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Universidade do Minho Escola de Direito André Saragoça Maia janeiro de 2016 Os Privilégios Creditórios como Garantia dos Créditos Tributários André Saragoça Maia Os Privilégios Creditórios como Garantia dos Créditos Tributários UMinho|2016

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Universidade do MinhoEscola de Direito

André Saragoça Maia

janeiro de 2016

Os Privilégios Creditórios como Garantia dos Créditos Tributários

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André Saragoça Maia

janeiro de 2016

Os Privilégios Creditórios como Garantia dos Créditos Tributários

Trabalho efetuado sob a orientação doProfessor Doutor Joaquim Freitas da Rocha

Dissertação de MestradoMestrado em Direito Tributário e Fiscal

Universidade do MinhoEscola de Direito

ii

DECLARAÇÃO

Nome: André Saragoça Maia

Endereço eletrónico: [email protected]

Número do Cartão de Cidadão: 13830613

Título da dissertação: Os Privilégios Creditórios como Garantia dos Créditos Tributários

Orientador: Professor Doutor Joaquim Freitas da Rocha

Ano de conclusão: 2016

Designação do Mestrado: Mestrado em Direito Tributário e Fiscal

É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO INTEGRAL DESTE TRABALHO APENAS

PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO

INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE.

Universidade do Minho, ___/___/_____

Assinatura: _____________________________________________________

iii

Aos meus pais, por ontem, por hoje e por amanhã, o meu

eterno e sentido obrigado.

Ao Professor Doutor Joaquim Freitas da Rocha, nosso

orientador no presente estudo, por todo o incentivo e

conselhos tão preciosos ao longo deste processo e, em

particular, pela excelência e clareza de pensamento com que

aborda a toda a ciência jurídica e que um dia sonhamos em

puder encontrar.

Por fim, às poucas mas verdadeiras amizades que tenho o

privilégio de viver.

iv

v

RESUMO

Com o objeto de estudo da presente dissertação - os privilégios creditórios como

garantia do crédito tributário – procuramos suscitar a reflexão sobre o papel que

desempenha no seio da relação jurídica tributária.

O privilégio é um dos institutos jurídicos mais antigos no nosso ordenamento

jurídico mas que infelizmente não tem sido alvo da atenção necessária por parte da

doutrina. Por seu turno, o crédito tributário é um instrumento fundamental para a satisfação

das necessidades coletivas do Estado e demais entidades públicas, com vista à promoção

de uma repartição justa e equalitária dos rendimentos e da riqueza.

A importância deste dever fundamental evidencia-se ainda pela panóplia de

garantias creditórias previstas na lei em favor das obrigações tributárias, das quais

sobressaí a figura do privilégio, circunstância que traduz a preocupação do ordenamento

jurídico em dotar o credor tributário dos meios adequados a realizar, de forma plena e

eficaz, o seu direito à cobrança desses créditos.

Atento o particular carácter oculto deste instrumento garantístico, vários são os

casos em que a sua eficácia jurídica surge como uma completa surpresa para os terceiros

credores cujos créditos são tutelados por outras garantias creditórias, mas que acabam por

ver essas mesmas garantias decaírem perante os créditos tutelados por privilégios

creditórios, consequências que colocam em causa pilares fundamentais do nosso

ordenamento jurídico como são o princípio da segurança do tráfego jurídico, como também

do próprio princípio da confiança. Simultaneamente, procuramos desvendar a ligação entre

a dimensão civilística e a dimensão tributária do privilégio em causa, dissecando o seu

impacto no domínio jurídico-tributário.

Por fim, é ainda propósito do presente estudo oferecer uma ponderação sobre a

necessidade de repensar o atual regime geral dos privilégios creditórios nas suas diversas

dimensões jurídicas, com vista a fornecer pistas para um melhor equilíbrio entres os

diversos interesses e valores jurídicos que lhes subjazem, não nos impedindo de tentar

sugerir novas soluções e ideias para os problemas diversos conflitos de interesses

identificados.

vi

vii

ABSTRACT

With this thesis object of study - the privileges in favor of creditors as a guarantee for

the tax credit - we seek to raise the debate on one of the oldest legal institutions in our legal

system, which unfortunately has not been treated by the doctrine with the focus of attention

required, in particularly the tax doctrine. In this sense, tax credit is a key instrument for

meeting the collective needs of the State and other public entities, always with a view to

promoting a fair and equalitarian distribution of income and wealth.

The importance of this fundamental duty is even more clear when we analyze the

various guarantees involving tax obligations, which are provided by the legislator for the

effective collecting of tax debts, and at the same time, shows his willingness to provide the

tax creditor the appropriate means to carry out fully and effectively their right to recovery

of their tax claims in cases where the taxpayer does not comply with the duty set forth

above.

Given the somewhat hidden nature of this legal instrument, its legal effects often

appear as a complete surprise to third party creditors whose claims are protected by other

credit rights guarantees, which generally decay when in confrontation with a credit right

which is guaranteed by a privilege, therefore jeopardizing fundamental pillars of our legal

system such as the principle of certainty and the principle of trust.

At the same time, we try to unravel the hidden links between the civil and tax

dimension of the privilege in question, therefore "dissecting" its impact on the legal and tax

traffic.

Finally, this thesis aims to offer a reflection on the importance to rethink the current

general system of preferential rights in its various legal dimensions, thus providing clues to

a better balance among the various interests and legal values underlying these privileges, at

the same time we try to unveil new solutions for the problems that result from the many

conflicts of interest regarding this legal institution.

viii

ix

ÍNDICE

INTRODUÇÃO………………………………………………………………………........15

CAPÍTULO I – DAS GARANTIAS DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

1. O Dever Fundamental de pagar tributos: conteúdo e abrangência………………….15

2. Crédito Tributário e suas garantias……………………………………………............23

2.1. Características da Relação Jurídica Tributária…………………………………...28

2.2. O vínculo principal da relação jurídica tributária………………………………...31

2.3. As Garantias do Crédito Tributário – breve enunciação…………………............34

2.3.1 – Garantias Substantivas e Garantias Adjetivas………………………….36

2.3.2 – Garantias Gerais e Garantias Especiais………………………………...37

CAPÍTULO II – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

1. Contexto histórico da figura…………………………………………………..............44

1.1. Privilégios Creditórios no Direito Romano………………………………………44

1.2. O Código de Napoleão…………………………………………………………...47

1.3. O Código Civil Português de 1867………………………………………............46

2. Privilégios Creditórios à luz do Código Civil Português……………………………..53

2.1. Noção e Natureza Jurídica……………………………………………………….53

2.2. Posição da doutrina estrangeira quanto à natureza jurídica dos privilégios

creditórios………………………………………………………………………..60

2.2.1 Em França………………………………………………………..............60

2.2.2. O caso Espanhol…………………………………………………………61

2.2.3. Em Itália…………………………………………………………………63

3. Características dos Privilégios Creditórios e do seu regime legal decorrente do Código

Civil………………………………………………………………………………………..65

3.1. O carácter legal…………………………………………………………..............65

3.2. Acessoriedade face ao crédito ………………………….......................................67

3.3. A indivisibilidade dos privilégios creditórios……………………………………69

x

3.4. O carácter oculto dos privilégios: o problema da segurança e paz

jurídicas……........................................................................................................................71

3.5. Da extinção dos privilégios creditórios……………………………………..........76

3.6. Sobre a alienação do bem objeto do privilégio……………………………..........80

4. Espécies de Privilégios Creditórios…………………………………………………...81

4.1. Os privilégios mobiliários e os privilégios imobiliários…………………………81

4.2. Os privilégios gerais e os privilégios especiais…………………………………..83

5. Distinção de figuras afins aos privilégios creditórios………………………………...85

5.1. Hipoteca………………………………………………………………………….85

5.2. Direito de Retenção………………………………………………………............86

5.3 Penhor……………………………………………………………………………..89

5.4. Penhora……………………………………………………………………...........89

5.5. Arresto……………………………………………………………………………95

5.6. Separação de Patrimónios…………………………………………………..........99

CAPÍTULO III – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS COMO UMA GARANTIA DO

CRÉDITO TRIBUTÁRIO

1. O Artigo 50.º da Lei Geral Tributária……………………………………………….103

2. Fundamentos para a verificação de privilégios creditórios em matéria

tributária…………………………………………………………………………..104

3. Privilégios Creditórios em matéria tributária………………………………………..108

3.1. No Código Civil…………………………………………………………...........108

3.2. Privilégios Creditórios previstos no CIRS e no CIRC………………………….113

3.3. Privilégios Creditórios previstos no CIMI, no CIMT e no Código de Imposto de

Selo……………………………………………………………….......................118

3.4. Privilégios Creditórios associados aos créditos da Segurança Social…………..121

4. Conflitos entre Privilégios Creditórios………………………………………………124

5. O Concurso e a Graduação dos Créditos Tributários Privilegiados…………………126

5.1. No processo de execução fiscal…………………………………………............126

xi

5.2. No processo executivo………………………………………………………….129

5.3. No processo de insolvência……………………………………………………..134

CAPÍTULO IV – A NECESSIDADE DE UNIFORMIZAÇÃO DO REGIME LEGAL

DOS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

1. A Segurança e Certeza jurídicas face à atual configuração do regime legal dos

privilégios creditórios……………………………………………………..................137

1.1. A fragmentariedade do regime legal……………………………………............140

1.2. A incoerência normativo-jurídica: o problema da eficácia jurídico-temporal dos

privilégios creditórios………………………………………………...................143

1.3. A falta de publicidade/cognoscibilidade por terceiros credores………………...149

2. Posição Adotada – Contributos para uma uniformização do regime legal dos

privilégios creditórios…………………………………………………………….153

2.1. Formas de Publicitação do crédito privilegiado………………………………...153

2.2. A Reformulação e Atualização do regime legal do CC sobre os

privilégios.............................................................................................................157

CONCLUSÕES…………………………………………………………………………..160

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………165

xii

LISTA DE ABREVIATURAS

Art. – Artigo

Ac. – Acórdão

AT – Autoridade Tributária e Aduaneira

B.M.J. – Boletim do Ministério da Justiça

C.R.P. – Constituição da República Portuguesa

C.C. – Código Civil Português

C.C.E. – Código Civil Espanhol

C.C.F – Código Civil Francês

C. C. I. – Código Civil Italiano

C.P.C. – Código de Processo Civil

C.P.A. – Código do Procedimento Administrativo

Cfr. – Confrontar

CIRC – Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas

CIRS – Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

CIVA – Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado

CPPT – Código de Processo e de Procedimento Tributário

CPTA – Código de Processo dos Tribunais Administrativos

CSS - Code de la Sécurité Sociale

CRCPSS - Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança

Social

DR – Diário da República

D.L. – Decreto-Lei

ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais

IMI – Imposto Municipal sobre Imóveis.

IRC – Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas

IRS – Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

IVA – Imposto sobre o Valor Acrescentado

LGT – Lei Geral Tributária

Pág./págs. – Página/Páginas

RCPIT – Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária

STA – Supremo Tribunal Administrativo

STJ – Supremo Tribunal de Justiça

xiii

TC – Tribunal Constitucional

TCA Norte – Tribunal Central Administrativo Norte

TCA Sul – Tribunal Central Administrativo Sul

TRC – Tribunal da Relação de Coimbra

TRE – Tribunal da Relação de Évora

TRG – Tribunal da Relação de Guimarães

TRL – Tribunal da Relação de Lisboa

TRP – Tribunal da Relação do Porto

UE – União Europeia

vol. – volume

i

15

INTRODUÇÃO

O estudo que agora apresentamos tem como tema a figura dos privilégios creditórios,

perspetivada enquanto uma das garantias dos créditos tributários. No passado recente,

temos assistido no nosso ordenamento jurídico a intensas discussões doutrinárias e

jurisprudenciais sobre um instituto jurídico cujas raízes históricas nos transportam para

os primórdios da ciência jurídica, construída sob a égide do Direito Romano e cujas

influências permanecem ainda bem evidentes na sua atual configuração.

Neste sentido, enquanto uma das legítimas causas de preferência, o privilégio

creditório traduz uma enorme vantagem para o credor que beneficia da sua proteção, já

que impõe um especial tratamento privilegiado dos créditos a que se encontra associado

no momento da graduação dos direitos de crédito que incidem sobre o património de um

devedor. Ao mesmo tempo e atentas as diferenças de tratamento que impõe, o privilégio

cria situações de desigualdade entre os credores, contrariando um dos princípios

fundamentais do Direito Obrigacional – o princípio da igualdade entre credores.

Pretendemos cumprir os deveres de análise e caraterização da figura e respetivo

regime jurídico, mas ir ainda mais além. Atentas as raízes jurídico-civilísticas deste

instituto, ao longo da nossa exposição seremos forçados a abordar com a cautela e

profundidade necessárias, as diferentes influências privatísticas que decorrem do seu

regime geral, com vista a compreendermos os motivos que conduziram o legislador a

importar os privilégios creditórios para o domínio da relação jurídica tributária. Desta

forma, assumindo uma posição ponderada mas não silenciosa, tentaremos descobrir

quais os fundamentos que justificam a associação de um instituto jurídico de índole

privada a créditos de natureza publicista, em especial, dos créditos que subjazem ao

dever fundamental de pagar tributos.

Assim, é também nosso propósito expor e clarificar os vários motivos que subjazem

a um tratamento diferenciado destes créditos face aos demais, bem como indagar até

que ponto a figura do privilégio creditório se enquadra perante os princípios

constitucionais da igualdade e da proteção da confiança e segurança jurídicas, em

especial atenta a ausência de elementos de publicitação destas garantias creditórias,

comparativamente às demais garantias previstas pelo legislador.

16

Tomando como ponto de partida para a nossa viagem pelo cosmos jurídico onde se

encontram os privilégios, o seu regime legal geral – o previsto nos artigos 735.º a 753.º

do Código Civil – abordaremos ainda as especificidades da figura noutros ordenamentos

jurídicos, posteriormente retratando o fenómeno da absorção dos privilégios pelas

diferentes áreas do domínio jurídico-tributário, quer do ponto de vista substantivo, como

do ponto de vista adjetivo.

Terminaremos a nossa análise à figura procurando evidenciar os eventuais problemas

e enigmas que possam resultar da interpretação dos inúmeros e vastos comandos

normativos que regulamentam a figura, não deixando de tentar oferecer soluções e

respostas para os mesmos.

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CAPÍTULO I – DAS GARANTIAS DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

1. O Dever Fundamental de pagar impostos: conteúdo e abrangência

O Estado Social é hoje um modelo de organização jurídico-política dito “em crise”,

ou pelo menos, em aparente crise. Vários são os agentes públicos e privados que se

referem ao “fim” do modelo social introduzido em Portugal com a Revolução de Abril,

mormente, com a configuração jurídica, social e política decorrente do texto da

Constituição da República Portuguesa de 1974. Com esta, a sociedade portuguesa optou

pela construção de um modelo de Estado Social ou de Estado Providência, assente na

ideia de que a intervenção do Estado na vida privada é necessária para cumprir com a

tarefa de concretização e garantia plena dos Direitos, Liberdades e Garantias, mas

também de um conjunto de direitos a estes equiparados e cujo conteúdo programático se

traduz em propósitos a serem concretizados através da atuação pública, a saber, os

Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

Todavia, esse modelo constitucionalmente previsto encontra na sociedade hodierna

diversos circunstancialismos externos e internos que colocam em causa a sua efetiva

concretização. Impõe-se assim uma reflexão sobre a viabilidade e sustentabilidade deste

modelo de Estado. A globalização e internacionalização das relações económicas

assume-se como um dos principais obstáculos à realização plena dos objetivos do

Estado Tributário, fomentando os fenómenos da fraude e evasão tributárias, fragilizando

a plena eficácia do poder tributário do Estado, poder que hoje se encontra de certa forma

“limitado” ou pelo menos “supervisionado” por instâncias supranacionais, em especial,

pela União Europeia1.

Neste sentido, a Diretiva Comunitária2 é hoje um instrumento normativo que

desempenha um papel fundamental em variadíssimas matérias de índole tributária3,

conformando diversos aspetos dos elementos constitutivos do imposto.

1Cfr. CASALTA NABAIS, “Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo”, Coimbra,1998, Almedina, págs. 338 e 339 2A título meramente exemplificativo, temos o caso do Imposto sobre o Valor Acrescentado e da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006. 3 A esta parte aproveitamos para clarificar alguns aspetos terminológicos necessários para a compreensão da temática inerente à

presente dissertação. Na presente exposição procuramos compreender e enunciar os fundamentos dialéticos inerentes ao dever fundamental de pagar impostos, daí recorrermos à terminologia da relação jurídica fiscal de imposto. Todavia, consideramos que essa dialética subjaz não apenas à figura dos impostos mas antes a todos os tributos. Por essa razão, e como aliás enunciamos infra, atenta a amplitude de créditos públicos que gozam da proteção conferida pelos privilégios, optamos por construir a análise ao estudo da figura dos privilégios creditórios face à dinâmica da relação jurídica tributária e necessariamente, como uma garantia do crédito tributário, com vista a abranger os créditos por impostos, por taxas e ainda por contribuições especiais. Nesse sentido,

18

Não podemos ignorar o papel decisivo que os instrumentos de Direito da União

Europeia têm vindo a assumir na modelação do nosso ordenamento jurídico, muito em

especial, em matérias de Direito Tributário, o que tem como consequência natural uma

“orientação” do poder tributário a nível nacional.

Aqui chegados, uma questão essencial se coloca: Quem é responsável pelo

financiamento e pelos custos da prossecução de tais direitos? Ou melhor, quem arca

com os custos do Estado Social?

É neste âmbito que se encontra a problemática do dever fundamental de pagar

tributos, como princípio essencial do modelo de Estado que hoje conhecemos. Em

nosso entender e como aliás sustenta CASALTA NABAIS4 “os deveres fundamentais

constituem uma categoria jurídico-constitucional própria colocada ao lado e

correlativa dos direitos fundamentais, uma categoria que, como correctivo da

liberdade, traduz a mobilização do homem e do cidadão para a realização dos

objectivos do bem comum. (…) Nestes termos podemos definir os deveres fundamentais

como deveres jurídicos do homem e do cidadão que, por determinarem a posição

fundamental do indivíduo têm especial significado para a comunidade e podem por esta

ser exigidos.”

Importa salientar que a categoria dos deveres fundamentais se configura

paralelamente face à categoria dos direitos fundamentais e traduz a relação de

dependência existente entre o indivíduo e o Estado ou comunidade, face à qual o

cidadão que se configura como o vinculado, ou por outras palavras o sujeito passivo

sobre o qual impende o dever de adotar um determinado comportamento.

Todavia, neste sentido a qualidade de sujeito passivo não se traduz numa mera

sujeição ou dever de não atuar, muito pelo contrário, os deveres fundamentais assumem

um verdadeiro carácter de dever jurídico no sentido de situação jurídica ativa, ou

melhor, o dever de praticar um determinado ato. Porém, a existência deste tipo de

deveres não visa a delimitação das condutas dos cidadãos nas suas relações

intersubjetivas, antes pelo contrário, estes são deveres cujo âmbito de aplicação se

encontra na relação destes com o Estado ou comunidade, ou seja, assumem-se como

ao longo da presente dissertação optamos pela terminologia tributária, referindo-nos aos tributos (e não apenas aos impostos), ao Direito Tributário (e não apenas ao Direito Fiscal) e à própria Administração Tributária (e não à Administração Fiscal). 4 Cfr. CASALTA NABAIS, últ. ob. cit.,págs. 64 e 65. Para uma análise histórica sobre a figura do imposto, ver por todos, J. ALBANO SANTOS, “Teoria Fiscal”, Universidade Técnica de Lisboa, Edições do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 2003, págs. 13 a 108.

19

deveres reflexos dos poderes públicos constitucionalmente consagrados e não como

deveres fundamentais em sentido próprio5.

A atual configuração do Estado Moderno, nomeadamente o Estado Providência

enquanto um modelo de Estado que tem em vista a satisfação das necessidades públicas

ou coletivas da comunidade, assume nesta perspetiva várias tarefas fundamentais a

realizar, que podemos denominar por objetivos primários do Estado. Entre nós tais

tarefas fundamentais encontram previsão formal no preceituado pelo artigo 9.º da CRP6,

preceito cuja epígrafe indica “Tarefas Fundamentais do Estado”, sendo certo que outras

disposições constitucionais vão ainda mais longe e chegam a constituir verdadeiros

direitos fundamentais individualizáveis perante o cidadão e cuja realização e

prossecução cabe também ao Estado, como são os Direitos Liberdades e Garantias e os

Direitos Económicos, Sociais e Culturais.7

Assim, a realização e satisfação de todas estas tarefas fundamentais envolve

necessariamente o dispêndio de vários recursos financeiros, sendo neste plano que se

evoca a figura do Estado Tributário. Por sua vez este assume-se perante os cidadãos

individualmente considerados como o modelo de Estado no qual a captação dos meios

necessários para assegurar a prossecução das suas tarefas fundamentais se concretiza

através da recolha de recursos e meios perante os seus cidadãos sob a forma de tributos.

Todos os direitos (sejam eles Direitos, Liberdade e Garantias ou Direitos

Económicos, Culturais e Sociais) têm custos, custos públicos. Não sendo possível a

concretização e realização de tais direitos sob uma égide meramente individual, a sua

concretização plena e eficaz apenas poderá advir de uma atuação coletiva e unificada

através da intervenção pública, pelo que tal atuação implica a cooperação social e a

responsabilidade individual.

5Sobre este aspeto, CASALTA NABAIS, últ. ob. cit., pág. 63, sustenta que dos deveres fundamentais próprios decorrem de

disposições constitucionais próprias que investem diretamente os indivíduos em posições subjetivas, não obstante de não se encontrarem inscritas na Constituição formal ou de estarem ou não formuladas enquanto normas impositivas de deveres. Por sua vez, NOEL GOMES, in “Segredo Bancário e Direito Fiscal”, Coimbra, 2006, Almedina, págs. 128 a 129, afirma que o dever fundamental de pagar impostos “(…) apresenta-se como uma inderrogável obrigação constitucional do dever geral de solidariedade nos domínios económico, político e social(…).” 6 Prescreve o art.9.º da CRP que “São tarefas fundamentais do Estado: a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam; b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático; c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais; d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais; e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território; f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa; g) Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira; h) Promover a igualdade entre homens e mulheres.” 7 São exemplos o disposto nos arts. 24.º e ss da CRP

20

Sobre este ponto, CASALTA NABAIS8 traduz de forma plena as relações existentes

entre o Estado Fiscal e o cidadão, “(…) pois bem, centrando-nos nos custos financeiros

dos direitos, a primeira verificação, que devemos desde já assinalar a tal respeito, é

esta: os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina nem frutos da

natureza, porque não são auto realizáveis nem podem ser realisticamente protegidos

num estado falido ou incapacitado, implicam a cooperação social e a responsabilidade

individual. Daí decorre que a melhor abordagem para os direitos seja vê-los como

liberdades privadas com custos públicos. Na verdade, todos os direitos têm custos

comunitários, ou seja, custos financeiros públicos (...).”

O tributo constitui a principal fonte de receita estadual, sem a qual não é possível

garantir os bens públicos essenciais que hoje tomamos por garantidos no Estado Social,

como são, por exemplo, a saúde, a educação e a própria igualdade material.

Subescrevemos as palavras de PAULO MARQUES9 relativamente à simbiose que se

verifica entre a dignidade da pessoa humana e o tributo. De facto, a afirmação efetiva

dos valores e conceitos inerentes ao princípio da dignidade da pessoa humana não é

possível sem uma estrutura jurídico-política capaz de a efetivar, proteger e garantir.

Tributar é o ponto de partida para dotar o Estado dos meios e recursos necessários

para realizar todas as dimensões por detrás de um dos mais altos valores dos Estados

Democráticos modernos – a dignidade da pessoa humana. E é neste sentido que

seguimos as palavras de ALBANO SANTOS10 quando afirma que para cabal

prossecução dos fins que lhes estão atribuídos, o Estado e demais entes públicos têm a

necessidade de dispor de um conjunto adequado de recursos financeiros, de entre os

quais merece especial atenção o fluxo de receitas que continuadamente alimenta o erário

público (os tributos), de forma a possibilitar a sustentabilidade e financiamento das

inevitáveis despesas que decorrem da sua atuação.

Daí que, como declara CASALTA NABAIS11 a distinção clássica referente aos

custos públicos da concretização dos chamados Direitos, Liberdade e Garantias e dos

próprios Direitos Económicos, Sociais e Culturais não se afigura como relevante

perante a ideia de Estado Social.

8 Cfr. CASALTA NABAIS, “Reflexões sobre quem paga a conta do Estado Social”, Ciência e Técnica, n.º 421, Lisboa, (Janeiro-Junho 2008), págs. 7 a 46; Neste sentido pronunciam-se também GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in “Constituição da República Portuguesa – Anotada”, Vol.I, 4.ª Edição, Coimbra, 2010, Coimbra Editora, pág. 1088. 9 Cfr. PAULO MARQUES, “Elogio do Imposto – A Relação do Estado com os Contribuintes”, Coimbra, 2011, Coimbra Editora, págs. 10 e ss. 10 Cfr. J. ALBANO SANTOS, “Teoria Fiscal”, Edições da Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 2003, págs. 149 a 151. 11 CASALTA NABAIS, “Reflexões sobre quem paga a conta do Estado Social”, últ. ob. cit., pág. 21

21

Perspetivando a questão pela ótica da despesa pública, as duas categorias de direitos

afiguram-se como bens públicos cuja concretização implica vastos recursos financeiros

e cuja captação é hoje concretizada principalmente, mas não apenas12, pela figura do

tributo.13

Configurando-se como o principal suporte financeiro para a atividade do Estado e

dos demais entes públicos, os tributos assumem-se como a contribuição necessária para

a realização das tarefas fundamentais do Estado14, ao passo que de um prisma coletivo,

assumem-se como a característica essencial do Estado Tributário – um Estado que tem

por suporte financeiro determinante ou típico, a figura dos impostos15. A natureza fiscal

do Estado decorre do próprio texto constitucional, conforme resulta do disposto no n.º1

do artigo 103.º da CRP, como aliás reiteram GOMES CANOTILHO e VITAL

MOREIRA, ao afirmar que “ (…) no moderno «Estado Fiscal», os impostos são a

principal fonte de receitas públicas.” 16

Neste preceito o legislador constituinte define como primeiro objetivo do sistema

fiscal, “a satisfação das necessidades financeiras do estado e outras entidades

públicas” e ainda, “ (…) uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.”.

De uma forma simplista encontramos neste preceito as finalidades máximas do

sistema fiscal português, todavia, o legislador constituinte vai mais longe para no artigo

104.º17 delinear expressamente as finalidades de cada tipo de imposto previsto.

12 Ao abordarmos a temática das receitas do Estado, especialmente no que toca à matéria dos tributos, não podemos deixar de distinguir três distintas classes: o imposto, a taxa e as contribuições. Para um maior aprofundamento destas matérias, vejam-se ainda, J. ALBANO SANTOS, “Finanças Públicas”, Edições do Instituto Nacional de Administração, Lisboa, 2011; MARIA D’OLIVEIRA MARTINS, “Lições de Finanças Públicas e Direito Financeiro”, Reimpressão da 3.ªedição, Lisboa, 2015, Almedina Editora; ANTÓNIO SOUSA FRANCO, “Finanças Públicas e Direito Financeiro – Vol. II”, 4.ªEdição, Coimbra, 1995, págs. 58 e ss; TEIXEIRA RIBEIRO, “Lições de Finanças Públicas”, 5.ª Edição, 1994, Coimbra, Coimbra Editora, págs. 252 e ss. 13 A clássica diferenciação entre direitos “positivos” e direitos “negativos” é sustentada na doutrina portuguesa por vários autores. Sobre este tema, JORGE MIRANDA, “Direito Constitucional – Tomo IV”, págs.84 e ss.-. Em sentido diametralmente oposto, cfr. STEPHEN HOLMES e CASS R. SUSTEIN, “The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes”, New York, 2000, W.W. Norton & Company, Inc., págs. 35 e ss. Os autores sustentam que a distinção entre “direitos positivos” e “direitos negativos” assume muito mais um carácter ideológico traduzido na dicotomia entre Liberalismo e Conservadorismo Político, do que um verdadeira dogmática jurídica. 14 Cfr. art. 9.º da CRP. 15 Cfr. CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2013, págs. 135 e ss; 16 Outros exemplos da opção do legislador constituinte pelo Estado Fiscal encontram-se nos artigos 229.º/n.º1/i), art.254.º, ambos da CRP; a contrario, são exemplos os arts. 74.º/n.º3/a), o art.63.º e art.64.º n.º 1/c), todos da CRP. Sobre o conteúdo deste preceito constitucional, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in “Constituição da República Portuguesa – Anotada”, Vol.I, 4.ª Edição, Coimbra, 2010, Coimbra Editora, págs.1088 e ss., defendem que os impostos são “ (…) uma das poucas obrigações públicas dos cidadãos constitucionalmente consagradas (…) estando por isso sujeitas aos princípios norteadores dos direitos fundamentais, em especial, os princípios da generalidade e da igualdade.” 17 Prescreve o art.104.º da CRP: “1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar. 2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real. 3. A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos. 4. A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo.”

22

Ao pronunciar-se neste sentido, o legislador constituinte concretizou expressamente

a necessidade de imputação das receitas tributárias (obtidas através do conjunto de

impostos, taxas e contribuições) à satisfação das necessidades financeiras públicas.

Desta feita podemos afirmar com segurança que todos os direitos18, quer os

clássicos direitos liberdades e garantias, quer os direitos económicos, sociais e culturais,

têm um custo, custo esse que é, perante a presente configuração do Estado Tributário,

satisfeito mediante a receita fiscal obtida através da figura dos tributos.

Mas quais são os pressupostos subjacentes à atividade de cobrança das receitas

tributárias? Ou melhor, quais os limites inerentes ao dever fundamental de pagar os

tributos? Voltando ao espectro da relação entre Estado e cidadão, relação da qual

decorre o dever fundamental de pagar impostos, sabemos já que por um lado temos o

Estado como sujeito ativo ou melhor, como titular do poder tributário para criar e

instituir os tributos e por outro, o contribuinte, enquanto sujeito passivo sobre o qual

incide o dever de contribuir para a satisfação das necessidades coletivas, pagando a

quantia tributária que seja devida.

Contudo, a receita financeira do Estado19 não se resume à receita fiscal mas antes

compreende em si ainda outras formas de financiamento das necessidades coletivas,

como as taxas, as contribuições para a segurança social e ainda outros tributos

parafiscais. De facto, falar sobre as formas de financiamento do Estado é falar sobre

uma das áreas recentemente autonomizadas do saber jurídico, o Direito Tributário, no

âmbito do qual se insere o Direito Fiscal.

18 A esta parte subscrevemos as conclusões de STEPHEN HOLMES e CASS R. SUSTEIN, ob. cit., pág. 221. Os autores sustentam que “(…) Private liberties have public costs. This is true not only for rights to Social Security, Medicare and food stamps, but also, rights to private property, freedom of speech, immunity from police abuse, contractual liberty. (…). From the perspective of public finance, all rights are licenses for individuals to pursue their joint and separate purposes by taking advantage of collective assets, which include a share of these private assets accumulated under the community’s protection (…). Conceived as a matter of public finance, legal rights emerge as politically created and collectively funded instruments designed to promote human welfare”. Neste sentido pronuncia-se também VASCO BRANCO GUIMARÃES no estudo “Considerações sobre a Revisão do Rendimento Tributável”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutro Pedro Soares Martínez”, Vol. II, Coimbra, Almedina Editora, pág.429. 19 Cfr. art. 5.º da LGT.

23

2. O Crédito Tributário e as suas garantias

2.1 - Características da Relação Jurídica Tributária

Não podemos abordar a temática em apreço no presente estudo – as garantias do

crédito tributário – sem uma alusão às características, natureza e elementos da relação

jurídica tributária. A autonomização do Direito Tributário como uma área do saber

jurídico em Portugal no início da segunda metade do século XX permitiu a construção

de uma nova dogmática jurídico-tributária.

Todavia, esta emancipação não resultou numa imediata individualização do Direito

Tributário assente na conceção da relação jurídica tributária como hoje a consideramos.

Se é verdade que de um ponto de vista didático e pedagógico, a disciplina do Direito

Tributário começou a dar os seus primeiros passos em direção a uma autonomização

científica e dogmática na década de 50, a verdade é que essa separação não foi de

imediato adotada pelo legislador português do Estado Novo. A conceção do Direito

Tributário como um ramo da ciência jurídica administrativa dominou o ordenamento

jurídico português durante o antigo regime, como aliás traduzem as considerações do

preâmbulo do diploma legislativo que aprovou o Código de Processo das Contribuições

e dos Impostos de 196320.

Só com a aprovação do Código de Processo Tributário em 1991 é que a abordagem

e estudo da ciência jurídica tributária e fiscal se aproximariam da doutrina da relação

jurídica tributária: “ A reforma fiscal, integrada pelos novos Códigos (…) exprime

também uma nova relação entre a administração fiscal e o contribuinte, fundada numa

muito mais estrita vinculação legal da primeira em todos os seus actos e na plena

devolução ao segundo da responsabilidade dos seus comportamentos e declarações. A

presunção da verdade dos actos do Fisco foi substituída pela presunção da verdade dos

actos do cidadão-contribuinte, cabendo ao Fisco, em caso de tributação por métodos

indiciários ou por presunção, fundamentar não apenas o seu uso, mas a própria

20 Este diploma abordava as relações jurídicas tributárias como verdadeiras relações jurídicas administrativas de autoridade perante as quais a Administração atuava dotada de um poder público de autoridade, remetendo o contribuinte a uma posição de mera sujeição ao dever de pagar os impostos e contribuições criadas pelo legislador. Do preâmbulo do DL n.º 45005 de 27 de Abril - diploma que aprovou o Código de Processo das Contribuições e Impostos – retira-se que “A aplicação da lei tributária aos factos previstos como objecto de incidência de impostos ou de determinação da matéria colectável é, naturalmente, uma função dos órgãos da administração fiscal com poder decisório, tendo, por isso, os actos de tributação, carácter definitivo e valor executório, necessariamente vinculativos em relação ao contribuinte. Encarado este importante aspecto do acto tributário perante os princípios gerais de direito administrativo, e tendo em conta as particularidades específicas do direito fiscal (…).” Sobre a abordagem ao Direito Tributário com base no acto tributário, ver a exposição de JOAQUIM FREITAS ROCHA, “Apontamentos de Direito Tributário (A Relação Jurídica Tributária) ”, AEDUM, 2009, Braga, págs. 3 e 4;

24

quantificação da matéria tributável apurada, a qual é, finalmente, susceptível de

completa apreciação pelos tribunais tributários. (…)”.

Esta reforma do pensamento legislativo face à dinâmica subjacente à relação

jurídica inerente ao Direito Tributário permitiu redefinir as conceções sobre as

características e estrutura do relacionamento entre os contribuintes e o credor tributário,

que culminaria com a entrada em vigor da Lei Geral Tributária em 199921 e a verdadeira

consagração de uma dogmática jurídico-tributária assente no conceito de relação

jurídica tributária, dedicando o Título II à enunciação dos elementos e características da

mesma, afastando por completo as doutrinas que colocavam a tónica não sobre a relação

jurídica em si, ao invés, sobre a figura do ato tributário. Como nos explica o Professor

SÉRGIO VASQUES22, “ (…) a relação jurídica tributária continua a ser o esquema

conceitual capaz de melhor explicar a interação que se dá entre o Estado e os Estado e

os contribuintes na sociedade em que vivemos.”

Esta a opção pela importação do esquema e estrutura clássicas do direito privado

sobre a relação jurídica para o âmbito jurídico-tributário operada pela doutrina e

consagrada pelo legislador com a Lei Geral Tributária, não só facilita o estudo desta

área do saber jurídico, ao mesmo tempo que confere ao Direito Tributário uma

autonomia e individualização que lhe permitem fazer operar uma separação deste ramo

do direito face à disciplina do Direito Administrativo, todavia sem negar a sua iminente

natureza publicista, facilitando a categorização e demarcação dos seus institutos e

conceitos próprios.

Daqui resulta um perfeito equilíbrio entre uma dogmática jurídica substantiva

assente na dimensão privatística e, em simultâneo, numa estrutura normativa adjetiva

que concretiza a natureza pública da relação jurídica tributária, o que nos permite

caracterizar o direito tributário como um “direito público obrigacional”23. ´

Relatada a evolução e consagração do conceito de relação jurídica tributária,

importa compreender a sua estrutura e as suas características, tarefa de que agora nos

21 No preâmbulo do D.L. n.º 398/98 de 17.12 – diploma que aprovou a Lei Geral Tributária – pode ler-se: “(…) A concentração, clarificação e síntese em único diploma das regras fundamentais do sistema fiscal que só uma lei geral tributária é susceptível de empreender poderão, na verdade, contribuir poderosamente para uma maior segurança das relações entre a administração tributária e os contribuintes, a uniformização dos critérios de aplicação do direito tributário, de que depende a aplicação efectiva do princípio da igualdade, e a estabilidade e coerência do sistema tributário. A imagem de um sistema tributário disperso e contraditório prejudica fortemente a aceitação social das suas normas e, consequentemente, a eficácia do combate à fraude e evasão fiscal. (…)”. Esta visão é consagrada pelo legislador no art. 1.º da LGT, preceito que explicitamente delimita o âmbito de aplicação do diploma à regulação das relações jurídico-tributárias, aprofundando o seu conceito no Título II, sob a epígrafe “Da relação jurídica tributária”. 22 Cfr. SÉRGIO VAZQUES, “Manual de Direito Fiscal”, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 320. 23 Cfr. SÉRGIO VASQUES, ob. cit. pág. 320;

25

ocupamos. Ora, a relação jurídica em análise assume desde logo uma natureza complexa

com direitos e deveres correlativos para os sujeitos que a compõem, o que resulta numa

particular complexidade evidenciada quer pela sua estrutura, quer pela sua própria

natureza e configuração, dando azo a diferentes construções dogmáticas.

Por um lado, o professor CASALTA NABAIS começa por enunciar a

complexidade da relação jurídica tributária24 por diferentes perspetivas, merecendo

especial ênfase a análise das sub-relações que, na perspetiva do autor, a compõem: “

(…) Finalmente, quanto às relações que se estabelecem ou relação fiscal em sentido

amplo, é de salientar que esta se desdobra na relação fiscal em sentido estrito ou

relação de imposto e em diversas relações jurídicas acessórias (…) ”. Prossegue assim

o autor identificando dois conceitos de relação jurídica tributária, desde logo, um

conceito amplo de “relação jurídica fiscal” correspondente a uma relação de direito

administrativo, que se estabelece entre a “Administração Fiscal” e o contribuinte ou

“sujeito passivo do imposto”, perante a qual a atuação da primeira se caracteriza pela

autoridade decorrente do poder administrativo – ius imperii - para aplicar as leis fiscais

e praticar os necessários atos de autoridade.

Em contraponto com o conceito amplo de relação jurídica tributária, CASALTA

NABAIS descreve ainda o que entende por relação jurídica “fiscal em sentido estrito” –

a relação de imposto – sendo esta uma “relação de direito obrigacional entre a Fazenda

Pública e o devedor do imposto, uma relação de natureza paritária em que aquela não

dispõe de qualquer poder de autoridade (…) ”. Por outro lado, o Professor JOAQUIM

FREITAS ROCHA adota um conceito unitário de relação jurídica tributária25, como

base para a análise da disciplina do Direito Tributário. Para o professor, a relação

jurídica tributária é tendencialmente paritária, “com uma estrutura e fisionomia

idênticas à relação obrigacional de direito privado, sem prejuízo de um marcado

regime publicista motivado pelas prerrogativas de Ius imperii reconhecidas à

Administração”. Esta perspetiva tem a vantagem de permitir afastarmo-nos da

tradicional análise da relação jurídica tributária como uma mera relação de direito

público, sem colocar em causa a natureza publicista da mesma, ao mesmo tempo que

24 Cfr. CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, págs. 227 e ss; o autor utiliza a terminologia ‘relação jurídica fiscal’. Optamos pela terminologia utilizada pelo Professor JOAQUIM FREITAS ROHCA in “Apontamentos de Direito Tributário – A Relação Jurídica Tributária”, AEDUM, 2012, Braga, págs. 3 a 6; Sobre a distinção entre os conceitos de ‘imposto’ e ‘tributo’, ver por todos, DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS, “Direito Tributário”, 2.ªEdição, Coimbra, 2000. 25 Sobre o conceito de relação jurídica tributária concluí o autor: “ (…) pode afirmar-se que a relação jurídica tributária é um vínculo de natureza jurídica que se estabelece entre o credor de um tributo, grande parte das vezes o Estado, e um devedor genericamente designado por contribuinte (…)”.

26

recortamos a estrutura da relação jurídica obrigacional de direito privado, facilitando a

análise das diferentes posições jurídicas a ela inerentes. Assim, ao aceitarmos como

ponto de partida para o estudo da relação jurídica tributária a estrutura da relação

jurídica obrigacional clássica, com maior facilidade abordamos a problemática

relacionada com o fenómeno da privatização da relação tributária26.

O Direito Tributário conhece na relação jurídica tributária a sua raison d’être,

assumindo-se como a área do saber jurídico que se debruça sobre o estudo, regulação e

delimitação dos vários elementos da mesma.

No âmbito da Teoria Geral da Relação Jurídica Tributária, a construção dogmática

consensual é a que recorre à doutrina da relação jurídica de Direito Privado típica do

Direito das Obrigações, da qual resulta um vínculo jurídico “em virtude do qual

determinada pessoa ou entidade fica adstrita [sujeito passivo] para com outra [sujeito

ativo] a realizar determinado comportamento (prestação) ”. 27

Relação jurídica que tem como objeto a prestação tributária principal – pagamento

do tributo - face à qual tantas outras obrigações acessórias ou secundárias se desdobram,

destacando-se a sua eficácia interpartes, na medida em que as posições jurídicas em

causa apenas podem ser oponíveis entre os sujeitos que integram a própria relação.28

E logo a esta parte se evidencia a particular complexidade da relação jurídica

tributária, já que de uma perspetiva subjetiva a binominalidade da estrutura obrigacional

da relação nem sempre se verifica, prevendo o legislador casos excecionais em que

pessoas ou entidades terceiras face à relação principal poderão ser a esta convocados,

passando a assumir-se como sujeitos passivos indiretos29. Contudo, a complexidade da

relação jurídica objeto do presente estudo não se constata apenas sob uma perspetiva

subjetiva, ou melhor, atendendo aos sujeitos que a compõem.

26 Sobre o fenómeno da privatização da relação tributária, ver por todos, HUGO FLORES DA SILVA “Privatização do Sistema de Gestão Fiscal”, Braga, 2014, Coimbra Editora. 27 Sobre a Teoria Geral da Relação Jurídica ver, por todos, CARLOS ALBERTO MOTA PINTO ”Teoria Geral do Direito Civil”, 10.ªEdiçaõ, 2010, Coimbra, Almedina Editora; De acordo com o n.º1 do artigo 18.º da LGT, o sujeito ativo da relação jurídica tributária é “a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, quer directamente quer através de representante”. Já o n.º 3 do mesmo preceito estipula “ O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.” 28 Cfr. JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, ob.cit. pág.7. Sobre a distinção dos tipos de efeitos jurídicos inerente à relação jurídica obrigacional, ver por todos, ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10.ªEdição, 2010, Coimbra, Almedina Editora, págs.108 a 129. 29 São os casos da responsabilidade tributária (arts. 22.º a 28.º da LGT), da sucessão tributária (art.29.º da LGT) e ainda, os casos de substituição tributária (arts. 19.º e 20.º da LGT), que por razões de coerência e estrutura abordaremos infra; Já sobre o conceito, características e análise dos pressupostos legais, cfr. JOAQUIM FREITAS ROCHA, ob.cit. págs. 29 a 40;

27

De facto a complexidade referida verifica-se também do ponto de vista objetivo,

quando analisamos o conteúdo da relação jurídica tributária.

Aqui o papel principal pertence à obrigação de pagar o tributo, isto é, à obrigação

referente à prestação material ou principal a satisfazer pelo contribuinte – a obrigação

de pagar o tributo, posição que também os autores jurídico-civilistas sustentam30.

Tomando como ponto de partida a sua natureza obrigacional, recorremos às mui

doutas palavras do saudoso professor ANTUNES VARELA31 sobre a complexidade das

relações obrigacionais, autor que afirma que “a relação jurídica em geral diz-se una ou

simples, quando compreende o direito subjetivo atribuído a uma pessoa e o dever

jurídico ou estado de sujeição correspondente, que recai sobre a outra; e complexa ou

múltipla, quando abrange o conjunto de direitos e de deveres ou estados de sujeição

nascidos do mesmo facto jurídico.”

Assim, ao olharmos para a relação jurídica tributária, em especial para o vínculo

obrigacional que a compõe, podemos identificar um conjunto de deveres acessórios

autónomos face à obrigação principal, como são exemplos o dever de apresentação de

declarações, ou o dever de prestação de informações, deveres jurídicos que impendem

sobre o contribuinte32.

A esta parte poderíamos indagar se a complexidade da relação obrigacional tributária

se verifica pela existência de dois tipos de vínculos jurídicos autónomos entre si, um

principal e um outro acessório e assim perante uma verdadeira relação obrigacional

complexa, ou, por outro lado, se estamos perante um só vínculo jurídico principal em

torno do qual orbitam em torno do vínculo principal, vários deveres acessórios, não

afastando embora a natureza simples da estrutura da própria relação jurídica enquanto

relação obrigacional.

Por fim e antes de abordarmos o conteúdo do seu vínculo obrigacional, devemos

fazer uma breve alusão às finalidades da relação tributária, ponto de partida para a

identificação das restantes características da mesma. Desta forma, as finalidades desta

concreta relação jurídica passam necessariamente pela satisfação de interesses públicos,

em concreto, pela cobrança da receitas tributárias com vista à “satisfação das

30 Cfr. CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ªEdição, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 178. Para o autor, a estrutura da relação jurídica “ (…) é o seu centro ou cerne: é o vínculo, o nexo, a ligação que existe entre os sujeitos. (…)” 31 Cfr. JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, últ. ob. cit. 10.ª Edição, Coimbra, 2010, Almedina Editora, págs.64, 65 e 68; A complexidade da relação obrigacional verifica-se também em relação às próprias relações obrigacionais simples, traduzindo-se “(…) na série de deveres, secundários e de deveres acessórios de conduta que gravitam as mais das vezes em torno do dever principal de prestar e até do direito à prestação (principal) ”. 32 Cfr. Arts. 30.º e 31.º da LGT.

28

necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas”, promovendo “a

justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das

desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento”33.

A inquestionável natureza publicista da relação jurídica tributária verifica-se dados

os fins que a tributação visa atingir. Em resultado destas considerações, podemos

afirmar que “a principal e mais visível consequência da consideração do Interesse

público como o fim único que subjaz ao nascimento e estabelecimento de uma relação

jurídica tributária é a caracterização desta como uma relação de natureza publicista,

subordinada aos princípios e regras de Direito público e no âmbito da qual um dos

sujeitos actua munido de Ius imperii.”34.

Atenta a particular natureza que a caracteriza, facilmente se compreendem e

concretizam as demais caracterísiticas que a doutrina atribuí à relação jurídica tributária.

Neste sentido, a melhor doutrina identifica em primeiro lugar o carácter ex lege, ou

seja, a particularidade de a constituição e determinação do conteúdo da relação

tributária se fundarem única e exclusivamente na Lei. “Estamos perante uma relação

jurídica de base normativa, que apenas se constitui e desenvolve com impulso

normativo, o que significa que necessita da norma jurídica (…) para adquirir

relevância para o mundo do Direito (…) o mesmo se passa no que diz respeito à

modelação do seu conteúdo. (…).”35 Em segundo lugar, uma outra característica da

relação tributária será a indisponibilidade das posições jurídicas, consequência direta do

33 Cfr. art.5.º, n.º1 da LGT e art.103.º, n.º1 da CRP; 34 Cfr. JOAQUIM FREITAS ROCHA, ob.cit., pág. 11; Contudo estas considerações não afastam a importância do crescente fenómeno de privatização do Direito Tributário, realidade que tem vindo a alterar a forma como a Administração Tributária exerce os seus poderes de autoridade e, em última análise, da própria conceção do Estado Tributário. Sobre esta nova realidade do Direito Tributário, CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, 2013, 7ªEdição, págs. 327 a 329 refere que “independentemente de se saber se uma tal ‘privatização’ da administração ou gestão dos impostos se inscreve num universo de mudança mais amplo (…), do que não há dúvidas é de que, em sede fiscal, à administração pública cabe, cada vez mais, uma função passiva, uma função vigilante ou supervisora. (…) Significa isto que a administração tributária deixou de ser a aplicadora das normas de imposição ou tributação, com base em elementos que antecipadamente dispunha, que proporcionavam uma fiscalização tributária ex ante, para passar a ser a fiscalizadora da aplicação dessas normas por parte dos particulares (…)”. Concluí o autor que “ (…) presentemente temos fundamentalmente um sistema de administração privada dos impostos.”; Também J.L. SALDANHA SANCHES sustenta esta visão no estudo “Do acto à relação: O Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo e a Teoria Geral das Obrigações”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, I, Coimbra: Almedina, 2003, págs. 854 e 855, no qual afirma “(…) o que temos hoje é um sistema de autoavaliação do imposto. E uma autoavaliação do imposto como uma quase condição de uma efectiva tutela dos direitos do contribuinte: que passa a estar assente nos princípios da determinabilidade e da previsibilidade da lei fiscal. O que permite a gestão privada do risco fiscal qye tem como seu momento fundamental a aplicação da lei feita pelo sujeito passivo (…)”., Para uma análise mais aprofundada sobre o fenómeno da privatização do direito tributário e da atividade tributária, ver por todos, HUGO FLORES DA SILVA “Privatização do Sistema de Gestão Fiscal”, Braga, 2014, Coimbra Editora. 35 Cf. JOAQUIM FREITAS ROCHA, ob. cit., pág. 11. Acrescenta ainda o autor que “ (…) a relação tributária vê o conteúdo da obrigação principal e das diversas obrigações acessórias modelado pela norma jurídica (…).” Neste sentido, cfr. arts. 30.º, n.º1, 31.º e 36.º, n.º1 da LGT.

29

carácter ex lege e da própria natureza publicista supra mencionados, como aliás decorre

do disposto no n.º 3 do artigo 30.º e no n.º 2 do artigo 36.º da LGT.36

Facilmente se depreende o porquê deste concreto atributo da relação tributária

quando se toma em consideração a posição jurídica do sujeito ativo como o titular de

um direito de crédito sob o sujeito passivo, crédito esse que visa a satisfação das

necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas, necessário para a tarefa

fundamental de realização do Interesse Público.

Será a partir desta característica que JOAQUIM FREITAS ROCHA identifica três

consequências que decorrem deste traço da relação tributária: i) o poder-dever que

impede o credor tributário no que diz respeito ao exercício dos direitos de que é

titular37; ii) a intransmissibilidade intervivos dos direitos de que é titular o sujeito

ativo38; e ainda iii) a irrenunciabilidade dos direitos atribuídos pela lei ao credor

tributário39.

Com efeito, como sublinha o Professor, este carácter publicista da relação tributária

constata-se também pelos “especiais instrumentos de actuação” do sujeito ativo da

36 Prescreve o n.º 2 do art. 30.º da LGT: “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”. Por sua vez, o n.º2 do art. 36.º do mesmo diploma legal indica que “os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados pela vontade das partes”, norma que expressamente afasta qualquer aplicação do princípio da autonomia privada no direito tributário, contribuindo em simultâneo para a afirmação da natureza demarcadamente pública da relação tributária. Este problema coloca-se me particular no âmbito do Direito da Insolvência, sendo clarificado este entendimento pelo STA em Acórdão de 25/03/2015, referente ao processo n.º 0278/15, disponível em www.dgsi.pt. Concluíram os Juízes Conselheiros do STA que “I - Os n.ºs 2 e 3 do art. 36.º da LGT são peremptórios ao estabelecer que os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes e que a AT não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias (cfr. também o n.º 3 do art. 85.º do CPPT), salvo nos casos expressamente previstos na lei.II - A indisponibilidade dos créditos tributários, consagrada no n.º 2 do art. 30.º da LGT (« O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária»).(…)”. 37 Cf. JOAQUIM FREITAS ROCHA, ob. cit., pág. 12. Esclarece o autor que “ (…) muitas das vezes esses direitos devem ser exercidos oficiosamente (ex officio), isto é, sem dependência da vontade do seu titular, encontrando-se este obrigado a agir e investido num verdadeiro poder-dever(…)”. 38 Cf. Art. 29.º, n.º 3 da LGT. É este um exemplo em que à relação tributária originária é convocado um terceiro, configurando-se a transmissão inter-vivos das obrigações tributárias como um exemplo se sujeito passivo indireto. Contudo, só é admissível se prevista pelo legislador, como aliás nos explicam os Juízes Conselheiros do STA no Acórdão de 28/11/2007, referente ao processo n.º 0802/07, disponível em www.dgsi.pt: “I - A extinção de uma pessoa colectiva não obsta a que contra ela seja extraído título executivo, relativamente a obrigação tributária, e instaurada acção executiva visando a cobrança coerciva da dívida.II - O artigo 29º nº 3 da Lei Geral Tributária admite a transmissão das dívidas fiscais de uma pessoa colectiva para outra, se tal for previsto na lei.III - É o caso de uma escola profissional extinta por força do Decreto-Lei nº 4/98, de 8 de Janeiro, em cujos termos as obrigações da escola profissional se transmitem para a entidade proprietária que constitua nova ao abrigo do diploma, tanto mais quando os estatutos desta última afirmam a assunção das obrigações decorrentes da actividade da escola desaparecida.” 39 Atendendo aos fins a que se encontra adstrita a relação tributária e, em especial, a atividade de cobrança dos tributos, o sujeito ativo não pode, salvo em casos especialmente previstos pela lei, decidir-se pela recusa do cumprimento das prestações tributárias pelo sujeito passivo, sendo proibidas as reduções e os perdões administrativos da dívida tributária, nem tão pouco o alargamento dos prazos para o cumprimento. Sobre a irrenunciabilidade das prestações tributárias, CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 239, explica-nos que “(…) ao credor não cabem, em princípio, quaisquer poderes para conceder moratórias, admitir o pagamento em prestações ou conceder o perdão da dívida.(…)”. Cfr. ainda o disposto nos arts. 29.º, n.º1 e 3, 36.º, n.º3 e 37.º, n.º2, todos da LGT e ainda o n.º3 do art. 85.º do CPPT.

30

relação tributária - os atos administrativos, que beneficiam de uma presunção de

legalidade40 - e, por outro lado, o privilégio de execução prévia41.

Sem olvidar também, por outro lado, o especial arsenal processual garantístico e

especial arsenal sancionatório42.

Com efeito, tecidas algumas breves mas necessárias considerações sobre as

características e o contexto jurídico-normativo em que se insere a relação tributária, é

sobre o conteúdo desta relação jurídica que dedicamos a nossa atenção de seguida, com

particular enfoque para o seu objeto - a obrigação de pagar o tributo.

40 Cf. JOÃO CAUPERS, “Introdução ao Direito Administrativo”, 10.ªEdição, Âncora Editora, Lisboa, 2009, pág.46; O autor sustenta que a presunção de legalidade dos atos administrativos é um dos efeitos positivos do princípio da legalidade, razão pela qual a impugnação contenciosa não suspende, em princípio, os efeitos do ato impugnado. Em sentido diametralmente diferente, consultar o artigo do Juiz Conselheiro do STA, ANTÓNIO BENTO SÃO PEDRO, “Ónus da Prova e a Presunção da Legalidade dos Actos Administrativos”, disponível em http://www.amjafp.pt/images/phocadownload/artigosjuridicos/antoniosaopedro_onusprova.pdf (consultado em 19/08/15); Para uma posição intermédia sobre a presunção da legalidade dos atos administrativos, cfr. RUI MANCHETE, em “Algumas notas sobre a chamada presunção de legalidade dos actos administrativos” in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Pedro Soares Martinez, Vol I, Coimbra, 2000, pág. 717 e ss. 41 O n.º1 do art. 149.º do antigo CPA (DL n.º 442/91, de 15.11) dispunha: “ Os actos administrativos são executórios logo que eficazes.”, ao passo que o n.º2 do mesmo preceito indicava que “O cumprimento das obrigações e o respeito pelas limitações que derivam de um ato administrativo podem ser impostos coercivamente pela Administração sem recurso prévio aos tribunais, desde que a imposição seja feita pelas formas e nos termos previstos no presente Código ou admitidos por lei.” Porém, com a entrada em vigor do novo CPA (DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro), o legislador optou por um novo regime de executuriedade dos atos administrativos, provocando uma verdadeira revolução em matéria de exequibilidade do ato administrativo. Pode ler-se no ponto 19 do diploma preambular: “ (…) No que respeita ao regime da execução dos atos administrativos, a grande novidade é a consagração do princípio de que a execução coerciva dos atos administrativos só pode ser realizada pela Administração nos casos expressamente previstos na lei ou em situações de urgente necessidade pública, devidamente fundamentada (artigo 176.º). Trata-se de opção sustentada ao longo dos últimos 30 anos por uma parte muito significativa da doutrina. No essencial, o regime do n.º 2 do artigo 176.º procura refletir, entretanto, o regime tradicionalmente vigente no direito francês sobre a matéria, embora com salvaguarda do regime aplicável à execução coerciva de obrigações pecuniárias. Desta opção resulta a desnecessidade de se prever no Código os meios de execução. (…) No artigo 177.º, propõe-se a explicitação do que presentemente apenas resulta implícito: que os procedimentos de execução têm início com a emissão de uma decisão autónoma de proceder à execução; a exigência que a esta decisão é associada de determinar o conteúdo e os termos da execução; a clarificação da função de interpelação ao cumprimento, que é associada à notificação da decisão de proceder à execução, a qual pode ser feita conjuntamente com a notificação do ato exequendo. No artigo 182.º, procura-se aperfeiçoar e densificar o regime das garantias dos executados perante atos administrativos e operações materiais de execução ilegais. Por último, com o novo artigo 183.º pretende-se preencher uma lacuna desde há muito identificada no nosso ordenamento jurídico no que respeita à determinação do modo de execução dos atos administrativos por via jurisdicional, quando não seja admitida a execução coerciva pela via administrativa (…).” [sublinhado nosso]. Resta saber como irá o legislador regulamentar os casos de exequibilidade coerciva dos atos administrativos e ainda, de que forma esta mudança de paradigma pode influenciar a atividade da Administração Tributária, uma vez que em matéria da exequibilidade imediata dos atos administrativos em matéria tributária, em regra, prevalece sobre estas matérias o princípio do benefício da execução prévia a favor da Administração Tributária. 42 Cf. JOAQUIM FREITAS ROCHA, ob. cit., págs. 13 e 14. O autor sublinha que perante os casos de incumprimento por parte do contribuinte, dispõe a Administração Tributária de um poderoso mecanismo processual garantístico com vista a obter a satisfação do crédito tributário – o processo de execução fiscal. Para além de um fortíssimo conjunto de instrumentos garantísticos quer adjetivos/processuais e substantivos/materiais, a própria violação das normas tributárias provoca no ordenamento jurídico uma resposta sancionatória, que se traduz na previsão de crimes e contraordenações tributárias. Falamos claro, do Direito das Infrações Tributárias, com especial destaque para um concreto diploma legislativo sobre esta matéria, o RGIT.

31

2.2. - O Vínculo Principal da Relação Jurídica Tributária - o Crédito e a Dívida

Tributários

Identificadas as principais características jurídico-dogmáticas da relação jurídica

tributária, importa agora centrar a nossa atenção sobre o conteúdo da mesma, em

especial e com maior relevância para o âmbito do nosso estudo, sobre o objeto da

relação tributária, mormente, o dever de pagar o tributo.

MOTA PINTO43 define o objeto da relação jurídica como “(…) todo o quid, todo o

ente, todo o bem sobre que podem recair direitos subjectivos(…)”, precisando mais

ainda o saudoso professor que “(…) o objecto é aquilo sobre que recaem os poderes do

titular do direito(…)”. É com base nestes conceitos que a doutrina civilística sustenta

uma outra distinção referente ao objeto da relação jurídica e que, dada a natureza

obrigacional da relação tributária, assume especial relevância – a distinção entre objeto

mediato e objeto imediato. Por sua vez, JOAQUIM FREITAS ROCHA44 sublinha que

“(…) em termos definitórios, o objecto de uma qualquer relação jurídica – o mesmo se

passando com a relação jurídica tributária – adquire alcance e significado jurídico

distintos consoante se fale em objecto mediato ou em objecto mediato(…).”

Esta é, porém, uma distinção que se verifica com especial no âmbito das relações

jurídicas obrigacionais de prestação de coisa certa e determinada, como nos elucida

MOTA PINTO45, já que neste tipo de relação jurídica “(…) o objecto imediato do

direito do credor é o comportamento do próprio devedor, isto é, a prestação, o acto de

entrega da coisa. O objecto mediato é a própria coisa que deve ser entregue ao credor

(…)”.

Com base nos conceitos supra descritos e atendendo à complexidade inerente à

relação tributária, podemos afirmar que o objeto imediato da relação tributária consiste

no vínculo principal – composto, por um lado, pelo dever do sujeito passivo de pagar o

tributo e, por outro, pelo direito do sujeito ativo de exigir essa mesma quantia

tributária46 – ao passo que o objeto mediato consiste no elemento físico ou material, isto

é, a quantia em dinheiro a entregar junto dos serviços tributários competentes.

43 Cfr. CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, ob.cit., págs. 331 e 332; 44 Cfr. JOAQUIM FREITAS ROCHA, ob.cit., pág. 45; Por sua vez, CASALTA NABAIS, ob.cit. págs. 238 a 239, opta por uma construção dogmática distinta, assente na separação entre relação fiscal material e relação fiscal formal, identificando a obrigação fiscal como “o núcleo central” da relação jurídica fiscal. 45 Cfr. CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, ob.cit., pág.333; Para uma análise mais detalhada sobre o objeto da relação jurídica obrigacional, ver, por todos, ANTUNES VARELA, ob.cit., págs. 78 a 108; 46 Cfr. Art.30.º, n.º1, a) da LGT;

32

Mas é o objeto imediato que nos merece maior atenção e uma análise mais

detalhada, uma vez que é o ponto de partida para a tarefa de determinar a amplitude e

conteúdo do vínculo principal da relação tributária.

Assim, recorrendo aos ensinamentos de JOAQUIM FREITAS DA ROCHA47, no

seio do objeto imediato da relação tributária identificamos dois tipos de vinculação

jurídica. Em primeiro lugar, o vínculo principal, do qual resulta a obrigação principal do

contribuinte, a obrigação em torno da qual se constituem os vínculos ou deveres

acessórios – o dever de pagar o tributo.

No fundo, é o que ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA define como “(…) o vínculo

jurídico nascido da verificação da situação ou das condições abstractamente previstas

na lei tributária e cujo objecto é a prestação do imposto.”48 Este dever do contribuinte

traduz-se na realização de uma prestação positiva, isto é, exige-se do sujeito passivo

uma ação e não uma omissão ou um dever de abstenção49. É uma prestação que consiste

na entrega de uma quantia determinada, uma prestação de dare, já que o sujeito passivo

está adstrito à entrega de um determinado bem – valor pecuniário - o que nos permite

ainda assumir a natureza pecuniária e fungível50 da prestação tributária.

Ainda no seio do vínculo jurídico da relação tributária, devemos distinguir os

vínculos acessórios, que se traduzem em uma multiplicidade de deveres acessórios face

ao vínculo principal. Retomando os ensinamentos do Professor ANTÓNIO BRÁS

47 Cfr. JOAQUIM FREITAS ROCHA, ob.cit., págs. 46 e 47; 48 Cfr. ANTÓNIO BRÁS TEIXIERA, “Princípios de Direito Fiscal”, 3.ªEdição, Coimbra, Almedina, 1990, pág.171. Contudo e como nos faz notar LUÍS MIGUEL BRAGA VELOSO, em “Considerações sobre os deveres de cooperação e os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal”, Braga, 2012, pág. 25, nota de rodapé 50, disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/20172/1/Disserta%C3%A7ao%20de%20Mestrado,%20Luis%20Veloso.pdf (consultado em 10/02/15) para o Professor BRÁS TEIXEIRA, “(…) objecto da relação fiscal é realidade distinta do objecto do imposto com a qual não deve ser confundido. Enquanto este é o bem, a situação de facto ou a actividade sobre que incide a tributação, aquele corresponde, por um lado, ao conjunto dos poderes do sujeito activo e dos correlativos deveres do sujeito passivo, e, por outro, à prestação a que está obrigado o primeiro a favor do segundo. Defende que o objecto da relação fiscal engloba, assim, duas realidades distintas. A primeira, geralmente designada por objecto imediato, resolve-se nos direitos e deveres de que são titulares os sujeitos da relação; a segunda, conhecida na doutrina pela designação de objecto mediato, é como que a concretização desses direitos e deveres, aquilo sobre que incidem, o seu objecto. Tomemos o caso do imposto sobre os rendimentos para perceber melhor estas distinções. De acordo com o dissertado pelo Professor, o objecto do imposto serão os rendimentos do trabalho em dinheiro ou em espécie; o objecto imediato da relação fiscal serão os poderes e deveres que, uma vez verificados os pressupostos de facto da relação, a lei atribui ao sujeito activo ou impõe ao sujeito passivo; por fim, o objecto mediato, serão as prestações que constituem objecto daqueles direitos e deveres (…)”. 49 Sobre a distinção entre prestações de facto e prestações de omissão, cfr. ANTUNES VARELA, ob.cit., pág. 79; 50 Falamos em fungibilidade como uma característica da prestação tributária uma vez que esta pode ser ou não satisfeita em dinheiro, desde que se preencham determinados pressupostos previstos pela lei, como resulta do disposto no n.º1 do art.202.º do CPPT “Nos processos de execução fiscal o executado ou terceiro podem, no prazo de oposição, requerer ao ministro ou órgão executivo de quem dependa a administração tributária legalmente competente para a liquidação e cobrança da dívida a extinção da dívida exequenda e acrescido, com a dação em pagamento de bens móveis ou imóveis, nas condições seguintes: a) Descrição pormenorizada dos bens dados em pagamento; b) Os bens dados em pagamento não terem valor superior à dívida exequenda e acrescido, salvo os casos de se demonstrar a possibilidade de imediata utilização dos referidos bens para fins de interesse público ou social, ou de a dação se efectuar no âmbito do processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos do Estado.”. Já o mesmo não se pode afirmar relativamente aos sujeitos, já que atendendo aos princípios da irrenunciabilidade e da indisponibilidade do crédito e da dívida tributárias, salvas as exceções previstas pelo legislador, a prestação tributária é uma prestação subjetivamente infungível.

33

TEIXEIRA51, “(…) ao lado do dever fiscal que se cifra no dever de pagamento do

imposto, estabelece a lei um complexo mais ou menos vasto de outras obrigações, a

cargo do próprio sujeito passivo, ou de terceiros de algum modo ligados ao

contribuinte ou ao facto tributável, as quais se destinam a possibilitar ou garantir a

percepção da dívida tributária (…)”52. São estes vínculos acessórios que demonstram

mais uma vez a estrutura complexa da relação tributária, enquanto uma relação

obrigacional de direito público.

Contudo o enquadramento jurídico destes deveres acessórios, também denominados

por deveres de cooperação53, suscitou na doutrina uma ampla discussão referente à

distinção entre Direito Tributário material e Direito Tributário Formal54. Trata-se de

uma distinção que mereceu consagração legal em Espanha55, não adotando o legislador

português pela mesma solução, ao invés optando por uma construção ampla sobre os

elementos que compõem o vínculo jurídico-tributário.

No nosso humilde entendimento, o reconhecimento do papel dos deveres acessórios

enquanto obrigações instrumentais e complementadores da obrigação tributária

principal verifica-se com a adoção da estrutura concetual da relação obrigacional de

direito privado.

A distinção entre deveres principais e deveres acessórios foi criada na doutrina

civilista, para distinguir entre a obrigação principal, que mesmo quando constitui um

processo complexo e se decompõem em várias prestações conserva uma unidade

substancial dado o modo como surge e como se extingue, e os deveres acessórios,

destinados a permitir o cumprimento da prestação principal.56

51 Cfr. ANTÓNIO BRÁS TEIXEIRA, ob.cit., págs. 171 e ss; 52 Cfr. art. 30.º, n.º1, alínea b) e art.31.º, n.º2 ambos da LGT e ainda, o art.48.º do CPPT. O legislador português não autonomiza os deveres tributários acessórios face ao objeto da relação tributária, considerando-os como comportamentos complementadores da prestação principal. São exemplos de deveres tributários acessórios, as obrigações declarativas (a título de exemplo, as obrigações declarativas em sede de IRS, cfr. arts.57.º, 60.º, 61.º e ainda, 112.º e 114.º do CIRS).Para uma análise mais desenvolvida sobre a matéria dos deveres tributários acessórios, ver por todos LUÍS MIGUEL BRAGA VELOSO, “Considerações sobre os deveres de cooperação e os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal”, Braga, 2012, págs. 31 a 51; 69 a 93. 53 A distinção entre deveres acessórios e deveres de cooperação, aparentemente uma mera distinção terminológica, é na verdade uma distinção que se verifica perante o tratamento e enquadramento jurídico dos mesmos. CASALTA NABAIS, últ. Ob. cit. pág. 231, adopta o conceito de “deveres de colaboração”, argumentando que “(…) tendo em conta que a relação entre o contribuinte e administração tributária não é uma relação de natureza paritária, parece-nos mais adequada a designação de deveres de colaboração, uma terminologia que é, de resto, a utilizada no direito administrativo geral (art.7.º do CPA) e na própria LGT (art. 58.º ”. 54 Cfr. SOARES MARTÍNEZ, “Direito Fiscal”, 2.ºEdição, Coimbra, Almedina, págs. 55 FRANCISCO HERNÁNDEZ GONZÁLEZ, “Las Obligaciones Tributarias Formales”, disponível em http://www.gobiernodecanarias.org/tributos/portal/recursos/pdf/revista/Revista10/RevistaHC_10_4.pdf, (consultado a 6/03/15), págs. 57 e ss; 56 Cfr. MENEZES CORDEIRO, “Da Boa fé no Direito Civil”, (1984), Vol.I, págs. 590-592 e 603 e ss., apud. J.L. SALDANHA SANCHES, “A quantificação da obrigação tributária – Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa”, Lisboa, 2000, Editora Lex, pág. 57, nota 64.

34

Atenta a sucessiva assimilação e adaptação de conceitos e princípios de natureza

jurídico-civilística pelas construções dogmáticas tributárias sobre a relação obrigacional

tributária, SALDANHA SANCHES57 sublinha que “(…) se é inteiramente justificável a

permanente assimilação de conceitos que constitui a construção doutrinal do Direito

Fiscal, também se não pode ignorar que certas formas jurídicas que tinham uma

determinada natureza no Direito Civil tenham adquirido uma outra no Direito Fiscal.”

Assim e em jeito de conclusão, é nosso entendimento que o carácter acessório destas

obrigações não pode ser aceite como fundamento para a rejeição da sua autonomização

ou individualização face ao vínculo jurídico principal da relação tributária, pelo que,

discordamos dos autores que, como PUGLIESE58, percecionam os deveres tributários

acessórios como deveres administrativos.

A função instrumental que estes deveres assumem face ao dever tributário principal,

traduz a sua progressiva integração conceptual e até normativa no seio da vinculação

jurídico-tributária como um todo, porém, não se imiscui com o âmbito mais restritivo

relegado para o vínculo principal, composto pela obrigação tributária principal, como

afirma LUIS VELOSO59, “(…) ao limitar estes deveres a um carácter acessório como

fez o legislador, está se a restringir o alcance com que os mesmos foram criados. Estes

existem independentemente da existência de uma dívida de imposto. Por si só esse facto

já se basta para fundamentar a autonomia destes deveres. (…)”.

2.3 – As Garantias do Crédito Tributário – Breve Enunciação

A melhor doutrina aborda o estudo da estrutura da relação jurídica através de um

processo de desconstrução analítica dos seus vários elementos constitutivos – sujeitos,

objeto, facto e garantias.

Sendo a relação jurídica tributária um vínculo de relação direto entre dois sujeitos ou

entidades e atento o âmbito da presente dissertação, é tempo de dedicarmos a nossa

atenção à análise deste último elemento estruturante da relação tributária, as garantias

do crédito tributário.

57 Cfr. J.L. SALDANHA SANCHES, “A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa”, Lisboa, 2000, Editora Lex, págs. 58 e 59. O autor sustenta que os deveres de cooperação do Direito Civil devem ser comparados com os deveres de cooperação tributária, mais defendendo que os deveres acessórios na obrigação tributária surgem como uma condição do cumprimento da obrigação principal. 58 Cfr. MARIO PUGLIESE, “Istituzioni di diritto finanziario”, pág. 186, apud. ANTÓNIO BRÁS TEIXEIRA, ob. cit., pág. 173, nota 7. 59 Cfr. o estudo de LUIS MIGUEL BRAGA VELOSO, “Considerações sobre os deveres de cooperação e os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal”, Braga, 2012, pág. 34, disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/20172/1/Disserta%C3%A7ao%20de%20Mestrado,%20Luis%20Veloso.pdf (consultado em 20/01/15).

35

Desde logo o artigo 50.º da LGT60, sob a epígrafe “Garantias dos créditos

tributários” prescreve que o património do devedor constitui a garantia geral dos

créditos tributários. Esta é aliás, uma regra universal no nosso ordenamento jurídico

válida para qualquer relação jurídica obrigacional de carácter público ou privado.

Porém, atenta a especialidade que caracteriza as finalidades inerentes à natureza

publicista da relação tributária61 e, em especial, da obrigação tributária principal,

facilmente se compreende que o legislador ‘tenha dotado o crédito tributário de

especiais instrumentos garantísticos. No fundo, trata-se de assegurar que, em caso de

incumprimento, o sujeito activo não veja defraudadas as suas expectativas - mais do

que isso: a sua verdadeira pretensão jurídica – relativas à percepção da quantia

tributária, até porque neste contexto está-se em presença de receitas de natureza

coactiva e destinadas à satisfação do Interesse público’.62

A função que a garantia assume enquanto elemento constitutivo da relação jurídica

resume-se à segurança do objeto da relação, não só face a terceiros, mas também

perante a relação inter partes que se estabelece através da vinculação jurídica

decorrente. Nas palavras de VÍTOR FAVEIRO63 “(…) a garantia, sendo, como é, uma

qualidade integral do próprio conceito e da essência do Direito objectivo, aparece na

relação jurídica entre sujeitos, como o elemento mais forte de toda a realidade

jurídica: o elemento da segurança do objecto da relação que, em direito subjectivo, a

cada um corresponda.”.

O autor precisa o sentido e alcance deste elemento, distinguindo um sentido amplo

de garantia – correspondente “à própria força coercitiva do Direito objectivo, e à

segurança da sua eficácia erga omnes, na Ordem Jurídica” – e, por outro lado, um

conceito mais restrito - referente à “segurança do objecto da relação inter partes

quanto à eficácia do direito de conteúdo positivo do sujeito activo, e aos limites do

objecto e do exercício desse mesmo direito, sobre a esfera jurídica do sujeito da

obrigação, do dever”. Dada a abrangência das matérias relacionadas com as garantias

do crédito tributário, optamos por proceder à clássica tarefa do raciocínio jurídico-

60 Cfr.art.50.º da LGT e art. 601.º do CC. 61 Cfr. supra ponto 2.1 do Capítulo I relativo aos fins e natureza publicista da relação jurídica tributária. 62 Cfr. JOAQUIM FREITAS ROCHA, “Apontamentos….” ob.cit, pág. 69; 63Cfr. VÍTOR FAVEIRO, “Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português – Vol.I”, Coimbra, 1984, Coimbra Editora, págs. 413 e ss.;A análise de VÍTOR FAVEIRO traduz uma visão mais ampla do conceito de garantia no seio da relação tributária, abordando, autonomamente, as garantias do Estado e ainda, as garantias do contribuinte.

36

interpretativo: dividir e classificar os diferentes institutos em causa para uma melhor

compreensão da sua função e do seu âmbito de aplicação perante a relação tributária.

2.3.1 - Garantias Substantivas e Garantias Adjetivas64

Esta é uma distinção assente na natureza jurídica da garantia, ou melhor, que tem em

consideração a sua natureza e área de aplicação, seja no âmbito do Direito Tributário

Substantivo ou do Direito Tributário Adjetivo65. De acordo com este critério, podemos

distinguir as garantias adjetivas, sendo estas as referentes aos meios e mecanismos

procedimentais e processuais de proteção e de reforço dos direitos que emergem dos

vínculos jurídicos da relação tributária.

Note-se que estes direitos, que emergem da relação tributária não se resumem aos

créditos tributários de que o sujeito ativo é titular, abrangendo ainda os eventuais

direitos que assistam ao contribuinte no âmbito da relação tributária66, como também, os

que lhe assistam no decurso quer do procedimento, quer do próprio processo tributário.

Como sublinha VÍTOR FAVEIRO67, “ (…) em Direito Fiscal, a coercividade geral

do próprio direito objectivo corresponde (…), em primeiro lugar, à garantia geral da

exigibilidade, por parte do Estado, do respectivo direito, por meios legais postos à sua

disposição (…) e a garantia dos contribuintes, quanto ao rigoroso campo e limites em

que possa ser exercido, por parte do Estado, o direito que lhe cabe (…). Daí a

necessidade de se considerar o estudo das garantias da relação jurídica tributária em

dois campos que, sendo conexos entre si, têm uma estrutura e regime próprios e

específicos (…) o das garantias do Estado; e o das garantias do contribuinte (…).”

Esta visão traduz-se também perante a distinção entre garantias substantivas e

garantias adjetivas.

64 A exposição ora apresentada consubstancia um dos esquemas analíticos possíveis sobre o âmbito jurídico da garantia do crédito tributário enquanto elemento constitutivo da relação tributária; Ver ainda a esquematização apresentada por JÓNATAS E.M.MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA SILVA, “Curso de Direito Tributário”, 2009, Coimbra, Coimbra Editora, págs. 106 e ss. 65 cfr. JOAQUIM FREITAS ROCHA, “Lições de Procedimento e de Processo Tributário”, 4.ªEdição, 2011, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 11. Explica o Professor que por direito tributário adjetivo se entende “o conjunto de normas jurídicas que dizem respeito à aplicação normativa em matéria tributária, por três diferentes tipos de sujeitos – Administração, Tribunais e também, entidades privadas”. Em contraposição à individualidade do direito tributário adjectivo, o direito tributário substantivo assume-se como “o conjunto de normas jurídicas respeitantes à criação normativa em matéria tributária, pautado por um conjunto de problemas de natureza marcadamente mais geral e abstracta (criação de tributos, critérios de interpretação e aplicação das normas tributárias, etc.)”; A distinção entre estes dois conceitos remete-nos para a mais ampla distinção entre Direito Substantivo e Direito Adjetivo. Para uma análise mais aprofundada do tema, ver por todos, OLIVEIRA ASCENSÃO, “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, 5.ªEdição Revista e Atualizada, Coimbra, 2005, Almedina Editora, págs. 333 e ss. 66 Cfr. art. 53.º da LGT; 67 Cfr. VÍTOR FAVEIRO, últ. ob. cit., pág. 414.

37

Regra geral, as garantias referentes ao cumprimento da prestação tributária

encontram a sua previsão no seio do direito tributário substantivo, sem descurar as

garantias adjetivas, com especial destaque para o processo de execução fiscal. Por outro

lado, as garantias em favor dos direitos subjetivos do contribuinte assumem uma

natureza jurídica muito mais adjetiva, com especial enfoque para os domínios do

procedimento e do processo tributário. Ainda sobre a exposição conceptual sobre as

garantias da relação tributária, em especial, das garantias substantivas, podemos

classifica-las com base no critério do objeto, distinguindo assim as garantias gerais das

garantias especiais.

2.3.2 – Garantias Gerais e Garantias Especiais68

Centrando-nos no espectro das garantias substantivas, podemos identificar duas

subcategorias: i) a já referida garantia geral69 – composta pela globalidade do

património do devedor – e por outro lado, ii) as garantias especiais, que versam sobre

determinados bens do devedor tributário ou de terceiros, de entre as quais encontramos

os privilégios creditórios.

São garantias substantivas já que a previsão e estruturação legal se inserem no

âmbito do conjunto de normas jurídicas tributárias cuja aplicação se pauta por ser de

índole geral e abstrata, responsáveis por delinear os limites e contornos do ordenamento

tributário no seu plano mais amplo. São garantias especiais do crédito tributário as que

se caracterizam por afetar determinados bens do património do devedor ou, perante a

verificação dos pressupostos legais, subsidiariamente, de terceiros à satisfação da

dívida.

68 O esquema apresentado corresponde à tradicional divisão operada pela generalidade da doutrina jurídico-civilística. Por sua vez, o professor MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, in “Direito das Garantias”, Almedina Editora, Coimbra, 2012, págs. 58 a 64, propõe um novo esquema analítico da figura jurídica da garantia, optando por distinguir as garantias que consubstanciam um “reforço quantitativo da probabilidade de satisfação do crédito” das garantias que se traduzem num “reforço qualitativo da probabilidade de satisfação do crédito” e ainda uma terceira modalidade para os casos em que se verifica a criação de uma massa de bens individualizados e que são adstritos em exclusivo à satisfação de um crédito ou de um conjunto de créditos, ou seja, um património autónomo. 69 Cfr. ainda o disposto nos arts. 80.º do CPPT e art. 786.º, n.º2 do CPC. De notar que CASALTA NABAIS, últ. ob.cit., pág. 275., considera ainda que o dever de o juiz de qualquer execução comum de ordenar a citação da Administração Tributária para que esta possa reclamar os créditos da Fazenda Pública, decorrente do art.80.º do CPPT, se trata de uma “importante garantia de natureza adjectiva ou processual”. Esta é uma posição que chegou a ter consagração legal entre nós, no art. 31.º, do já revogado, Código de Processo Tributário (DL n.º 154/91, de 23 de Abril).”; Uma outra garantia geral de cariz adjetivo passava pela impenhorabilidade em sede de execução comum, dos bens anteriormente penhorados ao abrigo de um processo de execução fiscal (art. 300.º, n.º1 do dl 157/91, de 23 de Abril). Contudo, o Tribunal Constitucional veio pronunciar-se pela inconstitucionalidade dessa solução, no Ac. n.º 451/95, por “violação da garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito (que se extrai do nº1 do artigo 62º da Constituição) conjugada com o princípio da proporcionalidade (que se extrai entre outros do artigo 18º da Constituição) - da norma constante da primeira parte do nº 1 do artigo 300º do Código de Processo Tributário na parte em que estabelece o regime de impenhorabilidade total dos bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções fiscais”.

38

No seio das garantias especiais, devemos autonomizar duas distintas subcategorias: i)

as garantias pessoais, isto é, os casos de responsabilidade tributária subsidiária, em que

se constitui uma verdadeira fiança legal em que o património do responsável subsidiário

é chamado ao pagamento da dívida tributária, em caso de comprovada insuficiência

patrimonial do devedor principal70; ii) as garantias reais, ou melhor, os mecanismos

jurídico-legais de reforço do direito de crédito do sujeito ativo.

Falamos aqui de uma parte do património do devedor, a qual se encontra

especialmente afeta ao cumprimento de uma obrigação específica, por iniciativa do

próprio ou por comando expresso do legislador. Deste modo, atento o momento em que

a garantia se torna eficaz, os bens sobre os quais incidem passam a responder

preferencialmente pela satisfação do direito de crédito a favor do qual a garantia foi

constituída71. No âmbito da subcategoria das garantias reais, específica o legislador

quais as que cumprem a sua finalidade perante a satisfação do crédito tributário72. Em

primeiro lugar, os privilégios creditórios previstos no Código Civil e nas demais leis

tributárias. Identificamos desde logo:

i) o privilégio mobiliário geral sobre os bens móveis existentes no património

do devedor no momento da penhora ou de outro ato equivalente, para

pagamento das dívidas tributárias em sede de IRS e de IRC73;

ii) o privilégio mobiliário especial sobre os bens móveis transmitidos

relativamente aos créditos fiscais resultantes do IS sobre as transmissões

gratuitas74;

iii) o privilégio imobiliário geral sobre os bens imóveis existentes no património

do devedor à data da penhora ou de ato equivalente, para pagamento das

quantias devidas a título de IRS e de IRC75;

iv) o privilégio imobiliário especial sobre os bens sujeitos a IMI, para

pagamento desse imposto relativo aos três últimos anos e ainda, sobre os

bens cuja transmissão está sujeita ao IMT ou ao IS.76

70 São os casos de responsabilidade tributária previstos pelos arts. 22.º a 28.º da LGT; 71 Cfr. CLÁUDIA MADALENO, “A Vulnerabilidade das Garantias Reais - a hipoteca voluntária face ao direito de retenção e ao direito de arrendamento”, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 45. 72 Cfr.art. 50.º, n.º 2 da LGT; 73 Cfr. arts. 736.º do CC, art. 111.º do CIRS e 116.º do CIRC; 74 Cfr.art.738.º, n.º2 do CC. 75 Cfr. arts. 111.º do CIRS e 116.º do CIRC. 76 Cfr. o disposto nos arts. 744.º do CC e 122.º do CIMI

39

Além dos enunciados, destaque ainda para os privilégios creditórios previstos no

Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social77.

Os créditos por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora devidos à

Segurança Social, beneficiam de privilégio mobiliário geral, privilégio que prevalece

sobre qualquer penhor ainda que previamente constituído. Acrescenta ainda o legislador

que “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros

de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património

do contribuinte à data da instauração do processo executivo ( …)”78. Para além dos

privilégios creditórios, a cobrança do crédito tributário é ainda reforçada por outras

garantias reais. Neste sentido, a alínea b) do n.º2 do art.50.º da LGT79 refere que

“(…)para garantia dos créditos tributários, a Administração Tributária dispõe ainda

do direito de constituição, nos termos da lei, de penhor ou de hipoteca legal (…)”.

Eis que entramos no domínio dos direitos reais de garantia, no qual não são incluídos

pela doutrina e pela jurisprudência os privilégios creditórios. O penhor e a hipoteca

encontram os seus respetivos regimes legais no capítulo IV do Livro II do Código Civil,

sob a epígrafe “Garantias Especiais das Obrigações”, isto apesar da sua qualificação

jurídico-doutrinária como verdadeiros direitos reais.80 Perante um plano analítico mais

amplo, podemos afirmar que são os direitos que se debruçam sobre a estática

patrimonial, regulando o poder e domínio sobre os bens e infra estruturas, assumindo

um papel fundamental na regulação das infraestruturas socioeconómicas de uma

sociedade.

Aproximando-nos de um plano mais restrito desta ordenação dominial, encontramos

os direitos reais de garantia. A função económica destes direitos permite-nos distingui-

los dos direitos reais de gozo e ainda, dos direitos reais de aquisição. Essa função

económica traduz-se no carácter acessório desses direitos face à realização e satisfação

77 Cfr. arts. 203.º a 205.º da Lei n.º 110/2009 de 16.09, sucessivamente alterada. 78 Sublinhado nosso. Coloca-se o problema de saber qual o âmbito deste privilégio imobiliário. Parece-nos que o legislador atribuiu a este privilégio um carácter geral ao abranger todos os bens imobiliários existentes na esfera patrimonial do devedor à data da instauração do processo executivo. Este tem sido o entendimento da jurisprudência, como traduz o Ac. do STA de 18/01/12, referente ao processo n.º 0648/11 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/89bb2eb1b6c6237e8025799100447fbb?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1) e ainda, o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/05/13, referente ao processo n.º 4142/11.9TBGMR-A.G1 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b6034631cad44e8980257b89004a7f31?OpenDocument;); 79 Cfr. ainda o n.º3 do art. 50.º da LGT e os art. 195.º do CPPT relativamente à necessidade de proceder ao registo da hipoteca a favor da Fazenda Pública. 80 Sobre a natureza e autonomia dos direitos reais de garantia como verdadeiros direitos reais, a posição doutrinal maioritária, reforçada pela jurisprudência, sustenta que estamos perante verdadeiros direitos reais já que reúnem características essenciais, a saber, o direito de sequela e ainda, o direito de preferência ou de prevalência.

40

de um dou mais direitos de crédito, através do reforço das garantias de cumprimento,

nos casos em que o património do devedor se apresenta por si só como insuficiente ou

incapaz de satisfazer a pretensão do credor. Atentas todas as considerações supra

enunciadas sobre a relação jurídica tributária, facilmente se compreende a importância

que os direitos reais de garantia assumem face à temática das garantias do crédito

tributário.

Assim e em primeiro lugar, aproveitamos para tecer algumas breves notas

introdutórias sobre o penhor. Desde logo, estamos perante um dos mais antigos

institutos jurídicos, cuja origem remonta ao direito romano.

Entre nós, o regime jurídico do penhor é regulado pelo disposto nos artigos 666.º a

685.º do Código Civil, sem prejuízo dos regimes legais previstos em leis avulsas, como

são exemplos o penhor constituído para garantia dos créditos bancários81, o penhor

mercantil82, ou ainda, o regime do penhor de aplicações financeiras83. De acordo com as

características resultantes do regime geral previsto pelo Código Civil, o penhor confere

ao credor o direito à satisfação do seu crédito e dos respetivos juros, com preferência

sobre os demais credores comuns, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de

créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, do património deste último ou

de terceiro.84

Nas palavras de HENRIQUE MESQUITA85, “o penhor constitui um direito real de

garantia cujo conteúdo consiste no poder que confere ao seu titular de, mediante um

acto de disposição, realizar à custa desta [a coisa], sem que se torne necessário a

cooperação do seu proprietário, ou mesmo contra a sua vontade, determinado valor

(…) com preferência face aos credores comuns do respectivo proprietário, bem como

sobre os credores que disponham também sobre ela de uma garantia, mas de grau

inferior.” A generalidade da doutrina civilística aborda o regime jurídico do penhor com

base na premissa da sua constituição por acordo das partes, ou melhor, assente na

celebração de um contrato.

Porém, no seio da jurisdição tributária, o legislador prevê os casos em que a

Administração Tributária deva constituir penhor para reforço do crédito tributário, pelo

81 Cfr. DL n.º 29 833 de 17/3/1939 e o DL n.º 32 032 de 22/05/42; 82 Cfr. arts. 397.º e ss do Código Comercial; 83 Cfr. D.L. nº 105/2004, de 8/05 e ainda, a Diretiva n.º 2002/47/CE, de 6/06/02, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa aos acordos de garantia financeira. 84 Cfr. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, últ. ob. cit., pág. 231. 85 Cfr. M. HENRIQUE MESQUITA, “Obrigações reais e ónus reais”, Coimbra, 1990, Almedina Editora, p.76, apud MIGUEL PESTANA VASCONCELOS, últ.ob.cit., pág. 231.

41

que se verifica uma inversão da regra geral de direito privado. De facto, atentos os

princípios que norteiam a constituição do crédito tributário e a atividade de cobrança

destes créditos, não se vislumbra outra solução.

Todavia, o legislador tributário prevê, os casos em que o contribuinte poderá

excecionalmente, constituir penhor a favor da Fazenda Pública como garantia do

pagamento das dívidas tributárias cujo pagamento que lhe seja exigível86.

Em segundo lugar, aproveitamos para abordar alguns aspetos genéricos sobre o papel

da hipoteca como uma garantia do crédito tributário. A doutrina maioritária87é unânime

quanto à natureza jurídica desta figura como um direito real de garantia88, ao contrário

do que se constata quanto à discussão sobre a natureza jurídica dos privilégios

creditórios.

Tal como o penhor, a hipoteca é um dos institutos jurídicos mais antigos entre nós e

cujas origens remontam à figura da hypotheca no Direito Romano. É uma das garantias

creditórias “clássicas” no tráfego jurídico e com maior relevo prático89, não apenas no

que diz respeito ao domínio jurídico-civilístico, como também no domínio jurídico-

tributário.

O legislador define a hipoteca como o instituto jurídico que confere ao credor o

direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao

devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de

privilégio especial ou de prioridade de registo.90

Desde logo, distingue-se do penhor atendendo à natureza dos bens que lhe são

adstritos. Se o penhor versa sob o valor de coisas móveis91, de outros créditos ou outros

direitos equiparados, já a hipoteca incide sobre o valor de coisas imóveis ou

equiparadas.

86 Cfr. art. 199.º, n.º2 do CPPT 87 Cfr. ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral – Vol. II”, Almedina, 2005, pág. 576; VAZ SERRA, “Hipoteca”, in Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n.º 62, págs. 5 e ss.; SANTOS JUSTO, “Direitos Reais”, 2012, págs. 468 e ss; ORLANDO CARVALHO, “Direito das Coisas”, 2012, Coimbra, Coimbra Editora, págs. 254 e ss; 88 Ainda sobre este aspeto, também a jurisprudência é unânime quanto à natureza jurídica da hipoteca, como demonstram as conclusões os Exmos. Juízes Conselheiros do STJ no Ac. de 14/10/2010, referente ao processo n.º 4374/05.9TBSTB–A1.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1659b68551a56b3d802577c2003a0729?OpenDocument 89 Para uma análise mais aprofundada sobre a importância da hipoteca no tráfego jurídico, ver o relatório do Grupo-Fórum do Crédito Hipotecário, publicado pela Comissão Europeia, disponível em http://ec.europa.eu/internal_market/finservices-retail/docs/home-loans/exsum_pt.pdf (consultado a 12/04/15) 90 Cfr. art. 686.º, n.º1 do CC. 91 Sobre a distinção entre coisas móveis e coisas imóveis, ver o estudo de DIOGO BÁRTOLO, “Da noção da coisa no Código Civil e da distinção que este faz entre coisas imóveis e móveis”, in Estudos em Homenagem ao Juiz Conselheiro António da Costa Neves Ribeiro, 2007, págs. 281 e ss.

42

Enquanto garantia do crédito tributário, e salvo os casos em que a lei confere ao

contribuinte a possibilidade de, voluntariamente, constituir hipoteca em favor da

Fazenda Pública92, a lei atribui ao credor tributário a faculdade de constituir hipoteca

para garantia do crédito tributário, sem a necessidade de obter a concordância do titular

do bem hipotecado, mantendo o devedor proprietário a fruição e o gozo do bem.

Contudo, esta hipoteca legal conhece algumas características próprias face à hipoteca

voluntária, desde logo quanto ao objeto da hipoteca em si mesmo. Prescreve o artigo

708.º do CC que “Sem prejuízo do direito de redução, as hipotecas legais podem ser

registadas em relação a quaisquer bens do devedor, quando não forem especificados

por lei ou no título respectivo os bens sujeitos à garantia.”

Assim, por regra a hipoteca legal têm como objeto quaisquer bens imóveis e

equiparados, propriedade do devedor, se a especificação dos mesmos não constar da lei

ou do título respetivo, o que traduz a particular “força” desta garantia face à

probabilidade de satisfação do crédito tributário93. Exceção a esta regra encontra-se no

âmbito dos impostos sobre o património, mormente nas regras sobre o IMI em

conjugação com o também disposto no artigo 705.º, n.º1, a) do Código Civil94, na qual o

legislador especifica que apenas os bens que estão sujeitos a IMI é que podem ser objeto

de hipoteca legal para garantir o crédito fiscal relativo a esse imposto.

Todavia para que a hipoteca produza plenamente os seus efeitos, é necessário que se

proceda ao competente registo junto da conservatória competente, sob pena da

inexistência legal da mesma, como nos explicam os saudosos professores ANTUNES

VARELA e PIRES DE LIMA95: “(…) Estas hipotecas não têm como fonte imediata a

lei. Resultam dela mas carecem, posteriormente, de ser constituídas. O acto de

constituição é o registo. (…) Antes do registo elas não podem considerar-se 92 Cfr. arts. 704.º e 705.º do CC e ainda art.199.º, n.º 2 do CPPT. 93 Diferentemente do que se verifica com o objeto da hipoteca voluntária, que não podem versar sobre bens não especificados – a chamada hipoteca geral (art.716.º do CC). Também o art.909.º do Código Civil de Seabra prescrevia que as hipotecas legais “ (…) podem ser registadas em relação a todos os bens do devedor, quando não forem especificados no título os respectivos immoveis hypothecados (…)”. Sobre este aspeto, MIGUEL PESTANA VASCONCELOS, últ. ob. cit., pág. 194, acrescenta ainda que “(…) os bens hipotecados terão de ter um valor proporcional face ao valor em dívida, mesmo tendo em conta uma margem de segurança, comum em todas as garantias. Assim impõe o princípio da boa-fé. (…)”. Embora a perspetiva enunciada se concretize perante o domínio jurídico-civilístico, a ideia de proporcionalidade não deixa de ter um importante papel no âmbito da relação tributária, embora com uma configuração jurídico-dogmática distinta, em especial para os casos de penhora de imóveis para garantia do crédito tributário. 94 Dispõe o art. 122º, n.º1 do CIMI: “O imposto municipal sobre imóveis goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial.”; Por sua vez especifica a aliena a) do n.º1 do art. 705.º do CC: “Os credores que têm hipoteca legal são: a) O Estado e as autarquias locais, sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos à contribuição predial, para garantia do pagamento desta contribuição; 95 Cfr. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, com a colaboração de M.HENRIQUE MESQUITA, “Código Civil Anotado – Vol. I”, Coimbra, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 726, nota n.º1 do comentário ao artigo 704.º;

43

constituídas, não têm existência legal. Há apenas, por parte do credor, o poder legal de

as constituir mediante um acto de registo, que será o título de especificação dos bens e

determinação do crédito.”

No âmbito da relação jurídica tributária, em especial nos casos em que seja

necessária a constituição de hipoteca a favor da Fazenda Pública para garantir a

satisfação do crédito tributário, o ónus do registo da hipoteca legal cabe aos serviços do

órgão de execução fiscal perante o qual se desenrola o processo de cobrança coerciva da

dívida.

44

CAPÍTULO II – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

1. Contexto histórico da figura

Tecidas as considerações necessárias sobre o universo jurídico da presente

dissertação, eis que chega o momento de nos debruçarmos sobre a figura do privilégio

creditório, sobre a qual tão pouco se tem debruçado a doutrina.

De facto, tanto a doutrina jurídico-civilística, como doutrina jurídico-tributária têm

demonstrado pouco interesse por este instituto jurídico, circunstâncias que nos

motivaram, como aliás supra se explanou, a desenvolver o presente estudo. A esta parte

procuramos descobrir e compreender as raízes históricas por detrás da figura dos

privilégios creditórios, de modo a que possamos compreender o percurso lógico-

interpretativo por detrás deste instituto jurídico e de que forma essas conceções

influenciaram o atual regime jurídico dos privilégios creditórios.

1.1. Os privilégios creditórios no Direito Romano96

A figura dos privilégios creditórios surge na Roma Antiga, mais propriamente na

Época Clássica (130 A.C. a 230 D.C.) como resposta para o problema da

impossibilidade de satisfação dos créditos não garantidos por penhor ou hipoteca, face

aos créditos outrossim abrangidos por uma garantia real97.

Importa clarificar que, como aliás referimos supra aquando da apresentação da

temática em estudo, a presente exposição pretende analisar as garantias reais das

obrigações por contraponto às garantias pessoais das obrigações98, atentas a natureza e

as características que definem a figura do privilégio creditório enquanto garantia de um

crédito. As dificuldades que hoje persistem relativamente à coexistência dos regimes

jurídicos dos institutos do penhor, da hipoteca e dos privilégios creditórios não são

propriamente novos para a ciência jurídica, uma vez que já desafiavam as mentes dos

jurisconsultos da Roma Antiga.

96 Para uma análise mais detalhada sobre a evolução do instituto dos privilégios creditórios, ver, por todos, CARNEIRO PACHECO, “Dos privilégios creditórios”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1913, págs. 18 a 38; 97 Sobre o tema das garantias das obrigações no Direito Romano, cfr. A.SANTOS JUSTO, “Direito Privado Romano – II (Direito das Obrigações) ”, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2003, págs. 159 a 180; 98 No antigo Direito Romano as garantias pessoais das obrigações eram constituídas verbalmente em três formas: sponsio, fidepromissio e fideiussio. Para além destes três tipos, a jurisprudência romana introduziu ainda outros tipos de garantias não formais, a saber: o mandatum pecuniae credendae, o constitutum debiti alieni e o receptum argentarii. Sobre as garantias pessoais das obrigações no Direito Romano, cfr. A. SANTOS JUSTO, ob. cit., págs. 159 a 166.

45

Como nos explica o saudoso professor CARNEIRO PACHECO99, no direito romano

a figura do privilegium exigendi configurava-se como uma preferência concedida pela

lei100 a determinados credores cujos créditos não eram abrangidos pelas garantias

creditórias reais101 à época consolidadas no tráfego jurídico102 – a fiducia cum creditore,

o pignus e a hypotheca – e cujo critério distintivo se baseava nas seguintes

características do crédito: i) atendendo à qualidade do crédito em si; ii) por se ter

produzido um súbito aumento do valor do crédito (privilegium causae)103; ou ainda, iii)

atendendo à qualidade do próprio credor (privilegium personae)104.

O credor privilegiado preferia aos demais credores na medida em que o valor da

venda dos bens lhe era entregue antes de serem satisfeitos os restantes créditos105.

Nos casos de pluralidade de credores, a preferência pela satisfação do crédito

privilegiado era determinada em razão da qualidade do crédito em si mesmo e não em

razão da data em que este fora constituído106. No demais, os créditos privilegiados eram

tratados como créditos comuns, isto é, o credor privilegiado não possuía qualquer lide

processual especialmente afeta ao crédito privilegiado para reclamar uma coisa

determinada sobre o valor da qual poderia exercer a sua preferência.

No Direito Romano a verificação das condições de existência do privilégio creditório

de um determinado crédito não fundamentava a criação de um ónus sobre a coisa, por

outras palavras, não conferiam um concreto poder especial sobre a coisa, pelo que não

se verificava a constituição de um direito de sequela do credor privilegiado sobre o bem,

apenas se constituía um direito de preferência sobre o valor de alienação da coisa e não

sobre a coisa em si mesma. Na verdade, o credor privilegiado estava impedido de

exercer o seu direito em prejuízo de terceiros a quem os bens houvessem sido

transmitidos107 ou a favor de quem esses bens fossem especialmente obrigados.

99 CARNEIRO PACHECO, ob.cit., pág. 31. 100 Ao contrário das demais garantias, os privilégios não poderiam resultar da vontade das partes mas apenas poderiam ser constituídos por lei. 101 A esta parte cfr. SEBASTIÃO CRUZ, “Direito Romano”, Coimbra, págs. 239 e 240. Para o autor, no Direito Romano “ (…) as garantias reais constituem um reforço do cumprimento duma obligatio que incide directa e exclusivamente sobre certos bens pertencentes ao devedor ou a terceiro. (…) ”. 102 Sobre os institutos da fiducia, do pignus e da hypotheca, cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit., págs. 24 a 31 e ainda, A. SANTOS JUSTO, ob.cit. págs. 166 a 177. 103 Como um exemplo de um privilegium exigendi no Direito Romano, podemos falar do caso do privilégio concedido ao crédito das despesas do funeral. Este privilégio era concedido em razão da natureza do crédito e não atendendo à qualidade do próprio credor. 104 Era o caso do privilégio concedido ao crédito do pupilo face ao seu tutor. 105 CARNEIRO PACHECO, ob. cit. pág.. 32 106 Cfr. DIGESTO, Vol. XLII, 5, 32. “privilegia non ex tempore aestimantur, sede ex causae’” 107 Cfr. art. 749º do CC. Estas são características que perduram ainda entre nós, mormente no que diz respeito aos privilégios creditórios gerais.

46

Na hipótese de o devedor alienar a coisa, apenas restava ao credor recorrer ao

instituto da impugnação pauliana108.

Devemos fazer ainda uma breve referência à figura da hypotheca privilegiada, criada

pelo Imperador Justiniano com vista a reforçar a garantia de determinados créditos109.

Este instituto assumia uma carácter verdadeiramente excecional no seio das garantias

creditórias do Direito Romano uma vez que era composta por dois elementos de

institutos jurídicos distintos. Por um lado, conferia ao titular do direito de crédito uma

preferência na satisfação do crédito, característica típica dos privilegium exigendi,

atendendo à natureza desse crédito. Ao mesmo tempo, a hypotheca privilegiada assumia

também um carácter de garantia real ou melhor, de verdadeiro direito real de garantia, já

que que na hipótese de os bens por esta visados serem alienados e consequentemente se

imiscuírem da esfera patrimonial do devedor, o direito de sequela inerente à figura da

hypotheca permitia ao credor perseguir o bem, mesmo que este se encontrasse na esfera

patrimonial de um terceiro face à relação obrigacional originária.

Em síntese e em concordância com a exposição de MIGUEL LUCAS PIRES110,

sempre se diga que no Direito Romano o credor privilegiado não dispunha

verdadeiramente de uma garantia particularmente favorável face aos créditos tutelados

por outras garantias reais como a hypotheca ou o pignus.

A inexistência de um critério preferencial de satisfação do crédito baseado na data de

constituição, em contraponto com o critério da qualidade do crédito, possibilitava a

preferência da satisfação dos créditos protegidos pelas restantes garantias face aos

créditos privilegiados111.

108 Cfr. arts. 610.º e ss. do CC; Sobre a história por detrás do instituto da impugnação pauliana, cfr. JOÃO CUNHA MARIANO, “Impugnação Pauliana”,2.ªEdição, Coimbra, 2008, Almedina Editora, págs. 19 a 32. 109 Esta garantia creditória era concedida ao Fisco para cobrança dos impostos, ao credor de empréstimo destinado a conservar, reparar ou adquirir um bem hipotecado a terceiros e ainda, à mulher casada para restituição do dote; Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit. pág. 33. 110 Cfr. MIGUEL LUCAS PIRES, “Dos privilégios creditórios: regime Jurídico e a sua influência no concurso de credores” Coimbra, Almedina, 2004, pág. 20 111 A exceção ao critério qualitativo seria construída por Justiniano com a criação da hypotheca privilegiada que preferia aos créditos garantidos por hipoteca simples e por privilégio. Gozavam desta garantia o crédito da mulher casada sobre o dote, o fisco para cobrança dos impostos e ainda, o credor de empréstimos destinados a conservar, reparar ou adquirir coisa hipotecada a outros. Sobre a hypotheca privilegiada, cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit., pág. 31.

47

1.2 – O Código de Napoleão

A conceção unitária da figura do privilégio creditório decorrente do Direito Romano

viria a ser afastada pela jurisprudência francesa anterior ao fenómeno da codificação.

Explica-nos a esta parte o saudoso professor CARNEIRO PACHECO112 as razões

por detrás desta deturpação do conceito de privilégio, “(…) a antiga jurisprudencia

francêsa alargou a aplicação da hypotheca legal e tacita, que no direito romano

andava ligada a alguns privilégios, aos créditos privilegiados que se lhe affiguravam

dignos do mesmo favor.” Atentas as características do regime notarial em França – onde

predominava a forma notarial dos atos - o uso da figura do privilégio difundiu-se e

multiplicou-se, como que fazendo esquecer o verdadeiro motivo da afetação do bem,

passando esta característica a fazer parte do próprio conceito de privilégio, como que

consumindo em si a hipoteca.

Como resultado da interpretação errónea pela jurisprudência francesa dos conceitos

do Direito Romano, um novo instituto de garantia do crédito emerge, o “privilégio

real”. Esta nova figura jurídica distingue-se das garantias que assumiam características

análogas às dos privilegium exigendi, pois passa a incidir sobre bens imóveis e bens

móveis, perfeitamente determinados. A par dos privilégios que assumiam características

semelhantes às do instituto de Direito Romano, a nova figura dos privilégios reais passa

a ser considerada como uma verdadeira garantia real, conferindo aos titulares dos

créditos por esta tutelados uma preferência de pagamento em face dos créditos

garantidos por hipoteca.113.

Em consequência, a maioria dos privilégios viria a assumir um carácter real,

perdendo o seu carácter excecional114 e aproximando-se cada vez mais da figura das

hypothecas privilegiadas do Direito Romano, todavia, com uma assinalável diferença

como nos explica o professor GULLÓN BALLESTEROS115, “la garantia real ya no es

una instituición distinta del privilegio propriamente dito, sino uno de sus caracteres

essenciales. (…) la realidad del privilegio no designa ya la naturaleza del derecho al

112 Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit. pág. 35. Relata-nos o autor que a construção da jurisprudência francesa do novo conceito de privilégio resulta da confusão entre duas figuras do Direito Romano. Para a jurisprudência francesa, privilegios pessoaes seriam aqueles onde se destacava a qualidade do credor, ao passo que os privilegios reaes se reportavam à qualidade do crédito, sendo portanto privilégios creditórios aos quais se encontrava ligada uma hipoteca. 113 Cfr. CHIRONI, “Trattato del privilegi, delle ipoteche e del pegno”,2.ª Edição, Torino, 1912, Fratteli - Boca Editori, págs.145 e ss., apud CARNEIRO PACHECO, ob.cit., pág. 35. 114 Como aliás fora a regra o Direito Romano, mesmo após a criação da figura da hypotheca privilegiada pela mão de Justiniano. Ver. supra. ponto 1.1. 115 Cfr. ANTONIO GULLÓN BALLESTEROS, “El crédito privilegiado en el código civil”, Sevilha, 1958, pág. 8 do documento disponível em http://www.boe.es/publicaciones/anuarios_derecho/abrir_pdf.php?id=ANU-C-1958-20043500484, consultado em 22/07/15

48

quale se une, sino el carácter de garantia real que aquél tiene”. Como conclui

CARNEIRO PACHECO116, com a errónea aplicação dos conceitos desenvolvidos pelos

jurisconsultos romanos, a jurisprudência francesa como que aboliu a distinção entre

“privilégios reaes” e “privilégios pessoaes”, passando a figura do privilégio creditório a

ser associada às antigas hypothecas privilegiadas.

Atendendo ao supra exposto, podemos afirmar que a construção jurídica da

jurisprudência francesa anterior ao Código de Napoleão sobre os institutos herdados do

Direito Romano - os privilegium exigendi e da hypotheca privilegiada - teve um

profundo impacto na relação entre o carácter de garantia real do privilégio creditório e o

direito de crédito que este tutela. O carácter real do privilégio creditório como garantia

passa a ser compreendido como um elemento essencial da figura, ao invés de, como

acontecia na Antiga Roma, ser percecionado como uma característica do direito de

crédito ora tutelado por este.

Esta visão uniformizou-se com o Código Civil Francês de 1804117, através da

distinção operada pelo legislador francês entre os privilégios reais sobre imóveis e os

privilégios reais sobre móveis118. Por seu turno a hipoteca vê o espectro de incidência

limitado aos bens imóveis, em consequência do entendimento preconizado pela

jurisprudência francesa anterior ao Código.

Dada a natureza jurídica dos bens móveis e o princípio mobila sequelam non habent,

a garantia oferecida pela hipoteca não poderia incidir sobre bens móveis mas apenas

sobre bens imóveis119. Por esta razão, o legislador francês sentiu a necessidade de

alargar o leque de abrangência do privilégio real aos bens móveis, para tal associando a

figura do penhor ao privilégio que incidisse sobre bens móveis absolutamemte

determinados.

Com o alargamento do espectro de incidência do privilégio real, o conceito de

privilégio paulatinamente se associa ao de hypotheca privilegiada do Direito Romano.

116 Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit., pág. 35 117 O Code Civil des Français, também conhecido por Código de Napoleão, entrou em vigor em França a 21 de Março de 1804 e surge como uma resposta perante as necessidades de uniformização e unidade do sistema jurídico francês pós-revolução. O regime jurídico dos privilégios encontra a sua previsão normativa no Título XVIII, sob a égide “Des priviléges et hypothèques”, correspondentes aos arts. 2092.º a 2203.º. 118Dispõe o art. 2099.º do Code Civil des Français: “Les priviléges peuvent être sur les meubles ou sur les immeubles”. 119 Dispõe o art. 2119.º do Code Civil des Français: “Les meubles n’ont pas de suite sur le hypothèque.”

49

1.3 – O Código Civil Português de 1867

Os ecos do fenómeno codificador francês teriam acolhimento em Portugal com a

obra do Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto, o professor Dr. António

Luís de Seabra e Sousa120. De facto, o Código Civil Português de 1867 traduz a

profunda mudança de paradigma no ordenamento jurídico português em matérias

jurídico-privatísticas, pautadas pelos ventos liberais da revolução portuguesa de 1820.

No que diz respeito à temática das garantias das obrigações, mormente em matéria

de privilégios creditórios, a visão adotada pelo legislador português de 1867 demonstra

a influência do fenómeno codificador francês e das conceções da jurisprudência

francesa supra enunciadas. Regra geral, aos credores privilegiados era concedido o

direito de serem pagos pelo preço da totalidade dos bens dos devedores, todas as vezes

que não houvesse causa legítima de preferência, como era o caso dos créditos

privilegiados121. Deste modo, tomamos como referência a definição legal de privilégio

creditório indicada pelo legislador: “Privilégio creditório é a faculdade que a lei

concede a certos credores, de serem pagos com preferência, independentemente do

registo dos seus créditos.”122

Esta definição legal concretiza a ideia de que a preferência atribuída aos credores

privilegiados se baseia num critério qualitativo – a natureza e características do direito

de crédito ora tutelado pelo privilégio. Ora, de acordo com o critério estabelecido pelo

mencionado artigo, seriam pagos em primeiro lugar os créditos privilegiados, em

segundo lugar os créditos hypothecarios e por fim, os créditos comuns, também

denominados por créditos chyrographicos. Deste modo, a garantia real inerente ao

privilégio assumia um carácter verdadeiramente excecional, se quisermos até, de ultima

ratio perante as restantes garantias previstas pelo Código.

Na esteira da divisão operada pelo fenómeno codificador francês, também o

legislador nacional separa os privilégios creditórios em privilégios mobiliários e

privilégios imobiliários, consoante o tipo de bens existentes no património do devedor

ora adstritos à satisfação do crédito privilegiado.

120 Sobre a vida e obra do primeiro visconde de Seabra, ver por todos, JOSÉ MANUEL DE SEABRA DA COSTA REIS, JOSÉ MANUEL DE SEABRA DA COSTA E CALHEIROS,GONÇALO FERREIRA BANDEIRA, “Genealogia da família Seabra de Mogofores”, Edição de Olga M. de Seabra C. C. da Costa Reis, Porto, 1998; 121 Cfr. art. 1012.º do Código Civil Português de 1867. 122 Cfr. art. 884.º do Código Civil Português de 1867. Ínsito nos arts. 878.º a 887.º, o regime jurídico dos privilégios creditórios partilha o seu espaço com o regime jurídico das hypothecas, circunstância que reflete a influência das conceções da jurisprudência francesa anteriores ao Código de Napoleão referentes ao conceito e amplitude da figura dos privilégios creditórios.

50

O Professor GUILHERME ALVES MOREIRA123 aprofunda ainda esta primeira

classificação: “ (…) os privilégios imobiliários são sempre especiais, e os mobiliários

podem ser especiais ou gerais. Os privilégios mobiliários especiais abrangem só o

valor de certos e determinados bens mobiliários (…); os gerais abrangem o valor de

todos os bens mobiliários do devedor (…).”

O autor prossegue agrupando os privilégios mobiliários especiais em quatro

classes: i) os privilégios referentes aos frutos dos prédios rústicos; ii) privilégios

relativos ao rendimento dos prédios urbanos; iii) privilégios que recaem sobre coisas na

posse do credor e enquanto tal; iv) privilégios sobre coisas que, tendo sido adquiridas,

fabricadas ou concertadas e não havendo sido pago o preço da compra e o custo dos

materiais ou do trabalho, representam o valor dos créditos que têm a sua causa nos

factos a que a lei por esse motivo considera como privilegiados.

O tratamento dado aos créditos da Fazenda Pública pelo legislador do Código Civil

de Seabra traduz a importância que o crédito tributário sempre assumiu para o interesse

público. De destacar que já no século XIX, o legislador português atribuía aos créditos

da Fazenda Nacional privilégio mobiliário geral124 e, em simultâneo, um privilégio

imobiliário especial125, circunstâncias que traduzem a especificidade dos direitos de

crédito que merecem, em matéria de garantias reais, um tratamento reforçado.

De acordo com o disposto no artigo 887.º do Código Civil de Seabra, gozam de

privilégio imobiliário “sôbre os immóveis do devedor, ainda quando estes se achem

onerados com hypotheca” os créditos por impostos devidos à Fazenda Pública relativos

aos três últimos anos, e no valor dos bens em que recaírem os mencionados impostos126.

Porém, o legislador de 1867 foi ainda mais longe, conferindo privilégios creditórios

por créditos tributários aos municípios, sem prejuízo do Estado127.

123 Ver GUILHERME ALVES MOREIRA, “Instituições do Direito Civil Português”, Vol. II, Coimbra, 1911, págs. 379 e ss. O autor chega mesmo a explicitar que “(…) hypotheca há também quando ao privilegio está inherente um direito real, em virtude do qual o direito do credor privilegiado possa ser exercido contra terceiros para quem haja sido transmitida a cousa sobre que o privilegio recae, pagando-se o preço della (…)”. Por outro lado em comentário ao Código Civil de 1867 (disponível em http://purl.pt/12145) o professor DIAS FERREIRA, fala não em quatro classes de privilégios mas antes em três distintas classes, de acordo com o critério do objeto do privilégio acima. “São pois de três classes os privilégios: privilégios sobre a generalidade dos móveis, privilégios sobre certos móveis, e privilégios sobre certos immóveis. (…) Os créditos privilegiados podem recair sobre móveis e imóveis ao mesmo tempo. O privilégio da fazenda pelas dívidas de impostos abrange ao mesmo tempo os móveis e os immóveis (…) Os privilégios pois recaem, ou só sobre móveis, ou só sobre os immóveis, ou sobre os móveis e os immóveis ao mesmo tempo.” 124 Dispõe o artigo 885.º do CC de 1867: “Os créditos por impostos devidos á fazenda nacional, gosam do privilégio mobiliário em todas as classes.”. Por sua vez, o artigo 887.º indica: “São créditos privilegiados sobre os immóveis do devedor, ainda quando estes se achem onerados com hypotheca: os créditos por impostos devidos á fazenda nacional pelos três últimos anos, e no valor dos bens em que recaírem os mencionados impostos (…)”; 125 Cfr. o n.º1 do artigo 887.ºdo CC de 1867. 126 Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit., págs. 188 e ss; 127 Estão em causa privilégios mobiliários, como resulta dos artigos 125.º do Código Administrativo de 1878 e ainda o artigo 78.º do Código Administrativo de 1896.

51

Nota ainda para os privilégios creditórios relativos aos créditos devidos por

contribuições de registo, constituídos em favor da Fazenda Pública.

Embora não previstos no Código Civil mas antes em Decreto128, estes privilégios

incidiam sobre “todos os bens transmitidos, qualquer que seja a sua natureza,

preferindo a quaesquer créditos, ainda os mais privilegiados”129

Do ponto de vista técnico e no seguimento das conceções francesas sobre a figura

do privilégio creditório, o legislador português cria uma distinção entre os privilégios

creditórios de índole romanista, os privilegium exigendi130, e os denominados

privilégios reais, de índole francesa, adotando assim a classificação da doutrina

francesa.

A figura do privilégio real resulta da associação instituída pelo legislador entre dois

elementos distintos de figuras jurídicas afins, a saber, a preferência de satisfação do

crédito associada ao privilégio creditório e, em simultâneo, do poder inerente ao direito

de sequela131 decorrente da hypotheca para os preivilégios creditórios imobiliários e do

penhor para os privilégios creditórios cujo objeto eram bens móveis ou equiparados,

conferindo ao credor privilegiado um poder reforçado para a garantia do seu crédito.

Debruçando-nos sobre o disposto nos artigos 882.º e 883.º do Código Civil de

Seabra132, verificamos que o legislador português optou por consagrar uma especial

relação entre as causas de extinção dos privilégios mobiliários especiais e a posse dos

bens pelo titular do crédito privilegiado, extinguindo-se estes quando o bem objeto do

privilégio e fundamento do próprio direito de crédito saísse da esfera patrimonial do

credor. Deste modo, para além de beneficiar da preferência decorrente do privilégio, o

credor privilegiado poderia ainda, nos casos em que a lei o permitisse, usufruir do

direito de sequela oferecido pela hypotheca, desde que cumprisse com os requisitos

formais inerentes ao registo da mesma.

De realçar que o disposto no artigo 907.º do CC133 de 1867 confere a todos os

créditos privilegiados a faculdade de serem reforçados por hypotheca, norma esta que

fundamenta a denominação destas garantias por hypothecas privilegiadas.

128 Cfr. o artigo 6.º do Decreto de 24/05/1911 129 Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit., pág. 189. 130 Cfr. art. 878.º Código Civil Português de 1867. Este artigo consagra a visão romanista de privilégio creditório como a faculdade conferida pela lei a certos credores de serem pagos pelo valor dos bens do devedor, em preferência aos demais credores. 131 Prescreve o art. 892.º do CC de 1867: “A hypotheca onera os bens em que recae e sujeita-os directa e imediatamente ao cumprimento das obrigações a que serve de segurança, seja quem for o possuidor dos mesmos bens.” 132 Cfr. o diposto nos parágrafos 1.º a 5.º do artigo 882.º e o parágrafo 1.º do artigo 883.º, ambos do CC de 1867. 133 São exemplos de hypothecas privilegiadas os casos previstos no artigo 907.º do CC de 1867.

52

Como nos elucida o professor GUILHERME MOREIRA134, para que pudessem ser

registados como créditos hipotecários, os créditos privilegiados teriam que cumprir os

necessários requisitos legais, desde logo quanto ao objeto da hipoteca. Desta forma,

apenas poderiam ser registados como créditos hipotecários, os créditos com privilégio

imobiliário e, dentro dos mobiliários, os que incidissem sobre bens móveis sujeitos a

registo – como era o caso dos privilégios mobiliários especiais da primeira classe e

ainda os da segunda classe.

Desta sucinta análise ao regime legal dos privilégios creditórios decorrente do

Código Civil Português de 1867, desde logo uma característica ressalta à vista: é um

regime pouco uniforme, com múltiplas remissões legais, bem como diversas normas

especiais não contidas no próprio diploma, problema que ainda hoje se verifica no nosso

ordenamento jurídico.

Por outro lado, a figura das hypothecas privilegiadas – consistindo esta na

possibilidade de credores privilegiados constituírem hipoteca em relação aos bens sobre

os quais recaem os privilégios, esta é uma solução que pode parecer confusa à primeira

vista.

Contudo, não obstante da necessidade de registo decorrer das características

inerentes à hypotheca, a verdade é que essa foi uma solução que, em certa parte,

cumpria as exigências de publicidade e da proteção de terceiros, decorrentes da regra do

carácter oculto dos privilégios, interesses hoje largamente desconsiderados pelo regime

de privilégios creditórios ínsito no Código Civil de 1966. Sobre estas preocupações nos

debruçaremos infra.

134 Cfr. GUILHERME ALVES MOREIRA, ob. cit., págs. 471 a 474.

53

2. Os Privilégios Creditórios à luz do Código Civil Português

Traçadas as linhas gerais sobre a evolução histórica da figura jurídica em análise, é

tempo de analisar a sua atual configuração no ordenamento jurídico português, de forma

a pudermos compreender as suas características, bem como o impacto que assume na

tarefa de reforçar a probabilidade de satisfação do crédito tributário. Neste sentido,

começamos por analisar a noção legal de privilégio ínsita no Código Civil Português,

confrontando-a com as de outros ordenamentos jurídicos, procurando ainda

compreender a natureza jurídica deste instituto.

2.1 – Noção e Natureza Jurídica

Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito,

concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com

preferência a outros135.É desta forma que o legislador português oferece ao intérprete

aplicador do direito uma noção de privilégio creditório, ao contrário do que se verifica,

por exemplo, em Espanha, ordenamento jurídico onde a tarefa de delimitação dos

contornos da figura foi desenvolvida pela doutrina136, uma vez que o legislador

espanhol, no texto do Código Civil Espanhol, não evoca o termo privilégio, optando por

se referir à preferência dos créditos. Por outro lado, em Itália137 e em França138, o

legislador opta, assim como o legislador português, por oferecer ao interprete aplicador

uma noção legal de privilégio.

Confrontando as diferentes noções legais de privilégio, identificamos como uma

característica comum a todas – o seu carácter excecional no seio das garantias

creditórias. De facto, apesar de a lei oferecer uma noção de privilégio, as maiores

discussões doutrinárias sobre a figura centram-se na tarefa de determinar a sua natureza

135 Cfr. art. 733.º do CC; 136 O Código Civil Espanhol dedica os artigos 1921.º a 1925.º à qualificação dos créditos que gozam de preferência sobre os bens do devedor. Nos artigos 1922.º e 1923.º encontramos os privilégios creditórios especiais, sobre bens móveis e sobre os bens imóveis, respetivamente. Já o artigo 1924.º enumera os créditos que gozam de privilégio creditório geral sobre os bens do devedor. GÚLLON BALLESTROS critica esta opção do legislador espanhol: “(…) nuestro Código no contién una definitión del privilegio. Es más, ni siquera empla la palabra privilegio en que debeía hacerlo, es decir, en el capítulo II del título XVIII, al hacer el classificación de los créditos para su graduatión y pago. (…)”. Cfr. GÚLLON BALLESTROS, ob. cit., pág 437; 137 Prescreve o arts. 2741.º do Codice Civile Italiano: “I creditori hanno eguale diritto di essere soddisfatti sui beni del debitore , salvo le cause legittime di prelazione. Sono cause legittime di prelazione i privilegi, il pegno e le ipoteche.” Já no 2745.º do mesmo diploma, pode ler-se que “Il privilegio è accordato dalla legge in considerazione della causa del credito. La costituzione del privilegio può tuttavia dalla legge essere subordinata alla convenzione delle parti; può anche essere subordinata a particolari forme di pubblicità. 138 Por sua vez, em França o legislador especifica o que entende por privilégio creditório no art. 2324.º do Code Civil Français: “Le privilège est un droit que la qualité de la créance donne à un créancier d'être préféré aux autres créanciers, même hypothécaires.”

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jurídica. O privilégio creditório é um direito real de garantia? Ou apenas uma garantia

real?

Diferentes teses emergiram na doutrina portuguesa e estrangeira ao longo do último

século com vista a responder a estas questões.

Em Portugal, no início do século XX, CARNEIRO PACHECO139 sustentava que

todos os privilégios creditórios são verdadeiros direitos reais de garantia já que “o que

importa no instituto da garantia é a especial posição jurídica que attibbue aos

credores, a qual se delimita no momento da liquidação dos bens do devedor. Sempre

que a relação de garantia produza a affectação especial de certos bens ao pagamento

da dívida, de maneira que o credor em favor de quem foi estabelecida, encontrando-se

em concurso com outro, se pague pelo produto da liquidação, não segundo a regra da

egualdade, mas segundo uma ordem de preferência que a lei fixa, existe nella um

direito real.”

Por sua vez, GUILHERME MOREIRA140 qualifica o privilégio creditório como um

direito de preferência atribuído pela lei ao credor, que incide sobre o produto da venda

dos bens do devedor, cuja origem e fundamento se encontra na qualidade do direito de

crédito. Para este autor, nos casos em que o direito do credor privilegiado seja

confrontado com outras posições jurídicas conflituantes, mormente, direitos de terceiros

adquirentes dos bens sobre os quais incide o direito do credor, surge uma hipoteca

privilegiada. Nas palavras do saudoso mestre: “(…) há efectivamente neste caso não só

o direito de preferência em relação aos próprios credores hipotecários, mas existe um

direito real em virtude do qual o credor pode pagar-se pelo produto dos bens sôbre que

recai, qualquer que seja o possuidor desses bens.(…)”.

Para o autor o nascimento de um direito real de garantia nos casos de conflito entre

os direitos do credor privilegiado e de terceiros não se verifica apenas em relação aos

139 Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit., págs. 42 e ss. Esta foi uma posição também sustentada por alguma doutrina estrangeira, como POPLAWSKI apud GULLÓN BALLESTROS, últ. ob. cit. pág. 442, que centrava a sua atenção na existência de uma preferência atribuída pela lei em favor do credor privilegiado, argumentando como CARNEIRO PACHECO, que o carácter real dos privilégios não se aferia pelos bens sobre os quais incidem. Como nos explica GULLÓN BALLESTROS, POPLAWSKI “(…) no cree que el carácter real del privilegio depende del número de cosas a las cuales afecte. El acreedor privilegiado se presenta a cobrar sobre el preciso se obtegna de la venta de un bien o de vários.” 140 Cfr.. GUILHERME ALVES MOREIRA, ob.cit., págs. 348 a 351. Sobre as alterações introduzidas no instituto do privilégio, expõe o saudoso professor “(…) o penhor, tendo a sua fonte no contrato e como elemento essencial a posse da cousa, não podia abranger garantias que, derivando da lei, pressopõem todavia a posse pelo devedor da ousa sôbre que essas garantias recaem; a hyphoteca, tendo por objecto bens imóveis e como elemento essencial o registo, não podia compreender garantias que recaíssem sôbre móveis, embora tivessem a mesma natureza da hyphoteca e se não pudessem tornar públicas por meio de registos adequados (…) ”.

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privilégios imobiliários, outrossim, seria extensível aos casos em que estão em causa

privilégios creditórios mobiliários especiais.

Nessa situação, sustenta o professor que, estando o credor privilegiado na posse dos

bens sobre os quais incide o privilégio, aquele, além do direito de preferência, é também

titular de um direito de retenção, um direito real correspondente ao do penhor.

Já no caso de o privilégio acompanhar os bens imóveis ou equiparados na

eventualidade de estes serem transmitidos a terceiro, o poder subjacente atribuído ao

credor privilegiado – o direito de perseguição ou de sequela – transformaria o privilégio

creditório numa hipoteca privilegiada. Para o autor o privilégio creditório mais não é do

que uma preferência sobre o produto da venda dos bens do devedor, pelo que nega o

carácter real dos privilégios em si mesmo, antes associando-os a direitos reais de

garantia como a hipoteca ou o penhor.

A posição atual da doutrina maioritária em Portugal apresenta uma solução bipartida,

já que nega a qualificação de direito real de garantia aos privilégios creditórios gerais,

reservando-a apenas para os privilégios especiais141. Deste modo, os privilégios

creditórios gerais constituem um mero direito de preferência instituído pela lei, não lhes

sendo reconhecidas pela doutrina maioritária, as características que identificam os

direitos reais de garantia como a hipoteca ou o penhor.

Sabemos que os direitos reais se caracterizam por duas especiais notas: o direito de

sequela - faculdade que o titular do direito real dispõe de reivindicar o bem objeto do

seu direito, mesmo que este se encontre na esfera jurídica de terceiro - e ainda, pela

preferência – a oponibilidade do direito conferido pelo privilégio especial face a todos

aqueles que, em momento posterior, adquiram direitos sobre os bens objeto da

garantia142. Na doutrina nacional encontramos posições e fundamentos bem distintos

141 Trata-se de uma posição dominante quer na doutrina como na jurisprudência. Sobre este aspeto, cfr. M.J. ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 12.ªEdição, Coimbra, 2010, págs. 959 e ss.; P. ROMANO MARTÍNEZ/P.FUZETA DA PONTE, “Garantias de Cumprimento”, 5.ªEdição, Coimra, 2006 Almedina Editora, págs. 203 e ss; e ainda, MIGUEL LUCAS PIRES, ob.cit., págs. 431 e ss; Na jurisprudência, ver ainda o Ac. da Relação de Coimbra de 20/12/2011, referente ao processo n.º 1593/10.0TBVNO-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3191f710a4fe81a980257995004e308d?OpenDocument, e ainda, o Ac. do STA de 18/01/2012, proc. n.º 0925/11, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/dd53cac04429237d80257991005b5b36?OpenDocument&ExpandSection=1; Em sentido contrário, cfr. SOVERAL MARTINS, “Legislação anotada sobre salários em atraso”, Centelha, 1986, págs. 28 e ss; e ainda, DOMINGOS MARTINS EUSÉBIO, “O privilégio creditório da Fazenda Nacional”, Centro de Estudos Fiscais da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, Lisboa, 1964, págs. 64 e ss. Os autores atribuem aos privilégios imobiliários gerais conferidos aos créditos tributários, o direito de sequela, embora não assumam expressamente a sua qualificação enquanto direitos reais de garantia. 142 Cfr. arts. 750.º e 751.º do CC. A exceção à regra da preferência dos privilégios creditórios especiais face a direitos de terceiro verifica-se nos casos em que a lei, atendendo à causa do crédito, manda que os privilégios creditórios constituídos posteriormente, sejam graduados em posição anterior.

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sobre a verificação ou não verificação dos mesmos face aos privilégios creditórios

especiais.

Por um lado, ORLANDO DE CARVALHO143 opta por distinguir direitos reais de

garantia e garantias reais das obrigações, sustentando que o privilégio geral se insere

nesta última categoria, já que não se traduz num poder direto e imediato sobre uma

coisa, antes, sobre uma universalidade de bens existentes na esfera patrimonial do

devedor. Por outras palavras, como versam ab initio sobre o produto da venda de um

conjunto de bens não especificados, os privilégios gerais serão garantias reais mas já

não direitos reais de garantia, dada a ausência de uma especialidade quanto ao seu

objeto144.

Por sua vez, ALMEIDA COSTA nega a natureza de direito real de garantia aos

privilégios gerais, mais ainda, rejeita a sua classificação como garantias reais, uma vez

que não conferem ao titular do crédito privilegiado o direito de sequela, mas apenas

uma preferência legal, no âmbito do processo de execução, relativamente aos credores

comuns, e apenas se esses bens se encontrarem no património do devedor, à data da

penhora145.

Contudo, na nossa humilde opinião não podemos concordar inteiramente com as

posições dos professores supra citados. De facto, reconhecendo a inexistência de uma

especificação do objeto sobre que versa o privilégio creditório geral e,

consequentemente, na negação da qualificação deste como um verdadeiro direito real de

garantia, entendemos contudo, tal como ORLANDO DE CARVALHO, que a

preferência sobre o produto da venda dos bens do devedor ou de terceiro, em favor do

credor privilegiado, se traduz numa verdadeira afetação de bens ao pagamento

preferencial de certos créditos, não obstante da sua não especificação ab initio.

143 Cfr. ORLANDO DE CARVALHO, “Direito das Coisas”, Coimbra, 2012, Coimbra Editora, págs. 254 a 258. Esta é uma posição que se coaduna com o disposto no art.749.º do CC, norma referente ao conflito entre o privilégio creditório geral e os direitos reais de terceiro, oponíveis ao titular do crédito privilegiado. 144 O princípio da especialidade dos direitos reais é entendido como uma das características inerentes ao poder direto e imediato decorrente do direito real. Este princípio significa que só podem ser constituídos direitos reais sobre coisas absolutamente determinadas, isto é, sobre coisas individualizadas. 145 Cfr. arts. 735.º, n.º2 e 749.º do CC. Na jurisprudência relevam as conclusões do Ac. do STJ de 07/04/2011, referente ao processo n.º 956/07.2TBVCT.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstjf.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2765eb7fd9cec71c80257b900033ebbd?OpenDocument , onde se pode ler sobre os : “ (…) Não sendo de qualificar como direitos reais de garantia, dado o seu carácter de generalidade na incidência, os privilégios imobiliários gerais devem ter-se como constitutivos de "meros direitos de prioridade que prevalecem contra os credores comuns, na execução do património debitório"(…)”. Sobre a classificação dos privilégios creditórios gerais como meros direitos de prioridade, ver, por todos, M.J. ALMEIDA COSTA, ob. cit. pág. 972.

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Assim, o carácter real da garantia encontra-se na própria preferência atribuída pela

lei em favor do credor privilegiado, concretizada através da afetação de uma massa de

bens do seu património com vista à satisfação do crédito.

Porém, seguindo esta linha de pensamento, a categoria de garantia real parece

esgotar-se quando se lhe retira o privilégio creditório geral. Nesse sentido,

consideramos que o conceito de garantia real não se contrapõe ao de direito real de

garantia mas antes, ao de garantia pessoal. A verdade é que a distinção entre os

conceitos de garantia real e de direito real de garantia não se encontra totalmente

esclarecida na doutrina portuguesa, tendo até levantando muitas dúvidas na

jurisprudência dos nossos Tribunais na última década. Se por um lado os Juízes

Conselheiros do STJ, no Acórdão de 18/11/97146 identificam como direitos reais de

garantia o arresto, a penhora, o penhor, a hipoteca, os privilégios creditórios e o direito

de retenção, a verdade é que o próprio legislador utiliza os dois termos indistintamente

em diversos diplomas147.

Esta é um problema que se levanta também no seio da jurisdição tributária,

especialmente em matéria de cobrança coerciva, como resulta dos vários acórdãos do

STA sobre o sentido e alcance da distinção entre “direitos reais de garantia” e “garantias

reais”. Um exemplo passa pelas querelas interpretativas sobre o alcance da expressão

“garantias reais”, utilizada pelo legislador tributário no n.º1 do artigo 204.º do CPPT.

A orientação que tem sido seguida pelos juízes concelheiros do STA nesta matéria é

a de a distinção entre direito real de garantia e garantias reais não se verifica

verdadeiramente, pelo a relação entre os dois conceitos que se resume a uma mera

relação de sinonímia. Já sobre a qualificação jurídica do privilégio creditório geral, os

Juízes Conselheiros do STA negam cabalmente a sua qualificação como um direito real

de garantia atenta a inexistência de um direito de sequela, característica distintiva dos

direitos reais em geral. Não obstante, merece especial destaque a argumentação vertida

no voto de vencido do Juiz Conselheiro JORGE DE SOUSA no Acórdão de

146 Cfr. BMJ n.º 471, págs. 325 a 328. 147 Cfr. art. 47.º, n.º 4, alínea a) do CIRE e o disposto nos n.ºs 3 e 4 do CPC na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26/06. No primeiro diploma, o legislador distingue entre créditos ‘garantidos’ e créditos ‘privilegiados’, para se referir aos créditos que beneficiem de garantias reais sobre bens da massa insolvente, neste grupo incluindo “(…) os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente(…)”, o que sugere uma igualdade entre os conceitos de garantia real e de direito real de garantia – categoria na qual o legislador insere os privilégios creditórios especiais. Por outro lado, nos artigos 786.º, n.º1, alínea b) e em especial, nos n.ºs 1, 3 e 4 do art. 788.º, ambos do CPC, o legislador ora se refere a direitos reais de garantia, como recorre ao conceito de garantias reais, todavia, sem precisar a distinção entre os mesmos.

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27/10/2010, referente ao processo n.º 0481/10148, no qual o Juiz Conselheiro discute se

o credor que goze de privilégio creditório geral pode ou não reclamar os seus créditos

em processo de execução fiscal, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º1 do

artigo 204.º do CPPT149: “A questão da existência ou não de suporte textual naquele

art. 240.º, n.º1, do CPPT não se esgota, porém, nos termos em que tem vindo a ser

colocada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo que admite a

possibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio geral, pois a

expressão «garantia real», que tem sido interpretada como tendo significado a «direito

real de garantia», designadamente como implicando a atribuição de direito de sequela

ao respectivo titular, não tem necessariamente esse alcance. Com efeito, o conceito de

«garantia real» contrapõe-se ao de «garantia pessoal» e poderá interpretar-se como

reportando-se a todas as garantias que reconduzem ao poder de o credor aproveitar o

valor de coisas para a cobrança do seu crédito, enquanto as garantias pessoais (como

a fiança e o aval) assentam na extensão do dever de pagamento da dívida, além do

devedor, a outras pessoas. (…) De qualquer modo, a conclusão que se retira desta

análise global das referências feitas na lei a garantias reais, revela que a expressão é

na maior parte das vezes utilizada com o sentido de direito real de garantia, tal como a

vem interpretando a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal Administrativo,

que defende a possibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio

geral (…).”

Porém, a posição adotada pelo STA parece-nos algo perigosa do ponto de vista

conceptual, fazendo tábua rasa do próprio conceito de direito real de garantia, isto pois

se por um lado a equiparação dos conceitos de garantia real e direito real de garantia se

assume como uma mais-valia para o comércio e tráfego jurídicos, no plano dogmático

não nos parece ser esta a melhor opção, pelo que humildemente discordamos da

jurisprudência neste aspeto.

148 Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e10889a06b64428b802577d1003aa9b4?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1 . Esta posição da jurisprudência parece ter sido acolhida pelo legislador, como aliás resulta do ponto 23 do preâmbulo do CIRE: “ (…) a categoria dos créditos garantidos abrange os créditos, e respetivos juros, que beneficiem de garantias reais – sendo como tal considerados também os privilégios creditórios especiais – sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias (…)” e “os créditos privilegiados são os que gozam de privilégios creditórios gerais sobre bens integrados na massa insolvente, quando tais privilégios não se extingam por efeito da declaração de insolvência”. 149 Prescreve o n.º1 do artigo 240.º do CPPT: “Podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação nos termos do artigo anterior os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados.”

59

Desde logo concordamos com a argumentação supra exposta sobre esta distinção do

Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, na medida em que o conceito de garantia real se

contrapõe ao conceito de garantia pessoal, correspondendo o primeiro aos institutos

jurídicos que permitem a afetação de bens do devedor ou de terceiro ao pagamento

preferencial de certos créditos.

Por sua vez, as garantias pessoais funcionam como uma mera extensão do dever de

satisfazer o crédito a outros patrimónios pessoais, em geral.

No seio das garantias reais encontramos os direitos reais de garantia, direitos estes

acessórios face aos direitos de crédito e que se caracterizam por incidirem sobre bens

específicos existentes na esfera patrimonial do devedor ou de terceiro, afetando-os ao

pagamento preferencial da dívida e, se necessário, facultando ao seu titular a

possibilidade de perseguir esses mesmos bens, através do direito de sequela. Contudo,

não são todos os institutos jurídicos que se reconduzem a verdadeiros direitos reais de

garantia.

É o que se passa com os privilégios creditórios gerais. Tal como os direitos reais de

garantia, o privilégio creditório configura uma preferência atribuída pela lei em favor de

um determinado crédito. Porém, no caso dos privilégios gerais, essa preferência150

mantém-se embora o objeto da garantia apenas seja especificado em momento posterior.

E é neste sentido que concordamos com a posição de MIGUEL LUCAS PIRES151

quando este afirma que apesar de não possuir direito de sequela, o privilégio creditório

geral se qualifica como uma verdadeira garantia real, já que permanece como um

instituto jurídico que permite a afetação de bens do devedor ou de terceiro ao

pagamento preferencial de certos créditos, não obstante de assumir um carácter geral no

momento da sua constituição.

Na realidade esta é uma discussão bem mais complexa do que uma primeira análise

nos poderá fazer pensar. Se por um lado a classificação dos privilégios creditórios gerais

enquanto direitos reais de garantia é negada quer pela doutrina, quer pela jurisprudência,

a sua classificação como uma garantia real do crédito levanta outros problemas, em

especial relacionados com a constituição do privilégio, da determinação do seu objeto e

mais importante ainda, das relações deste instituto com os direitos de terceiros que lhe

sejam oponíveis.

150 O legislador prescreve no n.º2 do art. 604.º do CC que são causas legítimas de preferência além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção. 151 Cfr. MIGUEL LUCAS PIRES, ob. cit. págs. 434 a 437.

60

2.2. – Posição da Doutrina Estrangeira quanto à natureza jurídica dos privilégios

creditórios

Depois de uma alusão às principais correntes de pensamento doutrinais e

jurisprudenciais portuguesas relativas à natureza jurídica dos privilégios creditórios,

fazemos a esta parte uma breve alusão ao tratamento deste instituto pela doutrina

estrangeira, com especial enfâse para o ordenamento jurídico espanhol, o ordenamento

jurídico francês e ainda, para o ordenamento jurídico italiano.

2.2.1 – Em França

O ordenamento jurídico francês desde de muito cedo adotou a figura do privilégio

creditório como uma garantia jurídica para os direitos de crédito que, por motivos de

índole social e económico, justificassem a atribuição de uma preferência desse tipo de

créditos face aos créditos comuns152. Não obstante as modificações e construções sobre

o conceito de privilégio creditório herdado do Direito Romano, a verdade é que as teses

em torno da figura viriam a ter concretização legal com o Código de Napoleão, obra

jurídica que em muito influenciou a “edificação” da figura no ordenamento jurídico

português nos finais do século XIX, mormente do Código Civil de Seabra.

No Código Civil Francês, o regime dos privilégios creditórios encontra-se previsto

conjuntamente com o regime jurídico das hipotecas, característica que demonstra a

longuíssima relação existente entre as duas figuras, tendo o legislador francês seguido a

tradição de criar um regime de conformidade e coerência entre os institutos. O maior

destaque porém resulta da necessidade de os credores que beneficiem de privilégios

imobiliários, registarem esses mesmos créditos através do Registo de Propriedade, regra

esta que foi instituída no ordenamento jurídico francês ainda em 1955153.

Desta nota podemos concluir que em França, os privilégios imobiliários são

abordados como verdadeiros direitos reais de garantia, a par da hipoteca, o que

inquestionavelmente resulta numa maior segurança e certezas do tráfego e comércio

jurídicos, especialmente no que diz respeito às relações de crédito.

152 Ver supra ponto 1. do Capítulo II. 153 As regras relativas à necessidade de registo do crédito privilegiado surgiram em França através do Décret n ° 55-22 du 4 Janvier , 1955. Em concordância, dispõe o art. 2377.º do CCF relativamente aos privilégios imobiliários: “Entre les créanciers, les privilèges ne produisent d'effet à l'égard des immeubles qu'autant qu'ils sont rendus publics par une inscription au fichier immobilier, de la manière déterminée par les articles suivants et par les articles 2426 et 2428.”

61

Centrando a nossa atenção para a discussão sobre a natureza dos atual configuração

do ordenamento francês em matéria de privilégios, tomando como ponto de partida o

enquadramento legislativo da figura do privilégio como resulta da construção

desenvolvida pelo legislador francês, este aborda o instituto configurando-o como uma

sûreté réellee, ou seja, uma garantia real – sendo que, em casos específicos, além de

lhes atribuir o direito de preferência, o legislador francês vai mais longe, reconhecendo

pontualmente aos privilégios imobiliários especiais, o direito de sequela154.

2.2.2 – O caso Espanhol

De facto, a discussão sobre a natureza jurídica do privilégio creditório em Espanha,

parece seguir os mesmos caminhos argumentativos que em Portugal, todavia sem que se

alcance uma resposta definitiva sobre a questão.

Sobre a natureza jurídica da figura propiamente dita, GULLÓN BALLESTEROS155

defende que a resposta a esta pergunta se deve procurar no seio da distinção entre o

carácter geral ou especial do privilégio, como aliás tem sido também sustentado pela

doutrina e jurisprudência portuguesas. Em Espanha o Código Civil Espanhol não se

refere expressamente aos privilégios creditórios, optando o legislador por utilizar os

termos “derecho de prelación” ou “prelación de créditos”.

O legislador tributário espanhol optou por utilizar os termos acima indicados para se

referir aos privilégios creditórios em favor dos créditos tributários. É neste sentido que o

artigo 77.º da Ley General Tributaria, sob a epígrafe ‘Derecho de prelación’, aborda o

direito de preferência do credor tributário em face dos demais credores156, aproveitando

o n.º2 do mesmo artigo para introduzir uma remissão para o diploma legal relativo às

154No artigo 2324.º do Códe Civil, o legislador francês descreve o privilégio creditório como um verdadeiro direito de preferência em favor dos créditos hipotecários e demais créditos comuns. Já no artigo 2379.º do Códe Civil, o legislador prevê os casos em que o privilégio creditório especial deve ser registado, sob pena de ser não só ineficaz perante terceiros, mas também, entre os diferentes credores entre si. 155 Cfr. GÚLLON BALLESTEROS, “El Crédito Privilegiado en el Código Civil”, Sevilha, 1958, in “Anuário de Derecho Civil, Vol.11, n.º2, págs. 434 a 485, e disponível em https://www.boe.es/publicaciones/anuarios_derecho/abrir_pdf.php?d=ANUC195820043500484_ANUARIO_DE_DERECHO_CIVIL_El_cr%E9dito_privilegiado_en_el_C%F3digo_civil (consultado em 12/12/14) 156 Dispõe o mencionado artigo 77.º:” La Hacienda Pública tendrá prelación para el cobro de los créditos tributarios vencidos y no satisfechos en cuanto concurra con otros acreedores, excepto que se trate de acreedores de dominio, prenda, hipoteca u otro derecho real debidamente inscrito en el registro correspondiente con anterioridad a la fecha en que se haga constar en el mismo el derecho de la Hacienda Pública, sin perjuicio de lo dispuesto en los artículos 78 y 79 de esta ley.”. De realçar que o legislador espanhol teve a preocupação de acentuar a regra da prioridade temporal no que toca aos conflitos entre causas legítimas de preferência, como são os direitos reais de garantia.

62

matérias de concurso de credores e graduação de créditos – Ley 22/2003, de 9 de Julio,

Concursal, cuja última alteração data de 5/10/15157.

De acordo com o n.º1 do artigo 89.º deste diploma, para efeitos de concurso, os

créditos subdividem-se em “privilegiados, ordinarios y subordinados”, classificação

que é aprofundada pelo n.º2 do mesmo artigo: “Los créditos privilegiados se

clasificarán, a su vez, en créditos con privilegio especial, si afectan a determinados

bienes o derechos, y créditos con privilegio general, si afectan a la totalidad del

patrimonio del deudor.”

Esta é uma classificação baseada no critério do objeto do privilégio creditório,

autonomizando-se pois a separação entre privilégios gerais e privilégios especiais. Já no

artigo 90.º, o legislador espanhol identifica os créditos que beneficiam, para efeitos da

Ley Concursal, de privilégio creditório especial.158 Todavia a formulação utilizada para

tal enunciação merece especial atenção no que toca à primeira classe de créditos

privilegiados: “Son créditos con privilégio especial: “1.º Los créditos garantizados con

hipoteca voluntaria o legal, inmobiliaria o mobiliaria, o con prenda sin

desplazamiento, sobre los bienes o derechos hipotecados o pignorados (…)”.

Numa primeira análise parece-nos que estamos perante a figura da hipoteca

privilegiada, já que aos créditos garantidos por hipoteca, o legislador confere um

privilégio creditório especial sobre o produto da venda dos bens que sejam objeto da

hipoteca.

Destaque ainda para o facto de não serem reconhecidos ab initio e autonomamente,

privilégios especiais aos créditos tributários em si mesmo. Todavia, conjugando o

regime artigos acima indicados com disposto no artigo 77.º da Ley General Tributaria,

sempre se diga que o crédito tributário beneficia destes privilégios especiais, na medida

157Disponível em https://www.boe.es/buscar/pdf/2003/BOE-A-2003-13813-consolidado.pdf (consultada em 21/10/15). Entre nós as disposições relativas ao concurso de credores, no caso de processo executivo comum e dos processos de execução fiscal, por remissão do artigo 246.º do CPPT, encontram-se no CPC (arts. 788.º a 794.º) e no caso de concurso em processo de insolvência, no CIRE (arts.128.º a 140.º). 158 Decorre do n.º1 do artigo 90.º da Ley Concursal: “1. Son créditos con privilegio especial: 1.º Los créditos garantizados con hipoteca voluntaria o legal, inmobiliaria o mobiliaria, o con prenda sin desplazamiento, sobre los bienes o derechos hipotecados o pignorados; 2.º Los créditos garantizados con anticresis, sobre los frutos del inmueble gravado; 3.º Los créditos refaccionarios, sobre los bienes refaccionados, incluidos los de los trabajadores sobre los objetos por ellos elaborados mientras sean propiedad o estén en posesión del concursado; 4.º Los créditos por contratos de arrendamiento financiero o de compraventa con precio aplazado de bienes muebles o inmuebles, a favor de los arrendadores o vendedores y, en su caso, de los financiadores, sobre los bienes arrendados o vendidos con reserva de dominio, con prohibición de disponer o con condición resolutoria en caso de falta de pago; 5.º Los créditos con garantía de valores representados mediante anotaciones en cuenta, sobre los valores gravados; 6.º Los créditos garantizados con prenda constituida en documento público, sobre los bienes o derechos pignorados que estén en posesión del acreedor o de un tercero. Si se tratare de prenda de créditos, bastará con que conste documento con fecha fehaciente para gozar de privilegio sobre los créditos pignorados (…)”.

63

em que é conferida a tais créditos “Hipoteca legal tácita”159, garantia que confere ao

credor tributário direito de sequela sobre os bens onerados com tal garantia, mesmo que

transmitidos a terceiros, como decorre do n.º1 do artigo 78.º160 do diploma em análise.

Além deste privilégio, o credor tributário goza de privilégio creditório geral, de

acordo com os parágrafos segundo e quarto do artigo 91.º da Ley Concursal,

relativamente aos créditos devidos por contribuições para a Segurança Social e demais

créditos de carácter público161.

Não obstante das recentes alterações ao diploma, merece especial destaque a reforma

operada ao nível da graduação de créditos privilegiados pelo Real Decreto-Ley 11/2014,

de 5 de septiembre, que procurou compatibilizar a figura do privilégio creditório com a

realidade socioeconómica vivida em Espanha, fruto do impacto das consequências da

crise económica mundial de 2011162 sobre os agentes económicos privados.

O objetivo destas medidas de carácter urgente passa pela necessidade de acautelar a

viabilidade económico-financeira das empresas em tempos de menor solvabilidade do

crédito, bem como, resolver as dificuldades de satisfação dos direitos dos credores

quando estão em causa, na mesma lide executiva, vários créditos privilegiados com o

mesmo valor e que incidem sobre o mesmo bem, todavia, sem que o valor da venda do

bem em si mesmo seja suficiente para acautelar todos esses créditos163.

159 Dispõe o artigo 78.º da Ley General Tributaria: “En los tributos que graven periódicamente los bienes o derechos inscribibles en un registro público o sus productos directos, ciertos o presuntos, el Estado, las comunidades autónomas y las entidades locales tendrán preferencia sobre cualquier otro acreedor o adquirente, aunque éstos hayan inscrito sus derechos, para el cobro de las deudas devengadas y no satisfechas correspondientes al año natural en que se exija el pago y al inmediato anterior”. 160 O n.º1 do artigo 78.º da Ley General Tributaria dispõe: “Los adquirentes de bienes afectos por ley al pago de la deuda tributaria responderán subsidiariamente con ellos, por derivación de la acción tributaria, si la deuda no se paga.” 161 Especial destaque para o parágrafo quarto do artigo 91.º da Ley Concursal que indica: “ (….) Los créditos tributarios y demás de Derecho público, así como los créditos de la Seguridad Social que no gocen de privilegio especial conforme al apartado 1 del artículo 90, ni del privilegio general del número 2.º de este artículo. Este privilegio podrá ejercerse para el conjunto de los créditos de la Hacienda Pública y para el conjunto de los créditos de la Seguridad Social, respectivamente, hasta el cincuenta por ciento de su importe. (…)” 162 Pode ler-se no ponto I. do preâmbulo do Real Decreto-Ley: “(…) La segunda de las premisas era acomodarel privilegio jurídico a la realidad económica subyacente, pues muchas veces el reconocimiento de privilegios carentes de fundamento venía a ser el obstáculo principal de los acuerdos pre-concursales. La tercera de las premisas era respetar en la mayor medida posible la naturaleza jurídica de las garantías reales (pero siempre, y tomando en cuenta la segunda premisa, de acuerdo con su verdadero valor económico)”. (disponível em https://www.boe.es/boe/dias/2014/09/06/pdfs/BOE-A-2014-9133.pdf, consultado em 14/05/15). 163 Como resulta do preâmbulo do diploma: “(…) Piénsese que de no adoptarse una medida como la presente resulta que los créditos privilegiados pueden multiplicarse ad infinitum cuando su garantía recae sobre un mismo bien, sin que el valor de dicho bien se vea en absoluto incrementado. Por poner un ejemplo práctico, hoy por hoy es posible tener cinco hipotecas de 100 sobre un bien que vale 100, llegándose así al absurdo de tener un pasivo privilegiado a efectos concursales por 500 garantizados por un bien que vale 100.(…) ”. A preocupação do legislador espanhol passa pela salvaguarda do princípio da igualdade entre os credores, uma vez que o privilégio creditório constitui uma importante exceção a tal princípio.

64

2.2.3 – Em Itália

A nossa análise à figura do privilégio creditório no ordenamento jurídico italiano

segue de perto o estudo do magistrado judicial italiano, SANDRO MERZ.164 Desde

logo o autor começa por definir responsabilidade patrimonial como a imputação de

todos os bens presentes e futuros, existentes na esfera patrimonial do devedor, ao

cumprimento da prestação por via coercitiva, mormente através do processo judicial

executivo165.

Contudo, ao debruçarmo-nos sobre a noção legal da figura verificamos de imediato

uma característica distinta que a mesma assume no ordenamento jurídico italiano, no

que diz respeito à sua origem. Se no nosso ordenamento jurídico dúvidas não se

suscitam quando à exclusiva natureza legal do privilégio, ou seja, o privilégio apenas

pode ser constituído por lei e nunca por vontade das partes, contudo o mesmo não se

pode afirmar face ao ordenamento jurídico italiano. O artigo 2745.º do CCI indica que

os privilégios creditórios podem ser constituídos por vontade das partes, mais ainda,

podem estar sujeitos a determinadas formas de publicidade166.

Quanto à natureza jurídica da figura, explica-nos o professor AUGUSTO

FANTOZZI167 que em Itália, a posição da doutrina maioritária reconhece ao privilégio

creditório especial o carácter de direito real de garantia, negando esse carácter ao

privilégio geral, em conformidade com o disposto no n.º2 do artigo 2747.º do CCI. Em

jeito de conclusão, é de realçar que nos ordenamentos jurídicos europeus analisados, a

discussão sobre a natureza jurídica dos privilégios creditórios passa por caminhos e

164 Cfr. SANDRO MERZ, Manuale pratico dei privilegi, delle prelazioni e delle garanzie”, 2.ªEdição, Padova, 1999, CEDAM, págs. 1 a 30; Sandro Merz é um magistrado judicial italiano que exerce funções na Corte di Appello de Veneza e autor de diversos estudos e obras jurídicas. A obra que serve de base para a nossa análise constituí um estudo profundo sobre os temas da responsabilidade patrimonial e, em especial, dos privilégios creditórios enquanto garantias creditórias. 165 Dispõe neste sentido o artigo 2740.º do CCI: “Il debitore risponde dell'adempimento delle obbligazioni con tutti i suoi beni presenti e futuri.” Entre nós, o artigo 601.º do CC, referente à garantia geral das obrigações, prescreve “Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.”. 166 Porém, como nos explica SANDRO MERZ, ob. cit., pág.22, a criação de privilégios creditórios por acordo de vontades pressupõe que o privilégio seja um dos previstos pela lei. No fundo o acordo de vontades funciona como um instrumento que torna o privilégio operativo, pois a única fonte constitutiva do privilégio no ordenamento jurídico italiano é a lei, pelo que não estamos perante privilégios criados por vontade das partes, simplesmente o legislador italiano prevê a possibilidade de a sua operatividade ser subordinada à vontade das partes. 167 Cfr. AUGUSTO FANTOZZI, “Diritto tributário”, 4ªEdição, UTET GIURIDICA Editora, Torino, 2012, pág. 523, disponível em https://books.google.pt/books?id=A5h8oDNsSekC&pg=PA524&lpg=PA524&dq=la+natura+giuridica+privilegi&source=bl&ots=l0MazrGO2r&sig=-WVVvAqeFnu0MWJZRDCradI635s&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwiTlPvM86vJAhVJPxQKHaaFBvE4ChDoAQglMAE#v=onepage&q=la%20natura%20giuridica%20privilegi&f=false (consultado em 08/06/15); Como explica o autor, a doutrina maioritária em Itália defende ainda aplicabilidade do direito de sequela atribuído pelo n.º2 do artigo 2747.º do CCI ao privilégio mobiliário especial e ao privilégio imobiliário especial. Neste sentido, ver ainda, SALVATORE PUGLIATTI, “Scritti Giuridici, Vol. III, 1947-1957”, Milano, Giuffrè Editore, 2010, pág.1442, disponível em https://books.google.pt/books?id=qXKBhiAyvu8C&printsec=frontcover&hl=ptPT#v=onepage&q&f=false (consultado em 08/06/15);

65

linhas de pensamento semelhantes aos encontrados na doutrina e jurisprudência

nacionais, todavia, culminando a discussão com o reconhecimento da verificação de um

direito de sequela em favor do privilégio especial mas já não em favor do privilégio

geral.

De facto, atentas as características dos direitos reais, em especial, dos direitos reais

de garantia e as próprias exigências decorrentes do princípio da especialidade do objeto

do potestas que lhe é inerente, sempre se diga que a generalidade e indeterminação que

caracterizam os privilégios gerais, dificultam a sustentabilidade de uma posição que

atribui o carácter de direito real de garantia a todos os privilégios creditórios sem mais.

3 – Características dos Privilégios Creditórios e do seu do regime legal decorrente do

CC

3.1 – O Carácter Legal

Analisando os elementos e características intrínsecas dos privilégios creditórios,

desde logo sobressaí o seu carácter exclusivamente legal168, como aliás resulta da noção

legal da figura fornecida pelo próprio legislador. Verificamos que a maioria dos

privilégios creditórios constituídos no nosso ordenamento jurídico tem em vista a

salvaguarda de interesses relacionados com a própria natureza do direito de crédito,

como é o caso particular dos créditos tributários.

Porém e em outro tipo de casos, o fundamento por detrás do privilégio assenta na

especial relação do crédito com o bem sobre o qual incide o privilégio, como é o

exemplo o privilégio creditório conferido ao proprietário do prédio do empreendimento

explorado em regime de direito real de habitação periódica169. Já no que diz respeito aos

privilégios atribuídos em função da qualidade do próprio credor (os antigos privilegium

personae no Direito Romano), atento o princípio da igualdade entre credores pelo que

se pauta o nosso ordenamento jurídico em matéria obrigacional, foram abandonados

pelo nosso legislador. Desta forma, é negada aos particulares a possibilidade de, por ato

da vontade, criarem ou constituírem privilégios creditórios para garantia dos seus

168 Dispõe o art.733.º do CC: ”Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outro”.(sublinhado nosso) 169 Esta é uma característica “intemporal” dos privilégios creditórios. No antigo Império Romano, a figura do privilégio creditório subdividia-se nos já abordados “privilegium causae lato sensu” e “privieligium personae”. Sobre a distinção ver supra ponto 1.1 do Capítulo II.

66

créditos, circunstância esta que demonstra a exclusividade, a especialidade destas

garantias170, bem como a imperatividade das normas jurídicas que compõe o seu regime

jurídico.

De facto e enquanto uma garantia das obrigações, o privilégio creditório representa

todavia uma derrogação ao princípio geral da igualdade entre credores, decorrente do

n.º1 do artigo 604.º do CC, na medida em que concretiza uma prioridade na satisfação

dos créditos dos quais é acessório, em face dos demais créditos comuns. Atento o seu

carácter exclusivamente legal, as vicissitudes e elementos que norteiam o

funcionamento dos privilégios creditórios no tráfego jurídico são definidas pelo

legislador.

Neste sentido, a lei define como e de que forma os privilégios se organizam entre

si171, quais as regras de prevalência de uns face a outros e ainda, a sua relação com as

demais garantias das obrigações.

Logicamente, atentas estas considerações, facilmente se concluí que as características

e o regime legal deste instituto não pode ser modificado por vontade das partes. De

notar que esta vertente excecional que tanto caracteriza os privilégios creditórios foi

expressamente concretizada pelo legislador do CC de 1966, como se pode retirar do

disposto no artigo 8.º do Diploma Preambular que aprova o CC172, indicações que tem

sido sucessivamente desconsideradas pelo legislador, já que hoje assistimos a uma

proliferação dos privilégios creditórios, tendo sido criados pelo legislador variadíssimos

privilégios em legislação especial.

Devemos contudo questionar o sentido e alcance desta proibição imposta pelo

legislador do CC relativamente à possibilidade de o legislador ordinário criar novos

privilégios além dos previstos no CC. Por um lado, não sendo o CC um diploma legal

com valor reforçado, poderíamos discutir a validade desta proibição para o futuro,

170 Todavia esta nem sempre foi a regra no ordenamento jurídico português. Antes da entrada em vigor do CIRE, o CPEREF previa dois casos de constituição de privilégios creditórios por acordo das partes. Desde logo no n.º1 do artigo 65.º do sobredito diploma estipulava a possibilidade de os créditos visados pelo artigo usufruírem de privilégio creditório, desde que o juiz, mediante proposta do gestor judicial com parecer favorável da comissão de credores, os declarasse como contraídos no interesse da empresa e dos credores. Também a alínea b) do n.º1 do artigo 101.º do CPEREF previa a possibilidade de a empresa em dificuldades económicas conceder créditos privilegiados como uma contrapartida da obtenção dos fundos necessários à sua reabilitação, constituindo-se assim privilégios creditórios por vontade das partes. Já em Itália, como nos explica SANDRO MERZ, ob. cit., págs. 9 e ss a possibilidade de os particulares constituírem entre si privilégios creditórios não põe em causa o carácter legal dos mesmos, uma vez que essa mesma possibilidade é, em exclusivo, definida e determinada pelo legislador. 171 Cfr. art. 745.º do CC. 172 Prescreve o artigo 8.º do DL n.º 47344/66, de 25 de Novembro dispõe: “1. Não são reconhecidos para o futuro, salvo em acções pendentes, os privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no novo Código Civil, mesmo quando conferidos em legislação especial. 2. Exceptuam-se os privilégios e hipotecas legais concedidos ao Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, quando se não destinem à garantia de débitos fiscais.” (sublinhado nosso).

67

sustentando que o legislador não pode considerar-se por ela vinculado do ponto de vista

jurídico.

Não obstante a validade e veracidade destas considerações, sempre se diga que a

indicação do n.º1 do art.8.º do Diploma Preambular que aprovou o CC possui uma

vinculação teleológico-jurídico, ou seja, embora não retirando qualquer validade e

eficácia jurídica às leis avulsas que consagram novos privilégios, ela possui um carácter

orientador não vinculativo, sugerindo que o legislador futuro deve abster-se de recorrer

injustificadamente à figura do privilégio creditório, atentos os efeitos nocivos que

provoca no tráfego e comércio jurídicos.

Neste sentido, concordamos com as palavras do saudoso e malogrado professor

ANTUNES VARELA173, quando afirma que “ (…) o grande perigo dos privilégios

creditórios para a segurança do comércio jurídico advém do facto de eles valerem em

face de terceiros, independentemente de registo. (…) Assim se explica a orientação

vincada no Código Civil (art. 8.º da Lei de introdução – Dec.- Lei n.º 47344, de

26.11.1966) de declarada reacção contra a proliferação de privilégios da legislação

anterior (…) Infelizmente, a tendência para usar e abusar dos privilégios creditórios

renasceu na legislação posterior, com graves repercurssões para a economia nacional

em muitas das acções propostas contra empresas em situação financeira difícil. (…)”.

3.2– Acessoriedade

Da noção legal ínsita no artigo 733.º do CC retira-se não apenas o carácter legal da

figura do privilégio creditório, como resulta também a relação de interdependência entre

este e o crédito abrangido. Sobre este aspeto MIGUEL LUCAS PIRES afirma que o

privilégio creditório se configura como uma muleta do direito de crédito, atenta a

circunstância de a razão de ser do mesmo residir na qualidade do crédito que visa

assegurar174. Esta relação de interdependência entre privilégio creditório e direito de

crédito assume principal importância uma vez que as eventuais modificações objetivas

ou subjetivas que podem verificar-se face ao direito de crédito terão, necessariamente,

consequências para o privilégio.

173 Cfr. ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7.ªEdição, Coimbra, 1997, pág. 572 174 Cfr. MIGUEL LUCAS PIRES, ob.cit. pág. 39. Ao contrário do autor, optamos por enquadrar a nossa análise ao impacto que os fenómenos de sub-rogação de créditos e da transmissão singular de dívidas assumem perante o privilégio creditório como uma faceta do carácter acessório do privilégio face ao crédito e não como uma decorrência do carácter legal do mesmo.

68

Neste sentido podemos questionarmo-nos sobre quais os efeitos de uma eventual

transmissão do direito de um crédito privilegiado, ou ainda, de que forma é que a

extinção do direito de crédito (por outro motivo que não o cumprimento da obrigação)

afeta o privilégio creditório.

Sobre a primeira interrogação, dedicamos a nossa atenção para os fenómenos de sub-

rogação de créditos, bem como de que forma podem afetar as relação entre o privilégio

e o crédito, em especial, como podem afetar o crédito tributário privilegiado. Ora, como

nos elucidam os saudosos professores ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA175, a

sub-rogação funciona como uma forma de transmissão do crédito que tem por base o

pagamento de uma determinada dívida por um terceiro alheio à relação obrigacional. O

legislador distingue dois tipos de sub-rogação: a sub-rogação convencional176 e a sub-

rogação legal. Quanto aos efeitos da sub-rogação, o n.º1 do artigo 593.º do CC estipula

que o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes

que a este competem.

Porém a interpretação deste artigo deve ser feita em concordância com a remissão

operada pelo legislador no artigo 594.º para o disposto nos artigos 582.º a 584.º do CC,

ou seja, para o regime da cessão de créditos. Deste modo, concluímos que, por força do

disposto no artigo 582.º do CC, o terceiro que fique sub-rogado na posição do credor

originário, além do direito de crédito, adquire também “as garantias e outros acessórios

do crédito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”177.

Coloca-se a questão de saber de que forma é que o regime jurídico civilístico da

figura da sub-rogação pode afetar a dinâmica da relação jurídico-tributária e, em

especial, as garantias inerentes ao crédito tributário. No artigo 41.º da LGT o legislador

prevê genericamente a possibilidade de o crédito tributário ser satisfeito por terceiro.

Assim, centremos momentaneamente a nossa atenção sobre a figura da sub-rogação de

créditos, cujo regime se encontra nos artigos 91.º e 92.º do CPPT.

175 Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ªEdição, 1987, Coimbra, Coimbra Editora, págs. 604 e ss. 176 Cfr. neste sentido o disposto nos arts. 589.º, 590.º e 591.º do CC. A sub-rogação convencional requer o acordo de vontades entre as partes (credor e terceiro no caso previsto no artigo 589.º do CC e entre o devedor e o terceiro, sem a intervenção do devedor), ao passo que nos casos de sub-rogação legal (art.592.º do CC), não se exige um acordo de vontades, bastando, em certas circunstâncias, o simples pagamento efetuado por terceiro. Para um estudo mais aprofundado sobre o fenómeno da sub-rogação, ver ANTUNES VARELA, “Das Obrigações…”, Vol. I, ob. cit., págs. 334. 177 Relativamente à figura da sub-rogação, suas características e para uma sucinta descrição do seu modus operandi, vejam-se as conclusões do Ac. do STJ de 12/09/13, relativo ao processo n.º 749/08.0TBTNV.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/75a903b2a106392c80257be8002ef7cf?OpenDocument (consultado em 10/02/15).

69

Relativamente aos efeitos da sub-rogação sobre as garantias conexas ao crédito

tributário, o n.º1 do artigo 92.º do CPPT indica que “a dívida paga pelo sub-rogado

conserva as garantias, privilégios e processo de cobrança (…).”. À primeira vista, esta

solução parece contrariar os próprios fundamentos por detrás da garantia do crédito

tributário, em especial, dos privilégios creditórios que lhe são inerentes, na medida em

que o carácter privilegiado resulta da natureza pública do mesmo178 e não da pessoa do

credor – a Fazenda Pública.

Contudo, refletindo sobre os efeitos do instituto da sub-rogação, o que se verifica é a

satisfação integral desse mesmo crédito público mediante o pagamento oferecido pelo

terceiro. Embora não se constitua um direito de crédito novo a favor do sub-rogado,

sustentamos a posição defendida pelo Juiz Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA,

que afirma que o direito que se transmite ao sub-rogado emerge de uma relação jurídica

tributária anterior179. Nesse sentido, os efeitos jurídicos da sub-rogação operam em

exclusivo sobre o âmbito subjetivo da mesma, não afetando qualquer característica do

direito de crédito. Assim, permanecendo inalterada a origem e natureza do crédito, dada

a acessoriedade que caracteriza a relação entre o crédito e o privilégio, este permanecerá

inalterado, beneficiando assim o novo titular de um crédito privilegiado180.

3.3 – A Indivisibilidade dos Privilégios

Na noção de privilégio que nos oferece o artigo 733.º do CC, o legislador optou por

não referir expressamente o objeto do privilégio creditório, fazendo apenas alusão à

satisfação do crédito através do pagamento preferencial dos credores privilegiados. Por

outro lado, o artigo 753.º do CC ao introduzir uma remissão para as disposições do

178 Os privilégios creditórios a favor dos créditos tributários são verdadeiros privilegium exigendi, isto é, são atribuídos em razão dos especiais motivos subjacentes ao crédito que cuja satisfação visam garantir. Note-se que a cobrança do tributo pode ser promovida quer por agentes públicos, como também, nos casos especialmente previstos pela lei, por agentes privados, daí que estes privilégios não possam considerar atribuídos em função da qualidade da pessoa do credor. Em consonância, sempre se diga que na eventualidade de o crédito a cobrar ser um crédito privilegiado, o agente privado beneficia do privilégio, pois este é atribuído ao crédito em si e não à pessoa do credor. Neste sentido, vejam-se as considerações de HUGO FLORES DA SILVA, “Privatização do Sistema de Gestão Fiscal”, Braga, 2014, Coimbra Editora, págs. 144 e ss.,relativas ao conceito de sujeito ativo da relação jurídica tributária. No mesmo sentido, ver ainda, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Apontamentos de Direito Tributário (A Relação Jurídica Tributária) ”, págs. 21 a 24. Em sentido distinto, veja-se MIGUEL LUCAS PIRES, ob.cit., 2.ª Edição, pág.66, nota de rodapé n.º 202. 179 Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, “Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado”, Vol. I, 5.ªEdição, 2006, pág. 646, comentário 2 ao artigo 92.º do CPPT. Em sentido d 180 De resto esta tendo sido a solução adotada pela jurisprudência nacional. Vejam-se, por exemplo, o Ac. do TRL de 30/11/10, referente ao processo n.º 4021-E/1986.L1-7, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/7a05072f7b48ea10802578060058b25d?OpenDocument e ainda, o Ac. do TCA Sul de 23/10/2007, relativo ao processo n.º 01751/07, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/a10cb5082dc606f9802565f600569da6/c7dea4f9416bd58a802573800047750f?OpenDocument.

70

regime da hipoteca, torna aplicável aos privilégios creditórios o disposto no artigo 696.º,

preceito este referente à indivisibilidade da hipoteca. Coloca-se a esta parte a dúvida: E

se o devedor apenas cumpre parcialmente com o dever de pagar? O privilégio reduz-se

ou permanece inalterado?

Atentas as considerações já tecidas sobre as funções e razões inerentes à figura do

privilégio creditório, devemos concluir que o privilégio é uma garantia que abrange a

totalidade do crédito e não parte ou partes deste – o privilégio creditório é pois

indivisível, na medida em que assegura o cumprimento integral da prestação por parte

do devedor. Nem outra solução poderia configurar-se pois a faculdade que é conferida

pelo privilégio pressupõe a venda de um ou mais bens para que assim se realize o

produto da venda dos mesmos.

Será a partir desse mesmo produto da venda que os créditos existentes serão

graduados e satisfeitos. Mesmo nos casos em que se verifica um cumprimento parcial

da prestação debitória, não se pode afirmar que o credor renunciou às restantes parcelas

da prestação.

No mesmo sentido, se o crédito privilegiado é parcialmente satisfeito o privilégio

creditório subsiste e cumpre a sua função de garantia em relação às restantes parcelas da

prestação.

Duas últimas notas sobre a indivisibilidade objetiva do privilégio para abordarmos,

em primeiro lugar, os casos em que a titularidade dos bens sobre os quais incide o

privilégio se encontra dividida por vários sujeitos. Neste tipo de casos o privilégio pode

ser exercido para a cobrança do crédito, sobre a parcela do bem da qual o devedor é

titular.

Em segundo lugar deparamo-nos com o já clássico problema de distinção entre os

efeitos garantísticos dos privilégios consoante a maior ou menor determinabilidade do

objeto. No que toca aos privilégios especiais não subsistem grandes dúvidas uma vez

que o bem sobre que incide está previamente determinado. Todavia o mesmo já não se

pode concluir face aos privilégios gerais, uma vez que os bens sobre os quais o

privilégio incide apenas são definidos aquando da penhora e mais, se os bens em causa

tiverem sido alienados a terceiros, o credor que goze de privilégio geral, atento o

disposto no artigo 749.º do CC, não possuí qualquer direito de sequela sobre os

mesmos. Analisando o carácter indivisível do privilégio pelo prisma dos sujeitos,

71

coloca-se a questão de saber como se comporta o privilégio perante uma relação

creditória com múltiplos titulares.

Atendendo ao tema do nosso estudo, releva em particular a análise dos casos de

pluralidade de sujeitos passivos que se encontram adstritos ao vínculo obrigacional, face

aos quais o privilégio creditório incidirá sobre a totalidade dos bens existentes nas

esferas patrimoniais dos devedores.

A pluralidade de devedores não é de todo uma realidade alheia ao privilégio

creditório, especialmente no que diz respeito à dinâmica da relação jurídica tributária,

muito por força do instituto da responsabilidade tributária subsidiária cujos efeitos se

concretizam no âmbito do processo de execução fiscal, nomeadamente através do ato

administrativo que decreta a reversão do processo de execução fiscal contra

responsáveis tributários subsidiários. Nesse sentido, verificada a manifesta insuficiência

do património do devedor originário (executado) para satisfazer o montante da dívida

exequenda, o processo executivo irá incidir sobre a esfera patrimonial dos responsáveis

tributários, com vista à cobrança da quantia exequenda.

Resta-nos concluir que estando em causa uma dívida tributária garantida por

privilégio creditório, em caso de reversão contra os responsáveis tributários, atentos os

efeitos da indivisibilidade dos privilégios, a eficácia jurídica destes irá também incidir

sobre os bens existentes na esfera patrimonial de cada um desses responsáveis.

3.4 – O carácter oculto dos privilégios: o problema da segurança e paz jurídicas

Relembrando a noção de garantia real - o instituto jurídico que confere ao credor o

poder de conduzir e afetar o produto da venda dos bens do devedor ao pagamento

preferencial do seu crédito, em detrimento dos demais credores181 - a importância desta

figura verifica-se não apenas no plano do comércio jurídico, como ainda face ao

desenvolvimento e crescimento económicos, na medida em que se assume como o

instrumento jurídico responsável por facilitar o recurso ao crédito182.

181 Esta é uma das enunciações possíveis do conceito de garantia real. Na doutrina, merece destaque a noção oferecida por PEDRO MARTÍNEZ e PEDRO FUZETA DA PONTE, últ. ob. cit., pág. 167. Na jurisprudência, no supra citado Ac. do STA de 27/10/2010, referente ao proc. Nº 0481/10, no qual o Juiz Conselheiro do STA Jorge de Sousa explica-nos no seu voto de vencido“ (…) Com efeito, o conceito de «garantia real» contrapõe-se ao de «garantia pessoal» e poderá interpretar-se como reportando-se a todas as garantias que reconduzem ao poder de o credor aproveitar o valor de coisas para a cobrança do seu crédito (…)”. 182O exemplo paradigmático é o dos contratos de mútuo bancário, cuja celebração é hoje tradicionalmente acompanhada pela constituição de hipotecas ou outras garantias para assegurar o cumprimento do contrato e a confiança da instituição de crédito bancária de que conseguirá reaver a quantia mutuada.

72

Atento a relevância socioeconómica deste instituto jurídico, na doutrina jurídico-

civilística183 são várias as posições que sustentam que o processo de constituição das

garantias reais não pode ser dificultado pelos procedimentos relacionados com as

exigências de segurança e certeza jurídica inerente à sua publicidade.

MENEZES CORDEIRO184 fala-nos a esta parte da criação da fidúcia185, figura que

permite ao devedor conceder uma garantia ao credor através de dois negócios jurídicos

distintos. Num primeiro negócio (mancipatio ou pacto fiduciário) o devedor transmitia

o seu direito de propriedade sobre o bem, comprometendo-se assim perante o credor. Já

no segundo negócio, o credor assume perante o devedor a obrigação de restituir esse

mesmo direito de propriedade sobre o bem, uma vez satisfeito o seu direito de crédito

sobre o devedor.

Entre nós, a publicidade da constituição de garantias creditórias, em especial, de

garantias reais, é hoje regra geral no nosso ordenamento jurídico.

Todavia, esta regra encontra nos privilégios creditórios186 uma importantíssima

exceção, atentas as características em torno da sua constituição e eficácia jurídica. Neste

sentido, ao contrário da hipoteca, caracterizamos os privilégios creditórios pelo seu

carácter oculto, atenta a inexigibilidade da prática de qualquer ato de registo ou

publicidade da sua constituição e existência, o que facilita inquestionavelmente a sua

constituição e introdução no tráfego jurídico.

Como nos explica PAULO CUNHA187, as exigências de publicidade das garantias

reais prendem-se com o facto de estas constituírem no património do devedor uma

preferência sobre o valor dos bens existentes. É essencial para os demais agentes do

tráfego jurídico conhecer da existência destas garantias, de modo a evitar que no âmbito

das relações obrigacionais com o titular do património onerado por garantais reais, não

183 Cfr. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, “Código Civil Anotado”, Vol. I., Coimbra, 4.ªEdição, 1987, pág. 755, nota 2 ao artigo 733.º. Sustentam os excelentíssimos professores que “ (…) A dispensa de registo, e consequentemente a falta de publicidade, tem os mais graves inconvenientes. Tem sido a causa de severas críticas a esta garantia, que não é conhecida dos direitos alemão e suíço, mais exigentes na protecção da boa-fé de terceiros, e foi motivo das limitações feitas pelo novo Código aos privilégios imobiliários (….).” 184 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Parecer acerca das Hipotecas a favor de Bancos Prediais”, in Coletânea de Jurisprudência, Tomo III, págs. 56 e ss. apud CLÁUDIA MADALENO, “A Vulnerabilidade das Garantias Reais”, Coimbra, 2008, Coimbra Editora, pág. 38, nota de rodapé n.º 65. 185 Este é também um exemplo de um instituto jurídico de reforço das garantias em favor do credor, com demarcados traços de garantia real. Para uma análise mais desenvolvida sobre a figura do negócio fiduciário, ver, por todos, o estudo de ANDRÉ FIGUEIREDO, “O Negócio Fiduciário perante Terceiros”, disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/7340/1/Figuiredo_2012.PDF (consultado em 06/06/15) 186 Mas são apenas os privilégios creditórios que afastam a regra da publicidade da constituição de garantias reais. Outros exemplos de garantias reais cuja constituição não importa o ónus publicista são o direito de retenção (cfr. arts. 754.º e 755.º do CC) e o penhor de coisas (cfr. art. 669.º do CC). 187 Cfr. PAULO CUNHA, “Da garantia nas obrigações”, Apontamentos das aulas do 5.º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no ano lectivo de 1938-1939, apud., MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit. pág. 85, nota de rodapé 192.

73

sejam surpreendidos pela impossibilidade de verem os seus créditos satisfeitos, por

verificarem que o produto da venda desse património se encontra total ou

maioritariamente adstrito à satisfação de créditos privilegiados. Concluí o autor que

apenas devem ser oponíveis a terceiros as garantias por estes conhecidas ou, pelo

menos, que lhes sejam cognoscíveis.

Deste modo, em caso de impossibilidade de satisfação do seu crédito por

esgotamento do produto da venda dos bens do património do devedor em favor, por

exemplo, de créditos hipotecários, o credor apenas poderia responsabilizar-se a si

próprio pelo prejuízo decorrente do desconhecimento face aos ónus que recaíam sobre o

património do devedor.

Na doutrina nacional, em especial no seio jurídico-civilístico, várias vozes se têm

levantado em defesa de um sistema de garantias assente na obrigatoriedade do registo

como um requisito de eficácia das mesmas, indo até mais longe e propondo um sistema

assente no princípio da publicidade dos direitos reais. Uma das vozes mais importantes

na defesa desta tese é a do Professor MOTA PINTO188 que, em semelhança do que se

verifica no ordenamento jurídico francês, sustentava a importância da afirmação plena

de um princípio da publicidade dos direitos reais, sujeitando-se toda a transferência ou

constituição deste tipo de direitos à obrigatoriedade de registo, cumprindo-se uma

exigência de publicidade que permita a qualquer agente do comércio jurídico indagar do

percurso de um direito real desde da sua constituição até à sua extinção. Nas palavras do

malogrado professor: “ (…) Por detrás desta nota devemos colocar o interesse da

comunidade; o tráfico jurídico tem de ser fluente, não pode sofrer demoras excessivas

no seu processamento e, sobretudo, tem de ser seguro, certo, as pessoas não podem

estar à mercê de surpresas. Não é conveniente que os actos mediante os quais se

adquirem direitos reais, possam vir a ser destruídos por ilegitimidade de quem fez a

alienação. Para tal esses actos [os de publicidade da transmissão e constituição de

direitos reais] devem ser públicos, fornecer a possibilidade de conhecimento geral, para

que seja conhecida a situação jurídica das coisas (…)”.

Poderíamos contra argumentar esta tese atenta a obrigatoriedade de publicitação da

própria lei, isto é, afirmar que as exigências de publicidade dos privilégios creditórios

188 Cfr. CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, “Direitos Reais. Apontamentos das Lições ao 4.º ano Jurídico de 1970-1971”, Coimbra, Almedina Editora, 1971, págs. 191 e ss., apud., MIGUEL LUCAS PIRES, ob.cit., pág. 86, nota 96.

74

são satisfeitas através da obrigatoriedade de publicação dos instrumentos legislativos

que os introduzem no tráfego jurídico.

Porém e salvo mui respeitosa opinião em contrário, parece-nos que se trata de um

argumento frágil pois vivemos tempos de produção e publicação legislativas em massa,

com nova legislação a ser publicada em Diário da República quase que a um ritmo

diário, circunstâncias que se revelam prejudiciais para os agentes do tráfego jurídico, na

medida em que reduzem a sua confiança e segurança quanto à efetiva satisfação dos

seus interesses creditórios.

De facto, como aliás já tivemos a oportunidade de afirmar, o carácter oculto do

privilégio creditório enquanto um instrumento de garantia do crédito, quando associado

com o direito de sequela, coloca sérios entraves à concretização do princípio da

igualdade entre credores, previsto no n.º1 do artigo 604.º do CC. Atento todo este

circunstancialismo, é legítimo questionarmo-nos sobre a constitucionalidade das normas

que introduzem privilégios creditórios, isto é, se tais preceitos violam o princípio da

igualdade decorrente do artigo 13.º da CRP189, em especial, nos casos em que o

processo judicial para a cobrança dos créditos seja desencadeado por um credor não

privilegiado.

Sobre esta questão pronunciaram-se os Juízes Conselheiros do Tribunal

Constitucional no Acórdão n.º 688/98, de 15/12/98190, no qual o Tribunal explicita os

motivos pelos quais as normas que consagram privilégios creditórios gerais em favor de

determinados créditos, não violam o princípio constitucional da igualdade, uma vez que

constituem exceções legitima e fundamentadamente justificadas e explicitadas pelo

189 Sobre o princípio da igualdade, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, últ. ob. cit. pág. 336 e ss., explicam-nos que o mesmo comporta uma tridimensionalidade que se subdivide na vertente liberal, na vertente democrática e ainda, numa vertente social, intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana. Como limite externo, prosseguem os autores, o princípio da igualdade encontra a proibição do arbítrio, limite este que se impõe à liberdade de atuação dos agente públicos, “(…)servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo(…)”. 190 Citando a referida decisão: “ (…) É certo que, excluída as excepções consagradas no nº 2 do artº 604º do Código Civil - exclusão expressamente ressalvada no seu nº 1 - neste último se estatui que os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para a satisfação integral dos débitos. (…) Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importa analisar se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artº 10º do D.L. nº 103/80, tendo como pano de fundo (reitera-se) a par conditio creditorum estabelecida pelo principal compêndio legislativo civil, é perspectivável como uma arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante (ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio). A resposta a esta questão deve, no entender do Tribunal, sofrer resposta negativa. Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido que é que uma importante parte dos réditos da segurança social advêm das contribuições impostas para esse fim, designadamente as a cargo ou da responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes. (…) Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63º da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos, comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de qualquer garantia especial. (…) ”.Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980688.html;

75

legislador ordinário para a satisfação de créditos públicos com consagração

constitucional no artigo 63.º da Lei Fundamental. Em suma, concordamos com os

fundamentos invocados pelos Juízes Conselheiros para demonstrar a

“constitucionalidade” das normas que instituem privilégios creditórios gerais face ao

princípio da igualdade. A relação jurídica que se estabelece entre os particulares e a

Segurança Social não é uma relação de tendencial paridade, na medida em que o

Instituto da Segurança Social atua na mesma dotado de ius imperii, necessário para que

possa cumprir as atribuições que lhe são impostas pela Lei.

Nesse sentido, a relação jurídica é desigual ab initio, nunca se verificando uma

verdadeira igualdade de posições entre o contribuinte e a entidade credora, pelo que o

próprio crédito em causa se assume verdadeiramente como um crédito essencial para a

realização das tarefas fundamentais do Estado, em especial, para garantir o

funcionamento do sistema de Segurança Social. Contudo, não poderíamos deixar de

fazer alusão aos motivos da não concordância apresentados pela Juíza Conselheira

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza no seu voto de vencida191, em especial, a

configuração da questão sub judice e dos princípios constitucionais em causa, que

sustenta em suma, a inconstitucionalidade da norma jurídica que consagra o privilégio

creditório mobiliário geral, por violação dos princípios constitucionais da proteção da

confiança e da proporcionalidade.

Desde logo as questões levantadas pela Conselheira Maria Beleza colocam a tónica

da questão sob a perspetiva jurídico-material dos efeitos do privilégio creditórios no

concurso de credores e não tanto na atividade de cobrança das receitas do erário

público, deixando algumas notas para reflexão no que à forma como essa atividade é

desenvolvida pelas entidades públicas responsáveis e ao próprio sacrifício que não raras

vezes é imposto aos credores não privilegiados.

Em jeito de conclusão, sustentamos a posição de que o carácter oculto dos privilégios

creditórios assume inevitáveis efeitos nocivos para a segurança e certeza do tráfego

jurídico, efeitos que devem ser menorizados. Atentas as desigualdades que cria entre

191 De acordo com a Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza: “ (…) a norma objecto do presente recurso contraria os princípios constitucionais da protecção da confiança e da proporcionalidade. Viola o princípio da protecção da confiança porque o exequente credor comum vê o seu crédito ultrapassado por outros que sobre ele preferem, sem ter o ónus ou, a mais das vezes, a mera possibilidade de os conhecer quando decide instaurar a acção executiva, da qual frequentemente acaba por não tirar qualquer proveito. Acresce que a preferência, tal como é conferida, não toma em conta a prioridade relativa na constituição dos créditos, não tem limites temporais e não é objecto de publicidade. Infringe o princípio da proporcionalidade porque, apesar das características apontadas, a preferência é absoluta, não permitindo a ponderação concreta do sacrifício sofrido pelos credores em confronto, lesando sempre um deles independentemente das circunstâncias do caso. Note-se que a Segurança Social tem, como qualquer credor, o poder de tomar a iniciativa na instauração das acções executivas para cobrança dos créditos de que é titular.

76

credores, o privilégio creditório deve ser utilizado pelo legislador com um critério

responsável, cuidado e devidamente fundamentado, primordialmente para a cobrança de

créditos públicos. Não obstante e apesar dos problemas e dificuldades que possa criar

no seio do concurso de credores para aqueles que não beneficiam de qualquer causa

legítima de preferência, o privilégio creditório é inquestionavelmente necessário para a

garantia dos créditos públicos, em especial, dos créditos tributários.

Na nossa humilde opinião consideramos possível cumprir as exigências da doutrina

sobre a publicidade da figura do privilégio, contudo sem a necessidade de provocar uma

nova reforma legislativa que certamente se demonstraria complexa e que poderia até

criar ainda mais dificuldades na tarefa de interpretação e concretização do complexo

normativo das garantias creditórias. Concretizando sucintamente os caminhos que

percorreremos infra192, aquando da enumeração de soluções tendo em vista a

publicitação dos créditos privilegiados, em matéria de tributária foi com surpresa que

assistimos à criação da chamada “Lista de Devedores”, através da introdução da atual

redação do n.º 5 do art. 64.º da LGT, pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Lei

do Orçamento de Estado de 2006).

Este instrumento tem-se revelado bastante eficaz na tarefa de identificar os

contribuintes que se encontram em situação de incumprimento perante a Administração

Tributária, ao mesmo tempo que respeita os limites que lhe são colocados pelo princípio

da confidencialidade tributária. Como teremos ainda a oportunidade de aprofundar na

presente dissertação, consideramos que este novo instrumento de política tributária

poderá ser utilizado, por exemplo, para cumprir com as exclamações gritantes na

doutrina quanto à importância dos terceiros que contratam com o devedor de créditos

privilegiados, da existência deste tipo de ónus que impendem sobre os elementos que

compõem a sua esfera patrimonial.

192 Cfr. o ponto 2.1 do Capítulo IV. De realçar que esta não é uma solução propriamente inovadora no contexto internacional das políticas de combate à fraude e evasão tributárias. Nos Estados Unidos da América, são vários os governos federais dos que optam pela divulgação de uma lista pública dos devedores de créditos tributários. São exemplos os Estados da Carolina do Norte (http://www.dor.state.nc.us/collect/delinquent.html), o Estado do Connecticut (http://www.ct.gov/drs/cwp/view.asp?a=1453&q=328618), o Estado da Florida (http://dor.myflorida.com/dor/taxes/delinquent_taxpayer.html) e ainda, o Estado de New York (https://www.tax.ny.gov/enforcement/warrants.htm).

77

3.5 - Da Extinção dos Privilégios Creditórios

Sobre as causas e os efeitos da extinção dos privilégios creditórios, no artigo 752.º do

CC o legislador optou por remeter o intérprete aplicador do direito para o regime

jurídico previsto para o “direito de hipoteca”, ou seja, para o disposto no artigo 730.º

mesmo diploma legal193. Desde logo destacamos a causa de extinção prevista na alínea

a) do citado preceito - a extinção da obrigação principal – já que demonstra e realça a

relação de acessoriedade por que se pauta a dinâmica entre o crédito e o privilégio.

Sobre a extinção da obrigação principal como uma causa de extinção do privilégio

creditório, logicamente que, para além do cumprimento da obrigação em sentido estrito,

devemos também enunciar como causas de extinção das obrigações em geral a dação

em cumprimento194, a consignação em depósito195, a compensação196, a novação197, a

remissão198, a confusão199 e ainda as demais causas que decorrem do decurso do tempo,

como é o caso da prescrição200.

A esta parte impõem-se uma clarificação em relação à aplicabilidade das causas de

extinção dos privilégios no âmbito da relação jurídica obrigacional tributária.

Ora, atentas as limitações decorrentes do princípio da irrenunciabilidade do crédito

por parte do credor tributário, algumas das causas de extinção das obrigações supra

enunciadas não serão aplicáveis em sede tributária201. Deste modo, não serão abordados

os institutos da consignação em depósito e o da novação. Neste sentido, com a extinção

da obrigação principal, o privilégio seguirá o mesmo destino, a extinção.202

193 Dispõe o artigo 730.º do CC sobre as causas de extinção da hipoteca: “A hipoteca extingue-se: a) Pela extinção da obrigação a que serve de garantia; b) Por prescrição, a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação; c) Pelo perecimento da coisa hipotecada, sem prejuízo do disposto nos artigos 692.º e 701.º; d) Pela renúncia do credor.” 194 Cfr. arts. 837.º e ss do CC. 195 Cfr. arts. 841.º e ss do CC. 196 Cfr. arts. 847.º e ss do CC. 197 Cfr. arts. 857.º e ss do CC. 198 Cfr. arts. 863.º e ss do CC. 199 Cfr. arts. 868.º e ss do CC. 200 Cfr. arts. 300.º e ss do CC. Interessante a esta parte são as considerações de ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA sobre a aplicação dos efeitos decorrentes da prescrição aos privilégios creditórios. Os autores sustentam que dentro dos critérios do Código, deve ser aplicada à extinção dos privilégios, bem como da hipoteca, não a prescrição, mas antes a caducidade. Cfr. a este respeito ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ. ob. cit., pág. 771, nota 1 ao artigo 752.º do CC. 201 Cfr. neste sentido, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA , “Apontamentos….”, ob. cit., págs. 67 e ss. 202 Contudo, a lei prevê um exceção a esta regra para o caso em que a extinção da obrigação principal opera por força do recurso ao instituto da novação. Neste sentido, prescreve o art. 861.º do CC que na falta de reserva expressa, as garantias adjacentes à obrigação extinguem-se, mesmo que concedidas por comando do legislador. Por outras palavras, estamos perante uma caso em que as partes originárias da relação obrigacional – credor e devedor – podem acordar na prevalência do privilégio creditório face à nova obrigação contraída em substituição da anterior. Esta é uma possibilidade que resulta do carácter acessório e legal do privilégio creditório, não obstante de se tratar de um caso em que a simples vontade das partes pode dar origem, em simultâneo, a destinos diferentes para o crédito e para o privilégio creditório.

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Todavia, atentas as causas de extinção dos privilégios creditórios propriamente

ditas203, – alíneas b) a d) do artigo 730.º do CC - coloca-se a questão de saber quais as

que se aplicam aos privilégios especiais e quais se aplicam aos privilégios gerais.

Começando pela análise do disposto na alínea b), prescreve o legislador que é causa

de extinção da hipoteca – e, dada a remissão do artigo 752.º do CC, do privilégio

creditório – a prescrição. Como referimos supra, a prescrição em causa diz respeito ao

privilégio creditório em si mesmo e não ao direito de crédito que este visa garantir.

Quanto ao beneficiário da verificação da prescrição do privilégio creditório, “o terceiro

adquirente” do bem sobre o qual o privilégio incide, este apenas poderá invocar a

prescrição do privilégio quando estejam decorridos vinte anos sobre o registo da

aquisição do bem e cinco anos sobre o vencimento da obrigação, pelo que estamos

perante dois requisitos temporais cumulativos e não alternativos.

Já na perspetiva do crédito tributário, coloca-se a questão de saber se através da

remissão da alínea a) do n.º 1 do art.50.º da LGT estas particularidades do regime civil

dos privilégios se devem também aplicar na sua plenitude ou, ao invés, se devem ser

conciliadas com os prazos previstos para a prescrição da dívida tributária e para a

caducidade do direito à liquidação dos tributos.

Embora esta seja uma dúvida à qual o legislador não responde expressamente,

consideramos que uma vez preenchido o prazo de prescrição de oito anos previsto no

n.º1 do artigo 45.º da LGT, o crédito tributário terá prescrito e com ele os privilégios

creditórios que garantiam a sua satisfação, já que estes são privilégios atribuídos em

função dos especiais interesses inerentes à cobrança desses mesmos créditos tributários,

pelo que, verificando-se a prescrição do direito do credor tributário à sua cobrança, o

privilégio perde também a sua raison d’être.

E em relação aos bens cuja aquisição não está sujeita a registo?

É que atenta a letra do preceito supra citado, não se vislumbra uma solução para os

privilégios que incidam sobre bens não sujeitos a registo. Esta é sem dúvida uma das

consequências da fragmentariedade do regime legal dos privilégios creditórios, já que

ao utilizar a remissão legal no artigo 752.º do CC, o legislador olvida a especificidade

203 Em França, atenta a exigência de registo do privilégio creditório, as causas de extinção da figura compreendem, naturalmente, um leque mais alargado do que o que se verifica no ordenamento jurídico português. Contudo, o artigo 2488.º do CCF referente às causas de extinção dos privilégios creditórios e das hipotecas indica: “Les privilèges et hypothèques s'éteignent : 1° Par l'extinction de l'obligation principale sous réserve du cas prévu à l'article 2422 ; 2° Par la renonciation du créancier à l'hypothèque sous la même réserve ; 3° Par l'accomplissement des formalités et conditions prescrites aux tiers détenteurs pour purger les biens par eux acquis ; 4° Par la prescription.(…)”.

79

do objeto do privilégio creditório face ao da hipoteca. A seguir-se ipsi verbis a solução

prevista na aliena b) do artigo 730.º do CC, a prescrição não poderá produzir os seus

efeitos em relação aos privilégios creditórios mobiliários que incidam sobre bens

móveis e ainda, sobre bens imóveis não hipotecáveis.204

Prosseguindo a análise das causas extintivas dos privilégios creditórios e da hipoteca,

na alínea c) do n.º1 do artigo 730.º do CC, o legislador indica que é também causa

extintiva do privilégio creditório e da hipoteca, o perecimento da coisa sobre a qual

incide a garantia, sem prejuízo do direito de preferência sobre o valor da indemnização

a favor do dono da coisa e ainda do direito do credor hipotecário/privilegiado exigir ao

devedor o reforço ou substituição do bem205. Todavia, de acordo com o disposto no

artigo 752.º do CC, o direito de credor privilegiado exigir ao devedor o reforço ou

substituição do bem objeto da garantia pode levantar algumas dúvidas, já que se por um

lado o legislador expressamente confirma a aplicabilidade do direito de preferência

consagrado pelo artigo 692.º do CC aos privilégios creditórios, o mesmo não se verifica

em relação à regra decorrente do artigo 701.º do CC206.

Coloca-se porém a seguinte questão: pode o credor privilegiado alargar o âmbito

desta garantia excecional, exigindo ao devedor o reforço ou substituição do bem ou bens

objeto da mesma, mas que não estejam previstos pelo legislador? Ao aplicar-se o

disposto no artigo 701.º do CC aos privilégios creditórios, é facultada às partes a

possibilidade de modificarem o objeto sobre o qual o privilégio incide, como que

fazendo tábua rasa da imperatividade que caracteriza o regime jurídico dos privilégios

creditórios.

Assim, é nosso entendimento que a resposta à questão acima colocada é negativa,

atento por um lado, o carácter excecional dos privilégios e por outro, a própria

imperatividade das normas que compõem o seu regime jurídico207, em particular as

relativas à determinação do objeto sobre o qual o privilégio incide. Na nossa perspetiva

sempre se diga que adotar uma solução contrária poderia resultar na criação um

204 Cfr. o disposto nos artigos 204.º e 688.º e do CC relativamente aos bens que podem ser objeto de hipoteca. 205 Cfr. artigos 692.º e 701.º do CC. Estas soluções apresentadas pelo legislador para os casos em que se verifique o perecimento do bem objeto da hipoteca como que suspendem a produção automática do efeito extintivo das mesmas. Ademais, de acordo com a remissão do artigo 753.º do CC, ao credor privilegiado assistem os direitos previstos no artigo 692.º 206 Sobre esta questão, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ. ob. cit., págs. 771 e 772, explicam que “(…) O artigo 701.º, referido na alínea c), é, porém, inaplicável aos privilégios, dada a relação necessária destes com certos bens do devedor. É a mesma razão que justifica a doutrina do artigo 709.º quanto às hipotecas legais previstas nas alíneas e) e f) do artigo 705.º. Que é esta a solução pretendida pelo legislador, mostram-no, ainda os artigos 665.º e 678.º, em confronto com o artigo 753.º. Naqueles, em relação à consignação de rendimentos e ao penhor, cita-se o artigo 701.º, o que não acontece com o artigo 753.º. A intenção da lei é, pois, manifesta. (…)” 207 Sobre a imperatividade do regime legal dos privilégios creditórios, ver supra ponto 2.1 do capítulo II.

80

expediente para que as partes pudessem determinar que bens poderiam ser objeto de

privilégio ou não, além de ser uma solução que parece desde logo contrariar a vomtdade

do legislador aquando da instituição da figura no nosso ordenamento.

Por fim uma breve alusão à renúncia do credor ao privilégio como uma causa de

extinção do privilégio, de acordo com o disposto na alínea c) do artigo 730.º do CC.

Prevê o legislador que o titular de direito de crédito garantido por hipoteca possa

renunciar à garantia do seu crédito208, desde que cumpra os necessários requisitos e

procedimentos legais relacionados com a publicidade do ato, possibilidade que é

também alargada para os credores privilegiados, atenta a remissão decorrente do já

citado artigo 752.º do CC, o que nos permite afirmar ainda que o âmbito da renúncia à

garantia pode abranger a totalidade do seu objeto ou apenas parte desse, verificando-se

nestes casos uma renúncia parcial.

Já no que diz respeito ao crédito tributário e suas garantias, atentos os limites legais

em torno da atividade de cobrança das receitas fiscais e a natureza pública das mesmas,

a renúncia a garantias creditórias revela-se contra natura, isto é, contrária aos princípios

e normas em torno do crédito tributário, pelo que será de se rejeitar liminarmente a sua

aplicação no seio da relação jurídica tributária.

3.6 – Sobre a Alienação do Bem Objeto do Privilégio

Atentas as considerações tecidas sobre os efeitos do direito de sequela e o direito de

preferência face aos privilégios creditórios, importa compreender de que forma a venda

do bem sobre o qual o privilégio incide afeta essa garantia. Desde logo, devemos

distinguir o regime dos privilégios gerais, do regime dos privilégios especiais, já que,

como aliás referimos supra, o direito de sequela verifica-se apenas face a estes últimos.

Por outro lado, atento o regime dos artigos 749.º, 750.º e 751.º do CC, constatamos

que é o grau de especialidade com que o privilégio incide sobre o património do

devedor que nos permite distinguir os efeitos do seu carácter real face à alienação de

208 Cfr. neste sentido o art.731.º do CC.

81

bens pertencentes a esse património209. Assim, perante a alienação de bens abrangidos

por privilégios creditórios gerais, atenta a inexistência de qualquer direito de sequela

sobre os bens, o terceiro adquirente do bem poderá opor os seus direitos ao credor

privilegiado, pelo que a preferência resultante do privilégio não poderá ser exercida

contra a posição do terceiro adquirente, mesmo que este tenha adquirido o bem em data

posterior à da sua apreensão judicial210.Será a partir dessa data que a preferência

conferida pelo privilégio produzirá os seus efeitos, protegendo a posição do credor

privilegiado, conforme resulta do disposto no artigo 749.º do CC211.

Em segundo lugar, no que diz respeito aos privilégios creditórios especiais, tendo

presente as suas características e atenta a nossa posição sobre a sua natureza jurídica

enquanto verdadeiros direitos reais de garantia212, no conflito com direitos de um

terceiro adquirente, a solução legal é manifestamente distinta da anterior, desde logo

pela introdução de um novo elemento para esta equação jurídica – o direito de sequela.

Nesse sentido, sobre os privilégios mobiliários especiais, dispõe o artigo 750.º do

CC: “salvo disposição em contrário, no caso de conflito entre o privilégio mobiliário

especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais cedo se houver adquirido”.

Desta forma, perante a venda voluntária do objeto sobre o qual versa o privilégio

mobiliário especial, este não se extingue, ao invés acompanha o bem, podendo o titular

do crédito privilegiado perseguir o bem mesmo que este se encontre na esfera

patrimonial de pessoa diversa do devedor.

Este comando legislativo apenas confirma a regra da prioridade, princípio norteador

dos direitos reais, de acordo com o qual perante o conflito entre direitos de crédito ou

direitos reais ulteriormente constituídos, prevalece aquele que mais cedo se tiver

constituído213.

209 A “irrelevância” do carácter mobiliário ou imobiliário do privilégio a esta parte explica-se atenta a nossa exposição sobre a natureza jurídica da figura. Nesse sentido, se apenas em relação aos privilégio especiais é que se reconhecem as características internas dos direitos reais de garantia – em especial o direito de sequela e o direito de preferência – a natureza mobiliária ou imobiliário dos bens deixa de ser um fator determinante na análise dos fenómenos de alienação de bens onerados com este tipo de garantia real, uma vez que apenas em face dos privilégios especiais é que podemos identificar tais características. Neste sentido, cfr. MIGUEL LUCAS PIRES, ob. cit., pág. 62, nota de rodapé 118. 210 Cfr. neste sentido o disposto no artigo 748.º do CPC e, para os processos de execução fiscal, o n.º1 do artigo 215.º do CPPT. 211 Sobre o conflito entre direitos de terceiro e a preferência resultante do privilégio creditório geral, dispõe o n.º1 do artigo 749.º do CC: “O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.” 212 Por contraponto aos privilégios gerais que, dada a falta de determinação e especialização do seu objeto, apenas conferem ao titular do crédito uma preferência legal e já não a possibilidade de perseguir o bem objeto da garantia. Esta era a posição entre nós pelo legislador já no Código Civil de Seabra. Nesse sentido, cfr. VAZ SERRA, últ. ob. cit. pág. 29. 213 Sobre o direito de preferência dos direitos reais, cfr. ORLANDO DE CARVALHO, últ. ob cit., págs. 227 e 228.

82

A exceção a esta regra em matéria de privilégios creditórios diz respeito aos créditos

por despesas de justiça, que prevalecem sobre quaisquer outros direitos de crédito e até

sobre direitos reais, mesmo que estes se tenham constituído anteriormente ao

nascimento do crédito privilegiado, como resulta do disposto no artigo 746.º do CC214.

4 – Espécies de Privilégios Creditórios

Muita da análise e estudo da figura do privilégio creditório se prende com a distinção

entre privilégios gerais e privilégios especiais, do âmbito da qual emergem outros

problemas, como é o caso da natureza jurídica da figura, sobre a qual já nos debruçamos

supra. Deste modo procuramos desvendar um pouco mais sobre este instituto jurídico,

abordando ainda as problemáticas inerentes ao objeto da mesma, agora através da

conjugação dos dois critérios distintivos, a saber, a distinção entre privilégios especiais

e privilégios gerais e, em segundo lugar, entre privilégios mobiliários e imobiliários.

4.1 – Os privilégios mobiliários e os privilégios imobiliários

A distinção entre privilégios mobiliários e imobiliários decorre do disposto no artigo

735.º do CC. O legislador estabelece a distinção recorrendo a um critério baseado na

natureza jurídica dos diferentes tipos de bens abrangidos pelo privilégio creditório. No

fundo, atendendo a este critério distintivo empregue pelo legislador, o privilégio

creditório (seja geral ou especial), assume a própria qualificação dos bens sobre os quais

incide. Assim os privilégios mobiliários serão os que versam sobre o produto da venda

dos bens móveis215 existentes na esfera patrimonial do devedor à data da penhora ou de

ato equivalente.

Porém esta distinção não se concretiza apenas na diferenciação dos bens que podem

ser objeto de privilégios creditórios, já que é uma distinção que afeta os efeitos jurídicos

associados a cada categoria de privilégio. Se por um lado a experiência e vivência do

tráfego jurídico nos demonstra a existência em maior número, de bens mobiliários do

que bens imobiliários.

214 Prescreve o artigo 746.º do CC: “Os privilégios por despesas de justiça, quer sejam mobiliários, quer imobiliários, têm preferência não só sobre os demais privilégios, como sobre as outras garantias, mesmo anteriores, que onerem os mesmos bens, e valem contra os terceiros adquirentes.” 215 Cfr. o disposto nos artigos 204.º e 205.º do CC.

83

A verdade é que tal facto não culmina com uma maior força garantísitica dos

privilégios mobiliários face aos imobiliários. Isto pois, como já tivemos oportunidade de

concluir anteriormente, o privilégio mobiliário geral não possibilita ao titular do direito

de crédito perseguir os bens que o privilégio abrange e que existam na esfera

patrimonial de terceiros que não o devedor, ou seja, não lhe está associado qualquer

direito de sequela, daí que não seja qualificado pela generalidade da jurisprudência e

doutrina nacionais como um verdadeiro direito real de garantia.

No âmbito da relação jurídica tributária, a remissão presente na alínea a) do n.º1 do

artigo 50.º da LGT impõe que façamos uma breve enumeração de alguns dos privilégios

creditórios mobiliários associados a créditos tributários. Desde logo destacamos o

privilégio mobiliário geral atribuído aos créditos do Estado e das autarquias locais para

a cobrança das quantias devidas a título de impostos indiretos e ainda, pelos impostos

diretos216, inscritos para cobrança217 no ano corrente na data da penhora, ou ato

equivalente, e nos dois anos anteriores218. Por sua vez os privilégios imobiliários serão

aqueles cujo objeto se traduz no produto da venda dos bens imóveis existentes na esfera

patrimonial do devedor, à data da penhora219, ou de ato equivalente.

São exemplos deste tipo de privilégio creditório os presentes nos artigos 743.º e 744.º

do CC e ainda, os previstos no artigo 205.º do CRCPSS e nos já referidos artigos 111.º

do CIRS e 108.º do CIRC.

4.2 – Os privilégios creditórios gerais e os privilégios creditórios especiais

A distinção entre a natureza do privilégio assenta, como vimos, na natureza dos bens

sobre os quais incide. Todavia, centramos agora a nossa análise em um outro critério

distintivo dos privilégios, baseado no grau de especialidade e determinação dos bens

que são objeto do privilégio.

216 Impostos indiretos serão os impostos instantâneos ou de obrigação única, por outras palavras, aqueles em que a relação fonte da obrigação fiscal é desencadeada por uma relação instantânea e que dá lugar a uma obrigação de imposto isolada, ainda que o seu pagamento possa ser efetuado em prestações. São exemplos deste tipo de imposto o IVA, os Impostos Especiais sobre o Consumo ou ainda, o IMT. Por seu turno, os impostos diretos visam a tributação de uma realidade factual continua, isto é, situações prolongadas no tempo, verificando-se uma renovação anual sucessiva da obrigação de pagar o imposto. São exemplos, o IRS e o IMI. Para uma análise mais aprofundada sobre a distinção, veja-se, por exemplo, PARDAL RODRIGUES, “Os Privilégios Creditórios segundo o Código Civil”, in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 102, pág. 11; e ainda, CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob. cit., pág. 68. 217 O conceito de “imposto inscrito para cobrança” diz respeito aos tributos cuja cobrança não depende da prática de qualquer ato tributário (e.g. o ato de liquidação do tributo) por parte da Administração Tributária, mas depende outrossim do recebimento da quantia exigível. Para uma noção mais aprofundada, cfr CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob. cit., págs. 308 e 309. 218 No mesmo sentido os artigos 111.º do CIRS e 116.º do CIRC consagram privilégio mobiliário geral a favor da Fazenda Pública, relativamente aos créditos tributários devidos a título desses mesmos impostos, respetivamente. 219 O problema da determinação do momento jurídico-temporal em que o privilégio creditório imobiliário se torna eficaz, já foi por nós abordado no ponto 2.1 do presente capítulo. Trata-se de uma matéria essencial para melhor compreender o regime jurídico do instituto e a própria constituição e efetivação dos poderes a ele inerentes.

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Na presente dissertação já concluímos que este critério distintivo é essencial para a

determinação da própria natureza jurídica do instituto do privilégio creditório.

Debruçando-nos novamente sobre os privilégios, diremos que são privilégios

creditórios gerais aqueles que ab initio, não vêm o seu objeto individualizado, ao invés

incidindo sobre todo o tipo de bens móveis ou bens imóveis, existentes na esfera

patrimonial do devedor. Daí que quando se coloca a questão da natureza jurídica da

figura, a doutrina220 e a jurisprudência prevalentes neguem ao privilégio creditório geral

a classificação de direito real de garantia, sustentando que apenas se verifica a

determinação e individualização dos bens cujo produto da venda servirá para satisfazer

o crédito privilegiado, pelo que não está satisfeita uma das características essenciais de

qualquer direito real, inerentes ao princípio da especialidade: a determinação concreta

do objeto do direito.

No fundo os privilégios creditórios gerais serão meros direitos de preferência sobre o

valor do produto da venda221 dos bens do devedor, cuja eficácia dependerá de um ato de

apreensão judicial. Esta é ainda uma questão que realça um importantíssimo ponto em

comum entre os regimes jurídicos dos privilégios gerais e dos privilégios especiais, isto

é, a determinação dos efeitos e consequências que o ato de apreensão judicial -

vulgarmente a penhora - dos bens assume face à necessidade de um momento

concretizador da eficácia do privilégio.

220 Em sentido contrário, na doutrina MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., págs. 431 e ss., sustenta que o privilégio creditório geral tem uma natureza híbrida, consoante seja analisado no momento do nascimento do direito de crédito privilegiado ou no momento em que se torna efetivo, através da penhora. Assumindo-se num primeiro momento como uma mera preferência legal e no segundo momento, já depois da penhora dos bens do devedor, como um verdadeiro direito real de garantia, atenta a especificação dos concretos bens sobre os quais incide esse privilégio. Esta posição tem por base uma comparação entre o carácter de garantia real inerente aos privilégios creditórios gerais e os efeitos jurídicos decorrentes do ato de penhora de bens, de acordo com o disposto no artigo 819.º do CC. Será através da qualificação da penhora como um direito real de garantia que o autor subscreve o entendimento que o privilégio beneficia do direito de sequela associado à penhora dos bens do devedor. Salvo o devido respeito, embora possamos concordar com a qualificação do privilégio geral como uma garantia real, não podemos subscrever o entendimento do autor em relação aos efeitos da penhora dos bens em processo executivo e consequente atribuição da sequela para qualificar o privilégio geral como um direito real de garantia. De facto, o próprio artigo 749.º do CC não afasta a possibilidade de os direitos de crédito de terceiro constituídos anteriormente ao privilégio creditório geral prevalecerem sobre. Mais se diga que o próprio devedor/executado continua a poder alienar os bens a terceiros, não obstante a ineficácia desses negócios face ao exequente, para além dos casos em que direitos de crédito não cedem face à penhora e venda do bem, como é o exemplo dos direitos do arrendatário que tenha celebrado contrato de arrendamento com o executado antes do registo da penhora do imóvel. Sobre este aspeto, cfr. o Ac. do STJ de 27/03/07, disponível em CJ/STJ, 2007, Tomo I, pág. 146. 221 Na jurisprudência veja-se, a título de exemplo, as conclusões do Ac. do TRG de 21/05/13, referente ao processo n.º 4142/11.9TBGMR-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b6034631cad44e8980257b89004a7f31?OpenDocument. Destacamos um breve trecho da fundamentação da decisão “ (…) Na sequência do citado acórdão do Tribunal Constitucional, o Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, veio alterar a redacção do artigo 751.º do Código Civil, o qual passou a dispor que «Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.». Esta nova redacção do artigo 751.º do Código Civil veio, assim, estabelecer, de forma clara e inequívoca que o regime de sequela e prevalência dos privilégios imobiliários apenas se aplica aos que forem “especiais”. Só os privilégios imobiliários especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações. (…)”.

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Porém, uma vez “despertada” a sua eficácia através da apreensão judicial222 dos

bens, os efeitos jurídicos assumirão contornos diferentes consoante o tipo de privilégio

em causa, especialmente no que diz respeito à eficácia face a direitos de terceiro, como

resulta dos artigos 749.º (para os privilégios gerais) e 750.º e 751.º (para os privilégios

especiais), todos do CC.

A esta parte centramos a nossa atenção para a problemática em torno da existência de

privilégio creditórios imobiliários gerais no nosso ordenamento jurídico, visto que o

artigo 8.º do diploma preambular que aprova o CC223se pronuncia pelo não

reconhecimento de privilégios creditórios criados em legislação avulsa, salvo os

concedidos a créditos públicos. Se por um lado o n.º3 do artigo 735.º do CC (na versão

do texto legal que decorre do D.L. n.º 38/2003, de 08.03), explicita que os privilégios

creditórios imobiliários previstos nesse diploma “são sempre especiais”, por outro lado,

parece-nos que a vontade do legislador relativamente à criação de novos privilégios para

além dos existentes no CC, não tem sido tida em conta nas recentes alterações sobre esta

matéria, atenta a proliferação de privilégios imobiliários consagrados em legislação

avulsa, em especial os privilégios imobiliário gerais.224

Neste sentido, em consonância com a vontade do legislador do CC expressa no já

citado artigo 8.º do diploma preambular que o aprova, consideramos que o legislador se

222 Contudo a esta parte impõe-se a alusão à distinção entre a natureza do ato de penhora consoante o processo executivo em apreço. Se por um lado no seio da teoria geral do processo a apreensão de bens a que nos referimos no texto só pode ser decretada por um Tribunal, daí nos referirmos a ato “judicial”. Já o mesmo não se verifica no processo de execução fiscal, lide executória no âmbito da qual a competência para a penhora cabe ao órgão da execução fiscal, pelo que a penhora assume na execução fiscal uma natureza administrativa e não propriamente judicial. Assim, o processo de execução fiscal distingue-se do processo de execução da ordem judicial na medida em que a competência para a prática de atos é distribuída pelo órgão da execução fiscal e pelos tribunais tributários. Daí que subscrevemos na íntegra as considerações do professor JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Lições….”, ob. cit., pág. 341, quando afirma que a execução fiscal se configura como um processo de natureza “administrativo-jurisdicional”. No mesmo sentido, vejam-se ainda a posição de CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob. cit., págs. 310 a 315. 223 Dispõe o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 47 334, de 25/11/66, sob a epígrafe ‘Privilégios Creditórios e Hipotecas Legais’: “1. Não são reconhecidos para o futuro, salvo em acções pendentes, os privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no novo Código Civil, mesmo quando conferidos em legislação especial. 2. Exceptuam-se os privilégios e hipotecas legais concedidos ao Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, quando se não destinem à garantia de débitos fiscais.” 224 Antes da alteração do texto do artigo 751.º do CC imposta pelo D.L. n.º 38/2003 de 08.08, na doutrina e jurisprudência nacionais discutiu-se se era aplicável aos privilégios imobiliários gerais não previstos no CC o disposto no artigo 751.º ou se, por outro lado, lhe era aplicável o regime do artigo 749.º desse diploma. Se em um primeiro momento a jurisprudência do STJ foi clara em sustentar a posição que o artigo 751.º do CC era também aplicável aos privilégios imobiliários gerais constituídos em leis avulsas ao CC, como aliás resulta do Ac. do STJ de 29/05/80, disponível no Boletim do Ministério de Justiça n.º 297, págs. 298 e ss., e ainda, no Ac. do STJ de 17/11/81, publicado no Boletim do Ministério de Justiça n.º 311-358. Esta posição tinha como consequência a aplicação do disposto no artigo 751.º do CC aos privilégios imobiliários gerais, culminando com a atribuição de um verdadeiro direito de sequela e ao reforço do carácter real desses privilégios, enquanto instrumentos garantísticos do crédito, em detrimento nos credores hipotecários e dos credores comuns. A problemática da inconstitucionalidade desta interpretação do artigo 751.º do CC chegou ao Tribunal Constitucional, tendo a mesma sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, decorrente do artigo 2.º da CRP, no Acórdão do TC n.º 362/2002, de 17/09/02, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020362.html. Em sentido contrário, pronunciando-se pela não inconstitucionalidade da interpretação do artigo 751.º do CC, no sentido de que o privilégio creditório imobiliário geral conferido pela alínea b) do n.º1 do artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14.06 (entretanto já revogada) aos créditos salariais decorrentes do não pagamento pontual das retribuições prefere à hipoteca, veja-se as conclusões do Ac. do TC n.º 498/2003 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030498.html).

86

deve abster de criar novos privilégios cuja aplicação seja reconduzida exclusivamente a

relações jurídicas privatísticas, atentos os diversos problemas que se colocam aos

agentes privados no seio do comércio e tráfego jurídicos.

Mais se diga que no seio de uma disciplina jurídica que se pauta pelo dinamismo e

versatilidade como é o caso do Direito das Obrigações, os problemas e dificuldades

decorrentes do carácter oculto do privilégio creditório são obstáculos a um sistema

garantístico mais transparente, mais certo e acima de tudo, mais confiável para os

diversos agentes do tráfego jurídico.

De facto, o privilégio creditório enquanto ónus oculto que é, dificulta e por vezes

chega mesmo a impossibilitar os credores comuns de verem o seu crédito satisfeito,

frustrando assim as legítimas expectativas dos agentes privados que recorrem aos

mecanismos de cobrança judicial dos seus créditos, pelo que deve o legislador tem em

conta a especialidade do privilégio creditório enquanto garantia creditória, em face das

restantes garantias especiais das obrigações, razão pela qual consideramos que este tipo

de instituto apena deva ser aplicável quando estejam em causa créditos públicos, atenta

a relação dos mesmos com a satisfação do interesse público.

5. Distinção de figuras afins aos privilégios creditórios

5.1 – Hipoteca

Aquando da nossa incursão pelas raízes histórico-jurídicas por detrás da figura dos

privilégios creditórios, verificamos a existência de vários pontos de contacto entre estes

e a figura da hypotheca, em especial no ordenamento jurídico francês. Esses pontos de

toque entres os dois institutos resultam principalmente da própria natureza e função por

detrás dos dois institutos jurídicos, a saber, a afetação de bens à satisfação de

determinados direitos de crédito, reforçando assim a posição e garantias em favor dos

credores que destes beneficiam.

Essa proximidade verifica-se ainda do ponto de vista técnico-jurídico, atentas as

remissões legais dos artigos 752.º e 753.º ambos do CC, da qual resulta a utilização de

algumas das disposições relativas ao regime jurídico da hipoteca para complementar o

regime jurídico dos privilégios creditórios. Não obstante a proximidade funcional

existente entre estes dois institutos, são várias as características que nos permitem

distingui-los. A esta parte o maior destaque vai para a exigência legal de registo da

87

hipoteca para que a mesma seja constituída e plenamente eficaz em relação ao direito de

crédito, cujo cumprimento visa assegurar225, sob pena de não se produzirem efeitos

jurídicos interpartes. Ao contrário, os privilégios creditórios caracterizam-se

precisamente pelo seu carácter oculto, atenta a inexistência de qualquer tipo de ónus de

registo a cabo do credor privilegiado. Além desta diferença, podemos ainda apontar uma

outra relativa à natureza dos bens que podem ser objeto destas duas garantias

creditórias. Como nos elucida SALVADOR DA COSTA226, a hipoteca configura-se

como um direito acessório ao direito de crédito e incide sobre o direito real de

propriedade ou outro direito real de gozo, relativo a coisas imóveis ou de coisas móveis

equiparadas227. Neste sentido, a hipoteca apenas pode incidir sobre o direito de

propriedade ou outro direito real de gozo sobre o bem, ao contrário do privilégio

creditório.

Por fim, a hipoteca distingue-se ainda do privilégio creditório no que toca à sua

origem, já que aquela pode ser constituída por vontade das partes (hipoteca voluntária),

por imposição legal (é o caso das hipotecas legais) ou ainda, por decisão judicial (as

hipotecas judiciais), ao contrário do privilégio creditório que apenas pode ser criado por

lei.

5.2. – Direito de Retenção

Nos termos do artigo 754.º do CC, o devedor que disponha de um crédito contra o

credor, goza do direito de retenção sobre o bem, desde que esteja contratualmente

obrigado a devolver o bem e ainda, que o crédito tenha por base despesas feitas pelo

devedor relacionadas com a manutenção da coisa ou por danos provocados pelo bem ao

devedor. O que está aqui em causa não é o poder de o devedor utilizar e usufruir do bem

ora confiado pelo credor mas apenas o poder de se recusar legitimamente a devolver o

bem, no fundo, o poder do devedor de se recusar a cumprir uma obrigação

contratualmente devida.

Não obstante esta a cláusula geral presente no artigo supra citado, o legislador prevê

ainda no artigo 755.º do mesmo diploma, casos típicos em que o devedor goza do

direito de retenção. No que toca ao objeto deste instituto garantístico, resulta do

disposto nos artigos 758.º e 759.º do CC que o direito de retenção pode incidir quer

225 Cfr. o disposto no artigo 687.º do CC. 226 Cfr. SALVADOR DA COSTA, “O Concurso de Credores”, 5.ªEdição, Coimbra, Almedina Editora, pág. 67. 227 Cfr. o disposto na alínea f) do n.º1 do artigo 688.º do CC.

88

sobre bens móveis, como sobre bens imóveis. A doutrina e a jurisprudência228 têm

reconhecido ao direito de retenção uma dupla funcionalidade, que decorre em primeiro

lugar do seu carácter compulsório – o direito de retenção é, nas palavras de ANTUNES

VARELA, uma espécie de aguilhão encravado cravado na vontade do vendedor

[credor], para que ele cumpra a obrigação a que está adstrito229 - ao qual é associada a

função garantísitica da figura – como nos elucida PESTANA DE VASCONCELOS, o

direito de retenção representa um reforço qualitativo do direito de crédito, na medida em

que se traduz na afetação de um concreto e determinado bem ao cumprimento de uma

obrigação230.

No nosso entendimento, a qualificação deste instituto como um direito real de

garantia decorre não da própria figura em si mesma, mas antes, do aproveitamento dos

regimes legais de outros direitos reais de garantia, a saber, no caso em que o direito de

retenção verse sobre bens móveis, do recurso ao regime jurídico do penhor e no caso de

versar sobre bens imóveis, do aproveitamento do regime jurídico da hipoteca231. Caso

contrário, sem o aproveitamento destes regimes, o direito de retenção resume-se ao

poder que assiste ao devedor que goza de um crédito contra o credor, de não entregar o

bem em relação ao qual sobre o qual se formou o novo direito de crédito.

Podemos identificar a esta parte uma similitude entre o regime do privilégio

creditório e o do direito de retenção, na medida em que o regime da primeira figura

recorre também a remissões legais para o regime da hipoteca. Na verdade são mais os

pontos de afastamento entre o direito de retenção e o privilégio do que os pontos de

toque232. Interessante a esta parte são as considerações de uma parte da doutrina que

228 Destacamos as considerações do STJ sobre o direito de retenção, no Ac. de 09/12/05, referente ao processo n.º 05A2158, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d212562e19ccfabd802570b3003775d2?OpenDocument : “ (…)O direito de retenção traduz-se no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de coisa que deva ser entregue a outra pessoa, de não a entregar enquanto esta não satisfizer o seu crédito, verificada alguma das relações de conexidade entre o crédito do detentor e a coisa que deva ser restituída a que a lei confere tal tutela. (…) Trata-se de um direito real de garantia - que não de gozo -, em virtude da qual o credor fica com um poder sobre a coisa de que tem a posse, o direito de a reter, direito que, por resultar apenas de uma certa conexão eleita pela lei, e não, por exemplo, da própria natureza da obrigação, representa uma garantia directa e especialmente concedida pela lei.(…).” 229 Cfr. ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 12.ª Edição, Coimbra, 2005, pág. 577. 230 Cfr. PESTANA DE VASCONCELOS, últ. ob. cit., pág. 314. 231 É o que se retira da leitura dos artigos 758.º e 759.º do CC, respetivamente. Daí que na nossa perspetiva, seja difícil sustentar o carácter real próprio do direito de retenção, quando a nosso ver o que se verifica é um aproveitamento das características atribuídas, consoante os casos, ao penhor de coisas e à hipoteca. No fundo, a preferência e o direito de sequela associadas ao direito de retenção não são próprias deste instituto, mas reflexos do regime jurídico de outros dois institutos. 232 É ainda exemplo da proximidade entre os dois institutos a ausência de um ónus publicista do direito de retenção a cabo do seu titular, tal como no caso de um crédito privilegiado. Subscrevemos a esta parte as conclusões do Ac. do TRE de 5/03/98, disponível no Boletim do Mistério da Justiça, n.º 475, no qual concluem os Juízes Desembargadores que “I – O direito de retenção resulta diretamente da lei e não de um negócio jurídico ou outro acto de conteúdo singular, pelo que não se encontra sujeito a registo, produzindo efeitos em relação às partes e a terceiros independentemente dele. A publicidade encontra-se assegurada pelo próprio texto legal que o admite e pelas situações materiais a que se aplica, pelo que, estando aquela garantida e visando o registo

89

afirma que o direito de retenção se caracteriza como um “privilégio creditório

mobiliário e imobiliário”233.

Salvo o devido respeito, somos da opinião que o direito de retenção se converte em

um verdadeiro penhor de coisas reforçado no caso de versar sobre bens móveis e, na

hipótese de incidir sobre bens imóveis, em um crédito hipotecário. Não concordamos

pois com a posição sustentada por alguns autores que defendem a similitude entre o

privilégio creditório e o direito de retenção. Desde logo porque o último beneficia

sempre de um direito de sequela, o mesmo não se verifica, por exemplo, no caso dos

privilégios creditórios gerais, aos quais é negada a qualquer tipo de sequela ou direito de

seguimento do bem sobre o qual incidem.

As diferenças que afastam os dois institutos prendem-se principalmente com o

problema da maior ou menor determinabilidade dos bens sobre os quais incidem,

atentos os problemas associados aos privilégios gerais e à sua relação com o princípio

da especialidade dos direitos reais.

Por isso constatamos ab initio uma absoluta determinação do bem sobre o qual incide

o direito de retenção, como decorre da própria noção ínsita no artigo 754.º do CC, ao

contrário do que verificámos supra, aquando da nossa análise sobre o objeto do

privilégio creditório. Consequentemente sustentamos que o direito de retenção não se

assume originariamente como um direito real de garantia mas uma garantia real das

obrigações, no seguimento da posição entre nós defendia por BELCHIOR DO

ROSÁRIO LOYA E SAPUILLE234.

Como nota final, destacamos a consagração do direito de retenção como uma

garantia do crédito tributário, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º2 do artigo 50.º da

LGT, aplicável nos casos em que o sujeito passivo do dever de pagar o tributo seja

proprietário de mercadorias ou bens sujeitos a ação fiscal. No fundo, enquanto o sujeito

passivo não cumprir com o dever de pagar a dívida tributária, a Administração

Tributária pode reter as mercadorias que sejam propriedade daquele mas que se

encontrem na posse desta.

precisamente a publicidade da situação jurídica, não se torna o mesmo necessário, decorrendo, aliás, a sua não inclusão no grupo dos direitos sujeitos a registo. (…)”. 233 Cfr. neste sentido PEREIRA DE ABREU, “O Direito de Retenção como Garantia Imobiliária das Obrigações”, Almeida & Leitão, Lda., Porto, 1998, pág. 17, e ainda, CLÁUDIA MADALENO, últ. ob. cit., pág. 124; 234 Cfr. BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E SAPUILLE, “Prevalência do Direito de Retenção”, in “Garantias sobre as Obrigações”, Coimbra, 2007, Almedina, pág. 105.

90

5.3. – Penhor

Em conjunto com a hipoteca e com o privilégio creditório, o penhor é um dos

institutos jurídicos de índole garantísitica mais antigos, cujas raízes remontam ainda ao

Direito Romano, onde a figura era conhecida por pignus. O artigo 666.º do CC estipula

que o penhor consiste no direito de preferência atribuído ao credor sobre o produto da

venda de certa coisa móvel ou, pelo valor de certos créditos ou direitos não suscetíveis

de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.

Mas como é atribuído ao credor pignoratício o direito de preferência a que alude o

preceito supra citado? Por outras palavras, de que forma se constitui o direito de

penhor?

Em resposta diremos que o penhor pode ser constituído por vontade das partes ou por

disposição legal. Na prática assistimos a uma prevalência da constituição desta garantia

creditória por vontade das partes, o que nos transporta para o fenómeno do contrato de

penhor e todas as particularidades associadas. O contrato de penhor é um contrato com

eficácia real quanto à sua constituição, o que significa que, em regra, não basta a

celebração de um acordo de vontades para que o penhor seja validamente constituído,

exigindo-se a traditio do bem sobre o qual incide o penhor235, isto no caso do penhor de

coisas, nos termos do n.º2 do artigo 669.º do CC. A generalidade da doutrina atribui a

este requisito uma função publicitária da garantia conferida pelo penhor, afirmando que

o desapossamento do bem demonstra aos demais agentes do tráfego jurídico que o

proprietário do bem já não tem o poder de dispor livremente do mesmo. Como nos

elucida LUÍS MENEZES LEITÃO, essencial é que o proprietário do bem objeto de

penhor seja privado da disponibilidade material do bem, visando-se com esta solução

assegurar que os terceiros possam ter conhecimento da existência do penhor e que em

caso de alienação do bem, o adquirente terá de suportar o exercício do direito por parte

do credor pignoratício236.

235 Cfr. VAZ SERRA, “Penhor”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 58, págs. 17 e ss.; Embora tenhamos optado por indicar a traditio do bem pignoratício como um dos requisitos da constituição do penhor, verificamos na doutrina algumas posições que sustentam que o requisito do n.º2 do artigo 669.º exige apenas que o autor do penhor seja privado da fruição do bem, não sendo absolutamente necessária a traditio do mesmo. Neste sentido, ver por todos, OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direitos Reais”, 5.ªEdição, 2012, Lisboa, Almedina, pág. 574; Nota ainda para os casos em que a lei especificamente prevê a possibilidade do penhor ser constituído validamente sem que se exija o desapossamento do bem por parte do autor do penhor, como é o caso do penhor mercantil, conforme resulta do artigo 398.º do Código Comercial. A esta parte, vejam-se as conclusões do Ac. do TRL de 21/03/2012, referente ao processo n.º287/10.0TTPDL-A.L1-4, disponível em http://www.dgsi.pt/JTRL1.NSF/33182fc732316039802565fa00497eec/e8f78e354d2464e6802579cd004dff70?OpenDocument. 236 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, “Garantia das Obrigações”, 4.ªEdição, 2012, Lisboa, Almedina, pág. 191.

91

Aproveitamos para abordar a esta parte uma outra modalidade do penhor, a saber, o

penhor de direitos, cujo regime legal se encontra nos artigos 679.º e seguintes do CC.

As maiores especificidades desta modalidade de penhor estão relacionadas com o seu

objeto e com o ato constitutivo do penhor. Desde logo destacamos a particularidade do

seu objeto consistir não em bens móveis propriamente ditos mas antes, em direitos

suscetíveis de transmissão e cujo objeto sejam coisas móveis. Neste sentido, destaque

para a multiplicidade de legislação avulsa ao CC que consagra diversos tipos de penhor

de direitos, como são exemplos os casos do regime do penhor de aplicações

financeiras237, o penhor de direitos patrimoniais de autor238, ou ainda, o penhor de

créditos bancários.239Analisando a utilização do penhor enquanto instrumento

garantístico de créditos tributários, verificamos que a par da hipoteca legal, o penhor

legal constitui uma das principais garantias do crédito tributário, atenta a cláusula geral

introduzida na alínea b) do n.º1 do art.50.º da LGT. Atento o carácter legal da figura, a

constituição do penhor neste tipo de casos não depende da vontade, nem tão pouco do

consentimento do proprietário dos bens objeto de penhor, apenas se exigindo que o

credor tributário demonstre a necessidade da constituição da garantia para a cobrança do

crédito tributário.

Nota ainda para a particularidade de o penhor assumir no seio do processo de

execução fiscal uma verdadeira natureza administrativa e não jurisdicional ao contrário

do que se verifica no seio do processo executivo civil, na medida em que a competência

para a sua constituição cabe, nos termos do n.º1 do art.195.º do CPPT, ao órgão da

execução fiscal. A esta parte reiteramos as conclusões do Supremo Tribunal

Administrativo em Acórdão de 24/10/12:

“(…) Tenha-se, ainda, presente que, embora a lei tributária permita à

Administração fiscal, por sua iniciativa e independentemente de consentimento do

respectivo titular, a constituição de penhor ou hipoteca legal para garantia (especial)

dos créditos tributários (cfr. o artigo 50.º n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária e os

n.ºs 1 e 5 do artigo 195.º do CPPT), e o n.º 1 do artigo 195.º do CPPT pareça permitir

237 O regime jurídico do penhor de aplicações financeiras foi instituído entre nós pelo D.L. n.º 105/2004, de 8.05, alterado recentemente pelo D.L. n.º 85/2011, de 29.06. 238 Cfr. o disposto no artigo 50.º do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (Lei n.º 63/85, de 14.03, sucessivamente alterada). 239 Para uma análise mais aprofundada sobre a figura do penhor de créditos bancários, veja-se a dissertação de mestrado de FLÁVIA DANIELA VAZ TEIXEIRA, “Penhor de Direitos em garantia de créditos bancários”, disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/22981/1/Fl%C3%A1via%20Daniela%20Vaz%20Teixeira.pdf (consultada em 27/12/15).

92

a constituição de penhor sempre que o interesse da eficácia da cobrança o torne

recomendável, a Lei Geral Tributária - que logica e naturalmente prevalece sobre o

disposto no CPPT, como o próprio reconhece no seu artigo 1.º e porque, nos termos da

respectiva autorização legislativa, este diploma visou adaptar as normas

procedimentais e processuais vigentes ao disposto naquela Lei (cfr. JORGE LOPES DE

SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado,

Volume III, 6.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, p. 390/391 – nota 2 ao art. 195.º do

CPPT) - , exige que a constituição de tais garantias se revelem necessárias à cobrança

efectiva da dívida –, necessidade essa que não se tem por verificada nos casos em que o

próprio executado, voluntariamente, se oferece para prestar garantia e não se lhe dá,

antes da constituição do penhor, oportunidade de o fazer.(…)”240.

Por fim, procuramos responder à problemática levantada no início da nossa

exposição sobre a figura do penhor: quais as diferenças entre o penhor e o privilégio

creditório, enquanto institutos garantísticos de direitos de crédito?

Apontamos três grandes pontos distintivos entre estas duas figuras, a saber: i) quanto

ao objeto; ii) quanto à natureza jurídica e ainda, iii) quanto à sua origem.

Relativamente ao primeiro ponto, as diferenças são claras, especialmente quanto ao

penhor de direitos, na medida em que o privilégio creditório só conhece como objeto

coisas móveis ou imóveis, não sendo suscetível de ser constituído sobre direitos, ao

contrário do que acontece com o penhor que apenas pode ser constituído sobre bens ou

direitos que sejam insuscetíveis de hipoteca. Se por um lado ambas as figuras partilham

uma característica em comum, a acessoriedade face ao direito de crédito – decorrente do

seu carácter de garantia real das obrigações – a verdade é que o privilégio atribui uma

preferência em razão da causa do crédito ou da pessoa do credor mas não utiliza um

outro direito subjetivo como garantia. Já o penhor associa ao cumprimento da obrigação

outros direitos (direitos de crédito ou até mesmo direitos reais sobre bens) do devedor

para reforçar as garantias de satisfação do direito do credor pignoratício.

Já no que diz respeito à natureza jurídica das figuras, também sobre este aspeto as

diferenças entre os dois institutos é confirmada. Como já supra referimos, o direito de

penhor é um verdadeiro direito real de garantia, sendo-lhe atribuída pela lei241 as

240 Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/cc13471b8fc9d25880257aa80041ed08?OpenDocument&ExpandSection=1 241 Cfr. arts. 666.º, n.º1 e 675.º do CC.

93

características típicas dos direitos reais, a preferência e o direito de sequela, não se

verificando o mesmo em relação aos privilégios creditórios gerais, cuja discussão sobre

a natureza jurídica nos remente para a distinção conceptual entre garantia real e direito

real de garantia.

Por fim, quanto à origem, se por um lado o privilégio creditório apenas conhece

como fonte a lei, o penhor pode ter origem no acordo de vontades ou a própria lei.

Ainda sobre este aspeto, sempre se diga que o privilégio creditório se considera

constituído no momento em que se verifica o nascimento do direito de crédito a que a

lei atribui o privilégio, dependendo a eficácia do privilégio do ato judicial de apreensão

de bens do devedor. Por sua vez o penhor, quer seja de coisas, quer seja de direitos, para

que se considere validamente constituído, exige – se a prática de um ato através do qual

o devedor perde a disponibilidade material do bem pignoratício a favor do credor ou de

terceiro. Por outras palavras, a constituição do penhor depende do ato de transmissão ou

traditio do bem, contrariamente ao privilégio, cujo nascimento se verifica com a

constituição do crédito a que a lei atribui o carácter de privilegiado.

5.4. – Penhora

No seio de uma relação jurídica obrigacional, verificado o incumprimento da

obrigação que recaí sobre o devedor, o credor tem o poder de exigir judicialmente o

cumprimento podendo inclusivamente executar o património deste com vista a obter a

satisfação do seu crédito242.A execução do património do devedor é um poder que a lei

substantiva atribui ao credor, poder este que se concretiza mediante os necessários

mecanismos jurídico-adjetivos inerentes à lide executória. Por esta perspetiva podemos

concluir que a penhora é um desses instrumentos jurídicos de natureza processual ou

adjetiva cuja função passa pela preservação dos bens existentes no património do

devedor, de forma a possibilitar o credor que dela beneficie, obter os meios necessários

para a satisfação do seu crédito. No fundo, a penhora é, por excelência, o mecanismo

jurídico que vincula bens ou direitos existentes na esfera patrimonial do devedor (ou de

terceiro) ao cumprimento de uma prestação. Destas considerações resulta a

bidimensionalidade da natureza jurídica da penhora, já que, se por um lado a lei

substantiva determina que devem ser facultados ao credor meios processuais para que

possa realizar o poder de executar o património do devedor, é a lei adjetiva que

242 É o que decorre do disposto no artigo 817.º do CC, referente ao princípio geral da realização coativa da prestação.

94

determina e regulamenta os institutos jurídicos responsáveis pela efetivação do poder

atribuído pela lei substantiva ao credor. Isto porque, sem a existência de meios de

conservação dos bens na esfera patrimonial do devedor, esse poder do credor seria um

mero poder substantivo, sem um efetiva concretização prática.

É neste sentido que a lei adjetiva recorre a mecanismos de conservação do

património do executado/devedor, como é o caso da penhora. No que toca à distinção

deste instituto face ao privilégio creditório, a penhora, enquanto instituto de índole

garantísitica, assume-se como um verdadeiro direito real de garantia, na medida em que

se traduz no instituto que afeta bens ou direitos específicos e determinados, existentes

na esfera patrimonial do devedor ou de terceiro, ao cumprimento da obrigação

exequenda. Evidencia-se pois uma primeira distinção entre privilégio e penhora, quanto

à sua natureza jurídica. A última assume-se como um direito real de garantia na medida

em que lhe são reconhecidos o direito de preferência (n.º1 do artigo 822.º do CC) e o

direito de sequela (que decorre da interpretação conjugada dos artigos 818.º e 819.º do

CC)243. Em suma, concluímos que a penhora se assume sempre como um direito real de

garantia, ao passo que o privilégio creditório apenas é reconhecido enquanto tal se se

tratar de um privilégio especial. Destas constatações resulta uma imediata conclusão

sobre a penhora – a sua verificação depende do recurso à via judicial, ou seja, a

constituição desta garantia depende da instauração da competente lide executória244.

Já aqui podemos apontar uma importante diferença entre o privilégio creditório e a

penhora quanto à sua constituição. A constituição do privilégio depende exclusivamente

do nascimento do crédito a que a lei atribuí o carácter de privilegiado, sendo que a sua

eficácia depende do ato de apreensão judicial de bens que se realizará através de

diversos institutos, de entre os quais a penhora. Desta forma constatamos que se por um

lado tanto o privilégio como a penhora têm como fonte a lei, contudo, enquanto a

penhora apenas pode ser constituída no seio do processo executivo, o privilégio dá-se

por constituído com o nascimento do direito de crédito designado pela lei como

privilegiado.

243 Cfr. neste sentido, SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., págs. 22 e 23. Em sentido contrário, defendendo uma natureza jurídica estritamente processual da penhora, veja-se MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Acção Executiva Singular”, Lisboa, 1998, Lex Editora, pág. 251; e ainda, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, últ. ob. cit., págs. 983 e 984. 244 Como já tivemos a oportunidade de referir supra no momento que abordamos a distinção entre os privilégios gerais e os privilégios especiais no ponto 2.4.2 do presente capítulo, a penhora assume no seio do processo de execução fiscal uma natureza administrativa e não jurisdicional, na medida em que a competência para a sua constituição cabe ao órgão de execução fiscal.

95

Mais se diga que do ponto de vista formal, a penhora depende sempre da prática de

um ato por parte do credor, a apresentação de um requerimento executivo com vista à

abertura da competente lide executiva, requisito esse que não se impõe ao titular do

crédito privilegiado. Contudo, é curiosa a relação de instrumentalidade que se verifica

entre os dois institutos, na medida em que a penhora consubstancia um dos atos

judiciais a partir do qual o privilégio creditório se torna verdadeiramente eficaz, como

aliás resulta do disposto no n.º2 do artigo 735.º do CC245. Como nos explica

SALVADOR DA COSTA246, a penhora não só constitui uma garantia real da obrigação

exequenda, como também permite aferir da precedência de créditos garantidos por

privilégio creditório cuja eficácia dependa de limites temporais.

Uma outra diferença entre estes dois institutos verifica-se ao nível do objeto, em

concreto, sobre que bens podem incidir quer a penhora, quer os privilégios.

Sabemos que o credor privilegiado assiste à determinação do objeto do privilégio

no momento em que é realizada a penhora dos bens do devedor, quer se trate de

privilégio geral ou especial. Os limites sobre o objeto do privilégio creditório incidem

sobre a natureza da coisa sobre a qual incide, ou seja, a natureza móvel ou imóvel do

bem. Por sua vez, a penhora conhece limites legais à determinação do seu objeto,

limites estes que são especificados no seu regime adjetivo, correspondente aos artigos

735.º a 747.º do CPC e ainda, nos artigos 817.º a 823.º do CC.

Da leitura destes comandos normativos verifica-se que a determinação do objeto da

penhora se encontra muito mais limitada pela lei, ao contrário do que se verifica face ao

privilégio creditório, para o qual o legislador apenas estabelece um limite referente à

natureza da coisa sobre a qual incide esta garantia. E é a esta parte que damos conta de

uma última mas importante destrinça entre privilégio e penhora, em especial, da

penhora de bens imóveis ou de direitos, que para que seja eficaz deve ser registada247,

ao contrário do que já concluímos supra sobre o privilégio creditório.

245 No momento em que distingue entre privilégios gerais e privilégios especiais, o legislador explica que os privilégios mobiliários gerais incidem sobre os bens móveis existentes “(…) no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente(…)”. É neste sentido que a jurisprudência vem sustentando que a penhora consubstancia-se como um dos atos integradores da eficácia do privilégio creditório. Neste sentido, vejam-se as conclusões do Ac. do STA de 23/05/2012, referente ao processo n.º 0173/12, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/fb7197e7d79b804a80257a0e004aad5a?OpenDocument&ExpandSection=1 . 246 Cfr. SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 21. 247 Cfr. o disposto no n.º1 do artigo 755.º e ainda o n.º1 do artigo 768.º, ambos do CPC.

96

5.5 – Arresto

A figura do arresto deve ser analisada atenta a sua natureza e área jurídica de

eficácia por excelência, o domínio adjetivo-processual do Direito. Não obstante o

arresto vê a lei substantiva determinar a sua função e área de aplicação, como decorre

do disposto no n.º1 do artigo 619.º do CC. Aproveitamos a esta parte as conclusões dos

mui doutos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa sobre a figura do

arresto, em Acórdão de 16 de Outubro de 2003248: “A providência de arresto, que se

concretiza numa apreensão judicial de bens, destina-se a acautelar o “periculum in

mora”, decorrente da normal tramitação dos processos judiciais, apenas deve ser

decretada se, através do mecanismo sumário próprio dos procedimentos cautelares, for

de concluir pela probabilidade séria da existência do crédito e pelo receio da perda da

garantia patrimonial. Só será legítimo o recurso a este meio coercivo de garantia

patrimonial se se verificar, pelo menos, a aparência da existência de um direito e o

perigo ou justo receio da insatisfação desse direito, devendo o critério de avaliação

destes requisitos assentar, não em juízos puramente subjectivos, mas em factos ou em

circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão

cautelar imediata. O justo receio da perda da garantia patrimonial tanto pode resultar

de haver indicação de o devedor estar em risco de se tornar insolvente, como de estar a

ocultar o seu património ou de tentar alienar bens de modo que se torne

consideravelmente difícil ao credor promover a cobrança coactiva do seu crédito, como

do facto de aquele se furtar ao contacto com o credor ou, de qualquer modo, denotar

pretender eximir-se ao cumprimento da obrigação. (…)". (sublinhado nosso)

Da leitura do excerto acima transcrito, retiramos um dos traços caracterizadores da

figura do arresto, que lhe serve não só de fundamento, como ainda de pressuposto

material para que seja decretado. Atenta a sua iminente natureza enquanto instituto

garantístico de índole processual ou adjetiva (tal como a penhora), o arresto

consubstancia-se como um mecanismo processual que visa proteger e manter inalterada

a garantia patrimonial do credor/requerente, mediante a apreensão judicial de

determinados bens.

Todavia, para que seja decretada esta providência e, consequentemente,

apreendidos os bens, é necessário que o requerente faça prova de dois requisitos: i) a

248 Sublinhado nosso. Acórdão referente ao processo judicial n.º 7016/2003-6, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1f4a09c31fb1090d80256e190041a4ec?OpenDocument

97

verificação de uma probabilidade séria da existência do direito de que se arroga titular,

ou também denominado pela expressão “fumus bonus iuris”; ii) a constatação de uma

diminuição das garantias subjacentes ao direito de crédito evocado pelo requerente, em

latim, “periculum in mora”249.

Analisando o instituto propriamente dito, coloca-se a questão de saber quais os

efeitos jurídicos do decretamento de uma providência cautelar de arresto. Desde logo

destaque para a ineficácia em relação ao requerente da providência, dos atos de

alienação e disposição dos bens arrestados, nos termos do n.º1 do artigo 622.º do CC.

Da leitura das normas presentes no artigo citado, em especial atenta a remissão no

n.º2, concluímos pela verificação de uma relação de estreita proximidade entre o arresto

e a penhora. Ambos os institutos se assumem como mecanismos de índole estritamente

processual (cuja única fonte é a própria lei), cuja eficácia depende de um ato judicial

que os decrete. Porém, será que arresto e penhora têm precisamente os mesmos efeitos

jurídicos face aos bens que lhes são objeto? A resposta é, necessariamente negativa,

atenta a natureza jurídica de cada um dos institutos.

Se por um lado a penhora é um verdadeiro direito real de garantia, o mesmo não se

pode afirmar em relação ao arresto, uma vez que ao requerente do arresto não é

atribuído qualquer direito de preferência nem tão pouco de sequela, em relação aos bens

que sejam arrestados.

Na doutrina a resposta à pergunta sobre a natureza jurídica do arresto tem dividido

opiniões, que podemos resumir a duas principais correntes doutrinárias. Por um lado,

autores como SALVADOR DA COSTA defendem que o arresto, “(…)

independentemente da sua conversão em penhora, assume a natureza de garantia real

de cumprimento obrigacional de origem processual”250,na medida em que o arresto tem

como efeito a afetação de bens patrimoniais ao cumprimento de uma obrigação.

Por outro lado, encontramos na doutrina nacional autores que defendem a posição

que sem a conversão em penhora, o arresto não pode ser qualificado como uma garantia

real das obrigações, na medida em se trata de uma medida de carácter exclusivamente

249 É o que resulta não só no caso das providências cautelares especificadas como é o arresto, como para a generalidade das providências cautelares, de acordo com o disposto no artigo 362.º e no n.º1 do artigo 365.º, ambos do CPC. 250 Cfr. SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 16. No mesmo sentido, confrontem-se as posições de ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra, 1987, Coimbra Editora, pág. 640; e ainda, os argumentos de AMÂNCIO FERREIRA, “Curso de Processo de Execução”, 13.ªEdição, 2010, Coimbra, Almedina, págs. 323 e 324. Na jurisprudência, veja-se o Acórdão do STJ de 08/06/2006, referente ao processo n.º 06A1532, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/102f692ecaf490b0802571880036eece?OpenDocument.

98

judiciário e provisório, sem qualquer tipo de eficácia real ou efeitos erga omnes251,

sendo a sua eficácia reconduzia apenas à lide processual em que é requerido. Ao mesmo

tempo os defensores desta posição baseiam-se na interpretação literal do comando

legislativo vertido no n.º2 do artigo 822.º do CC252.Na jurisprudência esta é uma

questão controversa na medida em que se verificam decisões que suportam ambas as

posições doutrinárias, ou seja, que se pronunciam pelo englobamento do arresto na

categoria das garantias reais das obrigações, como também decisões em sentido oposto,

negando a qualidade de garantia real ao arresto253.

Na nossa humilde opinião, sustentamos a última destas posições, isto é, a ideia de

que o arresto, seja ou não convertido em penhora, não se pode qualificar como uma

verdadeira garantia real das obrigações, na medida em que a admitir-se o contrário o

disposto no n.º2 do artigo 822.º do CC deixaria de fazer qualquer sentido, já que não

precisava o legislador de estabelecer qualquer tipo de retroatividade do arresto. No

fundo, a expressão “retroatividade da penhora” perderia a sua validade, pois o arresto

valeria por si mesmo, sem necessidade do legislador ficcionar a produção dos seus

efeitos desde da data da penhora.

Já no seio da jurisdição tributária, os procedimentos cautelares encontram a sua

previsão normativa nos artigos 135.º e seguintes do CPPT, prevendo o legislador a

possibilidade de a Administração Tributária requerer o arresto dos bens do devedor de

tributos, dos responsáveis solidários ou subsidiários e ainda, o arrolamento de bens ou

de documentos conexos com obrigações tributárias. Não obstante o disposto nos artigos

do CPPT supra enunciados, o regime legal destas providências cautelares é o vertido no

CPC, conforme resulta dos artigos 51.º da LGT e 139.º e 142.º do CPPT. De notar que

ao contrário do que se verifica com a penhora, com a hipoteca e com o penhor, a

competência para decretar as providências de arresto de arrolamento cabe aos Tribunais

251 Cfr. neste sentido, as posições de RUI PINTO DUARTE, “Direitos Reais”, Cascais, 2002, Principia Editora, págs. 246 e 247; TEIXEIRA DE SOUSA, “A Acção Executiva Singular”, Lisboa, 1998, Lex Editora, pág. 333. 252 Prescreve o n.º2 do artigo 822.º do CC: “Tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto.” 253 Em defesa da qualificação do arresto como uma garantia real das obrigações, vejam-se o Ac. do TRP, de 27/03/2000, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f7f2d33e9d64e9ec8025697700341695?OpenDocument e o Ac. do TRL de 05/02/04, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f87efa9f43da3c7b80256e47003b4a9c?OpenDocument. Em sentido contrário, negando a qualificação de garantia real ao arresto, vejam-se os Acs. do TRP de 07/11/02 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/4f6f92ffd9a3b5e780256cb7003e2425?OpenDocument), de 19/10/04 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/717c62f9590e7f6d80256f39004eb7d6?OpenDocument) e ainda, o Ac. do STJ de 03/05/07, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d92f97f83c8b3dce802572d1002dd2f8?OpenDocument )

99

Tributários e não à AT254. Destaque ainda para as providências cautelares a favor dos

contribuintes, de acordo com o vertido no n.º6 do artigo 147.º do CPPT255.

Centrando a nossa atenção para a distinção das figuras do arresto e do privilégio

creditório, podemos apontar três principais áreas de discordância. Desde logo, ao nível

do objeto, como o arresto aproveita o regime da penhora nos termos do n.º2 do artigo

391.º do CPC, os limites que se colocam à penhorabilidade dos bens existentes no

património do devedor são também válidos para o arresto.

Assim, se por um lado os privilégios creditórios apenas incidem sobre os bens

móveis ou imóveis existentes no património do devedor à data do ato de apreensão

judicial de bens, por outro lado verificamos que o arresto, tal como a penhora, vê o

legislador balizar com maior detalhe quais os bens que pode ser arrestados, o que

demonstra a maior amplitude do espetro de bens que podem ser abrangidos pelo

privilégio, comparativamente ao arresto. Em segundo lugar, privilégio e arresto

distinguem-se quanto à sua natureza jurídica. Como concluímos supra, o arresto

assume-se como uma mera garantia patrimonial de natureza processual, não lhe sendo

reconhecidos o direito de preferência nem tão pouco o direito de sequela.

Neste sentido, o arresto não se consubstancia como uma garantia real das

obrigações e muito menos como um direito real de garantia. Já no que toca ao

privilégio, a natureza deste instituto já foi por nós analisada na presente dissertação,

análise essa que nos levou a concluir pela qualificação do privilégio creditório geral

como uma verdadeira garantia real das obrigações e do privilégio creditório especial

como um direito real de garantia, sendo atribuído ao titular do direito de crédito que

dele beneficie, um direito de preferência de pagamento e o direito de sequela sobre os

bens abrangidos pelo privilégio. Por fim, privilégio e arresto podem ainda distinguir-se

no que diz respeito à sua eficácia jurídico-temporal.

O arresto enquanto providência cautelar possui efeitos meramente provisórios, ou

seja, os seus efeitos encontram-se de certa forma dependentes da existência de uma ação

principal, posterior ao decretamento do arresto ou na pendência de uma lide processual

cujos termos já correm em Tribunal. Por nós consideramos que é o que decorre do

254 Cfr. neste sentido o disposto nos arts. 138.º e 141.º do CPPT. 255 Sobre as providências cautelares a favor dos contribuintes, previstas no preceito em análise, vejam-se as conclusões do Ac. do TCA Norte de 30/09/14,disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/2d10b717295caf8480257d72002d55e2?OpenDocument.

100

regime legal dos procedimentos cautelares, em especial, dos artigos 364.º, 371.º, 373.º e

395.º do CPC, conclusão também sufragada pela jurisprudência e doutrina nacionais256.

Por seu turno, podemos sustentar a ideia de que o privilégio creditório vê a sua

eficácia jurídico-temporal depender a prática de um ato judicial de apreensão de bens,

verificando-se pois uma relação de instrumentalidade entre esse ato e a eficácia plena do

privilégio. Porém, essa instrumentalidade não assume os mesmos contornos que a ação

principal assume face à eficácia jurídica do arresto, já que a eficácia jurídico-temporal

do privilégio não é limitada pelo requisito da pendência ou apresentação de uma ação

judicial por parte do titular do crédito privilegiado, sendo ao invés limitada pela

necessidade da prática de um ato judicial de apreensão de bens que pode ser ou não

promovido pelo titular do crédito.

Deste modo concluímos que a eficácia jurídico-temporal do arresto é sempre

dependente da prática de um ato formal por parte do credor beneficiário da providência,

ao contrário do privilégio creditório, cuja eficácia temporal se convalida na ordem

jurídica mesmo nos casos em que o titular do crédito não pratica qualquer ato formal,

isto é, se aproveita da pendência de uma lide executiva instaurado por outro credor

contra o devedor do crédito privilegiado.

5.6 – Separação de Patrimónios

A ideia por detrás deste tipo de casos tem como base o disposto no na parte final do

artigo 601.º do CC257 que estabelece o princípio geral da exequibilidade de todo o

património do devedor, com a ressalva dos casos especialmente previstos na lei de

separação de patrimónios. No fundo os casos de separação de patrimónios, também

denominados por patrimónios autónomos, correspondem à exceção do princípio geral

da par conditio creditorum.

Nas palavras de MANUEL DE ANDRADE258, o património autónomo é o “ (…)

conjunto patrimonial a que a ordem jurídica dá um tratamento especial, distinto do

256 Na doutrina, ver, por todos, ABRANTES GERALDES, “Temas da Reforma do Processo Civil: Procedimento Cautelar Comum”, Vol. III, Coimbra, 2004, Almedina, págs. 144 a 147; Na jurisprudência, destaque para o Ac. do TRC de 08/04/08, referente ao processo n.º 759/05.9TBMGL-C.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/0/f35e87f2a8907d8180257432004c8ec3?OpenDocument . 257 Relembrando a parte final do preceito em causa: “Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor, susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.” (sublinhado nosso). 258 Cfr. MANUEL DE ANDRADE, “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. I, reimpressão, Coimbra, 1992, Almedina, págs. 218 e 219. Também ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ.ob. cit., pág. 618, definem o fenómeno da autonomia patrimonial como os casos em que certa massa de bens se encontra afetada ao pagamento de um conjunto próprio de dívidas.

101

restante património do titular, sob o ponto de vista da responsabilidade por dívidas

(…)”.

A esta parte coloca-se a questão de saber que critério deve o intérprete aplicador do

direito utilizar para concluir pela existência ou inexistência de um património

autónomo, ou melhor, da verificação de uma separação de patrimónios. Subscrevemos a

esta parte as mui doutas conclusões do STJ em Acórdão de 13 de Março de 2002, onde

se pode ler: “I ‐ É admissível que uma pessoa, para além de um património de

afectação geral, seja titular de um complexo patrimonial sujeito a um tratamento

jurídico particular (fenómeno de separação de patrimónios) denominado património

separado ou autónomo. II ‐ Para que haja um património autónomo torna‐se

necessária uma afectação legal, e não meramente subjectiva, que se afaste do princípio

geral da por conditio creditorum formulado no art.º 821, do CPC e no art.º 601, do CC.

III ‐ O critério mais seguro para o reconhecimento da existência de um património

autónomo, é o da responsabilidade por dívidas. Assim, há um património autónomo

quando um conjunto de bens responde só por certas dívidas (aspecto positivo) e pelas

mesmas não respondem outros bens (aspecto negativo). (sublinhado nosso)259.

Da leitura da decisão supra transcrita resulta um critério orientador na tarefa do

intérprete de definir os casos que possam efetivamente ser reconduzidos à figura da

separação de patrimónios.

Na lei encontramos vários casos do fenómeno da separação patrimonial, como são os

casos da Herança Indivisa260, da massa falida261, o EIRL262 e ainda, os patrimónios

autónomos, resultantes das regras dos diferentes regimes de bens previstos para o

casamento civil263.

259 O texto do acórdão transcrito corresponde à Revista n.º 2397/01 ‐ 4.ª Secção, disponível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=11890&codarea=3. 260 Cfr. o disposto no artigo 2046.º do CC. O fenómeno da herança que ainda não foi aceite pelos sucessores do de cujus denomina-se por herança jacente. Neste sentido, a herança jacente assume-se como um verdadeiro património autónomo, na medida em que mesmo antes de aceite pelos sucessores do defunto, responde pelas dívidas por este contraídas em vida e ainda não satisfeitas, razão pela qual a herança jacente é também um dos exemplos de um património autónomo que goza de personalidade judiciária, nos termos do artigo 12.º do CPC. 261 A qualificação da massa insolvente como um património autónomo resulta da própria noção legal vertida no n.º1 do artigo 46.º do CIRE, na medida em que os bens que a compõem se encontram adstritos em exclusivo à satisfação dos credores da insolvência. 262 O enquadramento do EIRL enquanto um património autónomo é também expressamente definido pela lei, no artigo 11.º do DL n.º 248/86, de 25 de Agosto. No preâmbulo do diploma o legislador explicita os motivos por detrás da criação de um património autónomo: “(…) Efectivamente, se o que se pretende consagrar é um expediente técnico legal que permita ao comerciante em nome individual destacar do seu património geral uma parte dos seus bens, para a destinar à actividade mercantil, então o meio mais directo (e também o único despido de ficção) será o de conceber a E. I. R. L. como um património separado. Esta análise parece correcta, sendo aceitável, nas suas linhas gerais, a conclusão que propõe. Ela servirá, pois, de base à disciplina jurídica acolhida no presente diploma. (…)”. 263 É o exemplo mais paradigmático talvez do fenómeno da separação de patrimónios. Nos termos dos artigos 1694.º e 1695.º do CC, o legislador estabelece a existência de um património próprio de cada um dos cônjuges, bem como, de um património comum, sendo que cada património responde por dívidas de natureza distinta.

102

Já no domínio tributário, a separação de patrimónios assume contornos bem distintos

face à teorização jurídico-civilística do fenómeno. Como nos elucida o professor

ALBERTO XAVIER, a autonomia patrimonial em direito tributário, também

denominada por “equiparação a empresa independente”, traduz-se nos regimes

especialmente criados pelo legislador para sujeitar a tributação, de forma unitária e

autónoma, uma determinada massa de bens e direitos, para efeitos de determinação da

extensão da tributação. Será o exemplo em que o legislador sujeita a tributação os

rendimentos auferidos por uma sucursal ou filial da sociedade-mãe localizada fora do

território nacional e “ (…) independentemente dos lucros que lhe são directamente

imputáveis, ao invés de tributar a pessoa coletiva no seu conjunto (…)”264.

Quanto à relação entre a figura do privilégio creditório e o fenómeno da separação

patrimonial, encontramos na doutrina civilística diversas vozes que qualificam esta

última como uma verdadeira garantia real das obrigações265.

À semelhança do que se verifica perante os privilégios creditórios gerais (na medida

em que ab initio não se encontram absolutamente determinados os bens cujo produto da

venda está adstrito à satisfação do crédito privilegiado), os defensores deste pensamento

sustentam que, atento o carácter geral e indeterminado relativamente aos bens sobre que

incide, a existência de um património autónomo se traduz numa preferência geral direta

de que gozam os créditos que onerem primordialmente um desses conjuntos

patrimoniais.

Ulteriormente, nos casos em que concorram em simultâneo outros créditos que

incidam sobre um património diverso, essa preferência configura-se como uma

prioridade de pagamento pelo produto da venda dos bens que compõem o património

autónomo,

Reiteramos na íntegra esta posição, na medida em que os patrimónios autónomos

constituem-se pela autonomização e individualização de um conjunto de bens de

natureza móvel ou imóvel sobre os quais incidirá a causa de preferência do crédito

atribuída pela lei, excluindo-se assim os demais bens de natureza distinta existentes na

esfera patrimonial do devedor.

264 Cfr. ALBERTO XAVIER, “Direito Tributário Internacional”, 2.ªEdição, Coimbra, 2011, Almedina, págs. 325 e ss.; Na jurisprudência, salientamos as doutas conclusões do Ac. do STA de 07/05/2008, referente ao processo n.º 0200/08, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/12906b728eb30a2180257447003e2fdc?OpenDocument&ExpandSection=1,. 265 Neste sentido, confrontem-se as posições de MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit. págs. 158 e 159; e ainda, LUÍS MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, Vol. III, 8.ªedição, 2011, Lisboa, Almedina, pág. 331.

103

CAPÍTULO III – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS COMO UMA GARANTIA

DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

Nos capítulos anteriores da presente dissertação analisamos a figura do privilégio

creditório desde das suas raízes do Direito Romano até ao presente, explicitando não

apenas as suas caraterísticas, como também toda a dogmática jurídica por detrás de uma

figura tão importante para o comércio e tráfego jurídicos.

Neste novo capítulo procuramos centrar a nossa análise no fenómeno de aplicação

deste instituto à relação jurídica tributária, ou melhor, compreender as relações entre o

privilégio e o crédito tributário com base no seu enquadramento legal enquanto garantia

desse mesmo crédito, de acordo com o disposto no artigo 50.º da LGT. Este preceito

legal será o nosso ponto de partida para a presente análise.

1. O artigo 50.º da Lei Geral Tributária

No artigo 50.º da LGT, sob a epígrafe “Garantias do Crédito Tributário”, o

legislador enumera os mecanismos jurídicos adstritos à garantia do cumprimento do

crédito tributário.

O n.º1 do citado preceito estipula o princípio geral da par conditio creditorum, à

semelhança do estipulado no artigo 601.º do CC. Esta particularidade resulta da adoção

por parte do legislador tributário da estrutura obrigacional da relação creditória

complexa de direito privado, com as necessárias adaptações decorrentes da natureza

publicista da relação jurídica tributária266. Já no n.º2 o legislador procura enumerar as

garantias especiais das obrigações também adstritas ao cumprimento do crédito

tributário. Dentro das várias enumeradas e por nós já analisadas, centramos a nossa

atenção para o disposto na alínea a) do n.º2: “Para garantia dos créditos tributários, a

administração tributária dispõe ainda: a) Dos privilégios creditórios previstos no

Código Civil ou nas leis tributárias; (…) ” (sublinhado nosso).

Esta remissão operada pelo legislador traduz em parte um dos problemas que várias

vozes na doutrina têm criticado267, mais concretamente a fragmentariedade do regime

jurídico dos privilégios.

266 Vejam-se as considerações tecidas por nós no ponto 2.1 do Capítulo I. 267 Entre nós vejam-se as posições de JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, últ. ob. cit., págs. 346 e 347; MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., págs. 209 a 211, e ainda, LEBRE DE FREITAS, “ A Ação executiva A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6.ª Edição, Coimbra, 2014, Almedina, págs. 262 a 264;

104

Quanto a nós, concordamos em parte com estas críticas aos métodos legislativos

empregues pelo legislador aquando da criação de novos privilégios através de legislação

avulsa. De fato, a figura do privilégio creditório tem sido alvo de uma banalização

enquanto garantia dos créditos, atenta a proliferação de inúmeros diplomas que criam

novos privilégios, contrariando aquela que parece ser a vontade do legislador do CC268

de que os privilégios creditórios não fossem alvo de uma utilização abusiva pelo

legislador após a aprovação do CC em 1966. É nosso entender que temos assistido a

uma desconsideração por parte do criador normativo da natureza subsidiária do

privilégio face às demais garantias especiais das obrigações, na medida em que não

raras vezes são criados privilégios creditórios sem que seja feita uma ponderação

criteriosa do seu impacto no comércio e tráfego jurídicos.

Porém, analisando esta solução legal por uma outra perspetiva, consideramos que a

técnica legislativa empregue na alínea a) do n.º 2 do art.50.º da LGT é de saudar já que

o legislador teve a preocupação de se referir expressamente ao regime jurídico “basilar”

da figura dos privilégios, remetendo para as previsões normativas do CC sobre esta

matéria. Destarte e como aliás iremos abordar mais detalhadamente infra269, a

fragmentariedade a que aqui nos referimos tem como direta consequência a criação de

obstáculos à tarefa do intérprete aplicador do direito de graduar eficazmente a ordem

pela qual devem ser satisfeitos os créditos reclamados nos vários processos de natureza

executiva (civil e tributária) e ainda no processo de insolvência.

Defendemos por isso uma maior compatibilização entre os vários diplomas avulsos

que criam privilégios creditórios e o regime previsto no CC, pugnando por uma

unificação do regime jurídico dos privilégios creditórios.

2. Fundamentos para a verificação de privilégios creditórios em matéria tributária

A criação da figura do privilégio creditório surgiu no Direito Romano associada a

diversas motivações, como são exemplos a especial relação entre o crédito e a coisa

onerada, razões de humanidade ou dignidade do credor ou ainda, por estarem em causa

créditos que subjazem ao interesse coletivo.

268 Cfr. o já citado artigo 8.º do diploma que aprovou o CC. Na jurisprudência, veja-se o Ac. do TRC de 15/10/70, disponível no BMJ n.º 201, pág. 191. 269 Sobre este tópico nos pronunciaremos com maior detalhe no Capítulo IV da presente dissertação.

105

Atento o tema do presente ponto de análise, dúvidas não se colocam sobre a especial

motivação por detrás da longa tradição no direito português do papel dos privilégios

creditórios como uma garantia do crédito tributário270.

Como tivemos oportunidade de referir supra, os créditos tributários não se

assemelham aos “comuns” dos créditos, na medida em que a sua efetiva cobrança é

essencial para a realização do interesse público e para a preservação do próprio Estado

de Direito Social.

Por essa razão consideramos que os principais fundamentos para a manutenção da

associação dos privilégios creditórios aos créditos tributários encontra a sua raison

d’être na própria ideia de tributação. Se a tributação é a principal fonte de receita do

Estado, necessariamente o crédito tributário tem de ser um crédito ainda mais reforçado

e garantido do que um crédito de natureza privatística. Caso contrário, poderíamos

assistir a hipóteses em que o Estado não consegue cobrar o seu crédito, sendo a sua

satisfação preterida em função de interesses privados. Todavia, podemos e devemos ir

mais além perante o objetivo de enunciar os fundamentos por detrás da atribuição do

carácter privilegiado aos créditos tributários.

Iniciamos o presente estudo com a análise do dever fundamental de pagar tributos,

uma das poucas obrigações públicas com expressa consagração constitucional, sendo

este um verdadeiro “dever autónomo de conteúdo cívico-político”, cuja principal

característica se evidencia pelo fato de ser este um dos deveres dos cidadãos perante o

Estado.

Atenta esta especial natureza, os deveres de conteúdo cívico-político revestem, na

maior parte dos casos, a forma de obrigações cujo cumprimento é, regulado por lei e

em especial no que ao dever fundamental de pagar impostos diz respeito, cujas

finalidades se encontram expressas no n.º1 do artigo 103.º da Lei Fundamental.271

Centrando a nossa atenção para o texto da Lei Fundamental, encontramos vários

preceitos que demonstram e concretizam a importância do crédito tributário para a

existência do Estado de Direito Social.

270 De notar que o primeiro diploma legal a consagrar a associação do privilégio creditório ao crédito tributário foi a Lei de 22/12/1761, conforme nos explica DOMINGOS MARTINS EUSÉBIO, últ. ob. cit., pág. 60. 271 Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, últ. ob. cit., págs. 320 a 322. Os autores definem a categoria dos deveres autónomos de conteúdo cívico-político como o conjunto de deveres dos cidadãos “relacionados com a própria existência e funcionamento da coletividade política organizada”.

106

Da interpretação conjugada do disposto na alínea d) do artigo 9.º e das alíneas a) e b)

do artigo 81.º da CRP272 resulta o princípio do Estado Social273 cujo conteúdo essencial

se traduz na garantia para todos os cidadãos da verificação de condições de vida

condignas, bem como na salvaguarda da redistribuição da riqueza e do rendimento em

benefício dos mais necessitados.

Desde logo este é um princípio assume um papel de orientação na tarefa de

interpretação do texto constitucional, todavia, sempre se diga que é simultaneamente um

dos princípios pelos quais se deve pautar toda e qualquer atuação dos entes e

organismos públicos ao serviço do interesse coletivo, sendo que o fenómeno tributário

não é exceção. Mas o legislador constituinte foi mais longe ao consagrar expressamente

no texto constitucional os objetivos norteadores do sistema fiscal274, sendo seguido de

perto pelo legislador ordinário que procurou vincar esses mesmos princípios nos artigos

5.º e 7.º, n.º1 da LGT, relativos às finalidades da tributação.

Porém e voltando à nossa questão inicial - a de desfigurar os fundamentos por detrás

da atribuição de privilégios creditórios ao crédito tributário - sempre diremos que esses

fundamentos decorrem dos próprios princípios e ideias inerentes ao poder tributário do

Estado e às finalidades e propósitos constitucionalmente consagrados e que lhe são

intrínsecas. No fundo, consideramos que os verdadeiros fundamentos para a atribuição

do carácter privilegiado do crédito tributário radicam na própria teologia do poder

tributário.

Todavia, a verdade é que a consciência ético-social em Portugal sobre o dever de

pagar os tributos não é ainda a mais correta, na medida em que a tributação é ainda

qualificada como um mal e não como um dever essencial para satisfazer os fins e

propósitos sociais que qualquer cidadão se prontifica a reclamar e defender. O

interessante é que que quando chamado a contribuir financeiramente para a sua

realização efetiva, muitos são aqueles capazes de fazer de tudo o que está ao seu alcance

para se furtar a tal obrigação275.

272 Sob a epígrafe “Incumbências prioritárias do Estado”, o art. 81.º é um dos preceitos que compõem a disciplina constitucional em matéria económica. Destacámos a referência à relação de instrumentalidade estabelecida entre os objetivos e princípios designados na primeira parte da alínea b) do preceito em causa e a política fiscal, da qual resulta que a ultima deve ter como fins e objetivos a promoção da justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e ainda, a correção de desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento. 273 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, últ. ob. cit., pág. 210 explicam que o princípio do Estado Social é uma abreviatura do princípio da democracia económica, social e cultural referida no texto do art.2.º da CRP. 274 Cfr. Artigos 103.º e 104.º da CRP. Sobre esta matéria, vejam-se as considerações supra tecidas no ponto 1 do Capítulo I. 275 Os fenómenos da evasão e da fraude tributárias são ainda uma realidade bem presente no seio da sociedade portuguesa. Para uma análise mais aprofundada sobre estes fenómenos, veja-se o estudo de PEDRO CASIMIRO DA SILVA SANTOS, “O Papel dos

107

Em suma, defendemos que a associação do privilégio creditório ao crédito tributário

resulta, por um lado, da sua natureza publicista e por outro, da coercividade intrínseca à

ideia de tributo. Atentas as exigências decorrentes do texto constitucional de um sistema

tributário eficaz e eficiente, não pode o Estado sujeitar-se à hipótese de a satisfação dos

seus créditos, em particular os créditos tributários, ser relegada para segundo plano face

aos demais.

Subscrevemos a esta parte as palavras de VÂNIA LOPES NETO276 sobre a

atribuição de privilégios creditórios aos créditos tributários: “ (…) Os impostos são uma

das principais fontes de receita do Estado e para os cidadãos e as empresas constituem

um dever, pois são eles que permitem a manutenção do próprio Estado, da regulação

jurídica do mercado e da definição dos direitos de cada um na sociedade.”

Por esta ordem de ideias se compreende que a figura do privilégio creditório assuma

um papel de destaque no seio das garantias do crédito tributário, não obstante de a

mesma constituir uma forte derrogação do princípio da igualdade entre os credores277.

Diga-se até que a teologia por detrás este carácter excecional da figura do privilégio

encontra no crédito tributário a melhor justificação e exemplificação, na medida em que

se pretende que, atentos os fins a que estão adstritas, a cobrança das receitas tributárias

seja célere278, segura, eficaz e efetiva.

Impostos no Combate à Corrupção”, disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/21114/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf. 276 Cfr. VÂNIA LOPES NETO, ”Privilégios creditórios fiscais”, in Revista Fiscalidade, n.º 24 Outubro-Dezembro, 2005., pág. 77. 277 Sobre o eventual conflito entre o princípio da igualdade e a verificação de causas legítimas de preferência da satisfação dos créditos, destacamos os argumentos vertidos no Acórdão do TC n.º 153/2002, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020153.html, no qual se pode ler: “(…) Do mesmo modo, não é arbitrária, irrazoável ou infundada – e, como tal, violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição – a consagração de tal privilégio a favor do Estado. Como se salienta no acórdão recorrido, "trata-se de uma medida legislativa justificável atentas as múltiplas funções do Estado – económicas, sociais e culturais –, funções estas que exigem uma cobrança, rápida e segura, das receitas provenientes das contribuições e impostos para cobrir as despesas públicas com aumento constante". Atentas as finalidades subjacentes ao sistema fiscal, é pois justificável a quebra da regra da "par conditio creditorum", a que a norma ora em causa procede.” 278 Sobre o dever de celeridade na cobrança e arrecadação dos tributos, cfr. o disposto nos artigos 55.º, 57.º e 59.º da LGT;

108

3. Os Privilégios Creditórios em Matéria Tributária – enunciação

Antes de dedicarmos a nossa atenção aos privilégios creditórios em favorecimento da

cobrança de créditos tributários presentes em diplomas legais tributários, devemos

abordar os enunciados pelo legislador no CC.

3.1– No Código Civil

No n.º1 do artigo 736.º do CC, o legislador concede ao Estado e às autarquias locais

privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos tributários devidos por impostos

indiretos e impostos diretos. Já supra nos debruçamos sobre esta distinção pelo que a

esta parte procuramos especificar o restante conteúdo deste preceito. Desde logo coloca-

se a questão de saber se o limite temporal previsto no preceito para os impostos diretos

– só serão privilegiados os créditos inscritos para cobrança no ano corrente da data da

penhora e nos dois anos anteriores – se aplica também aos créditos devidos a título de

impostos indiretos.

A esta questão a generalidade da doutrina e da jurisprudência considera que essa

limitação não se aplica aos créditos tributários devidos a título de impostos indiretos279,

todavia, mesmo que o limite temporal ínsito no preceito em causa não se aplique a estes

créditos, não podemos esquecer, os prazos de prescrição280 previstos no artigo 48.º da

LGT relativos ao direito de cobrança dos créditos tributários.

Neste sentido, o legislador especificamente prevê que os créditos tributários devidos

a título de impostos indiretos devem ser cobrados no prazo máximo de oito anos

contados a partir do termo do ano em que se verificou o fato tributário281, sob pena de se

279 Na doutrina sustentam esta posição, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ. ob. cit., pág. 757, e ainda CARDOSO DA COSTA, “Curso de Direito Fiscal”,2.ªEdição, Coimbra, 1970, Almedina, págs. 35 e 36; Em sentido contrário MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., pág. 291 sustenta que o privilégio mobiliário em causa deve ter como limite o pressuposto de que o crédito tributário devido por impostos indiretos se tenha constituído ou seja relativo à data da penhora, na medida em que ao adotar-se uma solução contrária, ser posto em causa o princípio da confiança constitucionalmente consagrado. Na jurisprudência vejam-se os Acórdãos do STA de 18/5/11 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/72321be3b18012bd8025789a003f3ece?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1) e de 23/5/12 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1a1b1604bac83cd480257a0e004f7c5d?OpenDocument); em sentido concordante com a posição de MIGUEL LUCAS PIRES, vejam-se as conclusões do Ac. do TRL de 6/12/11 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8f1bf69e2a995dc38025798900412e4a?OpenDocument). 280 Quanto à distinção entre a caducidade do direito à liquidação dos tributos e a prescrição do direito que assiste ao credor tributário de proceder à sua efetiva cobrança, vejam-se as considerações de JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Lições…”, ob. cit., págs. 431 e ss.; e ainda, para uma análise destes temas enquanto garantias a favor dos contribuintes, cfr. CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob.cit., pág. 340. 281 Cfr. o n.º1 do artigo 48.º da LGT. Destarte, o artigo 49.º da LGT prevê ainda os casos em que a contagem do prazo de prescrição previsto no artigo anterior se suspendem. A esta parte importa ainda o vertido no artigo 45.º da LGT referente ao prazo de caducidade de quatro anos para o direito de liquidação dos tributos que assiste à Administração Tributária, cuja contagem se inicia, nos impostos periódicos, “a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário”.

109

verificar a prescrição do direito da Administração Tributária de cobrança do crédito

tributário.

Ainda quanto à ratio legis por detrás desta distinção entre impostos diretos e

impostos indiretos, em análise à solução legal que fora adotada pelo ordenamento

jurídico italiano para a mesma matéria, escrevia VAZ SERRA, ainda em 1957: “ (…)

Esta distinção entre contribuições directas e indirectas parece razoável. No primeiro

caso, trata-se de impostos que todos os anos são devidos e lançados com base em

relações nominativas, e, por isso, há necessidade de limitar o número de anos de

imposto que gozam de privilégio a fim de que este não assuma proporções

extraordinárias e grandemente lesivas dos outros credores, tanto mais que o Estado

tem o dever de cobrar rapidamente os impostos de cada ano. (…) No segundo caso,

não teria lugar a mesma limitação, porque não se verifica a razão que a determina no

primeiro (…). Todavia, não se afigura, em princípio pelo menos, razoável, que o

privilégio se mantenha, com prejuízo eventual de outros credores, por um largo espaço

de tempo. (…) ”282.

Neste sentido, se para a cobrança dos créditos tributários relativos a impostos

indiretos o legislador não prevê qualquer limite temporal para a eficácia do privilégio, o

mesmo não se verifica no caso dos créditos tributários relativos a impostos diretos.

Voltando ao texto do preceito, contata-se a preocupação do legislador em limitar a

eficácia temporal do privilégio associado a estes créditos, apenas valendo o privilégio

mobiliário geral face aos créditos “inscritos para cobrança no ano corrente na data da

penhora, ou ato equivalente, e nos dois anos anteriores”.

Já anteriormente nos debruçámos sobre o conceito de “ato de apreensão judicial de

bens”, reconhecendo que a penhora e o arresto (desde que posteriormente convertido em

penhora) são exemplos desse tipo de atos que sendo praticados têm como consequência

fazer “despoletar” a eficácia do privilégio creditório283. No fundo a relevância destes

atos face ao privilégio traduz-se na determinação temporal da sua eficácia, ou seja, vão

determinar o espaço temporal em que o privilégio liberta a sua eficácia, e

282 Cfr. VAZ SERRA, “Privilégios”, in BMJ n.º 64 (1957), págs. 107 e 108. A distinção entre impostos diretos e impostos indiretos foi alvo de expressa menção legislativa no Anexo I do D.L. n.º 26/2002, de 14.02, (disponível em http://www.dgo.pt/legislacao/documents/DecLei_26-2002-14FEV.pdf). 283 Cfr. neste sentido as conclusões do Ac. do STA de 25/09/13, processo n.º 01153/13, disponível em (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/758dd6fc1496549980257bf8004e5823?OpenDocument&ExpandSection=1).

110

consequentemente, especificar quais os créditos tributários abrangidos pela preferência

de pagamento deste decorrente.

Porém a eficácia temporal dos privilégios creditórios previstos no artigo in questio

compreende ainda um limite imposto pelo legislador no n.º1 mediante a expressão:

“inscritos para cobrança”284.

Aqui a lei refere-se expressa e inequivocamente ao momento em que a obrigação

tributária já se venceu, resultando em consequência uma dívida tributária certa, líquida e

exigível e face à qual se verifica a eficácia plena do privilégio creditório. No fundo, o

tributo encontra-se em fase de pagamento, podendo este ser realizado voluntariamente

pelo contribuinte ou coercitivamente285 Não obstante, dúvidas se têm suscitado na

jurisprudência sobre a interpretação deste limite temporal imposto à eficácia do

privilégio creditório face aos créditos tributários.

Podemos resumir a questão da seguinte forma: para efeitos do disposto no n.º1 do

artigo 736.º do CC, devem considerar-se abrangidos pelo privilégio os créditos

tributários inscritos para cobrança durante os dois anos anteriores ao ano civil em que

é feita a penhora, independentemente da data em que o fato tributário ocorreu? Ou se,

por outro lado, devem considerar-se abrangidos pelo privilégio apenas os créditos

relativos a impostos diretos que se tenham constituído e sido inscritos para cobrança

nos dois anos anteriores ao ano da data em que se efetuou a penhora?

Note-se que a diferença entre estas posições se traduz numa maior ou menor

amplitude do crédito tributário, na medida em que a segunda posição impõe um maior

limite à eficácia temporal do privilégio face ao crédito, apenas admitindo a eficácia

deste face aos créditos tributários constituídos durante os dois anos anteriores ao ano

civil em que a penhora se realizou. Já para os defensores da primeira corrente

interpretativa, os créditos tributários abrangidos pelo privilégio podem ter-se constituído

em data anterior ao limite dos três anos, desde que a data em que foram inscritos para

cobrança se verifique dentro desse limite. Na doutrina, a corrente maioritária tem

defendido a primeira posição, encontrando suporte na interpretação do elemento literal

por detrás do preceito. Destacamos as considerações de SOUSA FRANCO sobre esta

284 SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 133, sustenta que “Impostos inscritos para cobrança são aqueles em que ela já não depende da prática de atos tributários, salvo o de recebimento, o que tradicionalmente tem sido designado por impostos à boca do cofre.”; Cfr. ainda sobre este aspeto CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob.cit, págs. 308 e 309; e JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, ult. ob. cit. págs. 205 e 206; 285 Prescreve o art. 78.º do CPPT que “A cobrança das dívidas tributárias pode ocorrer sob as seguintes modalidades: a) Pagamento voluntário; b) Cobrança coerciva.”

111

matéria, em defesa da primeira tese: “ (…) Parece certo – uma vez que o legislador

resolveu reportar a eficácia do privilégio à inscrição para cobrança – que não releva

para tal o efeito de o facto constitutivo do imposto esteja fora do período do ano da

penhora, ou dos dois anos anteriores, ou que a esse período não se reportem os

rendimentos ou outras manifestações de riqueza tributária: importa, sim, confrontar o

momento do início do período de vencimento do imposto, após a inscrição, com a data

da penhora. (…) ”286. A jurisprudência sobre esta matéria tem vindo a pronunciar-se

maioritariamente neste último sentido, ou seja, de que os créditos tributários abrangidos

são os que se encontrem inscritos para a cobrança, independentemente da data da sua

constituição, no ano civil da data da penhora, desde que se reportem, no máximo, ao

período compreendido entre a data da penhora e os três anos anteriores, como aliás

resulta das conclusões do Acórdão do STJ de 7/11/00287.

Mas no CC encontramos ainda outras disposições que conferem aos créditos

tributários privilégios creditórios. Falamos a esta parte dos privilégios creditórios

especiais conferidos aos créditos tributários devidos a título de IMT, de Imposto de Selo

e ainda de IMI, conforme resulta do n.º2 do artigo 738.º do CC e ainda, do artigo 744.º

do diploma citado. Sobre a eficácia temporal destes privilégios, valem as considerações

por nós supra tecidas sobre o n.º1 do artigo 736.º. Destarte, por razões de coerência

expositiva, devemos desde logo fazer as necessárias ressalvas ao texto da lei no que diz

respeito à terminologia dos tributos utilizada.

Assim, no n.º2 do artigo 738.º, é conferido privilégio creditório mobiliário especial

aos créditos tributários resultantes do “imposto sobre as sucessões e doações”. Na atual

286 Cfr. SOUSA FRANCO, últ. ob. cit., pág. 95. Também neste sentido, consultem-se as posições de SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 133, e de RODRIGUES PARDAL, “Os Privilégios Fiscais segundo o novo Código Civil”, Ciência e Técnica Fiscal n.º 102, pág. 29. Em sentido contrário, pugnando pela segunda posição, MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., pág. 294; 287 Disponível em Revista CJ/STJ, ano VIII, tomo III, pág. 101, no qual se pode ler: “(…) O legislador na determinação do período de tempo que é abrangido por privilégio creditótio que garanta o pagamento de dívidas fiscais, usa, por vezes, como factor determinante, a data da inscrição para cobrança da respectiva obrigação fiscal. É o que acontece com o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário previstos, respectivamente, nos arts. 736º, n.º1 e 744º, n.º1, ambos do Cód. Civil. Ora, se o legislador quisesse que a determinação dos 3 últimos anos referidos naquele art.104º A que corresponde o actual art. 111º. do CIRS fosse balizada pela inscrição em cobrança do IRS, após a liquidação, tê-lo-ia dito expressamente. Ou então, teria feito uma remissão para os citados preceitos do Cód. Civil, ou outros no género. Mas tal não aconteceu (…)” Neste sentido, veja-se ainda o Ac. do STJ de 27/03/07 (disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a1b3d3ad8cc479ad802572ab003b8ca2?OpenDocument.), e ainda os Acórdãos do TRP de 02/03/10 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/568c793dabd8359d802576f1005c383f?OpenDocument), o Ac. do TRG de 13/10/04 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7c53e1e4c381709480256f6c00562d93?OpenDocument).

112

configuração do sistema tributário português, sabemos que o imposto sobre sucessões e

doações deixou de existir, tendo sido “substituído” pelo Imposto de Selo288.

Porém, como nos elucida SALVADOR DA COSTA, o privilégio creditório

mobiliários especial previsto no n.º2 do artigo 738.º do CC passou a aplicar-se aos

créditos tributários resultantes de Imposto de Selo, visando os bens móveis que sejam

transmitidos gratuitamente.289

De notar que estes mesmos créditos gozam ainda, em conjunto com os créditos

tributários relativos ao IMT, de privilégio creditório imobiliário especial, nos termos do

n.º2 do artigo 744.º, incidindo tal garantia sobre os bens cuja transmissão deu origem à

liquidação do imposto. Por fim, centramos a nossa atenção para o privilégio imobiliário

especial concedido aos créditos tributários relativos “à contribuição predial devida ao

Estado ou às autarquias locais”, incidindo esta garantia sobre os bens cujos rendimentos

estão sujeitos a esta contribuição. Sobre este preceito normativo tecemos duas breves

notas analíticas.

Em primeiro lugar e no seguimento do que já referimos também sobre a SISA e o

imposto sobre sucessões e doações, sempre se diga que a referência à contribuição

predial deixou de fazer sentido face à atual configuração do ordenamento tributário.

Neste sentido, onde se lê “contribuição predial”, deve entender-se como sendo essa uma

referência ao IMI, como aliás resulta da própria leitura do n.º1 do artigo 122.º do CIMI.

Em segundo lugar, da análise ao n.º1 do artigo 744.º do CC ressalta que a eficácia

temporal do privilégio creditório face ao crédito tributário que reforça é menor

relativamente à prevista no n.º1 do artigo 736.º.

Efetivamente o legislador prevê que apenas se encontrem abrangidos pelo privilégio

imobiliário especial os créditos inscritos para cobrança no ano corrente da data da

penhora e nos dois anos anteriores, ao contrário da previsão dos três anos anteriores

aplicável ao privilégio mobiliário geral dos créditos tributários por impostos diretos.

288 O Código do Imposto de Selo foi totalmente revisto e republicado pelo D.L. n.º 287/2003, 12.11. De notar ainda que o artigo 28.º do mesmo diploma expressamente indica: “1 - Todos os textos legais que mencionam Código da Contribuição Autárquica ou contribuição autárquica consideram-se referidos ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) ou ao imposto municipal sobre imóveis (IMI). 2 - Todos os textos legais que mencionem Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, imposto municipal de sisa ou imposto sobre as sucessões e doações consideram-se referidos ao Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), ao Código do Imposto do Selo, ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e ao imposto do selo, respectivamente.” 289 Cfr. SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 138. O próprio n.º1 do artigo 47.º do CIS confirma esta interpretação, ao explicitar que “ Os créditos do Estado relativos ao imposto do selo incidente sobre aquisições de bens têm privilégio mobiliário e imobiliário sobre os bens transmitidos, nos termos do n.º 2 do artigo 738.º ou do n.º 2 do artigo 744.º do Código Civil, consoante a natureza dos bens.”

113

Assim e de acordo com esta solução, se o crédito relativo ao IMI é inscrito para

cobrança no ano de 2006, tendo a penhora dos bens do devedor sido realizada em 2010,

esse crédito não beneficiará da proteção conferida pelo privilégio imobiliário especial

aqui em apreço. Sempre se diga que atenta a natureza jurídica do privilégio imobiliário

especial, os créditos tributários por ele abrangidos serão graduados em primeiro lugar

face aos créditos hipotecários sobre os bens, atento o regime do artigo 751.º do CC290.

Tempo para uma última consideração desta vez sobre a cumulação de privilégios

creditórios sobre o mesmo tipo de créditos tributários. Se até aqui procuramos enunciar

os vários privilégios concedidos pelo CC aos créditos tributários, importa agora aferir

das hipóteses em que um único crédito tributário se poderia encontrar, teoricamente,

garantido por um privilégio creditório geral (como é o previsto no artigo 736.º) e

simultaneamente por um privilégio creditório especial.

Nesse sentido, o n.º2 do artigo 736.º prevê a inaplicabilidade do privilégio creditório

mobiliário geral conferido genericamente aos créditos por impostos pelo n.º1 do mesmo

preceito, face aos créditos tributários devidos a título de IMT, IMI e Imposto de Selo,

bem como a todos os demais créditos tributários já abrangidos por privilégios

creditórios especiais. O interessante porém é que, como aliás infra analisaremos, o

legislador atribui em vários outros diplomas avulsos, privilégios creditórios gerais a em

favor de vários outros créditos tributários, contrariando a vontade do legislador expressa

no já citado artigo 8.º do Diploma Preambular que aprova o CC e a solução designada

no sobredito n.º2 do artigo 736.º do CC.

3.2 – Privilégios Creditórios previstos no CIRS e no CIRC

Analisados os privilégios creditórios conferidos pelo CC aos créditos tributários, é

tempo de analisarmos os demais previstos em legislação avulsa. Neste sentido, aos

créditos tributários devidos a título de IRS e de IRC o legislador decidiu atribuir-lhe

privilégio mobiliário geral e “privilégio imobiliário”, como resulta do texto dos artigos

111.º do CIRS e 116.º do CIRC. A primeira interrogação do intérprete aplicador do

direito perante esta norma resume-se à dúvida sobre qual é a amplitude do privilégio

290 Cfr. neste sentido o Ac. do STA de 13/07/11, referente ao processo n.º 0380/11, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1e6ccdf404e8a7c5802578db003e8a76?OpenDocument&ExpandSection=1 e no qual se pode ler: “Nos termos dos artigos 744.º, n.º 1 do Código Civil e 122º do Código do IMI, gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos a Imposto Municipal sobre Imóveis, os créditos exequendos de IMI inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora (…), e nos dois anos anteriores, bem como os respectivos juros de mora (8.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março), pelo que devem ser também graduados em primeiro lugar, precedendo os créditos garantidos por hipoteca.

114

imobiliário a que o legislador faz referência. É um privilégio de carácter geral ou será

um privilégio de carácter especial?

Mas antes de nos debruçarmos sobre estas interrogações, uma breve nota sobre o

privilégio mobiliário geral concedido pelo preceito in questio, para constatar que a

garantia conferida, já deriva do próprio n.º1 do artigo 736.º do CC, na medida em que

tanto o IRS como o IRC são, por excelência, verdadeiros impostos diretos, sendo certo

que a dívida tributária que lhes é associada se renova anual e sucessivamente. Não

obstante, mesmo que pudessem surgir dúvidas sobre a aplicabilidade da norma do CC

no âmbito da relação jurídica tributária, facilmente seriam esclarecidas atenta a remissão

legislativa operada na alínea a) do n.º2 do artigo 50.º da LGT.

Todavia, a discussão em torno do disposto no artigo 111.º do CIRS e do 116.º do

CIRC não se centra na figura do privilégio mobiliário mas antes no privilégio

imobiliário aí estabelecido. Na jurisprudência dúvidas não se colocam sobre o alcance

deste privilégio, sendo unânime a posição de que este se trata de um privilégio geral,

abrangendo todos os bens imóveis existentes na esfera patrimonial do devedor à data da

penhora ou ato equivalente291. Este carácter geral do privilégio resulta do próprio texto

do preceito, como se depreende da expressão “sobre os bens existentes no património

do sujeito passivo à data da penhora”, na medida em que o legislador não especifica,

intencionalmente, que bens se encontram abrangidos pelo privilégio.

Na nossa humilde perspetiva, outra não podia ser a solução interpretativa aplicável,

em tudo idêntica à do texto decorrente do n.º1 do artigo 736.º do CC que também atribui

um privilégio geral aos créditos tributários decorrentes de impostos diretos e, por

contraposição com o texto do artigo 744.º do mesmo diploma, no qual o legislador

atribuí um privilégio creditório especial, especificando que bens se devem considerar

abrangidos por essa garantia. No fundo trata-se da concretização da clássica regra da

hermenêutica jurídica segunda a qual “onde o legislador não distingue, não deve o

intérprete fazê-lo”292.

291 Vejam-se os Acórdãos do STA de 12/07/06, relativo ao processo n.º 0641/06 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1e99fc67ad9f7915802571ce0045e396?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1) e o de 7/10/09, referente ao processo n.º 0628/09 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7149a60f74da35358025764e004bacf6?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1). 292 Nesta matéria deve o intérprete aplicador do direito seguir o princípio ínsito no n.º3 do artigo 9.º do CC, isto é, no momento de fixação do sentido e alcance da lei, presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento acertadamente e que consagrou as soluções mais acertadas. Para mais desenvolvimentos sobre a interpretação da lei, veja-se, por todos, JOÃO BAPTISTA MACHADO, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 21.ª Reimpressão, Coimbra, 2013, Almedina, págs. 175 e ss.

115

Além deste argumento em favor do carácter geral dos privilégios creditórios

imobiliários vertidos nos artigos 111.º do CIRS e 116.º do CIRC, sempre se diga que se

fossem considerados como especiais, tal solução seria frontalmente contrária à regra do

n.º2 do artigo 738.º do CC, na medida em que, para além do privilégio mobiliário geral

de que beneficiam os créditos tributários decorrentes de IRS e IRC, estes beneficiariam

de privilégios especiais, cumulando assim dois tipos de privilégios creditórios, o

mobiliário geral e um privilégio imobiliário especial, quando a intenção do legislador do

CC foi a de reduzir os privilégios creditórios atribuídos ao crédito tributário. Tendo em

conta a estrutura analítica por nós utilizada aquando do estudo dos privilégios

creditórios concedidos aos créditos tributários pelo CC, importa a esta parte precisar a

eficácia temporal dos privilégios creditórios objeto da presente análise.

No caso dos privilégios dos atribuídos pelo CIRS e pelo CIRC, verifica-se que o

legislador limitou a sua eficácia temporal face ao regime resultante do n.º1 do artigo

736.º do CC, já que aqueles apenas abrangem as quantias devidas a título de IRS e/ou de

IRC referentes aos três últimos anos. Por outras palavras, apenas se encontram

abrangidos os créditos resultantes dos rendimentos tributáveis auferidos nos três anos

anteriores aos do ano civil da data em que se realizou a penhora de bens do devedor, não

valendo aqui o critério do ano de inscrição do crédito para cobrança, a que faz alusão o

n.º1 do artigo 736.º do CC.

Esta é a posição dominante na jurisprudência, como se retira do Ac. do STA de 22 de

Janeiro de 2014, do qual se retira: “(…) É certo que, no âmbito da interpretação do artº

736º, nº 1 do Código Civil, a maior parte da doutrina e se vinha pronunciando no

sentido de que o que releva para a definição da abrangência temporal do privilégio não

é o momento em que ocorre o facto gerador ou em que a lei o considera verificado, mas

sim o ano em que o imposto deve ser cobrado. (…) Porém o legislador do CIRC (e

também do CIRS – cf. artº 111º) limitou o privilégio aos bens existentes no património

do sujeito passivo à data da penhora para pagamento do imposto relativo aos últimos

três anos, não tendo feito qualquer alusão à “inscrição do imposto para cobrança”.

(…) estes últimos três anos serão os imediatamente anteriores àquele em que foi

efectuada a penhora (Como é evidente o IRC do ano da penhora só no ano seguinte é

liquidado, não podendo ser considerado em sede de reclamação de créditos

instrumental da execução onde aquela penhora se efectivou.) ou acto equivalente, não

se aplicando aqui o critério que faz alusão à realização do acto tributário (ou inscrição

116

para cobrança do imposto na redacção dos arts. 736.° n.° 1 e 744º, nº 1 do Código

Civil). Efectivamente, se o legislador quisesse que a determinação dos 3 últimos anos

referidos naquele art. 116º fosse balizada pela inscrição em cobrança do CIRC, após a

sua liquidação, tê-lo-ia dito expressamente. Ou, então, teria feito uma remissão para os

referidos preceitos do Código Civil, o que não fez. (…)” 293.

Por fim, a análise aos privilégios imobiliários gerais atribuídos pelo legislador no

CIRS e no CIRC não ficaria completa sem uma referência aos seus efeitos perante os

direitos de terceiro.

Antes das alterações legislativas aos artigos 735.º, 749.º e 751.º do CC, introduzidas

pelo D.L. n.º 38/2003 de 8 de Março, esta foi uma problemática muito discutida na

doutrina e na jurisprudência uma vez que na redação originária do CC o legislador não

previu a criação de privilégios imobiliários de índole geral, mas apenas os de índole

especial. Neste sentido, emergia a dúvida de saber qual era o regime jurídico aplicável

aos privilégios imobiliários gerais como os previstos pelo CIRS e pelo CIRC, ou seja, se

lhe era aplicável o regime do artigo 749.º previsto para os privilégio mobiliários gerais

ou, em contrário e atendendo ao fato de a antiga redação do artigo 751.º se referir

genericamente aos “privilégios imobiliários”, seria aplicável aos casos de confronto

entre o privilégio imobiliário geral e os direitos de terceiro, o regime previsto no artigo

751.º do CC. Antes de oferecermos a solução jurisprudencial sobre esta questão, duas

pequenas considerações sobre esta problemática.

Em primeiro lugar, este problema colocava-se por força da antiga redação do n.º3 do

artigo 735.º do CC que dispunha genericamente que “os privilégios imobiliários são

sempre especiais”, o que adensava ainda mais as dúvidas do intérprete aplicador no

momento de determinação do regime aplicável aos “novos” privilégio imobiliários

gerais, mais até, suscitando novas dúvidas na doutrina e jurisprudência sobre a natureza

jurídica dos privilégios creditórios. Ademais, a principal crítica apontada ao privilégio

imobiliário geral prendia-se com a inexistência de uma qualquer relação de causalidade

entre o bem imóvel e o nascimento do direito de crédito, ao contrário do que se

verificava nos privilégios imobiliários previstos no CC, exclusivamente especiais.

293 Disponível em (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/36955382b05f661180257c6e005bf758?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1). No mesmo sentido, veja-se o Ac. do STA de 20/02/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/785ea0dd3624bd5380257b2b004f79d3?OpenDocument.

117

Em segundo lugar, não obstante de o legislador do CC não ter previsto a criação de

privilégios imobiliários gerais, sempre se diga que o seu espectro de incidência objetiva,

mesmo na versão originária dos preceitos supra citados do CC, era de fácil

determinação por parte do intérprete aplicador do direito.

Se o privilégio assume carácter geral, o regime aplicável teria de ser,

necessariamente o do artigo 749.º do CC, já que apesar de este preceito ter sido

exclusivamente pensado para os privilégios mobiliários gerais, a verdade é que por

maioria de razão, a sua aplicabilidade através de aplicação analógica aos privilégios

imobiliários gerais faria todo o sentido, atento o seu próprio carácter geral294 à

semelhança dos privilégios mobiliários gerais.

É neste contexto que o Tribunal Constitucional foi sucessivamente chamado a

pronunciar-se sobre a constitucionalidade da interpretação do artigo 751.º do CC

segunda a qual o privilégio imobiliário geral conferido aos créditos tributários pelo

CIRS e pelo CIRC, prevalecem sobre créditos hipotecários, mesmo que registados

anteriormente à data da constituição do crédito privilegiado.

Sobre estas interrogações pronunciaram os Juízes Conselheiros do Tribunal

Constitucional em diversos Acórdãos, sustentando a inconstitucionalidade da referida

interpretação, por violação do princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de

Direito, decorrente do artigo 2.º do texto da Lei Fundamental.295

294 Neste sentido, concordamos com os fundamentos invocados pelo Juiz Conselheiro Paulo Mota Pinto no seu voto de vencido no Ac. do TC n.º 354/00 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000354.html), do qual transcrevemos o seguinte trecho: “ (…) Entendo, porém, que tal interpretação da norma em apreço – correspondente embora àquela cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – não resulta, nem da sua letra (no citado artigo 11º não se refere qualquer oponibilidade a terceiros), nem do seu enquadramento sistemático (no artigo 12º do mesmo diploma prevê-se uma hipoteca legal para garantia do pagamento das contribuições à segurança social), e que, levando à existência de um direito real, mesmo de garantia, sobre todo o património imobiliário, contraria o princípio da especialidade ou individualização do objecto dos direitos das coisas (v., por todos, Orlando de Carvalho, Direito das coisas, Coimbra, 1977, págs. 220 e segs.). Logo por estas razões, impunha-se-me a conclusão de que aos privilégios imobiliários gerais criados por lei ordinária posteriormente ao Código Civil, como o previsto na norma em apreço, é de aplicar o artigo 749º daquele código, nos termos do qual "o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente" (neste sentido, expressamente, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 825). (…). ” 295 São exemplos o Acórdão do TC n.º 193/02 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020193.html) e ainda o Acórdão n.º 109/02 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020109.html). Destacamos porém os fundamentos do voto de vencido do Juiz Conselheiro Alberto Tavares da Costa do último dos Acórdãos indicados, que votou no sentido da não inconstitucionalidade, baseando-se na ausência de uma verdadeiro direito real de garantia associado ao privilégio imobiliário geral: “Se a existência de um privilégio imobiliário geral pode recortar-se como "solução anómala na geometria dos conceitos" (no dizer de Mário Júlio de Almeida Costa, ob. cit., pág. 900), o certo é que a inaplicabilidade da norma do artigo 751º do Código Civil – que só abrange, insiste-se, os privilégios imobiliários especiais – apela para a observância do disposto no artigo 749º do mesmo diploma que, menos "agressivamente", se limita a atribuir uma preferência creditícia, a incidir genericamente sobre (todos) os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora. Situação esta muito diferente da contemplada nos acórdãos em que a decisão recorrida se apoia, relativa às dívidas da segurança social, deixando intocado o princípio da confiança que nesses arestos se considerou atingido. (…) É que a norma do artigo 104º do CIRS – hoje artigo 111º –, tem a virtualidade de relevar na graduação de créditos, não como garantia real mas como simples preferência, mero direito de prioridade que, na execução do património debitório, se coloca prevalecentemente em relação aos credores comuns (cfr., entre outros, M. J. Almeida e Costa, ob. cit., pág. 825; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil-Reais, Coimbra, 4ª ed., 1987, pág. 489. Neste sentido parece também pronunciar-se, no específico âmbito do artigo 104º, André Salgado de Matos, Código do Imposto de Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) Anotado, Lisboa, 1999, pág. 497).

118

Porém, só com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do

sentido da decisão vertido no Acórdão do TC n.º 362/02 do Plenário do Tribunal é que a

questão ficou definitivamente resolvida. No seguimento desta decisão, o legislador viria

a operar a reforma da Ação Executiva através das alterações introduzidas ao CPC e ao

CC pelo Decreto-lei n.º 38/2003, de 8 de Março, das quais se destacam as atuais

redações dos preceitos do CC, a saber, do n.º 2 do artigo 736.º, a introdução do n.º2 do

artigo 749.º e ainda, a nova redação do artigo 751.º.

3.3 – Os Privilégios Creditórios previstos no CIMI, no CIMT e no Código de Imposto

de Selo

Em matéria de tributação sobre o património, atenta a configuração atual do sistema

tributário português encontramos três tipos de imposto sobre o património, todavia, cada

um versando sobre aspetos distintos em matéria de riqueza patrimonial. Sobre os

privilégios atribuídos aos créditos tributários devidos a título de impostos sobre o

património já nos debruçamos supra aquando da nossa análise sobre os privilégios

creditórios atribuídos a créditos tributários pelo legislador do CC.

Centrando a nossa atenção às disposições normativas previstas nos respetivos

Códigos Tributários, constatamos que o legislador tributário optou, e bem, na maioria

dos casos, por recorrer à técnica da remissão legal. Assim, no caso do Imposto

Municipal sobre Transmissões onerosas de Imóveis296, no artigo 39.º do CIMT o

legislador refere simplesmente que “o IMT goza os privilégios previstos nos artigos

738.º e 744.º do Código Civil para a sisa.” Por outras palavras, o crédito tributário

devido a título de IMT beneficia em simultâneo de um privilégio creditório mobiliário

especial sobre os bens móveis transmitidos, decorrente do n.º2 do artigo 738.º do CC e

de um privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis transmitidos, nos termos do

n.º2 do artigo 744.º do CC297. Consequentemente, não beneficiam estes créditos

tributários do privilégio creditório mobiliário geral previsto no n.º1 do artigo 736.º do

CC, atenta a limitação prevista no n.º2 do mesmo artigo.

296 Para uma análise mais detalhada sobre o IMI e o IMT, vejam-se as considerações do Professor JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Direito Financeiro Local – Finanças Locais”, 2.º Edição, 2014, Braga, Coimbra Editora, págs. 196 e ss; e ainda, o estudo de JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, “Lições de Impostos sobre o Património”, 2.ªEdição, 2013, Lisboa, Almedina Editora. 297 Sobre este aspeto, MIGUE LUCAS PIRES, últ. ob, cit., pág. 297 questiona qual o verdadeiro objeto do privilégio mobiliário geral atribuído pelo artigo 738.º aos créditos tributários devidos a título de IMT, já que “(…)este incide apenas sobre os bens móveis transmitidos e o IMT é um tributo que incide sobre as transmissões de bens imóveis(…)”. Também neste sentido, vejam-se as considerações de SOUSA FRANCO, últ. ob. cit., págs. 99 a 101

119

Questionamo-nos sobre a necessidade destas disposições legais, uma vez que, como

aliás tivemos a oportunidade de afirmar anteriormente, o n.º2 do artigo 50.º da LGT já

previa expressamente a aplicação do regime dos privilégios creditórios previsto no CC

aos créditos tributários, pelo que as remissões legais operadas no artigo 39.º do CIMT se

revela algo inócua. Devemos ainda realçar que no que diz respeito à eficácia temporal

destes privilégios, o legislador do CC não introduziu qualquer limite temporal, opção

que facilmente se compreende atento o carácter pontual das obrigações tributárias em

sede de IMT, ao contrário do que se verifica, por exemplo, em matéria de IMI, cuja

obrigação de pagar o tributo se renova anualmente.

De fato, no que toca aos privilégios creditórios em matéria de IMI, o n.º1 do artigo

122.º do CIMI apresenta também uma remissão legal para os comandos normativos do

CC em matéria de privilégios creditórios tributários, da qual se concluí que o crédito

tributário devido a título de IMI é garantido também pelo privilégio creditório

imobiliário especial previsto no n.º1 do artigo 744.º do CC inicialmente estabelecido

para a contribuição predial.

Desta forma, os créditos tributários devidos a título de IMI são garantidos por um

verdadeiro direito real de garantia, na medida em que ao privilégio imobiliário especial

são reconhecidos pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, as características

próprias deste tipo de direito real, o direito de preferência e o direito de sequela298. Este

privilégio incide especificamente sobre os bens imóveis cujos rendimentos se

encontram sujeitos a IMI, porém, apenas relevando a esta parte os créditos tributários

que tenham sido inscritos para cobrança no ano civil da data da penhora ou de ato

equivalente, e nos dois anos anteriores.

Contudo, sobre a eficácia temporal do privilégio imobiliário especial previsto no n.º1

do artigo 744.º do CC devemos fazer ainda alusão às particularidades inerentes à

liquidação do valor do deste imposto. Resulta do artigo 113.º do CIMI que o cálculo do

valor do crédito tributário é liquidado anualmente, “em relação aos sujeitos passivos

que constem das matrizes em 31 de dezembro do ano a que o mesmo respeita” (n.º1 do

artigo 113.º), liquidação essa que é realizada “nos meses de fevereiro e março do ano

seguinte” (n.º2 do artigo 113.º). Por outras palavras, o momento da inscrição para

cobrança dos valores de imposto a pagar apenas é feita no ano seguinte ao qual a mesma

298 Cfr. neste sentido o disposto no n.º1 do artigo 735.º e o artigo 751.º, ambos do CC.

120

se reporta, fato que releva aquando da determinação dos créditos tributários que se

encontram abrangidos pela eficácia do privilégio imobiliário especial299.

Uma última nota para realçar que, além do privilégio imobiliário especial que

acabamos de analisar, os créditos devidos a título de IMI beneficiam ainda de outras

garantias creditórias, atenta a possibilidade prevista no n.º2 do artigo 122.º (e que aliás

também já resultava de inúmeras outras previsões normativas, como é o caso do artigo

50.º da LGT e do próprio 195.º do CPPT) que concede ao credor tributário o poder de

constituir hipoteca legal sobre o bem imóvel com base no qual é calculado o valor de

IMI a ser pago pelo contribuinte.

Por fim, dedicamos a nossa atenção aos créditos tributários devidos a título de

Imposto de Selo e que cuja satisfação é também garantida por privilégios creditórios. A

qualificação conceptual sobre o Imposto de Selo não reúne consensos na doutrina,

muito em parte dada a variedade de atos e factos que estão sujeitos a este tributo. Nas

palavras de JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, “(…) trata-se de um imposto que

incide sobre uma multiplicidade heterogénea de factos ou atos ( «atos, contratos,

títulos, livros papéis e outros factos…», como estabelece o n.º1 do Código), sem um

traço comum que lhes confira identidade. (…) A classificação orçamental integra-o no

capítulo dos impostos indiretos, mas a multiplicidade de factos geradores que tipifica

na sujeição, não permite que essa classificação seja aplicável de forma universal em

todos os factos sujeitos a imposto. (…) ”.300Não obstante as dificuldades conceptuais

colocadas pela multiplicidade e variedade e atos e fatos sobre os quais incide o de

Imposto de Selo, centramos a nossa atenção para o disposto do artigo 47.º do CIS301.

Deste comando legislativo resulta que os créditos tributários devidos a título de IS

são créditos que beneficiam de um de dois privilégios, consoante a natureza dos bens

transmitidos: i) privilégio mobiliário especial (nos casos em que o valor de imposto

liquidado diz respeito a aquisição de bens móveis), nos termos do n.º2 do artigo 738.º

299 Exemplificando, se a data da penhora diz respeito a Janeiro de 2013, apenas estarão garantidos pelo privilégio imobiliário especial do n.º1 do artigo 744.º do CC, os créditos tributários inscritos para cobrança nos anos de 2011 e de 2012, e já não os inscritos em 2013, uma vez que a liquidação do valor de IMI a pagar apenas acontece nos meses de Fevereiro e de Março do ano seguinte aquele a que dizem respeito. Neste sentido, na jurisprudência veja-se o Ac. do STA de 25/01/12 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b0829ee81009319c802579a3005a3f9a?OpenDocument&ExpandSection=1) e ainda do mesmo tribunal superior, o Ac. de 13/07/11, (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1e6ccdf404e8a7c5802578db003e8a76?OpenDocument&ExpandSection=1) 300 Cfr. JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, últ. ob. cit., pág. 427. 301 Dispõe o artigo 47.º do CIS: “1 - Os créditos do Estado relativos ao imposto do selo incidente sobre aquisições de bens têm privilégio mobiliário e imobiliário sobre os bens transmitidos, nos termos do n.º 2 do artigo 738.º ou do n.º 2 do artigo 744.º do Código Civil, consoante a natureza dos bens. 2 - O imposto liquidado nas transmissões gratuitas goza dos privilégios que nas disposições legais referidas no número anterior se estabelecem para o imposto sobre as sucessões e doações.

121

do CC; ou ainda, ii) no caso do valor de imposto liquidado ser respeitante à aquisição de

bens imóveis, privilégio imobiliário especial sobre o bem objeto da aquisição, nos

termos do n.º2 do artigo 744.º do CC. No fundo, este é mais um exemplo dos casos em

que o legislador se limita a introduzir na lei tributária uma remissão legal para o regime

dos privilégios creditórios atribuídos a créditos tributários previsto no CC. 7

3.4 – Privilégios Creditórios associados aos créditos da Segurança Social

Previamente à enunciação e análise dos privilégios creditórios conferidos aos

créditos da Segurança Social, importa fazer uma breve alusão ao complexo das relações

jurídico-obrigacionais que se estabelecem no âmbito do funcionamento do sistema de

segurança social. Neste sentido, o sistema de Segurança Social corresponde à resposta

do legislador ordinário aos comandos constitucionais resultantes do artigo 63.º da Lei

Fundamental, no qual se estabelece genericamente que “todos têm direito à segurança

social” e ainda, que este sistema “protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez,

viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta

ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.” Quanto à

organização e direção do sistema de segurança social, o legislador constituinte comanda

o Estado nessas mesmas tarefas (n.º2 do artigo 65.º da CRP), todavia não especificando

de que forma o sistema deva ser financiado.

Todavia, podemos afirmar que o dever de contribuir para o sistema de segurança

social resulta do próprio texto constitucional, como nos explicam os professores

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA302: “(…) a segurança social é, em parte,

um encargo do Estado, a ser suportado pelo respectivo orçamento; por outro lado,

porém, a segurança social não depende apenas do financiamento público directo, mas

sim, também (ou sobretudo), das contribuições dos respectivos beneficiários (princípio

da contribuitividade), estando aqui implícito um dever de contribuição para a

segurança social (…)”.

Porém sempre se diga que a relação jurídica tributária inerente ao sistema de

Segurança Social assume especificidades face à “típica” relação jurídica tributária, já

que a relação jurídica inerente ao sistema de segurança social compreende em si mesma

dois tipos de vinculação jurídica. Por um lado, os artigos 6.º e 7.º do Código

302 Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, últ. ob. cit., págs. 819 e 820.

122

Contributivo303 abordam a “relação jurídica vinculativa”, consubstanciando-se esta

como a relação jurídica que estabelece a ligação entre as pessoas singulares e coletivas e

o sistema de segurança social e cujo objeto se traduz na “determinação dos titulares do

direito à proteção social do sistema previdencial da segurança social, bem como dos

sujeitos das obrigações.”.

Por outro lado e com maior relevância para o espetro temático da presente

dissertação, nos artigos 10.º a 15.º do Código Contributivo, o legislador aborda o

vínculo contributivo inerente a esta mesma relação jurídica, definindo-o como um

vínculo com uma verdadeira natureza obrigacional que liga ao sistema previdencial os

trabalhadores e as respetivas entidades empregadoras, os trabalhadores independentes

e quando aplicável as pessoas coletivas e as pessoas singulares com atividade

empresarial que com eles contratam e ainda os beneficiários do regime de seguro

social voluntário.304

Neste sentido, o objeto da obrigação contributiva é o pagamento regular de

contribuições e de quotizações por parte das pessoas singulares e coletivas que se

relacionam com o sistema previdencial de segurança social, consubstanciando tais

quantias a mais importante fonte de financiamento de todo o sistema de segurança

social305.

Clarificadas as bases para a compreensão da natureza tributária das contribuições

para a segurança social, importa agora debruçarmo-nos sobre os meios garantísticos ao

dispor do Instituto da Segurança Social para cobrança dos seus créditos. Convém ter

presente que a associação da figura do privilégio creditório ao crédito contributivo não é

propriamente uma novidade no nosso ordenamento jurídico, muito pelo contrário. De

fato, ainda antes da entrada em vigor do CC em 1967, o legislador tinha já concedido

privilégio creditório mobiliário geral com vista à cobrança das quantias devidas a título

de contribuições para o sistema de previdência social306.

303 O Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (abreviadamente, Código Contributivo) foi aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16.09, que expressamente revogou os vários diplomas avulsos referentes à disciplina jurídica da relação contributiva. 304 Cfr. arts. 10.º e 11.º do Código Contributivo. 305 O próprio legislador especifica no n.º 3 do artigo 11.º do Código Contributivo que “As contribuições e quotizações destinam-se ao financiamento do sistema previdencial que tem por base uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações.” 306 Cfr. neste sentido, o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 38538, de 24/11/51 (disponível em https://dre.pt/application/file/51040 , consultado em 15/12/15) e o artigo 167.º do Decreto n.º 45266, de 23/09/63 (disponível em http://www.seg-social.pt/documents/10152/13151/Dec_45266/d95970df-00d0-40ec-baf1-553b54ee2232/d95970df-00d0-40ec-baf1-553b54ee2232, consultado em 15/12/15).

123

Atualmente a satisfação dos créditos da Segurança Social é garantida através de dois

privilégios creditórios gerais, conferidos pelo legislador nos artigos 204.º e 205.º do

Código Contributivo, sendo o primeiro um privilégio mobiliário307 e o segundo um

privilégio imobiliário308.

O problema relativamente a estes privilégios coloca-se quanto à determinação da sua

eficácia jurídico-temporal, ou seja, a determinação dos créditos que se podem

considerar abrangidos pela proteção conferida pelo privilégio.

Se no caso dos privilégios previstos no artigo 108.º do CIRS e 116.º do CIRC o

legislador expressamente indica um critério determinador dos créditos que se devem

considerar abrangidos pela eficácia do privilégio, referindo que apenas são considerados

os créditos relativos aos três anos anteriores à data da apreensão judicial de bens, o

mesmo não se verifica no caso dos artigos 204.º e 205.º do Código Contributivo, face

aos quais o legislador optou por não “balizar” a eficácia temporal destes privilégios, o

que poderia criar hipotéticas situações em que a Segurança Social reclama créditos

vencidos e inscritos para cobrança no ano de 2000, e esses mesmos créditos serem ainda

hoje garantidos por privilégio creditório.

Deste modo, consideramos que na tarefa de determinar a eficácia jurídico-temporal

dos privilégios creditórios a favor dos créditos da Segurança Social, o critério orientador

do intérprete aplicador deve ser o prazo de prescrição destes mesmos créditos previsto

no n.º1 do artigo 187.º do Código Contributivo: “A obrigação do pagamento das

contribuições e das quotizações, respectivos juros de mora e outros valores devidos à

segurança social, no âmbito da relação jurídico-contributiva, prescreve no prazo de

307 De salientar que nos termos do n.º 2 do artigo 204.º, o privilégio mobiliário geral aí previsto “(…) prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.” 308 A consagração do privilégio imobiliário geral em favor dos créditos da Segurança Social foi introduzido no ordenamento jurídico português pela primeira vez através do artigo 3.º do D.L. n.º 512/76, de 3.07, diploma que viria a ser tacitamente revogado pelo D.L. n.º 103/80, de 9.05. Todavia, o privilégio imobiliário geral começou a suscitar dúvidas na doutrina e na jurisprudência praticamente desde da sua criação, especialmente no que à sua eficácia face aos direitos de terceiros diz respeito, atenta a inexistência da figura dos privilégio imobiliários gerais. De notar que o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se em diversas ocasiões sobre a própria constitucionalidade do privilégio imobiliário geral atribuído aos créditos da Segurança Social. Neste sentido veja-se o Ac. do TC n.º 688/98, (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980688.html ,o Ac. n.º 193/02, (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020193.html) e ainda, sobre o problema da eficácia do privilégio imobiliário geral face a direitos de terceiro, o Ac. do TC n.º 363/02, do qual resultou o seguinte sentido da decisão: “(…) Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República, das normas constantes do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil.(…) ”.

124

cinco anos a contar da data em que aquela obrigação deveria ter sido cumprida.309

(sublinhado nosso).

4. Conflitos entre Privilégios Creditórios

A esta parte cabe-nos a tarefa de abordar os casos onde sobre o mesmo bem

concorrem entre si dois ou mais créditos privilegiados. Esta é uma realidade com que o

intérprete aplicador do direito se depara com frequência, em especial nos casos em que

são reclamados múltiplos créditos tributários já vencidos e que impendem sobre o

mesmo devedor. É também a esta parte que as diferenças entre os privilégios gerais e os

privilégios especiais mais se evidenciam. Contudo, a questão que se coloca a esta parte

resume-se à de saber qual deve ser o critério a seguir pelo intérprete perante o conflito

entre privilégios creditórios.

Desde logo, o primeiro critério orientador para a sua graduação será o da

especialidade quanto ao seu objeto, ou seja, o seu carácter enquanto privilégios geral ou

privilégio especial Assim, atenta a qualificação do privilégio especial (mobiliário ou

imobiliário) como um autêntico direito real de garantia, logicamente que nestes casos de

conflito prevalecerá o crédito que beneficie de um privilégio especial, em detrimento do

crédito garantido por privilégio geral.

Na nossa perspetiva, uma solução oposta (aquela em que o crédito que goza de

privilégio geral prevalece sobre o especial) redundaria não raras vezes na

impossibilidade absoluta de ser satisfeito o crédito inerente ao privilégio especial, na

medida em que sendo essa a única garantia em favor do credor, este perderia a

preferência sobre a parte do produto da venda relativa ao bem sobre o qual incide o

privilégio especial310.

Todavia, ao analisarmos as disposições do CC sobre o conflito de diferentes créditos

privilegiados entre si constatamos que esta regra comporta uma importante exceção em

favor dos créditos tributários. Com efeito, decorre do disposto da alínea a) do n.º1 do

artigo 747.º do CC que os créditos por impostos a favor do Estado devem ser graduados

em primeiro lugar face aos demais créditos privilegiados. Porém, dada a referência

genérica resultante do texto legal ao privilégio mobiliário, coloca-se o problema de

309 Sem esquecer que nos n.ºs 2 e 3 do artigo supra citado, o legislador estabelece as causas de suspensão da contagem do prazo prescricional. 310 Cfr. neste sentido, VAZ SERRA, últ. ob. cit., págs. 231 e 232.

125

saber se este privilégio é o privilégio mobiliário geral decorrente do n.º1 do artigo 736.º

ou, por outro lado, se o legislador aqui se refere apenas aos privilégios mobiliários

especiais referidos no artigo 738.º do CC.

Sobre esta problemática, MIGUEL LUCAS PIRES311 alerta para o facto de que

nestas hipóteses o crédito garantido por privilégio mobiliário geral prevalece face a um

outro direito de crédito garantido por privilégio mobiliário especial, contrariando a o

critério que supra enunciamos, sendo esta, no mínimo, uma solução legal “estranha”, já

que parece contrariar o próprio princípio da especialidade dos direitos reais. De fato,

esta opção do legislador poderá resultar situações perante as quais a mera preferência

legal resultante do privilégio geral será prevalente face a um direito real de garantia

como é o privilégio mobiliário especial. Por outro lado, SALVADOR DA COSTA312

defende que a referência ínsita na alínea a) do n.º1 do artigo 747.º do CC releva apenas

face aos privilégios mobiliários gerais referidos na alínea f) do referido preceito.

Por nós sustentamos a posição aduzida pelo Juiz Conselheiro do STJ, já que

compreendemos que o legislador do CC possa ter configurado esta solução em matéria

de conflito entre privilégios como verdadeiramente excecional. Não obstante e por outro

lado, face à atual multiplicidade de privilégios creditórios mobiliários gerais

consagrados em legislação avulsa (como são os casos do privilégio mobiliário geral a

favor dos créditos da Segurança Social e ainda, do próprio crédito tributário devido a

título de IRS e de IRC), de facto, a ideia de que o privilégio geral possa suplantar o

privilégio especial contraria, na nossa perspetiva, a regra geral da prevalência do direito

real sobre o direito de crédito, postulado basilar do nosso ordenamento jurídico em

matéria de ordenação dominial, para além de colocar maiores dificuldades ao intérprete

aplicador do direito em matéria de graduação de créditos.

Outro problema que poderá decorrer da aplicação desta solução excecional em

matéria de conflitos, verifica-se no âmbito das relações do privilégio geral com os

direitos de terceiro, já que aceitando-se a prevalência de um privilégio geral face ao

privilégio especial, coloca-se a questão sobre qual o regime jurídico aplicável nos casos

311 Cfr. MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., págs. 96 e ss; Sobre este tema, destacamos as considerações de ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ. ob. cit., Vol. I, pág. 768: “ (…) Embora não possa deixar de se fazer intervir, em certa medida, o arbítrio, vê-se que algumas razões levaram o legislador a fixar a ordem das graduações do artigo 747.º. Ficaram em primeiro lugar, os privilégios do Estado e das autarquias locais (n.º1, alín. a)); depois, os mobiliários especiais (n.º1, alíns. b) a e)), e depois os gerais não compreendidos na alíena a) (…).” (sublinhado nosso). 312 , SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., págs. 146 e 147, sustenta que “(…) a alínea a) do n.º1 contém um normativo genérico, abrangente dos privilégios mobiliários especiais e privilégios mobiliários gerais da titularidade do Estado e das autarquias locais (…) Assim, a inserção dos privilégios mobiliários gerais a favor do Estado e das autarquias locais na alínea a) do n.º1 apenas significa que eles prevalecem sobre todos os privilégios gerais a que se reporta a alínea d).

126

de conflito do crédito abrangido pelo privilégio geral e o direito real de garantia de

terceiro, se o do artigo 749.º ou o do artigo 751.º do CC.

Acresce ainda que para o problema do conflito entre privilégio imobiliário geral e

direitos reais de terceiro, o Tribunal Constitucional considerou que estes devem

prevalecer sobre o primeiro, pelo que a aceitar-se a possibilidade de o privilégio

mobiliário geral ser graduado em posição primeira à dos créditos garantidos por

privilégio mobiliário especial, estaríamos a abarcar uma solução de dúbia conformidade

face à Lei Fundamental, bem como, nos casos de conflito destes privilégios face a

direitos de terceiros, a fazer tábula rasa do princípio da prioridade temporal vertido no

artigo 749.º do CC.

5. O Concurso e a Graduação de Créditos Tributários Privilegiados

5.1 – No processo execução fiscal

Como tivemos oportunidade de mencionar supra aquando da determinação do

conceito de “tributo inscrito para cobrança” para efeitos de determinação da eficácia

jurídico-temporal dos privilégios creditórios atribuídos aos créditos tributários devidos a

título de impostos sobre o rendimento, a cobrança dos tributos pode ser cumprida por

uma de duas modalidades, o pagamento voluntário ou a cobrança coerciva da dívida

tributária (artigo 78.º do CPPT).

Centramos agora a nossa atenção no que diz respeito a esta última modalidade de

cobrança da dívida tributária, que por sua vez se concretiza no seio do processo de

execução fiscal. Neste sentido, sobre o objetivo do processo de execução fiscal,

JOAQUIM FREITAS DA ROCHA refere que “o processo de execução fiscal é um

meio processual que tem por objetivo realizar um determinado direito de crédito. (…)

De um modo geral, o processo executivo é enformado por uma ideia de preferência do

direito do credor (favor creditoris): porque o devedor não cumpriu com a sua

obrigação, o processo executivo envolve um acto (penhora) mediante o qual são

desapossados do património daquele alguns bens, bens esses que são posteriormente

entregues ao órgão da execução e vendidos, revertendo o produto da venda para o

credor (…) ”.313

313 Cfr. JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Lições…”, págs. 310 e ss.; Ainda sobre o processo de execução fiscal, ver RUI DUARTE MORAIS, “A Execução Fiscal”, 2.ªEdição, 2006, Coimbra, Almedina.

127

Podemos afirmar que o campo ótimo de concretização e aplicação prática dos efeitos

jurídicos decorrentes da garantia creditória oferecida pelos privilégios creditórios se

encontra no seio das lides processuais de cobrança coercitiva de créditos. No fundo, a

preferência na satisfação do crédito associada ao privilégio creditório apenas se pode

concretizar no momento em que o credor intenta o competente processo executivo para

reclamar a satisfação do seu direito de crédito sobre o património do devedor.

Esta circunstância reflete plenamente a bidimensionalidade da figura do privilégio,

uma vez que o seu regime jurídico substantivo se irá concretizar e tornar eficaz por via

dos instrumentos de direito adjetivo previstos pelo legislador para esse efeito, mais

concretamente, no momento da graduação dos créditos reclamados. Antes de

abordarmos os pressupostos legais inerentes a esta fase do processo executivo fiscal,

devemos salientar a possibilidade conferida ao credor tributário de reclamar os seus

créditos no âmbito de um processo executivo de natureza civil, como decorre do

disposto no n.º1 do artigo 80.º do CPPT314. Este será, todavia, um tópico a desenvolver

aquando da nossa análise do fenómeno da reclamação de créditos no âmbito do

processo executivo comum.

Nestes termos, no âmbito do processo de execução fiscal, os artigos 239.º e seguintes

do CPPT introduzem o regime jurídico mediante o qual é realizada a convocação dos

credores do executado e a respetiva verificação e graduação dos seus créditos. Assim,

uma vez realizada a penhora dos bens do devedor e junta a respetiva certidão de ónus,

estabelece o n.º1 do artigo 239.º do CPPT que devem ser citados para reclamar os seus

créditos: i) os credores com garantia real sobre os bens penhorados; ii) o cônjuge do

executado, nos casos previstos no artigo 220.º do mesmo diploma legal, ou quando a

penhora incida sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo, e ainda, iii) devem

ser citados por via edital os credores desconhecidos e os sucessores dos credores

preferentes.

314 Dispõe o n.º1 do artigo 80.º do CPPT que “Salvo nos casos expressamente previstos na lei, em processo de execução que não tenha natureza tributária são obrigatoriamente citados os chefes dos serviços periféricos locais da área do domicílio fiscal ou da sede do executado, dos seus estabelecimentos comerciais e industriais e da localização dos bens penhorados para apresentarem, no prazo de 15 dias, certidão de quaisquer dívidas de tributos à Fazenda Pública imputadas ao executado que possam ser objecto de reclamação de créditos, sob pena de nulidade dos actos posteriores à data em que a citação devia ter sido efectuada”. Na doutrina algumas vozes insurgiram-se contra a possibilidade da Fazenda Pública poder reclamar os seus créditos em sede de processo de execução civil, atento o carácter privilegiado dos mesmos, já que na o que se verificava prática jurídica é que na grande maioria dos casos em que a Fazenda Pública reclamava os seus créditos, atenta a preferência de pagamento decorrente do privilégio, o credor exequente não lograva obter qualquer parte do produto da venda dos bens penhorados. Com a reforma da Ação Executiva em 2003, o legislador procurou corrigir esta situação, introduzindo limites à reclamação por parte de credor alheio ao processo executivo, de créditos privilegiados, conforme resulta do n.º4 do atual artigo 788.º do CPC.

128

Duas breve notas sobre o disposto neste artigo 239.º do CPPT. Em primeiro, a

omissão legislativa que sobressaí neste preceito relativamente aos credores comuns. Ao

contrário do que se constata no âmbito do processo executivo da ordem judicial, na

execução fiscal apenas são chamados os credores do executado cujo crédito se encontre

tutelado por “garantia real”315, afastando liminarmente a possibilidade de um credor

que beneficie de uma mera garantia pessoal como a fiança, poder reclamar o seu crédito

neste âmbito.

Em segundo lugar, no caso de o executado ser uma pessoa singular, sendo casada,

deve o órgão responsável pela execução fiscal, nos casos em que a responsabilidade

pelo pagamento da dívida tributária seja exclusiva de um dos cônjuges ou ainda, quando

a penhora incida sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo, citar o cônjuge

do executado para que esta tenha a oportunidade de requerer, se for caso disso, a

separação patrimonial.

De resto esta é também uma possibilidade que se verifica no âmbito do processo

executivo da ordem judicial, como resulta do n.º1 do artigo 740.º do CPC316.

Findo o prazo para a reclamação de créditos, é realizada a venda dos bens

penhorados, nos termos do artigo 244.º do CPPT. Uma vez reclamados os créditos, é

necessário efetuar a sua verificação e graduação. Essa tarefa foi entregue pelo legislador

ao órgão de execução fiscal, que nos termos do n.º2 do artigo 245.º do CPPT, deve ser

posteriormente notificada a todos os credores que reclamaram os seus créditos. No que

aos critérios normativos inerentes à graduação dos créditos reclamados, na atual redação

do artigo 246.º do CPPT317, o legislador prevê que na reclamação de créditos em

processo de execução fiscal sejam de aplicação subsidiária as normas do CPC sobre

essa matéria, com a ressalva feita às disposições do CPPT sobre a reclamação da

315 Aquando da análise das várias posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema da natureza jurídica dos privilégios, (ver supra ponto 2.1 do Capítulo II), abordamos a problemática inerente à determinação dos conceitos de “garantia real” e “direito real de garantia, pugnando pela absoluta separação dos mesmos, mais até, considerando o direito real de garantia como um dos exemplo do conceito mais amplo de garantia real das obrigações. Na jurisprudência a posição dominante sobre esta matéria sustenta que o conceito de garantia real vertido no preceito do n.1º do artigo 24.º deve ser interpretado em sentido amplo, posição que tem sido repetidamente confirmada pelo STA em diversos Acórdãos, de que são exemplos, o Ac. de 13/05/09 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d4b4f45e2bb905c6802575bb0030c238?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1) e o Ac. de 14/09/11 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1da5114e62a5ce838025791200551a3d?OpenDocument&ExpandSection=1). 316 Refere o n.º1 do artigo 740.º do CPC: “Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.” 317 O artigo 246.º do CPPT viu a sua redação ser alterada pela Lei n.º 82-B/2014 de 31.12, (Lei do Orçamento de Estado para 2015). A antiga redação do mencionado preceito era a seguinte: “Na reclamação de créditos observar-se-ão as disposições do Código de Processo Civil, mas só é admissível prova documental.”

129

decisão de verificação e graduação dos créditos – artigos 276.º a 278.º, finalizando com

a nota de que na reclamação apenas é admitida prova documental. Ora, para

compreendermos plenamente o regime da graduação de créditos no seio do processo de

execução fiscal, devemos analisar o regime legal previsto nos artigos 788.º e seguintes

do CPC, tarefa à qual dedicamos agora a nossa atenção.

5.2 – No processo de execução civil

A tarefa de graduação dos créditos reclamados em qualquer tipo de processo

executivo (fiscal ou judicial) tem por base os comandos legais substantivos. Assim,

cabe ao julgador a tarefa de verificar a posição na “hierarquia creditória” pela qual será

satisfeito. Todavia, atentas as múltiplas particularidades de cada lide executiva em si

mesma, a ordem de graduação será diferente consoante os créditos e garantias

creditórias que os envolvam, isto para além da própria mutação dos preceitos

normativos que são aplicáveis.

Concluímos em consonância com SALVADOR DA COSTA que “ (…) não é

possível traçar um quadro rigoroso do regime legal de graduação de créditos, em

virtude do casuísmo que a envolve, designadamente no que concerne ao momento de

constituição de cada um dos respetivos direitos reais de garantia ou causas de

preferência de pagamento.”318

Quanto aos princípios jurídicos que norteiam a tarefa do intérprete aplicador do

direito na verificação e graduação dos créditos reclamados, depois de enunciar a sua

construção dogmática de um modelo abstrato de qualificação da lide executiva,

FERNANDO ÂMANCIO FERREIRA319 salienta que “ (…) Dois princípios reclamam

aplicação no concurso de credores como execução coletiva especial: o princípio da

igualdade e o princípio da prioridade. O princípio da igualdade ou da par conditio

creditorum, predominante nos sistemas latinos, como a França e a Itália, coloca todos

os credores, excetpuados os preferentes, ou seja, os credores comuns ou quirografários,

em pé de igualdade, suprimindo a preferência resultante da penhora. (…) O princípio

318 Cfr. SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 236.; por seu turno, FERNANDO ÂMANCIO FERREIRA, “Curso de Processo de Execução”, 5.ª Edição, Lisboa, 2003, págs. 264 e ss., defendia que atento o número de credores em benefício dos quais a execução se realiza, o processo executivo se poderá qualificar como uma execução singular ou uma execução coletiva que por sua vez se subdivide em execução coletiva universal ou em execução coletiva especial. Assim, a execução coletiva universal consiste na lide executiva que “se efectiva em beneficío de todos os credores pela liquidação de todos os bens do devedor”, ao passo que a execução coletiva especial consiste na que “aproveita somente aos credores que se apresentarem na execução, com liquidação apenas dos bens penhorados”. 319 FERNANDO AMÂNCIO FERREIA, “Curso de Processo de Execução”, 5.ª Edição, Lisboa, Almedina Editora, 2003, págs. 232 e ss.

130

da prioridade ou do prior in tempore, potior in jure, (…) atribuí ao exequente o direito

de se pagar pelo produto da venda dos bens penhorados, de preferência aos credores

comuns ou aos credores que tiverem penhora ou garantia real registada ou constituída

ulteriormente.”

Neste sentido, uma vez verificados os créditos reclamados dois grandes vetores

devem orientar a tarefa do julgador na tarefa de os graduar de acordo com a ordem

legalmente prevista para a sua satisfação.

No primeiro momento importa distinguir de entre os bens penhorados, os de natureza

móvel e os de natureza imóvel. De seguida, é necessário identificar as diferentes

garantias creditórias que incidem sobre os bens penhorados, bem como se as mesmas se

encontram ou não sujeitas a registo. Feita esta divisão, explícita SALVADOR DA

COSTA aduz algumas importantes considerações que devem orientar o intérprete

aplicador do direito a esta parte: “O direito de crédito do exequente exclusivamente

baseado na penhora não prevalece, em regra, sobre os direitos de crédito envolvidos de

privilégio creditório, mas prevalece sobre os direitos de crédito de quem constituiu

posteriormente segunda penhora, arresto ou hipoteca judicial. (…) No âmbito das

garantias reais “lato sensu” dispensadas de registo, assume especial relevo na

graduação de créditos a data da sua constituição no confronto com a da penhora. Os

direito de crédito constituídos depois do ato de penhora não são suscetíveis de

graduação, salvo os garantidos por arresto, penhora noutra execução, hipoteca legal

ou judicial, mas cujo pagamento dependa da existência de remanescente do produto

dos bens alienados. ”320.

Centrando a novamente a nossa atenção no tema da presente análise – a graduação

dos créditos privilegiados no processo executivo – e atentas as considerações supra

mencionadas, procuramos enunciar a ordem de graduação dos créditos tributários

privilegiados, de acordo com o regime legal substantivo.

Assim, começamos por distinguir os créditos tributários garantidos por privilégio

mobiliário e dentro desta categoria, subdividimos ainda os créditos atendendo à natureza

geral ou especial do próprio privilégio. Deste modo, os créditos tributários garantidos

por privilégio mobiliário geral (como são os casos dos créditos tributários previstos no

320 Cfr. SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., págs. 236 e 237. O Juiz Conselheiro Jubilado do STJ realça ainda que “a ordem de graduação de direitos de crédito com garantia real ou preferência de pagamento constante de lei diversa do Código Civil é, conforme os casos, a que dela resultar ou, dela não resultando em absoluto, a que decorrer da mesma, do Código Civil, do Código Comercial ou do direito interno português de origem externa.”

131

artigo 736.º, n.º1 do CC), não sendo verdadeiros direitos reais de garantia mas antes,

meras preferências legais de pagamento cuja eficácia é conferida pelo ato da penhora,

no confronto com as demais garantias reais mobiliárias, serão graduados de acordo com

a regra do prior in tempore, prior in jure, atenta a data de constituição do crédito

privilegiado321. No que diz respeito ao conflito entre créditos garantidos por privilégio

mobiliário geral e direitos de terceiro, titulares de direitos que sejam oponíveis ao credor

privilegiado, não podemos esquecer as regras vertidas no artigo 749.º do CC – o crédito

garantido por privilégios creditórios gerais que incida sobre os bens móveis penhorados

será graduado posteriormente aos créditos garantidos por direito real de garantia

constituídos em momento anterior à data da constituição do crédito privilegiado322.

Como concluí LEBRE DE FREITAS, “em caso de concurso sobre a mesma coisa

móvel, prevalece o direito real de garantia que mais cedo tiver sido constituído, salvo

disposição em contrário323 e com a exceção do privilégio mobiliário geral, que é

graduado em último lugar (arts. 749.º e 750.º CC)”324. Já no caso de serem concorrentes

entre si diferentes direitos de créditos abrangidos por privilégio mobiliário geral, valem

as regras dos artigos 745.º a 747.º do CC e ainda, as disposições legais extravagantes

que confiram este tipo de privilégio e que estabeleçam para os mesmos uma ordem de

graduação distinta.

Quanto à graduação dos créditos garantidos por privilégio mobiliário especial, atenta

a sua qualificação enquanto verdadeiros direitos reais de garantia, dotando o credor

privilegiado não só de uma preferência legal de pagamento, mas também de um

verdadeiro direito de sequela, a sua ordem de graduação será determinada com base na

data de constituição do crédito.

Neste sentido, o artigo 750.º do CC reforça a ideia da aplicação do princípio prior in

tempore, prior in jure, designando que os créditos garantidos por privilégio mobiliário

especial prevalecem sobre os demais direitos de terceiro que tenham sido constituídos

posteriormente aquele. Por outras palavras, os créditos tributários que beneficiam do

321 Todavia, se se verificarem créditos que beneficiam de privilégio mobiliário especial, necessariamente que a graduação desses créditos será posterior à dos créditos garantidos por privilégio mobiliário geral, já que aqueles vêm o seu objeto absolutamente determinado ab initio, ao contrário destes últimos cujo objeto apenas se determina após a penhora ou ato equivalente. No mesmo sentido, veja-se SALVADOR DA COSTA, últl. ob. cit.,pág. 238. 322 E no caso de se tratar de direito reais de garantia sujeitos a registo, a data a considerar é a do registo e não a da constituição do crédito. 323 Como são exemplos o disposto no artigo 746.º do CC e ainda o artigo 204.º, n.º 2 do Código Contributivo. 324 Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6.ª Edição, Coimbra, 2014, Almedina, pág. 366. O crédito garantido por privilégio mobiliário geral será graduado em último lugar quando o crédito do exequente beneficie da preferência legal resultante da penhora e a data de registo da mesma seja anterior à data de constituição do crédito privilegiado.

132

privilégio mobiliário especial serão graduados em primeiro lugar no confronto com os

demais direitos reais de garantias e preferências legais de pagamento cuja data de

constituição ou registo seja posterior ao da data de constituição do crédito325.

O que se verifica portanto é que, em regra, quanto ao crédito garantido por bens

móveis, na graduação dos créditos a preferência é atribuída aos créditos garantidos por

direitos reais de garantia que tenham sido constituídos primeiramente, ou primeiramente

registado.

Atenta a inexistência da obrigatoriedade de registo da figura do privilégio creditório,

podem colocar-se maiores dificuldades na graduação dos créditos, porém, apenas os

créditos garantidos por privilégio creditório mobiliário geral podem prevalecer face aos

demais direitos reais de garantia, desde que a data de constituição do crédito seja

anterior ao da constituição ou registo destes.

Em conclusão, a ordem dos privilégios creditórios tributários conferidos pelo CC

será a que resulta do artigo 747.º326, a saber:

i) os créditos tributários com privilégio mobiliário especial, sendo graduados

em primeiro lugar os créditos a favor do Estado e em segundo os créditos a

favor das autarquias locais;

ii) os créditos tributários do Estado devidos garantidos por privilégio mobiliário

geral327 (como é o caso dos créditos devidos a título de IRS e de IRC);

325 São os casos dos créditos tributários devidos a título de Imposto de Selo (n.º2 do artigo 738.º do CC). 326 Não obstante do exposto, diremos que a ordenação dos créditos privilegiados decorrente do artigo 747.º é na verdade meramente indicativa, atenta a promiscuidade do legislador em matéria de atribuição de privilégios creditórios através de legislação extravagante. Destacamos neste sentido o privilégio mobiliário especial do contraente público, previsto no artigo 293º do Código dos Contratos Públicos. Nota ainda para o regime legal da graduação dos créditos dos trabalhadores garantidos por privilégios mobiliário geral e imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador, previsto no artigo 333.º do Código de Trabalho. Nos termos do n.º2 do citado preceito, os créditos laborais aí designados e que beneficiam de privilégio mobiliário geral, devem ser graduados antes dos créditos referidos no n.º1 do artigo 747.º do CC. Por outras palavras, os créditos laborais em causa devem ser graduados antes dos créditos privilegiados devidos a título de impostos diretos e impostos indiretos (ex vi do n.º1 do artigo 736.º do CC) e ainda, mesmo em relação aos créditos tributários que beneficiem de privilégio mobiliário especial. Neste sentido, vejam-se as conclusões do Ac. do STJ de 10/12/09, referentes ao processo n.º 864/07.7TBMGR-I.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b35463ef293e87c58025769a003610e5 (onde se aborda o disposto no antigo artigo 377.º do Código do Trabalho, hoje renumerado e consagrado como artigo 333.º do mesmo diploma). 327 Todavia, com atenção ainda ao disposto no n.º2 do artigo 204.º do Código Contributivo que determina que os créditos da Segurança Social devidos a título de quotizações, contribuições e respetivos juros de mora e garantidos por privilégio mobiliário geral, devem ser graduados após os créditos tributários garantidos por privilégio mobiliário geral, a favor do Estado e ainda, os mesmos a favor das autarquias locais, mas antes dos créditos garantidos por penhor. Contudo, a interpretação deste comando legal tem suscitado alguma controvérsia na jurisprudência, já que encontramos decisões que defendem a prevalência do privilégio mobiliário geral previsto no n.º1 do artigo 736.º do CC face ao privilégio mobiliário geral conferido à Segurança Social. (cfr. neste sentido, as conclusões do Ac. do TRP de 06/05/10, relativo ao processo n.º 744/08.9TBVFR-E.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/dbe2f78127b655038025778200465cf1?OpenDocument). Em sentido contrário, sustentando a prevalência do privilégio mobiliário geral da Segurança Social face aos privilégios gerais mobiliários por impostos diretos e indiretos, nos termos do n.º1 do artigo 736.º do CC, veja-se o Ac. do STA de 09/10/13, referente ao processo n.º 01087/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3834499f306fcc9880257c080038e222?OpenDocument&ExpandSection=1.

133

iii) os créditos tributários das autarquias locais que beneficiem de privilégio

mobiliário geral (como são os casos do IUC e do IMT);328

Já no que diz respeito à graduação das garantias que incidem sobre os bens imóveis

penhorados, LEBRE DE FREITAS explicita que “(…) o privilégio imobiliário é

graduado em primeiro lugar, seguido do direito de retenção, e a seguir, da hipoteca e

da consignação de rendimentos, prevalecendo entre estas duas últimas a que for

registada em primeiro lugar (…)”329.

De resto, o regime do artigo 748.º do CC é claro ao afirmar a prevalência dos

créditos tributários do Estado garantidos por privilégio imobiliário especial (créditos

devidos a título de IMI, IMT e Imposto de Selo, nos termos do artigo 744.º do CC) face

ao mesmo tipo de créditos privilegiados a favor das autarquias locais. Assim, de acordo

com o regime previsto no CC a ordem de graduação dos créditos tributários que

beneficiam de privilégio imobiliário será a que se segue:

i) Créditos do Estado devidos a título de IMI, IMT e Imposto de Selo;

ii) Créditos das autarquias locais devidos a título de IMI;

iii) Demais créditos tributários garantidos por privilégio imobiliário geral (como

são exemplos os decorrentes do CIRS e do CIRC);

Todavia, não podemos ignorar aqueles outros créditos tributários a favor dos quais o

legislador atribuiu privilégios creditórios imobiliários. A posição destes será

determinada também de acordo com a sua natureza especial ou geral e ainda, atendendo

à data da constituição do crédito. Como já tivemos a ocasião de referir supra, o

legislador do CC não previu a existência dos privilégios imobiliários gerais, pelo que os

critérios legais resultantes dos artigos 748.º e 749.º do CC terão de ser adaptados e

conjugados com os demais preceitos legais existentes em legislação extravagante para

se determinar a posição de cada um na graduação330. Esta é, infelizmente, uma essencial

328 Cfr. o n.º3 do artigo 22.º do CIUC. 329 Cfr. LEBRE DE FREITAS, últ. ob. cit., pág. 367. Às considerações do autor acima transcritas aduzimos ainda uma breve nota. Nestes casos, o privilégio imobiliário que será graduado em primeiro lugar será sempre o privilégio especial, e já não o privilégio imobiliário geral, cujo objeto só é determinado através da penhora ou ato judicial equiparado. Sobre este aspeto ver SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág.240. 330 Daí que a graduação dos créditos com privilégio imobiliário geral ou especial, devem ter ainda em conta o disposto no artigo 205.º do Código Contributivo e o n.º2 do artigo 333.º do Código de Trabalho, sem prescindir dos demais preceitos legais presentes em legislação extravagante que confiram privilégios creditórios a determinados direitos de crédito. Neste sentido, a ordem de graduação dos créditos com privilégio imobiliário prevista no artigo 748.º do CC é alterada quando sejam reclamados créditos laborais que beneficiam da preferência decorrente de privilégio creditório imobiliário especial, que deverá ser graduado em primeiro lugar face aos créditos tributários. Contudo estes não são os únicos privilégios creditórios atribuídos a créditos de índole privatística e que podem dificultar a tarefa do credor tributário de cobrança dos seus créditos. São ainda exemplos de privilégios creditórios atribuídos a créditos de índole privatística, os concedidos ao credor hipotecário previsto no n.º1 do artigo 3.º do DL 59/2006, de 20.03, os concedidos pelo Código Comercial nos artigos 247.º, 391.º, 392.º e 574.º a 583.º; os privilégios creditórios

134

característica do atual regime substantivo que compõe as regras para a graduação de

créditos.

A fragmentariedade do regime dos privilégio creditórios, associada à inexistência de

um dever de registo ou de publicidade da mesma dificulta a tarefa do intérprete

aplicador do direito no momento de graduação dos créditos reclamados, para além de

contribui não raras vezes para a impossibilidade da satisfação do direito do

credor/exequente, não obstante as reformas introduzidas ao processo executivo pelo

legislador do CPC de 2003.

Concluímos assim que a cada novo privilégio criado, as regras do CC previstas para

a sua graduação são subvertidas, contribuindo para uma maior incerteza e segurança

jurídicas no seio de um procedimento judicial já por si pautado por um enorme

casuísmo, atentas as dificuldades inerentes a tentativa de conciliação de todos os

diversos regimes avulsos de privilégios creditórios331.

5.3 – No processo de insolvência332

No que diz respeito à graduação de créditos no seio do processo de insolvência333,

dispõe o n.º2 do artigo 140.º do CIRE que a graduação dos créditos reclamados é geral

para os bens da massa insolvente e especial para os bens associados a direitos reais de

garantia e privilégios creditórios.

A graduação geral referida pelo legislador diz respeito aos créditos cuja garantia se

reporta à generalidade dos bens da massa insolvente, ao passo que a graduação especial

se reporta aos créditos garantidos por direito real de garantia ou privilégio creditório

resultantes do n.º1 do artigo 166.º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito, na redação imposta pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10.02. 331 Muito crítico das recentes inovações legislativas em matéria de privilégios creditórios é LEBRE DE FREITAS, últ. ob. cit., págs. 368 a 370, considerando o digníssimo professor que em consequência da criação de numerosos privilégios creditórios para garantia dos créditos tributários, “(…)É assim subvertida a finalidade do processo executivo, desviado da sua função de realização coativa do crédito do exequente para a de cobrança, mediante o aproveitamento da atividade deste, desses créditos fiscais e parafiscais. Por lei graduado à frente do exequente, o credor privilegiado, cujo crédito é normalmente desconhecido quando a execução é instaurada, acaba frequentemente por ser o único pago pelo produto da venda dos bens penhorados, enquanto o exequente não consegue encontrar no património do devedor bens que lhe permitam a satisfação do seu direito (…)”. No mesmo sentido, cfr. as posições de MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., págs. 445 e ss; MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, “As garantias dos créditos fiscais. Regime e proposta de reforma”, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal”, Ano V, n.º3 – Outono, Lisboa, 2013, págs. 203 e ss; e ainda, PEDRO ROMANO MARTÍNEZ e PEDRO FUZETA DA PONTE, últ. ob. cit., pág. 207. 332 Para uma análise mais aprofundada sobre a temática da insolvência, vejam-se os estudos de CATARINA SERRA, “O Regime Português da Insolvência”, 5.ªEdição, Coimbra, 2012, Almedina Editora; ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Um curso de Direito da Insolvência”, Coimbra, 2015, Almedina Editora, e ainda, LUIS MENEZES LEITÃO, “Direito da Insolvência”, Lisboa, 2015, Almedina Editora; Sobre as obrigações fiscais na insolvência salientamos a tese de mestrado de SARA LUÍS DA SILVA VEIGA MARTINS, “O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência”, Braga, 2012, disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/21395/4/Sara%20Lu%C3%ADs%20da%20Silva%20Veiga%20Dias.pdf. 333 Na jurisprudência, destacamos as considerações do Ac. do TRC de 06/11/12, referente ao processo n.º 444/06.4TBCNT-Q.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/9613e7aa01d92f8180257ac6003f2d39?OpenDocument.

135

geral que onerem alguns dos bens existentes na massa insolvente. Consequentemente a

preferência de pagamento será primeiramente atribuída aos créditos garantidos por

direitos reais de garantia sobre os bens integrantes da massa insolvente.

No que à ordem de graduação dos créditos tributários em processo de insolvência diz

respeito devemos centrar a nossa atenção para a distinção operada pelo legislador

relativamente à qualificação dos créditos reclamados. Nesta perspetiva realçamos o

mérito do legislador do CIRE ao identificar três grupos distintos de créditos334:

i) os créditos “garantidos” e os créditos “privilegiados”, sendo estes “os

créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os

privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre

bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao

valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em

conta as eventuais onerações prevalecentes;

ii) os créditos “subordinados”, que são os créditos enumerados no artigo 48.º do

CIRE335, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou

especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da

declaração de insolvência;

iii) os créditos “comuns”, que são todos os demais créditos não englobados no

artigo 48.º e que não sejam garantidos por direito real de garantia ou

privilégio creditório geral.

A esta parte devemos realçar o disposto no artigo 97.º do CIRE, relativamente aos

efeitos da sentença declarativa da insolvência, em concreto, a extinção de privilégios

creditórios336, o que irá influenciar a sua graduação face aos demais créditos

reclamados. Quanto à graduação dos créditos tributários propriamente dita, em especial

dos que beneficiam de privilégio creditório (geral ou especial), estes serão, nos termos 334 Cfr. o n.º4 do artigo 47.º do CIRE; 335 Indica o artigo 48.º do CIRE que são créditos subordinados, sendo graduados depois dos demais créditos sobre a insolvência:“: a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) Os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência, com excepção dos abrangidos por garantia real e por privilégios creditórios gerais, até ao valor dos bens respectivos; c) Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes; d) Os créditos que tenham por objecto prestações do devedor a título gratuito; e) Os créditos sobre a insolvência que, como consequência da resolução em benefício da massa insolvente, resultem para o terceiro de má-fé; f) Os juros de créditos subordinados constituídos após a declaração da insolvência; g) Os créditos por suprimento. 336 Prescreve o artigo 97.º do CIRE que com a sentença declarativa de insolvência, se extinguem os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência, bem como os privilégios creditórios especiais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social vencidos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência, e ainda, desde que sejam sujeitas à obrigatoriedade do registo, as garantias reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo integrantes da massa insolvente, acessórias de créditos sobre a insolvência e já constituídas, mas ainda não registadas nem objeto de pedido de registo.

136

da já citada alínea a) do n.º4 do artigo 47.º do CIRE, graduados como créditos

privilegiados e garantidos, prevalecendo pois sobre os demais créditos reclamados.

Todavia importa salientar que nos termos do n.º1 do artigo 174.º do CIRE, apenas

serão imediatamente pagos os créditos tributários garantidos por privilégio creditório

especial reconhecidos na sentença de verificação e graduação de créditos e já não os

créditos tributários que beneficiem de privilégio creditório geral, uma vez que estes

serão pagos com o produto da venda dos bens que não estejam afetos a garantia real

prevalecente (n.º1 do artigo 176.º do CIRE).

Uma breve nota ainda para destacar que se no caso em concreto se verificar que por

força do efeito extintivo da declaração de insolvência, esses mesmos créditos tributários

perderem a qualidade de créditos privilegiados, serão, necessariamente, graduados como

créditos comuns. Apenas as quantias devidas a título de juros referentes ao não

pagamento desses mesmos créditos tributários, serão qualificados como créditos

subordinados, atento o disposto na alínea b) do artigo 48.º do CIRE.

137

CAPÍTULO IV – A NECESSIDADE DE UNIFORMIZAÇÃO DO REGIME

LEGAL DOS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

1. A segurança e certeza jurídicas face à atual configuração do regime legal dos

privilégios creditórios

Ao longo da presente análise sobre a figura do privilégio creditório como garantia

creditória, em particular do crédito tributário, por diversas ocasiões abordamos os

efeitos do regime legal destas garantias creditórias face aos direitos de terceiros, com

especial enfoque para a forma como, não raras vezes as suas legítimas expectativas são

sacrificadas em prol dos créditos tributários garantidos por privilégios creditórios.

Assim, merece a esta parte maior atenção a problemática inerente à forma como o

privilégio creditório pode constituir um obstáculo à segurança e certeza jurídicas

enquanto valores essenciais do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Lei

Fundamental. Nas palavras do professor GOMES CANOTILHO: “O Homem necessita

de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a

sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança e da

protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. (…) O

princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo a protecção da

confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem o direito a poder

confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos,

posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas por

esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas, se ligam os

efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico (…) ” 337.

É neste sentido que devemos começar por tentar compreender os contornos de um

princípio jurídico-constitucional que em diversos casos concretos operou como

principal fundamento para que o Tribunal Constitucional se pronunciasse pela

inconstitucionalidade da interpretação de normas jurídicas que conferem privilégios

creditórios338, em particular, quanto os efeitos jurídicos inerentes a essas garantias

colocavam em causa interesses e direitos dos particulares.

337 Cfr. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria Geral da Constituição”, 7.ª Edição da reimpressão de 2003, Coimbra, Almedina, pág. 257. 338 Neste sentido, vejam-se os já referidos Acórdãos do TC, n.º 354/00 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000354.html) e ainda n.º 160/00 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000160.html);

138

O princípio da proteção da confiança e da segurança decorrente do princípio de

Estado de Direito enunciado no artigo 2.º da CRP é sem dúvida uma trave mestra do

nosso ordenamento jurídico e cuja abrangência se estende muito para além da atuação

do legislador, englobando também a própria atuação dos agentes públicos e vinculando

as manifestações do poder jurisdicional. De uma forma simplista, podemos afirmar que

o princípio jurídico in questio resulta das naturais exigências de estabilidade e confiança

colocadas pelos diversos sujeitos que interagem e se relacionam no seio da realidade

jurídica de um concreto momento e espaço normativos. Concordamos pois com as mui

doutas palavras do professor JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, quando afirma que a

confiança em apreço é muito mais do que um mero conjunto de interesses subjetivos,

mas antes, uma confiança legítima digna de proteção e tutela jurídicas e cuja violação se

pode traduzir em mais ou menos intensas manifestações de injustiça339.

Se por um lado paira sobre a ciência jurídica uma constante exigência no sentido de

acompanhar e adaptar-se à evolução das realidades sociais que visa ordenar e regular,

por outro lado cabe ao Direito a manutenção de todo um status quo capaz de promover a

estabilidade e certeza necessárias à plena realização dos valores e bens jurídicos

considerados fundamentais e que representam os princípios basilares de toda uma

comunidade politica e juridicamente organizada.

Este é o constante dilema que se coloca com particular enfâse sobre o legislador e

que se resume ao confronto entre as exigências de estabilidade e segurança por um lado

e no sentido oposto da balança, as clamações por um sistema jurídico capaz de se

adaptar e inovar perante os novos desafios impostos pela evolução social, económica,

ambiental, tecnológica, industrial, em suma, pela própria evolução do Homem e do

pensamento humano.

Mas se por um lado se exige que o legislador acompanhe estas evoluções da

realidade social e temporal a que se encontra adstrito, ao mesmo tempo, o princípio da

confiança deve simultaneamente ser perspetivado como um limite à criação e produção

legislativas, com vista a evitar a criação de comandos normativos ambíguos ou cuja

motivação não seja suficientemente legítima, sob pena de se inverter o próprio sentido

do princípio da confiança e segurança.

339 Cfr. a esta parte o profícuo estudo do professor JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Direito pós-moderno, patologias normativas e protecção da confiança”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano VII, págs. 383 e ss.

139

Desta forma constatamos que os valores de estabilidade e certeza a que fazemos

referência se manifestam diversamente nos vários ramos da ciência jurídica.

Em concreto, no seio de qualquer relação obrigacional, a confiança e segurança são

valores essenciais ao equilíbrio entre o risco de incumprimento e a satisfação integral da

prestação a que o devedor está adstrito. Deste modo, a insegurança do credor tem por

base a análise de critérios objetivos de avaliação do risco de incumprimento do devedor,

isto é, quanto maior for o risco de incumprimento, maior será a insegurança sentida pelo

credor, pelo que podemos caracterizar a relação entres estes dois elementos como uma

relação de proporcionalidade.

Todavia, é no espaço temporal entre a assunção da obrigação pelo devedor e o seu

efetivo cumprimento que os níveis de risco e de insegurança da posição do credor mais

oscilam, por um lado, atenta a incerteza quanto à determinação da vontade do devedor

face ao cumprimento da prestação e, por outro, face aos níveis objetivos pelos quais se

mede a sua efetiva capacidade económico-financeira para o cumprimento.

É neste âmbito que se destaca o papel da garantia como um verdadeiro instrumento

jurídico capaz de devolver o equilíbrio à relação entre risco e insegurança, ou pelo

menos de amenizar as incertezas do credor face à preocupação de realização do escopo

económico inerente à obrigação assumida pelo devedor. Perante as recentes evoluções

jurídicas do direito das garantias creditórias em geral, no atual ordenamento jurídico

português e, ademais, na generalidade dos ordenamentos jurídicos europeus, o

património jurídico do devedor consubstancia a garantia geral das dívidas por este

assumidas, pelo que a esta parte nos referimos à problemática da responsabilidade

patrimonial340, cujas bases do regime legal no ordenamento jurídico português se

encontram previstas nos artigos 601.º e seguintes do CC. A figura do privilégio

creditório representa por excelência uma importante derrogação ao princípio geral do

direito das garantias das obrigações decorrente do n.º1 do artigo 601.º do CC, o

princípio da igualdade de tratamento entre os credores.

Diríamos que este princípio traduz a principal característica que subjaz à summa

divisio entre os conceitos de relação jurídica de direito privado e a relação jurídica de

direito público – a posição paritária dos sujeitos na relação jurídica privada, por

contraponto à verificação de uma posição se superioridade do sujeito ativo que atua

dotado de ius imperii no âmbito da relação jurídica pública.

340 Sobre o regime da responsabilidade patrimonial, VAZ SERRA, “Responsabilidade Patrimonial”, in BMJ, n.º 75, págs. 5 e ss;

140

1.1 – A fragmentariedade do regime legal

Da nossa análise ao regime legal dos privilégios creditórios no ordenamento jurídico

português, um dos problemas que mais ressalta à vista é a multiplicidade de disposições

legais em legislação avulsa ao CC que consagram privilégios creditórios em favor da

cobrança de vários outros créditos341. Desde logo a constatação da existência de uma

longa lista de disposições legais que não só introduzem privilégios creditórios não

previstos anteriormente, como também em vários casos, normas que dispõem sobre a

sua posição na ordem de graduação dos créditos o que poderá colocar em causa a

eficácia material das disposições do CC relativas à ordem de graduação destas garantias

entre si, além de dificultar ainda mais a já árdua tarefa do intérprete aplicador do direito

aquando das operações inerentes à verificação e graduação dos créditos reclamados em

sede de lide executiva civil, fiscal e na própria insolvência.

É que se há algo que resulta gritante da vivência prática do direito são os casos em

que não raras vezes se conta uma panóplia de créditos reclamados sobre um único

devedor, de diversas índole e natureza jurídicas e, consequentemente, por força dessa

mesma fragmentariedade conjugada com as naturais divergências interpretativas dos

Tribunais, resultarem em decisões com sentidos divergentes para situações

juridicamente semelhantes342.

341 Já supra enumeramos alguns destes privilégios extra-CC, todavia, devemos acrescentar ainda alguns a essa listagem, antes não enumerados. São pois os exemplos dos i) privilégios creditórios mobiliário e imobiliário gerais, concedidos nos termos do art. 7.º do D.L. n.º 437/78, de 28.12 a favor do antigo Gabinete de Gestão do Fundo de Desemprego e do Fundo de Desenvolvimento da Mão de Obra (cujas competências vieram a ser atribuídas ao Instituto do Emprego e Formação Profissional, nos termos do art.1.º do D.L. n.º 519-A2/79, de 27.12); ii) o privilégio mobiliário geral em favor das garantias pessoais concedidas pelo Estado e demais entidades públicas (art.22.º do D.L. n.º 112/97, 13.09 (sucessivamente alterado); iii) os privilégios gerais (mobiliário e imobiliário) concedidos aos créditos do Estado relativos à devolução de verbas comunitárias do Fundo Social Europeu que embora atribuídas, não tenham sido utilizadas, nos termos do art. 2.º do D.L. n.º 158/90, 17.05; iv) o privilégio mobiliário especial previsto no n.º3 do art. 168.º do DL n.º 114/94, de 03.05 (Código da Estrada), a favor do crédito da entidade que procedeu à remoção, conservação e depósito do veículo alvo de penhora; v) o privilégio imobiliário especial a favor do crédito por prestações ou indemnizações e respetivos juros moratórios devidos pelo titular do direito real de habitação periódica (art.23, n.º1 do D.L. n.º 275/93, de 5.08); vi) o privilégio mobiliário geral e imobiliário geral em favor dos créditos garantidos pelo Estado e recuperados pela Companhia de Seguros de Crédito (COSEC), nos termos do n.º 6 do art.17.º do D.L. n.º 183/88, de 24.05 (sucessivamente alterado); vii) privilégio imobiliário especial conferido em favor dos titulares de obrigações hipotecárias, nos termos do n.º1 do art. 3.º do D.L. n.º 59/2006, de 20.03; viii) os privilégios imobiliários especiais previstos no n.º 8 do art. 56 e no n.º4 do art. 57.º do D.L n.º 15/2014, de 23.01, em favor dos créditos da entidade responsável pela administração de empreendimento turístico, devidos a título de prestações periódicas devidas pelo proprietário de lote ou fração em empreendimento turístico; ix) os privilégios mobiliário geral e imobiliário especial, conferidos aos créditos por depósitos garantidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 166.º-A do D.L. n.º 298/92, de 31.12 (Regime Jurídico das Instituições de Crédito), sucessivamente alterado; e ainda, x) o privilégio mobiliário especial em favor dos créditos tributários devidos a título de taxas de portagem, custos administrativos, juros de mora, coimas e respetivos encargos, previsto pelos n.ºs 1 e 2 do art. 17.º-A da Lei n.º 25/2006, de 30.06, sucessivamente alterada. Esta é pois uma lista meramente exemplificativa de alguns dos privilégios creditórios criados por lei especial. Se já nos referimos aos problemas deste tipo de política legislativa em matéria de privilégios creditórios, a verdade é que os maiores obstáculos à tarefa do interprete aplicador do direito se colocam quando o legislador omite ou se “esquece” de fazer alusão à natureza do privilégio, ou ainda, quando procura introduzir regras sobre a ordem de graduação destes privilégios, descurando por completo a ordem e esquematização do CC sobre estas matérias. 342 Antes da reforma legislativa em matéria de privilégios creditórios operada pelo D.L: n.º 38/2003, de 08.03, no nosso ordenamento jurídico teve lugar uma acesa discussão no seio da doutrina e da jurisprudência relativamente à aplicabilidade do regime do artigo 751.º do CC à figura dos privilégios creditórios imobiliários gerais. De referir que o próprio legislador se manteve

141

Consideramos que o regime legal previsto no CC para a ordem e graduação dos

diferentes créditos privilegiados é de fácil aplicação e compreensão para o intérprete,

além de demonstrar a vontade do legislador originário de reduzir a criação futura destas

garantias, ou pelo menos, imprimir um critério orientador sobre que créditos

privilegiados devem manter essa qualidade343.

Concretizando esta nossa crítica, tomando por ponto de partida as alterações

legislativas em matéria de privilégios creditórios associados a créditos laborais, a alínea

d) do n.º1 do artigo 737.º do CC prevê que os direitos de crédito emergentes do contrato

de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato, pertencentes ao trabalhador,

relativos aos últimos seis meses, são garantidos por privilégio mobiliário geral.

Simultaneamente o legislador do Código do Trabalho prevê genericamente como

garantias de créditos do trabalhador, na atual redação da alínea a) do n.º1 do artigo 333.º

que esses créditos gozam de privilégio mobiliário geral. Não vamos aqui referimo-nos

às diferenças dos preceitos supra citados no que à eficácia jurídico-temporal destes

privilégios diz respeito, visto que este será um dos problemas que abordaremos infra.

Não obstante, se por um lado não nos assumimos críticos da possibilidade de criação

de novos privilégios creditórios pelo legislador ordinário, desde que sempre atendendo

não apenas à qualidade do crédito que se visa assegurar mas principalmente, aos

fundamentos por detrás da necessidade de acautelar a cobrança desse mesmo crédito

face aos demais, por outro não podemos contudo concordar com a opção do legislador

em sucessivamente aduzir novas regras sobre a sua graduação, criando assim mais

instabilidade no comércio e tráfego jurídicos e que podem, indiretamente, acabar por

atentar contra o princípio da confiança ínsito no artigo 2.º da CRP.

Em particular, no caso do privilégio creditório mobiliário geral atribuído para

cobrança dos créditos laborais, simplesmente não vislumbramos os motivos que

levaram o legislador do CT a optar pela criação de um novo preceito legal (cujo

conteúdo é ligeiramente distinto do ponto de vista textual do preceito ínsito na alínea d)

inerte sobre esta questão até que o TC se pronunciou com força obrigatória geral pela inconstitucionalidade da interpretação do artigo 751.º do CC no sentido de que os seus efeitos eram reconduzíveis aos privilégios imobiliários gerais. No sentido da aplicação do regime do art.751.º aos privilégios imobiliários gerais, podemos citar os exemplos do Ac. do TRP de 22/10/01, referente ao processo n.º 0150687, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/fcc1cc67390aa1c680256b3c0033d107?OpenDocument e ainda, o Ac. do TRP de 19/10/00, referente ao processo n.º 0031239 disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/cfb584a2aeb0074a802569d2003dbf71?OpenDocument ; 343 Concordamos pois com as observações de MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., pág. 210, quando afirma que “(…) o aumento exponencial dos privilégios creditórios originou, ainda que indiretamente, uma degradação da posição de certos créditos privilegiados consagrados na lei civil geral.(…).

142

do n.º1 do artigo 737.º do CC), quando poderia simplesmente ter optado por introduzir

nesta matéria uma simples remissão legal para o regime do CC, muito à semelhança do

que se verifica na alínea a) do n.º1 do artigo 50.º da LGT344, ou até aduzido uma nova

redação para o referido artigo do CC, mantendo posteriormente a remissão legal do CT

para o CC. Seria esta no nosso entendimento, uma decisão que não apenas contribuiria

para a modernização do regime previsto no CC, como também, ficaria mais

salvaguardada a unicidade de todo o regime legal.

Deste modo, sempre se diga que cabe ao legislador tomar as escolhas e opções mais

capazes de salvaguardar os diferentes interesses em jogo no momento de elaboração do

preceito jurídico, todavia, sempre zelando pela necessidade de satisfação das exigências

de coerência e coesão do sistema jurídico. Note-se que o que criticamos não é a de

criação de novos privilégios propriamente dita, mas antes, a forma como estes são

criados e introduzidos no ordenamento jurídico pelo legislador ordinário, muitas vezes

provocando dúvidas não apenas sobre a graduação dos créditos que visam acautelar,

mas também interrogações no intérprete sobre de que forma devem ser conciliadas as

diferentes disposições legais que os conferem face ao seu regime regra previsto no CC.

A criação de privilégios creditórios “extravagantes” pelo legislador ordinário deve

sustentar um essencial equilíbrio e ponderação de vários interesses e considerações.

Desde logo, não deve o legislador menosprezar o carácter iminentemente subsidiário

dos privilégios creditórios face aos demais institutos garantísticos existentes no nosso

ordenamento. Sempre que concede este tipo de garantias a um tipo de créditos

previamente não abrangido, consideramos que o legislador deve especificar concreta e

absolutamente os motivos que lhe subjazem, com expressa menção aos interesses

subjacentes aos direitos de crédito que merecem um tratamento tão especial e

diferenciado face aos demais créditos, especialmente quando se tratem de créditos de

natureza privada.

Essa exposição de motivos deverá ser feita tanto quanto possível no diploma

preambular que introduz os novos comandos normativos sobre a matéria em causa.

Defendemos que o legislador deverá ainda, e como aliás iremos fazer devida menção

infra no presente capítulo, procurar unificar o regime legal dos privilégios tanto quanto

possível, para tal respeitado e considerando os princípios gerais que resultam dos artigos

344 Na nossa humilde perspetiva, de o objetivo do legislador do CT passava pela efetiva alteração do do artigo 737.º do CC, poderia ter optado pela reformulação do seu conteúdo, mantendo no artigo 333.º do CT uma mera remissão legal para o regime do CC.

143

735.º a 753.º do CC, configurando-os face às constantes e múltiplas exigências da

sociedade hodierna345.

Neste sentido concordamos com as vozes críticas na doutrina que se manifestam

contra a fragmentariedade do regime legal dos privilégios creditórios, como é o caso do

Professor PESTANA DE VASCONCELOS346, que após análise comparativa dos

regimes legais da hipoteca legal e dos privilégios creditórios, lamenta o fato de “ (...)

esta matéria, pese embora a sua evidente importância prática, nunca foi objeto de um

tratamento unitário, que integrasse de forma coerente e harmónica, os seus regimes

civis, executivo e insolvências (…) ”. Uma outra consequência que resulta da

fragmentariedade do regime legal dos privilégios creditórios resulta das constantes

alterações à sua ordem de graduação face aos demais créditos privilegiados e,

consequentemente, face aos demais créditos reclamados, criando novos desafios na

tarefa do intérprete aplicador.

Da análise dos diversos privilégios creditórios criados por legislação avulsa,

verificamos que o legislador não foi capaz de recorrer a critérios que respeitassem as

exigências de coerência e unicidade do sistema jurídico nestas matérias, pois por várias

ocasiões cria um novo privilégio em favor de um determinado tipo de créditos, mas ou

não determina a natureza geral ou especial do privilégio, ou simplesmente aduz um

preceito relativo à posição que esses créditos privilegiados devem ocupar na graduação

dos créditos347.

Em consequência desta criação normativa desorientada e por vezes irrefletida, são

desconsiderados os já supra aludidos valores de confiança e segurança jurídicos, o que

345 Neste sentido subscrevemos as palavras do Professor JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, últ. ob. cit., pág.388, quando afirma que “(…) no contexto de uma sociedade globalizada e que se caracteriza pela antecipação do risco, qualquer Ordenamento é intrinsecamente plural e composto por camadas sucessivas de normas (...)”. 346 Cfr. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, “As garantias dos créditos fiscais: regime e proposta de reforma”, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano V, n.º3, 2013, pág. 223; Também JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Lições…” ob. cit.., pág. 346 realça que “(…) o próprio Código Civil delimita a respeito um regime fragmentário e lacunoso, desadaptado da realidade atual(…)” 347 A esta parte, tomemos como exemplo o disposto no art. 3.º do D.L. n.º 59/2006, de 20.03, que diz respeito ao privilégio creditório concedido ao titular de obrigações hipotecárias, sobre os créditos hipotecários que lhes subjazem. No n.º 1 do citado preceito, o legislador limita-se a referir que “Os titulares de obrigações hipotecárias gozam de privilégio creditório especial sobre os créditos hipotecários que lhes subjazem (…) com precedência sobre quaisquer outros credores, (…)”, completando ainda o n.º3 do mesmo preceito: “O privilégio referido no n.º 1 não está sujeito a registo”. O que dizer sobre a natureza jurídica deste privilégio? Atendendo ao direito de crédito que lhe subjaz, diríamos que se trata de um privilégio imobiliário especial, já que versa sobre direitos hipotecários concretos. Contudo, as maiores dúvidas colocam-se sobre o disposto no n.º3, referente à não sujeição a registo deste privilégio. Diríamos que esta disposição é desde do seu início, letra morta, já que a própria noção legal de privilégio vertida no artigo 733.º caracteriza o privilégio pela completa ausência da necessidade de registo desta garantia. Finalmente, no n.º2 do citado art.3.º, o legislador prevê que as hipotecas constituídas sobre os créditos hipotecários que subjazem às obrigações hipotecárias, prevaleçam sobre “quaisquer privilégios creditórios imobiliários”. O que dizer sobre esta alteração às regras do artigo 751.º do CC sobre o conflito entre privilégios imobiliários e direitos de terceiro? O privilégio imobiliário especial também se deve considerar abrangido por esta exceção ou ela vale apenas para os privilégios imobiliários gerais? E ainda, qual a sua ordem de graduação face aos demais créditos privilegiados? São estas as dúvidas com as quais o intérprete aplicador do direito é confrontado nos casos em que o legislador ordinário criar privilégios creditórios mas desconsidera por completo o regime legal base da figura previsto no CC.

144

resulta em dificuldades acrescidas para o intérprete do direito e para o próprio

ordenamento jurídico, na medida em que “(…) o parâmetro ou o bloco de legalidade

torna-se nebuloso e de difícil concretização, sendo custoso, por exemplo, identificar a

lei que vai servir de parâmetro aferidor da validade de determinado acto

administrativo ou regulamento, o que, como facilmente se intuirá, constituirá um sério

obstáculo à aplicação normativa administrativa e à resolução de litígios por parte do

poder jurisdicional. (…)”348. Não ignorando as soluções jurídicas existentes nos demais

ordenamentos jurídicos europeus, destacamos a esta parte a solução adotada pelo

legislador espanhol em matéria de concurso e graduação de créditos, que procurou

concentrar todo o regime legal referente a estas matérias num só diploma, a Ley

22/2003, de 9 de julio, Concursal, ou simplesmente, Ley Concursal349.

A principal vantagem de uma solução legal neste sentido assenta na concentração

num único diploma legal de todas as regras e princípios inerentes ao procedimento de

reclamação e graduação de créditos, e ainda, a introdução de um novo regime legal da

figura dos privilégios creditórios tendo por base uma conjugação dos princípios e regras

que emanam da atual redação do CC com os próprios princípios e interesses de natureza

publicista que tão fundamentadamente subjazem à aplicação dos privilégios creditórios

no seio da relação jurídica tributária.

Em simultâneo, consideramos que esta opção tem como principal valência permitir

ao intérprete aplicador do direito e aos demais agentes do tráfego jurídico, compreender

como se processa todo o procedimento de graduação de créditos, quais as garantias

creditórias envolvidas e respetivo regime legal, explicitado de forma única e coesa, ao

invés do verdadeiro labirinto jurídico que caracteriza este procedimento.

348 Cfr. JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Direito pós-moderno….”, ob. cit., pág. 391 349 A esta parte citamos um breve trecho da exposição de motivos do legislador espanhol sobre a criação deste diploma, ínsito no seu preâmbulo: “La ley opta por los principios de unidad legal, de disciplina y de sistema. (…) La regulación en un solo texto legal de los aspectos materiales y procesales del concurso, sin más excepción que la de aquellas normas que por su naturaleza han exigido el rango de ley orgánica, es una opción de política legislativa que venía ya determinada por la nueva Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil, al excluir esta materia de su ámbito y remitirla expresamente a la Ley Concursal. (…) ”. Destacamos ainda os motivos do legislador espanhol para introduzir limites às necessárias exceções ao princípio da igualdade entre credores, como são as figuras dos privilégios creditórios: “(…) La regulación de esta materia de clasificación de los créditos constituye una de las innovaciones más importantes que introduce la ley, porque reduce drásticamente los privilegios y preferencias a efectos del concurso, sin perjuicio de que puedan subsistir en ejecuciones singulares, por virtud de las tercerías de mejor derecho. Se considera que el principio de igualdad de tratamiento de los acreedores ha de constituir la regla general del concurso, y que sus excepciones han de ser muy contadas y siempre justificadas. Las excepciones que la ley admite son positivas o negativas, en relación con los créditos ordinarios. Las primeras se concretan en los privilegios, especiales o generales, por razón de las garantías de que gocen los créditos o de la causa o naturaleza de éstos. A los acreedores privilegiados, en principio, sólo afectará el convenio con su conformidad y, en caso de liquidación, se les pagará con prioridad respecto de los ordinarios. Pero esos privilegios se reducen en número e incluso se limitan en su cuantía a algunos de los tradicionalmente reconocidos, como los tributarios y los de cuotas de la Seguridad Social (hasta el 50 por ciento de su importe en cada caso) (…)”. (sublinhado nosso).

145

De fato, a configuração atual do nosso regime jurídico referente a todos os aspetos

que conformam as operações inerentes à graduação de créditos compreende uma

vertente substantiva (composta pelas várias disposições de direito substantivo referentes

às garantias creditórias e sua ordem de graduação, cujo ponto de partida será sempre o

CC, porém, como temos vindo a salientar, com imensas outras disposições avulsas e

regimes especiais), e, necessariamente, uma vertente adjetivo-concretizadora das

mesmas (cujo ponto de partida é o regime legal previsto no CPC, porém, com cada lide

processual a aduzir as suas especificidades).

Neste sentido, consideramos que os princípios norteadores do pensamento legislativo

sobre estes temas devem ser a ideia de unicidade, de rigor e concentração sistemática,

em favor de uma cultura legislativa mais coerente e de fácil compreensão por todos os

agentes do tráfego jurídico.

A solução apresentada pelo ordenamento jurídico espanhol tem a particular

vantagem de conciliar num único diploma, disposições de direito substantivo e de

direito adjetivo/processual, ao contrário do que hoje se constata no nosso ordenamento

jurídico que se caracteriza pela existência de “ilhéus” jurídicos dispersos por diversos

diplomas legais, sobre diferentes figuras e institutos que compõem o procedimento de

verificação e graduação de créditos.

No fundo, cabe ao legislador a tarefa de ponderar os diversos interesses em jogo,

públicos e privados, com vista a construir um regime legal para os privilégios

creditórios que acautele não só os interesses financeiros dos diversos entes públicos,

mas que tenha em conta soluções o menos lesivas possível para o tráfego jurídico e os

agentes económicos privados.

146

1.2 – A incoerência normativo-jurídica: o problema da eficácia jurídico-temporal dos

privilégios creditórios

Do estudo e análise até aqui desenvolvidos sobre o regime jurídico dos privilégios

creditórios, destacamos um outro ponto negativo nas sucessivas tentativas do legislador

ordinário de criar novos privilégios creditórios extraordinários: a indeterminação face à

eficácia jurídico-temporal do privilégio face aos direitos de crédito cuja satisfação visa

garantir.

Clarificando a nossa crítica, por “eficácia jurídico-temporal” do privilégio, referimo-

nos não apenas à eficácia temporal do próprio privilégio, como também, à sua eficácia

jurídica face à maior ou menor dimensão dos valores subjacentes aos créditos

privilegiados. Ao debruçarmo-nos sobre o regime legal da figura previsto no CC,

constatamos que para alguns privilégios, o legislador teve a preocupação de estabelecer

limites temporais sobre os créditos vencidos e tutelados por privilégios, como é o caso

do privilégio mobiliário geral a favor dos créditos do Estado por impostos diretos,

decorrente do n.º1 do artigo 736.º do CC, face aos quais o legislador entendeu introduzir

um limite temporal à sua eficácia jurídica.

É neste sentido que questionamos as opções legislativas sobre esta matéria e que, na

nossa humilde perspetiva se caracterizam pela sua incoerência, já que ao criar novos

privilégios creditórios, o legislador ordinário decidiu em alguns casos impor limites

temporais à eficácia jurídica do privilégio, deixando por outro lado, vários destes

“novos” privilégios, sem qualquer tipo de limitação temporal. Mas mais ainda, no caso

especial do processo de insolvência, decidiu decretar a extinção dos seus efeitos

jurídicos, possivelmente no momento em que esta garantia creditória mais importância

assume para os credores privilegiados350.

Tomando a esta parte como exemplo os privilégios creditórios mobiliários gerais

concedidos aos créditos da Segurança Social (art.203.º do Código Contributivo)

constatamos que o legislador optou por não especificar qualquer tipo de limite temporal

sobre a eficácia jurídica destes privilégios.

350 Cfr. o já citado art. 97.º do CIRE. Não concordamos com este tipo de limites temporais à eficácia dos privilégios creditórios no seu todo. Por um lado, consideramos que este tipo de limites deve ser construído e edificado no seu regime substantivo e não das normas que compõem o seu regime executivo. Efetivamente, no momento em que se tornam verdadeiramente eficazes (com o ato de penhora dos bens do devedor ou ato equivalente), vêm o seu regime executivo limitar a sua eficácia e posteriormente são declarados extintos. No fundo, no seio do processo de insolvência, com o regime previsto no art.97.º, o privilégio desperta em alguns casos, para uma morte prematura. No mesmo sentido, vejam-se as considerações de MIGUEL PESTANA VASCONCELOS, últ. ob. cit., págs.223 e 224. Por outro lado, discordamos da extinção dos privilégios creditórios conferidos aos créditos tributários, atenta a sua natureza publicista e os interesses públicos inerentes a tais créditos.

147

De fato, o único limite temporal sobre a sua eficácia será o prazo de prescrição destes

créditos que decorre do n.º1 do artigo 187.º do Código Contributivo - cinco anos

contados desde da data em que a obrigação deveria ter sido cumprida. À semelhança

dos créditos tributários devidos por impostos diretos e que beneficiam também de um

privilégio mobiliário geral, a verdade é que para estes o legislador do CC previu um

limite temporal – apenas podem ser considerados como créditos privilegiados os

créditos que tenham sido inscritos para cobrança no ano civil da data da penhora e nos

dois anos anteriores (n.º1 do art.736.º do CC).

O interessante a esta parte é que estamos perante obrigações tributárias de natureza

semelhante no que diz respeito à renovação sucessiva do dever principal de pagar o

tributo, ou seja, casos em que a obrigação tributária se vence de forma periódica.

Mas se no caso dos créditos devidos à Segurança Social, o legislador não define

expressamente qualquer limite temporal para a eficácia dos privilégios, já o mesmo não

se verifica quanto aos créditos tributários devidos por impostos diretos. Esta é uma

postura legislativa que criticamos, especialmente atento o tipo de privilégio em causa, já

que o privilégio mobiliário incide sobre o produto da venda de todos os bens móveis do

devedor.

Não são poucos os casos em que as entidades patronais deixam de satisfazer os

créditos da Segurança Social, o que se traduz num aumento sucessivo do valor da dívida

tributária. Ora, se não são previstos limites temporais para a eficácia jurídica destes

privilégios, estão criadas as condições para que se verifiquem com maior frequência

casos em que os credores privilegiados vêm os seus créditos serem satisfeitos, mas,

atenta as quantias em dívida, os demais credores, em especial os credores comuns (que

em muitos casos são os primeiros a promover a instauração da lide executória contra o

devedor) assistem à total ou quase total “absorção” do produto da venda do património

do devedor, pelos credores privilegiados. Nestes termos, a importância da introdução de

limites temporais à eficácia dos privilégios creditórios justifica-se pela seguinte ordem

de razões.

Em primeiro lugar, ao limitar quantitativamente os créditos abrangidos pelo

privilégio, o legislador estaria a compelir os titulares deste tipo de créditos privilegiados

a tomarem uma postura diligente e proactiva no que diz respeito às diligências de

cobrança que estes credores têm à sua disponibilidade, em particular, no caso do credor

148

tributário, que dispõe de meios coercitivos próprios, não raras vezes mais céleres e

eficazes do que aqueles que estão à disposição dos credores comuns.

Em segundo lugar, esta é uma solução que pode combater o principal problema que o

privilégio creditório coloca aos credores comuns – a insatisfação absoluta dos seus

créditos por insuficiência do produto final da venda dos bens do devedor, não raras

vezes completamente “absorvido” pelos credores privilegiados, o que se traduz na

absoluta impotência dos credores comuns face aos privilegiados e no aumento da

desigualdade entre credores351.

Se por um lado compreendemos a necessidade da existência dos privilégios

creditórios, não obstante de estes representarem como um dos principais exemplos de

desvios ao princípio geral da igualdade entre credores, por outro lado consideramos que

o legislador deve procurar reduzir essas desigualdades ao mínimo indispensável, sendo

uma das possíveis soluções a inclusão de limites temporais à eficácia dos privilégios

creditórios, como aliás se constata em alguns exemplos do CC.

Ao introduzir este tipo de limites sobre os créditos privilegiados, não só se promove

uma cobrança mais célere e eficaz dos créditos privilegiados, como também poderá ter a

vantagem de libertar uma parte do produto da venda dos bens do devedor para a

satisfação dos créditos comuns e, em suma, afirmar com maior eficácia prática o

princípio da igualdade entre credores, sem com isso descurar o necessário e

compreensível carácter privilegiado de alguns créditos face aos demais, como é o caso

dos créditos tributários.

351 Contudo, são de louvar as alterações legislativas referentes à ação executiva sobre esta matéria inicialmente introduzidas pelo D.L. n.º 38/2003, através da qual foram introduzidos limites à reclamação de créditos em lide executiva não intentada pelo próprio credor privilegiado, como aliás resulta do atual n.º 4 do artigo 788.º do CPC.

149

1.3 - A falta de publicidade/cognoscibilidade por terceiros credores

Ao longo da nossa exposição sobre a figura dos privilégios creditórios identificamos

várias problemáticas suscitadas quer na jurisprudência, quer na doutrina352. De todos

eles, a crítica que mais se destacou é sem a menor sombra de dúvida, está relacionada

com o carácter oculto destas garantias, derivado da inexistência de um qualquer ónus

publicista sobre o titular do crédito privilegiado quanto à qualidade do crédito353. Esta é

contudo, uma característica que resulta da própria noção legal deste instituto, já que o

legislador expressamente a enuncia no artigo 733.º do CC ao afirmar que o privilégio

creditório é a faculdade concedida a certos credores de serem pagos com preferência

relativamente a outros, independentemente do registo.

Neste sentido, ao contrário da hipoteca, do penhor de direitos e da própria penhora,

garantias creditórias para as quais o registo tem não apenas efeito declarativo como

também um verdadeiro efeito constitutivo, dotando as dita garantias de plena eficácia

jurídica, para a sua constituição o privilégio creditório depende apenas da plena

validade e eficácia do direito de crédito cuja satisfação visa acautelar. No fundo, o

privilégio creditório é para os terceiros credores do devedor, uma verdadeira garantia

oculta354.

Procurando fazer um enquadramento dos problemas que se colocam a esta parte,

importa clarificar que este carácter incógnito associado ao privilégio não diz respeito à

figura em si mesma, mas antes, à sua associação a determinados tipos de créditos. Por

outras palavras a questão essencial a este ponto passa pelo conhecimento da associação

que o legislador constrói entre o privilégio e o direito de crédito, através da qual o

transforma em crédito privilegiado, pelo que não está aqui em causa o conhecimento por

terceiros da figura do privilégio propriamente dita, mas antes, da existência de uma

característica de um determinado direito de crédito.

352 Podemos a esta parte referir as posições de MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., págs. 73 e ss; ISABEL MENÉRES CAMPOS, ““Particularidades da execução de hipoteca”, in A reforma da acção executiva – Trabalhos preparatórios, Vol. I, Lisboa, Ministério da Justiça, 2001, págs. 60 e ss; CLÁUDIA MADALENO, últ. ob. cit., págs. 40 e ss; LUÍS MENEZES LEITÃO, “Garantias….”, pág. 238; e ainda, LEBRE DE FREITAS, últ. ob. cit., págs. 361 e ss; 353 Sobre o carácter oculto do privilégio, veja-se supra o ponto 2.4 do Capítulo II. 354 Discordamos do enquadramento dos problemas decorrentes do carácter oculto do privilégio apresentado pela generalidade dos autores jurídico-civilistas, que optam por oferecer soluções que visam suprimir os privilégios e/ou substituí-los por hipotecas legais em favor do credor privilegiado, com vista a que este seja obrigado a registar a garantia do seu crédito. Na nossa perspetiva, se não rejeitamos por completo a possibilidade de alguns privilégios serem substituídos por este tipo de garantias, consideramos contudo que o verdadeiro problema reside no conhecimento do carácter privilegiado do crédito e não se soluciona com a sujeição a registo do privilégio propriamente dito. Aliás, esta ideia redundaria numa mera repetição do texto legal, uma vez que o privilégio conhece como única fonte a lei, não podendo ser criado por vontade das partes. Nesse sentido, registar uma garantia criada por lei seria, no mínimo, uma mera redundância. Infra procuramos aduzir algumas ideias para a publicitação destes créditos privilegiados, por outras vias que não a sua sujeição a registo.

150

Uma vez clarificado o plano da presente exposição, centremo-nos novamente na

problemática da publicidade do crédito privilegiado.

Os problemas relacionados com o carácter oculto dos privilégios creditórios

verificam-se especialmente nos casos de confronto entre o privilégio e os direitos de

terceiros que sejam oponíveis à posição jurídica do credor privilegiado. Contudo, o

legislador prevê consequências distintas consoante a natureza geral ou especial do

privilégio.

Relembrando as nossas considerações sobre a natureza jurídica dos privilégios

creditórios, consideramos como verdadeiros direitos reais de garantia os privilégios

creditórios especiais, atento os direitos de preferência e de sequela atribuídos pelo

regime legal do CC, ao passo que os privilégios creditórios gerais, na medida em que

não lhes é reconhecido o direito de perseguirem o bem sobre o qual incide a preferência

de pagamento que conferem ao titular do crédito, serão meras garantias reais, mas já não

direitos reais de garantia.

É neste espetro jurídico que os problemas decorrentes da falta de publicidade do

privilégio mais sobressaem, já que esta é sem dúvida uma matéria que apresenta fortes

conexões com os princípios da segurança e certeza jurídicas que resultam do princípio

de Estado de Direito decorrente do artigo 2.º da CRP, especialmente quando entram em

conflito com o crédito privilegiado, direitos reais de garantia de terceiros, já que do

regime legal dos privilégios resultam importantes exceções aos princípios que norteiam

a prevalência dos diferentes direitos reais entre si. Acresce ainda que o carácter

privilegiado do crédito só é conhecido pelos demais credores, em regra, no momento da

graduação e verificação de créditos, o que, inquestionavelmente prejudica as legítimas

expetativas de satisfação dos seus créditos.

Começamos por analisar o regime do artigo 749.º do CC, relativo aos conflitos entre

privilégios creditórios gerais e direitos de terceiro. No n.º1 deste preceito o legislador

estipula que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que,

recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente355.

Neste sentido, devemos concluir que face a um direito real de gozo ou um direito real

de garantia que tenha sido constituído anteriormente à data de constituição do crédito

355 Sobre o conceito de “oponíveis ao exequente”, os saudosos professores PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, últ. ob. cit., Vol. I., pág. 693, explicam que “ (…) Os direitos oponíveis ao exequente serão aqueles que não podem ser atingidos pela penhora, aí se englobando não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, mas também os direitos reais de garantia que se tenham constituído antes da data da penhora (…).” (sublinhado nosso).

151

privilegiado, aquele prevalece sobre a preferência de pagamento atribuída pelo

privilégio. E aqui se colocam os primeiros problemas decorrentes da falta de

publicidade do privilégio, ou melhor, do crédito privilegiado. Partindo de um exemplo

concreto, imaginemos que A é titular de um crédito sobre B, crédito esse garantido por

um penhor que incide sobre o automóvel de que B é proprietário. Promovida a

competente lide executória por A, no momento de graduação dos créditos, este descobre

que B possui várias dívidas tributárias por não ter pago as quantias devidas a título de

IRS, já desde 2014. Sendo o crédito tributário garantido por privilégio mobiliário geral e

cuja data de constituição é anterior ao da constituição do penhor a favor de A, o crédito

tributário é graduado e pago em primeiro lugar face ao crédito de A. Uma vez pagos os

valores da dívida tributária, não resta do produto da venda dos bens de B um único

cêntimo para satisfazer o crédito de A. Quid iuris?

Esta é uma das consequências típicas do carácter oculto dos privilégios creditórios, a

impossibilidade de o credor/exequente (que chega mesmo a promover o processo

judicial de cobrança coerciva com vista a recuperar o seu crédito) de obter a satisfação

plena do seu direito de crédito. Isto resulta do fato de o credor/exequente porém,

desconhecer em absoluto da pendência de crédito privilegiado sob o património do

devedor/exequente.

Já se o penhor constituído por A fosse anterior à data de constituição do crédito

privilegiado, o seu crédito seria graduado em primeiro lugar face ao crédito

privilegiado, conforme resulta do regime do artigo 749.º do CC. No que aos privilégios

imobiliários gerais diz respeito, como aliás já tivemos a oportunidade de referir supra,

depois de muita controvérsia na doutrina na jurisprudência sobre qual o regime jurídico

que lhes é aplicável no confronto com direitos de terceiro, resulta como posição

unânime, a sua sujeição ao regime previsto no artigo 749.º do CC356.

Já quanto aos privilégios creditórios especiais, os efeitos decorrentes do seu carácter

oculto serão mais nocivos face aos direitos de terceiro, atento o regime dos artigos 750.º

e 751.º do CC. Desde logo, a própria construção jurídica por detrás do privilégio

especial traduz uma fortíssima relação entre o direito de crédito e o bem sobre o qual

incide o privilégio.

356 Como aliás se pode retirar do Ac. do STA de 05/07/2012, referente ao processo n.º 0315/12 (disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c6f6a9e5154ddc6180257a39002e94ce?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1): “ (…) No concurso entre uma hipoteca e um privilégio imobiliário geral, aquela prevalece sobre este, porque se trata de um direito real de garantia, enquanto que a penhora é apenas uma garantia geral das obrigações, fonte de uma preferência sobre o produto dos bens penhorados, nos termos do art. 822º, nº 1, do CPC (…)”.

152

Em resultado desta estreita ligação, bem como da sua natureza enquanto verdadeiros

direitos reais de garantia, conferindo ao seu titular não apenas a preferência de

pagamento como também o direito de perseguir o bem sobre o qual incide, os

privilégios especiais representam um considerável obstáculo oculto que se pode relevar

inoportuno para as legítimas expectativas e direitos de terceiros. Porém, os efeitos

destes privilégios perante terceiros credores serão também diferentes consoante a

natureza dos bens sobre que incidem. Se por um lado o artigo 750.º do CC confirma a

regra típica da prioridade temporal aplicável aos privilégios mobiliários especiais, por

outro lado o legislador optou por conferir aos privilégios imobiliários especiais uma

preferência quase que absoluta face aos direitos reais de terceiros, em particular, face

aos direitos reais de garantia.

De facto, ao constituírem verdadeiros direitos reais de garantia sobre o imóvel, não

sujeito a qualquer tipo de ónus publicista e conferindo uma eficácia garantísitica do

crédito que lhe permite prevalecer mesmo face a direitos reais anteriormente

constituídos, os privilégios imobiliários especiais consubstanciam-se como um dos

mecanismos garantísticos mais poderosos a favor do credor e, em simultâneo, um

instituto que pode colocar seriamente em risco a probabilidade de satisfação das

legítimas expectativas de terceiros credores do devedor357. Deste modo, se por um lado

compreendemos as críticas apontadas à “obscuridade” deste tipo de garantias

creditórias, a verdade é que não podemos contudo concordar na totalidade com estas.

Como aliás já referimos supra, o problema não passa pela não publicitação do

privilégio em si mesmo, mas outrossim pela sua associação a um determinado tipo de

direitos de crédito, já que o conhecimento da existência dos privilégios creditórios é

assegurado pela publicitação do diploma legal que os cria.

Na nossa perspetiva, o verdadeiro desafio que aqui se coloca ao legislador, e em

especial, quando estão em causa créditos tributários privilegiados, passa pela

conciliação de dois interesses opostos sobre esta matéria – o interesse dos terceiros que

com o devedor contratam e os limites decorrentes do princípio da confidencialidade

tributária. É neste sentido que propomos infra, o recurso a outras soluções para os

357 Também neste sentido se pronuncia o professor MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil IX”, Tomo IV, Vol.II, Lisboa, Almedina, 2014, págs. 812 e ss., afirmando que os privilégios imobiliários especiais representam um duplo perigo, já que não são registados, sendo por isso eficazes erga omnes, independentemente de qualquer inscrição e ainda, porque preferem em relação a direitos reais de garantia ainda que anteriormente constituídos a saber, a consignação de rendimentos, a hipoteca e ao direito de retenção. MIGUEL LUCAS PIRES, ult. ob. cit., págs. 73 e ss., vai ainda mais longe nas suas críticas à figura dos privilégios imobiliários, propondo a sua substituição por hipotecas legais, de forma a combater a ausência de um elemento publicista deste tipo de garantia creditória.

153

problemas decorrentes da falta de publicidade dos créditos privilegiados, que não se

resumam à mera revogação ou reformulação do regime legal da figura, mas antes,

através de mecanismos como a já existente Lista de Pública de Execuções.

Sobre a conciliação destes dois interesses juridicamente relevantes, tomaremos uma

posição aquando da análise de novas formas de publicitação dos privilégios, ou melhor,

da sua associação a determinados tipos de créditos.

2.Posição Adotada – Contributos para uma uniformização do regime legal dos

privilégios creditórios

Identificados os diferentes problemas e conflitos de interesses que resultam da atual

configuração do regime legal dos privilégios creditórios no nosso ordenamento jurídico,

serve o presente ponto temático para fazermos uma reflexão sobre alguns dos possíveis

caminhos a seguir pelo legislador e demais agentes do sistema jurídico, com vista a

reduzir as desigualdades verificadas e que não se justifiquem, bem como, para caminhar

no sentido da modernização e unificação de um regime legal fragmentário e um algo

díspar da atual realidade jurídica.

2.1 – Formas de Publicitação do crédito privilegiado

De todas as críticas apontadas à figura do privilégio creditório, a inexistência de

qualquer tipo de ónus publicitário das mesmas sobre o titular do direito de crédito é de

longe a que mais recebe atenção por parte da doutrina nacional.

Na procura de uma solução para os efeitos decorrentes desta particular característica

dos privilégios, os autores que sustentam estas críticas sugerem a substituição da figura

do privilégio creditório (em especial os imobiliários) por hipotecas e penhores legais,

garantias face às quais o registo tem não apenas um efeito publicitário mas também, no

caso da hipoteca e de alguns penhores de direitos, um verdadeiro efeito constitutivo e

integrador de plena eficácia358. Estas soluções radicam no modelo publicitário das

garantias reais existente no ordenamento jurídico Francês, no âmbito do qual o

legislador sujeita a registo alguns dos créditos privilegiados, em função dos concretos

tipos de crédito em causa.

358 Cfr. neste sentido, MIGUEL LUCAS PIRES, últ.ob. cit., págs. 78, 79 e 451 a 452; ISABEL MENÉRES CAMPOS, últ. ob. cit., págs.60 e ss.; e ainda, CLÁUDIA MADALENO, últ. ob. cit., págs. 40 e ss;

154

A importância da publicidade das garantias reais que incidem sobre bens existentes

no património do devedor tem vindo a ser bastante afirmada na doutrina francesa, como

aliás nos dá conta o professor MARC MIGNOT: “ (…) Les sûretés réelles sont donc

normalment accompagnées de mesures de publicité. L’évolution révèle d’ailleurs que

l’importance de la publicité ne cesse de croître en la matière. La publicité joue donc un

rôle particulièrement important.(…). 359

No que diz respeito à publicidade dos privilégios creditórios, o sistema francês,

assente num princípio da transparência das garantias reais, criou um regime publicitário

específico para este tipo de garantia, em particular para os privilégios que incidem sobre

os bens imobiliários existentes no património do devedor.

A regra geral é a de que as garantias reais que incidam sobre bens móveis, que sejam

conferidas pela lei não estão sujeitas a registo, todavia, o legislador prevê casos

excecionais, especialmente no que diz respeito a privilégios mobiliários360. Por outro

lado, em matéria de garantias reais sobre bens imobiliários, a regra é de que em casos

contados e especialmente previstos, estas garantias devem ser publicitadas,

independentemente da sua origem legal ou convencional361.

Concordamos com a observação de que a solução prevista pelo legislador francês em

matéria de publicidade das garantias reais, e em particular no que toca aos privilégios

creditórios, reforça a segurança e certeza jurídicas dos agentes do tráfego jurídico, já

que através da publicidade decorrente do registo dos créditos privilegiados, os terceiros

que contratem com o devedor podem ab initio, saber da existência deste tipo de créditos

que impendem sobre os bens existentes na esfera jurídica daquele. Além desta

vantagem, importa clarificar que esta obrigatoriedade de registo não afeta a existência

359 Cfr. MARC MIGNOT, “Droit des sûretés”, Estrasburgo, França, Editora Montchrestien, 2010, pág. 308; Para uma análise mais profunda sobre a evolução e dinâmica jurídica existente entre os diferentes tipos de garantias reais existentes no ordenamento jurídico francês, veja-se o estudo dos professores PIERRE CROCQ e LAURENT AYNÈS, “Les sûretés – la publicité foncière”, 2.edição, Paris, França, Editora Defrénois, 2006, págs. 160 e ss; 360 Como é o exemplo do privilégio mobiliário previsto no artigo 1929.º do Code général des Impôts, face ao qual o legislador expressamente prevê como condição de eficácia jurídica do privilégio, a sua sujeição a registo. Também no caso do privilégio mobiliário geral conferido aos créditos da Segurança Social, o legislador francês prevê, em determinados casos, a sua sujeição a registo, sob pena de ser ineficaz. Dispõe neste sentido o primeiro parágrafo do art. L243-5 do Code de la Sécurité Sociale(CSS): “Dès lors qu'elles dépassent un montant fixé par décret, les créances privilégiées en application du premier alinéa de l'article L. 243-4, dues par un commerçant, une personne immatriculée au répertoire des métiers, une personne physique exerçant une activité professionnelle indépendante, y compris une profession libérale, ou une personne morale de droit privé, doivent être inscrites à un registre public tenu au greffe du tribunal de commerce ou du tribunal de grande instance dans le délai de neuf mois suivant leur date limite de paiement ou, le cas échéant, la date de notification de l'avertissement (…).” Já quanto aos efeitos do registo destes privilégios, o parágrafo quatro do mesmo preceito indica: “(…) L'inscription conserve le privilège pendant deux années et six mois à compter du jour où elle est effectuée. Elle ne peut être renouvelée.(…)”. 361 Como aliás nos explica MARC MIGNOT, últ. ob. cit., págs. 310 e 311, “En principe, les sûretes immobilières doivent être publiées, qu’elles soient légales ou conventionnelles. Ainsi l’antichrèse, les hypothèques et les privilèges immobiliers spéciaux doivent être publiés. Par exception, le Code Civil admet que les privileges généraux et que le privilège spécial du syndicta des copropriétaires n ele soient pas(…)”.

155

ou o momento de constituição do privilégio, mas antes limita a sua eficácia jurídica. No

fundo, a principal função dos ónus publicistas que impendem sobre os titulares de

garantias reais, funciona como uma condição imposta pela lei sobre a eficácia erga

omnes das garantias reais oponíveis a terceiros362.

Porém, refletindo sobre a solução francesa questionamo-nos sobre o que é

verdadeiramente objeto de registo. O crédito? O privilégio? Ou a mera verificação da

existência de um crédito privilegiado sobre o bem?

Na nossa perspetiva, a sujeição a registo de qualquer um destes elementos (do direito

de credito, do privilégio ou da mera verificação da existência de um crédito privilegiado

sobre o bem) acaba por ser uma verdadeira redundância, já que as realidades que se

estão a sujeitar a registo resultam da consulta dos textos legais que conferem a

determinado direito de crédito, um privilégio creditório363. Neste sentido, com vista a

amenizar os efeitos nocivos da ausência de publicidade dos privilégios creditórios,

propomos uma solução distinta da que é sustentada pela nossa doutrina364 e também

distinta da solução francesa.

Todavia, a solução que agora propomos versa essencialmente, atentas as limitações

que nos são colocadas pelo tema da nossa exposição, sobre a publicitação das garantias

creditórias associadas a créditos tributários.

Ora, no âmbito da jurisdição civil foi criada pela Portaria n.º 313/2009, de 30 de

Março a “Lista Pública de Execuções”, instrumento que possibilita o acesso ao público

em geral a dados respeitantes a processos de execução civil. Esta lista representa um

contributo essencial para o reforço da segurança e certeza jurídicas, já que permite que

os terceiros tomem conhecimento da situação patrimonial e da própria solvabilidade de

um determinado agente do comércio jurídico, ao mesmo tempo que promove a

dissuasão de situações de incumprimento contratual.

Subscrevemos a esta parte os fundamentos invocados pelo legislador para a criação

deste instrumento publicitário, vertidos no preâmbulo da Portaria: “(…) A criação desta

lista pública funda -se, por um lado, na necessidade de criar um forte elemento

dissuasor do incumprimento de obrigações, factor que tem sido assinalado

362 Cfr. MARC MIGNOT, últ. ob. cit., pág. 311. 363 Podemos contudo argumentar em sentido contrário, isto é, sustentando que o registo diz respeito à situação jurídica do próprio bem e não ao carácter privilegiado do bem. 364 Falamos a este ponto das já citadas e analisadas propostas de MIGUEL LUCAS PIRES, ISABEL MENÉRES CAMPOS e também de CLAÚDIA MADALENO, que se baseiam na substituição de alguns privilégios creditórios, especialmente os imobiliários especiais, por hipotecas legais.

156

internacionalmente como uma das condições que pode contribuir para o crescimento

da confiança no desempenho da economia portuguesa. Por outro lado, trata -se de

evitar, a montante, processos judiciais sem viabilidade e cuja pendência prejudica a

tramitação de outros efectivamente necessários para assegurar uma tutela jurisdicional

efectiva dos direitos dos cidadãos. Com efeito, a informação constante desta lista pode

ser um precioso auxiliar na detecção de situações de incobrabilidade de dívidas e na

prevenção de acções judiciais inúteis, nomeadamente através do fornecimento público

de elementos sobre as partes contratantes, o que pode contribuir para uma formação

mais responsável da decisão de contratar. À criação desta lista pública são associadas

garantias de segurança quanto à inclusão e fidedignidade das informações nela contida

(…) ”365.

Atentas as claras vantagens de uma solução neste sentido para a proteção da

confiança dos legítimos interesses de terceiros e aliás, dos vários agentes do comércio

jurídico, o que propomos é a criação de um complemento sobre as informações

tributárias divulgadas nas chamadas “Listas de Devedores” à Administração Tributária,

criadas entre nós através das alterações legislativas ao artigo 64.º da LGT introduzidas

pela Lei do Orçamento de Estado de 2006 (Lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro)366.

Esse complemento informativo consistiria na enumeração das garantias creditórias

que tutelam o crédito tributário, com destaque para os créditos tributários garantidos

pelas chamadas garantias “ocultas”, e em especial, por privilégios creditórios. Deste

modo, não ignorando os limites inerentes ao princípio da confidencialidade fiscal,

consideramos que a solução que aqui apresentamos tem a vantagem de permitir a

manutenção do atual regime legal dos privilégios, evitando uma profunda e certamente

complexa reforma legislativa com vista à sua substituição por outras garantias como

propõem outros autores, ao mesmo tempo que contribui para o reforço da segurança e

certeza jurídicas dos vários agentes do tráfego jurídico que fundadamente anseiam por

365 Cfr. o preâmbulo da Portaria n.º 313/2009, de 30.03, disponível em https://dre.pt/application/dir/pdf1sdip/2009/03/06200/0191601918.pdf (consultado em 25/01/16) 366 Sobre esta matéria, dispõe a alínea a) do n.º5 do artigo 64.º da LGT que “ (…) Não contende com o dever de confidencialidade a divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada, designadamente listas hierarquizadas em função do montante em dívida, desde que já tenha decorrido qualquer dos prazos legalmente previstos para a prestação de garantia ou tenha sido decidida a sua dispensa” (sublinhado nosso). Importa ainda clarificar que a possibilidade de criação deste tipo de listas públicas foi também alargada para os contribuintes da Segurança Social, através do art.49.º da Lei do Orçamento de Estado para 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril). A criação deste tipo de instrumentos informativos é sempre precedida da competente autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Sobre o princípio da confidencialidade tributária, ver por todos, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Lições…”, ob. cit., págs. 119 e ss; e Para uma análise sobre a criação de listas públicas de contribuintes em situação de incumprimento face à Administração Tributária, ver ainda o estudo de SÉRGIO ALBURQUERQUE, “Listas de devedores tributários (Portugal-Chile), in Revista Fiscalidade, n.º 26/27, págs.109 e ss.

157

mecanismos informativos que lhes permita tomar conhecimento das condições de

solvabilidade do património daqueles com quem contratam.

Do ponto de vista da dogmática jurídica inerente ao supra enunciado princípio da

confiança, a criação deste complemento informativo, serve as exigências de manutenção

do statuos quo do bloco normativo (na medida em que a criação deste complemento se

bastará com um pequena e simples alteração normativa ao n.º 5 do artigo 64.º da LGT) e

em simultâneo, cumprindo de forma eficaz, as reivindicações referentes à

adaptabilidade do Direito face à modernização da sociedade hodierna, contribuindo para

a constante busca pelo equilíbrio entre a confiança e a eficiência por que se deve pautar

o papel do criador normativo no ordenamento jurídico, sem descurar ainda o papel deste

complemento enquanto instrumento de combate e dissuasão dos fenómenos da evasão e

do incumprimento das dívidas tributárias.

2.2 – A reformulação e atualização do regime legal do CC sobre os privilégios

creditórios

Aquando da nossa exposição sobre a fragmentariedade do regime legal dos

privilégios creditórios, deixámos para uma análise mais profunda e detalhada os

problemas relacionados com a determinação da posição na ordem de graduação dos

privilégios creditórios criados pela legislação ordinária posterior ao CC. Efetivamente

estes problemas resultam da conjugação de dois fatores.

Em primeiro, atento o fato de, aquando da criação deste tipo de privilégios, o

legislador ordinário por vezes se pronunciar expressamente sobre a posição que os

créditos garantidos pelo (s) novo (s) privilégio (s) devem ocupar na ordem de graduação

que decorre dos artigos 745.º e seguintes do CC, e noutros tantos casos, simplesmente

não se pronunciar sobre essa particularidade.

Em segundo, em consequência destas inovações legislativas em matéria de

privilégios constata-se em certa medida o carácter obsoleto das disposições do CC que

dizem respeito à graduação dos créditos privilegiados entre si.

Sustentamos a posição de que em matéria de privilégios creditórios, o regime legal

do CC urge ser repensado e reestruturado face à atual configuração do sistema de

garantias creditórias do nosso ordenamento jurídico, e em particular, no que às normas

de conflitos entre créditos privilegiados diz respeito.

158

Caberá ao legislador construir um regime legal sobre a graduação dos créditos

privilegiados que inclua todos aqueles que são previstos em legislação extraordinária,

tendo presente alguns critérios orientadores.

Critérios como a natureza do crédito associado ao privilégio (se se trata de um

crédito de particular relevância para o erário público, como são os créditos tributários,

mas também, no seio dos créditos privatísticos, ponderando os diferentes interesses em

causa, atenta o carácter subsidiário deste tipo de garantias), a natureza dos bens

abrangidos pelo privilégio e ainda, através da introdução de remissões legais para o

regime legal do CC no que às matérias de graduação diz respeito, (muito à semelhança

do que foi a opção do legislador aquando da elaboração do artigo 50.º da LGT),

caminhando desta forma para a criação de um regime mais simples e coeso em matéria

de privilégios creditórios. Em simultâneo e em concordância com MIGUEL LUCAS

PIRES, sustentamos a ideia de que a limitação decorrente do n.º2 do artigo 736.º do CC

deve ser alargada a outros casos face aos quais o credor privilegiado beneficia não

apenas de privilégios gerais, como também de privilégios especiais, para a cobrança dos

seus créditos367.

De fato, se por um lado concordamos com a especial proteção conferida pelo

legislador aos créditos do erário público, em especial, dos créditos tributários, por outra

perspetiva, não podemos olvidar que a figura do privilégio representa uma particular

derrogação ao princípio da igualdade entre credores, com os efeitos nocivos já

enunciados e que decorrem do seu carácter oculto.

Sendo titular de um crédito garantido em simultâneo por privilégio imobiliário geral

e por privilégio mobiliário geral, um só credor concentra em si duas fortíssimas

garantias em favor do seu crédito e que em abstrato são suscetíveis de incidir sobre a

globalidade dos bens existentes no património do devedor.

Consequentemente é criado um cenário excessivamente desigual face aos demais

credores do devedor, colocando seriamente em causa a probabilidade destes

conseguirem satisfazer o seu crédito, mais ainda, reduzindo essas expectativas a zero,

quando se tratem de credores sem qualquer tipo de garantia real em favor da satisfação

dos seus créditos.

367 Cfr. neste sentido, MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., pág.448. O exemplo paradigmático neste caso é o dos privilégios creditórios previstos no art.166.º-A do D.L. n.º 298/92, de 31.12 atribuídos ao Fundo de Garantia de Depósitos.

159

Por fim, defendemos ainda a importância de uma reflexão sobre a necessidade e

validade de alguns dos privilégios creditórios “extra-CC”, entretanto criados por

legislação avulsa.

Não refutando a criação de novos privilégios, consideramos porém que alguns dos

que persistem no nosso ordenamento jurídico deixaram de ter verdadeira aplicabilidade,

ou em certos casos, poderiam ser convertidos em outras garantias reais como a hipoteca

e/ou penhores legais. Porém, defendemos que estas potenciais conversões apenas devem

ser aplicáveis aos privilégios creditórios atribuídos em favor de créditos de natureza

privada, com particular enfâse para os que beneficiem de privilégios especiais, e não em

favor de créditos de natureza pública, como são os créditos tributários.

Na nossa perspetiva, a criação de novos privilégios deve ser sempre justificada pela

absoluta e imperiosa necessidade de se verificar a sua rápida e eficaz cobrança por parte

do credor, para além da ponderação das razões subjacentes a esses mesmos créditos368.

368 Falamos a esta parte da supressão dos seguintes privilégios como: i) o já tacitamente revogado (veja-se o D.L. n.º 195-A/76, de 5.03), privilégio mobiliário especial concedido aos créditos por dívidas de foros, previsto na alínea b) do art. 739.º do CC; ii) o privilégio mobiliário geral a favor dos créditos da CECA emergentes do lançamento anual das imposições pecuniárias e seus acessórios relativas à produção de carvão e de aço, nos termos do n.º1 do art. 328/99, de 26.09; iii) o privilégio imobiliário especial concedido em favor dos créditos devidos por prestações ou indemnizações a serem pagas pelo titular do direito real de habitação periódica, de acordo com o previsto no n.º1 doart.23.º do D.L. n.º 275/93, de 5.08; iv) na medida em que é o crédito que lhe é subjacente é simultaneamente garantido por hipoteca (esta que nas palavras do legislador “prevalece sobre quaisquer privilégios creditórios imobiliários), o privilégio imobiliário especial atribuído aos titulares de obrigações hipotecárias, previsto no n.º1 do art. 3.º do D.L. n.º 59/2006, de 20.03;

160

CONCLUSÕES

Tendo presente tudo aquilo que foi explanado e afirmado na presente dissertação,

cabe-nos a esta parte procurar fazer uma breve incursão pelas conclusões que

alcançamos:

I. Atenta a importância que os créditos públicos, e em particular os créditos

tributários, assumem face à satisfação das mais diversas necessidades coletivas,

justifica-se um tratamento positivamente diferenciado desses direitos de crédito

face aos demais existentes no tráfego jurídico.

II. Por inerência, o crédito tributário encontra-se fortemente relacionado com a

recolha de fundos financeiros a serem adstritos ao cumprimento das tarefas

fundamentais do Estado e da realização do interesse público.

III. Os mecanismos garantísticos que tutelam o crédito tributário devem ser

concretizados tanto no plano substantivo do direito, como no plano adjetivo.

IV. Atenta a evolução do pensamento doutrinário e jurisprudencial sobre a

configuração em abstrato da estrutura obrigacional da relação jurídica tributária,

podemos afirmar com segurança que os créditos tributários dispõem de um

especial arsenal garantístico comparativamente ao dos demais credores.

V. Para além do princípio geral do Direito Obrigacional segundo o qual o

património do devedor representa a garantia geral do crédito, no seio do arsenal

garantístico conferido ao crédito tributário, no plano das garantias substantivas,

sobressaí como uma verdadeira “arma-secreta”, a figura dos privilégios

creditórios.

VI. Não são verdadeiros direitos reais de garantia os privilégios creditórios gerais,

na medida em que não lhes é reconhecido o poder de perseguir a coisa sobre a

qual incidem mesmo quando esta se encontra na esfera jurídica de terceiro que

não o devedor. Somente lhes é reconhecido o direito de preferência, ou de

prevalência face aos credores comuns.

VII. Já no caso dos privilégios especiais, estes assumem-se como verdadeiros direitos

reais de garantia, dotados não só do direito de preferência, mas também do

161

direito de perseguir a coisa sobre a qual incidem e ainda que essa se encontre na

esfera jurídica de terceiro, pelo que atribui ao direito de crédito que garante uma

eficácia erga omnes.

VIII. A sua natureza jurídica enquanto direito real de garantia constata-se ainda na

medida em que o seu objeto se encontra especificado e absolutamente

determinado pela própria lei, não dependendo de qualquer ato de penhora ou

equivalente, ao contrário dos privilégios gerais.

IX. Estas são considerações também pacificamente aceites nos demais ordenamentos

jurídicos europeus que conhecem a figura dos privilégios creditórios, como é o

caso dos ordenamentos francês, espanhol e italiano.

X. Uma outra problemática relativamente à figura do privilégio que tanta

controvérsia suscitou na doutrina e na jurisprudência nacionais contende com o

seu carácter oculto, isto é, a ausência de um qualquer ónus publicista sobre o

titular do crédito privilegiado. Embora não sendo um verdadeiro elemento

caracterizador deste instituto, a ausência da obrigatoriedade de registo do

privilégio coloca sérios problemas ao comercio jurídico, afetando em particular

as exigências de segurança e certeza jurídicas inerentes ao domínio das garantias

creditórias.

XI. Da associação entre o carácter oculto e a plena prevalência face a garantias reais

e até mesmo a direitos reais de garantia que tenham sido anteriormente

constituídos, verifica-se uma eficácia absoluta e plena do crédito privilegiado

face a qualquer outro tipo de direito de crédito. Dependendo da quantia

creditória privilegiada e da própria composição da esfera patrimonial do

devedor, os demais credores poderão não lograr a satisfação plena dos seus

créditos.

XII. A desigualdade imposta pelo privilégio creditório é justificada e respeitadora

dos limites decorrentes do princípio constitucional da igualdade, na medida em

que os créditos privilegiados assumem esse carácter atentas as especiais razões

que lhes subjazem.

XIII. Contudo, essa desigualdade deve ser menorizada a um mínimo indispensável. O

privilégio creditório deve ser encarado pelo legislador ordinário como um

instrumento garantístico verdadeiramente subsidiário face as demais garantias

creditórias existentes no nosso ordenamento jurídico.

162

XIV. A doutrina tem procurado encontrar soluções para menorizar os efeitos nocivos

associados ao privilégio, em particular, sugerindo a hipótese da sua sujeição a

registo e ainda a sua substituição por outras garantias creditórias como as

hipotecas e os penhores legais.

XV. Rejeitamos a ideia de que a eficácia jurídica do privilégio creditório possa ser

sujeita a condicionalismos inerentes à sua publicitação.

XVI. Defendemos por isso que a solução para o problema da obscuridade dos

privilégios deve ser encontrada através de mecanismos que não o registo.

XVII. Sendo a lei a única fonte constitutiva do privilégio, a ideia de sujeitar a registo a

própria figura em si ou ainda, a simples existência de um crédito privilegiado

que impende sobre um conjunto de bens existente na esfera patrimonial do

devedor, acaba por traduzir-se em uma verdadeira redundância jurídica, já que

se estaria a sujeitar a registo realidade que resultam da consulta dos textos legais,

cuja publicação é obrigatória.

XVIII. Não rejeitamos por completo a possibilidade de para determinados tipos de

créditos, em especial os de natureza privada, serem substituídos por outras

garantias creditórias menos nocivas para a segurança e certeza do tráfego

jurídico. Cabe ao legislador a tarefa de refletir sobre a pertinência e necessidade

do especial tratamento privilegiado atribuído a determinados créditos, atentas as

especiais desigualdades que o privilégio creditório provoca entre credores.

XIX. Neste sentido, a associação do privilégio creditório aos créditos tributários

justifica-se atenta a natureza publicista deste tipo de créditos, bem como as

finalidades que lhes estão por inerência adstritas (a realização e satisfação de

necessidades coletivas).

XX. Muito antes da entrada em vigor da Lei Geral Tributária, o legislador do CC

introduziu vários privilégios creditórios com vista a tutelar a cobrança de

créditos tributários, promovendo um tratamento privilegiado deste tipo de

créditos.

XXI. Não obstante, o legislador ordinário tem vindo sucessivamente a promover a

criação de novos privilégios creditórios em diversas matérias legais, para tal

recorrendo a leis extravagantes face ao CC. Esta realidade tem prejudicado em

muito o regime legal dos privilégios creditórios, cujas disposições originárias e

163

respetivo regime geral decorre ainda dos preceitos do CC e que se pautavam por

uma ponderação cuidada dos diferentes interesses creditórios em jogo.

XXII. Fruto da displicência jurídica com que o legislador abordou a criação de novos

privilégios, o regime legal desta figura encontra-se fragmentado e muito

disperso, além de ser ainda composto por disposições desatualizadas face à

presente realidade do nosso sistema jurídico em matéria de garantias.

XXIII. Assim, pugnamos por soluções legislativas que não só promovam a coesão e

coerência legislativas nesta matéria, mas que sejam também capazes de

recuperar a unidade e sentido do regime legal dos privilégios creditórios.

XXIV. Em especial, urge reformular os preceitos do regime em matéria de ordem e

graduação dos créditos privilegiados, disposições legais profundamente

desatualizadas face à multiplicidade de novos privilégios existentes no nosso

ordenamento e que não foram pensados pelo legislador originário do CC.

XXV. Para o sucesso de uma reforma legislativa nesta matéria, a tarefa do legislador

deve pautar-se pela defesa da prevalência dos créditos públicos (e em especial os

tributários) face aos créditos privados, não descurando o necessário equilíbrio e

ponderação casuísticas sobre estas matérias.

XXVI. Simultaneamente, não deve o legislador ignorar a subsidiariedade e carácter

último com que o privilégio foi abordado pelo legislador do CC.

XXVII. A preocupação do legislador do CC em reduzir a introdução desta figura no

tráfego e comércio jurídico, encontra a sua melhor justificação atento o atual

estado do regime legal da figura, pelo que urge repensar a existência e validade

de alguns dos privilégios creditórios hoje existentes no nosso ordenamento

jurídico.

XXVIII. A satisfação privilegiada de alguns créditos face a outros, embora possa

sustentar-se por motivos de ordem social e/ou económica válidos, poderá não ser

necessariamente a melhor solução, ou pelo menos a solução mais justa.

XXIX. Por fim, concluímos que a figura do privilégio creditório, embora seja suscetível

de criar situações de profunda desigualdade entre credores, é um mal necessário

para a cobrança dos créditos que por são por natureza diferentes dos créditos

comuns.

XXX. Devemos ter sempre presente a ideia de que não é o privilégio que justifica um

tratamento diferenciado do crédito que assegura, mas antes, são os motivos e

164

finalidades inerentes a esse crédito que justificam ou não o seu carácter

privilegiado.

XXXI. Neste sentido, consideramos que o privilégio creditório mantém plenamente a

sua importância enquanto garantia do crédito tributário pois constitui-se como a

ultima ratio do arsenal garantístico ao dispor do credor tributário.

165

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