andréia cristina dulianel

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2675 23º Encontro da ANPAP – “Ecossistemas Artísticos” 15 a 19 de setembro de 2014 – Belo Horizonte - MG O DIÁRIO DE ARTISTA COMO SUPORTE NA CRIAÇÃO DE NARRATIVAS DOCUMENTAIS: REFLEXÕES ACERCA DESSA PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA E DE UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID PUC-CAMPINAS Andréia Cristina Dulianel – PUC-Campinas/CAPES RESUMO: A partir da análise reflexiva das principais características da criação de narrativas documentais, este artigo pretende discutir como imagens, desenhos, registros e anotações são manipulados e agrupados visualmente na sequência de um diário ou livro de artista, traçando relações com a noção de arquivo. Para tanto serão analisadas produções de Renina Katz, Luise Weiss, Lygia Eluf, assim como da minha pesquisa em diários de artista. O artigo abordará também o processo de criação de um diário coletivo realizado em conjunto com os alunos da Licenciatura em Artes Visuais da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, participantes do subprojeto de Artes Visuais do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Palavras-chave: diário de artista, narrativas documentais, registro, processo de criação, ações educativas. ABSTRACT: Through a reflective analysis of the main characteristics of the making of documentary narratives, this paper aims at discussing how images, drawings, records and notes are manipulated and visually grouped in the sequence of an artist’s journal or book, establishing relationships with the concept of archive. In order to do that, works from artists such as Renina Katz, Luise Weiss and Lygia Eluf – as well as my own artistic research regarding artist’s journals – will be analyzed. The paper will also address the creative process of a collective journal produced along with the undergraduates from the Visual Arts course from Pontifícia Universidade Católica de Campinas, by students taking part in the Visual Arts subproject from the Institutional Teaching Initiation Scholarship Program (PIBID) funded by the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES). Key words: artist’s journal, documentary narratives, records, creative process, educational activities. A criação de diários de artista e o conceito de arquivo Partindo da ideia de que o arquivo trata da manipulação de informações, registros de diversas ordens e formas, torna-se interessante ressaltar a produção artística contemporânea voltada para a questão da criação de narrativas documentais, através dos diários de artista, também chamados de livros de artista. Discutir a forma como os mais diferentes documentos, imagens, desenhos, registros, anotações são

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Artigo O DIÁRIO DE ARTISTA COMO SUPORTE NA CRIAÇÃO DE NARRATIVAS DOCUMENTAIS: REFLEXÕES ACERCA DESSA PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA E DE UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID PUC-CAMPINAS

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    23 Encontro da ANPAP Ecossistemas Artsticos 15 a 19 de setembro de 2014 Belo Horizonte - MG

    O DIRIO DE ARTISTA COMO SUPORTE NA CRIAO DE NARRATIVAS DOCUMENTAIS: REFLEXES ACERCA DESSA PRODUO

    CONTEMPORNEA E DE UMA EXPERINCIA DO PIBID PUC-CAMPINAS

    Andria Cristina Dulianel PUC-Campinas/CAPES

    RESUMO: A partir da anlise reflexiva das principais caractersticas da criao de narrativas documentais, este artigo pretende discutir como imagens, desenhos, registros e anotaes so manipulados e agrupados visualmente na sequncia de um dirio ou livro de artista, traando relaes com a noo de arquivo. Para tanto sero analisadas produes de Renina Katz, Luise Weiss, Lygia Eluf, assim como da minha pesquisa em dirios de artista. O artigo abordar tambm o processo de criao de um dirio coletivo realizado em conjunto com os alunos da Licenciatura em Artes Visuais da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, participantes do subprojeto de Artes Visuais do Programa Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia (PIBID), financiado pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES).

    Palavras-chave: dirio de artista, narrativas documentais, registro, processo de criao, aes educativas.

    ABSTRACT: Through a reflective analysis of the main characteristics of the making of documentary narratives, this paper aims at discussing how images, drawings, records and notes are manipulated and visually grouped in the sequence of an artists journal or book, establishing relationships with the concept of archive. In order to do that, works from artists such as Renina Katz, Luise Weiss and Lygia Eluf as well as my own artistic research regarding artists journals will be analyzed. The paper will also address the creative process of a collective journal produced along with the undergraduates from the Visual Arts course from Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, by students taking part in the Visual Arts subproject from the Institutional Teaching Initiation Scholarship Program (PIBID) funded by the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES).

    Key words: artists journal, documentary narratives, records, creative process, educational activities.

    A criao de dirios de artista e o conceito de arquivo

    Partindo da ideia de que o arquivo trata da manipulao de informaes, registros de

    diversas ordens e formas, torna-se interessante ressaltar a produo artstica

    contempornea voltada para a questo da criao de narrativas documentais,

    atravs dos dirios de artista, tambm chamados de livros de artista. Discutir a forma

    como os mais diferentes documentos, imagens, desenhos, registros, anotaes so

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    manipulados e agrupados visualmente, na sequncia de um livro ou caderno, nos

    possibilita traar relaes com a noo de arquivo.

    Muitos dirios de artista so construdos a partir da incorporao e apropriao de

    arquivos e documentos, na criao de narrativas fictcias ou verdicas, como

    arquivos de memrias reais ou ficcionais (SILVEIRA, 2001, p. 72). Na criao das

    narrativas visuais o documento aparece como forma de registro, vestgio, podendo

    ser considerado uma significativa unidade de representao de um evento,

    assumindo um papel de materializador do tempo histrico pessoal e social no livro

    de artista. (SILVEIRA, 2001, p. 90). Neste sentido perceber como esses dirios

    delimitam processos de pesquisa em suas anotaes, reflexes, trajetrias e

    produes visuais fundamental para nos aproximarmos da essncia do processo

    de criao do artista, entendendo como ele v o mundo, nas suas mais diferentes

    questes poticas e existenciais, de forma fluida, numa liberdade de manipulao de

    textos e imagens que esse tipo de produo permite.

    Jacques Derrida em Mal de arquivo: uma impresso freudiana (2001), traz

    interessantes reflexes acerca do conceito de arquivo. O autor comea o livro

    refletindo sobre a origem da palavra que vem do grego arkh, que significa tanto

    comeo (origem/autenticidade), quanto comando (autoridade/poder). A necessidade

    de arquivo, chamada pelo filsofo de pulso de arquivo (a partir das teorias

    psicanalticas de Freud), surge do impulso de estocar, consignar, reunir toda uma

    srie de documentos de forma a classific-los e orden-los, com o intuito de

    reproduzir, memorizar, repetir e preservar o acontecimento para o futuro, indo contra

    a pulso de morte do arquivo, que nos leva a um processo de apagamento e

    esquecimento de elementos importantes do mesmo. Vale a pena ressaltar que para

    Derrida a ideia de arquivo no compreende somente o lugar onde se estocam os

    documentos, o repositrio fsico, mas compreende tambm relaes de poder, como

    escolhas, intenes, classificao e ordenao.

    Neste sentido, ao relacionar a noo de arquivo com a criao de dirios de artista,

    torna-se interessante questionar: o que os artistas pretendem preservar nos dirios e

    livros criados? Quais escolhas determinam o que vai ser arquivado? A criao das

    narrativas documentais nos livros de artista nos permitem discutir quais

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    caractersticas da arte contempornea? Qual a importncia desses dirios no

    processo de criao do artista e como complemento de sua vida profissional? Na

    tentativa de traar algumas relaes sobre essa discusso, associada s ideias de

    Derrida, pretendo fazer uma anlise de alguns cadernos de artistas que

    influenciaram minha produo artstica, finalizando tal reflexo com a anlise de um

    livro coletivo criado no espao da Universidade, como forma de instigar os alunos da

    licenciatura em Artes Visuais na criao de formas alternativas e artsticas de

    documentao de suas prticas.

    Comecemos a discusso a partir de um dirio de Renina Katz, para pensarmos a

    questo da organizao de registros e vestgios do processo de criao. No livro

    Renina Katz (ELUF, 2011) da Coleo Cadernos de Desenho, podemos notar na

    sequncia narrativa de dirios da artista a criao de um verdadeiro arquivo pessoal,

    profundamente relacionado com sua trajetria potica. Ao folhear o caderno

    acompanhamos uma narrativa marcada por imagens e textos: colagens de textos de

    jornal e de imagens, transcries de livros, escritos sobre arte no geral, estudos de

    composies policromadas realizadas com lpis de cor, relatos de pensamentos da

    artista sobre seu processo de criao, reflexes escritas sobre vida e morte... Enfim,

    o dirio traz reflexes intimistas, visuais e escritas, que nos apontam muitas

    nuances do olhar da artista, fazendo com que nos aproximemos de seu universo

    com certa cumplicidade, pelo modo como os mais diferentes tipos de documentos

    so organizados e arquivados, numa sequncia e lgica internas, como que a nos

    dar dicas sobre a essncia do seu processo de criao. Atravs dos mais diferentes

    registros ou vestgios, temos imagens que documentam e do testemunho

    (SILVEIRA, 2001, p. 91), relatando um acontecimento, que neste caso o olhar da

    artista sobre mundo e sobre suas vivncias, as quais determinam suas escolhas

    artsticas.

    Os cadernos tm acompanhado os artistas. Eles renem aspectos pouco conhecidos de sua produo. Esses cadernos guardam momentos de cumplicidade nicos, quase nunca divulgados, geralmente acessveis somente aos olhos do prprio artista. Seu uso recorrente, como bloco de anotaes, carns de viagem ou dirios de artistas, guarda o pensamento construtivo que norteia o processo de criao e da construo das imagens. (ELUF, 2011, p.5).

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    Ao observarmos a sequncia dos desenhos de Renina Katz, podemos perceber que

    muitas das criaes so ainda embrionrias (fig.1), produes com certo frescor e

    que indicam futuros desdobramentos, sendo como que desenhos iniciais que a

    influenciam na criao de suas gravuras de carter no figurativo (em especial

    litogravuras realizadas a partir de 1970), pautadas na pesquisa da transparncia das

    cores. A maior parte dos desenhos do dirio so composies abstradas, que nos

    remetem paisagem, elementos recorrentes em sua produo. Mas interessante

    observar tambm demais criaes, como desenhos de observao de um vaso de

    plantas, um rosto, uma cabea e elementos da arquitetura (construes, janelas,

    escadas), temticas que dialogam com a liberdade das linhas e formas no espao e

    com o estudo das nuances delicadas das cores.

    Fig.1. Renina Katz. Duas pginas de seus cadernos de desenho publicados no livro Renina Katz

    (ELUF, 2011, p.83 e p. 117).1

    Uma das pginas (ELUF, 2010, p. 45) chama especial ateno, pois nela a artista

    cola cartazes de propaganda de exposies de artistas que nos apontam referncias

    visuais. Podemos observar um belo cartaz sobre uma exposio de desenhos e

    aquarelas de Mondrian de 1981, um cartaz da exposio de Jim Dine de 1984 e um

    cartaz de uma exposio de 1982, que apresenta uma obra de Magritte. Na mesma

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    pgina do caderno aparece uma transcrio de um texto de Oscar Wilde: Somente

    pessoas superficiais no julgam as aparncias. O mistrio do mundo o visvel, no

    o invisvel. Esses registros nos impulsionam a investigar o olhar da artista: O que

    estaria chamando sua ateno? Quais referncias so visitadas durante o processo

    de criao? Desse mundo de aparncias, de elemento visveis, quais mistrios so

    investigados pela artista?

    A artista e professora Lygia Eluf, organizadora da coleo Cadernos de desenho,

    tambm apresenta uma produo em dirios de artista muito interessante. No livro

    Lygia Eluf (2004), da coleo Artistas da USP, a artista traz um memorial sobre

    seu processo de criao de pinturas, gravuras e colagens. Uma das partes mais

    importantes do livro o miolo, o qual traz fragmentos de seus dirios de desenho,

    permitindo ao leitor acompanhar, como na produo de Renina Katz, muitos estudos

    de composies, de cores, realizados com lpis de cor, pastel seco e colagens.

    Alm das imagens, acompanhamos no decorrer dos dirios, reflexes sobre os

    encaminhamentos de suas sries de pinturas. Alm disso compartilhamos de relatos

    intimistas, atravs das descries de sentimentos e indcios de suas vivncias

    pessoais. Ao folhearmos as pginas de seus cadernos, percebemos em alguns

    momentos um carter confessional, pois alguns trechos revelam acontecimentos

    ntimos, gerando uma sensao ambgua no espectador, ao mesmo tempo de

    constrangimento, como se estivesse a invadir um espao privado, como tambm de

    cumplicidade e proximidade, por conta da revelao de aspectos pessoais

    relacionados criao. No texto Lygia Eluf (2004, p.107) afirma: No posso

    apresentar meus sentimentos na forma como eles existem. Espero que aparea algo

    em meu trabalho que os denuncie.

    Este carter confessional de muitos livros de artista, segundo Paulo da Silveira

    (2001, pp.94-95) despertado pela prpria forma cdice do livro. Muitos artistas

    escolhem esse formato de dirio, das pginas se sobrepem umas nas outras, como

    forma de afirmar essa possibilidade potica de se trabalhar com os traos mais

    ntimos da narrativa do dirio.

    Mas nos interessa, neste momento, verificar a opo de alguns artistas pelo aparentemente convencional. Em primeiro lugar, a

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    utilizao zelosa da brochura comum, que apela para a grande distribuio, principalmente naquelas obras que eu chamaria de esclarecedoras, reveladoras, obscenas porque desveladoras e denunciatrias da vida pessoal do artista ou de seu entorno, de uma forma direta, sem pudores. Em segundo lugar, o caso dos cadernos e dos livros de notas reais ou simulados, utilizados por artistas plsticos como complemento de sua vida profissional ou afetiva. (SILVEIRA, 2001, p.95)

    Outra produo rica com relao a essas questes de levantamento de registros e

    arquivos, so os livros-objetos criados por Luise Weiss entre 1998 e 1999, como

    tambm os mais recentes, por trazerem uma interessante reflexo sobre a questo

    da memria e do esquecimento. Tais livros so organizados a partir de fotos e

    documentos de familiares da artista e antepassados da ustria, apresentando

    indcios da vida pessoal e afetiva da artista, assim como da condio de passagem

    do ser humano.

    O mais intrigante de sua produo o fascnio pelo processo de apagamento das

    imagens fotogrficas (a artista apropria-se tambm, em outros trabalhos, de vdeos

    com cenas antigas de seus familiares, realizados nos anos 1940 e 1950, assim

    como de fotografias de desconhecidos), trazendo reflexes acerca da passagem do

    tempo, no como as imagens podem representar marcas do tempo e vo sendo

    esquecidas pela memria. Weiss (2011, p. 133) afirma que as imagens no so

    ntidas assim como as lembranas so vagas.

    Ao observar a produo da artista relaciono tal processo de apagamento da

    memria com as ideias defendidas por Jacques Derrida em Mal de Arquivo Uma

    impresso freudiana (2001). O filsofo aponta interessantes reflexes acerca de

    como os arquivos so criados e manipulados por uma questo de poder e

    autoridade, em uma tentativa de superar o que ele chama de mal de arquivo,

    processo de destruio da memria, de apagamento, de esquecimento do

    acontecimento. Derrida associa tal processo ao conceito de pulso de morte,

    desenvolvido por Freud nas teorias psicanalticas.

    Inevitvel no relacionar tal conceito com a produo de Luise Weiss. Ao manipular

    as imagens fotogrficas da famlia, ao notar o apagamento de tais documentos e ao

    se apropriar de tais elementos para a criao de seus livros, atravs da fotocpia e

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    tcnicas de transferncia da imagem, a artista nos faz questionar sobre a fragilidade

    e vulnerabilidade da memria e da fotografia como documentao. Nos

    procedimentos de transferncia, as imagens vo sofrendo um processo de

    apagamento, nas quais os detalhes dos rostos dos retratados, assim como de outros

    elementos apresentam pouca definio. A fotografia evoca a presena daqueles que

    esto ausentes, em imagens que se tornam cada vez mais nebulosas e

    fantasmagricas.

    Nos livros objetos de 1998-1999 (fig.2), feitos com papelo e fotocpias das

    fotografias encontradas nos arquivos familiares, Luise cria diferentes possibilidades

    de leitura das imagens, antes imveis e nicas. A justaposio das fotografias de

    paisagens, soldados, cenas antigas da poca da guerra, criam uma narrativa,

    quadro a quadro, trazendo tona a questo do tempo. O interessante tambm a

    escolha pelo formato da sanfona, que possibilita ao espectador folhear o livro pgina

    por pgina, como tambm observ-lo como um todo, ao abri-lo em uma grande linha

    contnua. Nestes livros no h textos, a leitura deles se d plenamente pelo visual.

    Fig. 2. Luise Weiss, 1998. Livro-objeto. Papelo e xerox colorida, 30 x 25 cm.

    Detalhe de reproduo retirada o livro Luise Weiss, 2004, pp. 2 e 3.

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    O livro enquanto objeto, na sua possibilidade de manipulao e na justaposio das

    fotografias, cria uma narrativa que no apenas representa e remete histria da

    famlia da artista, mas de sua prpria relao com essa vivncia, evidenciando na

    imagem uma sensao de apagamento, vazio e de fragilidade ante sua histria e

    memria, numa investigao da prpria identidade.

    Ao pensarmos nesse processo do folhear o livro, da narrativa e da relao com o

    tempo de leitura do espectador, fica tambm evidente a postura daquele que

    investiga, escava uma histria, numa atitude quase que arqueolgica. Derrida traz

    uma interessante imagem das camadas do arquivo, como as camadas da pele de

    um corpo, as quais relaciono com os livros, pois arquivam elementos que desvelam

    verdadeiras narrativas poticas, conforme a necessidade do artista.

    No corpo desta inscrio, seria necessrio, ao menos, sublinhar todas as palavras que apontam, certamente, para a instituio e a tradio da lei (legisladores, lawmakers), isto , para esta dimenso arcntica sem a qual no haveria arquivo, mas tambm, mais diretamente, para a lgica e a semntica do arquivo, da memria e do memorial, da conservao e da inscrio que pe em reserva (store), acumulam, capitalizam, estocam uma quase infinidade de camadas, de estratos arquivais por sua vez superpostos, superimpressos e envelopados uns nos outros. Neste caso, ler trabalhar nas escavaes geolgicas ou arqueolgicas sobre suportes ou sob superfcies de peles, novas ou velhas, as epidermes hipermnsicas ou hipomnsicas de livros ou de pnis. (DERRIDA, 2001, p.35.)

    Nesta relao com o escavar livros, percebendo a infinidade de camadas

    arquivais, apresentadas superpostas umas s outras (como as camadas de pele),

    trago algumas reflexes acerca de produes minhas. Ao documentar atravs de

    dirios de desenho as vivncias pessoais, os estranhamentos e encantamentos do

    olhar, uso como recurso da linguagem a sobreposio das imagens em relaes de

    transparncia, que ao mesmo tempo que revelam as camadas do olhar, tambm

    ocultam detalhes pelo apagamento causado pela sobreposio das pginas.

    Em alguns desses dirios, criados entre 2007 e 2009, trago o desenho como

    principal meio de investigao e registro das vivncias cotidianas. So

    representaes de elementos observados da natureza e da paisagem, relacionados

    aos contornos da figura humana. As imagens so construdas em uma processo de

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    quase abstrao da forma reconhecvel, por conta da sobreposio das linhas, com

    variedades de intensidade e tonalidade. Nesse processo de criao atraa-me a

    sobreposio das camadas de papel levemente transparentes (papel japons e

    papel vegetal), pois iam apagando gradativamente os elementos visuais.

    Nos primeiros cadernos criados com pginas levemente transparentes observei

    essas nuances de apagamento e ocultamento de reas do desenho, sendo que na

    sequncia criei alguns dirios, o Dirio das linhas ocultas de 2007 e Cuidando de

    2009 (fig.3), usando como recurso a juno de diversas pginas atravs da costura,

    como forma de ocultar algumas camadas, gerando curiosidade e certo mistrio.

    como se apenas o artista pudesse resgatar em sua prpria memria o que observou,

    guardando certo segredo de seu processo no interior das camadas. Nestes livros

    notam-se linhas que quase se apagam, manchas e reas sombreadas que

    estruturam a imagem. O espectador percebe que na construo de cada imagem do

    livro foram feitas anotaes e registros de diversos elementos da paisagem, mas,

    por conta da juno das pginas transparentes, fica impossibilitado de observar

    cada detalhe do processo separadamente, cada camada do olhar, restando apenas

    os vestgios quase que apagados desse acontecimento sensvel.

    Desta forma meus dirios dialogam com a questo do apagamento da memria, o

    processo de esquecimento do qual Derrida chama de mal de arquivo, e ao mesmo

    tempo revela uma necessidade de arquivar, guardar, reunir uma srie de desenhos

    e anotaes que resgatem detalhes importantes dessa experincia, atravs da

    explorao de linhas no espao bidimensional. Tais narrativas visuais acontecem em

    movimentos ambguos, numa tentativa contraditria de ao mesmo tempo revelar e

    ocultar tais registros do olhar. Ao folhear a sequncia de pginas, somos instigados

    a querer vasculhar cada camada desse corpo do livro. Na busca arqueolgica das

    camadas do dirio, o espectador deve contentar-se apenas com os leves vestgios

    de vultos de linhas e texturas que sobrevivem, aceitando a perda de elementos

    visuais mais sutis que ficaram soterrados pelas camadas subsequentes.

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    23 Encontro da ANPAP Ecossistemas Artsticos 15 a 19 de setembro de 2014 Belo Horizonte - MG

    Fig. 3. Andria Dulianel, 2009. Cuidando. Tcnica mista sobre papel japons e

    vegetal, 25 x 11 cm (dimenso de cada pgina).

    Experincia de criao de dirio coletivo junto aos alunos do PIBID PUC-Campinas

    Trago um desdobramento da minha prtica docente, a qual tem relao com o

    processo de pesquisa com desenho e dirios de artista apontados acima. Como

    professora do curso de licenciatura em Artes Visuais da Pontifcia Universidade

    Catlica de Campinas (PUC-Campinas) e coordenadora do subprojeto de Artes

    Visuais do Programa Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia (PIBID),

    financiado pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    (CAPES), procuro orientar meus alunos a desenvolverem projetos na rea da arte e

    seu ensino, relacionados aos seus prprios processos de criao.

    O PIBID da PUC-Campinas tem como objetivo central contribuir para a formao de

    qualidade de todos os alunos das licenciaturas da Universidade, buscando o

    aprimoramento de suas prticas pedaggicas, incentivando-os a atuarem na

    educao bsica de forma inovadora. Desta forma valorizamos o magistrio atravs

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    da insero dos nossos bolsistas no cotidiano de escolas pblicas da cidade de

    Campinas, com o intuito de elevarmos a qualidade da educao bsica.

    Uma das caractersticas mais interessantes do nosso projeto institucional a

    integrao das diferentes licenciaturas atravs do desenvolvimento de aes

    interdisciplinares, como tambm de estratgias especficas para cada rea do

    conhecimento (Artes Visuais, Biologia, Educao Fsica, Geografia, Filosofia,

    Sociologia, Matemtica, Letras, Histria e Pedagogia). No presente artigo no

    pretendo trazer a descrio das diferentes oficinas realizadas por nossa rea junto

    s demais dentro do projeto, mas trazer um relato reflexivo sobre um processo de

    documentao de tais aes realizadas junto aos bolsistas de artes visuais, como

    forma de sistematizar nossas aes de um modo artstico e diferenciado,

    respeitando a natureza da arte e o processo criativo de nossos alunos bolsistas.

    Dentro do PIBID PUC-Campinas possumos diferentes instrumentos e formas de

    sistematizar e avaliar as atividades desenvolvidas, para tanto desenvolvemos

    reunies semanais com os bolsistas, instigamos o relato oral e escrito atravs de

    relatrios, registros fotogrficos e audiovisuais, assim como a criao de portflios

    das aes pedaggicas realizadas. Apesar de tais atividades citadas serem

    desenvolvidas com compromisso pelos participantes, na rea de Artes Visuais

    sentimos a necessidade de abrirmos um espao para o desenvolvimento de um

    modo artstico de organizao das aes e produes enquanto grupo, marcado

    pela visualidade e valorizao dos relatos mais pessoais sobre o processo vivido.

    Pensando em formas mais abertas de arquivamento de nossos documentos, no

    ficando presos apenas aos formulrios e relatrios comuns a todas as reas (vale a

    pena ressaltar aqui que tais mtodos so importantes mecanismos de aferio e

    avaliao do conhecimento adquirido, afinal a reflexo a partir da prtica muito

    importante). Desta forma, a criao do dirio coletivo, veio como uma forma de

    complementar nossa prtica reflexiva, pois nos possibilitou perceber o processo

    vivido de forma direta e sensvel, por conta da concretizao das ideias em imagens.

    O pensamento de nossos alunos/artistas marcadamente visual e suas prticas

    pedaggicas esto intimamente relacionadas com suas prticas poticas. Temos

    como filosofia de nosso curso de licenciatura o incentivo do artista-professor, afinal

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    acreditamos que no se pode estimular algum a viver um processo criativo, sem se

    ter vivido um, como afirma Ana Anglica Albano (1984). Neste sentido, no podemos

    reduzir nossas reflexes apenas ao discurso escrito, ou falado. Como artistas

    precisamos falar atravs da arte tambm, como forma de reafirmar e valorizar nossa

    rea do conhecimento.

    Para tanto levei para o grupo, em uma das reunies de rea semanais, uma caixa-

    fichrio com dois desenhos meus e dois registros escritos sobre minhas impresses

    do processo que estvamos vivendo nas escolas e em nossas reunies de

    planejamento. Falei com os alunos sobre a importncia de criarmos um espao de

    criao e organizao das nossas aes de forma mais artstica, instigando- os a

    trazerem suas fotografias, desenhos, escritos, enfim, toda uma srie de registros e

    documentos que considerassem pertinentes para serem arquivados no nosso livro

    coletivo. No dei muitas regras de formatao e deixei a escolha da sequncia das

    pginas livre.

    O dirio coletivo foi criado neste primeiro semestre de 2014, apontando aes

    realizadas em trs escolas pblicas da cidade de Campinas: a E.M.E.F. Prof Geny

    Rodrigues, na qual desenvolvemos um trabalho interdisciplinar com a rea de

    Educao Fsica, voltado para alunos do Ensino Fundamental I e tambm em duas

    escolas estaduais Jardim Icara e Professor Messias Gonalves Teixeira nas

    quais desenvolvemos oficinas especficas de artes visuais e tambm

    interdisciplinares com demais reas do conhecimento, voltadas para alunos do

    Ensino Fundamental II e Ensino Mdio. Durante o semestre trabalhamos processos

    de criao a partir de traos importantes da cultura afrodescendente e indgena,

    pautados da contextualizao de contedos como mscaras, grafismos, pintura

    corporal, vestimentas, processos rituais, performance e corpo, tendo como eixos

    norteadores a contextualizao, a criao e a fruio de produes artsticas

    escolhidas.

    Aos poucos foram surgindo desenhos, colagens, fotografias, resduos de material,

    tecidos, uma srie de itens coletados a partir da experincia vivida. A cada semana,

    quando abria o dirio me surpreendia pelo modo como os alunos comearam a criar

    seus registros e a arquiv-los: pginas que se abriam e desdobravam,

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    sobreposies, envelopes, retalhos de materiais, desenhos dos alunos das escolas,

    desenhos dos bolsistas, barbantes, diferentes formatos de pginas, enfim, uma srie

    de vestgios que foram organizados numa narrativa visual criada por muitas mos.2

    Tambm h algo de exterioridade nos livros formados por coleo documental a partir de algum tipo de coleta que representa uma experincia vivencial. Neste caso o artista elege sua atitude entre o caminho do acaso (aquilo que casualmente ou incidentalmente chegar a ele numa determinada situao) ou de algum princpio norteador (uma norma especfica de coleta). (SILVEIRA, 2001, p. 95)

    Para alm de pastas que apenas guardam trabalhos realizados, criamos um modo

    de pensar e apresentar nosso trajeto de pesquisa e de atuao nas escolas, atravs

    de uma organizao marcadamente visual, por camadas que revelam uma

    diversidade de extratos arquivais, marcados por um modo potico de guardar e

    preservar os registros (figs. 4, 5 e 6). Tal iniciativa foi importante, pois nos

    permitimos dar expresso ao que aprendemos atravs da linguagem visual, alm de

    contribuirmos para o projeto valorizando a capacidade criativa do artista, resgatando

    das armadilhas do mal de arquivo, do esquecimento, experincias to marcantes.

    Fig.4. Livro coletivo- PIBID Artes Visuais, 2014. Tcnica mista.

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    Livro fechado: 26 x 33 x 5 cm. Livro aberto: dimenses variveis.

    Fig.5. Livro coletivo- PIBID Artes Visuais, 2014. Tcnica mista. Livro fechado: 26 x 33 x 5 cm. Livro aberto: dimenses variveis.

    Fig.6. Livro coletivo- PIBID Artes Visuais, 2014. Tcnica mista.

    Livro fechado: 26 x 33 x 5 cm. Livro aberto: dimenses variveis.

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    Notas 1 Na referida publicao alguns desenhos aparecem datados entre 1984 e 1985, sendo que os apresentados neste artigo no tinham datao indicada.

    2 O livro coletivo foi construdo por mim e por mais 9 alunos bolsistas do PIBID, dentre eles: Renata Cristina Soares Santos, Matheus Reis, Thas Gomes da Silva, Wagner Galesco Novaes, Samia Cristina Araujo Sousa, Victor Tosi Hunger, Yara Rassa Xavier de Oliveira, Samantha Costa Tavares e Renata Cavalcante da Cruz.

    Referncias BOSI, Alfredo. Reflexes sobre a arte. So Paulo: tica, 2002. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impresso freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001. ELUF, Lygia. Lygia Eluf. Artistas da USP;13. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2004. __________. (org.). Renina Katz. Cadernos de desenho. Campinas, SP: Editora da Unicamp: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2011. MOREIRA, Ana Anglica Albano. O espao do desenho: a educao do educador. So Paulo: Edies Loyola, 1984. OSTROWER, Fayga. Universos da Arte. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. ________________. Criatividade e processos de criao. Rio de Janeiro: editora Vozes, 1997. SILVEIRA, Paulo Antonio. A pgina violada: da ternura injria na construo do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. WEISS, Luise. Luise Weiss. Artistas da USP;14. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2004. ___________. No mar: at sea. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2011.

    Andria Cristina Dulianel Doutoranda em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unicamp e mestre em Artes pela mesma Instituio. Docente dos cursos de licenciatura e bacharelado em Artes Visuais da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. Coordenadora de rea do subprojeto de Artes Visuais do PIBID PUC-Campinas.