anarquismo e militÂncia feminina: memÓrias sobre o … · centro de estudos professor josé...

17
ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O MOVIMENTO LIBERTÁRIO NO BRASIL (1977 1988) Larissa Graciete de Freitas Santos Graduada em História pela Universidade Federal de Pernambuco [email protected] Resumo: O artigo tem como objetivo analisar quais características assumiu a resistência anarquista durante o período que cobre os anos finais da Ditadura Civil-Militar brasileira e a redemocratização do país, através do olhar de mulheres libertárias, que foram integrantes do jornal O Inimigo do Rei (19771988) e da Revista Barbárie (1979- 1982), ambas são produções baianas, mas que tiveram alcance em outras regiões do país. Na década de 1970, concomitantemente ao clima de contestação dos movimentos de minorias, da contracultura, e volta do movimento estudantil à cena de luta, vemos o anarquismo retomar o fôlego. Tendo isto em vista, procuramos investigar se e como estes grupos anarquistas se posicionaram com relação a temas comuns a esses movimentos. Através das memórias das baianas Hilda Braga, Celene Fonseca, Cleuzete Chagas e Berna Farias podemos perceber, através de suas perspectivas, de que forma os anarquistas acompanharam, perceberam, (re)agiram àquele momento. Palavras-chave: anarquismo; mulheres; memória. Ainda são poucas as produções acadêmicas sobre o movimento anarquista no Brasil após a perda de sua força no movimento operário no início do século XX, recuo que foi resultado das inúmeras perseguições sofridas pelos anarquistas, ocorridas durante o governo de Artur Bernardes, bem como durante a ditadura de Getúlio Vargas. A fundação do Partido Comunista em 1922 também pode ser considerada um marco para a baixa influência que o movimento anarquista passou a exercer no movimento operário. Entretanto, apesar de não exercer a mesma influência de outrora, a resistência libertária não cessou, sendo apenas praticamente deixada de lado nas narrativas historiográficas sobre movimentos sociais e operário. Recentemente tem-se buscado recuperar a história do anarquismo no Brasil a fim de elucidar as práticas de grupos libertários nesse período em que o anarquismo, enquanto movimento, com grupos atuantes, foi tido como morto. Este artigo pretende contribuir com os estudos sobre a militância ácrata nos anos finais da ditadura civil-

Upload: others

Post on 30-May-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O

MOVIMENTO LIBERTÁRIO NO BRASIL (1977 – 1988)

Larissa Graciete de Freitas Santos

Graduada em História pela Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

Resumo: O artigo tem como objetivo analisar quais características assumiu a resistência

anarquista durante o período que cobre os anos finais da Ditadura Civil-Militar

brasileira e a redemocratização do país, através do olhar de mulheres libertárias, que

foram integrantes do jornal O Inimigo do Rei (1977–1988) e da Revista Barbárie (1979-

1982), ambas são produções baianas, mas que tiveram alcance em outras regiões do

país. Na década de 1970, concomitantemente ao clima de contestação dos movimentos

de minorias, da contracultura, e volta do movimento estudantil à cena de luta, vemos o

anarquismo retomar o fôlego. Tendo isto em vista, procuramos investigar se e como

estes grupos anarquistas se posicionaram com relação a temas comuns a esses

movimentos. Através das memórias das baianas Hilda Braga, Celene Fonseca, Cleuzete

Chagas e Berna Farias podemos perceber, através de suas perspectivas, de que forma os

anarquistas acompanharam, perceberam, (re)agiram àquele momento.

Palavras-chave: anarquismo; mulheres; memória.

Ainda são poucas as produções acadêmicas sobre o movimento anarquista no

Brasil após a perda de sua força no movimento operário no início do século XX, recuo

que foi resultado das inúmeras perseguições sofridas pelos anarquistas, ocorridas

durante o governo de Artur Bernardes, bem como durante a ditadura de Getúlio Vargas.

A fundação do Partido Comunista em 1922 também pode ser considerada um marco

para a baixa influência que o movimento anarquista passou a exercer no movimento

operário. Entretanto, apesar de não exercer a mesma influência de outrora, a resistência

libertária não cessou, sendo apenas praticamente deixada de lado nas narrativas

historiográficas sobre movimentos sociais e operário.

Recentemente tem-se buscado recuperar a história do anarquismo no Brasil a fim

de elucidar as práticas de grupos libertários nesse período em que o anarquismo,

enquanto movimento, com grupos atuantes, foi tido como morto. Este artigo pretende

contribuir com os estudos sobre a militância ácrata nos anos finais da ditadura civil-

Page 2: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

militar. Dois trabalhos que podemos tomar como algumas das referências para entender

como foi essa atuação são “O ressurgir do anarquismo: 1962-1980” de Edgar

Rodrigues1 e “Do underground brotam flores do mal: anarquismo e contracultura na

imprensa alternativa brasileira (1969-1992)”2.

Procuramos montar o quadro de militância anarquista nesse contexto através do

olhar das baianas Hilda Braga, Celene Fonseca, Cleuzete Chagas e Berna Farias,

possibilitando alargar o leque de narrativas acerca da atuação libertária no país, além de

apresentar novas perspectivas sobre o modo como diversos grupos encaravam aquele

momento político de modo a pluralizar as memórias das experiências vivenciadas

durante as décadas de 1970 e 1980 no Brasil.

Tal interesse em pluralizar as memórias aponta tanto na direção de inserir os

grupos libertários em uma determinada prática de resistência, como também valorizar a

perspectiva feminina acerca dessa resistência, visto que “a maior parte do que

conhecemos nos é transmitida por homens”3.

A história oral, ao passar a contrapor-se a uma historiografia positivista, passa a

pensar na diversidade de histórias, identidades e memórias acerca de determinado

acontecimento histórico. A mudança de paradigmas que ocorre dentro desse campo

historiográfico acontece paralelamente, e em diálogo, com o desenvolvimento da

história (oral) das mulheres.

(...) a história oral de mulheres não apenas traz de volta à superfície parcelas

da experiência histórica feminina, mas também contribui para enfocar os

mecanismos de inclusão e exclusão que regem memórias públicas. (...) As

pesquisas realizadas a partir da perspectiva de gênero ressaltaram a

necessidade de um discurso público capaz de admitir e acolher as narrativas

de diferentes sujeitos sociais, a necessidade de um arcabouço público no qual

as memórias de todos possam ser reconhecidas e, ao mesmo tempo, elas

próprias possam se reconhecer. A história oral de mulheres tem destacado a

urgência do ‘processo de democratização da memória’, que é a condição

básica para as democracias contemporâneas (SALVATICI, p. 36, 2005).

Ao reivindicar “o direito à memória” das mulheres e ao fazer uma crítica à

“universalidade abstrata e neutra”, com a qual tendemos a generalizar as experiências

1 RODRIGUES, Edgar. O ressurgir do anarquismo: 1962 – 1980. Rio de Janeiro, ed. Achiamé, 1993. 2 OLIVEIRA, João Henrique. Do underground brotam flores do mal: anarquismo e contracultura na

imprensa alternativa brasileira (1969-1992). Dissertação de mestrado em História Social – Niterói,

Universidade Federal Fluminense/UFF, 2007. 3 DAVIS, 1976, apud SALVATICI, p. 30, 2005.

Page 3: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

humanas para defender, além de destacar a questão de gênero nas narrativas dos

acontecimentos históricos, as múltiplas vivências femininas dentro desse recorte (ou

seja, levar em consideração as questões de “classes sociais, grupos étnicos, ocupações,

religiões”, etc)4, enfim, ao considerar essa pluralidade de perspectivas na história oral e

das mulheres, percebe-se a necessidade desta “democratização da memória”. Urgência

esta que é levada em consideração neste artigo de modo a abrir espaço para a discussão

de outras formas de resistência ao regime militar que, em geral, são vagamente

lembradas.

No contexto em que o artigo propõe-se a analisar, considerando-se também que

falamos de grupos localizados em um lugar específico (Salvador, Bahia), essa

resistência libertária se deu mais especificamente na imprensa alternativa e no

movimento estudantil, tendo como um dos focos a crítica à censura das liberdades

individuais. Essa crítica, contudo, não apenas era voltada para a repressão do Estado

brasileiro, mas contra toda e qualquer forma de autoridade, hierarquias e poderes

exercidos no seio da sociedade, mesmo entre Estados e grupos que encaixavam-se no

espectro político de esquerda. Nesse sentido, os grupos libertários não tinham um

discurso voltado apenas contra a ditadura brasileira, mas contra todo e qualquer Estado,

sendo este de direita ou de esquerda.

Durante os primeiros anos da Ditadura Civil-Militar, conhecemos a atuação do

Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de

estudantes libertários, o Movimento Estudantil Libertário (MEL). Registrado em 1958,

mas tendo entrado em atividade pouco antes, o CEPJO promovia eventos culturais

libertários que tinham como ações cursos, palestras, conferências, debates, congressos,

publicações, até sessões de cinema que contribuíam com a manutenção financeira do

espaço5. O MEL foi uma das organizações surgidas dentro do Centro. No ano de 1969

militantes do CEPJO e do MEL foram alvos da repressão da ditadura. A Força Aérea

ficou encarregada da invasão do Centro, perseguição e aprisionamento de membros e

alguns frequentadores. Segundo Edgar Rodrigues, as prisões oscilaram entre 3 a 20 dias

e alguns sofreram torturas,

4 SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. Revista

História Oral, v.8, n.1, p.29-42, jan.-jun. 2005. 5 RODRIGUES, op. cit.

Page 4: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

“sofreram choques elétricos, estiveram descalços em cima de latas dispostas

em posição de cortar-lhes as solas dos pés e houve ‘tentativas’ de violências

sexuais, sem maiores consequências graças à intervenção do encarregado do

inquérito que não apoiou o gesto do seu subordinado” (RODRIGUES, p. 51,

1993).

Segundo a acusação, o Centro “aliciava” pessoas através dos cursos de

psicologia e posteriormente iniciavam um trabalho de “doutrinamento” anarquista com

quem frequentasse o grupo. Já o MEL foi acusado pela distribuição de panfletos, como

por exemplo, o “Olho por olho, dente por dente”, no qual falavam sobre a morte do

estudante Edson Luiz6.

Na imprensa, os anarquistas podiam contar com o jornal Dealbar e O Protesto,

por exemplo. O primeiro era um jornal paulista que surge em setembro de 1965, “das

cinzas de O Libertário”7. O segundo surge em outubro de 1967, em Porto Alegre.

Segundo Edgar Rodrigues, os propósitos de O Protesto “foram escritos com os olhos

fixos na violência e nas perseguições do governo autoritário, da ditadura militar”

(RODRIGUES, 1993, p. 107). Contudo, ambos tiveram um tempo de vida curto, o

Dealbar teve duração de 2 anos e O Protesto finda em 1968.

A obra O ressurgir do anarquismo (1962-1980), do Edgar Rodrigues, elucida

bem a movimentação de militantes anarquistas durante esse período, além dos já citados

CEPJO, MEL, Dealbar e O Protesto. A exemplo, ele menciona a Nossa Chácara e o

Nosso Sítio, onde houve encontros anarquistas. Em 1968, o jornal O Protesto divulgava

o acontecimento do Encontro Nacional de Estudantes Libertários ocorrido no intuito de

discutir a situação do país e da educação. Faz referência também ao Centro de Cultura

Social de São Paulo, que trabalhava numa mesma linha que o CEPJO no Rio de Janeiro,

além do Centro Internacional de Pesquisas sobre Anarquismo (CIRA).

Aos episódios de censura ao CEPJO e ao MEL, segue-se um breve período de

recuo nas atividades de grupos libertários, pelo menos de forma mais aberta. Em fins da

década de 1970, momento em que a abertura política propicia um espaço pouco menos

hostil às manifestações contrárias à ditadura, vemos surgir novos grupos anarquistas que

6 RODRIGUES, Edgar. O anarquismo no banco dos réus (1969 – 1972). Rio de Janeiro, ed. Achiamé,

1993, p. 53. 7 RODRIGUES, op. cit., 1993, p. 77.

Page 5: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

vão encontrar a oportunidade de expressar-se, por exemplo, através da imprensa

alternativa, bem como dentro do movimento estudantil.

Esse é o momento em que o país assiste à mobilização da sociedade civil, com o

movimento estudantil retomando forças, às manifestações pela volta da democracia e

pela anistia, às minorias sociais como mulheres, negros e homossexuais lutando por

suas demandas. Foi também o período em que muitos passaram a questionar formas

tradicionais de organização política, o autoritarismo exercido não só pelo governo

ditatorial brasileiro, mas outras formas de autoridade praticadas pelas ditas democracias

ocidentais, bem como as contradições dos estados socialistas. O tolhimento da liberdade

era protestado não só contra a figura de um Estado repressor, mas também contra as

mais diversas formas de relações de poder dentro da sociedade.

Dentro dessa conjuntura, surge na Bahia, em 1977, o Inimigo do Rei8, idealizado

por estudantes da UFBa. Mais tarde, dissidentes do jornal formam a Revista Barbárie9.

Dentre os estudantes que deram início ao Inimigo do Rei estava Hilda Braga, na época

estudante do curso de graduação em Ciências Sociais, sendo nesse contexto em que ela

vai reconhecer-se como anarquista. Contudo, ela lembra que sua formação enquanto

pessoa também foi levando-a a assumir-se como tal. Ela diz que sempre foi muito

questionadora desde pequena e que o acesso a muitas leituras, incentivadas pelo pai,

ajudou-a no desenvolvimento de um pensamento mais crítico10.

Aliás, as memórias da infância e juventude são contadas pela maioria das

entrevistadas para afirmar certa predisposição à liberdade que mais tarde as levaria ao

encontro do anarquismo. Aqui não cabe uma análise específica sobre isso, porém é

interessante notar como essas lembranças das suas experiências, naquele determinado

momento de suas vidas, são interpretadas por elas como um dos fatores determinantes

na constituição de suas identidades enquanto mulheres libertárias, o que as levaria mais

a frente a identificar-se com o anarquismo na universidade.

8 Jornal baiano de cunho anarquista que teve 10 anos de resistência na cena da imprensa alternativa.

Refletia ideais libertários como autogestão, flertando também com temas debatidos na cena

contracultural, além de fazer oposição à autoridade do Estado, o que era uma maneira de tecer críticas à

ditadura, ao mesmo tempo que combatia o autoritarismo nas esquerdas. 9 Revista editada pelo Coletivo Barbárie, em Salvador, Bahia. A revista veiculava os ideais libertários,

trazendo artigos que analisavam a situação política daquele momento, mas dando destaque também a

publicações com teor mais cultural, como poesias, contos, etc. O primeiro número saiu em 1979 e o

último no ano de 1982, tendo um total de 5 publicações. 10 Entrevista concedida à autora em 16.06.2018, em Salvador – BA.

Page 6: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

Bernadete de Lourdes Farias, ou Berna como gosta de ser chamada, é paraibana,

mas foi morar em Salvador em 1980 e na UFBa cursou a graduação em Comunicação

Social. Berna não se considera exatamente uma anarquista, em suas palavras: “eu me

considero mais anárquica que anarquista”11, mas envolveu-se com o coletivo Barbárie.

Contudo, essa não identificação, ou a vontade de não enquadrar-se nos ditames de uma

determinada teoria, não representava um impedimento ao seu envolvimento com este

grupo visto que a liberdade de expressão era firmemente defendida pelos membros da

Barbárie. Berna afirma que “desde criança” sempre teve “um temperamento mais forte e

mais livre” e que “não compactuava com muito convencionalismo”12. Já nos tempos de

escola, se envolvia em organizações estudantis. Em um determinado momento de sua

vida, ela morou em Recife e estudou o ginásio no Colégio Estadual de Pernambuco13 e

foi presidente de turma. Antes disso, ainda em João Pessoa, ela participou de um grupo

chamado Aquarius, que era uma organização de estudantes para fazer grupos de leitura,

que promoviam algumas festas e chegaram a criar uma pequena biblioteca. Depois de

um tempo em Pernambuco, ela volta à Paraíba e é chamada para compor uma chapa de

um grêmio no Colégio Estadual de Itambiá, porém ela não recorda se a chapa ganhou a

eleição.

Cleuzete remete o seu espírito libertário à influência que recebeu das “mulheres

lutadoras” de sua família14. Ela enxerga como herança da avó indígena seu lado livre e

de sua mãe o lado forte. Sua mãe, por exemplo, foi quem incentivou e brigou para que

ela pudesse estudar. Ela recorda-se também de quando pequena era levada a comícios e

“achava absurdo”, sempre “voltava criticando”. Nas suas lembranças, desde então ela

tinha alguma inclinação para algo que até então era desconhecido dela: a oposição

anarquista a partidos políticos e qualquer coisa que exercesse algum tipo de autoridade

contra a liberdade que tanto prezava. Contudo, apenas quando vai à capital, Salvador

(Cleuzete foi criada no interior da Bahia, em Vitória da Conquista) e ingressa na

universidade, que teve o conhecimento de que “existia um movimento anti-partidário”15.

11 Entrevista concedida à autora em 15.06.2018, em Salvador – BA. 12 Ibd. 13 Hoje este colégio é a Escola de Referência em Ensino Médio Ginásio Pernambucano. 14 Entrevista concedida à autora em 17.06.2018, em Salvador-BA. 15 Ibd.

Page 7: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

O primeiro contato delas com o anarquismo e com pessoas que partilhavam a

mesma linha de pensamento, embora nem sempre homogêneo, foi durante seus cursos

de graduação. Hilda Braga começa a entrar nesse mundo através da leitura de obras

anarquistas e quando conhece Eduardo Nunes, seu ex-companheiro. Uma dessas leituras

foi da Louise Michel, autora da frase “não podemos matar as ideias a tiros de canhão

nem tampouco algemá-las” que está estampada na edição de n° 2 do jornal O Inimigo

do Rei16.

Celene Fonseca, por sua vez, aproximou-se do anarquismo quando já estava

saindo da universidade. Antes de envolver-se com o coletivo Barbárie, ela foi chamada

para juntar-se ao grupo Viração, que era a juventude do PCdoB dentro da universidade.

Chegou a participar do grupo e a ser representante estudantil no departamento de

antropologia, mas afirma que sempre teve certa desconfiança, pois ela não sentia que

formavam um ambiente muito aberto. Daí então ela aproximou-se do Inimigo do Rei

que, em suas palavras, “tinha um discurso mais aberto”. Celene lembra que “queria

liberdade” e não sentia que poderia tê-la em um espaço onde alguma fala sua pudesse

ser criticada ou censurada. Aproximou-se de anarquistas a procura dessa abertura e

porque, alega, os anarquistas discutiam outras pautas, como a questão dos negros, das

mulheres e a questão indígena. Ela mesma, que tem ascendência indígena,

provavelmente sentiu-se representada nesse discurso. 17

Quando chegou à universidade, a Berna já entrou ligada ao movimento

estudantil através da União Livre de Residentes e Comensais, a URLC, uma entidade

formada por residentes das residências estudantis da UFBa e que, naquele contexto,

lutavam pela manutenção das casas estudantis. “Era uma entidade que participavam

pessoas de tudo que era pensamento” e foi aí que ela conheceu o Jorge Albuquerque,

que tornou-se seu companheiro na época, quem lhe apresentou as pessoas do coletivo

Barbárie e algumas pessoas do Inimigo do Rei.

Já o primeiro contato de Cleuzete com os anarquistas se deu quando esta estava

no DCE da UFBa, já tinha “uns três anos” que estava cursando a graduação, e pagou a

disciplina “história das ideias políticas”. Durante o curso ela soube que “existia um

movimento que não gostava de partido político” e foi conhecer no Pelourinho um grupo

16 O Inimigo do Rei. Ano I, n°2, - Salvador – Bahia, Maio de 1978, p. 1. 17 Entrevista concedida à autora em 17.08.2018, em Salvador-BA.

Page 8: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

do professor Ricardo Líper18, daí ela conta que prontamente identificou-se e saiu do

DCE “que era o pessoal mais ligado a partido”19.

O Inimigo do Rei nasce da experiência de estudantes da UFBa que formavam o

Fantasma da Liberdade. Eram estudantes do DA de filosofia que mantinham um mural

onde divulgavam, dentre outras coisas, ideias libertárias. A escolha do nome “O

Fantasma da Liberdade” se deu, como conta Hilda Braga, na intenção de homenagear o

cineasta Luis Buñuel20,

Também era o tema da gente, a gente começou a falar sobre a liberdade, de

como a gente não tinha liberdade como a gente achava que tinha. Que na

verdade era um fantasma, porque a gente era cheio de obrigações, a gente era

tolhido em todos os momentos da nossa vida e sobretudo pelo Estado, mas a

própria sociedade reproduzia uma forma... e era na escola, na universidade,

na família, já começava da família.21

Hilda Braga, não era estudante de filosofia, mas sempre colaborou com o mural.

Nos murais eram divulgadas notícias, reportagens, além de ser um espaço para falar

sobre as ideias anarquistas. Temas como os presídios e manicômios, a Primavera de

Praga e sociedades primitivas eram apresentados nos murais como exemplos para se

falar de liberdade e questionar a autoridade do Estado.

De um grupo de estudos e da experiência com os murais nasce a ideia de ampliar

a divulgação dos ideais libertários através de um jornal, nascendo assim, em 1977, O

Inimigo do Rei. Em seu primeiro número, divulgado no mês de outubro, apresentam-se

os objetivos do jornal, como “desenvolver a divulgação de trabalhos que nos permitam

pelo menos ter uma ideia de como e para onde está caminhando o desenvolvimento

político, econômico, social, etc”22 do país que vivia sob uma ditadura. Como era um

jornal nascido na universidade, não poderia deixar de falar sobre o movimento

estudantil afirmando que “a posição deste jornal é radicalmente contra a dominação de

alguns estudantes sobre os outros, tentando propor uma saída através de um trabalho

autogestionário”23.

18 Ricardo Liper foi um dos editores do jornal O Inimigo do Rei e é professor no departamento de

Filosofia da UFBa. 19 Op. cit. 20 Cineasta espanhol que produziu o filme Le fantôme de la liberté (O Fantasma da Liberdade), em 1974. 21 Op. cit. 22 O Inimigo do Rei. N° 1 – ano 1 – Outubro de 1977, p. 2. 23 Ibd.

Page 9: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

A autogestão, uma bandeira essencial no movimento anarquista, é defendida

pelos integrantes do jornal como alternativa para uma nova sociedade, partindo da

concepção de que “todo agrupamento humano deve se organizar sem chefes, porque, se

houver um chefe ou ‘líder’, essa mesma pessoa exercerá uma pressão – ou mesmo uma

ditadura – sobre os ‘liderados’”24.

Em sua terceira edição, na seção “Quem é O Inimigo do Rei”, são elencadas

algumas das pautas do jornal, como a divulgação dos “interesses das minorias sociais”,

o “protesto contra o autoritarismo”, a denúncia a um “poder político centralizado num

só homem, o Rei” e “à repressão e à violência; a verdadeira tortura, não pessoal e

individual, mas coletiva, de ordem econômica, esfomeando milhões de brasileiros”,

como referência à repressão exercida pelo governo militar. Além dessas pautas, há a

presença de artigos falando sobre ecologia, legalização da maconha e movimento

operário, por exemplo.

Em julho de 1979, é lançada a primeira edição da Revista Barbárie, como

resultado de algumas divergências entre colaboradores do Inimigo do Rei quanto a

identidade que gostariam de assumir. Em um boletim informativo vinculado pelo

coletivo Barbárie, em agosto de 1980, já tendo sido divulgados três números da revista,

informa-se os objetivos gerais do grupo:

Os componentes do coletivo Barbárie desenvolvem trabalhos dentro de uma

perspectiva libertária própria, através dos meios que já dispõe: Revista

Barbárie. Trabalho em Bairro, Apostilas, Feira de Livros, Seminários,

Discussão teoria entre grupos e outras ações que vão surgindo no cotidiano.

Temos como objetivos desenvolver uma ação libertária ampla,

principalmente em Salvador. Além dessas atividades, desenvolvemos um

intercâmbio com outras pessoas de várias partes do país e do mundo.

(RODRIGUES, 1993, p. 243).

Hilda foi uma das que decidiram formar um novo grupo que tivesse um foco

pouco diferente do que o Inimigo do Rei tinha. Ela dá pelo menos dois motivos para

esse rompimento, que não exatamente representou o corte de relações entre os dois

grupos, que foram: a vontade de ter uma vivência mais prática e a valorização que o

Inimigo do Rei dava ao tema da homossexualidade. Segundo ela, eles queriam ter uma

24 Ibd.

Page 10: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

identidade própria. Em suas palavras, “a gente queria discutir autogestão”, “ser mais

autogestionários”25 e sobre a questão da homossexualidade ela diz

Eu acho que também se explorava muito no jornal a questão da

homossexualidade, a gente achava que não era um tema tão preponderante,

entendeu? Embora a gente pensasse nessa coisa das minorias discriminadas

(...) a gente achava que isso não deveria ser o foco do jornal.26

O coletivo Barbárie surge, portanto, do anseio em desenvolver práticas mais

diretas e de não focar apenas em uma bandeira de luta. Era também voltado mais a

questões culturais, como afirma Hilda. Assim como O Inimigo do Rei, a revista

produzida pelo coletivo falava sobre autogestão, sobre minorias sociais, análises do

contexto sócio-político brasileiro, anarquismo e, alinhando-se aos debates

contemporâneos, discutiam as relações de poder dentro da sociedade. Contudo,

pretendiam dar destaque também a temáticas mais culturais.

Esse enfoque cultural estava muito ligado ao contexto daquele período, com os

movimentos contraculturais e o discurso de jovens que não enxergavam mais nas

revoluções político-econômicas o único meio para transformações sociais e que não

mais priorizavam apenas a luta de classes, mas que entendiam que a luta também era

contra todo um sistema de valores da sociedade moderna ocidental. Celene, por

exemplo, conta que percebia uma diferença de abordagens e atuações entre a geração

anarquista brasileira do início do séc. XX e seus contemporâneos:

Percebíamos isso, tinha o anarquismo mais clássico do início do século no

Brasil (...) o anarcosindicalismo e depois da década de 70 pra cá já tem outra

conotação, de muitos temas ligados a contracultura, um anarquismo,

digamos, mais cultural, de debate através de jornais e revistas, com temas (...)

da atualidade.27

Apesar de assumir algumas características próprias, as ações dos componentes

da Barbárie não se distanciavam totalmente do que era considerado essencial na

militância libertária das primeiras décadas do séc. XX. Ao contrário, a preocupação com

o desenvolvimento intelectual, o incentivo a formação de um pensamento crítico e livre,

a defesa da autonomia e liberdade do indivíduo em harmonia com bem estar coletivo,

25 Op. cit. 26 Ibd. 27 Op. cit.

Page 11: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

sempre foi defendida tendo como um dos meios a educação libertária para alcançar tais

propósitos.

No bairro de Valéria, em Salvador, o coletivo Barbárie participava de ações

nesse sentido. Lá, eles ajudavam o anarquista Antonio Mendes28 em seu sítio onde

plantava, em sua horta, produtos que ele fornecia a restaurantes macrobióticos de

Salvador. Berna lembra que, quando iam ao sítio de Antonio, faziam “toda colheita,

fazia toda limpeza da horta, fazia o replantio, passava 2 dias lá com eles”29. Esse

trabalho com a horta, contudo, não tinha um fim em si mesmo, mas formou-se ali um

grupo de agroecologia que era aberto para as crianças do bairro. No Inistituto

Socioambiental de Valéria, Hilda conta que eles tinham uma atividade com uma

biblioteca, promoviam ações no bairro, visitavam escolas e as convidavam ao sítio e

faziam palestras.

Com a biblioteca nós entramos em contato com a Universidade Federal da

Bahia e solicitamos à biblioteca uma estagiária. Então eles tinham um

programa lá e cederam pra gente a estagiária (...) e aí ela desenvolvia

atividades com as crianças (...). Eu ensinava pras crianças um pouco de

origami e ela também ia ensinando as crianças, ajudava na leitura.30

Além da biblioteca, aos domingos faziam exibição de filmes para a população do

bairro,

A gente procurava sempre filmes que tinha uma visão crítica da realidade. A

gente queria debater, a gente queria estimular o pessoal a pensar, não só

receber tudo pronto. Essa era também a intenção nossa com a biblioteca,

botar aquelas crianças pra pensarem (...) era a nossa ação direta, ação de

mobilização, de conscientização.31

Antonio Mendes, quando chega a Salvador, ajuda a fundar um sindicato em

Simões Filho e fez parte de um sindicato em Candeias. Hilda Braga conta que ela

chegou a visitá-los, mas foram poucas as vezes em que essa aproximação ocorreu por

parte dela. Já Berna lembra de ações que promoviam juntamente a cooperativas no

sentido de dar “instrumentos para se autogerir, aí faziam não só reuniões com eles como

elaboravam cartilhas, como davam orientações a respeito de como negociarem os

28 Antonio Mendes foi um anarquista cearense que chegou à Salvador fugido da Ditadura, segundo nossas

entrevistadas. Lá, ele se estabeleceu em um sítio com sua esposa e seus filhos, dedicando sua vida à horta

e envolvendo-se em projetos de cunho libertário. 29 Op. cit. 30 Op. cit. 31 Op. cit.

Page 12: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

produtos”32. Apesar desse contato, segundo as entrevistadas, o coletivo não se

aproximou efetivamente da classe trabalhadora visto que era um movimento mais

universitário, formado em sua grande maioria por estudantes.

Voltando ao Inimigo do Rei, Cleuzete diz que sentia falta dessa predisposição à

um trabalho mais direto, pensa que faltava mais ação no grupo, um trabalho mais

efetivo “era mais discussões, reuniões de grupo”33. Ela se lembra de algumas viagens ao

interior da Bahia, em Alagoinhas e Cruz das Almas, onde faziam congressos e

encontros, também conta que em alguns momentos estiveram em Valéria, mas que a

participação no projeto de Antonio não era tão assídua.

No movimento estudantil, houve a tentativa de desenvolver um movimento

estudantil libertário que fizesse oposição ao controle que alguns grupos exerciam sobre

a UNE. Formou-se, então, a Federação Libertária Estudantil, a FLE. Na primeira edição

do Inimigo do Rei, anuncia-se a criação da federação pelos grupos “Fantasma da

Liberdade”, “Fim de Festa”, “Um Estranho no Ninho” e “Ovelha Negra”, com o

objetivo de “buscar a autogestão do Movimento Estudantil”, contra o modelo

hierárquico e restrito que enxergavam presente no ME.

Na narrativa das nossas entrevistadas, o movimento estudantil, naquele período,

tinha o controle de grupos partidários que exerciam uma espécie de censura a uma

participação mais efetiva dos estudantes que não andavam conforme seus princípios.

Em um exemplo, Berna, que participou do Congresso de reconstrução da UNE34, conta

que antes do evento

As turmas escolhiam uma pessoa do curso pra ir participar como delegada e

eu fui escolhida na minha sala e o pessoal manobrou, como a gente dizia na

época, o pessoal do PCdoB, porque eu não era partidária deles e poderia

votar em alguma coisa contra eles durante o congresso de reconstrução.

Manobraram pra ir outra pessoa deles no meu lugar.35

Essa prática de “manipulação”, que era enxergada por aqueles estudantes de

tendências mais libertárias, foi um tema sempre debatido pelos membros do Inimigo do

Rei e do coletivo Barbárie. Enquanto anarquistas, sempre defenderam a liberdade em

32 Op. cit. 33 Op. cit. 34 Em 1979 acontecia o 31° Congresso da União Nacional dos Estudantes, lembrado como “Congresso da

Reconstrução”, representando o caminho da volta da entidade à legalidade. 35 Op. cit.

Page 13: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

oposição ao autoritarismo. Naquele momento em especial, a ditadura civil-militar ainda

vigorava no país, contudo não apenas o autoritarismo do governo era posto em questão,

mas posturas da esquerda também eram desafiadas.

Para Berna “o ponto nevrálgico” das críticas à esquerda “era a questão do

autoritarismo” dentro desses grupos, muitas vezes ligados a partidos36. Hilda nos conta

em seu depoimento que enxergava-se práticas autoritárias nos DAs, com reuniões

manipuladas e isso era sempre retratado nos murais montados no DA de filosofia37.

Naquele momento, nos conta Cleuzete, os anarquistas já falavam que “a União

Soviética dava sinais de que ia naufragar”, mas tais comentários e a atitude de se

colocar contra as práticas desses grupos de esquerda dentro da universidade foram

motivos para que anarquistas fossem acusados de estar fazendo o jogo da direita38.

Contudo, a questão que se colocava, como nos diz Berna era se gostariam de “sair de

uma ditadura de direita para entrar em uma de esquerda”. Nesse sentido, mesmo estando

sob uma ditadura, ainda que nos seus anos finais, os anarquistas optaram por não

andarem lado a lado contra o governo. Como lembra Berna,

Que eu me lembre, ninguém chegou a pensar sequer em pegar em arma, ou ir

pra clandestinidade ou tentar implantar uma ditadura do proletariado. Isso era

o pessoal do pensamento mais autoritário de esquerda e é por isso que eu

acho que a gente não se engajou é porque esse pessoal tava a frente (...) a

gente não acreditava nisso. A gente não queria uma ditadura do proletariado.

Ao contrário, a gente sempre defendeu, no pensamento anarquista, pelo

menos na prática que eu vivi e vivenciei aqui na Bahia, a gente acreditava na

autogestão, ou seja, o indivíduo como protagonista da sua vida e os

organismos de convivência social geridos conjuntamente (...) a mínima

interferência do Estado em assuntos de sociedade e de comportamento

individual.39

Além de não compactuar com a ideia de tomada do poder, naquele momento os

libertários que estavam militando eram poucos. Entretanto, não se deixava de denunciar

a ditadura, mesmo que não tenha sido de maneira tão aberta. Tanto Hilda quando Celene

afirmam que denunciar o autoritarismo de grupos da esquerda no Brasil e de regimes

comunistas país afora “era a forma da gente puder expressar uma situação em que

estávamos vivendo numa ditadura militar”40. Na ocasião, sentiam que ainda não tinha

36 Op. cit. 37 Op cit. 38 Op. cit. 39 Op. cit. 40 Op. cit.

Page 14: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

muito espaço para atacar diretamente o governo, “porque o governo matava, era

ditadura (...) era menos letal essa briga interna”41.

O que preocupava os libertários naquele momento era a autogestão e assegurar a

liberdade (de expressão, de comportamento, de sexualidade), a autonomia, era

denunciar o autoritarismo, as relações hierárquicas e relações de poder. O embate a tudo

que tolhesse a liberdade individual e igualdade dentro do coletivo era feito

especialmente com os debates no jornal, na revista e na universidade. Sua resistência era

não só a um poder centralizado na figura do Estado, mas contra todos os poderes que

oprimiam o que chamamos de minorias sociais, como mulheres, negros e índios, por

exemplo.

Com apenas 5 edições, a Revista Barbárie teve seu fim em 1981, já o Inimigo do

Rei vai durar até 1988. Sobre o fim do jornal, Cleuzete diz que

“acho que foi a questão da abertura (...) já tava tendo informação na televisão

sobre o que acontecia (...) as críticas eram fortes em todos os lugares (...) as

pessoas vieram de fora, os que tinham se exilado já tavam retornando, e eu

acho que essa própria condição já foi minando a possibilidade do Inimigo do

Rei existir (...) também tinham muita dificuldade [de distribuição].42

Ao lado das críticas à ditadura, o período de abertura política sempre foi

encarado com desconfiança no Inimigo do Rei, que procurava alertar para as

contradições de uma democracia burguesa, “o sonho democrático não pode morrer. Ele

se realiza em sua plenitude numa sociedade libertária”43.

A Barbárie também argumentava nesse sentido, ironizando: “esse próprio

regime que torturou e esmagou a maioria do povo brasileiro, fala, como se nada tivesse

acontecido em ‘abertura democrática’ e até mesmo em ‘anistia’. – parece até piada”44.

Em outro momento, afirma que “a ditadura está colocando rouge pra ficar de cara nova,

que democracia a fim de viabilizar o capitalismo em um modelo social democrático”45.

No fim das contas, contudo, isso não significava a rejeição à democracia, mas antes que

se lutasse por um modelo democrático desvinculado daquele que o Estado implantava

no momento. Hoje em dia, Hilda enxerga que esse processo democrático não mudou

41 Op. cit. 42 Op. cit. 43 O Inimigo do Rei, n° 6, ano 3 - julho e agosto de 1979, p. 2. 44 Revista Barbárie, n°1, ano 1 – julho de 1979, p. 3. 45 Ibd., n° 3, ano 2 – 1980, p. 21.

Page 15: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

muita coisa, pois democracia não é algo que “se dá através de decreto”, porém ela ainda

guarda a esperança de maiores mudanças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar as memórias das nossas entrevistadas nos leva a considerar outras

possibilidades de interpretação sobre o que foi escrito acerca daquele contexto histórico.

Abre outras possibilidades de analisar outras formas de resistência à Ditadura Civil-

militar, outros discursos sobre aquele momento político, reconhecer outras fontes que

impulsionaram as mudanças culturais defendidas naquele momento. Nesse sentido,

corroboramos a afirmação feita por João H. Oliveira,

O foco nos pequenos grupos anarquistas atuando no Brasil nos amplia o

retrato das resistências do período. O particular, o micro, ajuda a compor o

total, o macro. Afinal o que seria da abstração “totalidade” sem os pequenos

fluxos (reais, concretos) que a compõem, que a tornam mais palpável?

A experiência libertária que pudemos analisar esteve mais relacionada às

vivências de estudantes universitários, diferentemente daquele anarquismo do começo

do séc. XX no Brasil que era mais propagado no meio operário. Talvez nessa diferença

de personagens resida algumas diferenças de temáticas e espaços de atuação, embora

muita coisa tenha permanecido nas práticas dos grupos anarquistas da década de 1970

em diante.

Contemporâneos das lutas dos movimentos sociais e políticos dos anos 70,

aqueles grupos anarquistas combatiam as relações de poder dentro da sociedade,

utilizando Foucault como uma das suas referências, debatiam as demandas das minorias

sociais e reconheciam que não só na luta de classes deveria apoiar-se a revolução por

uma sociedade socialista libertária. Estavam conectados com as temáticas de sua época,

porém ainda levantando bandeiras clássicas do anarquismo como a liberdade individual,

a autonomia, a autogestão e o fim da autoridade estatal.

Seja nas universidades, denunciando a falta de espaço para que todo e qualquer

estudante tivesse voz no movimento estudantil, seja na imprensa confrontando liberdade

e autoritarismo na direita ou na esquerda, ou com trabalhos de base como nas iniciativas

dos integrantes da Barbárie no bairro de Valéria, cada uma dessas ações fez parte das

movimentações daquele momento decisivo de fim de uma ditadura e reconstrução (ou

Page 16: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento

início de uma construção) da democracia. A resistência libertária não pretendeu a

tomada ou ocupação do poder como solução para o fim da ditadura, em seu lugar

buscou apontar um caminho diferente para estabelecer uma democracia baseada nos

princípios da autogestão, da liberdade do ser humano, e na ausência de um rei que nos

governe.

REFERÊNCIAS

Depoimentos

Bernadete Farias, em 15.06.2018

Celene Fonseca, em 17.06.2018

Cleuzete Chagas, em 17.06.2018

Hilda Braga, em 16.06.2018

Periódicos

O INIMIGO DO REI – n° 1 (1977) a n° 22 (1988)

BARBÁRIE – n° 1 a n°3 (1979 a 1980) e n° 5 (1982)

Textos

BAQUEIRO, Carlos; NUNES, Eliene. O Inimigo do Rei: imprimindo utopias

anarquistas. Rio de Janeiro, ed. Achiamé, 2007.

OLIVEIRA, João Henrique. Do underground brotam flores do mal: anarquismo e

contracultura na imprensa alternativa brasileira (1969-1992). Dissertação de mestrado

em História Social – Niterói, Universidade Federal Fluminense/UFF, 2007.

RODRIGUES, Edgar. O anarquismo no banco dos réus (1969-1972). Rio de Janeiro,

ed. Achiamé, 1993.

__________________. O ressurgir do anarquismo: 1962 – 1980. Rio de Janeiro, ed.

Achiamé, 1993.

SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres.

Revista História Oral, v. 8, n.1, p. 29-42, jan-jun. 2005.

VALENTE, Silza. O movimento anarquista no Brasil. Semina Ci. Soc./Hum., v. 15,

n.3, p. 260-269.

Page 17: ANARQUISMO E MILITÂNCIA FEMININA: MEMÓRIAS SOBRE O … · Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro e um grupo de estudantes libertários, o Movimento