angústia na civilização: uma análise do poema "momento", de mário de andrade

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS AMANDA GUEDES MAZZA ANGÚSTIA NA CIVILIZAÇÃO UMA ANÁLISE DO POEMA MOMENTO, DE MÁRIO DE ANDRADE SÃO PAULO 2015

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ANGÚSTIA NA CIVILIZAÇÃOUMA ANÁLISE DO POEMA “MOMENTO”, DE MÁRIO DE ANDRADE

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    AMANDA GUEDES MAZZA

    ANGSTIA NA CIVILIZAO UMA ANLISE DO POEMA MOMENTO, DE MRIO DE ANDRADE

    SO PAULO

    2015

  • AMANDA GUEDES MAZZA

    9332581

    ANGSTIA NA CIVILIZAO UMA ANLISE DO POEMA MOMENTO, DE MRIO DE ANDRADE

    SO PAULO

    2015

    Anlise realizada como critrio para aprovao

    na disciplina Introduo aos Estudos Literrios I,

    pertencente grade elementar de Graduao em

    Letras na Universidade de So Paulo.

    Orientador: Prof. Dr. Eduardo Vieira Martins

  • SUMRIO

    Momento, de Mrio de Andrade ............................................................................. 1 1. Comentrio ............................................................................................................................. 2

    2. Estrato sonoro ......................................................................................................................... 3

    2.1 Rimas e outras repeties sonoras ................................................................................... 3

    2.2 Metro e ritmo ................................................................................................................... 4

    2.3 Imagens e outros elementos ............................................................................................. 5

    3. Interpretao ........................................................................................................................... 6

    4. Referncias bibliogrficas .......................................................................................... 7

  • Momento

    O vento corta os seres pelo meio.

    S um desejo de nitidez ampara o mundo...

    Faz sol. Fez chuva. E a ventania

    Esparrama os trombones das nuvens no azul.

    Ningum chega a ser um nesta cidade,

    As pombas se agarram nos arranha-cus, faz chuva.

    Faz frio. E faz angstia... este vento violento

    Que arrebenta dos grotes da terra humana

    Exigindo cu, paz e alguma primavera.

  • 1

    Originalmente publicada em 1937, a poesia Momento compe a obra potica A

    costela gr co de Mrio de Andrade. No obstante o carter intimista da obra em

    questo, a poesia a ser analisada preserva muito dos preceitos que estruturam a escrita

    do poeta: a problemtica entre o universo subjetivo, pilar da poesia lrica

    contempornea, e do universo externo. Os elementos teoricamente alheios ao indivduo

    a cidade, as estaes climticas e a natureza de forma geral so discorridos sob uma

    perspectiva individual, que no caso em questo transposta coletividade.

    No obstante, a poesia desprovida de itens lexicais que, isoladamente, revelem

    alguma interveno pessoal - no h uma escrita em primeira pessoa, por exemplo.

    Sintaticamente, a presena do sujeito da enunciao no marcada no texto. Tal fato,

    somado brevidade da construo da poesia estruturada atravs de duas estrofes, em

    que cada uma contm respectivamente quatro e cinco versos e ao prprio ttulo do

    poema, fornecem a impresso de uma simples descrio.

    O poema parece se localizar em trs espaos diferentes: do mundo cidade, e da

    cidade ao ser humano. H tambm dois momentos de diferena baseada em fatores

    climticos: no primeiro, faz sol aps um perodo de chuva. No segundo momento,

    chove e faz frio. O vento o elemento que permanece no obstante as transies de

    tempo e de espao havia ventania quando fazia sol, h vento violento quando faz

    frio. o vento, inclusive, o agente da maior parte das aes ocorridas no contexto do

    poema ele quem corta os seres pelo meio, esparrama os trombones das nuvens no

    azul e exige cu, paz e alguma primavera.

    A formao vocabular do poema no de difcil apreenso. H uma nica palavra,

    todavia, que no faz parte dos termos cotidianamente empregados no uso da lngua no

    caso, grotes. De acordo com a verso digital do dicionrio Michaelis, uma das

    definies de grota vale profundo, inclinado, na interseo de montanhas. No

    contexto do poema, portanto, a palavra uma substituio ao termo mago, interior

    do ser humano.

    ____________________________________________________________________

    MICHAELIS MODERNO DICIONRIO DA LNGUA PORTUGUESA. Significado de grota.

    Disponvel em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/. Acesso em: 20 de junho de 2015.

  • 2

    Estrato sonoro

    Rimas e outras repeties sonoras

    No stimo verso, em este vento violento, possvel observar a existncia de

    uma aliterao em t e v, bem como uma assonncia em e e o. A consoante t uma

    oclusiva desvozeada dental, ao passo que a consoante v uma fricativa desvozeada

    labiodental. Considerando o fato de que o articulador passivo o mesmo no caso das

    duas consoantes isto , o dente , bem como o carter inerentemente explosivo das

    oclusivas no momento da articulao e a frico provocada pelo v, intrnseca ao seu

    processo de articulao, o verso se destaca foneticamente. Resgatando o verso

    semanticamente, foroso observar que as palavras escolhidas tm mais mpeto onde o

    momento exige a fora, a violncia do vento, comparvel fora dos fonemas.

    Processo similar aliterao em t em frase que implica em ideia semanticamente

    forte acontece tambm no incio do primeiro verso: O vento corta.... A prpria

    continuao do verso quebra essa fora inicial ao aliterar em s, uma fricativa

    desvozeada, sem intercalar com consoantes oclusivas os seres. O processo de

    obstruo total da passagem de ar no momento da articulao retorna no fim do verso

    citado, em pelo meio. No verso trs, existe uma assonncia em e e a entre a fricativa

    v e a oclusiva t: E a ventania.

    H trs momentos diferentes em que ocorrem aliteraes em f e em z. Nos versos trs

    faz sol, fez chuva , e seis/sete faz chuva, faz frio e faz angstia. F, z, s

    contido em sol e ch contido em chuva so fricativas. As ondulaes causadas pela

    articulao das consoantes intercaladas s vogais podem ser sentidas como a prpria

    oscilao temporal contida nos versos. No segundo verso, embora ortograficamente haja

    a presena de um s em um desejo de nitidez ampara o mundo, foneticamente o som

    produzido de um z, de forma que tambm possvel a associao sonora entre as

    palavras desejo e nitidez. Algo parecido ocorre em exigindo cu, paz e alguma

    primavera (verso 9), que repete o som do z em exigindo e paz.

    Ocorrem considerveis aliteraes em r tambm. Esparramas os trombones

    (verso 4), as pombas se agarram nos arranha-cus (verso 6) e que arrebenta dos

    grotes da terra (verso 8), so os exemplos dessa ocorrncia. Nos versos 4 e 8, so

  • intercalados vibrante alveolar vozeada e tepe alveolar vozeado. No verso 6, entretanto,

    s se faz presente a vibrante.

    O verso ningum chega a ser um nesta cidade (5) possui assonncia em e e a e

    uma fricativa em ch. A repetio dos sons contidos nas consoantes n e m provoca um

    efeito nasalizado no verso.

    Metro e Ritmo

    A poesia formada por quatro versos dodecasslabos (versos 2, 4, 8 e 9), dois

    decasslabos (versos 1 e 5), dois versos constitudos por treze slabas poticas (versos 6

    e 7) e um eneasslabo (verso 3).

    Os versos 1 e 5, os decasslabos, so heroicos isto , so acentuados nas slabas 2, 6

    e 10. Os versos 2 e 9 tambm preservam um modelo rtmico em comum ambos so

    acentuados nas slabas 3, 8 e 12.

    O / VEN / to / cor / ta os / SE / res / pe / lo / MEIo

    - - / - - - -/ - - - -

    S um / de / SE / jo / de / ni / ti / DE / zam / pa / ra o / MUNdo

    - - - / - - - - - / - - - -

    Faz / SOL. / Fez / CHU / va. / E a / ven /ta /NIa

    - - / - - / - - - - -

    Es / pa / RRA/ ma os / trom / BO / nes / das / NU / vens / no a /ZUL

    - - - / - - - / - - -/ - - -

    Nin / GUM / che/ ga a / se / RUM / nes / ta / ci / DAde

    - - / - - - -/ - - - -

    As / POM / ba / sse a / GA / rram / no / sas / rra / nha / CUS, / faz / chuva.

    - -/ - - -/ - - - - -/ - -

  • Faz / FRIO. / E / faz / na / GS / tia... / es / te / VEN / to / vio / LENto

    - -/ - - - -/ - - - -/ - - -

    Que a / rre / BEM / ta / dos / gro / TES / da / te / rra / hu / MAna

    - - -/ - - - -/ - - - - -

    E / xi / GIN / do / cu, / paz / e al / GU / ma / pri / ma / VEra

    - - -/ - - - - - / - - - -

    Imagens e Outros Elementos

    H treze ocorrncias verbais na poesia "Momento". Dessas, apenas uma ocorre no

    passado - "fez chuva" (verso 3). Em relao ao sentido empregado das palavras, pode-se

    dizer que majoritariamente figurado.

    Ao "vento", atribuda a funo de cortar, esparramar e exigir algo aps arrebentar -

    em detrimento de "surgir", por exemplo. Ao desejo d-se a funo de amparar o mundo

    - situao, por si s, tambm figurativa. J a angstia, comparada s eventualidades

    climticas, surge no stimo verso em "faz angstia".

    Dentro da realidade potica na qual o poeta insere as nuvens, elas so personificadas

    e possuem "trombones". O interior metafsico do ser humano, essa parte indescritvel

    dos seres sobre o qual tanto se debruou Jung em seus escritos, mencionada por

    Mrio de Andrade como "grotes da terra humana" - isto , os profundos vales que

    existem na interseo entre montanhas aplicado ao contexto humano.

    Considerando a ausncia de partculas comparativas e o contedo de maneira geral,

    foroso concluir que o poema em questo baseado em metforas.

    ____________________________________________________________________

    JUNG, C. G. O livro vermelho - edio sem ilustraes. Traduo: ORTH, Edgar.

    Petrpolis, RJ: Editora Vozes, 2013

  • Interpretao

    Isolando os dois primeiros versos de cada uma das duas estrofes, sobretudo por

    ambos se destacarem tendo a mesma mtrica, tem-se: O vento corta os seres pelo

    meio/ ningum chega a ser um nesta cidade. Os seres, cortados ao meio,

    experimentam na cidade a falta de completude: ningum chega a ser um. So metades.

    Somos metades. O poema, que a princpio parece uma descrio de uma cena esttica na

    qual no h participao do enunciatrio, acaba deixando entrever que quem fala, o eu

    lrico, tambm alvo da sensao que descreve tanto por falar de algo intrnseco

    toda espcie humana, quanto por descrever a angstia em uma cidade na qual tambm

    est inserido.

    Para Freud (2014), a angstia automtica decorre de uma situao traumtica,

    sobretudo uma experincia de desamparo. A angstia sinal, por outro lado, uma

    resposta do ego ameaa de um evento traumtico que culmine na angstia automtica.

    Isto , a angstia um mecanismo de defesa contra a prpria angstia. Dessa forma,

    criando uma interpretao a respeito do trabalho do psicanalista austraco, a angstia

    uma sensao inerente espcie humana. O desamparo, que culmina no primeiro tipo

    angstia mencionada pelo pai da psicanlise, certamente a sensao descrita em

    Momentos quando as pombas que, em ambiente urbano, na mesma cidade que

    angustia o ser humano, obrigada a se apoiar nos prdios em detrimentos de rvores. ,

    talvez, uma grande metfora sobre a sensao de deslocamento promovida pelo

    ambiente.

    De acordo com Jakobson (2007), somente em poesia, com sua reiterao regular de

    unidades equivalentes, que se tem experincia do fluxo verbal, como acontece para

    citar outro padro semitico com o tempo musical. Essas reiteraes, que associam

    a poesia musicalidade, so recorrentes em Momentos. A natureza, que usada para

    marcao cclica e para revelar a incompletude do ser, tambm um reforo ao desejo

    de soluo. O vento que corta os seres ao meio, tambm emana do ser de forma

    explosiva, como a fora presente nas oclusivas de vento violento, para exigir cu, paz

    e primavera.

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CANDIDO, Antonio. O estudo analtico do poema. 6 ed. So Paulo: Associao Editorial

    Humanitas, 2006.

    FIORIN, Jos Luiz. Elementos de anlise do discurso. 15 ed. So Paulo: Editora Contexto,

    2014.

    FREUD, Sigmund. Inibio, sintoma e angstia - o futuro de uma iluso e outros textos

    (1926-1929). Traduo: SOUZA, Paulo Csar. So Paulo: Companhia das Letras, 2014.

    GRILLO, Angela Teodoro; ROCHA, Francisco Jos Gonalves Lima. Resenha: Poesias

    completas de Mrio de Andrade. Revista Manuscrita. Nmero 27, 2014. Disponvel em:

    http://www.revistas.fflch.usp.br/manuscritica/article/viewFile/2200/2031. Acessado em: 21 de

    junho de 2015.

    JAKOBSON, Roman. Lingustica e potica. In: JAKOBSON, Roman. Lingustica e

    Comunicao. So Paulo: Cultrix, 2007. p. 87.

    SILVA, Thas Cristfaro. Fontica e fonologia do portugus roteiro de estudos e guia de

    exerccios. 10 ed, 5 reimpresso. So Paulo: Contexto, 2014.