andré lara resende e as manifestações de junho

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    A propsito do artigo de Andr Lara Resende1

    Fbio Wanderley Reis

    Simon Schwartzman reproduziu aqui, h alguns dias, artigo de AndrLara Resende (O Mal-Estar Contemporneo, publicado no Valor Econmico

    no dia 5 de julho), recomendando-o como provavelmente o que melhor

    interpreta o que vem ocorrendo quanto s manifestaes de rua no Brasil e

    concitando a que seja lido com muita ateno e compartido. Procurei ler com

    ateno, e acho o artigo confuso e equivocado na perspectiva adotada. Aproveito

    a hospitalidade do site do Simon para tentar dizer por qu.

    Menos mal que o artigo de Andr destaca o papel da internet e das redessociais, ao contrrio de anlises que o minimizam ou descartam (nosso amigo

    Bernardo Sorj, aqui mesmo, chegou a usar o fato de que a Revoluo Francesa

    aconteceu para desqualificar a ateno internet nas manifestaes de agora).

    Em princpio, cabe, naturalmente, distinguir o meio gil de comunicao que a

    tecnologia da internet e das redes sociais representa, facilitando assim a

    mobilizao, daquilo que fornece propriamente a motivao s manifestaes, a

    insatisfao que elas (presumivelmente...) expressam. claro que podemos ter

    motivos diversos, como a exploso recente de manifestaes e protestosanlogos em vrios pases permite ver valendo-se todos da mesma tecnologia

    e compartilhando com o caso do Brasil de agora o carter de irrupes meio

    surpreendentes, o que torna natural tratar de aproxim-lo e confront-lo com os

    outros casos. De toda maneira, Andr faz o confronto, e distingue nosso caso

    dos outros porque aqui faltariam motivos que estariam presentes neles: os dois

    elementos tradicionais da insatisfao popular, dificuldades econmicas e falta

    de representao democrtica, que definitivamente no esto presentes no

    Brasil de hoje, onde a democracia poltica est consolidada e onde houve

    grandes avanos nas condies econmicas de vida, ganho substancial de

    renda entre os mais pobres nos ltimos vinte anos, a distribuio de renda

    melhorou,o desemprego est em seu mnimo histrico...

    1 Postado em 9/7/2013 no site de Simon Schwartzman

    (http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=en-us).

    http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=en-ushttp://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=en-ushttp://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=en-us
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    Isso leva Andr a tratar de evitar interpretaes que se refiram aos

    cnones do passado (dificuldades econmicas, autoritarismo poltico) e a

    buscar a explicao do fenmeno novo que presenciamos no Brasil. Mas

    grande a confuso na relao (supostamente negativa) entre aqueles cnones e

    os itens em que a nova explicao trazida se apoia: de um lado, uma crise de

    representao, o fato de que a sociedade no se reconhece nos poderes

    constitudos (Executivo, Legislativo e Judicirio); de outro, o hiato entre a

    sociedade e um projeto de Estado que no corresponde mais aos anseios da

    populao.

    O projeto de Estado de que a sociedade se afasta tortuosamente

    esboado como correspondendo restaurao, nos governos petistas, do

    nacional-desenvolvimentismo. Este se caracterizaria pela nfase em

    industrializao forada e pelo compromisso com a criao de rede de proteo

    social, sendo descrito tambm pela combinao do consumismo das economias

    capitalistas avanadas com o produtivismo sovitico a essncia de seu

    anacronismo. Seria provavelmente difcil explicar aos manifestantes (afinal,

    recrutados de uma populao em sua maioria amplamente desinformada

    politicamente) a ligao de suas aes com a existncia de um governo assim

    caracterizado; mas Andr associa o nacional-desenvolvimentismo do governo

    brasileiro sob o PT no s com ineficincia e polticas econmicas ruins que

    supostamente ajudam a produzir insatisfao difusa (h, portanto, dificuldades

    econmicas?), mas tambm, dada a crise de representao (deficincias da

    democracia?), com toda uma srie de traos negativos em que transparecem

    velhos objetos de denncia que acabam sendo a denncia da prpria poltica

    como tal, vista, luz de um modelo recndito de poltica ideolgica e

    autntica, como degenerescncia e vilania: pragmatismo cnico, fisiologismo

    sem qualquer pudor ideolgico...

    Um dos subtemas relacionados redunda em enftica retomada de um

    ps-materialismo (Andr no usa a expresso) que h algum tempo andou em

    voga nos estudos que lidam com cultura poltica, de que os trabalhos de

    Ronald Inglehart so um exemplo destacado. Assim, com base na ideia de que a

    conexo entre renda e bem-estar s se d na percepo das pessoas at que se

    alcance certo nvel de renda (e na suposio no explicitada e mais que

    problemtica de que o Brasil j teria alcanado o nvel adequado), Andr

    sustenta que o que nos importa agora (como ao mundo todo, cuja populao

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    j intuiu a exausto do modelo consumista do sculo XX) , na verdade, a

    qualidade de vida: o tempo com a famlia e os amigos, o sentido de

    comunidade e confiana nos concidados, a sade e a ausncia de estresse

    emocional e tambm a participao nas decises polticas, em

    correspondncia com certa difundida insatisfao com a democracia (

    possvel que o modelo de representao democrtica [...] tenha deixado de

    cumprir seu papel, e precise ser revisto)... Ressalvado este ltimo aspecto, a

    propsito do qual analistas tm falado de democratas insatisfeitos justamente

    porque sepreservam valores democrticos enquanto eventualmente se

    hostilizam o governo e certas instituies, bastaria ver, quanto ao mais, a forte

    desqualificao empreendida por Harold Wilenski das supostas constataes

    empricas na direo de um ps-materialismo, em cuidadosa reviso de

    2002/3 de vrios estudos relativos ao assunto: fica claro que vastas maiorias

    modernas (que se supem mais sensveis aos temas ps-industriais e ps-

    materiais) da populao dos pases estudados atribuem prioridade mais alta a

    temas como segurana econmica e crescimento econmico alm de que os

    mesmos cidados modernos mudam drasticamente suas respostas a questes

    referidas a valores diante de mudanas conjunturais nos contextos econmicos

    e polticos, o que, naturalmente, torna duvidoso que se esteja observando a

    mudana profunda de valores bsicos.2

    suprfluo acrescentar que, de 2002/3para c, com a crise econmica, impossvel pretender que a conjuntura se

    tenha tornado mais propcia ao ps-materialismo...

    Outro subtema a relao entre a internet e a imprensa, ou os meios

    tradicionais de comunicao de massa. Andr coloca a imprensa como apenas

    um ator entre os muitos outros que no anteviram a insatisfao popular e se

    mostram perplexos diante dos eventos no obstante, segundo ele, o fato de

    que a irritao difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redessociais. Talvez isso variasse do Facebook de A para o de B... De toda forma, um

    par de consideraes relacionadas merece registro: no amontoado disperso de

    temas de que as manifestaes se apropriaram (na verdade, todos os temas que

    de alguma forma surgiram na agenda socioeconmica e poltica do pas em

    tempos mais ou menos recentes), o papel dos meios de comunicao

    2Harold L. Wilenski, Postindustrialism and Postmaterialism? A Critical view of the New

    Economy, the Information Age, the High Tech Society and All That, Wissenschaftszentrum

    fr Sozialforschung (WZB), Berlim, fevereiro de 2003, pp. 16-17; excerto de Harold L. Wilensky,

    Rich Democracies: PoliticalEconomy, Public Policy, and Performance (Berkeley: University of

    California Press, 2002).

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    tradicionais evidente (e, para o que valham, pesquisas de rgos como aFolha

    de S.Paulo tm mostrado que os links compartilhados entre os prprios

    manifestantes so tomados da imprensa em sua ampla maioria). E h a uma

    face especial: a de que o antipoliticismo, a viso intensamente negativa da

    poltica e dos polticos que distingue o movimento de protesto, reproduz

    disposio anloga que tem marcado o noticirio e os comentrios da imprensa

    e dos meios de massa no pas, vindo a condicionar fortemente a chamada

    opinio pblica brasileira e isso, sim, h muito podia ser claramente

    percebido. Difcil propor que as manifestaes tenham trazido algo novo quanto

    a este aspecto crucial.

    Isso permite algumas observaes finais quanto prpria natureza do

    movimento. A distino feita acima entre a internet como tecnologia facilitadorae os motivos de insatisfao que se valem dela deixa de lado uma possibilidade

    importante e talvez decisiva para se encontrar a explicao adequada do nosso

    caso: a de que, de certa forma, a disponibilidade da tecnologia acabe fornecendo

    os motivos. Refiro-me possibilidade de que as manifestaes em suas

    dimenses especiais sejam em boa medida fteis, a mera imitao das irrupes

    anteriores em outros pases uma vez deflagrado com xito, pelo Movimento

    Passe Livre, sua etapa inicial referida ao preo das passagens de nibus. Da que

    os protestos se mostrem no s desorientados quanto aos objetivos, mas

    politicamente ingnuos no antipoliticismo, no antipartidarismo e, na verdade,

    no antiinstitucionalismo viscerais, que os levam mesmo a estarem prontos (no

    obstante a insistncia de muitos na minoria de baderneiros) ao confronto

    violento e sem sentido prtico com prefeituras, assemblias legislativas e o que

    mais seja. O que no significa, naturalmente, que a ingenuidade torne o

    movimento inconsequente: uma vez alcanada a dimenso que adquiriu, fatal

    que afete a cena poltico-institucional e que os polticos se movam em resposta(sem falar da oposio a Dilma, por exemplo, por parte de muitos que a

    apoiavam at outro dia, de maneira congruente com o quadro geral de

    desinformao e inconsistncia polticas). E, afinal, agora que se experimentou

    a facilidade com que possvel semear furaces, elementar esperar novos

    furaces para breve, em particular com a nova vitrine que a Copa do Mundo e as

    eleies presidenciais do ano que vem representam. Tomara que, ao transpor a

    correria das ruas para o plano da movimentao institucional, as lideranas

    polticas e autoridades no venham apenas a turbinar a turbulncia.

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