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8 P2 Sexta-feira 10 Junho 2011 Outra abordagem em torno de 1961, nas vozes de brancos nacionalistas, como Rui Ramos, um independentista precoce e de Fernando Falcão, que ousou organizar-se politicamente nesse ano fatal. E ainda Fernando Farinha, que combateu de máquina fotográfica em riste. a Meio século separa-nos dos acontecimentos de 1961, em Angola. Passadas as comemorações do início da luta pela independência da antiga colónia, que mergulharia Portugal na Guerra Colonial, façamos agora uma paragem. Voltemos ao ano em que tudo foi posto em causa. Foquemo-nos em três personagens, reais, que viram a sua vida virada do avesso a partir daquele momento. O que têm em comum? O facto de serem brancos. Dois deles progressistas activos. O seu papel tem sido ignorado pelas influências políticas herdadas de um preconceito do 25 de Abril de 1974, mas que a historiografia recente foi recuperar, com as investigações de Fernando Tavares Pimenta, historiador que documenta a acção de brancos oposicionistas ao longo do século XX. Os depoimentos de Fernando Falcão, Rui Ramos e Fernando Farinha falam de 1961, do antes e do depois. Fernando Falcão teve a coragem de se assumir como líder branco independentista, numa altura em que a comunidade branca vivia aterrorizada com os levantamentos na baixa do Cassange, os ataques em Luanda, os massacres da UPA. Embora brutal, o processo não era inteiramente novo. Ainda estavam frescos os relatos dos europeus que receberam em Janeiro de 1959, fugidos dos massacres no Congo belga, assim como da vaga de deslocados que passou por Angola, com a independência da já República Democrática do Congo, em Junho de 1960. Ventos independentistas sopravam por todo o lado. Nasciam 18 novos países africanos, a ONU consagrara 1960 o ano de África, enquanto o Terceiro Império Português persistia no seu anacronismo. Rui Ramos assistiu em criança ao pior do colonialismo. Em 1961, reforçou as suas convicções anti-regime. Foi clandestino, esteve preso. Sempre em nome de uma Angola independente, lutando em nome do MPLA. Fernando Farinha legou-nos um importante espólio fotográfico das principais operações militares entre 1961 e 1974 em Angola, onde foi ter numa onda de migrantes que, após a II Guerra, rumou para uma Angola que crescia com a conjuntura económica internacional favorável. Serão eles a contar as suas vidas. Mas, antes, olhemos as reacções de alguns brancos ao regime colonial. Começou em 1930 com um protesto autonomista que envolveu maçons. Em 1938, estudantes brancos e mestiços da pequena e média burguesia criaram a Organização Socialista de Angola que defendia a independência, mas só sobreviveu três anos. Um dos seus mais conhecidos militantes foi Sócrates Dáskalos (1921-2002). Existiu um MUD angolano em 1947, que desapareceu dois anos depois. Muitos dos nacionalistas brancos tinham saído dos liceus de Luanda e de Sá da Bandeira e das universidades de Lisboa, Porto e Coimbra. Eram próximos do PCP. No início dos anos 50, Sócrates Dáskalos tentou criar um partido comunista na colónia. Em vão. Outras iniciativas falharam, como a do Grupo Marxista do Centro e Sul de Angola dos irmãos Bernardino, David e José, militantes do PCP e do MUD. Ao que se sabe, a derradeira tentativa de um partido comunista aconteceu em 1958. Angola 1961 Por Leonor Figueiredo

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8 • P2 • Sexta-feira 10 Junho 2011

Outra abordagem em torno de 1961, nas vozes de brancos nacionalistas, como Rui Ramos, um independentista precoce e de Fernando Falcão, que ousou organizar-se politicamente nesse ano fatal. E ainda Fernando Farinha, que combateu de máquina fotográfi ca em riste.

a Meio século separa-nos dos acontecimentos de 1961, em Angola. Passadas as comemorações do início da luta pela independência da antiga colónia, que mergulharia Portugal na Guerra Colonial, façamos agora uma paragem. Voltemos ao ano em que tudo foi posto em causa. Foquemo-nos em três personagens, reais, que viram a sua vida virada do avesso a partir daquele momento. O que têm em comum? O facto de serem brancos. Dois deles progressistas activos. O seu papel tem sido ignorado pelas infl uências políticas herdadas de um preconceito do 25 de Abril de 1974, mas que a historiografi a recente foi recuperar, com as investigações de Fernando Tavares Pimenta, historiador que documenta a acção de brancos oposicionistas ao longo do século XX.

Os depoimentos de Fernando Falcão, Rui Ramos e Fernando Farinha falam de 1961, do antes e do depois. Fernando Falcão teve a coragem de se assumir como líder branco independentista, numa altura em que a comunidade branca vivia aterrorizada com os levantamentos na baixa do

Cassange, os ataques em Luanda, os massacres da UPA. Embora brutal, o processo não era inteiramente novo. Ainda estavam frescos os relatos dos europeus que receberam em Janeiro de 1959, fugidos dos massacres no Congo belga, assim como da vaga de deslocados que passou por Angola, com a independência da já República Democrática do Congo, em Junho de 1960. Ventos independentistas sopravam por todo o lado.

Nasciam 18 novos países africanos, a ONU consagrara 1960 o ano de África, enquanto o Terceiro Império Português persistia no seu anacronismo. Rui Ramos assistiu em criança ao pior do colonialismo. Em 1961, reforçou as suas convicções anti-regime. Foi clandestino, esteve preso. Sempre em nome de uma Angola independente, lutando em nome do MPLA. Fernando Farinha legou-nos um importante espólio fotográfi co das principais operações militares entre 1961 e 1974 em Angola, onde foi ter numa onda de migrantes que, após a II Guerra, rumou para uma Angola que crescia com a conjuntura económica internacional favorável.

Serão eles a contar as suas vidas. Mas, antes, olhemos as reacções de alguns brancos ao regime colonial. Começou em 1930 com um protesto autonomista que envolveu maçons. Em 1938, estudantes brancos e mestiços da pequena e média burguesia criaram a Organização Socialista de Angola que defendia a independência, mas só sobreviveu três anos. Um dos seus mais conhecidos militantes foi Sócrates Dáskalos (1921-2002). Existiu um MUD angolano em 1947, que desapareceu dois anos depois.

Muitos dos nacionalistas brancos tinham saído dos liceus de Luanda e de Sá da Bandeira e das universidades de Lisboa, Porto e Coimbra. Eram próximos do PCP. No início dos anos 50, Sócrates Dáskalos tentou criar um partido comunista na colónia. Em vão. Outras iniciativas falharam, como a do Grupo Marxista do Centro e Sul de Angola dos irmãos Bernardino, David e José, militantes do PCP e do MUD. Ao que se sabe, a derradeira tentativa de um partido comunista aconteceu em 1958.

Angola 1961Por Leonor Figueiredo

P2 • Sexta-feira 10 Junho 2011 • 9CORTESIA FERNANDO FARINHA

Rui Ramos “Terrorista” desde criançaa O percurso de Rui Ramos podia dar um ensaio sobre a infância e a adolescência na sociedade colonial angolana. De como é crescer, ver e interiorizar as desigualdades raciais. Assistir às reacções dos acontecimentos nacionalistas, como o ataque à esquadra da polícia e à cadeia de São Paulo, em Fevereiro de 1961. Ou outros, de um racismo bárbaro. Tudo isso lhe determinou o futuro, repleto de acções clandestinas e prisões. Ainda hoje, com 65 anos, Rui Ramos mantém uma fi losofi a de vida rebelde. Reformou-se em Portugal, onde trabalhou e reside há mais de 20 anos. Optou pela nacionalidade angolana em 1975. Quando morrer, quer ser coberto com a bandeira de Angola. Nunca duvidou da sua identidade: “Não sou europeu. Sou de África. Sou ‘negro’. Aliás… sou crioulo. A minha naturalidade anímica é africana. Portugal para mim é um país estranho.”

Os pais, Clementino e Prazeres, portugueses, migraram com a família ainda em bebés na primeira década do século XX. Em 1945, Rui Ramos nascia em Luanda. Quando foi para a escola, reparou que quase todos os colegas eram brancos. “Havia dois ou três negros na minha sala. Eram raros os que passavam ‘o fi ltro’ e chegavam ao liceu.” Ficou marcado por um episódio logo aos 5 anos. “A Padaria Lafões era ao lado de minha casa. Tinha havido um furto e os donos da padaria, dois brancos, acusaram logo o servente negro. Espancaram-no quase até à morte.” Rui Ramos sentia-se angolano nacionalista, antes de perceber o sentido da palavra. “Estava no mais profundo de mim. Desde tenra idade que não aceitava a sociedade colonial. Era um sentimento sem ideologia. Fui vendo coisas, apercebi-me que vivia numa sociedade injusta. Os colonos menosprezavam o negro.”

Os pais de Rui Ramos eram pobres. O pai tinha dois empregos, um como porteiro no Cinema Colonial, o que permitiu ao jovem perceber a Luanda do apartheid. “As comunidades não se tocavam. Em frente ao ecrã havia bancos de cimento sem costas, para os ‘indígenas’. Depois um muro separava um outro espaço, para os ‘assimilados’ negros e mestiços. Aí, já havia bancos de madeira corridos, com costas. Mais acima, também separados, fi cavam os brancos em cadeiras individuais.” No Cinema Colonial o pai Clementino fez uma sessão privada para a família ver o documentário sobre a prisão do líder congolês Patrice Lumumba (1925-1961). “Ainda tenho o fi lme na cabeça. A PIDE tinha proibido a exibição, mas o meu pai mostrou-nos.”

Em Fevereiro de 1961 tinha 15 anos. Como habitualmente, foi para o Liceu Salvador Correia, onde era conhecido pelos professores por dizer que não era

português, mas sim angolano. De noite tinha havido os assaltos. “Estavam todos agitados. Uns brancos diziam que o melhor era Angola separar-se da metrópole, porque não os defendia. Sentiam-se abandonados. Outros diziam que uns ‘pretos’ vestidos de preto tinham atacado e morto uns polícias. A partir daí qualquer negro com roupa preta era morto. Fui com o meu pai ao funeral das vítimas portuguesas. Junto ao cemitério havia uma fábrica de mármores onde trabalhavam uns negros que, entretanto, vieram espreitar. Houve um momento que não agradou e os negros foram mortos ali mesmo. Eu vi. Aquilo era irracional. Havia brancos pobres que faziam ‘caça’ aos negros. Até negros com óculos ou que andassem com livros podiam ser mortos. Tinham de ser ‘terroristas’, se parecessem intelectuais.”

Nesta altura o adolescente decidiu fazer um bilhete de identidade falso, para uso privado. “Pus a minha foto, nome, tudo, e em cima ‘República de Angola’. Os meus colegas brancos chamavam-me ‘terrorista’.” Chegaram ecos da matança da UPA no Norte de Angola. “Os massacres levaram muitos portugueses a regressar. Luanda branca fi cou despovoada de mulheres e crianças. Os colonos sentiam-se impotentes e abandonados. Já havia consciência de que as coisas deviam mudar. Crescia uma dinâmica anticolonial, cultural.”

A luta dava um livroRui Ramos teve um caminho solitário na busca pela justiça social, mas ajudado por vários autores. “Frantz Fanon, Camus, Sartre, Albert Memmi… fi z uma pequena biblioteca no quarto, onde juntava os amigos negros e dois brancos. Encomendava livros contra reembolso. Assim li Agostinho Neto e Luandino Vieira.” Tudo isto foi determinante quando teve a oportunidade de passar à acção, como director do jornal O Estudante, do Liceu Salvador Correia. Retirou-o da infl uência da Mocidade Portuguesa, fez sair uma edição anticolonial. “Escrevemos textos ateus, a defender aulas de Música em vez de Religião e Moral e até o poema Viva a Revolução. O jornal foi proibido e nós criticados no

púlpito da Sé de Luanda.” Viu partirem colegas e vizinhos

do bairro para se juntarem ao MPLA. Em 1965, era a sua vez de ser recrutado. Militou clandestinamente no Grupo Kimangua, do MPLA, com o nome de guerra “Lulendo”. “Já não convivia com colonos, só com negros e mestiços. O Kimangua tinha muita actividade. Fizemos reuniões em minha casa e no único carro do meu pai, um Volkswagen. De brancos, era eu e o Ferreira Neto. O José Ferreira Fernandes também seguia o grupo. A minha mãe fazia-nos grandes lanches.”

Aos 23 anos “Lulendo” era preso. O Kimangua tinha escrito nas paredes de Luanda, sobre as eleições de 1969 para a Assembleia Nacional: “Não votamos porque não somos portugueses.” “A PIDE libertou-nos passado algum tempo, mas estávamos proibidos de fazer qualquer contacto.” A segunda prisão foi no ano seguinte. Regressava a Luanda proveniente da metrópole, onde frequentava o curso de Direito. “Viajava num semicargueiro da CUF, com um PIDE no camarote. Fui preso quando chegámos a Luanda, nem me deixaram desembarcar. Levava uma policopiadora para a nossa actividade.” Voou prisioneiro num avião da TAP para Lisboa. Passou por Caxias e por Peniche. Três anos e meio. “Os negros do grupo tiveram pior sorte. Foram para São Nicolau e Tarrafal, com penas de 11 anos sem julgamento.”

A PIDE apreendeu em casa de Rui Ramos um manual de guerrilha urbana que vinha dactilografando para distribuir aos militantes de um centro de instrução revolucionária urbana que queriam organizar. “Visava treinar militantes clandestinos na luta anticolonial. Claro que era uma utopia lançar a guerrilha urbana em Angola, pois as cidades eram muito controladas pela PIDE e serviços de informações militares.” Uma outra vez foi apanhado com instruções para fabricar explosivos destinados a rebentar carros de grandes colonos. Tudo explicadinho. “A PIDE pediu para mim 24 anos de prisão e medidas de segurança a seguir à pena.”

A luta de Rui Ramos daria um livro. Foi professor, membro do Governo de Transição pelo MPLA, em 1975, chefi ou e dirigiu revistas e jornais. Quinze dias antes da independência de Angola defendeu a pluralidade de opiniões pacífi cas. Quinze dias depois, em fi nais de Novembro de 1975, era novamente preso pela DISA. Saiu defi nitivamente em liberdade em 1980, sem julgamento, quando José Eduardo dos Santos, que admira, assumiu a presidência. Em Portugal foi editor no Expresso, director do África Confi dencial e colaborador da TSF, BBC e Rádio France. “Sempre com o coração no MPLA.”

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a Viviam em Angola 172 mil brancos. Era a maior comunidade europeia da África subsariana, depois da África do Sul. Nem todos eram reaccionários, ou obedeciam à imagem do colono boçal. Havia pequenos grupos que defendiam uma Angola independente, com eleições democráticas inclusivas do voto dos africanos – divididos entre “indígenas”, sem direito a cidadania ou bilhete de identidade (a esmagadora maioria), e “civilizados” (uma minoria). O engenheiro Fernando Falcão, um desses progressistas, hoje com 87 anos, recorda aqueles tempos conturbados.

Havia em 1961 algum sedimento de esquerda. Neste contexto, um grupo do Lobito e Benguela fundou, em Abril de 1961, a Frente de Unidade Angolana (FUA), defensora de uma autonomia que preparasse a independência. O líder era Fernando Falcão, nascido em Moçâmedes, com passado antifascista dos tempos em que tirou Engenharia no Porto, aderiu às lutas estudantis, e foi um dos fundadores do MUD Juvenil. Regressado a Angola, envolveu-se na campanha de Humberto Delgado à Presidência da República. Administrador de empresas, era um “patrão progressista” de uma nova geração.

“A FUA foi criada depois dos acontecimentos da UPA, por volta de Abril de 1961. Entendi ser necessária uma força que desse equilíbrio. Teve boa aceitação. Éramos um grupo variado: o Carlos Morais, empregado de escritório; o Sócrates Dáskalos, professor do Liceu de Benguela; o João Mendes, escriturário; o Luís Portocarrero, funcionário bancário. O contexto internacional era favorável, entusiasmou os angolanos. Os mais extremistas queriam a independência imediata. Nós não. Defendíamos a independência de uma Angola para todas as raças, mas depois de uma autonomia que a preparasse. Enfi m, tivemos a

presunção de que éramos capazes de fazer a união do MPLA com a FNLA. A UNITA ainda não existia.”

No manifesto de 5 de Abril de 1961, a FUA apresentou-se como movimento cívico desligado de qualquer grupo político. Condenava o terrorismo “venha ele de onde vier”, e defendia uma “pressão constante” sobre a política de Salazar. Reivindicações revolucionárias faziam parte do manifesto intitulado À População de Angola. Fernando Falcão foi um dos redactores. “Exigíamos eleições gerais para Angola ser dona do seu destino, queríamos liberdade de imprensa e de associação. Que se libertassem os presos políticos, e se promovesse a elevação e a representação dos africanos que não tinham quaisquer direitos. Como dizíamos no manifesto, a FUA era um movimento legal e ordeiro que queria soluções legais e ordeiras para Angola.” Três elementos da FUA, incluindo o presidente, entregaram ao governador-geral de Angola um documento, no qual 1200 pessoas assinaram por uma autonomia.

Uma voz para a FUA Passaram-se 50 anos. Mas Fernando Falcão nunca esquecerá a repressão que se abateu sobre o seu grupo, após a deslocação à colónia, em Maio de 1961, do então ministro do Ultramar, Adriano Moreira. “Eu tentei um acordo político com as associações económicas de Luanda antes da visita do Adriano Moreira. Tinham sempre um caderno reivindicativo face à metrópole e na sequência dos acontecimentos exigiram um pacote de medidas económicas e políticas. Mas não resultou. Eles defendiam uma república branca. Nós éramos multirraciais. E cada um foi para seu lado. Ora, quando o ministro Adriano Moreira vai a Angola, acaba por dar garantias às associações, para uma maior descentralização, mas connosco foi pior. A direcção

da FUA pediu para ele nos receber. Recordo-me bem da reunião. Adriano Moreira era novo e muito simpático. Tinha qualquer coisa de progressista, não me pareceu nada salazarista. Compreendeu as nossas reivindicações. Aceitou tudo maravilhosamente. Mas mais tarde mandou-nos prender, pelo que me deu a entender o major Silva Pais (que viria a ser o director da PIDE em 1962). Os que tinham estado na reunião com ele foram todos presos, menos o engenheiro Frazão Farinha, que fugiu para o Brasil.”

A PIDE foi buscar Fernando Falcão a casa, no Lobito, a 4 de Junho de 1961. Deportou-o para Lisboa. Ficou dois meses na cadeia do Aljube e ano e meio com residência fi xa. O Partido Comunista Português voltou a tentar recrutá-lo. “O PCP tinha células em Angola que trabalhavam bem. Lá pareciam ser menos extremistas, eram mais abertos, diferentes dos comunistas daqui. Quando estava em Portugal, o PCP mandou-me um militante, sobrinho do Sócrates Dáskalos, para me aliciar. Queriam uma boa política com os brancos progressistas de Angola. Penso que a ideia era voltar a tentar um partido comunista em Angola, queriam talvez uma colaboração obrigacionista. Mas nunca quis ser do PCP. Não professo aquelas doutrinas, embora sempre me tivesse dado bem com eles. Sou admirador da sua luta. Em Angola, o PCP tentava meter-se em tudo, tinha a adesão de muitos angolanos. O Carlos Morais, dirigente da FUA, também era do PCP.”

Depois das prisões, elementos da FUA refugiaram-se em Paris. Dali, Sócrates Dáskalos elaborou alguns exemplares do Kovaso, o jornal da frente. Depois exilou-se em Argel e mais tarde na China. A FUA obteve do Governo argelino o mesmo apoio que o MPLA, como movimento nacionalista angolano.

O MPLA e a FUA apenas se cruzaram. Nunca passaram daí. “Havia militantes da FUA que

pugnavam pela integração no MPLA. Outros recusavam. Tínhamos contactos de amizade com o Agostinho Neto e o Lúcio Lara, mas não eram relações políticas. No seio do MPLA havia muita reacção à FUA. Alguns achavam-nos reaccionários. A mim consideravam-me angolano branco, mas não angolano puro. Depois, a FUA desfez-se no exílio, em 1963. Só voltámos a cruzar-nos com o MPLA em 1974, após o 25 de Abril. Ainda reactivei a FUA. Conversei com Agostinho Neto, o MPLA tentou encapotadamente absorver-nos, mas não aceitei. Outros então pensaram que a FUA de 1974 era colaboracionista com o MPLA. A minha intenção era reunir os brancos, porque estavam desasados. A FUA podia ser um amparo. Tivemos uma boa projecção, mas fi cámos ilegais quando só reconheceram como legítimos representantes do povo angolano os três movimentos de libertação. Ainda reclamámos ser a quarta força.”

Fernando Falcão tentou até à última fazer ouvir a voz da FUA. Mas fi cou à porta dos Acordos do Alvor, em Janeiro de 1975. Meteu-se de novo no avião e quando chegou a Angola lançou o último comunicado, com um apelo aos brancos: “É preciso não ter medo/não ter medo de dizer bem alto: esta é a minha terra. Cá nasci ou para cá vim, a ela dei o melhor do meu esforço, do meu trabalho, da minha vida. Por isso fi co. Sou orgulhosamente angolano.”

Ele fi cou. Fez parte da junta governativa do almirante Rosa Coutinho, em fi nais de 1974, recusou muitos convites de políticos portugueses e angolanos. Em 1976, a pedido do actual presidente angolano, José Eduardo dos Santos, foi para a administração dos Caminhos de Ferro de Benguela, que acumulou com a administração do Porto do Lobito. Em 1986 veio para Portugal, continuando a colaborar com Angola. Reformou-se em 1992.

Fernando a Botas de lama em fi la. Rostos de guerra. Medo. Dor física, interior. Feridos, caminhada, sofrimento. Cansaço, muito cansaço. Pequena poça de água, enchem-se os cantis. Céu negro, fumos do combate. O som do helicóptero. Mas também o sorriso, a camaradagem com os camufl ados do lado. Recordações de Angola que fi caram registadas nas 36.500 películas fotográfi cas tiradas por Fernando Farinha nos 13 anos da Guerra Colonial. Acompanhou-a quase diariamente desde que apanhou, por acaso, numas férias em Luanda, os ecos dos massacres de 1961. Tinha 19 anos.

Conseguiu trazer para Portugal 500 destas imagens. Já ilustraram muitas publicações sobre a guerra. As outras 36 mil fi caram no arquivo da revista Notícia, em Luanda. Correspondem aos mil rolos que calcula ter feito até ao 25 de Abril de 1974. 36.500 “disparos”, sempre sem arma. Fernando Farinha, de 69 anos, agora reformado, foi repórter fotográfi co premiado nos 21 anos de trabalho no Diário de Notícias. Acompanhou as movimentações militares mais importantes no Norte e no Leste de Angola.

Fernando Farinha rumou para Luanda, com a mãe, intérprete da Mobil Oil Portuguesa, em 1954. “Tinha uns sete anos. Eu e a minha mãe fi cámos instalados numa casinha de madeira na ilha de Luanda, onde se ouvia à noite o borbulhar das ondas. Fiz o liceu em Luanda e depois estudei dois anos para regente agrícola no Tchivinguiro, Lubango. Estava aí em Fevereiro de 1961, quando houve os ataques nacionalistas em Luanda. Passaram completamente despercebidos, ninguém me falou no assunto. Mas quando fui gozar umas férias a Luanda, deu-se o 15 de Março. Soube-se da barbárie de brancos e negros cortados à catanada, dos bebés massacrados, tudo à frente… comecei a perceber que algo de anormal de passava. Politicamente, era analfabeto.”

Tudo seria diferente a partir de então. O director do jornal O Comércio, Ferreira da Costa, desafi ou o jovem para o ajudar nas férias. “Comecei a trabalhar como redactor. Ficava no aeroporto a ouvir os feridos que a Força Aérea evacuava. Chegavam com feridas de toda a ordem, eram os mais graves. Falava com muita gente de manhã à noite, mas ao fi m de uns dias estava farto, pensei que o melhor seria ir até ao Norte.”

Rolos nas talas dos feridosSem ninguém saber, numa manhã de Abril de 1961, Fernando Farinha apanhou o machimbombo (autocarro) até à Fazenda Tentativa, a dezenas de quilómetros de Luanda, fi nal da carreira e limite de segurança para a “estrada do café”. “Encontrei aí um esquadrão de Cavalaria com Panhards (carros de combate) que faziam a fronteira com o Norte, para as povoações de Quibaxe, Quicabo, Úcua, etc., com tropa que já estava em Angola. Escoltavam os camiões civis de mercadorias que só podiam prosseguir em coluna. Fui pedir ao comandante, o alferes Marinho Falcão, para ir e regressar na seguinte. Ele achou piada e deixou-me ir. Eram uns 40 soldados

Fernando Falcão Um branco fora dos “eixos”

DANIEL ROCHA

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Farinha A guerra num click

Medo? “Tinha. Mas quando punha o olho no visor da máquina, o que se passava do outro lado não me dizia respeito. Era como ver um fi lme sentado no sofá.”

Não testemunhou os horrores de Março. “Quando eu cheguei, já o Norte estava a ser reocupado. Já não vi nenhum massacre. Mas sofri muitos ataques, de ‘toca e foge’ e emboscadas, com feridos dos dois lados. Era uma guerra em que nos ouvíamos, não nos víamos. Os guerrilheiros estavam sempre a alguma distância.”

Foi dos poucos jornalistas que privou com os militares portugueses que combateram nesta zona quente.

a guardar 16 camiões, com carros de combate. Seguiam muito devagar, quando havia curvas e terreno propício a emboscadas lá tinha de ir a Engenharia à frente e só depois é que avançávamos. Até que chegámos ao Úcua.”

Uma surpresa aguardava-o: o tenente-coronel Maçanita preparava-se para rumar com as suas tropas até Nambuangongo, zona de centenas de fazendas de café e quartel-general da UPA (depois FNLA), autora dos massacres. A missão consistia em reocupar a povoação tomada pelos nacionalistas. No percurso para Nambuangongo, Fernando Farinha estreou-se. “O meu primeiro ataque foi num bananal. Íamos de jipe, toda a gente saltou, abrigou-se e depois fez-se fogo. Na maior parte das emboscadas não se viam os atacantes. Em Nambuangongo havia emboscadas quase todos os dias. As viagens não se contavam por horas, mas por troncos de árvores abatidos nas estradas. Numa viagem podíamos ter cento e tal árvores a barrar o caminho. Levávamos 24 horas para andar seis quilómetros.”

Fotografava com uma pequena máquina e fazia uns rascunhos para mandar para Luanda, onde um redactor se encarregaria do artigo. “Escrevia o que estava a acontecer e eles na redacção reescreviam. Em Nambuangongo compravam todos os dias O Comércio para saberem o que acontecia na zona. O jornal fazia umas parangonas, os leitores absorviam aquilo. Eu puxava pela cabeça para mandar o material. Os rolos fotográfi cos vinham nas talas dos feridos evacuados, mesmo sem comunicação para dizer que as fotos iam a caminho. Muitas vezes era o ferido que em Luanda pedia para telefonar porque trazia um rolo.”

A cobertura jornalística incidia nas fazendas massacradas que continuavam esporadicamente debaixo de fogo. Os pilotos da Força Aérea colaboravam, quando tinham tempo. O Comércio tinha o chamariz: “Fernando Farinha da frente informa”. Era o título a toda a largura da página e só depois se seguia a reportagem. Ele foi herói na imprensa angolana. “Quando cheguei a Luanda, tinha gente no aeroporto à minha espera.” O objectivo do aprendiz de jornalista era que a informação chegasse aos leitores, muitos das áreas dos confrontos. “Eu mandava os factos dos ataques, o número de feridos e a história das emboscadas, sem comentários.”

“Eu ia para os quartéis e para as fazendas, mas não aparecia para fazer a operação do dia seguinte. Eu fi cava 15 dias. Comia lá, andava na laracha com eles, nas patrulhas… Um ano depois viam-me como um tropa.” Fernando Farinha tirou o curso dos Comandos, o de pára-quedismo para voar, e equitação para seguir com a Cavalaria. Confi avam nele. “A única coisa que me pediram, e eu cumpri, foi para tratar o inimigo por ‘bandoleiros’ ou ‘terroristas’ e nunca por ‘guerrilheiros’. A partir daí tinha carta branca.” Fez operações com a 2.ª Companhia de Comandos do Jaime Neves. “Só levava a máquina fotográfi ca. Sem arma. Era lançado nas frentes, mas tinha gente que me protegia. Fui um privilegiado. Depois com a confi ança, até os generais me diziam: ‘Farinha, porque não experimenta estar no dia tal em tal sítio?’ Eu já sabia que era uma grande operação.”

Tudo começou em 1961, com um biscate nas férias, e terminou em 1974, com passagem pela Guiné, com Spínola, e por Moçambique, com Kaúlza de Arriaga. De Angola sobraram 500 fotografi as. Têm ilustrado profusamente esta fatia da História Contemporânea Portuguesa. “Nem sei de todas as revistas e jornais portugueses que publicaram fotos minhas. E capas. Livros são seis ou sete. Perdi-lhes o controlo.” As exposições têm sido muitas. Uma permanece há cinco anos no Forte do Bom Sucesso.

CORTESIA FERNANDO FARINHA

Teatro CarlosAlberto

4-11Jun 2011

www.tnsj.pt

CO-FINANCIAMENTO ODISSEIA PARCEIROS MEDIAMECENAS TNSJO TNSJ É MEMBRO DAAPOIO INSTITUCIONAL

LamartineBabo

fotografia Emídio Luisi, design Joana M

onteiro

EMERSON DANESIANTUNES FILHO

co-produção CPT/SESC, Grupo Macunaíma (São Paulo)texto Antunes Filhoencenação Emerson Danesidirecção musical Fernanda Maiapreparação vocal e corporal Antunes Filhofigurinos e adereços Rosângela Ribeiro

interpretação Marcos de Andrade, Sady Medeiros, Adriano Bolshi, Natalie Pascoal, Domingas Person, André de Araújo, Flávia Strongolli, Ivo Leme, Patrícia Rita, Leonardo Santiago, Ricardo Venturin

dur. aprox. 1:00M/12 anos

co-apresentação São Luiz Teatro Municipal

sexta-feira a domingo (4, 5, 10, 11) 16:00segunda + terça-feira (6 + 7) 21:30