andrÉ lopes martins a guitarra elétrica na música experimental

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    ESCOLA DE COMUNICAO E ARTES

    ANDR LOPES MARTINS

    A guitarra eltrica na msica experimental:

    composio, improvisao e novas tecnologias

    So Paulo

    2015

  • ANDR LOPES MARTINS

    A guitarra eltrica na msica experimental:

    composio, improvisao e novas tecnologias

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Msica da Escola de

    Comunicao e Artes da Universidade de

    So Paulo, como exigncia parcial para

    obteno do ttulo de Mestre em Msica.

    rea de Concentrao: Processos de

    Criao Musical.

    Orientador: Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes

    Costa.

    Verso corrigida.

    Verso original se encontra disponvel tanto na Biblioteca da ECA/USP quanto

    na Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes da USP (BDTD).

    So Paulo

    2015

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

  • Nome: MARTINS, Andr Lopes

    Ttulo: A guitarra eltrica na msica experimental: composio, improvisao e

    novas tecnologias

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Msica da Escola de

    Comunicao e Artes da Universidade de So

    Paulo, como exigncia parcial para obteno

    do ttulo de Mestre em Msica.

    Aprovado em: 02 de setembro de 2015.

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta Instituio: USP

    Julgamento: Aprovado Assinatura: _________________

    Prof. Dr. Vitor Kisil Miskalo Instituio: UAM

    Julgamento: Aprovado Assinatura: _________________

    Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes Costa Instituio: USP

    Julgamento: Aprovado Assinatura: _________________

  • Dedicado a Pedro Martins, que passou longe das palavras impressas mas escreveu todas as que

    possam existir no corao.

  • AGRADECIMENTOS

    A meus pais Edgard e Ivone, que, desde sempre, me incentivaram a caminhar meu prprio

    caminho, no s na msica, mas na vida.

    A meu irmo Dalton, que, por j ter passado por estas etapas acadmicas e saber como so suas

    aladas, procurou ler este trabalho e fazer algumas observaes.

    Ana Paula, por ser to especial em minha vida. E que carinhosamente cedeu de seu tempo

    precioso para ler, opinar e revisar todo o trabalho, por vrias vezes.

    A Rogrio Costa, pela orientao e pela oportunidade de trilhar esta primeira etapa da pesquisa

    acadmica, me acolhendo com disponibilidade em compartilhar seu imenso conhecimento

    musical e terico e pela sua pacincia igualmente imensa em ler e reler tudo, sempre. Suas

    observaes, revises, sugestes e alteraes no trabalho foram, concomitantemente, muito

    preciosas.

    A Fernando Iazzetta, por todo o conhecimento compartilhado e a iniciativa do NuSOM, que

    possibilita a mim e tantos outros colegas de pesquisa uma vivncia musical, terica, reflexiva

    e interativa inigualvel.

    Aos meus amigos de jornada na USP, na ECA, no departamento de Msica e no NuSOM:

    Vitor Kisil, Missionrio Z, Kooi Kawazoe, Andr Bandeira, Denise Ogata, Manu Falleiros,

    Mrio del Nunzio, Carlos Avezum, Lilian Campesato, Jonathas Andrade, Fabio Martinelli,

    Antnio Goulart, Pedro Paulo Kohler, Marcelo Queiroz, Thilo Koch, Miguel D. Antar, Felipe

    Merker e tantos outros que me acompanharam em ensaios, concertos, grupos de estudo,

    seminrios e disciplinas durante o mestrado.

    A David Borgo (UCSD) pelo apoio e incentivo antes e durante o perodo da pesquisa.

    A meus alunos particulares, que continuaram acreditando em mim e me acompanharam nesta

    etapa.

    A Magno Caliman, Alexandre Porres, Paulo Dantas, Taku Sugimoto e outros compositores

    que me responderam prontamente e com pacincia tantas indagaes sobre suas peas e

    trabalhos.

    FAPESP, pelo apoio e suporte atravs da bolsa concedida, fundamental ao desenvolvimento

    da pesquisa.

  • Be not afeard

    This isle is full of noises.

    William Shakeaspeare (Tempest).

  • Un pome nest jamais fini, seulement abandonn.

    Paul Valery, 1965

    All the utopias of the nineteenth and twentieth centuries have, by realizing themselves, expelled the

    reality out of reality and left us in a hyper-reality devoid of sense, since all final perspective has been

    absorbed, leaving as a residue only a surface without depth. Could it be that technology is the only

    force today that connects the sparse fragments of the real? But what has become of the constellation

    of sense? And what about the constellation of the secret?

    Jean Baudrillard, 1997

  • RESUMO

    MARTINS, A. L. A guitarra eltrica na msica experimental:

    composio, improvisao e novas tecnologias. 2015.

    300 f. Dissertao (Mestrado em Msica) Escola de Comunicao e Artes,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.

    O presente trabalho tem a inteno de, primeiramente, estudar a guitarra eltrica como

    interface de composio e improvisao atravs da utilizao de novas tecnologias digitais na

    msica experimental; em um segundo momento, prope uma composio musical utilizando

    alguns aparatos tecnolgicos acoplados guitarra. Essas ferramentas foram escolhidas aps

    um extensivo mapeamento individual e atravs de experimentaes de suas potencialidades

    do processamento sonoro quando abordadas com o instrumento. O material composicional foi

    posteriormente construdo a partir de observaes e reflexes do autor sobre o uso do

    instrumento enquanto interface no dilogo com as novas tecnologias digitais presentes na

    computao mvel. O trabalho traz tambm o registro autoetnogrfico do perodo de pesquisa

    de algumas das ferramentas digitais selecionadas quando em uso com a guitarra eltrica e o

    processo de composio e registro da pea proposta, alm de sua posterior anlise. Em sua

    concluso, so apresentadas, portanto, as observaes e reflexes desta interao do

    instrumento e suas novas formas de instrumenticidade quando acoplado ao computador.

    Palavras-chave: Guitarra eltrica. Msica experimental. Composio musical. Improvisao.

    Novas tecnologias.

  • ABSTRACT

    MARTINS, A. L. The electric guitar on experimental music: composition,

    improvisation and new technologies. 2015. 300 f. Dissertao (Mestrado em

    Msica) Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So

    Paulo, 2015.

    This work intends to, first, study the electric guitar as composition and improvisation interface

    through the use of new technology in experimental music; in a second moment, proposes a

    composition using some technological devices attached to the electric guitar. These tools were

    chosen after an extensive mapping individual trial and through its sound processing

    capabilities when addressed with the instrument. The compositional material was

    subsequently constructed from observations and author's reflections on the use of the

    instrument as an interface in dialogue with the new technologies available in mobile

    computing. The work also brings an auto-ethnography record of the research period of a few

    digital tools selected when in use with the electric guitar and the writing process and recording

    of the piece proposed, and its subsequent analysis. In its conclusion, therefore presents the

    observations and reflections from this interaction of the instrument and its new forms of

    instrumentness when attached to the computer.

    Keywords: Electric guitar. Experimental music. Composition. Improvisation. New

    technologies.

  • A guitarra eltrica na msica experimental:

    composio, improvisao e novas tecnologias

    Aluno: Andr Lopes Martins

    Orientador: Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes Costa

    Ps-Graduao em Msica, Processos de Criao Musical

    Escola de Comunicao e Artes

    Universidade de So Paulo

    Setembro, 2015

  • Sumrio

    1 Introduo ................................................................................................ 17

    1.1 Metodologia ................................................................................................ 27

    2. A guitarra, sua natureza eltrica e a tecnologia musical ...................... 31

    2.1 Breve descrio histrica ............................................................................ 36

    2.1.1 Estgio #1: origem .............................................................. 38

    2.1.2 Estgio #2: Feedback e a guitarra de corpo slido ............ 40

    2.1.3 Estgio #3: distoro, fuzz e efeitos sonoros ....................... 41

    2.1.4 Estgio #4: softwares e aplicativos ..................................... 42

    2.2 Ambiguidades, fetiches e tecnologia .......................................................... 44

    2.3 Amplificao do instrumento ...................................................................... 48

    2.3.1 Diferenas entre amplificadores valvulados

    e transistorizados ............................................................................. 49

    a. Amplificadores Valvulados

    b. Amplificadores Transistorizados

    c. Amplificadores Hbridos

    2.3.2 - Caractersticas da vlvula utilizada

    em amplificadores de guitarra ......................................................... 52

    a. Vlvulas de pr-amplificador

    b. Vlvulas de potncia

    2.3.3 - Classificao dos amplificadores ......................................... 53

    a. Classe A

    b. Classe B

    c. Classe AB

    d. Outras classes

    2.4 O registro sonoro da guitarra eltrica sem o uso de aparatos das novas

    tecnologias digitais ................................................................... 54

  • 2.5 Sobre a sonoridade .................................................................... 56

    2.6 Tecnologia musical ................................................................... 62

    3. Ambiente de Experimentao .................................................................. 75

    3.1 Msica experimental ........................................................... 75

    3.2 Improvisao ....................................................................... 83

    3.2.1 Improvisao Idiomtica ............................................ 84

    3.2.2 Improvisao Livre .................................................... 87

    3.3 Guitarra eltrica e experimentao ..................................... 93

    3.4 Exemplos de um repertrio experimental

    para guitarra eltrica ....................................................................... 95

    3.5 Breve relato de casos ........................................................... 106

    4. Composio: ambiente de criao ........................................................... 127

    4.1 Plano da composio ........................................................... 127

    4.2 Roteiro de partitura .............................................................. 129

    4.2.1 Partitura verbal ........................................................ 131

    4.3 Peas de referncia .............................................................. 136

    4.3.1 David Tudor Phonemes ....................................... 136

    4.3.2 Edgard Varse Hyperprysm ................................. 140

    4.3.3 Edgard Varse Pome lectronique..................... 143

    4.3.4 Gyrgy Ligeti Artikulation .................................. 146

    4.4 Anlise de Cinq ................................................................... 148

    4.4.1 Composio e notao ............................................. 149

    4.4.2 A gravao ............................................................... 152

    4.4.3 Anlise da composio registrada ........................... 155

    4.5 Espectromorfologia ............................................................. 160

    5 Autoetnografia .......................................................................................... 177

    5.1 Dirio de bordo .................................................................. 179

    5.1.1 ltima semana de 2014 ........................................... 179

    5.1.2 Dias 2 a 5 de outubro de 2014 ................................. 179

    5.1.3 Segunda semana de outubro de 2014 ...................... 180

    5.1.4 Dia 1 de novembro de 2014 .................................... 181

    5.1.5 Dias 3, 4 e 6 de novembro de 2014 ........................ 182

  • 5.1.6 Dia 2 de dezembro de 2014 .................................... 184

    5.1.7 Dias 8, 9, 11 e 12 de dezembro de 2014 ................. 185

    5.1.8 Dia 15 de dezembro de 2014 .................................. 185

    5.1.9 Dia 16 de dezembro de 2014 ................................... 186

    5.1.10 Dia 17 de dezembro de 2014 ................................... 187

    5.1.11 Dia 19 de dezembro de 2014 ................................... 188

    5.2 Concluindo a gravao ....................................................... 189

    5.3 Alguns aparatos analisados individualmente ...................... 190

    6 Concluso ...................................................................................................204

    7 Referncias bibliogrficas ........................................................................ 214

    ANEXOS

    Anexo 1: Mapeamento .................................................................................... 233

    Anexo 2: DVD ................................................................................................ 297

    Lista de faixas do DVD ................................................................... 298

  • Lista de Figuras:

    Figura 1: imagem analogia onda sonora digitalizada e espectrograma______________________ p.108

    Figura 2: espectrograma - Shenandoah, Bill Frisell__________________________________ p.109

    Figura 3: duas partituras - Graphitti Composition, Christian Marclay____________________ p.110

    Figura 4: espectrograma - Graphitti Composition part I, C. Marclay/V. Reid ____________ p.111

    Figura 5: espectrograma - Strange Blesings, Vernon Reid_____________________________ p.112

    Figura 6: espectrograma - Mirrors (Opposite), Taku Sugimoto_________________________ p.113

    Figura 7: espectrograma - Variations of Wave Pressure, Adrian Belew__________________ p.114

    Figura 8: espectrograma - Requim-Affirming, Robert Fripp__________________________ p.116

    Figura 9: espectrograma - On Acceptance & Ont the Approach of Doubt, Robert Fripp_____ p.117

    Figura 10: espectrograma - Only Sky, Davied Torn__________________________________ p.118

    Figura 11: partitura - Having Never Written a Note for Percussion, J. Tenney/ Sonic Youth___ p.119

    Figura 12: espectrograma Having Never Written a Note for Percussion, Sonic Youth______ p.119

    Figura 13: espectrograma - Duna, Camel Heads____________________________________ p.120

    Figura 14: espectrograma - Theres Something Dead in Here, Steve Vai__________________ p.121

    Figura 15: espectrograma - Churblys, Alexandre Porres______________________________ p.123

    Figura 16: espectrograma - mono.4, Paulo Dantas___________________________________ p.124

    Figura 17: partitura melodia instrumento #3 de Cinq _______________________________ p.134

    Figura 18: partituras (a) Dialects; (b) Bandoneon, David Tudor_____________________ p.138

    Figura 19: espectrograma - Phonemes, David Tudor_________________________________ p.138

    Figura 20: partitura trecho de Hyperprism, Edgard Varse___________________________ p.142

    Figura 21: espectrograma - Hyperprism, Edgard Varse ______________________________ p.143

    Figura 22: partitura trecho de Pome lectronique, Edgard Varse____________________ p.144

    Figura 23: espectrograma Pome lectronique, Edgard Varse_______________________ p.145

    Figura 24: partitura trecho de Artikulation, Gyrgy Ligeti____________________________ p.147

    Figura 25: partitura trecho de Artikulation, Gyrgy Ligeti ___________________________ p.147

    Figura 26: espectrograma Artikulation, Gyrgy Ligeti ______________________________ p.148

    Figura 27: imagem captura de tela, software DAW da gravao de Cinq _______________ p.159

    Figura 28: imagem captura de tela, software DAW, mixagem de Cinq __________________ p.160

    Figura 29: imagem grfico: nota X rudo, Dennis Smalley______________________________ p.169

    Figura 30: espectrograma Cinq ________________________________________________ p.171

    Figura 31: visualizao ondas sonoras digitalizadas, estereo Cinq _____________________ p.172

    Observao: a lista de figuras presentes no Anexos deste trabalho encontra-se separada, no

    incio do mesmo, para facilitar a catalogao e sua visualizao para leitura e referncia.

  • Lista de Siglas:

    ADAT Alesis digital audio tape

    ADC Analog-to-Digital Converter

    AES Audio Engineering Society

    DAC Digital-to-Analog Converter

    DAW Digital Audio Workstation

    DI Direct-Box

    DSP Digital Signal Processing

    ECA Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo

    FFT Fast Fourie Transform

    FM Frequncia Modulada

    Hifi High Definition

    IEEE - Institute of Electrical and Electronics Engineers

    iOS sistema operacional da empresa Apple para aparelhos mveis

    IRCAM Institut de Rcherche et Coordination Acoustique/Musique

    LFO Low Frequency Oscillation

    Low-Fi Low Definition

    MAC OSX sistema operacional dos computadores Macintosh

    MIDI Musical Instrument Digital Interface

    NAMM National Association of Music Merchants

    NuSOM Ncleo de Pesquisa em Sonologia, Universidade de So Paulo

    Pd Pure Data

    RTF - Radiodiffusion-Tlvision Franaise

    SARC Sonic & Arts Research Centre, Universidade de Queens, Belsfast

    WDR - Westdeutscher Rundfunk Kln

    Wi-fi Wireless Fidelity

  • 1. Introduo

  • 17

    Captulo 1

    Introduo

    ...And what is the purpose of writing music? One is, of course, not dealing with

    purposes but dealing with sounds.

    John Cage, 1961

    Electricity forces the performance to adapt.

    Seth Kim-Cohen, 2009

    Uma guitarra eltrica, sem nenhum cabo conectado, encontra-se solitariamente

    encostada com seu corpo de madeira macia contra uma parede. Quando um garoto adentra ao

    lugar, pega o instrumento com as duas mos e, segurando uma pequena palheta de celuloide

    em uma delas, atinge suas cordas de ao, o que se ouve um som de pouqussimo volume,

    quase inaudvel, sem sustentao; o som de diferentes tipos de madeiras cortadas em pedaos,

    coladas, vibrando, ressoando. E nada mais.

    ***

    Este trabalho tem o objetivo principal de apresentar uma composio ambientada na

    msica experimental atravs da utilizao da guitarra eltrica como nico instrumento de

    interpretao, em uso conjunto com alguns de seus aparatos digitais disponveis pelas novas

    tecnologias encontradas na computao mvel. Isto inclui o uso de softwares e aplicativos em

    diversos ambientes computacionais, escolhidos aps um extenso mapeamento individual

    destes e atravs de experimentaes de suas potencialidades de expanso sonora. O material

    composicional foi posteriormente construdo a partir das observaes e reflexes realizadas

    durante este perodo de pesquisa, determinando sua seleo por caractersticas que incluram

    potencialidades de expanso do som atravs do uso exclusivo da tecnologia digital,

    manipulao do timbre em tempo real e capacidade de processamento digital.

    um trabalho que se prope a pensar e utilizar a guitarra eltrica como instrumento

    que tambm gerador de sonoridades pertinentes msica experimental. Este conceito ser

    definido durante o texto, mostrando quais caractersticas experimentais - no que se refere ao

    uso de novas tecnologias digitais - podem ser abarcadas pelo instrumento. Desenvolvida no

    final da dcada de 40 do sculo passado e disponvel a partir do ano de 1950, a guitarra slida

    e eletrificada divide historicamente particularidades intrnsecas com a msica experimental

  • 18

    desde de seu surgimento. Kim-Cohen (2009) mostra que, em 1948 - mesmo ano que Pierre

    Schaeffer inicia em Paris os primeiros experimentos e tcnicas de colagens sonoras que viriam

    a caracterizar a musique concrte e John Cage (des)constri alguns processos composicionais

    atravs de peas importantes que resultariam na elaborao de sua primeira composio

    silenciosa (433)1 - o cantor e guitarrista Muddy Waters realiza a primeira gravao em

    estdio de uma guitarra prottipo eletrificada. Simultaneamente, Leo Fender realiza os ajustes

    finais de sua futura Broadcaster, a primeira guitarra de corpo slido, totalmente eltrica, ainda

    sob o nome de Esquire, que seria apresentada menos de dois anos depois. A gravao de I

    Cant Be Satisfied, realizada por Muddy Waters em 1948, representa uma mudana de

    paradigma no uso do instrumento: dentro de um estdio, um microfone individual no est

    posicionado na direo da guitarra, captando o som acstico oriundo do instrumento, mas sim,

    apontado para o centro de um amplificador, onde est localizado um alto-falante. As

    consequncias atuais desta peculiar interseco, entre os anos de 1948-50, praticamente

    simultnea, do nascimento da guitarra eltrica e o que viria a ser chamado de msica

    experimental (o surgimento do musique concrte em Paris, da msica eletrnica em Colnia e

    as novas formas vanguardistas de composio e improvisao nos Estados Unidos) podem

    trazer mais do que uma curiosidade histrica, permitindo algumas reflexes tericas e prticas

    importantes para o estgio atual que o instrumento vivencia, atravs de processos de

    composio e improvisao, quando em contato com as novas tecnologias.

    Como afirma Kim-Cohen (2009, p.24), o prprio Waters j havia registrado

    anteriormente I Cant Be Satisfied, em 1941, atravs de um gravador simples, tocando uma

    guitarra acstica e sem a presena de microfones especiais ou um ambiente acusticamente

    preparado. O que faz a verso de 1948 diferente um fator tcnico: a eletricidade. Atravs do

    uso de equipamentos eletrificados e a possibilidade da amplificao da guitarra, a performance

    totalmente adaptada a estas novas caractersticas que moldam a sonoridade resultante final.

    A presena do alto-falante e uma maior liberdade de controlar o volume captado atravs de um

    microfone (apontado para seu cone central) trazem a possibilidade de sons e frequncias

    1 433 foi apresentada formalmente em 1952, mas anos antes o compositor j experimentava em outros trabalhos dois procedimentos

    importantes que viriam a caracterizar sua obra e uma grande parte da cena musical experimental de ento: o uso do silncio e as operaes de acaso. Avezum (2014, p.3) afirma que, entre 1948-50, Cage compe Sonatas and Interludes e String Quartet in Four Parts, que j trazem

    os primeiros indcios de uma potica do silncio em sua tcnica composicional. Neste par de anos o compositor tambm finaliza Sixteen

    Dances e Concert for Prepared Piano and Chamber Orchestra, que tambm incorporavam procedimentos de acaso em sua concepo e interpretao. 433 tornou-se uma pea icnica deste perodo da msica experimental, tal o grau de inquietao e inovao que se gerou em

    torno dela, inclusive na forma como Cage a colocou em partitura. Ainda segundo Avezum (2014, p.6), tal forma de notao traria novas

    consequncias para a arte experimental como, por exemplo, o enfraquecimento das fronteiras entre compositor e performer derivado da ambiguidade conceitual da partitura como notao verbal que ecoava certas atitudes reducionistas nas curtas instrues de performance.

  • 19

    gerados a partir da guitarra antes no caractersticos ao instrumento, atravs destas novas

    ferramentas sonoras.

    No nosso foco relacionar aqui teoricamente estes eventos como tampouco trazer

    reflexes histricas deste perodo. No entanto, segundo Kim-Cohen (2009, p.260), Schaeffer,

    Cage e Walters, cada um deles representam uma alternativa diferente sistematizao e

    quantificao dos valores da msica2. Esta interseco entre o nascimento da guitarra eltrica,

    o desenvolvimento da msica experimental e a quebra de paradigmas dos valores musicais

    trazidos pelas possibilidades sonoras da conexo do instrumento com a tecnologia pode nos

    colocar em um ponto de questionamento do uso do instrumento no que se refere ao processo

    composicional na msica contempornea. Este tema ser abordado durante o trabalho sob o

    vis das relaes que a guitarra pode ter com este ambiente experimental, atravs do uso de

    ferramentas das novas tecnologias. Sua origem histrica e sua natureza eletroacstica

    permitiram ao instrumento, desde seu nascimento, uma srie de possveis interlocues

    experimentais, que algumas vezes podem ter sido acobertadas pela presena to proeminente

    da guitarra na msica popular.

    Sempre houve de minha parte - um fascnio pela tecnologia e, por ter escolhido

    primariamente um instrumento que eletroacstico por natureza. Durante muitos anos busquei

    uma forma de conectar musicalmente a organicidade interpretativa da guitarra (que similar

    aos outros instrumentos de corda como o violino e o contrabaixo, por exemplo) com a

    imensido de aparatos e ferramentas tecnolgicas, conexo esta que tentasse resultar em uma

    sonoridade com caractersticas prprias, que soasse estendida e afastada de territrios j

    estabelecidos. Passei por fases onde foi necessrio carregar e montar pesados equipamentos

    para que houvesse a possibilidade de obter alguns timbres experimentais atravs da construo

    de pedaleiras customizadas3, pedais em ligaes que utilizavam metros de cabos sonoros

    conectados e rgidas interfaces. Os sistemas eram frgeis, de difcil locomoo e o custo, tanto

    de compra como de manuteno, muito altos. Programar sons, timbres e patches4 era algo nada

    intuitivo tambm, atravs de interfaces complexas e, muitas vezes, de demorada execuo.

    2 Schaeffer, Cage and Waters each represent a different alternative to [...] the systematization and quantification of the values of music

    (traduo nossa). 3 Customizao: ato de personalizao, adaptao. Neste caso, pedaleiras que foram montadas por e para mim, apresentando adequaes

    individuais de escolha de efeitos, ligaes, posio dos pedais, etc., de acordo com necessidades especficas para obteno de sonoridades desejadas.

    4 Patch: arquivos digitais que contm programaes realizadas e armazenadas pelo usurio para uso posterior, presentes em diversos softwares de processamento sonoro e tambm em hardwares como pedaleiras ou processadores em formato de racks.

  • 20

    Na ltima dcada ocorreu um desenvolvimento tecnolgico sem precedentes, atravs

    de ferramentas computacionais interativas, reinventando o processo de construo sonora para

    a guitarra eltrica. Afinal, a rapidez de conexo e interatividade entre o msico e o som

    produzido em seu instrumento, quando em ambiente digital, passaram a acontecer em tempo

    real, tornando possvel realizar uma srie de processos nicos que, absolutamente, no existiam

    anteriormente. A msica pode ser considerada, desde suas origens, uma forma de arte

    interativa, porm, as transformaes ocasionadas em funo destas novas tecnologias no que

    se refere a este convvio mtuo entre o instrumentista e sua interface musical so exponenciais

    em vrios aspectos. Junto a estes importantes fatores de inovao, a atual tecnologia digital

    presente em computadores com sistemas como o Linux, Mac OSX, Windows e o iOS5, entre

    outros, traz ao instrumentista possibilidades experimentais de manipulao sonora para

    improvisao e composio a um custo muito menor do que era h poucos anos, alm de

    proporcionar uma mobilidade extrema do equipamento de produo sonora, tornando possvel

    realizar uma investigao analtica da relao destas transformaes com o instrumento.

    A construo desta pesquisa, de sua composio musical proposta e a escrita final da

    dissertao abarcam reflexes e questionamentos entre este relacionamento da guitarra eltrica

    e suas novas - ferramentas de produo sonora, presentes na tecnologia digital

    contempornea. Estas reflexes envolvem tambm o uso de processos composicionais e da

    improvisao com o instrumento na chamada msica experimental. Como afirma Miskalo

    (2009, p.1), a atividade composicional no uma cincia exata e envolve uma srie de

    questes subjetivas, em que a formao profissional e pessoal do compositor so determinantes

    para a obra que produz. Procuro aqui, portanto, uma forma de pensar e dimensionar

    epistemologicamente a relao do instrumento no universo musical contemporneo, universo

    este que, como afirma Costa (2003, p.12), apresenta esta vocao experimental, atravs de uma

    composio alimentada por uma busca pessoal de sonoridades que ecoam esta vocao e que

    se alimenta tambm da improvisao, utilizando exclusivamente a tecnologia disponvel em

    aparatos digitais em sua construo sonora.

    Este trabalho dividido, portanto, em trs partes. A primeira delas a dissertao

    escrita, que traz uma exposio de elementos primordiais envolvidos na pesquisa, um

    posicionamento histrico da guitarra eltrica, o desenvolvimento da tecnologia sob o vis da

    produo sonora, uma reflexo sobre a possibilidade de definir o que msica experimental,

    5 Linux um sistema operacional escrito em cdigo aberto e livre, desenvolvido originalmente pelo finlands Linus Torvalds, em 1991, e

    atualmente disponvel em diferentes edies operacionais. Mac OSX e iOS so sistemas operacionais proprietrios dos computadores e aparelhos mveis da empresa Apple.

  • 21

    suas delimitaes no que tange este trabalho e seus ambientes de experimentao atravs do

    instrumento, alocando um repertrio pertinente ao tema proposto. A dissertao tambm traz

    elementos determinantes do processo composicional da pea proposta, seus procedimentos,

    reflexes sobre os roteiros e sua partitura, o uso da improvisao, referncias e anlise, alm

    de um relato em formato autoetnogrfico do perodo que engloba a pesquisa de criao e

    manipulao sonora do instrumento e algumas ferramentas disponveis das novas tecnologias

    digitais. A segunda parte a prpria composio proposta e alimentada pela pesquisa, que

    traduz muitas das reflexes e paradigmas em sons, criados para tal propsito. O processo de

    composio se desloca da reflexo terica para uma construo destas sonoridades atravs do

    uso de ferramentas digitais, aps um perodo de escuta atenta de quatro peas contemporneas

    que formaram uma linha referencial para a composio proposta, conforme descrito no captulo

    4. Finalmente, a terceira parte deste trabalho representada pelo mapeamento realizado

    durante o primeiro ano do mestrado, que inclui dezenas de softwares, aplicativos e hardwares

    disponveis (e pertinentes) pensados aqui como ferramentas sonoras.

    Se a terceira parte deste trabalho pode apresentar um carter de particularidade

    perecvel, onde - em alguns anos - muitos dos aplicativos e softwares presentes no mapeamento

    sero reescritos, recodificados, enquanto que outros tantos podem ser extintos e ainda muitos

    surgiro, isso no atinge as duas primeiras partes da pesquisa. Tanto as reflexes propostas

    durante este perodo de estudo quanto a prpria composio realizada denotam paradigmas

    persistentes no campo das artes que se iniciaram por volta da segunda metade do sculo XX e,

    possivelmente, estaro presentes em pocas vindouras. Abarcar possibilidades e interferncias

    tecnolgicas no fazer musical pode levantar questionamentos importantes e cruciais,

    independentemente da poca em questo. Os domnios especficos que a tecnologia traz

    consigo mesma acabam sempre derrubados e dilatados em outras esferas, culturais e sociais.

    Flusser (2007, p.37) mostra que, no momento em que a ferramenta entra em jogo, possvel

    falar de uma nova forma de existncia humana. Esta ferramenta, enquanto um artefato

    originalmente produzido para dar forma matria e ter uma (ou algumas) funes, se modela

    ao longo de seu tempo de uso e transforma a sociedade e seu modo de produzir. Esta

    ferramenta, que inclui exemplos como um machado de pedra pr-histrico, a lamparina a leo,

    o tear eletromecnico, o motor a vapor, o telefone analgico, o computador pessoal ou um

    smartphone6 de ltima gerao, entre tantos outros, traz consigo estgios de diferentes

    6 Telefones inteligentes, em traduo livre. De acordo com o Manual de Comunicao da Secom, atravs do planejamento estratgico 2010-2018 de comunicao social do governo federal, a palavra smartphone um estrangeirismo j absorvido pela lngua e que, portanto, no

    precisa estar em itlico. Doravante, utilizo a grafia da palavra desta forma. O mesmo ocorre com as palavras tablet e notebook, quando

  • 22

    evolues que se traduzem no somente em uma nova experincia de uso, mas, como Flusser

    teoriza, em nova condio de existncia humana e seu relacionamento com o que vem da

    natureza mecnica, eltrica e digital, a partir de um estgio maquinal.

    Esta relao homem-ferramenta-tecnologia se faz presente nesta mquina que

    chamamos j h algum tempo de computador. Para Iazzetta (1996, p.11),

    O computador um sistema geral de processamento de smbolos que podem

    representar qualquer outro tipo de signo: som, imagens, movimentos, mas tambm

    palavras, ideias, processos. Essa mquina peculiar possui uma caracterstica que a

    distingue da maioria das outras ferramentas criadas pelo homem: o computador,

    apesar de sua grande utilidade, no possui uma funo a priori.

    Uma vez inserida para dentro do computador, digitalizada, qualquer tipo de informao

    passa a ter a possibilidade de tornar-se um novo tipo de ferramenta. Importante lembrar aqui

    que, para esta pesquisa, por computador entende-se diferentes ferramentas digitais como

    pedaleiras, tablets, smartphones, notebooks, computadores pessoais, controladores externos de

    eventos digitais, entre outras variaes de hardwares que possam trabalhar e se alimentar de

    informao digital.

    Para no fugir do escopo deste trabalho, e tambm para manter a objetividade

    pertinente a uma pesquisa acadmica, este texto no se aprofunda em questes semiticas ou

    antropolgicas que podem permear o uso da tecnologia como ferramenta musical. Procuro

    restringir o foco do trabalho no processo de composio e improvisao com a guitarra e as

    novas tecnologias mveis, apresentando uma pea como um resultado artstico da pesquisa. A

    magnitude da abrangncia de temas que envolvem esta pesquisa torna difcil, se no

    impossvel, abraar todas suas vertentes tericas e propor reflexes condizentes; desta forma,

    me propus a estudar o assunto abordado aqui trazendo apenas elementos que se referiam ao

    tema proposto. Apesar do uso deste recorte ser uma caracterstica de todo trabalho dissertativo

    no mbito da ps-graduao, seja ele de qual rea de atuao for, penso ter equilibrado este

    fato com uma composio musical realizada integralmente durante o perodo da pesquisa e

    atrelada ao escopo terico da mesma. Talvez em um futuro projeto de pesquisa seja possvel

    alargar estes questionamentos e reflexes em outras e mais amplas - direes.

    grafadas nesta dissertao. Ver: http://www12.senado.gov.br/manualdecomunicacao/redacao-e-estilo/estilo/estrangeirismos-grafados-sem-

    italico - acesso em 15/5/2015.

    http://www12.senado.gov.br/manualdecomunicacao/redacao-e-estilo/estilo/estrangeirismos-grafados-sem-italicohttp://www12.senado.gov.br/manualdecomunicacao/redacao-e-estilo/estilo/estrangeirismos-grafados-sem-italico

  • 23

    Vamos, portanto, uma sntese deste trabalho e suas divises organizacionais. Nesta

    introduo, denominada Captulo 1, apresento um breve prefcio dos propsitos da pesquisa e

    os interesses envolvidos no tema, mostrando as definies iniciais sobre o que foi proposto a

    ser investigado e realizado durante o perodo de mestrado e procurando deixar o mais claro

    possvel suas delimitaes tericas, alm de um resumo de todos os captulos que compem a

    dissertao.

    No Captulo 2, contextualizo a guitarra e sua natureza eltrica, abordando sua histria

    desde a origem, o lugar do instrumento como um dos principais da msica popular do sculo

    XX, e tambm procuro caracterizar o instrumento como capaz tambm de ser gerador de

    sonoridades experimentais, atravs do uso das novas tecnologias. neste captulo que tambm

    ressalto a importncia de especificar o uso reducionista do instrumento atravs de ferramentas

    tecnolgicas contemporneas, como softwares ou aplicativos mveis, muitas vezes

    posicionando a guitarra eltrica em uma situao de simulao sonora7. A partir deste

    momento, estabeleo uma tentativa de construir uma reflexo terica sobre o uso da guitarra

    eltrica e possveis formas de produo sonora atravs das tecnologias digitais relacionadas

    com a pesquisa. Durante este captulo, constru uma proposta de diviso de estgios evolutivos

    do instrumento, sendo:

    a.) Estgio #1: origem

    b.) Estgio #2: feedback e o surgimento da guitarra de corpo slido

    c.) Estgio #3: distoro, fuzz e efeitos sonoros

    d.) Estgio #4: momento atual; softwares e aplicativos mveis

    Este captulo aborda tambm as caractersticas e evoluo da amplificao do

    instrumento (vlvula e transistor), parte intrnseca manufatura do timbre da guitarra eltrica,

    procurando fundamentar tais conceitos em relao ao timbre final produzido com o

    instrumento atravs do alto-falante, elemento vital para a msica eletroacstica. O fechamento

    do captulo se d com uma reflexo terica sobre a forma de se construir o timbre da guitarra

    eltrica antes do uso de aparatos tecnolgicos e eletrnicos e suas expanses sonoras, abrindo

    7 De acordo com o dicionrio Houaiss: Simulao: fazer parecer real (o que no ); fingir, aparentar; disfarce, cpia, tentativa de reproduzir algo fielmente, representar com semelhana. Atravs da pesquisa, o texto final da dissertao deixa claro e bem enfatizado este lado

    reducionista e de certa forma, fetichizado - que a guitarra eltrica possui, atravs do uso das novas tecnologias para simular amplificadores

    antigos, efeitos vintage, instrumentos clssicos de cordas, etc. Algo similar ocorreu durante as dcadas de 70 e 80 do sculo XX, em sintetizadores e teclados que procuravam simular fidedignamente diferentes instrumentos como pianos, contrabaixos, saxofones, marimbas e

    percusso, dentre muitos outros, deixando o potencial tecnolgico de sntese sonora para a criao de sonoridades originais em segundo plano.

  • 24

    as portas paras as reflexes seguintes sobre os ambientes de criao e experimentao sonoras

    com o instrumento e sua interao com as novas tecnologias digitais.

    No Captulo 3, trato do ambiente de experimentao, questionando em qual

    direo/aplicao pretendo expandir sonoramente a guitarra eltrica atravs de uma

    composio proposta que abarca o uso exclusivo do instrumento e alguns softwares, aplicativos

    e interfaces digitais. Abordo os critrios que definem o que msica experimental e quais sero

    suas limitaes tericas em relao ao uso classificatrio do termo no presente trabalho,

    construindo uma fundamentao terica deste conceito a partir de artigos, obras, teses e

    dissertaes apontadas nas referncias bibliogrficas, alm de trazer uma tentativa de

    convergncia entre a pesquisa acadmica e a criao artstica. Com isso, almejo um maior

    embasamento referencial do pensamento experimental que acontece com o acoplamento da

    guitarra a alguns aparatos tecnolgicos escolhidos aps o mapeamento realizado durante o

    primeiro ano da pesquisa, referenciado e anexado de forma complementar a este texto.

    Um aspecto importante deste captulo o momento em que procuro contextualizar o

    experimento tecnolgico com a guitarra eltrica e os aparatos tecnolgicos selecionados,

    eliminando da pesquisa o uso de expanses fsicas e extenses por objetos, que no so, a

    priori, o foco da dissertao e da composio proposta. Portanto, experimentaes sonoras com

    o instrumento atravs da extenso fsica com alterao no corpo do instrumento, como:

    mudana de tipo de captadores, insero de materiais entre as cordas e a escala do instrumento,

    afinaes exticas, uso de escalas e modos exticos, uso de artefatos no comuns para

    produo de som no instrumento como pedaos de madeiras, pedaos de ferro ou metais,

    panos, escovas, etc., no sero o foco de anlises e reflexes deste trabalho.

    Parte intrnseca deste captulo, vital para o trabalho como um todo, o momento em

    que abordo o conceito e uso da improvisao (livre e idiomtica) durante a pesquisa sonora e

    o processo de composio. Finalizando o captulo, procuro realocar a guitarra para este

    ambiente de experimentao, relacionando-a com um repertrio j existente. Exemplos de um

    repertrio experimental para guitarra eltrica incluem compositores e instrumentistas de

    diferentes pases e culturas, como: Keith Rowe, Otomo Yoshihide, David Torn, Taku

    Sugimoto, Bill Frisell, Vernon Reid (com composies de Christian Marclay), Mario Del

    Nunzio, Adrian Belew, Paulo Dantas, Magno Caliman, Alexandre Porres, Michal Dymny,

    Filippo Giuffr, Pat Metheny, Anders Lindsj, Robert Fripp, Sonic Youth (interpretando uma

    composio de James Tenney), Stefano Pilia, Yannis Fried, Camel Heads, Steve Vai, entre

    alguns outros. Comento tambm a presena e uso do instrumento em duas composies de

    Karlheinz Stockhausen.

  • 25

    O Captulo 4 dedicado inteiramente pea proposta e sua fundamentao terica,

    apresentando os procedimentos adotados no processo de composio e tambm no uso da

    improvisao durante o perodo de pesquisa. Uma observao importante ao longo deste

    captulo o fato de a pea proposta ter um carter e natureza eletroacstica e ter sido composta

    e registrada integralmente atravs de um instrumento musical, a guitarra eltrica, oferecendo

    novas espcies de instrumenticidade em suas relaes com o computador. Este captulo

    tambm apresenta as quatro peas que foram a referncia esttica e sonora para a composio

    realizada: Phonemes, de David Tudor, Hyperprism e Pome lectronique, de Edgard Varse,

    e Artikulation, de Gyrgy Ligeti. As peas foram analisadas com uso de espectrogramas, e

    tambm foram esclarecidos os motivos pelos quais foram escolhidas para serem utilizadas

    como referncias neste trabalho. Apresento os motivos pelos quais optei por um roteiro da

    partitura verbal tanto quanto por uma partitura de registro da gravao da pea. Finalmente,

    este captulo encerra-se com uma anlise musical da pea musical proposta por esta pesquisa,

    chamada de Cinq, pea criada e registrada utilizando-se somente uma guitarra eltrica e

    algumas ferramentas computacionais selecionadas. Atravs de uma fundamentao terica que

    procura abarcar conceitos diversos tais como a relao entre o compositor, intrprete, partitura

    e performance, procuro expor alguns dos resultados obtidos sob a tica das caractersticas da

    sonoridade cristalizada de Varse. Esta anlise da pea abarca o uso de aspectos

    espectromorfolgicos e suas variantes explicados neste mesmo captulo - para descrever o

    material sonoro composto, entre outras reflexes.

    Apresento no captulo seguinte um dos momentos mais importantes do perodo da

    pesquisa: uma espcie de dirio de bordo das experimentaes sonoras realizadas utilizando o

    instrumento acoplado s novas tecnologias, das maneiras como se conectam, interagem e

    alimentam-se uns aos outros. Aqui, portanto, fao a proposta de uma leitura mais ntima dos

    momentos que confeccionaram algumas das sonoridades de Cinq em um formato

    autoetnogrfico, alimentado pela escuta e anlise de instrumentistas, peas e referncias citadas

    ao longo deste trabalho, alm da explorao sonora de alguns dos softwares, hardwares e

    aplicativos escolhidos aps o mapeamento. Este momento foi importante por ter criado a

    possibilidade de alimentar um reservatrio de ideias sonoras, onde algumas foram escritas

    previamente, pensando em processos sonoros especficos, como por exemplo o uso de eco

    atravs de sntese granular ou um filtro de modulao com diferentes osciladores, e

    posteriormente concebidas atravs de ferramentas digitais, enquanto que outras surgiram

    buriladas em pleno trajeto investigativo, descobertas que aconteciam quando em conexes

    sonoras imprevistas e articuladas no momento de tocar o instrumento juntamente com algum

  • 26

    aparato especfico. Esta mo dupla de criao sonora aconteceu durante todo o percurso da

    pesquisa: ideias do primeiro tipo nasceram atravs de minha vontade de cri-las, partindo

    inicialmente de esboos rabiscados (muitas vezes com caneta e papel, ligando objetos que

    correspondiam aos efeitos ou procedimentos e/ou desenhando o caminho sonoro oriundo da

    guitarra atravs dos estgios) e resultando, aps um trabalho de programao digital, ao som

    almejado. J as ideias do segundo tipo nasceram quase que ao acaso, em um ambiente de

    explorao de potencialidades sonoras destas ferramentas disponveis e que, quando

    descobertas, foram ento submetidas uma compreenso de sua formao e capacidade. Estas

    formas de controle e intencionalidade se relacionam em tempos que se alternaram durante o

    processo composicional: o tempo diferido, da composio planificada e o seu oposto, que traz

    a oportunidade da incorporao do acaso, do no-controle, que se deu atravs do tempo real,

    o da improvisao8. Ambos os casos representam este perodo autoetnogrfico e se relacionam

    com o uso experimental do som, sob o escopo deste trabalho, durante a criao e o resgistro da

    pea proposta.

    Por fim, no ltimo captulo, Concluso, descrevo de maneira breve todo o processo

    terico e prtico realizado durante a pesquisa, dos procedimentos utilizados e sobre a

    composio feita, relembrando suas delimitaes definidas no captulo 3 no que se refere

    msica experimental. Construo tambm uma reflexo final no que se refere inteno

    originalmente proposta de se almejar um resultado artstico com este mestrado, atravs da

    composio de uma pea utilizando unicamente a guitarra eltrica e alguns aparatos

    tecnolgicos contemporneos. Este momento tambm permitiu um aprofundamento reflexivo

    sobre os resultados da pesquisa, do trabalho composicional e das conexes entre estas duas

    dimenses (terica e prtica), possibilitando, portanto, alguns desdobramentos a serem

    realizados em um futuro projeto de pesquisa.

    O trabalho ainda apresenta, em anexo, o mapeamento realizado de mais de 50 aparatos,

    entre softwares, aplicativos, hardwares e interfaces, alm do DVD contendo a composio

    proposta, peas referenciais e alguns exemplos e experincias sonoras registradas e descritas

    durante o momento autoetnogrfico.

    Uma nota importante: aps pesquisa na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e

    Dissertaes9, foram encontrados cerca de 23 trabalhos que retratam genericamente o campo

    8 Para Costa (2013, p.35), percebe-se que o agenciamento da improvisao diferente do agenciamento da composio uma vez que estas

    duas formas de pensamento e ao musical estabelecem relaes diferentes com as linhas do tempo. Na improvisao, que se d em tempo

    real, o tempo e o espao se incorporam enquanto elementos fundamentais do ambiente e condicionam totalmente a performance. 9 Disponvel em http://bdtd.ibict.br/ - acesso mais recente em 25/2/2015.

    http://bdtd.ibict.br/

  • 27

    de pesquisa com o assunto preenchido unicamente com a palavra guitarra e apenas 7 trabalhos

    encontrados quando realizado com as palavras guitarra e eltrica. Ao pesquisar os termos

    guitarra e tecnologia conjuntamente, aparece apenas um nico trabalho cientfico como

    resultado. Estas pesquisas, em sua maioria, so teses e dissertaes com anlises e pesquisas

    de estilo, interpretao e harmonia, sendo que apenas dois trabalhos apresentam enfoque na

    expressividade da tecnologia, um em carter interpretativo na msica pop e o segundo, uma

    anlise na rea de engenharia sobre a distoro musical do instrumento. Porm, no h

    nenhuma tese ou dissertao na Biblioteca Digital Brasileira atualmente que mapeie e elabore

    uma pesquisa dos aparatos tecnolgicos e suas resultantes na sonoridade e extenso criativa

    acopladas guitarra eltrica. Ao ser pesquisado, no mesmo banco de dados, as palavras

    conjuntas msica e tecnologia resultam em 143 trabalhos encontrados, que abrangem diversas

    reas de estudo como: sonologia, composio, histria, educao, interpretao, improvisao,

    msica popular, etnomusicologia, produo fonogrfica, comunicao, software livre,

    computao, educao, entre muitas outras.

    Percebo assim, no meio acadmico brasileiro, uma lacuna no que se refere uma

    pesquisa com uma abordagem exclusiva do uso das novas tecnologias digitais com a guitarra

    e seus artefatos e que seja voltada para o campo da composio e improvisao na msica

    experimental. Espero que este trabalho possa contribuir trazendo uma reflexo importante na

    pesquisa do instrumento e seu uso na msica contempornea.

    1.1 Metodologia

    A metodologia do trabalho baseou-se em pesquisas tericas, abordagens prticas do

    processo de composio e improvisao na msica experimental, atravs do uso da guitarra

    eltrica e ferramentas disponveis das novas tecnologias digitais, alm de anlise musical

    posterior dos resultados alcanados com a pea proposta. Sua realizao foi dividida em cinco

    momentos de referncia pertinentes a estes procedimentos metodolgicos, presentes em

    momentos distintos durante o perodo de estudo:

    a.) Reviso bibliogrfica: foi o momento inicial do trabalho, onde foram organizadas e

    compiladas as pesquisas na rea de criao e sonoridade, tecnologia musical, msica

    experimental, composio e improvisao. Aqui tambm foram realizadas pesquisas de

    repertrio experimental do instrumento e a escolha de peas experimentais importantes que se

  • 28

    tornaram, posteriormente, referncias para o processo composicional. Este perodo abrange

    tambm o estudo, leitura, seminrios e proposies das disciplinas cursadas durante os dois

    primeiros anos do mestrado.

    b.) Reviso da tecnologia: dedicado ao estudo e anlise da tecnologia disponvel nos

    sistemas Linux, MAC OSX e no iOS e seus aparatos correlacionados, alm dos aplicativos e

    unidades hardware de efeitos, como pedais e/ou pedaleiras. Aqui aconteceu a deciso pelo uso

    de um computador mvel em ambiente Macintosh e um outro equipamento em iOS, dada a

    abrangncia de possibilidades de desenvolvimento de softwares e aplicativos, tanto em cdigo-

    aberto, de carter livre, quanto em verses comerciais, e tambm por uma extensa experincia

    de uso pessoal com ambos os sistemas.

    c.) Aplicao e manipulao sonora: momento que inclui o estudo da interao

    homem-mquina em tempo real, sob a tica da manipulao sonora, com as relaes, uso e

    performance em tempo real da guitarra eltrica com um computador MacBook, um iPad e suas

    especficas interfaces digitais, descritas no mapeamento. Um formato de dirio de bordo foi

    utilizado durante este processo, incluindo anotaes especficas do repertrio selecionado,

    apontamentos de carter investigativo e experimentaes sonoras que incluram performance,

    gravao e mudanas timbrsticas expandidas digitalmente atravs do uso dos aparatos

    mapeados. Com isso, foi sendo criado e constantemente alimentado um reservatrio de ideias

    que abarcou diferentes possibilidades de performance e criao sonora, alguns sendo utilizados

    posteriormente na composio proposta. Algumas experimentaes sonoras nasceram para e

    atravs dos ensaios e concertos realizados da srie Msica?10 e as reflexes que estes

    eventos possibilitaram.

    d.) Composio e registro: momento anterior concluso da pesquisa, onde foi

    concluda a composio da pea e realizada a gravao desta composio em formato digital.

    Este perodo incluiu a escolha do software multipista a ser utilizado, a execuo de

    experimentos com reverberaes e posicionamentos de ambientao panormica com os

    arquivos de udio j registrados de cada instrumento, e tambm incluiu a formatao do roteiro

    10 Msica? uma srie de performances que vem sendo realizada desde 2005 em que produes sonoras e musicais so tomadas como

    ponto de discusso e reflexo a respeito da produo musical atual. Experimentalismo, uso crtico de tecnologias de produo sonora,

    interligao entre elementos visuais, gestuais e sonoros, emprego de tcnicas de improvisao e explorao dos espaos de performance so alguns dos elementos que norteiam as apresentaes do Msica?. Ver: http://www2.eca.usp.br/nusom/producoes-musica - acesso em

    5/3/15.

    http://www2.eca.usp.br/nusom/producoes-musica

  • 29

    de partitura que serviu como estrutura organizacional da execuo de cada uma das guitarras

    da pea.

    e.) Escrita da dissertao: perodo conclusivo do trabalho, j com muitas leituras

    concretizadas de artigos, obras, papers, livros e manuais, um maior perodo de envolvimento

    com o grupo de estudos do departamento de Sonologia e de Msica da USP, reunies diversas,

    mapeamento e pesquisas sonoras dos aparatos individuais realizadas e muitos dos softwares e

    aplicativos escolhidos j, razoavelmente, decupados e apreendidos em seu uso como

    ferramentas de criao e modificao sonora. A organizao de todo este material tambm

    inclui um levantamento do repertrio a ser referenciado na pesquisa e o envio de perguntas e

    reflexes a alguns dos compositores citados no trabalho, e sua posterior compilao de

    respostas.

    ***

  • 30

    2. A guitarra, sua natureza eltrica e a tecnologia musical

  • 31

    Captulo 2 A guitarra, sua natureza eltrica e a tecnologia musical

    The evolution of the electric guitar is the evolution from a barely audible rhythm

    instrument to a vessel, along with amplifiers and sound effects technology, through

    which any imaginable sound might be produced.

    Andr Millard, 2004

    Lester William Polsfuss, tambm conhecido como Les Paul, criou a primeira guitarra

    de corpo slido da histria, chamada The Log, em 1941, iniciando um impacto de grandes

    propores na msica popular11. Trata-se de instrumento que nasceu pela e para a eletricidade,

    sobreviveu aos desafetos acsticos tradicionalistas, foi identificado como smbolo da

    modernidade cacofnica na cultura popular12 e ainda venceu as primeiras tentativas de

    simulao de sua sonoridade atravs da utilizao de presets nos sintetizadores comerciais13,

    dada a dificuldade desta simulao pela complexidade de sua interface. Mas na atualidade

    que o instrumento vive um momento significativo no que diz respeito ao seu potencial de

    manipulao e criao sonoras, com possibilidades inditas de interpretao e composio. Ao

    incorporar sonoridades obtidas a partir do uso das novas tecnologias digitais, a guitarra eltrica

    torna-se um reservatrio de possibilidades experimentais, tanto na fase de criao quanto em

    11 Historicamente, h outros desenvolvedores que conseguiram amplificar uma guitarra slida e eltrica antes de Les Paul: em 1931, George

    Beauchamp, diretor da empresa National Guitar Corporation, desenvolveu um prottipo de uma guitarra eltrica amplificada, mas sem muito sucesso. Porm, de Beauchamp a primeira patente assegurada nos EUA de uma guitarra eltrica, no incio de 1937. H tambm Lloyd

    Loar, que j na dcada de 20 do sculo passado desenvolveu alguns prottipos ainda ineficientes eletricamente e primitivos como engenheiro

    da fbrica da Gibson em Kalamazoo, Michigan, EUA. Lloyd iria fundar posteriormente, na dcada seguinte, a empresa Vivi-Tone em 1933, tendo tambm uma patente registrada nos EUA em 27 de janeiro de 1937 que especificava uma guitarra eltrica que poderia ser utilizada

    tanto como fonte-geradora sonora quanto instrumento musical. O suo-americano Adolph Rickenbaker, que na mesma dcada de 30 produzia

    alguns modelos de lap-steel (guitarra feita a partir de uma construo do corpo com lataria, que no incio do sculo XX tentava obter um volume maior de ressonncia; geralmente tocada em posio horizontal, com um slide de vidro ou metal deslizando pelas cordas) tambm

    tentou construir alguns prottipos com corpo em madeira slida na poca, sem resultados significativos. Rickenbacker e Beauchamp iriam juntar-se mais tarde, em meados da dcada de 1930, para fundar a empresa Rickenbacker, que apresentaria alguns modelos de guitarras e

    contrabaixos eltricos muito bem feitos e de grande sucesso comercial. Alguns destes modelos so cobiados at hoje por muitos

    instrumentistas. (Ver: WHEELER, 1993). 12 Ao chegar ao Brasil com proeminncia, na dcada de 1960, a guitarra eltrica gerou calorosas discusses no meio artstico sobre seu uso

    na msica popular. Em 17 de julho de 1967, com os brados de Defender O Que Nosso, aconteceu uma passeata na cidade de So Paulo, que ficou conhecida como a Passeata Contra a Guitarra Eltrica, saindo do Largo So Francisco e desembocando diretamente no Teatro

    Paramount, na avenida Brigadeiro Lus Antnio, onde era gravado em emissora de TV um conhecido programa de msica popular brasileira

    na poca. Esta manifestao foi liderada pela cantora Elis Regina, e contava com forte apoio e presenas de artistas populares como: Jair Rodrigues, Z Keti, Geraldo Vandr, Edu Lobo, o grupo MPB-4 e Gilberto Gil, entre outros. Em entrevista a Jlio Maria, para o jornal O

    Estado de So Paulo, de 28 de janeiro de 2012, Gil comenta: Eu participava com Elis Regina daquela coisa cvica, em defesa da

    brasilidade, tinha aquela mtica da guitarra, como invasora; eu no tinha isso com a guitarra, mas tinha com outras questes, da militncia, era o momento em que ns todos queramos atuar. Disponvel em: http://jornalggn.com.br/noticia/a-passeata-da-mpb-em-1967-contra-a-

    guitarra-eletrica. Acesso: 21/10/14. Outro episdio que ficaria conhecido historicamente foi a apresentao do cantor/compositor popular

    estadunidense Bob Dylan em 1965 no Festival Newport Folk, nos EUA. Dylan apareceu pela primeira vez utilizando uma guitarra eltrica e slida (uma Fender modelo Stratocaster sunburst) na cano, at ento indita, Like a Rolling Stone, sendo imensamente vaiado pelo pblico

    presente, que considerou a presena da guitarra eltrica junto ao cantor como um desrespeito tradio das canes de ento. Disponvel

    em: http://www.eyeneer.com/video/rock/bob-dylan/maggies-farmlike-a-rolling-stone e http://www.history.com/this-day-in-history/dylan-goes-electric-at-the-newport-folk-festival - acessos em 28/10/14.

    13 At o final do sculo XX a simulao da sonoridade de uma guitarra eltrica, em um ambiente de msica popular, nunca obteve sucesso comercial em sintetizadores e samplers. (Ver: RUSS, Martin. Sound Synthesis and Sampling. London: CRC Press/Taylor & Francis

    Publishers, 2012).

    http://jornalggn.com.br/noticia/a-passeata-da-mpb-em-1967-contra-a-guitarra-eletricahttp://jornalggn.com.br/noticia/a-passeata-da-mpb-em-1967-contra-a-guitarra-eletricahttp://www.eyeneer.com/video/rock/bob-dylan/maggies-farmlike-a-rolling-stonehttp://www.history.com/this-day-in-history/dylan-goes-electric-at-the-newport-folk-festivalhttp://www.history.com/this-day-in-history/dylan-goes-electric-at-the-newport-folk-festival

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    performance, com mudanas de timbre em tempo real. Esta pesquisa tem o objetivo de

    apresentar uma contextualizao do instrumento como gerador destas sonoridades

    experimentais atravs de oportunidades existentes em softwares e aplicativos que envolvem

    criao, manipulao e extenso sonoras. Ao aliar uma fora de interpretao caracterstica aos

    instrumentos de corda com uma natureza eltrica/amplificada e permitir a incurso de novas

    ferramentas digitais em seu processamento sonoro, a guitarra possibilita que seu campo de

    atuao seja amplificado, em tempo real, nas reas de composio e improvisao.

    Se levarmos esta reflexo para o campo da msica eletroacstica e experimental, que a

    partir do sculo XX possibilitou o alargamento de sonoridades no fazer musical, aliado ao

    momento atual das potencialidades sonoras da guitarra, possvel encontrarmos alguns

    caminhos que faam uso deste material sonoro que sejam pertinentes aos assuntos desta

    pesquisa. Afinal, estas ferramentas digitais no so inditas tampouco foram concebidas

    originalmente pensando em seu uso com a guitarra eltrica. Segundo Iazzetta (2009, p.155),

    Nenhuma tecnologia totalmente nova, mas sim resultado de uma complexa teia de

    conhecimentos, experimentaes e realizaes que ocorrem de forma sincrnica e

    diacrnica [...]. H tambm um outro fator que, se no gerado pela tecnologia

    musical, ao menos colocado em evidncia por ela: a expanso da ideia de

    instrumento.

    O uso destas novas tecnologias possibilita desalojar o instrumento de seu padro snico

    original e permite uma expanso para outros territrios, atravs de uma abordagem exploratria

    resultante das novas possibilidades estticas, sonoras e do uso de novos materiais criados a

    partir da converso digital de seu sinal eltrico. O tocar da guitarra, seu fazer musical, passou

    a contar com mais possibilidades de conexes que a permitem expandir suas possibilidades

    tcnicas e sonoras tradicionais j enraizadas e absorvidas14, tanto em seu formato de

    interpretao quanto ao que se pode esperar dela em processos composicionais. Estas

    possibilidades digitais de troca e interao sonora entre o instrumento e suas ferramentas de

    criao promovem tambm a experimentao de novos sons e suas conexes possveis,

    oferecendo alternativas antes inexistentes em como conectar estes diversos materiais entre si15.

    Algumas vezes, situaes imprevistas no momento de se conceber alguns destes sons e os

    executar na guitarra momento este com carter laboratorial, de pesquisa e que objetiva a

    maneira como a fisicalidade presente no instrumento se relaciona com a criao e interpretao

    14 Em estilos musicais como o rock, o jazz, a chamada msica pop, o blues, a msica popular brasileira, entre outros.

    15 Softwares como o Max e o Pd, citando dois exemplos que foram utilizados na composio proposta e analisados durante este trabalho, apresentam algumas destas novas possibilidades de conexo de materiais sonoros.

  • 33

    destas sonoridades - acabam dando origem a caminhos ainda inditos que, antes do uso destas

    novas tecnologias digitais, seriam impraticveis. Neste laboratrio sonoro no qual as

    ferramentas digitais permitem alocar, a transposio de territrios intrnsecos ao instrumento

    e seus limites se beneficia, e muito, do imprevisvel. Os filsofos franceses Gilles Deleuze e

    Flix Guattari (1995, p.45), escrevem no segundo volume da obra Mil Plats sobre elementos

    isolados que, quando conjugados e conectados, tm resultados imprevisveis:

    No utilizando uma lngua menor como dialeto, produzindo regionalismo ou gueto

    que nos tornamos revolucionrios; utilizando muitos dos elementos da minoria,

    conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir especfico, autnomo,

    imprevisto...16

    Atualmente, aps a digitalizao do seu sinal eltrico no computador, a guitarra pode

    interagir com diferentes equipamentos e passar por uma srie de procedimentos para a

    construo de um som especfico. Esta relao do instrumento com o computador no afeta

    somente a construo sonora, mas tambm cria todo um ambiente que se relaciona com o tocar

    do instrumento e seu fazer musical. O instrumentista passa a vivenciar um novo patamar de

    dilogo com diversas camadas que proporcionado e, simultaneamente, ampliado

    exponencialmente pelo processamento digital. Bertelsen, Breinbjer e Soren (2007, p.233),

    escrevem analogamente sobre esta relao entre usurio e mquina, atravs da utilizao de

    uma ferramenta digital de produo de texto,

    Assim, o sucesso de um artefato computacional, por exemplo, um sistema de

    processamento de texto, no apenas uma questo de utilidade e usabilidade na

    resoluo de tarefas comuns de edio; tambm importante que o sistema d suporte

    ttil ao escritor sobre o texto a ser produzido, e que o sistema sirva como um ambiente

    para o desenvolvimento do autor enquanto um escritor e, finalmente, importante

    que o sistema suporte a escrita como um processo criativo e que inspira e apoia

    tambm o desenvolvimento da escrita em relao aos novos formatos interativos.17

    Este novo dilogo passa a ocorrer, portanto, de forma muito ampliada com relao ao

    que o instrumentista da guitarra possua anteriormente. No apenas o som objetivado em um

    16 Para Deleuze e Guattari, no segundo volume de Mil Plats (p.45), as lnguas menores no so simplesmente sublnguas ou dialetos, mas

    agentes potenciais para fazer entrar a lngua maior em um devir minoritrio de todas as suas dimenses, de todos os seus elementos [...] de

    forma imprevisvel. Esta analogia serve ao trabalho de forma muito pertinente, pois ao conectar estes procedimentos menores e isolados na concepo sonora, atravs de diferentes ferramentas digitais, muitas vezes possvel chegar a resultados imprevisveis na sonoridade

    concebida.

    17 Thus, the success of a computer artefact, e.g. a text processing system, is not only a matter of utility and usability in solving standard

    editing tasks. It is also important that the system supports the writers sense of the text being produced, and that the system serves as an

    environment for the writers development as a writer, and finally it is important that the system supports writing as a creative process, and that it inspires and also supports the development of writing in relation to new interactive formats (traduo nossa).

  • 34

    software qualquer o resultado prtico desta relao. Como mostram Bertelsen, Breinbjer e

    Soren acima, o artefato computacional, seja ele sonoro, grfico ou textual, passa a oferecer e

    impor correlaes de usabilidade e tambm de ambientao criativa. Dada a riqueza destes

    procedimentos, a evoluo tcnica dos processadores digitais disponveis e o uso intensificado

    de abordagens digitais interativas18, esta relao instrumento-computador cria alternativas que

    podem servir de alicerce para a msica experimental contempornea. exatamente aqui que

    realizo uma importante delimitao do trabalho: apresentar uma reflexo sobre o uso e criao

    sonora de um instrumento de corda eletrificado e posteriormente digitalizado, dentro do escopo

    da msica experimental, que definirei no terceiro captulo, a partir de seu uso exclusivo com

    as novas tecnologias presentes na computao mvel. Uma fundamentao importante o fato

    de que, atravs do atual estgio de desenvolvimento tecnolgico, possvel criar, mudar e usar

    os softwares e aplicativos em tempo real, permitindo que o uso da guitarra com estes aparatos

    no seja reservado apenas aos processos composicionais, mas tambm se torne efetivo em

    performances e improvisao.

    Neste contexto, toda e qualquer comunicao entre humanos e mquinas

    (computadores pessoais, pedais de efeitos individuais como delays, pitch-shifters e

    moduladores, pedalboards com sistema de memria avanado, unidades de loop em tempo

    real, processadores de sinais independentes, aplicativos para aparelhos mobile e softwares de

    sntese sonora, sequenciadores de inteligncia artificial, simuladores e samplers, entre dezenas

    de outros) passa a ter um maior uso de carter interativo19. Surge uma espcie de msico digital,

    que incorpora no apenas a tecnologia disponvel em seu ambiente de criao, mas tambm

    procedimentos, processos, estruturas e pensamentos correlacionados neste universo. Para

    Hugill (2008, p.XV), msicos digitais no somente utilizam nica e exclusivamente

    equipamentos tecnolgicos no fazer musical, mas tambm so produto de toda uma cultura

    digital20. A ideia de uso do experimento, da tentativa de obteno de algo que ainda no foi

    18 Esta interao entre homem-mquina pode ocorrer de diversas formas atualmente, dentre elas: pedais acionadores de controle de expresso,

    telas sensveis ao toque, sensores de posio GPS, sensores infravermelhos, controladores sem fio via rede wi-fi ou bluetooth, dentre outros.

    Veja tambm a nota de rodap seguinte, de nmero 19. 19 A comunicao entre o instrumentista e seus aparatos (a comear pela prpria fisicalidade do instrumento) passa, no caso da guitarra eltrica,

    por unidades de efeito, softwares e aplicativos que produzem a sonoridade final obtida. Ao acionar uma unidade de delay, que tem a repetio sincronizada com o andamento de uma msica, o instrumentista passa a executar de forma a agregar o sinal compartilhado pelo eco do efeito.

    Ou escolhendo usar o pedal de wah-wah, a estruturao rtmica da execuo possivelmente ir mudar (se a proposta for incorporar o efeito

    per se), alm da prpria movimentao fsica de acionamento do pedal, que chega a fazer parte da performance. Assim se d com praticamente cada patch ou efeito acrescentado, programado, acionado. At mesmo um simples knob de tone (circuito eletrnico que usa filtros entre 250K

    ohms e 500K ohms, presente no prprio corpo do instrumento; quanto maior o valor da frequncia, maior a reduo corte na zona de

    frequncia aguda o knob ir efetuar), ou a escolha de quais captadores usar, ir alterar, somar ou subtrair, interagindo com o timbre final almejado pelo instrumentista.

    20 The digital musician, therefore, is not one who uses only those technologies on composing and making music, but is rather a product of the whole digital culture (traduo nossa).

  • 35

    criado possibilita, atravs da utilizao dos recursos digitais na guitarra eltrica, definir um

    novo momento para o instrumento. O termo uso, aqui, refere-se a um procedimento, a um

    processo de pesquisa, de experincia. No captulo 3, farei uma breve referncia do uso de

    procedimentos na msica experimental e da importncia destes como ferramentas de

    composio. Citando Hugill (2008, p.3):

    [...] Msicos digitais no so, portanto, definidos pelo uso da tecnologia por si s.

    O recital de um pianista em um piano digital no realmente uma execuo de um

    msico digital, como tambm no ser um msico digital aquele compositor usando

    um software de notao para escrever um quarteto de cordas. Estes so msicos que

    usam uma ferramenta digital para facilitar um resultado que no concebido em

    termos digitais. No entanto, se o pianista ou compositor ficar intrigado com alguma

    possibilidade disponvel pela tecnologia que eles esto usando, e assim comearem

    a mudar a maneira de pensar sobre o que eles esto fazendo, neste ponto eles

    "podem" comear a se mover para tornarem-se msicos digitais [...] assim, um

    msico digital aquele que tem abraado as possibilidades oferecidas pelas novas

    tecnologias, em particular, o potencial do computador para a explorao,

    armazenamento, manipulao e processamento de som, bem como o

    desenvolvimento de inmeras outras ferramentas digitais e dispositivos que

    permitem a inveno musical e criativa... um msico digital, portanto, tem uma certa

    curiosidade, um compromisso de questionamento e crtica que se passa nestes

    territrios...21

    A guitarra eltrica atualmente um instrumento que possui esta opo natural de

    abraar as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias, resultando em uma infinidade de

    exploraes e processamentos sonoros que podem ir alm da curiosidade e encantamento

    momentneos. Esta pesquisa tem este objetivo ao levantar algumas reflexes sobre estas novas

    possibilidades do instrumento e propor uma pea musical como resultante artstica.

    2.1 Breve descrio histrica

    A tecnologia de simulao e sntese sonora encontrada em grande parte dos aparatos

    tecnolgicos para a guitarra eltrica parte do princpio de que possvel reproduzir as mesmas

    caractersticas sonoras de vrios equipamentos j conhecidos e utilizados em larga escala no

    processo de gravao desde a dcada de 1950. Geralmente, estes equipamentos so

    21 Digital musicians are, therefore, not defined by their use of technology alone. A classical pianist giving a recital on a digital piano is not really a digital musician, nor is a composer using a notation software package to write a string quartet. These are musicians using digital

    tool to facilitate an outcome that is not conceived in digital terms. However, if that pianist or composer were to become intrigued by some

    possibility made available by technology they are using, so much so that it starts to change the way they think about what they are doing, at that point they might start to move towards a digital musician... so, a digital musician is one who has embraced the possibilities opened up

    by new technologies, in particular the potential of the computer for exploring, storing, manipulating and processing sound, and the

    development of numerous other digital tools and devices which enable musical invention and discovery... a digital musician, therefore, has a certain curiosity, a questioning and critical engagement that goes with the territory- (traduo nossa).

  • 36

    considerados vintage22, antigos e j fora de produo, e possuem um preo carssimo no

    mercado de instrumentos e aparelhos usados. H um certo fetiche pelo que antigo; muitos

    msicos parecem crer que, somente pelo fato de um equipamento ter sido produzido em

    dcadas passadas, ele possa gerar sonoridades ou caractersticas de timbre mais orgnicas, e

    que seu uso ir agregar um padro superior de qualidade sonora. Adorno (1999, p.76) cunhou

    a expresso indstria cultural, definindo as variveis ideolgicas que permeiam o discurso

    miditico:

    Fica evidente o estado de xtase que se d diante do belssimo som

    convenientemente anunciado em uma propaganda do Stradivarius ou de um Amati;

    no entanto, s podem ser distinguidos de um violino moderno razoavelmente bom

    ouvidos especializados, no se esquecendo de prestar ateno devida execuo e

    composio.... Quanto mais progride a moderna tcnica de fabricao de violinos,

    tanto maior o valor que se atribui aos instrumentos antigos.

    Este sentimento de xtase pelo que antigo e vintage no exclusividade da guitarra e

    j foi abraado pela tecnologia comercial, que tenta promover a possibilidade de o

    instrumentista obter sons de equipamentos bastante difundidos em gravaes histricas que

    podem ser recriados digitalmente em um computador pessoal, atravs do uso de softwares

    simuladores especficos. Chamo este padro de uso da tecnologia de reducionista por

    representar um sistema que almeja meramente replicar sons j largamente utilizados

    anteriormente atravs de uma simulao digital que procura analisar, atravs de softwares, suas

    caractersticas de formao de espectros, alturas, massas e densidades. A reproduo

    virtualizada destes sons vintages passa a ser meramente uma iluso acstica, pois o som de um

    determinado amplificador ou instrumento antigo no existe por si s, mas sim formado por

    diversos outros fatores como: as caractersticas dos microfones utilizados em gravaes

    referenciais, as salas de projeo sonora, os pr-amplificadores utilizados no sistema de

    captao e mixagem, as qualidades dos alto-falantes utilizados especificamente nestas

    gravaes, alm de inmeras outras possibilidades de interveno sonora. O que se faz aqui

    colocar toda uma situao de potencial tecnolgico que possibilita o desenvolvimento de novas

    sonoridades em favor da recriao de outras tantas sonoridades j estabelecidas em alguns

    territrios como o jazz, rock ou fusion. Esta procura reducionista por sons antigos e largamente

    utilizados de amplificadores e pedais de efeitos, entre outros, construdos em dcadas passadas

    no apresenta para este trabalho uma qualidade de abordagem experimental na construo

    22 Equipamentos vintage: geralmente, instrumentos e acessrios mais antigos, que j possuem um valor agregado de manufatura, origem, tipo de construo manual e que oferecem um apelo clssico", de maturidade sonora. Qualidade de instrumento ou equipamento nico.

  • 37

    sonora e no faz parte do processo investigativo por fugirem do objetivo da pesquisa. Esta

    caracterstica experimental e algumas de suas nuances e definies sero abordadas durante o

    prximo captulo.

    Desde o seu nascimento, a guitarra eltrica recebeu algumas mudanas no formato do

    instrumento e inovaes na escolha de materiais em sua construo, mas que no alteraram sua

    construo de forma radical. Ainda hoje os modelos mais utilizados em escala mundial so

    praticamente os mesmos desenvolvidos na dcada de 50 do sculo passado, como a Gibson

    Les Paul23 ou a prpria Fender Telecaster, com pouqussimas atualizaes mais de carter

    visual, como tipos de acabamento em verniz ou escolha de madeiras certificadas.

    Implementaes tcnicas como incluso de alavancas com travas para as cordas e regulagem

    de microafinao24, construo do corpo e brao do instrumento em outros materiais como

    grafite ou carbono25, captadores ativos alimentados por uma bateria interna de energia26,

    tarraxas com sistema automatizado de afinao-padro27, sintetizadores e controladores MIDI

    embutidos, entre alguns outros, esto j disponveis h vrios anos e adicionaram

    possibilidades de interpretao no instrumento e sua performance, mas que no alteram

    drasticamente seu projeto original tampouco a maneira como os msicos utilizam a guitarra.

    O mesmo pode-se dizer dos amplificadores para o instrumento, que nasceram utilizando a

    23 Modelo desenvolvido por Les Paul e Ted McCarty em 1952, pela empresa estadunidense Gibson Guitar Corporation. Ver: EVANS, Tom;

    EVAN, Mary Anne. Guitars: Music, History, Construction and Players from the Renaissance to Rock. New York: Paddington Press, 1977

    e WHELLER, Tom. The Electric Guitar. San Francisco: Chronicle Books, 1993. 24 O sistema de vibrato, alavanca, travas nas cordas individuais de afinao e regulagens precisas conhecido como Floyd Rose foi criado em

    1977 e patenteada dois anos depois pelo engenheiro mecnico estadunidense Floyd D. Rose, possibilitava os instrumentistas utilizarem o vibrato mecnico da alavanca de forma mais proeminente e manter a afinao padro da guitarra. Antes desta tecnologia, a quase totalidade

    dos modelos de guitarra eltrica que contavam com uma alavanca de vibrato desafinavam aps um uso moderado. A Floyd Rose permitiu,

    pela primeira vez, que instrumentistas desenvolvessem uma nova linguagem com a utilizao de alterao mecnica de frequncias e explorao de harmnicos ao longo do brao do instrumento mantendo a afinao desejada.

    25 O engenheiro estadunidense Ned Steinberger desenvolveu, em 1979 um modelo de contrabaixo, conhecido como L2, slido e eltrico

    totalmente construdo com uma mistura de materiais em grafite e fibra de carbono, apresentando um corpo fino, pequeno, quadrangulado e

    sem a presena do headstock, a rea extrema onde so presas as cordas do instrumento, partindo do princpio que o instrumento sendo totalmente eltrico no havia necessidade de madeiras ou grandes quantidades de rea construda. A primeira guitarra eltrica slida construda

    por Steinberger com estas mesmas caractersticas e materiais surgiria em 1981. Anos mais tarde, algumas outras empresas utilizariam

    diferentes materiais e designs alternativos na construo de guitarras eltricas slidas, entre elas: Parker Guitars, com modelos ultraleves feitos de resina e fibra de carbono, desenvolvidas pelo engenheiro Ken Parker na dcada de 90 do sculo XX; os instrumentos construdos

    por Steve Klein, com diferentes designs de corpo e braos mais retos e finos, apresentando uma grande variedade de materiais utilizados na

    construo, alm de madeiras levssimas; a japonesa Yamaha G10, lanada em 1988, com corpo reto em plsticos e carbono, com capacidade de controlar parmetros MIDI em mdulos externos atravs de um decodificador hexafnico e tambm ser utilizada como uma

    guitarra eltrica tradicional, com captadores magnticos; a Variax, da empresa estadunidense Line-6, que apresenta um software de emulao

    e virtualizao digital embutido e controlado no prprio corpo do instrumento (ver o captulo Anexos deste trabalho para especificidades deste aparato); a guitarra alem FrameWorks, criada por Frank e Verena Krocker, totalmente sem corpo e com suporte removveis, feita apenas em

    um nico pedao de madeira que contm o brao e sua parte eletrnica construda, entre outros.

    26 Captadores alimentados por uma bateria de energia acondicionada no corpo da guitarra eltrica, de 9V, desenvolvidos pela empresa EMG

    e introduzidos em 1976-77 nos EUA. Estes captadores possibilitaram, atravs da alimentao ativa pela bateria 9V, uma sada de altssimo

    ganho em decibis, a eliminao de interferncias comumente encontradas em captadores magnticos tradicionais e uma sustentao prolongada das notas captadas.

    27 Sistema de auto afinao automatizada introduzido pela empresa Gibson, no modelo Les Paul Robot, em 2007, onde as tarraxas mecanicamente se alinham atravs de regulagens de afinao das alturas pr-estabelecidas pelo instrumentista.

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    tecnologia de vlvulas, passaram a ser construdos com transistores eletrnicos e, desde a

    dcada de 90 do sculo XX, possuem modelos hbridos, que misturam tecnologias com uso de

    vvulas, transistores e tambm fazem uso de processamento digital de efeitos diversos.

    Construo adiante, neste mesmo captulo, uma reflexo sobre os tipos de amplificao

    disponveis para o instrumento, dada a importncia que os amplificadores e seus alto-falantes

    possuem para a construo do som da guitarra eltrica.

    Proponho a seguir uma diviso em quatro estgios no que se refere ao desenvolvimento

    do instrumento e sua relao com a tecnologia. Desde sua origem, a guitarra eltrica atravessou

    trs grandes fases de desenvolvimento, chegando atualmente em sua quarta etapa evolutiva,

    etapa esta que permite ao instrumento a insero de ferramentas digitais em tempo real nos

    processos da construo de suas sonoridades.

    2.1.1 - Estgio # 1: origem

    A guitarra oriunda do violo acstico. Carfoot (2006, p.36) afirma que, se narrada

    em uma direta linha organolgica28, a histria da guitarra traa uma rota entre os sculos XV

    e XVI que passa por Espanha, Itlia e Frana e tem uma origem na vihuela portuguesa. Entre

    o final da dcada de 20 e o comeo da dcada de 30 do sculo passado, comea a ser utilizada

    em formaes de Big-Bands e msicas mais populares danantes. Com a guitarra acstica,

    havia um problema relevante na performance do instrumento, quando no tocado de maneira

    solo: a questo do volume, pois em uma banda a guitarra acstica dificilmente se faz ouvir

    junto aos sopros, bateria, percusso e piano. Com a vinda da eletricidade, um primeiro passo

    tecnolgico absorvido, resolvendo o problema da amplificao do volume natural do

    instrumento tradicional, atravs de captadores magnticos e amplificadores. Com a tecnologia

    emprestada do telefone, do rdio e do gramofone, baseada em princpios de magnetismo e

    eletricidade, temos o surgimento de um instrumento, que aparece primeiro no formato de lap

    steel29, por causa da grande popularidade da msica vinda do Hawaii nos EUA na dcada de

    20.

    28 Organologia: disciplina que trata da descrio e da classificao de qualquer instrumento musical, tendo em conta a tipologia do material empregado, a forma, a qualidade do som produzido, o timbre resultante, o modo de execuo, etc. A organologia tambm procura classificar

    os instrumentos de acordo com suas semelhanas de forma fsica, articulao do som e timbre em famlias instrumentais. Fonte: Associao

    de Instrumentos Musicais de Portugal, Congresso de Organologia, 2014, disponvel em https://sites.google.com/site/animusicpt/httpsitesgooglecomsiteanimusicptintroduo - acesso em 26/11/14.

    29 Uma guitarra tipo lap-steel (ao-no-colo) foi muito difundida nos EUA no comeo do sculo XX, em canes folclricas do Hawaii, e

    logo absorvida por msicos country, folk e pop. uma guitarra menor, montada em cima de uma base (de lata ou madeira), e geralmente

    https://sites.google.com/site/animusicpt/httpsitesgooglecomsiteanimusicptintroduo

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    Mas a necessidade que faz surgir a guitarra eltrica o aparecimento das bandas e

    grupos, onde necessrio um instrumento de maior volume do que o modelo acstico, para

    um melhor equilbrio na mixagem de todos os instrumentos. As Big Bands de jazz, com o

    grande expoente na figura do msico Charlie Christian (que usava uma Gibson modelo ES-

    150, praticamente um violo de cordas de ao com um captador magntico acoplado em 1939,

    tentando amplificar o volume do instrumento para acompanhar os volumes dos saxofones e

    trombones presentes na orquestra liderada pelo clarinetista Benny Goodman, da qual fazia

    parte)30, so o principal motivo da popularidade precoce da guitarra eltrica. Vale lembrar que

    a interface do instrumento muda, pois podemos agora controlar a quantidade de volume final,

    alm das bandas grave e agudo, reguladas pelo knob de tone (boto de filtro de grave/agudo

    presente no circuito eltrico) da guitarra, grande responsvel pelo som aveludado de muitas

    guitarras de jazz,