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In: GREGOLIN, M. R. V.; KOGAWA, J. M. M. (Org.). Anlise do discurso e semiologia: problematizaes contemporneas. Araraquara: FCL-UNESP Laboratrio Editorial; So Paulo: Cultura Acadmica, 2012. (Srie Trilhas Lingusticas, n. 20). p. 245-269. ISBN: 978-85-7983-244-4

ANLISE DO DISCURSO, SEMIOLOGIA, CIBERESPAO:

PROBLEMATIZAES CONTEMPORNEAS

Renan Belmonte MAZZOLA

Maria do Rosrio GREGOLIN

Quando lhe mostramos a lua, o imbecil olha o dedo. Com efeito, por que

no? Por que a anlise de discurso no dirigiria seu olhar sobre os gestos

de designao antes que sobre os designata, sobre os procedimentos de

montagem e as construes antes que sobre as significaes?

Pcheux (2007, p.54)

A histria da Anlise do Discurso, tanto no territrio francs como no brasileiro,

atravessada pelas reformulaes de sua teoria. Nessa histria, no s os conceitos foram

revisitados, mas tambm as materialidades que atribuem forma ao principal objeto da AD:

o discurso. O olhar que abrange diversas formas materiais sob as quais pululam os

discursos permite vislumbrar, como algum diante de um panorama, como os sentidos

estruturam-se e articulam-se. Atualmente, encontramo-nos diante da frequente utilizao de

enunciados no verbais em trabalhos de AD, e este artigo pretende investigar as teorias e

problematizar categorias analticas que subjazem a tais anlises.

O debate acerca da existncia de categorias analticas que permitem a descrio e

interpretao das materialidades no verbais a partir da teoria discursiva francesa, derivada

dos trabalhos de Michel Pcheux e Michel Foucault, tem se intensificado atualmente

devido ao papel que as mdias desempenham na veiculao de informaes. Os enunciados

que circulam por meio da convergncia das mdias1 tm uma multiplicidade de formas:

verbais, no verbais, sonoras etc. Uma possibilidade de abordagem dos sentidos cujas

substncias no so exclusivamente lingusticas se mostra atravs do dilogo entre a

Anlise do Discurso e teorias semiolgicas. No se trata de trabalhar com esses dois

domnios separadamente, mas de problematizar a natureza dos objetos no verbais que se

encontram presentes nos corpora em AD e que tm carter semiolgico.

1 Ver Jenkins (2008).


Nesse sentido, recorreremos a trs autores cruciais cujos trabalhos esboam mtodos

de anlise semiolgica que podem nortear uma proposta discursiva para enunciados no

verbais que nos interpelam em nossa contemporaneidade; so eles: Roland Barthes (1977;

1990), Carlo Ginzburg (2003), e Jean-Jacques Courtine (1987a; 1987b; 1989; 1990; 1991a;

1991b; 1995; 2008). A partir deles, poderemos compreender melhor quais so os princpios

semiolgicos2 e de que forma a semiologia presente em seus trabalhos pode contribuir com

a anlise discursiva dos signos existentes no seio da vida social.

Em meio diversidade de plataformas e suportes miditicos nos quais circulam os

discursos, enfocaremos, neste trabalho, a mdia digital para nela observar de que maneira as

materialidades se articulam para compor formaes e direcionamentos discursivos.

Observar o ciberespao, assim, observar as prticas discursivas da atualidade realizadas

por meio das novas tecnologias.

Os discursos tm vrias faces

A Anlise do Discurso desde sua primeira poca (PCHEUX, 1997b) j se

mostrou capaz de apreender discursivamente os enunciados verbais, haja vista o mecanismo

de anlise automatizada, o corpus da AD-1 e a inflexo de Pcheux pela teoria saussuriana

nesse primeiro momento, que marcadamente centrado na relao que Pcheux estabelece

com Louis Althusser (1983), acerca do conceito de ideologia. O objeto de anlise

constitua-se de grandes textos polticos escritos e os dispositivos de anlise se voltavam

unicamente para eles. A principal preocupao desse perodo pousava na questo do

mtodo estruturado, e isso pode ser facilmente observado na segunda parte do livro Anlise

automtica do discurso, de Pcheux (1997a), cujo destaque se volta para os clculos

matemticos e algoritmos que descrevem o dispositivo de anlise automatizada do processo

discursivo, que se realizava atravs da ajuda de recursos informticos para o processamento

de grandes quantidades de corpora. Ao analista cabia interpretar os dados (sempre

2 Esses trs autores trabalham com diferentes princpios semiolgicos. No caso de J.-J. Courtine, observamos

a formulao de uma semiologia histrica, presente no plano de fundo de seus trabalhos. Em Ginzburg, encontra-se uma semiologia dos traos, rastros e vestgios fundamentais para a atribuio da autoria de uma

pintura dada. Barthes, por fim, o prprio semilogo dos mitos e da fotografia, ou [...] antes de tudo o esboo contraditrio de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele soube agenciar sua maneira talvez

nica [...]. (PCHEUX, 2007, p. 56).


lingusticos) obtidos aps a automatizao, relacionando-os com a) a ideologia; b) com os

sujeitos; e c) com o histrico-social.

Na segunda poca da AD, alguns dogmas herdados da fase anterior foram

relativizados e sofreram um tmido afrouxamento. , ento, na terceira poca

definida a partir de 1980 que se comprova mais legitimadamente o movimento de

Pcheux em direo a outros objetos que no fossem exclusivamente escritos e/ou

doutrinrios. Em seu livro O discurso: estrutura ou acontecimento, por exemplo, Pcheux

(2002) debrua-se sobre um enunciado ordinrio: On a gagn, pronunciado pelos

eleitores de Franois Mitterrand, do partido de esquerda, que ganhara as eleies para

presidente da Repblica Francesa no dia 10 de maio de 1981. Esse enunciado, assegura

Pcheux (2002), atravessado por discursividades da mesma maneira que os escritos

doutrinrios, pois revela uma estrutura3 e integra um acontecimento

4. A partir de ento, as

formulaes cotidianas, tomadas no ordinrio do sentido, passam a integrar o corpus do

analista de discursos. Em Papel da memria, outro livro das ltimas pocas da AD,

Pcheux (2007) e outros autores abordam a questo das materialidades no verbais

enquanto lugar de inscrio da memria social. Pcheux (2007) delineia a possibilidade de

que a imagem (pensada como instncia atravessada pela histria / memria no processo de

circulao discursiva) possa ser estudada pela AD. No terreno da linguagem e dos estudos

lingusticos, uma primeira sugesto para o estudo geral dos signos de uma sociedade foi

formulada por Ferdinand de Saussure, no Curso de Lingustica Geral, publicado em 1916:

Pode-se, ento, conceber uma cincia que estude a vida dos signos no seio

da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social, e, por

conseguinte, da Psicologia geral; cham-la-emos de Semiologia (do grego

smeon, signo). Ela nos ensinar em que consistem os signos, que leis

3 On a gagn : sujeito indefinido on, referindo-se indeterminadamente aos militantes do partido

esquerdista francs ou ao povo geral da Frana; ausncia de complemento, levando ao questionamento

ganhamos o qu?. Em uma partida de futebol, a resposta bvia, mas e no terreno da poltica? Ademais, devemos lembrar que esse enunciado deslocado do campo do esporte, motivo pelo qual se observa o

estranhamento no momento de sua irrupo. (PCHEUX, 2002). 4 Para Pcheux (2002, p.17), o acontecimento se estabelece [...] no ponto de encontro de uma atualidade e de

uma memria. Ao isolarmos o enunciado On a gagn, percebemos que a irrupo desse acontecimento na histria se inscreve em uma atualidade, ao mesmo tempo em que retoma uma memria proveniente do

esporte, que se configurava como campo primeiro de existncia desse enunciado, antes de seu deslizamento para o campo da poltica.


os regem. Como tal cincia no existe ainda, no se pode dizer o que ser;

ela tem direito, porm, existncia; seu lugar est determinado de

antemo. (SAUSSURE, 2002, p.23-24, grifo do autor).

Saussure deixa indicada a possibilidade semiolgica. No obstante, o conceito de

semiologia anterior formulao presente no Curso: no campo da medicina, por

exemplo, a Semiologia relaciona-se com o estudo dos sinais e dos sintomas das doenas

humanas e animais. O timo smeon significa, alm de signo, sinal ou sintoma. A

Semiologia (ou Semitica5) mdica, por isso, muito importante para o diagnstico da

maioria das enfermidades. Segundo ela, o sintoma definido como toda a informao

subjetiva descrita pelo paciente, isto , sua sensao (uma dor de cabea, por exemplo). Por

outro lado, um sinal refere-se a toda alterao objetiva, perceptvel pelo examinador (uma

mancha na pele, por exemplo).

O enunciado verbal possui uma linearidade e composto por signos lingusticos6; o

enunciado no verbal ou a significao que derivada de uma substncia no verbal

emitida requer outros gestos para sua interpretao. Reconhecemos, descrevemos e

interpretamos uma pintura, por exemplo, por meio de traos, de cores, de formas, de tons,

de superfcies etc. Certas modalidades de imagens fixas como a fotografia, a pintura etc

so, por definio, enunciados no verbais; as propagandas e o fotojornalismo, por seu

turno, frequentemente combinam enunciados verbais com no verbais. Assim, no instante

em que nos encontramos diante de uma combinao de enunciados verbais com no verbais

(ou simplesmente enunciados no verbais, isto , cuja natureza semiolgica evidente) que

pensamos poder efetuar a articulao entre a teoria discursiva e uma teoria semiolgica

para maior completude analtica. Para iniciarmos essas reflexes, remontaremos aos

estudos clssicos de Semiologia, isto , aos trabalhos de Roland Barthes.

5 Aqui, o sintagma semitica mdica pode ser substitudo sem grandes alteraes de sentido pelo sintagma

semiologia mdica. Essa observao se d pelo fato de a palavra semitica ser demasiada carregada de sentido nos estudos do discurso no Brasil, referindo-se a teorias j cristalizadas do saber como a semitica greimasiana, peirceana, etc. Por esse motivo, preferimos utilizar o termo semiologia: conceito apontado e definido (porm no teorizado) por Saussure (2002), que precede as formulaes da teoria semitica como a

conhecemos hoje. 6 Referimo-nos ao conceito saussuriano de signo, que une um significante (uma imagem acstica) a um

significado (o conceito a que se quer referir). (SAUSSURE, 2002).


Em que p estamos com relao a Barthes?

A obra pstuma de Roland Barthes, intitulada O bvio e o obtuso7, constitui, na

prtica, um volume de ensaios crticos essencialmente centrados naquilo a que se poder

chamar esttica do visvel: a fotografia, o cinema, o teatro, a pintura e a msica tm aqui

lugar de relevo. Em seu ensaio A mensagem fotogrfica, componente dessa obra,

Barthes (1990) prope um mtodo de anlise da fotografia jornalstica. Ao descrever a

natureza distinta de signos que integram uma composio significante, Barthes (1990)

utiliza categorias analticas que podem nos auxiliar no momento em que nos deparamos

com objetos similares em AD. Para ele, o fotojornalismo possui uma estrutura bipartida,

isto , que articula o verbal com o no verbal:

evidente que, mesmo sob a tica de uma anlise puramente imanente, a

estrutura da fotografia no uma estrutura isolada; identifica-se, pelo

menos, com uma outra estrutura, que o texto (ttulo, legenda ou artigo)

que acompanha toda fotografia jornalstica. A totalidade da informao

est, pois, apoiada em duas estruturas diferentes (uma das quais

lingustica); essas duas estruturas [...] no se podem confundir; no texto, a

substncia da mensagem constituda por palavras; na fotografia, por

linhas, superfcies, matizes. (BARTHES, 1990, p.12).

Ainda que, nesse ensaio, seja ntida a influncia de Roman Jakobson e de sua teoria

da comunicao, podemos depreender apontamentos importantes para a anlise de um

conjunto significante composto por substncias de expresso (HJELMSLEV, 1975)

verbais (grafemas) e no verbais (traos, cores, matizes, superfcies) que, embora

contribuam conjuntamente para a significao, devem ser consideradas separadamente no

momento da anlise. A influncia de Jakobson pode ser observada logo nas primeiras linhas

do ensaio de Barthes (1990, p.11, grifo nosso): A fotografia jornalstica uma mensagem

e, como tal, constituda por uma fonte emissora, um canal de transmisso e um meio

receptor.

Barthes parte do senso comum para descrever o contedo da mensagem fotogrfica,

problematizando a hiptese de que a imagem fotogrfica seria uma mensagem sem cdigo:

7 Esse ttulo foi escolhido com base no ensaio sobre Eisenstein, componente desse livro.


O que transmite a fotografia? Por definio, a prpria cena, o literalmente

real. [...] Entre o objeto e sua imagem no absolutamente necessrio

interpor um relais, isto , um cdigo; bem verdade que a imagem no

o real, mas , pelo menos, o seu analogon perfeito, e precisamente esta

perfeio analgica que, para o senso comum, define a fotografia.

(BARTHES, 1990, p.12).

Nesse sentido, aparentemente, vm nossa mente outras modalidades de mensagens

sem cdigo: desenhos, pintura, cinema, teatro pois so, primeira vista, reprodues

analgicas da realidade. Contudo, de acordo com Barthes (1990, p.13), [...] cada uma

dessas mensagens desenvolve [...] uma mensagem suplementar, que o que comumente se

chama o estilo da reproduo: trata-se de um sentido segundo. Esse sentido segundo

refere-se posio da cmera fotogrfica, focalizao, disposio dos objetos, ao

enquadramento etc. Esses sentidos so construdos com a ajuda de tcnicas que envolvem a

prtica do fotografar:

Em suma, todas essas artes imitativas comportam duas mensagens: uma mensagem denotada que o prprio analogon e uma mensagem conotada

que a maneira pela qual a sociedade oferece leitura, dentro de uma

certa medida, o que ela pensa. (BARTHES, 1990, p.13).

Essa reflexo de Barthes tambm se estende ao desenho, gravura ou cena gravada.

A diviso do processo de significao em dois momentos (denotativo e conotativo) revela

como Barthes apropria-se de mecanismos inicialmente pensados para o signo lingustico e

estende-os para as materialidades no verbais. Essencialmente, o processo de denotao

tratava da percepo simples, superficial; e o processo de conotao continha as mitologias,

como ele chamava os sistemas de cdigos que nos so transmitidos e so adotados como

padres. Os conjuntos ideolgicos veiculados pelo processo de conotao eram s vezes

absorvidos despercebidamente, o que possibilitava e tornava vivel o uso de veculos de

comunicao para a persuaso. Resume-nos Barthes (1990, p.14): O paradoxo fotogrfico

consistiria, ento, na coexistncia de duas mensagens: uma sem cdigo (seria o anlogo

fotogrfico) e a outra codificada (o que seria a arte ou tratamento, ou a escritura, ou a

retrica da fotografia).


Sabemos que a fotografia jornalstica sempre vem acompanhada de texto, ora sob a

forma de legenda, ora sob a forma de ttulo, ora em seu entorno. Para Barthes (1990, p.20),

[...] o texto uma mensagem parasita, destinada a conotar a imagem, isto , insuflar-lhe

um ou vrios significados segundos. Essa situao revela uma inverso histrica: no

mais a imagem que ilustra a palavra, mas a palavra que sublima, patetiza ou racionaliza a

imagem8. A conotao, na imagem, no nem natural nem artificial: histrica (ou

cultural).

Resta, ento, uma pergunta complementar de Barthes: qual o sentido do olhar na

leitura de uma imagem ou de uma fotografia?

Como lemos uma fotografia? O que percebemos? Em que ordem, segundo

que itinerrio? Se, segundo certas hipteses de Bruner e Piaget, no h

percepo sem categorizao imediata, a fotografia verbalizada no exato

momento em que percebida; ou, melhor ainda: s percebida se

verbalizada (ou, segundo a hiptese de G. Cohen-Sat sobre a percepo

flmica, se a verbalizao lenta, h desordem de percepo,

interrogao, angstia do sujeito, traumatismo). (BARTHES, 1990, p.22).

O questionamento acima permite problematizar a noo de denotao pura na

anlise de uma fotografia ou de uma imagem. Por esse motivo, Barthes sugere chamar

conotao perceptiva (referente denotao e percepo inicial) e conotao cognitiva

(referente a outros mtodos de conotao, seus sentidos segundos), j que a percepo de

algo deve necessariamente passar pelo sistema conotativo da lngua (uma metalinguagem

interior). Esse ensaio, escrito em 1961, mostra-nos como a fotografia se desenvolve sob a

forma de um paradoxo, [...] que faz de um objeto inerte uma linguagem e que transforma a

incultura de uma arte mecnica na mais social das instituies. (BARTHES, 1990, p.25).

Em A retrica da imagem9, outro ensaio, escrito em 1964, Barthes busca

compreender como o sentido chega imagem e onde ele termina; e, se termina, o que existe

alm dele. Para tanto, sua metodologia consiste em [...] submeter a imagem a uma anlise

espectral das mensagens que pode conter. (BARTHES, 1990, p.27). Assim, o autor

8 Na esteira dessa reflexo, Barthes (1990) nega que sejamos, hoje, a civilizao da imagem; e afirma que,

pelo contrrio, somos a civilizao da palavra; no h imagem (sobretudo nas propagandas das vias pblicas e

no fotojornalismo) que venha sem palavras, seja para intitul-la, seja para descrev-la. 9 Tambm presente em Barthes (1990).


promete facilitar nosso trabalho, tomando como objeto apenas a imagem publicitria,

alegando que, em publicidade, a significao da imagem certamente intencional. Elege,

ento, uma publicidade Panzani marca de uma empresa fabricante de massas para

macarro. Inicialmente, Barthes (1990) diz-nos que a publicidade contm trs mensagens

diferentes, so elas: a) uma mensagem lingustica (a marca da empresa italiana Panzani); b)

uma mensagem icnica codificada (construda, tratada, composio dos elementos); e c)

uma mensagem icnica no codificada (perceptiva). De imediato, a anlise dessa

publicidade segmenta as diversas naturezas dos signos como mencionado no ensaio

anterior, isto , Barthes opera uma separao entre denotao, conotao e suas articulaes

com a mensagem lingustica. O que devemos destacar aqui, contudo, como essa anlise

semiolgica utiliza-se de elementos inicialmente pensados para a materialidade verbal, haja

vista o emprego dos termos conotao, denotao, mensagem; e, mais

especificamente nesse ensaio, empregam-se os termos lexia e lxico para referir-se a

uma ou mais imagens. O prprio ttulo desse ensaio nos remete ao mecanismo retrico

presente nas imagens. Explica-nos Barthes (1990, p.38, grifo do autor):

[...] a mesma lexia mobiliza lxicos diferentes. O que vem a ser um

lxico? uma parte do plano simblico (da linguagem) que corresponde a

um conjunto de prticas de tcnicas; exatamente o caso das diferentes

leituras da imagem [...]. H, em cada pessoa, uma coexistncia de lxicos;

o nmero e a identidade desses lxicos formam o ideoleto de cada um.

O principal questionamento gerado pelas reflexes de Barthes : uma teoria

semiolgica derivada de mecanismos construdos inicialmente para a descrio de

enunciados lingusticos adequada para a descrio e interpretao da materialidade no

verbal? E como a teoria barthesiana auxilia a Anlise do Discurso na maneira como ela lida

com os elementos scio-histricos presentes na circulao dessas materialidades? Sabemos

que a ordem da lngua serve de modelo e de obstculo para o desenvolvimento das teorias

semiolgicas. A lngua fornece o molde para a anlise semiolgica, embora esta anlise

deva ultrapass-lo, ir alm dele. O paradoxo presente nos estudos semiolgicos, portanto,

consiste em precisar da lngua, e, ao mesmo tempo, dever super-la.


Em Elementos de semiologia, Barthes mostra-se empenhado em problematizar a

estrutura semiolgica. Tendo em vista que a Semiologia tem por objeto qualquer sistema de

signos, seja qual for sua substncia, Barthes (1977, p.11) alerta para o fato de que [...] o

desenvolvimento das comunicaes de massa d hoje uma grande atualidade a esse campo

imenso da significao. Imagens, cinema, gestos, reaes, msicas, sons; substncias

complexas encontradas em ritos, protocolos, celebraes, compem sistemas de

significao mesmo que no constituam, necessariamente, linguagens. Segundo Barthes

(1977, p.12), qualquer sistema semiolgico repassa-se de linguagem. Esse

atravessamento operado pela linguagem nos sistemas de significao incentiva a seguinte

reflexo:

preciso, em suma, admitir desde agora a possibilidade de revirar um dia

a proposio de Saussure: a lingustica no uma parte, mesmo

privilegiada, da cincia geral dos signos: a Semiologia que uma parte

da Lingustica; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes

unidades significantes do discurso. (BARTHES, 1977, p.13, grifo do

autor).

Para Barthes (1977), as mensagens icnicas encontram-se em uma relao estrutural

de redundncia ou revezamento com o sistema da lngua. Ora, se o semilogo levado a

encontrar, mais cedo ou mais tarde, a linguagem10

, observa-se um terreno comum entre os

sistemas de signos e os atravessamentos discursivos. Na esteira dessa reflexo, possvel

que o dilogo entre a Semiologia e a Anlise do Discurso possa ser traado. Barthes (1977,

p.13-14) nos diz, contudo, que

Os Elementos aqui apresentados no tm outro objetivo que no seja tirar

da Lingustica os conceitos analticos a respeito dos quais se pensa a

priori serem suficientemente gerais para permitir a preparao da pesquisa

semiolgica. No conjeturamos, ao reuni-los, se subsistiro intactos no

decurso da pesquisa; nem se a Semiologia dever sempre seguir

estreitamente o mtodo lingustico.

10

Essa linguagem, explica Barthes (1977, p.12), [...] no exatamente a dos linguistas: uma segunda linguagem, cujas unidades no so mais os monemas ou os fonemas, mas fragmentos mais extensos do

discurso; estes remetem a objetos ou episdios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela. Aqui, portanto, podemos dizer que ocorre um encontro ou uma articulao entre o objeto da semiologia e o objeto

da Anlise do Discurso.


Sua iniciativa foi pioneira, tendo em vista que Saussure (2002) no dedicou seno

poucas linhas para apontar o que posteriormente foi aprofundado nos estudos semiolgicos.

Ginzburg e a observao dos detalhes

Tratamos das estruturas semiolgicas do fotojornalismo, da propaganda e do mito,

por meio de Barthes. A partir de agora, abordaremos alguns aspectos relativos pintura

por meio de Carlo Ginzburg. A pintura tambm possui uma significao, mas no h

articulao explcita com o signo lingustico. Na pintura, a substncia dos signos

puramente no verbal, formada por traos, cores, matizes, formas, superfcies etc.

Segundo Ginzburg (2003, p.143), [...] por volta do final do sculo XIX, emergiu

silenciosamente no mbito das cincias humanas um modelo epistemolgico (caso se

prefira, um paradigma) ao qual at agora no se prestou suficiente ateno. Esse modelo

epistemolgico se refere ao contedo de artigos publicados entre 1874 e 1876 na Zeitschrift

fr bilbende Kunst sobre a pintura italiana, e [...] propunham um novo mtodo para a

atribuio dos quadros antigos, que suscitou entre os historiadores da arte reaes

contrastantes e vivas discusses. (GINZBURG, 2003, p.144). Posteriormente, descobriu-

se o autor dos artigos: o italiano Giovanni Morelli. O mtodo proposto por ele passou a

chamar-se mtodo morelliano, descrito a seguir:

Os museus, dizia Morelli, esto cheios de quadros atribudos de maneira

incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor difcil:

muitssimas vezes encontramo-nos frente a obras no-assinadas, talvez

repintadas ou num mau estado de conservao. Nessas condies,

indispensvel poder distinguir os originais das cpias. Para tanto, porm

(dizia Morelli), preciso no se basear, como normalmente se faz, em

caractersticas mais vistosas, portanto mais facilmente imitveis, dos

quadros: os olhos erguidos para o cu dos personagens de Perugino, o

sorriso dos de Leonardo, e assim por diante. Pelo contrrio, necessrio

examinar os pormenores mais negligenciveis, e menos influenciados

pelas caractersticas de cada escola a que o pintor pertencia: os

lbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mos e dos ps.

(GINZBURG, 2003, p.144, grifo nosso).

O mtodo morelliano, ao concentrar-se em detalhes da obra de arte em funo de

desvendar sua atribuio, revela-se tambm um mtodo semiolgico, porque elege


determinados signos-chaves que compem o todo da obra e destaca-os de modo que,

por meio deles, seja possvel desvendar a autoria da pintura. Dessa maneira, podemos

enxergar em Morelli um mtodo semiolgico que se concentra nas mincias, nos

pormenores, nos elementos residuais, no no-visto, no no-notado, mais do que nos

elementos que atraem, em um primeiro momento, nosso olhar. Por isso, dizemos que o

mtodo morelliano indicirio, na prpria acepo do termo indcio (sinal,

indicao, sintoma, ndice). Por esse motivo, Ginzburg retoma Castelnuovo,

[...] que aproximou o mtodo indicirio de Morelli ao que era atribudo,

quase nos mesmo anos, a Sherlock Holmes, pelo seu criador, Arthur

Conan Doyle. O conhecedor de arte comparvel ao detetive que

descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indcios imperceptveis

para a maioria. (GINZBURG, 2003, p.145).

A comparao traada por Castelnuovo no surge ex nihilo: nos romances de Doyle,

Holmes desvenda os crimes por meio da observao de pegadas deixadas na lama, fios de

cabelo sob os mveis, cinzas de cigarro etc. Ele busca os indcios que se escondem onde o

olhar no chega rapidamente. Esse mtodo indicirio, verbalizado na literatura, encontra

outra forma de materializao nas tintas sobre as telas: os pormenores negligenciveis

como o aspecto das unhas, o lbulos auriculares, os dedos alm de revelar a autoria da

obra, revelam de igual maneira os gestos mais inconscientes dos autores. Ginzburg (2003)

alerta para as similaridades j apontadas por outros estudiosos entre o mtodo morelliano e

o pensamento de Sigmund Freud; como operou-se a influncia daquele sobre este e sobre a

psicanlise moderna: O certo que [...] Freud declarou de maneira ao mesmo tempo

explcita e reticente a considervel influncia intelectual que Morelli exerceu sobre ele,

numa fase muito anterior descoberta da psicanlise. (GINZBURG, 2003, p.148). Essa

constatao garante a Morelli um lugar especial na formao da psicanlise e contribui para

uma articulao entre trs mtodos de diagnstico, expostos no tringulo a seguir.


Figura 1 - Mtodo indicirio/residual/dados marginais

Fonte: Elaborao prpria

Mas o que pde representar para Freud [...] a leitura dos ensaios de Morelli? o

prprio Freud a indic-lo: a proposta de um mtodo interpretativo centrado sobre os

resduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. (GINZBURG, 2003, p.149).

Destacamos aqui a questo do mtodo interpretativo, o qual, em Freud, permite observar

o funcionamento do inconsciente a partir de elementos como os sonhos, por exemplo,

constitudos de imagens, sons, lembranas, vozes, sujeitos, etc. A questo fundamental se

pauta na possibilidade de enxergar e interpretar variados objetos no caso, a pintura, um

crime ou um sonho a partir de um mesmo mirante. Nas palavras de Ginzburg (2003,

p.150):

Nos trs casos, pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade

mais profunda, de outra forma inatingvel. Pistas: mais precisamente,

sintomas (no caso de Freud), indcios (no caso de Sherlock Holmes),

signos pictricos (no caso de Morelli).

Essa tripla analogia possui uma provvel explicao. O lao que as une a

semiologia mdica. Freud era um mdico, Morelli formara-se em medicina e Conan Doyle

havia sido mdico antes de ser escritor. Como afirmamos anteriormente, a semiologia

mdica a disciplina que permite diagnosticar as doenas inacessveis observao direta

na base de sintomas superficiais, s vezes irrelevantes aos olhos do leigo, conhecida muito

bem por todos esses autores. (GINZBURG, 2003). Assim, o paradigma indicirio que

emergiu nas cincias humanas na dcada de 1870-1880, baseado na semiologia dos

detalhes, possui uma origem outra e anterior:


Por milnios o homem foi caador. Durante inmeras perseguies, ele

aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisveis pelas

pegadas de lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos,

plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar,

interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. [...]

Geraes e geraes de caadores enriqueceram e transmitiram esse

patrimnio cognoscitivo. (GINZBURG, 2003, p.151).

A percepo e a interpretao dos sinais deixados pelas presas contriburam para a

evoluo do homem at seu estgio atual. Por conta disso, evoluram as ferramentas, os

mtodos de captura, a eficcia das armadilhas etc. A busca por alimento, num primeiro

momento, permitiu que se desenvolvesse a parte da cognio humana responsvel pelo

reconhecimento de determinados sinais que lhe facilitariam o cotidiano. No entanto, de

suma importncia distinguir os dois lados desse paradigma indicirio. Para Ginzburg (2003,

p.171), [...] uma coisa analisar pegadas, rastros, fezes, catarros, crneas, pulsaes [...];

outra analisar escritas, pinturas ou discursos. A distino entre natureza (inanimada ou

viva) e cultura fundamental. Dessa maneira, ao observarmos uma pintura com

preocupaes discursivas, podemos do mesmo modo buscar signos culturalmente

condicionados, que tenham a involuntariedade dos sintomas (e a maior parte dos indcios),

que revelem em diferentes graus o discurso do qual faz parte.

Courtine e a semiologia histrica

Desses trs autores abordados, J.-J. Courtine o mais representativo, pois ele o

responsvel por grande parte dos desenvolvimentos da Anlise do Discurso de linha

francesa, no Brasil e na Frana, desde a morte de Michel Pcheux. Consideramos Les

glissements du spectacle politique, escrito por Jean-Jacques Courtine em 1990 e publicado

no n. 164 da revista Esprit, um texto de enorme importncia para os desenvolvimentos da

teoria discursiva, pois alerta para as mutaes do objeto da Anlise do Discurso: o discurso

poltico, segundo o sujeito que o enuncia. A partir dessas transformaes, fomos levados a

considerar, alm daquilo que se diz, tambm a) a voz do homem poltico (entonao e

impostao); b) a imagem do homem poltico (seu corpo e seus gestos); e c) o meio de

circulao do discurso poltico (palanque, rdio, tev).


Assim, com Courtine (1990), modificaes foram sendo realizadas no prprio seio

da teoria. Diferentemente de Barthes (cuja semiologia pautada nos elementos de descrio

lingustica) e Ginzburg (cujas reflexes so pautadas na histria da arte, na literatura e na

psicanlise), Jean-Jacques Courtine empreende o que se poderia chamar de uma semiologia

histrica (ou cultural), derivada da necessidade de considerar outros elementos que atuam

na produo de sentidos do homem pblico. Posteriormente, essa metodologia, ou

prtica ser encontrada mais frequentemente em seus trabalhos sobre antropologia

cultural.

Acreditamos que a discusso em torno de outras materialidades discursivas (alm da

materialidade verbal) como objeto da AD pecheutiana s foi possvel graas

midiatizao11

da poltica, ou seja, da popularizao dos meios de comunicao de massa

para a transmisso dos programas polticos. Consideramos, portanto, que o papel da mdia

na sociedade ocidental foi um fator essencial para os deslocamentos realizados no campo

da Anlise do Discurso no que concerne abordagem no s do texto ou da fala como

materializaes verbais do discurso poltico, mas tambm de outros sistemas de signos que

contribuem, sem seu conjunto, para a produo de efeitos de sentido diversos.

Embora o rumo tomado pela Anlise do Discurso, aps a morte de Michel Pcheux

(sobretudo no Brasil), tenha contemplado outras espcies de discursos alm do discurso

poltico, foi somente em funo dessa espcie de discurso em particular (que passou do

palanque para o rdio e televiso) que emergiu a necessidade de compreender os outros

sistemas de signos, ou, em outras palavras, as outras materialidades nas quais se estabelece

o discurso. Assim, foi devido somente s mutaes das formas de percepo do homem

poltico e de seu discurso que foi possvel a apario de uma semiologia histrica (ainda

que no teorizada) no campo da Anlise do Discurso.

Les glissements du spectacle politique fundamental para a histria da Anlise do

Discurso, pois coloca Courtine como continuador da teoria, isto , um membro do grupo

de Michel Pcheux responsvel por dar continuidade s mutaes da teoria discursiva.

11

Utilizar o termo espetacularizao, aqui, seria inadequado, pois antes da transmisso da fala do poltico pelas mdias, consideramos que o discurso proferido no palanque representava, em alguma medida, um

espetculo. Talvez tambm o tenha sido na gora.


Courtine escreve-o com o objetivo de mostrar que h alteraes na percepo do homem

poltico de 1950 a 1990. As acusaes recaem sobre a tev:

No banco dos rus, um nome surge com insistncia, o que serviria de

explicao: a televiso, e seus efeitos perversos. As imagens corrompem

as palavras, a poltica-espetculo distorce o debate de ideias: a democracia

estaria doente de sua comunicao. A explicao simples demais para se

dar conta da generalidade da crise, muito fcil dizer sua complexidade;

pode-se conceber, no entanto, que uma causa seja adiantada: a televiso

o lugar e o meio de uma mudana profunda da eloquncia poltica.

Uma forma de fala pblica, constituda junto da Revoluo Francesa,

fundada sobre uma referncia aos oradores antigos, concebida sobre o

modelo do teatro e que ainda h pouco tempo fazia a ligao entre o

homem poltico e o cidado, acaba de se apagar diante de nossos olhos,

no sem nostalgia ou aflio. Ela cede lugar a estilos de comunicao

radicalmente novos. (COURTINE, 1990, p. 153, traduo e grifo

nossos).12

Em Histria do rosto, Courtine e Haroche (1995) interpretam tratados sobre as

feies e as expresses ao longo dos sculos. Em Histria do Corpo, Courtine (2008)

debrua-se sobre os espcimes teratolgicos, a partir do sculo XIX, e sobre as maneiras de

suas aparies. Opera-se um estudo do olhar sobre os monstros; da passagem do olhar

curioso ao olhar cientfico sobre os corpos anormais. Nesse sentido,

A histria dos monstros , portanto, no s aquela dos olhares postos

sobre eles: a dos dispositivos materiais que inscreviam os corpos

monstruosos em um regime particular de visibilidade, a histria tambm

dos sinais e das fices que os representavam, mas tambm a das

emoes sentidas vista dessas deformidades humanas. Levantar a

questo de uma histria do olhar diante desta ltima deixa entrever uma

mutao essencial das sensibilidades diante do espetculo do corpo no

decorrer do sculo XX. (COURTINE, 2008, p.256, grifo nosso).

12

Au banc des accuss, un nom revient avec insistance, qui aurait valeur dexplication: la tlvision, et ses effets pervers. Les images corrompent les mots, la politique-spectacle dnature le dbat dides : la dmocratie serait malade de sa communication. Lexplication est trop simple pour rendre compte de la gnralit de la crise, trop facile pour dire sa complexit ; on peut concevoir cependant quune telle raison soit avance : la tlvision est le lieu et le moyen dune mutation profonde de lloquence politique. Une forme de parole publique, constitue avec la Rvolution franaise, fonde sur une rfrence aux orateurs

antiques, conue sur le modle du thtre et qui il y a peu de temps encore faisait le lien entre lhomme politique et le citoyen, finit de seffacer sous nos yeux, non sans nostalgie ni dsarroi. Elle laisse la place des styles de communication radicalement nouveaux. (COURTINE, 1990, p. 153, grifo nosso).


A preocupao de Courtine (2008) pousa na questo de como os sinais dos

fenmenos vivos passam a ser representados e enxergados diferentemente ao longo da

histria, mais especificamente em um perodo de trs sculos. Baseado nas particularidades

do olhar e tendo por objetivo definir o horizonte de seu trabalho, Courtine apoia-se em

Goffman (apud COURTINE, 2008, p. 332): o anormal questo de percepo, o estigma

reside no olho de quem observa. Para traar o percurso do olhar sobre os handicaps,

necessrio lanar mo de um dispositivo terico que tenha a funo de interpretar a

representao do corpo deformado. Esse trabalho s vivel se for atravessado por uma

semiologia. A definio desta semiologia (histrica) poder contribuir com Anlise do

Discurso na medida em que se mostrar disposta a articular a questo do sujeito com os

elementos scio-histricos, sobretudo quando se trata de focalizar os sinais do corpo. Dessa

maneira, preciso problematizar a teoria semiolgica que subjaz s propostas de Courtine

(1987a; 1987b; 1989; 1990; 1991a; 1991b; 2008) e Courtine e Haroche (1995), no

teorizada explicitamente mas no plano de fundo de suas anlises. A preocupao com os

signos visuais, nos trabalhos de Courtine, surgiu em alguma medida ainda no contexto da

Anlise do Discurso (a voz, o gesto, a imagem do homem pblico) e depois foi desdobrada

para seus novos trabalhos (no contexto das feies humanas, e, em seguida, das marcas

corporais das deformidades).

A ressignificao da arte: uma breve anlise

Como afirmamos anteriormente, o objeto da Anlise do Discurso foi se modificando

ao longo de sua histria, e a mdia sempre se configurou como um territrio muito frutuoso

para a apreenso dos sentidos e dos discursos. Com a popularizao da internet, a partir dos

anos 1990, as ciberprticas foram se incorporando, cada vez mais, ao cotidiano do homem

moderno. A internet configura-se, portanto, como suporte produtivo de comunicao e

discurso, e a tela envolve os objetos e os sujeitos com a teia da interconexo. A alterao da

concepo espao-temporal e as inovaes nas prticas culturais marcam a importncia das

mquinas nos tempos de hoje.

Por que investigar as novas tecnologias a partir dos estudos da linguagem e, mais

especificamente, da Anlise do Discurso? Para responder a essa pergunta, devemos nos


deter no advento das novas tecnologias de comunicao e na relao que elas traam com

os regimes de linguagem e de prticas sociais. Por que tom-las, ento, como objetos de

discurso? Porque difcil imaginar nosso cotidiano hoje sem as tecnologias. Inmeras

prticas, possveis a partir do uso de determinadas tecnologias, passaram a ser normalizadas

socialmente. Lemos jornais na Internet. Fazemos compras pela rede. Checamos e-mail

praticamente todos os dias. Trabalhamos no computador. Mantemos contatos pessoais

atravs de mensagens instantneas. No apenas isso: o acesso ao mercado de trabalho exige

dos cidados o que costumamos chamar de alfabetizao digital. No dispor de noes

bsicas de informtica e no ter acesso s informaes disponveis na rede se tornou mais

uma modalidade de excluso social, denominada analfabetismo digital.

A partir dos trabalhos de Jenkins (2008), possvel afirmar que, atualmente, as

velhas e as novas mdias colidem; a mdia cooperativa e a mdia alternativa se cruzam; o

poder do produtor de mdia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisveis.

Seu livro, Cultura da convergncia, esboa a relao entre trs conceitos: convergncias

dos meios de comunicao, cultura participativa e inteligncia coletiva. O primeiro

conceito refere-se ao fluxo de contedos atravs de mltiplos suportes miditicos,

cooperao entre mltiplos mercados miditicos e ao comportamento migratrio dos

pblicos dos meios de comunicao, que vo [...] em busca das experincias de

entretenimento que desejam. (JENKINS, 2008, p.27). Isso implica reconhecer que um

suporte miditico no necessariamente supera outro, mas convive com ele; por exemplo,

no se pode dizer que o computador superou a tev, ou ento que o jornal on-line superou o

impresso. Eles coexistem e devem se adaptar de acordo com as necessidades de seu

pblico. O segundo conceito cultura participativa segundo Jenkins (2008, p.28),

contrasta com as noes mais antigas sobre a passividade dos espectadores dos meios de

comunicao. Para ele, em vez de falarmos sobre produtores e consumidores de mdia

como ocupantes de papis separados, podemos agora consider-los como participantes

interagindo segundo um novo conjunto de prticas. A inteligncia coletiva, por fim seu

terceiro conceito, designa a soma dos conhecimentos tornados acessveis a partir do

trabalho de reunio das parcelas de sabedoria que os indivduos possuem separadamente.

Nenhum de ns pode saber tudo, cada um de ns sabe alguma coisa; e podemos juntar as

peas, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades. (JENKINS, 2008,


p.28). A produo coletiva de significados no retrata melhor o estado atual de nossa

relao com a internet, por exemplo. Usurios distintos, desconhecidos, distantes, porm

conectados, compartilham informaes de modo que a soma das partes (dos conhecimentos

limitados de cada um) contribui para a construo de uma totalidade (um mosaico, um

quebra-cabeas semi-terminado). nesse contexto de convergncia que nos deparamos

com o seguinte enunciado:

Figura 2 Muchacha ante central trmica

Fonte: Lpez (2006).

Tendo em vista que a internet mescla os papis de produtores e consumidores em

um s sujeito, demonstraremos a seguir de que maneira isso ocorre por meio da

ressignificao de uma pintura espanhola. Consideremos, portanto, a figura 2: ela uma

pardia (construda por meio da manipulao imagtica) do quadro Moa janela do pintor

Salvador Dal. Originalmente, a moa encontrava-se diante de uma paisagem em que se via

somente o mar, um pedao de terra e o cu. Nessa pardia realizada por Jherlyn Lpez,

intitulada Muchacha ante central trmica, disponvel no site Consume Hasta Morir e

extrada de um conjunto de imagens que tm por objetivo realizar uma crtica ao


consumismo percebemos efeitos de trucagem que so tpicos do gnero fotogrfico,

porm, na internet, essa tcnica tambm se estende a qualquer tipo de imagem. Na imagem

retratada pela manipulao, a moa encontra-se diante de uma central trmica. As usinas

termeltricas, como sabemos, so instalaes industriais usadas para gerao de eletricidade

a partir da energia liberada em forma de calor. No entanto, a termoeletricidade tambm

causa impactos ambientais e contribuem para o aquecimento global. Paradoxalmente, o

aparelho de tev disposto ao lado da moa est ligado (muito provavelmente com a energia

produzida pela termeltrica prxima) e retrata uma paisagem natural. Essa pardia

atravessada pelo discurso do meio ambiente que se instaura na tenso entre as figuras da

termeltrica e do cenrio paradisaco que aparece na tela do aparelho de tev. Alm disso,

esse discurso estabelece um dilogo com a memria da obra original de Dal.

Segundo Foucault (2007, p.110), um enunciado tem sempre margens povoadas de

outros enunciados. Muitos outros enunciados perpassam a figura 2 atravs dos fios de

memria que trazem para a cena o pr-construdo do que uma pintura ou de como lidamos

com a natureza. A insero da central trmica (enquanto representao imagtica de uma

central trmica, com suas torres expelindo fumaa) e da tev retratando o paradisaco

inscreve esse enunciado em um discurso de crtica ao nosso atual modus vivendis e ambos

os elementos atuam como predicadores do enunciado.

Num primeiro momento, nosso olhar dirigido s torres da termeltrica (a batida

do olhar), pois so elas os elementos mais contrastantes com a obra original de Dal elas

substituem o cenrio paradisaco admirado pela moa na janela, alm de ocuparem grande

parte do centro da composio. Num segundo momento, notamos o aparelho de tev,

alojado em um suporte simples, que ocupa um lugar marginal na composio; contudo, ele

fundamental para a constituio dos sentidos e para a inscrio do enunciado imagtico

no discurso anti-consumista do qual faz parte. O efeito de sentido de pardia,

paradoxo, ou incongruncia conseguido pelas seguintes fases de apreenso do

quadro:


i. No quadro original de Dal, a moa admira a paisagem natural;

ii. Na pardia, a moa olha para as torres poluidoras da termeltrica;

iii. A paisagem natural que deveria atuar sob a forma de memria na pardia

materializada (est presente) na tela da tev, atingindo o efeito de

incongruncia, ou degradao ambiental.

como se o tempo tivesse passado, e no local onde havia terra e mar, agora h

prdios e fontes de energia. Somente a mulher no centro da composio permanece a

mesma. Tendo em vista que a arte a memria grfica do tempo e retrato de cada poca, a

imagem de Lpez faz colidir o representado, a realidade e a memria em uma materialidade

que resgata a) a pintura do grande mestre espanhol, b) uma tcnica fotogrfica de

manipulao, e c) e um meio digital de circulao. Esses trs elementos servem de base

para o estabelecimento de um discurso de crtica ao sistema poltico e econmico que

promove a aquisio competitiva de riquezas comprometendo os recursos naturais e o

equilbrio ecolgico. Esses objetos complexos se apresentam cada vez mais aos trabalhos

de Anlise do Discurso. Efetuar deslocamentos e/ou dialogar com outros domnios do saber

uma alternativa perda de fecundidade da teoria.

Consideraes finais

O campo da Anlise do Discurso, atualmente, debrua-se sobre os mais variados

objetos. Alm disso, cada vez mais, a problemtica das prticas discursivas na rede tem

chamado a ateno dos pesquisadores. O desafio desse domnio do saber (a AD)

justamente tentar interpretar esses objetos contemporneos sem se desligar dos

pressupostos que originaram e nortearam a Anlise do Discurso (a articulao dos discursos

com os sujeitos, com o histrico-social, com a memria, com a linguagem). O dilogo entre

a Anlise do Discurso e algumas vertentes semiolgicas, principalmente a semiologia

histrica, est apenas no incio. O que fizemos, ao observar a ressignificao da arte no

ciberespao por meio da teoria discursiva, foi aproximar a ordem do discurso e a ordem do

olhar.


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