anderson deo - autocracia burguesa e colonial-bonapartismo na consolidação da social-democracia...

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Marx e o Marxismo 2011: teoria e prática Universidade Federal Fluminense – Niterói – RJ – de 28/11/2011 a 01/12/2011 TÍTULO DO TRABALHO Autocracia Burguesa e ColonialBonapartismo na Consolidação da Social Democracia Brasileira 1 AUTOR INSTITUIÇÃO (POR EXTENSO) Sigla Vínculo Anderson Deo 2 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP / Marília Professor Substituto RESUMO (ATÉ 20 LINHAS) O presente trabalho analisa a consolidação da social democracia no Brasil. O período discutido diz respeito aos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (19952002) e ao primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (20032006). Observamos que a social democracia, tal como esta forma de organização sociometabólica do capital se concretizou no país, absorve e reproduz os elementos condicionantes da particularidade histórica brasileira, conformadas em torno da via prussianocolonial de objetivação do capitalismo. Ao absorver, ampliar, aprofundar e reproduzir, sobre novas bases e condicionantes históricos, os contornos característicos dessa particularidade, o projeto socialdemocrata apresenta um caráter anômalo e tardio, sendo o responsável pelo resgate da ortodoxia liberal como fundamento de sociabilidade. Assim, o bloco histórico capitaneado pela social democracia representa a hegemonia da burguesia, cuja fração financeira determina a lógica da reprodução capitalista em sua atual fase de internacionalização. A social democracia não rompe, pelo contrário, reproduz aperfeiçoando a autocracia burguesa no país. Esta autocracia se expressa através de um conteúdo políticoinstitucional legalizado, que lhe é atribuído pelo parlamento brasileiro. A autocracia burguesa é, portanto, autocracia do parlamento, que se desenvolve a partir da consolidação do colonialbonartismo, fenômeno político próprio da organização de governos burgueses em períodos abertamente conservadores e/ou reacionários. Dessa forma, o Sentido da Colonização se reproduz no Brasil através do projeto socialdemocrata que, ao promover uma modernização de caráter conservador, resgata e reafirma os elementos essenciais da particularidade brasileira, transmutadas e metamorfoseadas em Sentido da Modernização. PALAVRASCHAVE (ATÉ TRÊS) Social democracia anômala. Modernização conservadora. Colonialbonapartismo ABSTRACT This work analizes the consolidation of the social democracy in Brazil. The period we discuss is related to both mandates of Fernando Henrique Cardoso (19952002) and to the first mandate of Luiz Inácio Lula da Siva (20032006). We observed that the social democracy, as this way of socialmetabolic organization has been consolidated in Brazil, absorbs and reproduces the conditioning elements of the Brazilian historical particularity, conformed around the Prussiancolonial way of capitalism objectification. As it absorbs, amplify, deepens and reproduces, on the new historical basis and conditioning, the characteristic outlines of this particularity, the social democrat project presents an anomalous and late character, which is the responsible for the redemption of the liberal orthodoxy as a sociability substance. This way, the historical bloc, capitained by the social democracy represents the bourgeoisie hegemony, whose financial fraction determines the logic of the capitalist reproduction in its current step of internationalization. The social democracy doesn’t break, on the contrary, it reproduces, improves the bourgeoisie autocracy in the country. This autocracy is expressed through a legalized political and institutional content which is attributed to it by the Brazilian parliament. The bourgeois autocracy is, therefore, parliament autocracy which is developed from the consolidation of the 1 O presente trabalho é um excerto de minha Tese de Doutorado, intitulada A consolidação da social democracia no Brasil: forma tardia de dominação burguesa nos marcos do capitalismo de extração prussiano-colonial, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação Em Ciências Sociais da UNESP/Marília, em 2011. Publica-se aqui o texto na íntegra, de acordo com a tese. Uma primeira versão resumida deste artigo foi publicada na Revista Lutas Sociais, n° 25/26, São Paulo: NEILS, 2011, sob o título Social democracia e colonial-bonapartismo: apontamentos sobre a autocracia burguesa no período 1995-206. 2 Doutor em Ciências Sociais. Professor Substituto do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da UNESP/Marília.

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Autocracia burguesa e colonial-bonapartismo na consolidação da socialdemocracia brasileira

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  • Marx e o Marxismo 2011: teoria e prtica Universidade Federal Fluminense Niteri RJ de 28/11/2011 a 01/12/2011

    TTULODOTRABALHO

    AutocraciaBurguesaeColonialBonapartismonaConsolidaodaSocialDemocraciaBrasileira1

    AUTOR INSTITUIO(POREXTENSO) Sigla VnculoAndersonDeo2 UniversidadeEstadualPaulistaJliode

    MesquitaFilhoUNESP/Marlia

    ProfessorSubstituto

    RESUMO(AT20LINHAS)OpresentetrabalhoanalisaaconsolidaodasocialdemocracianoBrasil.OperododiscutidodizrespeitoaosdoismandatosdeFernandoHenriqueCardoso(19952002)eaoprimeiromandatodeLuizIncioLuladaSilva(20032006).Observamosqueasocialdemocracia,talcomoestaformadeorganizaosociometablicado capital se concretizou no pas, absorve e reproduz os elementos condicionantes da particularidadehistrica brasileira, conformadas em torno da via prussianocolonial de objetivao do capitalismo. Aoabsorver, ampliar, aprofundar e reproduzir, sobre novas bases e condicionantes histricos, os contornoscaractersticos dessa particularidade, o projeto socialdemocrata apresenta um carter anmalo e tardio,sendoo responsvelpelo resgatedaortodoxia liberal como fundamentode sociabilidade.Assim,oblocohistrico capitaneadopela socialdemocracia representa ahegemoniadaburguesia, cuja frao financeiradeterminaa lgicadareproduocapitalistaemsuaatual fasede internacionalizao.Asocialdemocraciano rompe, pelo contrrio, reproduz aperfeioando a autocracia burguesa no pas. Esta autocracia seexpressa atravs de um contedo polticoinstitucional legalizado, que lhe atribudo pelo parlamentobrasileiro. A autocracia burguesa , portanto, autocracia do parlamento, que se desenvolve a partir daconsolidaodocolonialbonartismo, fenmenopolticoprpriodaorganizaodegovernosburguesesemperodosabertamenteconservadorese/oureacionrios.Dessaforma,oSentidodaColonizaosereproduznoBrasilatravsdoprojetosocialdemocrataque,aopromoverumamodernizaodecarterconservador,resgatae reafirmaoselementosessenciaisdaparticularidadebrasileira, transmutadasemetamorfoseadasemSentidodaModernizao.

    PALAVRASCHAVE(ATTRS)Socialdemocraciaanmala.Modernizaoconservadora.Colonialbonapartismo

    ABSTRACTThisworkanalizestheconsolidationofthesocialdemocracyinBrazil.TheperiodwediscussisrelatedtobothmandatesofFernandoHenriqueCardoso (19952002)and to the firstmandateof Luiz Incio LuladaSiva(20032006).Weobservedthat thesocialdemocracy,as thiswayofsocialmetabolicorganizationhasbeenconsolidated in Brazil, absorbs and reproduces the conditioning elements of the Brazilian historicalparticularity,conformedaroundthePrussiancolonialwayofcapitalismobjectification.Asitabsorbs,amplify,deepens and reproduces, on the new historical basis and conditioning, the characteristic outlines of thisparticularity,thesocialdemocratprojectpresentsananomalousandlatecharacter,whichistheresponsiblefortheredemptionoftheliberalorthodoxyasasociabilitysubstance.Thisway,thehistoricalbloc,capitainedbythesocialdemocracyrepresentsthebourgeoisiehegemony,whosefinancialfractiondeterminesthelogicofthecapitalistreproductioninitscurrentstepofinternationalization.Thesocialdemocracydoesntbreak,onthecontrary,itreproduces,improvesthebourgeoisieautocracyinthecountry.ThisautocracyisexpressedthroughalegalizedpoliticalandinstitutionalcontentwhichisattributedtoitbytheBrazilianparliament.Thebourgeois autocracy is, therefore,parliament autocracywhich isdeveloped from the consolidationof the

    1 O presente trabalho um excerto de minha Tese de Doutorado, intitulada A consolidao da social democracia no Brasil: forma tardia de dominao burguesa nos marcos do capitalismo de extrao prussiano-colonial, defendida junto ao Programa de Ps-Graduao Em Cincias Sociais da UNESP/Marlia, em 2011. Publica-se aqui o texto na ntegra, de acordo com a tese. Uma primeira verso resumida deste artigo foi publicada na Revista Lutas Sociais, n 25/26, So Paulo: NEILS, 2011, sob o ttulo Social democracia e colonial-bonapartismo: apontamentos sobre a autocracia burguesa no perodo 1995-206. 2 Doutor em Cincias Sociais. Professor Substituto do Departamento de Cincias Polticas e Econmicas da UNESP/Marlia.

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    colonialbonapartism,apoliticalphenomenonthatbelongstothebourgeoisiegovernmentsinperiodsopenlyconservativeand/orreactionary.Thisway,theSenseoftheColonizationisreproducedinBrazilthroughthesocialdemocratproject that,whenpromotes amodernizationof the conservative character, redeem andreaffirmtheessentialelementsoftheBrazilianparticularity,transmutedandmetamorphosedinSenseoftheModernization.

    KEYWORDSAnomaloussocialdemocracy.Conservativemodernization.Colonialbonapartism

    Introduo

    Com a chegada do PT ao Palcio do Planalto em 2003, algumas fraes da burguesia

    principalmente aquelas que ocuparam uma posio subordinada no interior do bloco histrico

    passam a criticar alguns aspectos do projeto econmico-poltico capitaneado por Luiz Incio. Em

    linhas gerais, a crtica apontava para o acerto do novo governo em manter o ncleo central da

    poltica econmica do PSDB, mas sinalizava como um erro a manuteno da elevada carga

    tributria e a elevao das taxas de juros como mecanismo de controle inflacionrio. Alis, esta

    sempre fora a maior diferena entre as fraes industriais e agrrias da burguesia com relao aos

    mecanismos de estabilizao da moeda brasileira introduzidos com o governo Fernando Henrique

    (Boito Jr., 2006: 54)3. No entanto, durante o primeiro mandato de Lula, a elevao da arrecadao

    foi um pressuposto fundamental manuteno e ampliao do programa de bolsas sociais. Com a

    retomada do crescimento da economia mundial e seus respectivos efeitos sobre o mercado interno

    brasileiro a partir de 2003, o governo ampliou o programa Bolsa Famlia beneficiando milhares

    de famlias brasileiras excludas do mnimo acesso aos bens materiais elementares sua

    sobrevivncia. Paralelamente, o Poder Executivo retoma alguns investimentos em obras pblicas,

    tendncia que se intensificou, sobretudo, no segundo mandato de Lula (2007-2010) com o

    Programa de Acelerao do Crescimento (PAC).

    Politicamente, o governo petista abre espao pequeno, verdade participao dos

    movimentos sociais nas esferas centrais do poder estatal, alm de levar consigo para o Planalto as

    principais lideranas da aristocracia do trabalho, representadas pelo prprio PT e pela CUT. Nunca

    demais afirmar que essa frao do proletariado brasileiro passou por um processo de cooptao

    ideolgico-poltica identificada como transformismo4, negando suas origens histricas ao se

    transformar em instrumentos do capital. Sendo assim, a composio do bloco histrico, cujo 3A anlise de Armando Boito Jr. a esse respeito esclarecedora: [...] Em resumo, da perspectiva da frao hegemnica no bloco do poder, a produo deve ser estimulada na direo (comrcio externo) e na medida em que interesse aos banqueiros. [...] Tal fato tem gerado alguns atritos no seio do Governo, ou seja, a aliana entre o capital financeiro e a grande burguesia interna industrial e agrria no exclui disputa por espao na definio da poltica econmica. [...]. 4 Na apreenso gramsciana, o transformismo diz respeito absoro ou cooptao pelo bloco histrico hegemnico de indivduos, ou mesmo grupos (partidos), de classes sociais rivais, anulando sua direo ideolgica e poltica. Gramsci argumenta ainda que fraes de uma mesma classe podem ser agregadas em torno de interesses da frao hegemnica no bloco de poder. Para uma discusso aprofundada sobre o transformismo ver: Gramsci (2000, vol. 3, passim); Portelli (1977:69-74); Coutinho (2007: 206-207).

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    comando partidrio estava nas mos do PT, contava com as mais diversas fraes da burguesia e

    com o apoio de frao especfica do proletariado, que descambou para o lado do inimigo de classe

    com vistas a se deleitar no banquete burgus oferecido pela hegemonia do capital financeiro.

    Progressivamente, a crtica de fraes da burguesia passou a cunhar uma srie de expresses

    para identificar a forma por meio da qual o PT governava. Amplamente absorvida pela

    manifestao rancorosa, raivosa e, antes de tudo, preconceituosa da pequena burguesia, e

    propagandeada pelos monoplios privados que controlam os meios de comunicao no pas, a

    pretensa anlise expressou um contedo ideolgico de combate aos trabalhadores, ao apontar o

    lulismo ou o petismo como uma forma de resgate da poltica populista brasileira, fantasma

    do passado que teria renascido nas paragens sul-americanas com os governos de esquerda de Hugo

    Chavez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolvia, e de Rafael Correa, no Equador. Segundo a crtica

    ideolgica burguesa, a demagogia tinha retornado com toda fora ao pas, pois atravs da esmola

    do Bolsa Famlia, o lulismo manipulava os pobres da nao com vistas a promover todos os

    desmandos possveis no cenrio poltico brasileiro, como por exemplo os casos de corrupo5, o

    clientelismo e o corporativismo, que serviriam como arrimo da governabilidade petista. A

    fraseologia miditica cunhou ento a expresso neopopulismo para identificar o projeto liderado

    por Lula.

    Prprio do vocbulo rarefeito dos ps-modernos, que introduzem o prefixo neo para

    indicar uma pseudo novidade nas relaes sociais contemporneas, descartando assim, a

    processualidade histrica que as originaram, o conceito de neopopulismo to ou mais frgil do

    que o j debilitado desde sua origem conceito que o originou, o populismo. Para demonstrar a

    falcia ideolgica do neopopulismo, nada melhor do que ir as suas origens e analisar a partir de

    sua imanncia os equvocos e distores germinais que permeiam a temtica. Passemos analise do

    conceito de populismo. Porm, em funo dos limites do presente trabalho, poderemos to

    somente tecer aproximaes crtica da teoria do populismo6, notadamente daquela vertente

    desenvolvida por Francisco Weffort7.

    Neopopulismo: falcia terica e contedo ideolgico

    5 Lembremo-nos que em 2005 vem tona um esquema de compra de votos de deputados, montado a partir do Palcio do Planalto, conhecido popularmente como Mensalo. Importantes membros do PT, no poder executivo e legislativo, tiveram seus nomes associados ao esquema, o que levou a perda de seus cargos, seja atravs de cassaes, ou das renncias. 6 Maiores desdobramentos de nossa anlise sobre o tema podem ser encontrados em Anderson (2011), especialmente s pginas 271-292. 7 Trata-se sobretudo dos textos constantes de Weffort (1978).

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    A teoria do populismo passou a ganhar importncia nos meios polticos e acadmicos a

    partir do Golpe Civil-Militar de 1964. Naquele contexto, pretendia desempenhar um carter de

    proposio crtica aos caminhos tomados pela esquerda brasileira no pr-1964, principalmente

    poltica de alianas desenvolvida pelo principal partido de esquerda, o PCB. Os crticos do

    populismo apontavam que a principal consequncia daquele tipo de estratgia da esquerda teria

    comprometido decisivamente a suposta independncia da classe trabalhadora, pois esta passou a

    apoiar a frao nacional do capital industrial e, ao faz-lo, teria abandonado as bandeiras

    revolucionrias. Nesse sentido, defendiam o resgate da radicalidade operria, que abrira mo de

    uma concepo de classe, para apoiar a poltica de massas da burguesia industrial crescente.

    Mesmo que o carter politicista da teoria do populismo esteja presente desde a sua origem,

    nesse momento tal formulao pretendeu expressar um contedo analtico histrico, ao se lanar

    como uma teoria que buscava explicitar o desenvolvimento brasileiro no interregno de 1930-1964.

    Assim, caracterizou-se como uma tentativa de explicar a transio do pas agrrio-exportador sua

    fisionomia urbano-industrial, a partir de noes marxistas que tomadas abstratamente e sob a

    influncia weberiana, as transformou em noes amplamente genricas [...] na sua ecltica e

    incriteriosa converso a tipos ideais. (Chasin, 2000: 249-250).

    As teses da teoria do populismo propugnavam que o perodo que vai de 1930 a 1964 se

    configurou como momento de transio da estrutura econmico-poltica agrrio-exportadora, para o

    modelo urbano-fabril, ou seja, o momento da consolidao do capitalismo industrial no Brasil.

    Politicamente, contudo, a burguesia industrial no teria se consolidado hegemonicamente, tendo que

    dividir o poder com outras fraes de proprietrios, inclusive com seus antigos adversrios a

    derrotada oligarquia rural. A esta configurao poltica veio se somar o elemento fundamental da

    poltica de massas, cuja participao poltica passa a ser uma realidade, embora subordinada aos

    interesses dominantes. Esta seria a configurao final de uma forma poltica que os defensores da

    teoria denominaram democracia populista. Como especificidade, o populismo aponta para uma

    forma de dominao que se estrutura no contexto de um vazio de poder, onde nenhuma classe

    conseguiu efetivar sua hegemonia, em decorrncia da crise da hegemonia oligrquica e do

    contexto liberal do pr-1930. Mas ao mesmo tempo em que aponta para o vazio de poder, indica

    que esse seria um perodo de fortalecimento do executivo, em que o Estado passa a atuar como

    principal impulsionador da atividade econmico-industrial do pas.8

    8 Chasin argumenta que o conceito de populismo se caracteriza como uma armao terica que no vai alm do descritivismo empirista, permeado por conceitos muito problemticos. Assim, a elaborao do conceito de populismo muito mais do que uma eventual contradio nos termos. O problema reside no fato de o conceito operar somente com universais, pretensamente de orientao marxista, tendo a pretenso de expressar a conscincia terica da imanente radicalidade operria. (Ibid., p. 250). Corroborando com a argumentao do autor, afirmamos que ao

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    Entendemos que esse pressuposto contm um equvoco irremedivel, qual seja, a presuno

    de que diante da debilidade poltica da frao industrial, esta elabora uma grande artimanha para,

    ao mesmo tempo, obter o apoio das massas, mantendo-a sob seu controle e anulando, portanto,

    sua radicalidade imanente9. Nesse sentido, as massas passariam a ser responsveis pela

    legitimao da ordem dominante, uma vez que reconheceriam e corroborariam com a dominao

    constituda num quadro de ausncia de poder. Observemos que tal armao terica no leva em

    conta a real diviso da sociedade em classes, distintas e antagnicas entre si. Ao empreender

    tamanho esforo gnosiolgico, apia suas teses a partir dos conceitos se que assim podemos

    caracteriz-los de povo ou nao, cujo contedo identificado como comunho de

    interesses, como se todos os segmentos sociais da nao pudessem desenvolver interesses

    comuns, abrindo mo das prerrogativas particulares de classe em favor da solidariedade prpria

    das comunidades. Assim, para a teoria do populismo, a grande artimanha deve ser revelada, pois

    a partir de seu desmascaramento seria possvel resgatar a radicalidade espontnea dos

    trabalhadores, servindo, ao mesmo tempo, como instrumento de denncia dos equvocos da

    esquerda tradicional.

    Como desdobramento desse engodo, no s as massas, mas a prpria esquerda teria sido

    atada pelas amarras do populismo, o que teria impossibilitado a superao da poltica de massas

    em direo poltica de classes. Como a esquerda sucumbiu ao populismo, no teria sido

    apresentada aos trabalhadores uma formulao alternativa que levasse em conta a rebeldia que

    seria supostamente prpria do proletariado, ou seja, a esquerda tradicional no elaborou um

    projeto original de superao do capitalismo. Aqui, encontramos dois equvocos: o primeiro diz

    respeito ao suposto carter natural, portanto espontneo, da rebeldia do proletariado. As

    formulaes do populismo no levaram em considerao que a rebeldia, como forma de construo

    permanente e consciente-prtica da crtica ao capital, resultado de um processo de educao10 de

    classe, de superao da conscincia em si, simultaneamente construo da conscincia para si do

    proletariado. Assim, na tentativa de apontar os equvocos que de fato existiram da esquerda

    brasileira, tomaram como referncia a insatisfao imediata da classe trabalhadora como

    necessariamente e no potencialmente revolucionria, e ao assim faz-lo, desprezaram o poder

    concreto da ideologia hegemnica. A partir desse equvoco, desdobra-se o segundo: tais

    formulaes se amparavam o que pior na genrica tese de que as condies sociais para uma

    operar com universais, sem a mediao da particularidade brasileira, a teoria do populismo no apreende o complexo de complexos da reproduo sociometablica do pas ao modo de sua totalidade concreta. Sendo assim, escapa-lhe o carter anmalo da reproduo social internamente constituda. 9 [...] para a teoria do populismo, a democracia, o partido e o lder populista so em conjunto ou cada um per si o feiticeiro nefasto, que executa a mgica insupervel de atar as massas aos setores dominantes [...]. (Ibid., p. 250). 10 Obviamente, no nos referimos educao oficialmente reproduzida pelos aparelhos ideolgicos do Estado.

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    revoluo de carter socialista no pas estavam dadas no contexto do pr-1964. Talvez o fato que

    melhor comprove o descolamento dessa formulao em relao situao concreta daquele

    momento histrico, seja o de a sociedade civil reagir ou melhor, no reagir passivamente no

    momento imediatamente posterior ao golpe.

    Contudo, se no momento de seu surgimento, a teoria do populismo tinha pouco a dizer, com

    o passar do tempo suas formulaes ficaram, cada vez mais, sem significao real, no refletindo os

    processos de reproduo sociometablicos da realidade brasileira. A prova cabal do que afirmamos

    se verifica ao constatarmos que o arcabouo terico elaborado pela teoria do populismo serve de

    arrimo s anlises da prpria burguesia, alm daqueles remanescentes de esquerda que privilegiam

    as anlises politicistas11. Ou seja, aquilo que seria o instrumento necessrio da crtica, passou a ser o

    instrumento necessrio da ordem, onde todo e qualquer lder ou partido poltico que possua alguma

    identidade ideolgica ou histrica com a classe trabalhadora, passa a ser identificado pela

    burguesia como populista e, sendo assim, extremamente malfico e manipulatrio, de cujo

    combate depende o futuro da democracia. Isso se deve ao fato da teoria do populismo se revestir de

    um aspecto alegrico no perodo ps-1964. Nesse sentido, alm de no contribuir compreenso do

    processo brasileiro aps a tomada de poder pelos militares, utilizada como uma forma de recordar

    que o demnio existe e precisa ser evitado e combatido permanentemente.

    O golpe sado das casernas seria sempre segundo as teses do populismo o esgotamento

    do assim denominado colapso do populismo, perodo este iniciado logo aps o governo de

    Juscelino Kubitschek. Em outras palavras, significou o esgotamento de uma fase de acumulao

    capitalista, esta arrimada no processo de substituio de importaes, que teve uma forma de

    dominao poltica que tambm se esgota, qual seja, a democracia populista. Assim, a prpria

    teoria determina seu prazo de validade (1930-1964), sendo substituda nas anlises polticas da

    ditadura civil-militar do ps-1964 por outro ismo, o da teoria do autoritarismo. Observamos

    que a anlise opera uma espcie de readequao de suas finalidades ideolgicas, pois combina-se

    com a teoria do autoritarismo, fundindo-se a esta e, ao faz-lo, perde substncia. Esta perda de

    substncia pode ser visualizada a partir do abandono em relao anlise histrica presente em

    sua origem e da pretenso de resgate da radicalidade operria. Acompanhando a teoria do

    autoritarismo, o populismo passou a proceder uma autonomizao e um seccionamento do circuito

    poltico (Chasin, 2000: 253-54), reafirmando seu carter politicista na anlise da realidade

    11 [...] Como tantas vezes ocorre, sua vitria coincide com sua derrota. Reduzida a cadver formal, impera como um parasita da inteligncia e da sensibilidade polticas, e enquanto tal vem exercendo na sucesso presidencial um papel de enorme importncia. (CHASIN, op. Cit., p. 253). Apesar do trecho citado se referir ao contexto das eleies de 1989, o mesmo se reveste de plena atualidade quando o comparamos com as circunstncias e os debates dos pleitos de 2002, 2006 e 2010.

  • 7

    brasileira12. A partir de ento, a teoria populista e a artimanha poltica que esta compreende

    passou a valorizar elementos secundrios que vo ser fundamentais na construo do esteretipo

    dos lderes e partidos ditos populistas. A elaborao final dessa simbiose entre as duas formulaes

    a construo terica que transcende a tese da democracia populista, ao elaborar o conceito de

    autoritarismo populista.

    Comprometida em sua origem, a teoria do populismo no ultrapassa a mera condio de

    operador na abstratividade, pois se apoiou em elaboraes mentais que buscaram evidenciar

    caractersticas empricas da realidade brasileira, sem compreender sua dimenso imanente e

    essencial. Alm da insuficincia desta empiricidade, os construtos ideais operaram a partir de

    uma abstrao todo-poderosa, de onde a realidade passou a ser deduzida. Cria-se o modelo, ou,

    para utilizarmos a linguagem acadmica, o ideal tipo, a partir de singularidades que podem ser

    empiricamente identificadas na histria, para, em seguida, aplic-lo realidade e atribuir um sentido

    cognitivo s aes sociais dos indivduos. Eis o fundamento de corte idealista que afasta, em todos

    os seus momentos, a teoria populista das formulaes marxianas13. Chasin assim se refere a esta

    caracterstica: To extenso quanto vago, to imprprio quanto dctil e indutor de mltiplas absurdidades analticas, o conceito de populismo no mais, enquanto conceito, do que um nome. Em verdade, no mais do que um rtulo ou apelido, um frouxssimo tipo ideal, que para se enformar no mbito mais geral partiu de uma atrocidade, perpetrando o embaralhamento de eventos histricos especficos como o movimento dos granjeiros norte-americanos, o narodnichestvo russo e fenmenos urbano-industriais diversos da periferia do sistema do capital. (CHASIN, op. Cit., p. 254).

    Se em suas origens a teoria do populismo apresenta os equvocos que sumariamente

    expusemos, sua verso neo aprofunda tais deformaes conceituais, assumindo contornos que lhe

    conferiram um teor conservador e em alguns aspectos reacionrios , refletindo a atual fase da

    ofensiva do capital, arrimada pelo resgate da ortodoxia liberal (Cf. Sader e Gentili, 1995). Agora,

    aqueles que arvoram a bandeira do neopopulismo como forma de identificao de alguns

    governos na Amrica Latina e, em especfico, do Brasil, o fazem no no sentido de revelar as

    artimanhas polticas da burguesia na manipulao do proletariado, e muito menos como forma de

    apontar criticamente os erros das anlises de esquerda. No pretendem resgatar a radicalidade da

    classe trabalhadora, pelo contrrio, identificam qualquer governo que mantenham alguma

    12 Vale afirmar que, desde sua origem, os ndulos policitistas j se fazem presentes. A diferena fundamental das anlises populistas do pr e do ps-1964, que as primeiras ainda se valiam de fundamentos da anlise histrica, ao passo que as segundas descambam para o determinismo poltico. 13 Pelo contrrio, tais formulaes esto muito mais prximas das conceituaes weberianas, sobretudo aquelas desenvolvidas pelo autor quando este trata dos trs tipos puros de dominao legtima, especificamente o tipo de dominao carismtico. esse tipo de armao terica deformadora que permite identificar uma mirade de governos e seus lderes como populistas.

  • 8

    identidade com a perspectiva do trabalho como autoritrio, portanto, antidemocrtico, que deve

    ser combatido como um fantasma do passado, em nome da liberdade e da igualdade entre os

    cidados. Valorizam em suas anlises, exclusivamente, aqueles aspectos secundrios, enfatizando o

    esteretipo dos lderes neopopulistas, obedecendo e aprofundando a readequao das finalidades

    ideolgicas a que nos referimos anteriormente. Na presente verso, a teoria do populismo

    resgatada sem muito critrio, verdade como expresso ideolgica que procura sepultar

    qualquer perspectiva de transformao profunda da sociedade, atuando como repositrio tico-

    moral dos direitos naturais e inalienveis dos indivduos.

    a partir dessa perspectiva que, ao analisarem o governo Lula, vo identific-lo como de

    tipo neopopulista. Os instrumentos de propagao desta deformao analtica sero os aparelhos

    privados de hegemonia burguesa, sobretudo os monoplios dos meios de comunicao. Atravs da

    grande imprensa, argumentam que a manipulao dos trabalhadores e dos miserveis da nao foi

    garantida pelo programa Bolsa Famlia; teria contribudo para essa manipulao o discurso

    demaggico da liderana carismtica exercida pelo presidente, que se apoiou em suas origens

    histricas para construir a imagem de lder das massas. A legitimidade alcanada teria permitido

    que os antigos lderes sindicais se incrustassem na estrutura estatal em busca da realizao de

    interesses corporativos e pessoais, utilizando-se da corrupo como ferramenta para tal fim. Nesse

    contexto, os devotos do neopopulismo argumentam que as centrais sindicais, a CUT

    principalmente, exerceram o papel de correias de transmisso, prprias do modelo sovitico

    stalinista que, por motivos ideolgicos identificam como bolchevismo para manter a classe

    trabalhadora sobre controle. Ao buscar o apoio de outros setores sociais, o governo petista teria se

    utilizado do expediente da corrupo e do clientelismo, garantindo o apoio de antigos inimigos,

    supostamente derrotados, apoio este caracterizado na ampla maioria que Lula alcanou no

    Congresso Nacional. Eis o carter atual da artimanha poltica, que deveria ser desvendada e

    denunciada pelos crticos do neopopulismo como forma de garantir as premissas de um Estado

    democrtico de direito.

    Desde j, afirmamos que a crtica do neopopulismo no passa de um arremedo terico que

    no contribui para o desvendamento da particularidade histrica brasileira em seu presente processo

    de desenvolvimento. Ao invs disso, exerce um papel de reafirmao ideolgica burguesa, com vis

    conservador-reacionrio, ao postular a incapacidade dos trabalhadores em governar o pas.

    O carter da autocracia burguesa no Brasil: o colonial-bonapartismo

  • 9

    A organizao do bloco histrico burgus durante o perodo de 1995-2006 est diretamente

    relacionada forma pela qual a autocracia burguesa (Cf. Fernandes, 1987) se estrutura e se

    reproduz no pas em perodos de legalidade constitucional. Esta, por sua vez, manifesta-se a partir

    de uma forma de organizao poltica que a aproxima daquele fenmeno identificado por Marx e

    Engels como bonapartismo (Cf. Marx, 1974)14. Condicionado pelas particularidades prprias do

    desenvolvimento do capitalismo brasileiro, o bonapartismo absorve contornos especficos e

    reproduz uma forma tambm especfica de autocracia parlamentar que aqui denominamos

    colonial-bonapartismo (Cf. Mazzeo, 1999).

    O bonapartismo um regime poltico que nasce a partir do esgotamento das possibilidades

    revolucionrias do projeto burgus. Na Frana, sua terra natal, as jornadas revolucionrias de

    1848 explicitaram os limites da emancipao poltica sob o comando da burguesia, que passou a

    defender o poder que alcanara, lanando mo de uma forma de governo autocrtica. Era preciso

    manter a ordem burguesa conquistada a partir de 1789; ampliar as conquistas burguesas em direo

    ao proletariado seria o equivalente a cavar a prpria cova. Portanto, era necessrio interromper a

    revoluo, como forma de defender as conquistas burguesas at ali alcanadas, e a melhor

    forma encontrada foi o estabelecimento de um regime autocrtico, baseado no brao militar do

    Estado, que passou a concentrar todos os poderes em torno da liderana do Executivo (Cf. Marx,

    1974 e 1987). Nesse sentido,

    Fica clara, a caracterizao do bonapartismo como um regime poltico defensivo, de conteno e represso luta de classes e de reafirmao da ordem social vigente. Este despotismo policial e militar cumpre o papel de salvador da sociedade, colocando-se aparentemente acima das classes e de qualquer instituio parlamentar como rbitro exclusivo das contendas sociais (Barsotti, 1996: 239).

    No entanto, se em suas origens o bonapartismo se caracteriza como um regime poltico

    defensivo, estruturado para frear a ascenso revolucionria do proletariado, em sua variante

    colonial-legalizada, no momento de consolidao da social democracia brasileira, estas questes

    no esto colocadas, ou seja, no havia nenhuma ameaa revolucionria de esquerda em processo

    no Brasil quando PSDB e PT estiveram frente do poder executivo. O colonial-bonapartismo, em

    sua manifestao nos quadros da legalidade burguesa, foi a forma mais bem acabada de domnio

    poltico que a burguesia internamente instalada logrou arquitetar no atual contexto mundial, diga-

    14 Como sabido, Marx desenvolve o conceito de bonapartismo a partir da anlise do governo de Lus Napoleo, na Frana, governo este que deu origem ao II Imprio Francs, sob o comando do auto-intitulado Napoleo III. Alm da discusso da variante bonapartista na Alemanha de Bismarck, Engels foi responsvel direto pelo desenvolvimento do prprio conceito, contribuindo de forma decisiva compreenso do fenmeno poltico em suas origens. o que nos demonstra BARSOTTI, P., Engels e o bonapartismo. In: COGGIOLA, O. (org.) Marx e Engels na histria. So Paulo: Xam, 1996, p. 231-248.

  • 10

    se de passagem de ofensiva do capital sobre as conquistas histricas dos trabalhadores. Os anos de

    governo Fernando Henrique Cardoso e, principalmente, Luiz Incio Lula da Silva, foram os mais

    prsperos para a burguesia que se instalou no pas, sobretudo sua frao financeira hegemnica. O

    que nos permite identificar ambos os governos como de corte bonapartista a forma particular

    como este se reproduz no pas, que pode ser expresso atravs do conceito de bonapartismo soft,

    desenvolvido por Domenico Losurdo (Cf. Losurdo, 2004)15. Faremos aqui uma breve caracterizao

    e respectiva identificao com o caso brasileiro.

    Diferentemente do bonapartismo clssico, cuja liderana mantida no poder a partir de um

    golpe de estado, em sua verso suave, esta forma de domnio poltico burgus capaz de se

    assegurar no tempo sem a necessidade de uma interveno militar. Mas o fundamento para que isso

    ocorra o mesmo em todas as variantes bonapartistas, qual seja, a legitimidade atribuda pelo apoio

    da maioria. Se na Frana de Lus Bonaparte o consenso, ou melhor dizendo, a legitimidade veio

    atravs da verificao plebiscitria, no Brasil governado pela social democracia tal apoio se

    manifesta atravs do sufrgio universal. Este passa a ser o princpio que legitima as lideranas

    que assumem a presidncia do pas. A identificao com as massas verificada atravs de

    eleies regulares. No Brasil, devido s caractersticas do sistema poltico-eleitoral, que se baseia no

    colgio uninominal, valoriza-se amplamente o candidato, em detrimento da discusso de seus

    projetos polticos. Enquanto o voto em lista possivelmente colocaria num segundo plano a figura da

    liderana, abrindo espao para o debate partidrio, o voto uninominal personaliza a luta eleitoral,

    transformando o partido em mero veculo institucional, ao mesmo tempo em que valoriza e

    reproduz a relao da liderana com o povo, onde o lder passa a investir em sua imagem com o

    intuito de criar uma identidade com a massa dos eleitores. Esta, dado o baixssimo grau de

    formao e conscincia poltica, ser facilmente influenciada pelo carisma exercido pelas

    lideranas. Nesse sistema, os representantes eleitos para o Poder Legislativo aparecem ao eleitorado

    como representantes de interesses locais, abrindo espao ao presidente, ao lder propriamente

    dito, para que este surja como o verdadeiro representante da nao, como seu nico intrprete e

    que somente a ela deve responder (Idem: 64).

    Nesse contexto, o discurso hegemnico reproduz as formulaes ideologicamente orientadas

    que apontam para a inexistncia de interesses de classes antagnicas, ou, de outra forma, coloca o

    Presidente da Repblica acima e imune aos interesses particulares e aos conflitos sociais. Mas, ao

    15 A anlise de Losurdo recai sobre o caso estadunidense, onde o autor procura demonstrar como o modelo democrtico daquele pas se aproxima das formas clssicas de bonapartismo, desenvolvendo caractersticas especficas que permitem identific-lo como uma forma suave de sua manifestao. Entendemos que muitas das caractersticas presentes na realidade poltica dos EUA podem ser encontradas no Brasil, como por exemplo, aquilo que Losurdo define como monopartidarismo competitivo e o carter plebiscitrio do sufrgio universal das democracias atuais. Discutiremos estes conceitos ao longo de nossa argumentao.

  • 11

    contrrio, este aparece como o representante dos interesses do povo brasileiro, da nao como um

    todo, pois exerce a funo de representante nico e supremo do pas. Subjaz a esse tipo de discurso,

    a concepo de que a massa carece de um lder, de um grande tutor para orient-la nos caminhos

    corretos rumo ao desenvolvimento e ao progresso. Trata-se na verdade, de garantir a ordem

    socialmente existente, pautada na propriedade privada dos meios de produo, e proteg-la de

    qualquer tipo de ameaa derivada da ampliao das lutas dos trabalhadores (Idem: 67).

    As massas devem participar da poltica atravs do sufrgio, mas no podem estar

    organizadas atravs dos sindicatos ou partidos que ampliem e aprofundem o debate poltico, que

    envolvam grandes temas e projetos de interesse nacional, qui em polmicas que pretendam

    superar o capitalismo. a reduo da discusso poltica ao mero jogo institucional, dos meandros

    parlamentares, da anlise cotidiana das estruturas de governo e de todas as mazelas que a mesma

    reproduz. Para utilizarmos a conceituao gramsciana, trata-se do predomnio ou da hegemonia da

    pequena poltica sobre a grande poltica.16 Reproduz-se dessa forma o princpio liberal da

    multido criana, onde os subalternos devem ser guiados politicamente devido sua incapacidade

    de pensar as grandes questes polticas.

    A personificao do poder uma caracterstica central do fenmeno bonapartista, pois a

    celebrao do lder carismtico uma espcie de culto ao heri passa a ser o principal

    instrumento de controle das massas. E o sufrgio universal o termmetro necessrio para

    identificar o grau de adeso das massas a um determinado lder. O colonial-bonapartismo em sua

    forma de manifestao legalizada, apresenta esta caracterstica de forma explcita. Ao

    identificarmos os governos de Fernando Henrique e Luiz Incio como de corte bonapartista, nos

    referimos ao controle que estes lderes exerceram sobre a massa da populao brasileira. Ambos

    os presidentes cumpriram dois mandatos consecutivos, o que indica grande adeso aos seus

    governos muito maior ao de Lula, verdade. O consenso criado em torno das duas lideranas

    permitiu a configurao de um bloco histrico de hegemonia financeira, mas ambos, em seus

    discursos, colocavam-se acima dos interesses particulares, vangloriando-se como interlocutores da

    nao, representantes mximos do Brasil.17 Ao mesmo tempo em que se sustentam atravs do

    16 Para uma discusso sobre o tema, em uma anlise sobre o Governo Lula, ver COUTINHO (2010). 17 Losurdo (Idem: 77), chama ateno para a forma como o sufrgio utilizado, ao aproximar os governos de Disraeli, na Inglaterra, Bismarck na Alemanha e Lus Bonaparte, na Frana, dizendo que [...] ignorando a burguesia liberal, todos os trs se dirigem diretamente s massas, qual concedem o sufrgio em medida mais ou menos ampla e da qual obtm ou buscam obter apoio, fazendo concesses no plano da poltica econmica e social, estimulando a excitao nacional e chauvinista e fomentando, nesta base, o culto ao lder carismtico, acima das partes, intrprete e lder indiscutvel da nao. possvel identificar o mesmo mecanismo de controle das massas no caso brasileiro. Tais caractersticas, como apontadas acima, so muito mais visveis no Governo Lula, mas j esto presentes no Governo de Fernando Henrique. O principal mecanismo de concesso ao povo brasileiro foi o assistencialismo atravs dos programas de bolsas sociais, e o estmulo ao sentimento nacional pode ser representado, por exemplo, atravs de

  • 12

    sufrgio universal e as pesquisas ao longo dos mandatos que medem a popularidade dos

    presidentes, exercem o mesmo papel que o sufrgio reprimem todas as formas de contestao

    social, combatendo duramente os ncleos radicais da sociedade. No Brasil, esta caracterstica

    pode ser visualizada a partir da vigorosa escalada do Estado, em todos os nveis, contra os

    movimentos sociais. Escalada esta que se utiliza da violncia fsica, policial-militar, para reprimir

    de forma explcita, ou da criminalizao judicial como meio de desarticular a organizao daqueles

    que elaboram algum tipo de crtica, ou mesmo se manifestam contrariamente em relao violncia

    com a qual o Estado trata as comunidades pobres no Brasil18.

    Um dos principais mecanismo para garantir amplo apoio das massas, sobretudo em perodos

    eleitorais, o que a cincia poltica moderna denomina marketing poltico, mas que ns aqui

    identificamos como uma das caractersticas dos aparelhos ideolgicos do Estado. As cifras

    destinadas s campanhas eleitorais so, cada vez mais, gigantescas; agncias de publicidade se

    especializaram em criar a imagem perfeita do candidato, valorizando os atributos de carter

    moral, de personalidade, ou mesmo fsico, de acordo com pesquisas que medem as preferncias

    do eleitorado. Assim, a lgica de criao da imagem de uma grande liderana consiste em repetir

    mentiras at que elas se transformem em verdades. Essa fora extraordinria da publicidade e

    seu papel fundamental nas democracias contemporneas revelam o carter discriminatrio e

    censitrio do sufrgio universal. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que o sufrgio universal

    garante a participao de todas as classes sociais no processo de escolha de seus representantes, o

    fenmeno poltico colonial-bonapartista, atravs da manipulao publicitria, garante destaque a

    uns poucos concorrentes, imprimindo um carter plebiscitrio s eleies, isto porque as regras do

    jogo eleitoral no contemplam a todos os partidos de forma idntica, e os recursos disponveis

    campanha so gigantescos para os partidos da ordem (provenientes de doaes privadas), ao passo

    que qualquer proposta alternativa tem de se estruturar a partir de seus prprios recursos. Junte-se a

    isso, o fato de a legislao eleitoral brasileira prever a realizao de eleies em dois turnos para os

    cargos do Poder Executivo, em todos os nveis da Federao, transformando o sufrgio universal

    em plebiscito, onde uma entre duas candidaturas dever ser nomeada.19 Os monoplios privados

    dos meios de comunicao completam o quadro acima exposto, imprimindo uma espcie de um slogan de pea publicitria produzida pelo governo federal, onde se l sou brasileiro e no desisto nunca, entre tantos outros mecanismos de manipulao ideolgica. 18 A forma pela qual as foras policiais brasileiras, em nvel federal, estadual ou municipal, agem em operaes de invases de morros e favelas, exemplifica claramente o afirmado por ns. Contrariando o preceito constitucional em vigor, todos so culpados at que se prove o contrrio. 19 A legislao eleitoral brasileira estabelece que em nvel federal e estadual as eleies sejam realizadas em dois turnos. Nos municpios, esta regra s aplicada quando o nmero de eleitores for igual ou superior a duzentos mil. No que diz respeito aos gastos com campanha, apenas como forma de ilustrar o que afirmamos, vale apontar que em 2002 o PT declarou um gasto de R$ 52,4 milhes com a campanha nacional, sendo que na campanha de 2006 o montante dobrou, alcanando a cifra de R$ 104,3 milhes; o PSDB declarou um gasto de, respectivamente, R$ 46,6 milhes e R$ 81,9 milhes. Isso para nos restringirmos aos dois maiores concorrentes em nvel nacional dos dois pleitos.

  • 13

    discriminao censitria em um regime de sufrgio ampliado, ao noticiar o cotidiano daqueles

    candidatos comprometidos com o status quo, ao mesmo tempo em que negligenciam e omitem

    qualquer informao dos candidatos contrrios ordem.

    Outra caracterstica que prpria do colonial-bonapartismo em sua forma de manifestao

    legalizada o papel exercido pelo parlamento no interior do bloco histrico. Se na forma

    clssica de bonapartismo o poder se concentra em torno do Executivo, do lder que governa com

    poderes irrestritos graas ao contedo militar de seu governo e ao apoio das massas , no Brasil

    comandado pela social democracia, a autocracia burguesa se consubstancia a partir da combinao

    entre o papel exercido pelo lder mximo, frente do Poder Executivo, e a autocracia do

    parlamento, que garante a aparncia de legalidade constitucional a esta forma de governo.

    A autocracia do parlamento prpria de governos democrticos (Cf. Agnoli, 1971). Ao

    absorver para seu interior as discusses e debates de interesse nacional, o parlamento promove uma

    desideologizao do discurso poltico-partidrio, estatizando os partidos polticos, ou seja,

    absorvendo-os para o interior de sua lgica, que se restringe observncia e a obedincia das

    regras do jogo. Ao institucionalizar a luta poltica, o parlamento promove um deslocamento e um

    distanciamento dos partidos de sua base social, principalmente os partidos que defendem um projeto

    caracterizado como de esquerda. O parlamento manifesta, portanto, um carter conservador, pois

    seus mecanismos institucionais priorizam o consenso, eliminando as posturas antagonistas de

    classe ao mesmo tempo em que reafirmam a valorizao conciliadora contratual do consenso.

    O objetivo fundamental dessa forma de organizao poltica do parlamento o

    estabelecimento de uma democracia constitucional sem a participao direta do proletariado.

    Combinado com a variante colonial do bonapartismo, isso seria o equivalente ao expurgo das

    massas dos processos decisrios, pois estas atriburam ao chefe do Executivo o poder de

    represent-las, [...] O que conduziria definitivamente e de modo plenamente consciente a uma

    democracia sem demos.(Idem: 51). Mais uma vez, encontramos aqui o discurso ideologicamente

    orientado que aponta para o parlamento como o representante da nao, como o frum de discusso

    par excellence dos problemas do pas. A reproduo dessa ideologia constitui o mecanismo

    essencial de manipulao para a criao de uma conscincia cidad neutra, que busca a

    observncia da pluralidade dos grupos sociais, livre de interesses particulares, negando dessa

    forma e, portanto, fetichizando as relaes sociais as contradies de classe inerentes diviso

    social. As instituies estabelecidas parlamento, partidos, justia, polcia, etc. so

    constitucionalmente investidas de poderes para representar os interesses do povo:

    [...] Em outros termos: o Estado poltico pode integrar socialmente, da maneira mais eficaz, as massas que se mantm alijadas do processo de deciso, incorpor-

  • 14

    las a subordinao e concili-las assim com sua dependncia cabal, quando no aparece como rgo do governo, mas como coisa pblica. [...]. (Idem: 53 e 54).

    Portanto, segundo Agnoli, h uma forma de estatizao da conscincia, pois a negao da

    diviso da sociedade em classes reconduz a conscincia das massas condio de cidados. Toda

    forma de dominao burguesa se realiza atravs de um Estado que garanta a reproduo

    sociometablica do capital. Diante do exposto, entendemos que no Brasil da social democracia, o

    Parlamento imprime um contedo de legalidade institucional ao bonapartismo, tal como esta forma

    de domnio se manifesta internamente. Assim, a autocracia burguesa, em sua forma institucional-

    legalizada, arrima-se no s no domnio exercido pelo poder Executivo, mas, tambm, no domnio

    exercido pelo Parlamento. Atravs da esfera parlamentar, as mais diversas fraes da burguesia se

    fazem representar a partir de seus interesses especficos. As lutas intestinas que do formato ao

    bloco histrico dependem diretamente das disputas intra-classe burguesa que se desdobram no

    interior do Poder Legislativo. A formao de oligarquias polticas no interior do parlamento

    garante a hegemonia determinada frao da burguesia durante as disputas pela configurao de

    seu projeto poltico-econmico (Idem: 71-72). Conjugando os interesses dessas oligarquias s

    decises do Poder Executivo, a frao hegemnica no interior do bloco histrico consegue aprovar

    as medidas necessrias realizao de seu projeto.

    O exemplo mais ntido, que ilustra de forma exemplar esse mecanismo no Brasil, tanto no

    Governo de Fernando Henrique Cardoso, como no de Luiz Incio Lula da Silva, a conformao de

    uma base de deputados e senadores aliados ao Poder Executivo no interior do Parlamento. Essa

    maioria legislativa foi fundamental aprovao de uma srie de mecanismos legais que permitiu a

    reconfigurao jurdica do Estado brasileiro de acordo com as prerrogativas da frao financeira do

    capital desde a aprovao de medidas provisrias, at a reformulao da Constituio Brasileira

    durante o processo da reviso/reforma constitucional (1993-94 / 1995-99). O mecanismo utilizado

    para compor tal maioria foi a j conhecida distribuio de cargos pelo Executivo entre os partidos

    da base aliada, reforando uma prtica bem conhecida na estrutura autocrtica brasileira. Mas, ao

    mesmo tempo em que a frao financeira se fez hegemnica no interior do bloco histrico liderado

    por ambos os partidos, PSDB e PT, as outras fraes da burguesia tambm se fizeram representar

    atravs dos poderes Executivo e Legislativo, e o principal instrumento para sua realizao foi e

    a influncia do lobby. Apesar de legalmente proibido no Brasil, a atividade lobbysta mais que

    uma realidade na poltica brasileira, faz parte do processo decisrio do Estado, em todas as suas

    esferas. As principais entidades representativas da burguesia brasileira possuem escritrios na

    Capital Federal que atuam diretamente junto a deputados, senadores e membros do alto escalo do

    Poder Executivo (Cf. Diniz & Boschi, 2004). Utilizam-se de uma linguagem eufemstica para

    designar suas prticas, arvorando-se como empresas de consultoria que prestam servios ao poder

  • 15

    pblico. Tal caracterizao tem como finalidade driblar a justia, que faz vistas grossas quando os

    interesses envolvidos esto de acordo com a ordem do capital. Na verdade, reproduzem as mais

    velhas prticas que fazem do Estado o escritrio da burguesia20. essa mesma atividade lobbysta

    que garante as doaes faranicas aos principais candidatos que disputam a Presidncia da

    Repblica. E essa questo nos remete uma ltima caracterstica do bonapartismo soft, conceito

    que nos permite uma aproximao com o que aqui denominamos colonial-bonapartismo. Trata-se

    do monopartidarismo competitivo.

    Podemos afirmar que o sistema de representao partidria no Brasil caminhou para uma

    estruturao, durante as ltimas duas dcadas, semelhante ao bipartidarismo observado nos Estados

    Unidos da Amrica. O fato de a Constituio Brasileira prever a liberdade de organizao partidria

    no contradiz o argumento. Isso se deve incapacidade financeira de os partidos se organizarem de

    forma representativa. No Brasil, PT e PSDB monopolizam as maiores cifras destinadas pela

    atividade lobbysta aos processos eleitorais. Ambos os partidos se constituram como paladinos do

    capital financeiro, o que explica as generosas doaes no s dessa frao da burguesia para

    suas campanhas e devem ser analisados como variaes de uma mesma forma de estruturao do

    domnio econmico-poltico da burguesia. Assim, observamos um esvaziamento programtico dos

    partidos, onde o debate se restringiu constatao do melhor nome entenda-se o mais capacitado

    para administrar o capitalismo brasileiro. O espao deixado pelo abandono do debate politizado

    foi ocupado pela disponibilidade financeira, viabilizada a partir do marketing poltico. Como

    argumentado, o sistema eleitoral uninominal imprime um carter plebiscitrio ao sufrgio. Tomadas

    em seu conjunto, tais caractersticas edificam os contornos do monopartidarismo competitivo,

    demonstrando que

    [...] se no plano ttico so concorrentes, dadas as diferentes dimenses e os interesses e clculos diversos e discrepantes dos partidos e das foras polticas em jogo, por outro lado, no plano mais propriamente estratgico, mostram-se entrelaados e convergentes. (LOSURDO, 2004: 318)

    O que procuramos demonstrar com as argumentaes aqui desenvolvidas pode ser assim

    resumido: a consolidao da social democracia no Brasil reproduz a forma particular do colonial-

    bonapartismo no pas em sua variante autocrtico-legalizada. Se o governo de Fernando Henrique

    Cardoso, pela argumentao por ns apresentada, pode ser caracterizado como de corte

    bonapartista, o primeiro perodo em que Luiz Incio Lula da Silva esteve frente do poder se

    20 Um minucioso e detalhado estudo sobre o papel desempenhado pelas associaes empresariais junto ao Congresso Nacional, pode ser encontrado em Diniz & Boschi (Idem). Mesmo que a proposta da obra seja muito mais descritiva do que propriamente analtica, orientando-se a partir de uma metodologia sociolgica compreensiva, o texto nos apresenta informaes claras de como a burguesia internamente instalada (a denominao por nossa conta) organiza seus interesses e se faz representar atravs da atividade do lobby.

  • 16

    caracteriza como o momento de coroamento e consolidao desta forma burguesa de dominao.

    Incapaz de reproduzir de forma direta sua dominao, a burguesia recorre a um ex-operrio para

    exercer o papel de lder, que foi o responsvel pela manipulao das classes subalternas, ao mesmo

    tempo em que realiza um governo de acordo com os interesses do capital. Eis a frmula pela qual a

    autocracia burguesa se reproduz no Brasil em perodos de legalidade, caracterstica imanente do

    bonapartismo em sua variante colonial.21

    A social democracia e a plena hegemonia burguesa no Brasil

    Portanto, ao empreendermos tal esforo analtico, nos distanciamos daquelas proposituras

    que identificam no Governo Lula uma forma especfica de hegemonia s avessas, exercida por uma

    nova classe social, e que identifica a social democracia como uma forma de dominao, por assim

    dizer, diferente da capitalista. Aqui, nos referimos s formulaes de Francisco de Oliveira,

    sobretudo aos seus escritos O ornitorrinco (Cf. Oliveira, 2003) e Hegemonia s avessas (Cf.

    Oliveira, Braga e Rizek, 2010).

    Segundo as formulaes de Oliveira, a partir da posse de Lula, observou-se uma

    modificao ou um truncamento na estrutura de classes no Brasil. A antiga aristocracia do

    trabalho, as capas mais altas do antigo proletariado, deu origem a uma nova classe social,

    juntamente com a tecnocracia, os doubls de banqueiros, herdada do perodo em que Fernando

    Henrique governou. Esta nova classe passou a atuar como os gestores dos fundos de penso das

    empresas estatais, movimentando bilhes de dlares no mercado financeiro; administradores que

    passam a se preocupar com a rentabilidade desses fundos que, paralelamente, financiam a

    reestruturao produtiva que produz desemprego. O autor argumenta ainda que a partir da

    estruturao dessa nova classe no poder estatal, observamos a confluncia programtica entre

    PSDB e PT, ou seja, a identidade que os dois partidos foram criando, est diretamente relacionada

    forma semelhante pela qual prope o controle do acesso aos fundos pblicos (Oliveira, 2003:

    146-147).

    21 A poltica bonapartista a alternativa utilizada pela burguesia diante do impasse, fracasso ou impossibilidade de realizao e continuidade da sua dominao direta e de classe. Forma autocrtica de poder poltico, o bonapartismo leva s ltimas consequncias a tendncia, contida no Estado moderno, de representar os interesses gerais e estar acima dos interesses privados, de abstrair e querer eliminar as diferenas dos homens reais dispostos na vida cotidiana concretamente em classes sociais. Iluso extrema na fora, imparcialidade e autonomia do Estado diante da sociedade, condio de sua arbitragem desptica sobre toda a nao, que em momento algum nega o seu carter de classe frente s classes subalternas e que garante s fraes da classe dominante a paz social necessria para o desenvolvimento de seus negcios. Ela representa efetivamente a forma mais prostituda e repressiva do poder estatal burgus que se transforma em meio de escravido do trabalho pelo capital. (Barsotti, 1996: 245).

  • 17

    Para Oliveira, no caso especificamente do governo petista, houve uma espcie de inverso

    dos sentidos e significados do poder poltico na relao entre dominantes e dominados: os

    dominados chegaram ao poder, portanto exercem a direo moral da sociedade, pois esto

    frente inclusive fisicamente da estrutura de poder estatal; controlam cargos pblicos, fundos de

    penso, as grandes empresas estatais, etc. E exatamente por controlarem esta estrutura econmica,

    sobretudo os fundos de penso das estatais que para o autor se constituem como o corao do

    novo sistema financeiro brasileiro que se d a inverso, pois o fazem no da perspectiva dos

    de baixo, mas segundo a lgica dos de cima. Em outras palavras, apesar de os dominados

    controlarem o processo de reproduo econmico-social, eles o fazem de acordo com a lgica dos

    dominantes22.

    Entendemos que as formulaes de Oliveira so precisas quando este aponta a forma como a

    aristocracia operria, do PT e da CUT, arvorou-se nas entranhas do Estado. De fato, os antigos

    sindicalistas passam a ter em suas mos o controle de grandes cifras que envolvem a administrao

    dos fundos de penso s no afirmaramos que estes constituem o corao do sistema, diramos

    que uma de suas principais artrias. Esse controle se manifesta atravs do poder que expressam,

    pois possuem em suas mos mecanismos fundamentais reproduo do capital na sua atual fase de

    internacionalizao. No entanto, entendemos que no se trata de uma nova classe social, e muito

    menos de uma hegemonia s avessas, pelo contrrio, na atual fase de reproduo do capital, o

    colonial-bonapartismo brasileiro reorganiza o bloco histrico de hegemonia burguesa. Com Lula e o

    PT frente do Palcio do Planalto, as antigas lideranas sindicais e dos trabalhadores passam a

    exercer o papel da burguesia, e o que explica esta metamorfose o processo de transformismo

    pelo qual passou o principal partido na esquerda brasileira, surgido no ps-1964. Suas principais

    lideranas e quadros foram cooptados e se deixaram cooptar pela burguesia. Esta adeso no

    s poltica, mas tambm ideolgica, intelectual, o que no caso do PT foi um problema menor para a

    burguesia, dado o baixo grau e at mesmo desprezo de elaborao terica produzida pelo

    partido. De qualquer forma, os antigos membros do proletariado passam a reproduzir uma postura

    de classe burguesa, at chegarem ao poder e colaborarem diretamente com a reproduo da ordem

    capitalista. Trata-se de uma hegemonia burguesa, de uma forma de organizao do Estado que

    atenda lgica financeira e, portanto, de reproduo do modo de produo capitalista.

    O perodo que analisamos e que identificamos como o da consolidao da social

    democracia no Brasi, representa o momento de coroamento da autocracia burguesa no pas. Esta

    22 (Oliveira, Braga e Rizek, 2010: 8).

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    transitou de sua forma militar-ditatorial (1964-1985) para a forma legalizada-institucional (ps-

    1985), reproduzindo o colonial-bonapartismo brasileiro, sem sofrer grandes abalos, nem ameaas

    significativas por parte de seu inimigo de classe, o proletariado. Pelo contrrio, a presente ofensiva

    do Capital em relao ao Trabalho alcanou enorme xito internamente a partir do transformismo

    operado nas principais lideranas da classe trabalhadora. A autocracia do parlamento, presente na

    democracia brasileira, imprime contornos de legalidade aos governos de corte bonapartista. Toda

    essa estrutura poltica reproduz a lgica do capital na sua atual fase de internacionalizao, onde a

    frao financeira ocupa posio hegemnica no bloco histrico burgus. O Brasil moderniza-se

    economicamente, transformando-se em protagonista no cenrio internacional, onde o capital-

    imperialismo brasileiro se expande pelo mundo. Contudo, as marcas indelveis da reproduo

    sociometablica brasileira no so superadas. A referida autocracia burguesa se consolida e se

    reproduz sobre novas bases, a subordinao econmica em relao aos plos centrais do capital no

    rompida apesar de seus novos elementos condicionantes , reproduzindo a lgica desigual e

    combinada do desenvolvimento capitalista. Paralelamente, antigos e novos problemas reproduzem

    um quadro de ampla misria social no pas, manifestao da crise de sociabilidade prpria do

    capitalismo. Assim, observamos que o Sentido da Colonizao se reproduz sobre novas bases e

    novos condicionantes histricos, reafirmando o caminho prussiano-colonial de objetivao do

    capitalismo no Brasil, que agora se manifesta como Sentido da Modernizao, processo este

    capitaneado pela social democracia brasileira.

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