ele não estava mais quebrando, porque estava suado e exausto. Ele fez tanta força para arrancar essa porta, então ele não tinha mais força [...] (Geia).

[...] eu acho que demorou uns quinze dias. Uns 15 dias da primeira vez que eu liguei. Porque é tipo assim, ela queria que a gente ligasse todo dia. Só que é aquela coisa que às vezes você fica com abuso, que dá é desgosto, a gente pensa que vai ouvir a mesma coisa. Olhe, ligavam de ma-

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nhã eles dizia assim: ligue à tarde, quando eles mandavam ligar à tarde eu não ligava, ligava no outro dia, entendeu. Eles diziam: ligue à noite, eu ficava comigo se ligam de dia eles não vem, à noite é que eles não vêm mesmo. Eu desistia de ligar, eu nunca liguei à noite, eu já tenho levado ela à noite, mas sabe como eu levo? (Íris).

Eu chamo a ambulância, mas geralmente não vem... Eu chamo duas, três vezes. Mas sempre não vem (Héstia).

A rede de saúde mental de Fortaleza, que disponibiliza uma viatura exclusiva para assistir as situações de crise psíqui-ca ocorridas em seu território, não é suficiente para propor-cionar uma assistência eficiente a esta situação. Souza et al. (2010) identificaram que a sobrecarga de chamadas é facil-mente encontrada em relatório diário do SAMU de Fortaleza, do total de 100% de chamadas realizadas para este serviço que solicitam assistência, apenas 21% eram atendidas. Esse quadro quantitativo pode ser compreendido nas narrativas dos sujeitos da pesquisa.

Ressaltamos também o “como” ocorre a assistência dis-ponibilizada no momento da abordagem dos profissionais do SAMU ao sujeito em situação de crise. A abordagem é marcada por um completo despreparo por parte dos profissionais que atuam neste serviço: o tom do diálogo com o sujeito em crise é impositivo, a forma de aproximação com sua realidade é do-minadora, de forma a instalar tensão e terror na relação, uma transferência de responsabilidade a respeito da resolução da si-tuação, ou seja, o serviço não apresenta respostas às reais de-mandas da população e, ainda, é prestado sem profissionalismo.

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O objetivo do SAMU é prestar assistência em uma si-tuação em que o indivíduo lida com conflitos que alteram seu estado homeostático e o põem em conflitos, mas o que se ver é um tensionamento e um terrorismo.

Quando ele está em crise quebrando tudo eu te-nho que chamar a ambulância. Então, o amarra e coloca dentro do carro e leva ele para tomar medicamento. Muitas vezes não tem carro, e muitas vezes não vão porque tem medo dele vi-rar o carro, porque fica pulando dentro do carro fica fazendo coisa, “estrebuchando”. Aí fica difí-cil, é complicado (Atena).

[...]o rapaz (profissional do SAMU) ficou escu-tando ali fora, aí o rapaz se apresentou, entrou falou com ele: Sr. F. o senhor vai agora ao hos-pital comigo, ele responde: não, eu não vou para o hospital, não estou sentindo nada. O rapaz disse: o Sr. vai porque o senhor vai se consultar porque o Sr. não está muito bem... Quando ele quis se alterar o rapaz disse: como é que é? O Sr. quer ir numa boa ou quer ir amarrado? Não, amarrado não. Eu vou numa boa, não sei o que vocês vão fazer comigo mais vou numa boa. E entrou na ambulância e foi normalmente (Hera).

Quando o SAMU... conseguia [vir], [...]eles mesmos não mandavam o socorrista, uma vez veio o motorista e uma enfermeira [...] eles me deram aquela, aquele bichinho... é para conter o sujeito. Eles ficaram olhando... ensine pelo menos como é que...faz. Ela estava lá na rua, não deixei ela entrar para exatamente facilitar para eles[...]ela é magrinha, ela não mete medo

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em ninguém. Ela só é estressada com a família ela não agride ninguém[...]ela não é violenta [...]me deram estas ataduras para colocar nela, mas eu não consegui... ela... me agrediu...foi minha sobrinha, minha cunhada, um policial que mora aqui e meu filho para poder contê--la...se eles tivessem chegado conversando direi-tinho, vamos...ela tinha ido[...] (Íris).

O diálogo inicial é considerado primordial para a eficá-cia da terapia. Portanto, na ausência de uma abordagem tera-pêutica, não é possível estabelecer um vínculo entre o sujeito e o socorrista (do SAMU). Desta forma, não se constituem laços de confiança para possibilitar a intervenção terapêutica. Outro fator importante é que a atenção, no primeiro contato, deve ser direcionada ao sujeito em crise, somente em seguida, atende-se às demandas da família (SOUZA et al., 2010).

Entretanto, percebemos que a assistência prestada pelo SAMU, junto aos sujeitos em situação de crise, está repleta de contradições: seja pela necessidade de agregar conceitos de assistência que garantam os preceitos da reforma psiquiátrica, seja pela deficiência na operacionalização e atendimentos das chamadas ou, ainda, pelo não direcionamento de uma assis-tência que considere um protocolo de conduta; assim como de influências externas de terceiros (polícia, pastor evangélico, amigos), na central de atendimento do SAMU.

[...] eu conheço... um pastor que ele, que ele, trabalha nessas ambulâncias. Aí foi que eu li-guei pra ele, e ele (pastor) veio aqui e levou ele (filho) (Atena).

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[...] nessa última [crise] foi numa boa [...]a po-lícia solicitou o SAMU. O SAMU veio rapidi-nho (Íris).

Estes fatos retratam que muitas famílias não podem considerar a sua posição nesta lista de chamada, pois podem ser colocadas de lado ou mesmo direcionadas ao final da fila em função da necessidade do atendimento de uma solicitação permeada por interferências políticas e pessoais.

4.3.2 Polícia e bombeiros

A polícia e os bombeiros se colocam como segunda opção de ajuda que os familiares buscam na situação de crise de seus entes. Estes apareceram no contexto estudado como agentes de proteção contra os estados agressivos de seus parentes em crise psíquica. A presença da polícia significa que as questões buro-cráticas de atendimento e trâmites internos das instituições se-rão resolvidas com mais facilidade. A presença dos bombeiros significa proteção para os familiares e o sujeito em crise.

Ainda que o chamado à polícia aconteça pelos vizinhos, a família com parentes em situação de crise concorda e agra-dece porque percebem na polícia recurso que resolve a situa-ção de perigo em que muitas vezes se encontram.

A polícia foi chamada contei a história, que já tinha tentado a ambulância não tinha consegui-do, disseram que estava na fila de espera.... Eu ligava pra lá e ela me dizia que tinha não sei quantos na minha frente... aí nada, eu fiquei es-perando, até o dia de chegar minha vez... só que

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neste dia ela foi demais, ela gritou dia e noite... o vizinho foi e chamou a polícia. Não foi por maldade não, chamou para ver se eles resolviam como de fato, graças a Deus, resolveram. Che-garam, conversaram comigo, eu contei a histó-ria, eles ligaram para ambulância, no instante a ambulância veio. Duas horas da madrugada. Passei o resto da manhã todinha lá, passei o dia todinho ontem, quando foi ontem (Íris).

A ambulância, em seguida, mas sempre sem resposta. Neste último caso chamei a polícia porque ela estava muito agressiva, aí foi o jeito chamar a polícia. Nas situações de crise eu já chamei bombeiros, foi quando ela estava tran-cada não queria abrir a porta (Héstia).

4.3.3 Hospital Mental de Messejana

Seguindo o fluxograma do itinerário de resolução das si-tuações de crise, após assistência prestada pela ambulância, o sujeito é conduzido ao Hospital Mental de Messejana, em que passa pela triagem e, em seguida, é encaminhado ao médico, só neste momento é que a ambulância é liberada, isso causa atrasos e perda de tempo na assistência às demais chamadas.

A análise da assistência disponibilizada no interior dos hospitais será realizada a partir das narrativas dos pesquisados, pois a assistência hospitalar não é objetivo deste estudo.

Não fazer menção a este fato, no entanto, é obscurecer ainda mais o sofrimento vivenciado por familiares e sujei-tos na busca por uma assistência de qualidade e resolutiva. O hospital psiquiátrico é deficiente no processo de cuidar,

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pois apresenta deficiências de várias ordens. Além disso, esse equipamento institucional é marcado pelo estigma, adquirido durante séculos, de maus-tratos, isolamento e segregação.

Eles não têm um pingo de respeito pelas pes-soas, as pessoas estão ali humilhadas, realmente necessitando daquele atendimento, se subme-tem a essa coisa degradante, de ficar no frio, no chão sujo, tem que se submeter ou então ficar a noite inteira sentada numa cadeira até de ma-nhã (Geia).

[...] estruturas físicas não adequadas para tratar um sujeito desse tipo, falta alimentação de qua-lidade, faltam terapeutas ocupacionais, recurso material, para criar atividades que envolvam esses sujeitos e profissionais mais qualificados, porque alguns profissionais do tipo médicos, psiquiatras, psicólogos, mas outros tipos de funcionários realmente deixam muito a desejar (Orfeu).

4.3.4 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)

O CAPS não aparece como recurso de proteção em situa-ção de crises dos sujeitos com sofrimento psíquico. A ausência de estrutura mínima de ordem física, de recursos materiais, medicamentosos e de equipe preparada para lidar com a si-tuação de crise nos CAPS inviabiliza o acesso deste sujeito e de seus familiares a esta unidade. A orientação da gestão munici-pal é que o CAPS seja a porta de entrada da rede de assistência para essas situações, no entanto, o que observamos é que estes recursos não estão preparados para lidar com este tipo situação.

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Há algumas ações que demonstram a tentativa de man-ter o estado de controle dos sujeitos psicóticos que tendem a desenvolver as situações de crise, como a aplicação mensal em domicílio da medicação. Entretanto, no momento da situa-ção de crise, não se encontra ação desenvolvida pelos CAPS junto a este sujeito. Isso faz com que os familiares não apre-sentem confiança nos trabalhos desse equipamento de saúde.

[...] as meninas do CAPS vêm...no CAPS ela é bem tratada...não tenho o que reclamar do CAPS... As meninas todo mês vêm dar uma inje-ção nela, a enfermeira veio, eu marquei...uma ... consulta com este médico que chegou lá que eu disse. Elas vieram buscar ela na kombi... Ela bem tratada lá. Ela é que não gosta de ir...não gosta de fazer terapia, não gosta nada disso...Ela toma uma injeção mensal, as meninas vêm dá em casa porque ela não estava mais indo para lá (Íris).

Nos CAPS num tem médico, se tem médico, se tem a crise não fica lá, manda prós hospitais, então é difícil, complicado. Os CAPS não resol-vem, não resolvem porque, porque o sujeito só vai quando ele quer e o meu não vai, não tem nem perigo dele ir. Para dizer que ele não foi neste tempo todinho, ele foi uma a três vezes só, ele não vai, ele diz: eu não vou, eu não vou e bate o pé e não vai... Eles não dão receita sem vê o sujeito, porque é obrigação deles quando estava tendo uma reunião lá, eu sempre vou para as reuniões lá, que era obrigação do pessoal dos CAPS virem na casa da gente ver o sujeito, já que o sujeito não vai, eles têm como vir em casa e eles não vem. Ele estava este tempo todi-

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nho sem ir, aí a gente foi lá, eles (CAPS), fica aqui no bom jardim, eles me disseram que tinha que fazer uma... triagem, iam marcar um dia de uma triagem para mim levar ele para poder fazer. Então é difícil, muito difícil, ainda mais que esses hospitais que querem fechar... tem é muito fechado e fica mais difícil, porque esses “CAPS” num adianta não... Aí não tem como, a gente se socorrer nos “CAPS” (Atena).

4.4 O Cuidado e suas dimensões: perspectiva da família e da rede

A dimensão do cuidado ganha relevante importância no contexto das situações de crise, por se constituir em uma forma de lidar e compreender os quadros instalados no mo-mento da crise. O cuidado se constitui de um conjunto de saberes e práticas que se institui por novas formas de assistir, compondo-se, assim, em um território interdisciplinar sob o signo da multiplicidade (RINALDI; LIMA, 2006).

Esta multiplicidade implica na necessidade de uma participação ativa de todos os atores sociais no processo de elaboração, escolha e execução do projeto terapêutico a que o sujeito se submeterá. Para isso, requer esforço intenso e con-sistente da equipe de saúde, família e sujeito, na elaboração de um plano terapêutico que gere um novo processo de cuidar (fluxograma).

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Figura 7 - Fluxograma demonstrativo de um projeto terapêutico.

Observamos completa desintegração entre equipe de saúde e familiares, angústia de familiares na busca por expli-cação quanto aos episódios de crise, em um contexto de com-pleto desconhecimento da situação de tratamento.

[...] eu não sei como vai ficar porque os médicos não dizem, um diz que ele não tem nada, outros dizem que tão cedo ele não vai sair (Hera).

Era isso que eu queria saber, que eu já até perguntei para o médico: doutor, por que ela tomando o remédio ela entra em crise? Mas, ninguém me responde e nem eu sei por quê...Eu sou consciente que eu dou o remédio... eu... vejo tomando e ela entra em crise... depois que ela entra em crise, ela só fica boa se ela se inter-nar... se for no hospital (Íris).

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É possível perceber que o sujeito não é considerado no contexto dos diálogos que conduzem seus diagnósticos, uma vez que não há, nos relatos, comentários que exponham se o sujeito chegou a ser ouvido ou examinado. Infelizmente, ocorre, simplesmente, o sequestro da liberdade do sujeito.

[...] o médico disse para mim [mãe do sujei-to]: minha filha, faça um quarto lá no fundo do quintal e bote ele lá dentro, a senhora bote grade. E eu disse o senhor vai preso no meu lu-gar? Porque se eu fizer isso eu vou presa (Atena).

A rede não dispõe de estrutura que recepcione, orien-te um processo de acompanhamento nas situações de crise. Acreditamos que a instituição de protocolos e de planos te-rapêuticos singulares em muito contribuiriam para reduzir as constantes situações de crise.

O grande desafio do século XXI, com relação ao cuidado em saúde mental, é romper com antigos paradigmas de saber, que ainda são instituídos no momento das assistências profis-sionais; caso do médico citado que, equivocadamente, propõe assistência baseada em perniciosos métodos de retrocesso das formas de coerção física, próprias do tratamento moral. Tor-na-se necessário instituir um movimento que estimule a co-produção de cuidado, tendo em vista o processo paulatino de responsabilização de atores e instâncias sociais pelo cuidado no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, abrangendo familiares e vizinhos de sujeitos psiquiátricos – como tam-bém pastores de igrejas locais e mesmo patrões no ambiente de trabalho –, os quais têm sido instigados a “participar” da política pública, principalmente no lugar de “cuidadores” e

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de “suporte social”, embora oficialmente considerados “par-ceiros” (SILVA, 2009).

Aspecto que vale ressaltar é a confiança em uma entidade superior. A presença de Deus, nesse aspecto não está ligada, apenas, ao exercício espiritual da fé. Na realidade, ao buscar a Deus, em um determinado curso da doença, os sujeitos e suas famílias expressam o desamparo e a ausência de cuidados da rede de atenção, ficando apenas presença da família. Ou seja, o sentimento de não existir a quem recorrer, no plano material, quando as necessidades surgem.

Quando eu estou assim quem cuida de mim? É Deus! Aqui na terra é a família, a família que gosta da gente (Afrodite).

Eu passei dois dias com ele lá [Hospital Mental de Messejana] sabe, foi que graças a Deus abriu uma porta e surgiu uma vaga no São Vicente de Paulo e botei ele lá (Atena).

[...] eu creio que Deus vai transformar aquela vida, ele pode curar, ele tem todo o poder de curar e libertar... porque Deus tem o poder. Nós não podemos nada, mas ele pode, porque ele é o médico dos médicos (Atena).

Por outro lado, o abandono do tratamento, aparente-mente como um ato consciente do indivíduo com transtorno mental, pode representar ausência do cuidado da família. Ao passo que, geralmente, essa ausência pode ser uma fuga do sofrimento vivenciado. Assim, o sofrimento passa a não ser acolhido e se configura como fatalidade. A fuga dessa fatali-dade é representada pelo não cuidado da família.

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Porém, o processo de cuidar não pode ser rompido pela decisão tomada pelo sujeito. Faz-se necessária intervenção por parte de algum dos integrantes da cadeia cuidadora.

O ato de cuidar envolve muitas implicações. É impres-cindível o compromisso familiar e profissional nesse processo para que sejam garantidas ao sujeito em sofrimento mental as intervenções necessárias, seja de ordem institucional (consul-ta, medicação, terapia etc.), intersetorial (habitação, trabalho, esporte, cultura e etc.) ou familiar (atenção à pessoa, escuta, carinho etc.).

Ela fez tratamento no CAPS [...] agora não. Ela resolveu abandonar o tratamento... minha mãe deixou a casa, não conseguiu mais lidar com a situação – e ela já é uma pessoa de idade, aí minha própria irmã – que tem o problema – re-solveu não tomar mais nenhum medicamento [...]. Ela fazia o acompanhamento, mas resolveu desistir por conta própria [...] (Orfeu).

[...] porque das vezes [que] foram medicá-la eu não fui [...] (Héstia).

O processo de assistência se dá, principalmente, em dois espaços institucionais: o SAMU e o hospital psiquiátrico. Percebemos que o processo do cuidado ocorre nesses servi-ços devido à desestrutura da rede substitutiva existente em Fortaleza, conforme já discutido anteriormente. Ou seja, o espaço hospital psiquiátrico, embora muito condenado por seus múltiplos problemas na assistência ao usuário do serviço, tem-se mantido como porta de entrada para os casos de crise psíquica porque não há outro mecanismo de assistência ao sujeito com necessidades de cuidados em saúde mental.

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Portanto, o fluxo seguido pela família foi chamar o SAMU para que este possa conduzir o sujeito ao hospital psiquiátrico. Todos esses fatos apresentam a ausência de uma rede extra-hospitalar capaz de fornecer respostas às necessida-des de saúde dos usuários do serviço de saúde pública.

Ainda que os familiares saibam que o hospital não é o espaço ideal para cuidar do seu ente em sofrimento mental, eles recorrem a esse serviço, submetem-se ao caos e, ainda, defendem a unidade hospitalar. Tudo isso porque não há ou-tro espaço ao qual os familiares possam recorrer no momento de profundo sofrimento dos seus entes, como são as crises. O hospital é percebido como local ideal para um processo de contenção emergencial.

A Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza implantou suporte de assistência à situação de crise, abrindo um CAPS tipo III, no final do ano de 2012. No entanto, restringiu a assistência disponibilizada pelo aparato a sua rede de CAPS. Desta forma, a única maneira de adentrar neste novo serviço é estar em situação de crise em um CAPS da rede de Fortaleza, assim, a demanda oriunda das ambulâncias do SAMU con-tinua sem opção extra-hospitalar para conduzir seu sujeito.

Estes CAPS não eram para existir não, era para existir hospitais, abrir estes hospitais que estão todos fechados, abrir para colocar este pessoal para dá sossego a gente, porque a gente não tem sossego não [...] (Atena).

A internação involuntária, do tipo que ocorre sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro, foi instituí-da pela Lei 10.216 como forma de o indivíduo em sofrimen-

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to ter um responsável por si e, assim, não ser abandonado e esquecido nos hospitais (BRASIL, 2010). Esta lei institui os direitos do sujeito mental e define as formas de internação do indivíduo quando as formas de assistência extra-hospitalar estiverem esgotadas.

Mesmo que os procedimentos legais estejam sendo res-peitados, não foi procurada outra forma de assistência, sem ser o espaço hospitalar.

Meu menino mais velho foi quem foi [...] ele assinou o termo para ele entrar e ele só sair se meu filho assinar o termo para ele sair, a Dra. ontem falou “S. teu pai só sai daqui se tu vier assinar. Enquanto tu não assinar para ele sair nós não podemos deixar ele sair daqui, porque você tem que assinar o termo da saída dele”. Aí tá nesta situação [...] ele só sai se o meu menino for assinar para ele sair (Hera).

O cuidado que os familiares têm dado ao sujeito mental apresenta algumas questões: a primeira é a desconfiança na assistência disponibilizada pelos serviços extra-hospitalares, geralmente consequência de desconhecimento dos serviços disponibilizados nestas unidades ou devido a tentativas frus-tradas por atendimento em situações de crise. A segunda é o fato de a família considerar o hospital como um espaço que lhe proporcionará sossego daquela situação vivenciada que, em um primeiro momento, parece uma coisa horripilante e segregadora. No entanto, este sentimento surge, não como uma forma de se livrar do familiar em situação de crise, não porque a família o considere um peso no contexto de vida, não porque não o ame, mas, simplesmente, por encontrar-se

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exaurida no ato de cuidar. Cavalheri (2010) afirma que mes-mo as famílias preferindo manter seus familiares em casa a vê-los internados, expressam cansaço, exaustão e necessidade de ter um tempo para si, um tempo livre.

É importante ressaltar que o sujeito mental está sendo entregue à família sem o devido conhecimento das reais ne-cessidades e condições da família, especialmente das cuidado-ras em termos materiais, psicossociais, de saúde e qualidade de vida, aspectos estes profundamente interligados. Essa sim-ples transferência de responsabilidade, tirando-o de dentro dos muros hospitalares e o confinando à vida familiar, tende a ocasionar prejuízo ao sujeito e a seus familiares (GONÇAL-VES; SENA, 2001).

Quando o sujeito apresenta pequena melhora é devolvi-do aos familiares sem que tenha alcançado recuperação ade-quada. Este fato pode ser observado de duas maneiras, na pri-meira, a devolução pode ocorrer de forma precipitada devido à rede hospitalar, que se encontra encharcada, produzindo o efeito conhecido como porta giratória, cujo hospital regulará a entrada e a saída dos sujeitos e assim disponibilizar mais leitos para internação e, consequentemente, mais recursos fi-nanceiros. O segundo olhar centra no desejo da família de manter seu familiar assistido em um hospital, possibilitando, assim, um convívio familiar salutar.

...muito importante que eu acho os hospitais... [mas] quando a sujeito melhora um pouco...eles jogam pra casa...às vezes, a pessoa conti-nua... fizeram isso com ela...melhorou um pou-quinho, botaram...para casa. Passou foi tempo para ela ficar boa...isso...eu acho um ponto

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muito negativo...porque, às vezes, a pessoa não está completamente boa. Ontem mesmo eu vi uma menina lá que estava de alta, a menina toda impregnada, de olho duro... eu pensei que ela tivesse se internado, ela tinha saído do inter-namento... (Íris).

A família do sujeito em sofrimento psíquico vivencia o conflito entre internar ou não seu parente, por um lado precisa internar, pois não encontra na rede substitutiva de Fortaleza aparato capaz de prestar assistência eficiente a este sujeito e, por outro lado, sofre com a internação por conhecer as formas de (des) cuidado disponibilizado no interior dos hospitais psiquiátricos.

A família conhece os procedimentos disponibilizados na rede hospitalar e prorroga ao máximo a internação de seu pa-rente, somente recorrendo a este suporte quando se esgotam os recursos disponíveis ou o sujeito encontra-se em risco de morte.

[...] eu sei o sofrimento, eu sei como é. Só levo quando ela fica sem comer e sem tomar o re-médio. Como ela estava... aguentando... mas, mesmo assim não consegui. Por fim ela já não estava mais comendo, dizia que eu colocava co-mida pra ela em um prato de defunto... (Íris)..

O hospital é percebido como local ideal para um pro-cesso de contenção emergencial. A busca de cuidado para o ente é um momento de sofrimento para a família, que tem como causa a ausência de serviços que proporcionem assistên-cia adequada a estes sujeitos em situação de crise. Esse fato é ponto de tensão emocional na família.

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[...] eu vinha dominando ele 24h porque eu não queria que ninguém o maltratasse, ele não queria ir para o hospital... “não me leve à força” (filho). Não, eu não vou levar à força, o que der para fazer por você eu faço... o que puder fazer por você eu faço, tudo que dizia... e pedia que eu fizesse por ele eu fazia (Hera).

O ambiente hospitalar reflete na família e no sujeito percepção de vigilância, de punição, estigmatização, adminis-tração sistemática do vexame; a disciplinarização, as relações verticais e assimétricas, a proibição da palavra, a “privatiza-ção” do sofrimento psíquico, a medicalização são alguns ana-lisadores eloquentes (KAZI, 1999).

[...] o sujeito que não tem um acompanhante, ele está meio que jogado à própria sorte. Claro, tem a alimentação garantida e tal, o banho e tudo mais, mas, assim, a gente não vê um traba-lho [de] terapia ocupacional regular... É a sexta vez que eu estou no hospital. Eu sei como é que é. A gente não vê um empenho de uma psicó-loga querendo saber a história deles para vê se dá um jeito de melhorar[...]o que a gente vê é que aqueles sujeitos que têm família próximo têm mais um cuidado mas, aqueles que não têm família[silêncio]são abandonados[...] (Geia).

A forma de assistir dos hospitais psiquiátricos encontra-se em decadência, requerendo transformação emergencial, e já tarda a necessidade de implantar uma rede que seja resolu-tiva à problemática da situação de crise psíquica no município de Fortaleza. O que se tem é a existência de uma assistência à situação de crise centrada no atendimento emergencial, fato

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que centra a atenção no serviço do SAMU e tem como porta de entrada os hospitais psiquiátricos.

A deficiência encontrada nos serviços extra-hospitalares do município de Fortaleza incha os hospitais psiquiátricos que, assim, permanecem obrigados a receber os usuários em situações de crises psíquicas porque esses sujeitos não têm ou-tro espaço para buscar assistência. Há ausência de um serviço de qualidade que oferte ao sujeito suporte assistencial efetivo no momento ou na fase pré-crise, garantindo o acesso à assis-tência de qualidade e na rede de serviços extra-hospitalares.

[...] a última consulta dela foi marcada com oito meses (CAPS) vai ser em dezembro... mas na hora que a gente quiser o remédio a gente vai falar com o outro médico, mas... o outro médico não pode fazer nada... Para... falar com o médico da pessoa... [precisa] marcar uma consulta extra... Eu acho as consultas de lá, os retornos de lá, muito prolongado... Se o sujeito estiver em crise, amanhã vamos para o médico? Eu não posso fazer isso, entendeu? ... a última consulta... foi... há oito meses! Tem condição? ... e não era desse jeito. O máximo que passava era três meses... passou para quatro, passou para cinco e... tá agora [assim] (Íris).

Transcorridos mais de dez anos da implantação do pri-meiro CAPS no município de Fortaleza, ainda, é possível vi-sualizar problemas de ordem administrativa, como ausência de estruturas físicas, de profissionais e, principalmente, de protocolo de atendimento que permita identificar e recepcio-nar os sujeitos que estejam apresentando sintomas pródromos de crise psíquica.

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O intervalo entre as consultas é outro problema que pode ser considerado fator potencializador das crises psíqui-cas, pois se torna inadmissível um intervalo de oito meses en-tre uma consulta e outra de um sujeito que esteja em situação de crise. É imprescindível realizar acompanhamento adequa-do da evolução deste sujeito, acompanhar as possíveis reações medicamentosas e programar conduta terapêutica capaz de inibir a manifestação da crise.

4.5 O porvir na visão do familiar e do sujeito em crise

Conseguir uma assistência de qualidade ao cuidado em saúde mental é, seguramente, o primeiro ponto que a família do sujeito em sofrimento psíquico busca como perspectiva para o futuro. Infelizmente, não depende deles a estruturação de uma rede de cuidados, todavia, são as maiores vítimas da ausência dela.

Os serviços extra-hospitalares devem assumir a posição de protagonista da assistência ao sujeito em sofrimento psíqui-co e colocar-se como dispositivo de acolhimento, de cuidado e ressocialização. Somente quando implantada uma rede de saúde mental, que garanta atenção de qualidade ao sujeito em sofrimento psíquico, é que seus familiares poderão sonhar ou vivenciar uma melhor qualidade de vida para esse parente.

O porvir, na visão da família, é refletido no desejo de ter uma vida que eles consideram normal. E o normal para eles é simplesmente “ter uma cama para dormir” ou “comer em paz”.

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É triste dizer isso porque eu queria muito viver numa casa com meus móveis, minha cama di-reitinho, com tudo direitinho... ver meu filho bem, eu queria ter uma vida, digamos, quase normal porque é difícil você dizer vida normal com uma pessoa com transtorno...uma vida próxima à vida que as outras pessoas têm, eu não tenho essa vida, eu durmo no chão porque ele não deixa eu ter uma cama...eu vejo pouca esperança, do jeito que tá hoje... (Geia).

O sofrimento é uma realidade concreta e uma caracte-rística comum entre as famílias do estudo. O lar desses gru-pos de indivíduos é claramente marcado pela ausência de paz, vivência de experiências angustiantes e de completa falta de esperança em dias melhores, tanto em relação à assistência em saúde, quanto à situação financeira. Pois, a rede disponível ao tratamento não é a ideal e, em vez de estimular uma reabili-tação deste sujeito, tende a produzir mais tensões, agressões e violações de ordem física e psíquica.

Quem convive com louco não tem paz, porque muitas vezes eu não como, porque não dá para comer. A gente não se alimenta direito, não dorme direito, não tem sossego, principalmen-te no final de semana que tem bebedeira e o pessoal dão bebida para louco [...] (Atena).

[...] eu agora posso tá com ele no hospital por-que ele é menor de idade e quando ele ficar de maior eu vou ser obrigada a deixá-lo sozinho...vou ser obrigada a ver ele apanhar dos outros, acontecer uma coisa de ruim com ele, até um estupro de um sujeito com outro, que acontece isso, infelizmente... (Geia).

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Quando ele (filho) está em crise [...] vou procu-rar a medicina para vê se a gente tem um pouco de paz, [...] (Atena).

[...] já tentei três vezes me aposentar, não con-segui... por causa deste engancho de...ter que morar só para dizer que precisa... eu preciso, eu necessito porque quando eu tiver velha, coroca (risos) quem vai cuidar de mim, imagino isso para o futuro, [...] (Afrodite).

O sujeito mental é colocado à margem da sociedade e do mercado de trabalho e passa a depender de benefícios para ob-ter renda mensal que, muitas vezes, é a única renda da família.

A ausência de intervenção terapêutica adequada expõe os sujeitos mentais a repetidas crises, e estas, por sua vez, mo-dificam o convívio dos membros da família: separam os entes de forma a interferir nos laços afetivos da família; membros se destituem de suas posições no grupo familiar; deixam de ser chefes de família, pais, esposos porque assumem atitude de re-volta e não acolhem o sofrimento de conviver com um sujeito com crises psíquicas. Assim, redes sociais são abruptamente rompidas e novas rotinas de responsabilidades e decisões são estabelecidas no interior das famílias.

Não estou me sentindo muito bem não, por-que nós nunca nos separamos desta forma, 36 anos nós nunca nos separamos. [...] desta forma assim nós nunca tínhamos nos separado não, e toda vida eu cuidei muito bem dele, porque ele sempre foi uma pessoa muito legal, nunca deixou... eu ficar com as minhas coisas na ca-beça, sem ter condições. Graças a Deus, isso

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aí nunca aconteceu, ele sempre foi uma pessoa que nunca deixou faltar nada dentro de casa... eu estou sofrendo, porque, assim, eu não posso ficar direto na minha casa... eu venho, cuido de alguma coisa, do uma geral... e vou para casa da minha menina, para casa do meu menino. Eu me sinto [só] coisas que eu não resolvia, agora eu tenho que resolver... ele disse lá que eu estou sofrendo muito, eu não estou me alimentando direito, que ele já sabe quem sou eu...eu não tenho é força de vencer a batalha (Hera).

É mais difícil porque eu não tenho marido, por-que se eu tivesse um homem que me ajudasse nesta caminhada, um marido, um esposo, mas não tenho. O pai dele e nada é uma coisa só... é um pai que não tem amor por ele, manda eu botar ele no meio da rua... isso é coisa de pai? ... Lugar de doido é no hospital, o que ele diz é isso com o filho. No lugar de ajudar só atrapa-lha cada vez mais... (Atena).

O convívio com a doença mental é muito difícil, desgas-tante e cansativo para o grupo familiar, agravando-se quan-do este cuidado se centra em uma única pessoa, pois a torna vulnerável a manifestações de ordem física, emocional e eco-nômica. Outra constatação no cuidar no contexto familiar é que a maioria dos cuidadores é do sexo feminino, somente na ausência destas é que um familiar do sexo masculino assume essa atividade, conforme assinala Cavalheri (2010).

Diante da dificuldade de assistir o sujeito em sofrimen-to mental em casa, percebemos duas posturas distintas. Uma crítica e ativista, em que surgem sugestões que representam desejos de um serviço que proporcione assistência digna a esta

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população, de forma que possibilite ressocialização e a socia-lização de seu familiar. E uma postura de quem se encontra vencido: passivo e sem perspectivas de mudanças do contexto contraditório que ora se apresenta.

Na alusão ao “cuidador domiciliar” e às “visitas domici-liares”, registramos o desejo da família de continuar cuidando de seu ente.

[...] então já pensou se o Estado... pagasse um cuidador... para que você pudesse ter mais esse suporte domiciliar... Seria muito melhor, a gen-te não precisaria estar internando a pessoa o tempo todo, a gente poderia cuidar da pessoa em casa, se houvesse um cuidador, alguém que fosse, ficasse na sua casa, por um determinado período... te ajudando [...] (Geia).

Eu acho o seguinte: que mesmo que eu tenha alguma coisa a dizer, não vai adiantar nada, viu. Porque nós não somos maioria e a gente fala, fala, porque o que a gente vê na televisão são as ambulâncias sendo mostradas e os anjos da noite socorrendo não sei quem. E quando a gente precisa é uma dificuldade toda, eu não tenho nada a dizer por isso, porque não adianta nada. Bem que eu teria, mas eu não vou dizer, porque não vai adiantar, não vai adiantar o meu pedido, bem que eu queria dizer “faça isso, eu gostaria que fizesse assim”, porque não adianta. Inclusive eu até me estressei com o senhor, mas é porque faz raiva mesmo, a gente está preci-sando de uma coisa e não ser atendido. Eu teria bem o que dizer mesmo, mas deixe para lá, não adianta, não vou reclamar porque não adianta eu reclamar (Íris).

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...maior atenção para saber a história deles, para vê se existe uma recuperação, porque... [não] é só dar remédio, comida e ele ir pra casa... a gen-te vê muita reincidência...fica nesse vai e volta o tempo inteiro. Não seria melhor fazer um tra-balho para que...ficasse muito mais tempo em casa e poucas vezes no hospital, o hospital ser realmente uma emergência [...] (Geia).

[...] ter um terapeuta ocupacional que fosse até a minha casa atendê-lo lá... quando ele estivesse melhor voltaria para essa rotina dele... ter um serviço de tempo integral [...] (Geia).

[...] o CAPS deveria funcionar para esses su-jeitos o dia inteiro... um CAPS que deveria ter tempo integral, que eles pudessem ser atendi-dos por vários profissionais... psicólogo, terapia ocupacional, fonoaudiólogo... ter um médico, claro, um médico é importantíssimo também pra acompanhar a medicação. Que eles pudes-sem chegar oito horas da manhã e vim para casa cinco horas da tarde era o ideal, eles almoça-riam no CAPS... teriam reuniões regulares com os familiares para explicar como lidar com eles em casa (Geia).

A base das sugestões apresentadas nesses resultados é o princípio da dignidade da pessoa humana. Pois, antes de qualquer necessidade que o ser humano venha a apresentar, ele é uma pessoa, portanto deve ser tratada com dignidade.

Vê eles como seres humanos e não como um sei lá... subpopulação... eu... as vezes... vejo alguns aqui de uma forma tão massacrada, doente, magro, que... comparo eles com aqueles judeus no campo

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de concentração... aparência física deles, é tão mal-tratado de uma maneira que você pensa, não [é] possível... não são tratados feito gente (Geia).

Destacamos a importância do acompanhamento terapêu-tico do sujeito no domicílio, uma vez que a visita domiciliária é fundamental para aproximar sujeito, família e instituição. A visita domiciliária ou assistência em ambientes externos é uma forma de as equipes dos serviços de saúde expandirem suas ações e, também, uma oportunidade de conhecer o contexto familiar e a estrutura das famílias para cuidar de seu familiar. Na maioria das vezes, essas famílias não têm estrutura física, nem psicológica para cuidar do ente com sofrimento mental.

As unidades de saúde, no nível local, foram constituídas para ofertarem um serviço de tempo integral, com alimen-tação, terapias e convívio humanizado. Contudo, a grande demanda, agravada pela existência de poucos serviços extra--hospitalares, inviabiliza ofertar estes serviços a todos os fre-quentadores dos CAPS, sendo selecionado número reduzido de sujeitos para receberem estes serviços. Além disso, a ali-mentação, nem sempre, é constante, pois, barra na burocracia das licitações municipais.

No contexto da assistência emergencial, ressaltamos a am-pliação no número de ambulâncias, já que o município de For-taleza dispõe apenas de uma viatura para atender a essas chama-das e, em nível hospitalar, é requerida a contratação de recursos humanos para proporcionar melhor assistência aos internos.

O presente estudo apresenta importantes contribuições para a gestão municipal de saúde de Fortaleza, na área de saú-de mental, de forma que medidas de caráter intervencionista sejam implantadas em caráter de urgência.

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5 COMPREENSÃO DAS HISTÓRIAS DOS SUJEITOS DO ESTUDO: REFLEXÕES

Este estudo possibilitou adentrar no drama humano e assistencial vivenciado por familiares e sujeitos em sofrimento psíquico, em um dos momentos mais angustiantes deste fenô-meno: a crise. No contexto sócio-institucional de Fortaleza, campo empírico da investigação, não foi possível identificar uma rede substitutiva alternativa que contemple as necessida-des do sujeito psíquico, tendo-se constatado falhas dramáticas no momento crítico representado pela crise psíquica.

Verificamos a complacência da rede substitutiva na coe-xistência com a rede hospitalocêntrica, pois o município não teve condições, ou não optou, por implantar uma estrutura de serviços substitutivos que possibilite assistência a estes qua-dros psíquicos de crise. Ainda que a rede municipal implanta-da proporcione impactos terapêuticos positivos, a inexistên-cia de estrutura de retaguarda aos CAPS, principalmente na situação de crise psíquica, constitui-se ponto de estrangula-mento crítico da Rede de Atenção em Saúde Mental (RASM) municipal: os casos pesquisados lançaram mão da rede de atenção terciária composta pela díade SAMU-Hospital Psi-quiátrico para resolver as situações de crise de seus familiares. Constatamos, também, a partir dos relatos dos entrevistados, que a rede substitutiva não apresenta condição de prestar as-sistência no momento da situação de crise.

Desse modo, realizamos reflexão panorâmica sobre este problema em âmbito nacional, de modo a situar o caso es-

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pecífico estudado neste contexto mais geral do país. Como visto com maior detalhe e aprofundamento em capítulo an-terior, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira vem se consolidando no cenário nacional como movimento histórico e revolucionário da luta antimanicomial. Tem como objetivo--estratégia fundamental o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico, centrado no paradigma psiquiátrico hegemônico.

Assim, procura instituir, no país, o processo de desins-titucionalização e a concretização de uma rede substitutiva de atenção à saúde mental, que rompa com a lógica hospi-talocêntrica. As mudanças têm se referenciado em um pro-cesso de restituição da cidadania do doente mental, visando socialização e rompimento com a dependência hospitalar e o introduzindo em um contexto novo de atenção, que propor-cione relações interpessoais e terapêuticas mais adequadas e humanizadas (AMARANTE, 2008).

Entretanto, na prática assistencial concreta dos serviços de saúde mental, confluindo, paradigmaticamente, para uma situação semelhante a de Fortaleza, sérios problemas assisten-ciais têm sido identificados e denunciados, por diferentes ato-res sociais, a merecer reflexão crítica por parte dos gestores e defensores da Reforma Psiquiátrica.

Utilizaremos, como panorama-referência (“viva”) para essas reflexões sobre o contexto de assistência à saúde mental que vem sendo prestado no país, o embate político-conceitual recorrente nos últimos anos, na mídia nacional, sobre o tema, tendo como atores selecionados a Associação Brasileira de Psi-quiatria, supostamente defensora de interesses privatistas no setor; o escritor-articulista Ferreira Gullar que, no caso, trata-

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se de um usuário familiar (com voz midiática) do sistema de saúde e dos serviços de saúde mental; e as entidades identifi-cadas como defensoras da Reforma Psiquiátrica.

Os setores prestadores de serviços e os defensores das in-ternações psiquiátricas consideram que a concepção manico-mial, associada ao tradicional hospital psiquiátrico, já estaria superada, sendo o dispositivo hospitalar, ainda, essencial na atenção da saúde mental em situações determinadas. Inclu-sive porque a rede substitutiva não se instalou por completo, continua ineficiente no atendimento ao sujeito em crise e de-lega essa tarefa aos serviços de urgência dos hospitais psiquiá-tricos (JARDIM; DIMENSTEIN, 2007).

Nessa linha de argumentação, encontra-se a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que teve suas contestações e críticas publicadas através de matérias e artigos jornalísticos. A ABP utilizou do espaço de O Globo, do dia 20/07/2006, para escrever: O grande equívoco da política de saúde mental. No artigo, a ABP, representada pelo seu presidente [Dr. Jo-simar França], aduziu severas críticas ao Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde:

...seu planejamento foi desenvolvido a partir de antigos preconceitos e com viés populista, [e que] ... fugiu de critérios clínicos e foi fun-damentado na percepção equivocada, construí-da durante anos, de que todos os internos em unidades psiquiátricas sofrem maus tratos. Para isso ressuscitaram o conceito de manicômio e toda a carga pejorativa que acompanha a pala-vra (FRANÇA, 2009).21

21 Disponível em: <http://www.jmpsiquiatria.com.br/edicao_24/grandeequivoco.html>. Acesso em: 26 jan. 2009.

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É importante lembrar que os conceitos, os preconceitos e as percepções que caracterizam os manicômios, atualmente, são oriundos de concepções historicamente fixadas nos concei-tos de loucura como doença. É a partir deste pensamento que se constitui a periculosidade do louco e se estabelece a necessi-dade do isolamento (internamento), sendo criadas as casas de repouso, em que se utilizou o poder absoluto para isolar ha-bitantes sãos (FOUCAULT, 2009). A adoção do manicômio como modelo de assistência aos sujeitos alienados mentais do século XIX possibilitou a observação sistemática da loucura, considerada pelos psiquiatras da época o ideal para o trata-mento ao louco (AMARANTE, 1996; OLIVEIRA, 2009).

Será que toda a herança da prática institucional manico-mial está superada, a ponto de tornar o hospital psiquiátrico como espaço viável ao tratamento dos sujeitos em sofrimento psíquico? Segundo os defensores deste espaço de tratamento, ele somente não se estabelece porque os defensores da Refor-ma tendem a difundir o discurso de que a internação psiquiá-trica não é um procedimento adequado. No entanto, não foi isso que ouvimos nos relatos dos sujeitos entrevistados nesta pesquisa: mesmo sendo o único recurso existente para assistir o sujeito psíquico no momento de sua crise, os cuidadores resistem em internar o familiar, procurando administrar a situação de crise até o limite possível. Finalmente, não vis-lumbrando alternativa que consiga solucionar o problema da crise, os familiares recorrem ao hospital psiquiátrico, o que o mantem vivo.

Porém, a ABP acredita que o descredito do hospital psi-quiátrico é resultante do processo de Reforma Psiquiátrica estabelecida no Brasil.

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... numa movimentação batizada de “reforma psiquiátrica” (como se a especialidade médica necessitasse de reforma...), fecharam leitos em hospitais públicos, vejam bem, públicos, e po-saram de “salvadores da pátria” para os flashes. Quem precisa de reforma é o modelo assisten-cial e não os médicos. Na mais recente medida em busca da unção popular, atraíram a Secreta-ria Especial dos Direitos Humanos da Presidên-cia da República para a assinatura de uma por-taria interministerial que trata de saúde mental. Mais explícito o objetivo, impossível. Conse-guiram oficializar a relação entre tratamento de transtornos mentais com os maus-tratos.6

Em 2009, uma figura importante da literatura brasileira adentra a discussão, Ferreira Gullar, poeta, escritor e colunista do jornal Folha de São Paulo. Utilizou-se de seu espaço jornalís-tico para escrever a crônica Uma lei errada, em que critica o fe-chamento dos leitos psiquiátricos e o formulador, no Congresso Nacional, da Lei 10.216, a quem se dirigiu da seguinte forma:

Havia, naquela época, um deputado... que aderiu à proposta, passou a defendê-la e apresentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que “as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles”. E eu, que li-dava com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: “Esse sujeito é um cretino”. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizo-frênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e sal-var a família. “Esse idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos do que eu”.22

22 Disponível em: < http://www.portalliteral.com.br/artigos/uma-lei-errada>. Acesso em: 04 abr. 2009

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A relação entre a família e o tratamento do sujeito em sofrimento psíquico centrou a reflexão crítica de Gullar nesse trecho, ao questionar o pressuposto de que a internação do doente mental seria uma forma de a família livrar-se de seu parente, sem considerar as situações-limite, inclusive de risco de vida, a que os cuidadores e seus familiares em crise são submetidos, recorrentemente.

Na mesma direção, outro estudo aponta que alguns fa-miliares visualizam o processo de desinstitucionalização como etapa de transferência de responsabilidade, em que a ordem, o controle e a verdade sobre a doença do familiar, que era definida pelo hospital psiquiátrico, agora era transferido para si (RANDEMARK; QUEIROZ; JORGE, 2004). Focault (2006) destaca a relação privilegiada do asilo com a família, em que este é visto como lugar de formação da verdade.

É importante, ainda, ressaltar que o processo de desos-pitalização instalado, em muitos casos, não observou a so-brecarga que a família enfrentaria na convivência com este doente, desencadeando atitudes de incompreensão familiar e até de rejeição, motivadoras de reinternações sucessivas ou de internações permanentes (GONÇALVES; SENA, 2001).

Cavalheri (2010) enfatiza que o processo de desinstitu-cionalização tem alto impacto para familiares, pois, ao mes-mo tempo em que possibilita a convivência e a manutenção do vínculo, impõe à família a sobrecarga de cuidar do ente familiar em períodos de manifestação aguda. A família, por outro lado, permaneceu na expectativa da construção da rede substitutiva preconizada, capaz de suprir as necessidades de tratamento dos egressos dos manicômios. A não constituição desta rede contra hegemônica tem reflexo sobre o sofrimen-

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to de familiares e sujeitos, em situação de crise, reforçando a desassistência e a crítica ao processo de reforma psiquiátrica.

As matérias selecionadas refletem isso e mostram a con-fluência na crítica de polos-interesses não, necessariamente, idênticos, entre si, ou concordantes em suas fundamentações, motivações e consequências, como ocorrem em relação a uma entidade corporativa como a ABP e o usuário-familiar Fer-reira Gullar. Ambos criticam, embora de lugares diferentes, a forma como o movimento de Reforma Psiquiátrica associa o termo manicômio com hospitalização, pois a palavra “mani-cômio”, acreditam, já está em desuso e, por si, já é repleta de conotações negativas, sendo utilizada em uma época em que não existe mais este tipo de hospital.

A possibilidade de expressão pública da sobrecarga de or-dem física, emocional e econômica provocada na dinâmica fa-miliar e enfrentada pelos cuidadores do doente, e a ineficácia de uma atenção de saúde mental satisfatória, fez com que a mani-festação de Gullar recebesse diversas adesões à sua crônica. Esse fato o levou a se expressar, mais uma vez, através do texto jor-nalístico A sociedade sem traumas, em que referiu que a maioria dos apoios recebidos em sua manifestação vem de familiares que têm experimentado as consequências da Lei. Ressaltou, tam-bém, que elogios foram lançados aos bons atendimentos na rede substitutiva, mas, mantinha sua crítica à impossibilidade das in-ternações dos sujeitos. Neste aspecto, fez comentários desfavo-ráveis à “Psiquiatria Democrática”, por condenar a internação.

Se a doença, porém, for esquizofrenia, a coisa muda de figura: para a “psiquiatria democráti-ca”, interná-lo é atentar contra a sua liberdade. É que, na verdade, para os antimanicomiais, a

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esquizofrenia não é uma doença, como o é, por exemplo, a tuberculose ou a diabetes. Para eles, trata-se apenas de um “transtorno” psicológico, cujas causas estão fora do indivíduo: estão na família e na sociedade. Família e sociedade que, para ocultar sua culpa, o internam23.

Recoloca-se, desse modo, outra discussão, o fato de o transtorno mental ser tratado como distúrbio social e não como patologia, ideia propagada pela antipsiquiatria24 da dé-cada de 1960, que procurou definir que a experiência pato-lógica não acontece no indivíduo, enquanto corpo e mente doente, mas, nas relações estabelecidas entre ele e a sociedade (AMARANTE, 2007).

Gullar retornou à temática com certa constância, fosse através de novos artigos (Boas Intenções e Volto a resmungar, 2009) ou como fez em 2011, participando do XXIX Con-gresso Brasileiro de Psiquiatria. Em cada situação de reto-mada do assunto, Gullar manteve posisionamente crítico quanto à Reforma, reforçando que o tratamento oferecido nos hospitais psiquiátricos apresentava problemas, mas, que foram superados e não fazia sentido “demonizar” a internação psiquiátrica (CFP, 2011). E, ressaltava que, tampouco, acre-ditava que a internação, por si, resolveria os problemas, mas era inegável que, para casos de surto psicótico agudo, ela era imprescindível (GULLAR, 2009).

As afirmações e questões conceituais-práticas levantadas pelo escritor deveriam ser ouvidas-escutadas com a devida

23 Disponível em: < http://www.portalliteral.com.br/artigos/uma-lei-errada>. Acesso em: 04 abr. 200924 Movimento iniciado na Inglaterra no final dos anos de 1950 e que teve seu apogeu nos tumul-tuados anos de 1960, apresentou como principais idealizadores Ronald Laing e David Cooper. Fez crítica profunda à teoria da psiquiatria e defendeu que não existiria, enfim, a doença mental enquanto objeto natural como considerava a psiquiatria, e sim uma determinada experiência do sujeito em sua relação com o ambiente social (AMARANTE, 2007).

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atenção e respeito que se deve ao outro, particularmente no caso de um familiar que vivencia existencialmente o fenôme-no da doença mental, sem as usuais desqualificações, muitas vezes ideologizadas, que fogem ao debate mais profundo e resistem em submeter-se ao escrutínio da crítica social, no caso, de um usuário do SUS, inusualmente com possibili-dades de “direito à voz”. Todavia, compreendemos que não se pode destituir do hospital psiquiátrico os seus malefícios, como um passe de mágica. Afinal, foram nestes espaços que se instituíram as formas mais segregadoras dos doentes mentais que se tem notícia. Ao passo que, também, não se pode acre-ditar que uma rede substitutiva suprirá as demandas oriundas das crises psíquicas. Devem ser lembrados os transtornos que um sujeito psiquiátrico em crise ocasiona e que, geralmente, a família não dispõe de suporte para resolver tal situação. Por-tanto, se os defensores da Reforma Psiquiátrica afirmam que os hospitais psiquiátricos continuam sendo manicômios se-gregadores de seres considerados “diferentes”, deve-se indagar que dispositivo a Reforma estrutura para o atendimento a este sujeito em situação de crise.

Nesse aspecto, os defensores do campo da Reforma Psi-quiátrica, ao se posicionarem nesse debate sobre as críticas re-feridas, apresentam a rede dos serviços substitutivos como al-ternativa ao modelo hospitalocêntrico e reinteraram as contra-dições, conflitos e retrocessos do modelo asilar e manicomial.

A ABRASME assim se manifestou sobre as colocações de Gullar:

...desqualifica todo um processo social comple-xo, que vem evoluindo nos últimos 30 anos no Brasil, com a participação de diversos segmen-

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tos sociais, desde médicos psiquiatras, outros profissionais de saúde mental e de saúde públi-ca, poderes legislativo, executivo e judiciário, cientistas sociais, sujeito em sofrimento psí-quico, seus familiares e diversos outros setores, denominando-o simplesmente de “campanha contra a internação de doentes mentais”.25

A nota ressaltou que o autor pareceu incorrer no mesmo vácuo de compreensão de muitos que confundem amplo pro-cesso social de discussão das instituições, com a ideia simplória da desospitalização (OLIVEIRA, 2009b). Salientou, ainda, que nenhum profissional de saúde mental sério defenderia uma posição de não internação de uma pessoa, quando necessário.

Nessa perspectiva, o processo de Reforma tem estrutu-rado serviços que garantem tratamento e assistência digna ao portador de transtorno mental, sendo lugares de vida, de es-tímulo, de confronto, de oportunidade, de diversas relações interpessoais e coletivas, visando mudança cultural e política, antes social que sanitária (AMARANTE, 2008).

Esses serviços têm rompido e superado os espaços ma-nicomiais que, segundo a ABRASME, continuam a existir:

Os manicômios continuam existindo, conti-nuam sendo desumanos, tratando seres huma-nos como animais, produzindo mais doença e, com seu papel de depósito humano (temos mi-lhares de pessoas internadas por 20, 30, 40 anos), continuam sangrando o dinheiro público26.

25 Disponível em:http://www.abrasme.org.br/RESPOSTA_DA%20ABRASME_A%20FERREI-RA_GULLAR.pdf. Acesso: 25 mai. 2009b.26 Disponível em: http://www.abrasme.org.br/RESPOSTA_DA%20ABRASME_A%20FERREI-RA_GULLAR.pdf. Acesso: 25 mai. 2009b.

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A instituição de uma rede substitutiva ao manicômio torna-se um desafio aos militantes da Reforma, já que, assim, tornaria o hospital psiquiátrico objeto obsoleto e ultrapassa-do. No entanto, a não estruturação deste serviço tornou os serviços comunitários grandes captadores e encaminhadores de nova clientela para os hospitais psiquiátricos (OLIVEIRA, 2009). É por esse motivo que militantes pró-hospital procu-ram por revitalizá-lo, proclamando sua eficiência.

Em busca por interromper toda essa massificação de efi-ciência do hospital psiquiátrico, a ABRASME propôs que se conheçam lugares que caracterizam verdadeiros manicômios e aponta que pesquisas vêm evidenciando cientificamente avaliações positivas do novo formato de atenção à saúde men-tal. Por fim, a entidade ressaltou o interesse existente por trás de matérias deste modo, que buscavam por valorizar trata-mentos ultrapassados.

Há, também, interesses no velho sistema de internações que não têm nada a ver com a in-tenção de melhorar a saúde dos usuários, são herança da mentalidade do INPS, onde as in-ternações, e por quanto mais tempo melhor, são negócios que dependem da hotelaria, dos servi-ços, das licitações e da medicalização excessiva dos sujeitos.28

A disseminação de matérias sobre a saúde mental brasi-leira tem conquistado espaço considerável nos últimos anos na impressa brasileira, algumas com interesse de demonstrar a evolução do sistema de atenção à saúde mental. Todavia, segundo a ABRASME, muitas têm a má intenção e tentativa de manipulação da opinião pública. É focada na tese da má

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utilização da informação que o Conselho Federal de Psicolo-gia (CFP) caracteriza o artigo do jornalista Gullar.

Usando e abusando de falácias, o seu artigo na verdade tem como finalidade advogar, na contra mão das tendências mundiais, a favor da manu-tenção dos hospitais psiquiátricos como feudos corporativos e contra o incômodo fim dos privi-légios dos empresários da Psiquiatria e de certa elite acadêmica - a Psiquiatria de gravata - que se utiliza destes estabelecimentos como campo pri-vilegiado para experimentos locais, teleguiados pela indústria farmacêutica mundial27.

Para que a linha de defesa utilizada pelo CFP seja con-cretizada, é preciso transformação do paradigma de atenção à saúde mental, ocorrendo transformação da instituição psi-quiátrica. Esta transição paradigmática tem que ser manifes-tada em todo projeto sanitário, do contrário, continuar-se-á mantendo os empresários da loucura e alimentando os ex-perimentos farmacológicos nos novos aparatos assistenciais (FIGUEIREDO, 2007; ROTELLI, 2001).

Em outra parte da nota de contestação ao artigo de Gul-lar, o CFP criticou a tentativa de revitalizar a força do hospital psiquiátrico e manter o privilégio de psiquiatras no domínio do conhecimento das patologias psíquicas.

...uma tentativa de não participação do médico no cotidiano dos cuidados hoje desenvolvidos nos serviços substitutivos de forma integrada por todos os integrantes da equipe multipro-

27 Disponível em: <http://www.abrapso.org.br/informativo/view?ID_INFORMATIVO=101>. Aces-so em: 25.05.2009.

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fissional. Como sabem aqueles que realmente trabalham em serviços territoriais: sujeito preso (internado) no hospício, médico solto; sujeito solto no território, médico preso no serviço.28

Amarante (2007) destaca que a natureza do campo da saúde mental vem contribuindo para que se pense de forma diferente, não mais com o paradigma da verdade única e de-finitiva, mas, em termos de complexidade, simultaneidade, transversalidade de saberes.

Concordando com o autor referido sobre a complexi-dade e a necessidade de múltiplos olhares e saberes para o pensar-fazer do campo da saúde mental, além da relatividade e perspectivismo das verdades, incorporamos ao conjunto de debatedores já apresentados, para concluir, mas não finalizar a discussão, os informantes-cuidadores dos sujeitos em sofri-mento psíquico em situação de crise participantes desta pes-quisa, no caso representados por Geia, para que, pelo menos, deste modo, possam participar do debate, ainda que de modo restrito e desigual. Espero, ao dar voz através desta pesquisa a usuários da rede de saúde mental do Município de Fortaleza, contribuir com debate crítico, sob a perspectiva do usuário, e com a melhoria do cuidado do sujeito em situação de crise:

“[...] de vez em quando é que ele enlouquecia... um dia que choveu... ele tirou a farda e ficou pulando no meio da chuva... não quis obedecer à professora... a pessoa se agarrava... para vestir o calção... ele empurrava... tinha força... tinha uns sete para oito anos... quando eu cheguei lá...

28 Disponível em: <http://www.abrapso.org.br/informativo/view?ID_INFORMATIVO=101>. Acesso em: 25 mai 2009.

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estava encharcado... ela disse... foi muito difícil hoje... não quis sair da chuva... não quis vestir o calção... empurrou as professoras... se agarrou com a gente... deu chute na canela... depois des-se quadro da infância... começou a piorar... a ficar agressivo... por volta dos 10 anos... pegava o cabo de vassoura... batia no meu pai... saía até sangue... ele começou a quebrar as coisas dentro de casa... quebrou uma cadeira de plástico... ar-remessou a cadeira contra um muro... quebrou um som... meu pai ficou muito preocupado... como é que vai ser daqui para a frente... esse menino... já tem a força de quebrar uma tele-visão de 14 polegadas...arranca a borracha da geladeira... quebra a porta do armário... quebra a maçaneta da outra porta... dá chute nas por-tas... quando ele ficar adolescente... quando ele ficar maior como vamos contê-lo?... ele já tinha 13 anos... conseguiu arrancar uma porta... dei-xar só os pedaços...estava de uma maneira assim impressionante...subia em cima de uma pia...pulava...para ver se a pia desabava no chão... quando o SAMU chegou...ele não estava mais quebrando...porque estava suado e exausto... fez muita força para arrancar essa porta...não ti-nha mais força...já estava sentado no chão sua-do... sujo... nu... comendo as coisas que tinha dentro da geladeira... estava quieto...exaurido... quando cheguei lá eu apenas banhei... vesti e levei-o... não deu trabalho nenhum para entrar na ambulância... a gente o levou ao hospital de Messejana...foi a primeira vez que eu pisei no hospital de Messejana para dar uma injeção... eu estava chorando... aflita... sem saber o que fazer... porque eu nunca imaginei que ele che-gasse a tanto... aí ele tomou uma injeção... foi

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para o Mira y Lopes... ficou na intercorrência clínica... com 13 anos... a maior dificuldade em cuidar dele... já é um adolescente...quan-do está em crise é muito forte... é pesado... é alto... eu sempre necessito da presença do meu esposo na hora da crise... não posso contar com a presença dele o tempo inteiro... ele faz coisa arriscada... põe a vida dele em risco... corre... atravessa em frente de carro... de ônibus... foge de casa... me agride fisicamente... rasga as coi-sas... destrói móveis... faz várias coisas perigo-sas... a dificuldade é contê-lo... segurá-lo para ele não se machucar... não machucar a mim... como conter se ele é um rapaz... eu ainda sou uma pessoa frágil... pequena... eu não consigo... já pensou se o Estado pagasse... um cuidador para que você pudesse ter mais esse suporte domiciliar... seria muito melhor... não precisa-ria estar internando a pessoa o tempo todo... poderia cuidar da pessoa em casa... se houvesse um cuidador, alguém que fosse... na hora de uma crise...o conteria... o segurava... a última crise começou... ele já vinha há vários dias fa-zendo coisa que não deveria... na segunda-feira chegou... saiu correndo... atravessou avenida... é um risco muito grande... foi correndo até a casa de um amigo... ele sabe que lá tem uma palmeirinha que ele gosta... invadiu a casa...des-truiu o jardim inteiro... a esposa do meu amigo estava lá... ele trabalha na casa da esperança... por sorte ele sabe... não ficou chateado... mas se fosse um estranho ele teria chamado o ronda... ele quebrou um jarro de cimento enorme... des-truiu todas as plantas... arrancou tudo com os dentes... as mãos... eu não sabia como fazer para ele parar...consegui que ele saísse... levei-o para

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casa... na terça-feira ele também tentou fugir de casa... destruiu alguns objetos em casa... rasgou roupa... a camisa de malha dele e tudo mais... a gente ainda conseguiu que ele fosse para Casa da Esperança... ele chegou a rasgar o banco do transporte escolar de uma mordida... na quar-ta-feira eu fui com ele para evitar isso... fui e voltei com ele no transporte escolar... assim que o rapaz o desceu de dentro do carro... que eu abro a casa e coloco a bolsa dentro... ele saiu novamente pelo portão...atravessou avenida... foi novamente quebrar todos os galhos... árvo-res que ele encontrou na rua... aí eu peço ajuda a um amigo na rua...ele me dá uma corda... eu amarro as pernas dele para ele não correr... tam-bém amarro a mão dele com a camisa dele... é muito constrangedor... você ter que amarrar seu próprio filho... sair amarrado com ele pela rua... só assim consegui chegar a casa com ele... quan-do cheguei... ele foi arrancar um galho... bateu na minha mão... arrancou um pouco a pele do meu braço... chegou em casa muito agressivo... chutou meu joelho... ficou arrancando meu cabelo... puxando meu cabelo...eu resolvi desis-tir... de ficar perto dele... vi que ele ia me ma-chucar... desço as escadas... ele pega a cômoda e tenta arremessar a cômoda escada abaixo... para ver se a cômoda pegava em mim... eu chamo a ambulância... chamei o SAMU... o SAMU de-mora muito... demorou 4 horas... como é ape-nas uma ambulância... não pode uma cidade... com mais de dois milhões de habitantes terem apenas uma ambulância psiquiátrica... a espera é enorme... se um sujeito em crise matar uma pessoa... quando a ambulância chegar vai estar só o cadáver... não vai mais dar tempo de fazer

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nada... eu chamei a ambulância uma hora... eles chegaram às quatro e meia da tarde... quando eles chegam... meu filho nunca precisou ser contido por eles...eles chegam a crise já pas-sou... aí ele entra bem.... é bem atendido pelos rapazes... até eles conversam comigo...já me co-nhecem... nós fomos com ele para Messejana... é mais outra espera grande... tive que dormir no chão... muita humilhação as pessoas tem que dormir no chão... uma pessoa lá dos funcioná-rios molhou o chão sabendo que as pessoas esta-vam dormindo no chão... não têm um pingo de respeito... as pessoas estão ali humilhadas... ne-cessitando daquele atendimento... se submetem a essa coisa degradante... ficar no frio... no chão sujo... tem que se submeter... ficar a noite in-teira sentada numa cadeira até de manhã. [...]”

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória deste estudo foi árdua e marcada por inquie-tações, conflitos e perplexidades. Como em todo trabalho científico, muitas dúvidas me consumiram, me torturaram, como, também, enriqueceram-me no conhecimento acadê-mico. Após definir o trajeto que seguiria, entrei em campo e fui envolvido por uma realidade que me marcará para a vida inteira. Os narradores se colocaram colaborativos e valoriza-dos, por obter uma oportunidade de relatarem seu sofrimento ao cuidar de um parente em situação de crise, e os sujeitos tiveram na narrativa a oportunidade de expressar angústias, medos e temores. Todo o contexto apreendido neste estudo marcará por longo tempo, pois percebi que, no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, nem tudo são flores e que há espinhos dolorosos que são encobertos ou desconhecidos.

Insurge das narrativas um relato peculiar da realidade vivenciada no contexto das situações de crises psíquicas e a apreensão somente foi possível pela utilização da história oral temática como metodologia. É bem verdade que hesitei, por algum instante, em ouvir toda história oral de vida, mas, contive-me por perceber que não daria conta de abordar um contexto tão amplo. Mas isso em nada prejudicou o estudo. Pelo contrário, quando da confrontação das narrativas, obtive uma realidade detalhada da situação social e histórica que as situações de crise psíquica representam no contexto familiar.

Ao insistir na história oral temática como metodologia para esta tese, percebo que não estava errado, pois, o campo

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provou-me que há espaço imenso a ser buscado e ampliado pela saúde coletiva com essa metodologia. A escolha, tam-bém, foi fundamental para materialização das narrativas e para análise peculiar daquilo que a memória permitiu recriar.

Vale ressaltar que o estudo apresenta algumas limitações, entre elas o fluxo de atendimento que são desenvolvidos no interior da rede hospitalar, na chegada do sujeito em situação de crise. Infelizmente, não conseguimos dispor de recursos que me levassem a adentrar tal contexto. Mesmo assim, al-guns pontos relativos a esta problemática foram visualizados no corpo do trabalho, mas, ressalto que são oriundos dos rela-tos dos narradores e não de aprofundamento na problemática.

Estruturado na premissa metodológica e respondendo aos objetivos e critérios acadêmicos, chego a algumas conclusões:

1. O processo saúde/doença que se instala no contexto social e cultural das famílias passa a gerar conflitos e sofrimento mental em seus membros. A partir desta instalação, inicia-se o processo por uma as-sistência. Geralmente, a busca por esta assistência ocorrerá quando o sujeito em sofrimento psíqui-co estiver infringindo as regras impostas por seus familiares, quando deixar de obedecer e seguir os padrões considerados como normais. A percepção por essa necessidade de cuidado é oriunda dos fa-miliares, já que o sujeito em sofrimento psíquico, dificilmente, percebe a necessidade de ajuda e esta busca por ajuda, geralmente, surge quando o su-jeito se encontra em um estado de agressividade e destruição relevante.

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Ao iniciar a busca por uma ajuda, inicia-se também o processo de dificuldade que a família enfrentará para alcançar o atendimento de seu ente. Primeiramente, a inexistência de uma rede extra-hospitalar que rece-ba este tipo de situação. Em seguida, a ineficiência no atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que devido à deficiência no quantitativo de viaturas tende a apresentar longo tempo de demora. Também percebi que existe in-fluência externa dentro do serviço do SAMU, que facilita o encaminhamento da viatura em alguns ca-sos. Mas, o fato primordial percebido foi a carência ou ausência de qualificação da equipe em emergên-cia que, pelos relatos dos familiares, não apresentam conduta adequada na forma de abordar o sujeito na situação de crise. A presença da polícia, como for-ma de apoio buscado pelos familiares, foi outro fato marcante, demostrando que a necessidade da utiliza-ção da força na contenção do sujeito em sofrimento psíquico ainda se encontra internalizada na mente de seus familiares.

2. Nas relações de cuidado que se formaram durante as narrativas, percebi que não há interface que integre a tríade sujeito, família e rede de atenção, pelo contrá-rio, ocorre um isolamento integral do sujeito neste processo. Esse fato motiva o profissional a propor tra-tamentos ultrapassados e segregadores, como o médi-co que sugeriu a Atena o isolamento de seu filho em um quarto no fundo do quintal de sua residência. A participação familiar no plano terapêutico de seu su-

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jeito é marcada por ausência do corpo familiar, cen-tralizando o ato de cuidar em um único indivíduo, geralmente, a mãe. No contexto familiar, encontrei a ausência por completo da familiar extensiva, ficando centrado todo o cuidado na família nuclear.

3. Por fim, o cuidado desenvolvido no interior das uni-dades hospitalares se revela como grande conflito para as famílias, pois, percebendo a inexistência de um plano terapêutico definido e adequado ao cui-dado de seu familiar, hesitam em interná-lo ou não. Mesmo percebendo que o hospital psiquiátrico não é a estrutura assistencial desejada para assistir seu fami-liar em sofrimento, mas é o único recurso existente, as famílias terminam preferindo interná-los a vê-los presos por terem agredido alguém querido da família.

Acredito que o grande desafio da Reforma Psiquiátrica brasileira é detectar as lacunas existentes na assistência ao su-jeito em sofrimento psíquico em situação de crise, proporcio-nando-lhe integração a este modelo inovador de atenção. A Reforma também deve direcionar novamente seu olhar para o interior dos hospitais psiquiátricos, pois já que emergiu de dentro deste espaço, a este espaço deve voltar para produzir ali dentro o que vem produzindo no seu exterior. Acredito que, mesmo considerado ultrapassado em sua forma de atenção, esse aparato, ainda, apresentará influência clínica e assisten-cial junto à rede de atenção de saúde mental do Brasil por alguns anos, devido à extensão territorial do país e devido à instalação heterogênea da rede substitutiva.

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Espero que o estudo apresentado seja transformador na forma de assistir o sujeito em sofrimento psíquico e que gestores estaduais, municipais se sensibilizem com a situação desta população e, no meu caso, comprometo em divulgar e relatar o sofrimento desta população através de artigos cientí-ficos, palestras e entrevistas. Pois, acredito que a disseminação de uma solução deve partir de uma primeira intervenção que, somando-se a diversas outras, trará a transformação desejada.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES, QUADRO E TABELA

FIGURA 1 Distribuição das Internações Psiquiátricas de

Fortaleza de 2005 a 2011

34

FIGURA 2 Redes assistenciais da atenção integral à saúde do

Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza

37

FIGURA 3 Protocolo de urgências psiquiátricas de Fortaleza 41FIGURA 4 Distribuição geográfica do município de Fortaleza

por SER.

48

FIGURA 5 Esquema de captação dos entrevistados. 51FIGURA 6 Fluxograma seguindo pelos familiares na busca por

assistência no momento da crise

106

FIGURA 7 Fluxograma demonstrativo de um projeto

terapêutico

114

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LISTA DE QUADRO

QUADRO 1 Critérios de inclusão e exclusão 51

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LISTA DE TABELA

TABELA 1 Tipos de Estabelecimentos de Saúde do município de Fortaleza cadastrados no CNES

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