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1 - Anjo Negro. Autor: Nelson Rodrigues. 2 - A morte de Ivan Ilitch. Autor: Leon Tolstoi.(estrangeiro) 3 - Menino do Mato. Autor: Manoel de Barros. 4 - Sagarana: São Marcos e A volta do Marido Pródigo. Autor: Guimarães Rosa. 5- O Abraço. Autora: Lygia Bojunga. 6 - Hídrias. Autora: Dora Ferreira da Silva 7 - Felicidade Clandestina. Autor: Clarice Lispector(10 primeiros contos) 8 - Clara dos Anjos. Autor: Lima Barreto. 1- Anjo Negro, de Nelson Rodrigues Antes de ler o comentário do livro observe: O elemento que direciona todas as ações humanas nesta obra de Nelson Rodrigues é a sexualidade, apresentada sempre de forma corrompida. O sexo está o tempo todo relacionado à violência e ao desejo proibido. Parece haver uma preocupação do autor em perturbar o leitor, utilizando o choque para trazer à tona tudo o que está velado na sociedade. Trata-se de uma tragédia com um desfecho inesperado: embora tudo induza ao fato de que Virgínia será morta pelo marido, a história termina com a morte da filha de Virgínia, tramada pela própria mãe com a ajuda de Ismael. Escrita em 1946, Anjo Negro rompe com características até então comuns ao teatro brasileiro, como a unidade temporal (história transcorrida ao logo de apenas um dia). Gênero - Literatura Dramática Narrador -Na literatura dramática não há um narrador, pois a história é contada em forma de diálogos. Personagens principais Ismael: Médico. Homem negro, inescrupuloso e violento. -Profundamente recalcado em função de sua cor, diz à filha (Ana Maria) que é branco e a cega para que não perceba a realidade. Da mesma forma, há indícios de que tenha cegado o irmão de criação, branco, por uma ardilosa troca de remédios. Ismael ama o branco ,mas com violência, o que fica claro pelo isolamento a que submete a mulher para que ninguém a veja. Virgínia: Mulher de Ismael, branca, vítima da violência sexual do marido. Logo no início da trama, ela deseja o noivo da prima com quem é criada e se deixa possuir por ele. Ao descobrir a traição, a prima se enforca e a tia de Virgínia, para se vingar pela morte da filha, promove o estupro da sobrinha por Ismael. Virgínia desenvolve a arte da sobrevivência por meio da sexualidade, que é o que vai salvá-la no fim da trama. Ana Maria: Filha branca de Virgínia, fruto de sua relação extraconjugal com Elias, irmão de criação de Ismael. Inexpressiva na obra, aparece apenas no terceiro ato. É enganada e abusada sexualmente por Ismael. Elias: Irmão de criação de Ismael, branco. Tudo indica que foi cegado pelo irmão. Tia (de Virgínia): Mulher vingativa, cruel e superprotetora das filhas. Tempo Não fica claro em que momento transcorre a história. Do segundo para no terceiro ato,

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Page 1: Análise Livros

1 - Anjo Negro. Autor: Nelson Rodrigues. 2 - A morte de Ivan Ilitch. Autor: Leon Tolstoi.(estrangeiro) 3 - Menino do Mato. Autor: Manoel de Barros. 4 - Sagarana: São Marcos e A volta do Marido Pródigo. Autor: Guimarães Rosa. 5- O Abraço. Autora: Lygia Bojunga. 6 - Hídrias. Autora: Dora Ferreira da Silva 7 - Felicidade Clandestina. Autor: Clarice Lispector(10 primeiros contos) 8 - Clara dos Anjos. Autor: Lima Barreto. 1- Anjo Negro, de Nelson Rodrigues Antes de ler o comentário do livro observe: O elemento que direciona todas as ações humanas nesta obra de Nelson Rodrigues é a sexualidade, apresentada sempre de forma corrompida. O sexo está o tempo todo relacionado à violência e ao desejo proibido. Parece haver uma preocupação do autor em perturbar o leitor, utilizando o choque para trazer à tona tudo o que está velado na sociedade. Trata-se de uma tragédia com um desfecho inesperado: embora tudo induza ao fato de que Virgínia será morta pelo marido, a história termina com a morte da filha de Virgínia, tramada pela própria mãe com a ajuda de Ismael. Escrita em 1946, Anjo Negro rompe com características até então comuns ao teatro brasileiro, como a unidade temporal (história transcorrida ao logo de apenas um dia). Gênero - Literatura Dramática Narrador -Na literatura dramática não há um narrador, pois a história é contada em forma de diálogos. Personagens principais Ismael: Médico. Homem negro, inescrupuloso e violento. -Profundamente recalcado em função de sua cor, diz à filha (Ana Maria) que é branco e a cega para que não perceba a realidade. Da mesma forma, há indícios de que tenha cegado o irmão de criação, branco, por uma ardilosa troca de remédios. Ismael ama o branco ,mas com violência, o que fica claro pelo isolamento a que submete a mulher para que ninguém a veja. Virgínia: Mulher de Ismael, branca, vítima da violência sexual do marido. Logo no início da trama, ela deseja o noivo da prima com quem é criada e se deixa possuir por ele. Ao descobrir a traição, a prima se enforca e a tia de Virgínia, para se vingar pela morte da filha, promove o estupro da sobrinha por Ismael. Virgínia desenvolve a arte da sobrevivência por meio da sexualidade, que é o que vai salvá-la no fim da trama. Ana Maria: Filha branca de Virgínia, fruto de sua relação extraconjugal com Elias, irmão de criação de Ismael. Inexpressiva na obra, aparece apenas no terceiro ato. É enganada e abusada sexualmente por Ismael. Elias: Irmão de criação de Ismael, branco. Tudo indica que foi cegado pelo irmão. Tia (de Virgínia): Mulher vingativa, cruel e superprotetora das filhas. Tempo Não fica claro em que momento transcorre a história. Do segundo para no terceiro ato,

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há um hiato de aproximadamente 15 anos. Espaço -Não há nenhuma referência à paisagem externa. Toda a história se passa no quintal, na frente e dentro da casa de Ismael. Vejamos agora o comentário total da obra Anjo Negro, de Nelson Rodrigues Anjo Negro, peça teatral de Nelson Rodrigues, foi escrita em 1946. O autor ao perceber o preconceito de que o negro é alvo na sociedade brasileira e a existência de preconceito no negro em relação a outro da mesma cor, resolveu escrevê-la. Naquela época, o Brasil encontrava-se em um período de grandes modificações na organização do estado brasileiro, saindo de um período de bastante restrição ideológica e entrando num período onde reinava a esperança em um país desenvolvido e livre. Tem-se uma modificação evidente, um período conturbado na esfera social, modificações na maneira de governar. Uma outra razão de Nelson Rodrigues escrever Anjo Negro foi porque achava um absurdo o negro ser representando no teatro apenas como o “moleque gaiato” das comédias de costumes ou por tipos folclorizados. Por isso, criou um personagem – Ismael – de classe média, inteligente, mas também com paixões e ódios, ou seja, “um homem, com dignidade dramática”, enredado em situações proféticas e míticas. O autor, em várias ocasiões, afirma ter escrito o personagem para seu amigo Abdias representar, pois, segundo ele, era o “único negro do Brasil” .O protagonista de Anjo negro, Ismael, é audacioso, Nelson não faz concessões. Sem paternalismo, concebe um personagem na contramão dos personagens negros que geralmente se conhece: não é moleque, malandro ou empregado subalterno, trata-se aqui de um homem cheio de ressentimentos e paixões, mas também de orgulho e sensibilidade, um vencedor, bem-sucedido, arquiteto do seu destino. A questão racial é tratada de forma radical. Numa sociedade dominada pelo branco, a única estratégia possível de inserção é a adoção da ética branca, dominadora e autoritária. Repudiando sua cor e origem, Ismael desfruta dos privilégios do branco: dinheiro, status, prestígio e uma mulher também branca. A peça é apresentada em três atos. Em sua primeira encenação o cenário apresentou-se sem nenhum caráter realista: um pequeno caixão de seda branca ocupava o andar térreo da casa onde dez senhoras pretas se postaram em semicírculo e formaram um coro, como no teatro grego. No segundo andar, duas camas, uma delas quebrada, ajudavam a compor o cenário. No primeiro andar, Ismael, o negro que representa o anjo, vestia um terno branco, engomadíssimo, e calçava sapatos de verniz. No andar de cima, Virgínia, sua esposa, branca, trajava luto. “A casa não tem teto, para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro” (p.125). É nesse cenário que se inscreve o drama, que também reproduziu cenas da infância do autor em Aldeia Campestre, Rio de Janeiro, onde morou. Quando criança, Nelson não perdia velórios. O drama humano o instigava: ora curioso por capturar o desespero de mães que choravam a perda dos filhos, ora curioso para perceber a sinceridade ou não das viúvas que choravam a morte dos maridos. O espaço onde, consideradamente, desenrola-se Anjo Negro é, pois, um espaço

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marcadamente diferenciado. A entrada de pessoas no lar é completamente restrita e coordenada pelo dono, o negro, o anjo negro, Ismael. Brancos não podiam se aproximar. Na trama de Anjo Negro, pulula a violência, nas suas mais diversas formas, das mais variadas naturezas, em constantes situações. As personagens são violentas entre si, sofrem a violência, vivem-na. Há vinganças recíprocas e intermináveis. Há ódio dissimulado no amor. Amor dissimulado no ódio. Ou somente um desejo, que gera violência. A história de Anjo Negro apresenta-se, assim, como uma rede truncada de muita violência. Apesar de ser formalmente bem mais semelhante à tragédia clássica, é difícil organizar Anjo Negro dentro dos padrões trágicos. Ismael também é movido por amor, e esse exagero de amor o faz incorrer em erros ainda mais graves, como o assassinato da filha; mas seu maior erro é o preconceito com sua cor. Se tratar-se Virgínia como heroína, teríamos uma estrutura semelhante à de seu marido; seu erro seria o mesmo, é o preconceito da cor, mas depois do casamento, ele se torna repugnante a ela que, por ódio, mata seus filhos. Mas eles não cometem seus erros sem ter consciência de que os estão cometendo, é eticamente inadequado discriminar alguém por sua cor e eles sabem disso; contudo é difícil considerá-los personagens maus, por que a sociedade em que estão inseridos é fortemente racista o que quase os impele para o erro. Então volta-se a ter o dilaceramento entre o individual e o social. O indivíduo, no caso Ismael, sabe que tem a mesma capacidade que os brancos, mas a sociedade não acredita nisso. Ismael se embate nesse conflito e para provar que é capaz, se forma em medicina, mas para se valorizar não busca a valorização de sua cor, mas a negação dela; ele passa a sentir branco e agir como tal discriminando os negros; desta forma ele nega o individual para dar lugar ao social. Essa estrutura formal provoca um estranhamento grande, pois não se formam duas forças de igual valor moral; uma é o funcionamento normal e equivocado da sociedade; outro é a valorização de uma cor tão boa quanto todas as outras. O destaque que Ismael recebe também reforça esse estranhamento, mostra o quanto ele é capaz, mas mesmo assim discriminado por ser negro. A presença do coro de mulheres negras que amaldiçoam o negro que casou com a branca também mostra que há discriminação pelos dois lados, as duas cores tentam desvalorizar a outra a fim de valorizar a sua, isso fica evidente quando o coro afirma que Virgínia tem o útero fraco. Todavia, Nelson Rodrigues usa muitos aspectos formais clássicos, como o uso do coro, com a função de trazer para o palco a opinião do senso comum sobre a situação apresentada; nesta peça ele é feito por um grupo de senhoras negras, como já visto, que rezam no velório dos filhos do casal. Também tem-se a perfeita unidade de espaço, só existe a casa de Ismael e Virgínia, não há mundo exterior. O tempo já é mais extenso, tem-se o nascimento e crescimento de Ana Maria, que não é totalmente apresentado, isso faz com que se perca também a unidade de ação; obviamente, sem que isso prejudique a qualidade da peça. A condição de Ismael enquanto homem superior é bastante delicada, ele é um excelente médico o que lhe garante grande prestígio social, também é esforçado, venceu por meio de seus próprios esforços às adversidades que a vida lhe trouxe, mas renegou a família e faz de sua esposa uma prisioneira, além de ser cruel com todos à sua volta. Também não tem uma posição de liderança, ele só se impõe à esposa. Mas o seu erro também foi o motivo que lhe trouxe prestígio. Ele erra por ter vergonha de sua cor, mas ele também se esforça e vence na vida por isso mesmo. Ele quer compensar sua cor com qualidades que quase só os brancos têm neste momento histórico. Ele tem a trajetória

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do herói trágico, durante a peça, passa da fortuna ao infortúnio. Na morte do filho, no primeiro ato, ele é um homem de prestígio apesar de marcado pela tristeza da perda de todos os filhos. Já no final acabam só ele e a esposa partindo para uma morte em vida, após os dois terem matado seus filhos; ela, os meninos e ele, a menina. Virgínia, sua esposa, assassina por afogamento, um a um os filhos que trazem em si a marca da mestiçagem e odeia a filha, fruto do adultério com o cunhado Elias. Ela não quer que haja descendência do negro, seu marido. Ismael é testemunha dos crimes da mulher e acreditava que esses crimes os uniam ainda mais. Isso fica claro quando, próximo ao final da peça, Ismael diz a Virgínia saber ser ela a assassina dos filhos e que, mesmo assim, nada fez para impedir o ato. Ambos recusavam a mestiçagem, os traços negros na pele. Tal qual na tragédia grega, a maldição atinge a descendência. A mãe de Ismael o teria amaldiçoado por este repudiar a própria cor e ele a culpa por ser negro, problema que tentou disfarçar tornando-se um médico competente e rico. Acreditava que, alcançado status, poderia encobrir o fato de ter a pele negra. Ismael, por sua vez, rejeita sua cor. A inveja que sentia de seu irmão branco, de criação, Elias, leva-o a cegar Elias, ainda na infância, através de uma engendrada troca de remédios. É também pelas mãos de Ismael que Elias morre, num ato de vingança pela traição sofrida, uma vez que Elias cedeu à sedução de Virginia. A singularidade Ismael contrasta com a grande galeria de homens e mulheres rodriguianos, onde, em determinado momento da ação, os personagens retiram as máscaras e se apresentam, inesperadamente, na mais completa nudez psíquica. O que faz uma pessoa renegar a própria cor? Este é o questionamento rodrigueano expresso pela voz de Elias. Decidido a "se tornar branco", Ismael executa, com êxito e sem remorso, sua estratégia. Com formação superior, era um "médico de mão cheia, de muita competência, o melhor de todos"; casou-se com uma mulher branca e muita linda e renegou a mãe negra, causadora de sua desgraça. Vestia-se sempre de branco, impecável. Quando a peça começa, Virgínia e Ismael estão casados, tiveram três filhos negros, mas todos foram mortos por ela. Tendo sido violentada por Ismael, obrigada a se casar com ele e encarcerada dentro de casa, Virgínia aguarda o momento da vingança definitiva, gerar um filho branco. Enquanto transcorre o velório do terceiro filho, chega à casa Elias, o irmão de criação de Ismael, branco e cego, trazendo a maldição da mãe negra. Seduzido por Virgínia, Elias é em seguida morto por Ismael. Ela engravida e dá a luz uma menina branca. Ismael, durante meses, se debruça sobre o berço para que a menina não esqueça sua cor e, completando seu plano, um dia pinga ácido nos olhos dela, cegando-a. Assim, Ana Maria jamais saberia que o pai é negro. Pai e filha desenvolvem uma paixão desmedida. Ela acredita que o pai é branco e que todos os outros homens são negros e perversos. Dezessete anos depois, Ismael constrói um mausoléu para viver com a filha, onde nenhum desejo de branco pudesse alcançá-la, mas Virgínia enlouquece vendo-se substituída pela filha e consegue convencer Ismael a abandonar Ana Maria sozinha no túmulo de vidro. Juntos continuam, Virgínia e Ismael, a gerar filhos negros que serão mortos. O negro também cega, em bebê, Ana Maria, filha do único relacionamento entre Virginia e Elias, para que ela, impossibilitada de comprovar a “verdade”, acredite ser Ismael o único branco do mundo. Com isso, fomenta na enteada o amor e a admiração não

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alcançados com a esposa. Os três infanticídios, os dois cegamentos, o assassinato, a impressão de Virginia de estar sendo violentada ao ter relações sexuais com o marido, além do confinamento de Ana Maria num mausoléu – engendrado por Virginia e Ismael ao final da peça – delineiam a trama de Anjo Negro. Ismael não consegue disfarçar nem superar as contradições de um corpo marcado insistentemente pelo efeito da voz que, em seu ato complexo de vocação e invocação, reproduz o efeito do olhar, inscrito historicamente por um passado escravista. Paralisado, ele não consegue alçar à condição de desejante, sujeito este capaz de sustentar suas escolhas, com todas as particularidades que uma posição assim nos revela e nos exige em termos de renúncia. O que, na peça, é fadado ao silêncio? O que não pode ser mostrado e, ao mesmo tempo, é explicitado no texto? Nelson aponta para a problemática racial em que, certamente, se articulam os subsídios para uma teoria social do Brasil, onde se destaca a violência como fator de base dos fundamentos estruturais do modelo étnico-social brasileiro. A peça explicita a vivência de amor/ódio num casal interrracial e a ambiguidade diante de sua linhagem mestiça. O estilo poético-realista de Nelson Rodrigues revela, de maneira perturbadora, temas adormecidos no inconsciente. Ele revolve esse universo profundo do espectador trazendo à consciência o recalcado e utiliza-se da tragédia para falar do racismo. Assim, remete-nos ao drama grego: a tragédia, pois somente o trágico daria conta de desvendar essa realidade brasileira relegada às trevas – o racismo. Algo da ordem do trágico, tal qual é explicitado no drama grego, pode estar muito próximo de nós, se considerarmos que, enquanto humanos, vivenciamos as emoções que o perpassam. Qual o significado de Ismael? LEIA COM ATENÇÃO.... Narciso é aquele que se apaixona pela própria imagem, Ismael vota uma profunda aversão à imagem de si mesmo. O que os vincula é que ambos tornam-se prisioneiros de suas imagens. A ascensão social funciona para Ismael como uma válvula de escape da sua condição subalterna. Isso porque a sua subalternidade está carimbada na cor da pele, vestígio indelével da ancestralidade escrava. Ascender socialmente é para ele embranquecer. O índice desse embranquecimento está no texto. É o que se verifica no diálogo sobre Ismael que se estabelece entre o cego, recém chegado a casa, e os quatro coveiros negros, que estão lá para levar o corpo morto do filho do dono da casa para o cemitério. "Cego ─ Preto, não é preto? "Preto ─ Mas de muita competência! (para os outros) Minto? "Preto ─ Não tem como ele! "Preto ─ Viu? Doutor de mão cheia! "Preto ─ Mas tome um conselho; não fale em preto, que ele se dana! "Cego (para si mesmo) ─ Quer ser branco, não perde a mania." (RODRIGUES, 1993: 574-575) Trata-se, pois, de um "preto", "mas de muita competência". A competência ameniza a negritude. A marca textual está também na confidência que Virgínia, a esposa branca, faz a Elias, o cunhado cego: "Foi aí que Ismael apareceu, primeiro como médico, depois

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como amigo também. 'Preto, mas muito distinto', diziam; e depois, doutor. Em lugar do interior isso é muito." (RODRIGUES, 1993: 587) A adversativa compensa o signo negativo (ser preto) com o positivo (ser competente, ser distinto) que está associado ao fato de ser doutor (o que é muito valorizado socialmente). Anjo Negro tem sua peculiaridade na denúncia do racismo à brasileira. Em nenhum momento o negro é visto como uma etnia afro-brasileira. A questão étnica implica combinar características morfológicas como tipo de cabelo, cor da pele e traços fisionômicos com características culturais. No racismo à brasileira, no entanto, a questão racial é estetizada plasticamente. São tão só traços estéticos da plástica racial que diferenciam o negro na sociedade dos brancos. Os traços culturais são apagados. Em Anjo Negro, não há referências a eles. Desse modo, a alienação do negro fica acentuada. O almejado processo de embranquecimento já se realizou no plano cultural. O negro introjetou a cultura da sociedade branca e não deixou rastros de sua cultura originária. Tem-se, então, um negro de alma branca que não pode se conformar com suas características morfológicas. A questão que chama à reflexão é a de até que ponto esse apagamento cultural é o reflexo de uma realidade social, até que ponto ele é a expressão de um modo de ver conservador que não vai além da simples aparência do outro, o diferente? Paradoxalmente, a ascensão social aprofunda a solidão do negro, na medida em que o introduz como um estrangeiro no mundo dos brancos, acentuando o contraste claro-escuro, que já não há como eludir, e propiciando o isolamento do diferente. Por isso Ismael se refugia com Virgínia, a mulher que ele desvirginara, na casa cercada por "grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro": "Virgínia (com espanto) ─ Esperava você! Só posso esperar você, sempre. Só você chega, só você parte. O mundo esta reduzido a nós dois ─ eu e você. Agora que TEU filho morreu. "Ismael (com certa veemência) ─ Mas não foi isso que você quis? Quando aconteceu AQUILO, aí do lado (indica o leito próximo) que foi que você disse? "Virgínia ─ Não sei, não me lembro, nem quero. "Ismael ─ Disse que queria fugir de tudo, de todos; queria que ninguém mais visse, que ninguém mais olhasse para você. Ou não foi? "Virgínia ─ Depois do que aconteceu ali ─ se alguém me visse, se alguém olhasse para mim eu me sentiria nua... "Ismael ─ Então, eu te falei nesses mausoléus de gente rica, que parecem uma pequena casa. Que foi que você respondeu? "Virgínia (mecânica) ─ Respondi: 'Eu queria estar num lugar assim, mas VIVA. Um lugar em que ninguém entrasse. Para esconder minha vergonha.' "Ismael ─ Era isso que eu queria, também. E quero esse lugar, essa vida. Por isso criei todos esses muros, para que ninguém entrasse. Muros de pedra e altos. "Virgínia (com espanto, virando-se para o marido) ─ O mundo reduzido a mim e a você,

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e um filho no meio ─ um filho que sempre morre. "Ismael ─ Sempre." (RODRIGUES, 1993: 578-579) Virgínia é vítima de Ismael, mas é também a sua cúmplice. Ambos têm vergonha: ela, por ter sido possuída por um preto; ele, por ser preto. Virgínia é a mãe que mata os filhos. Ela os mata porque são filhos de preto. A eliminação dos filhos é a metáfora da impossibilidade da assimilação dos negros pela sociedade dos brancos. Mas Ismael é cúmplice de Virgínia. Ele nada faz para impedir a morte dos filhos, porque também os rejeita por serem pretos. Virgínia diz para ele: "Ismael, os teus filhos têm o teu rosto!" E reafirma: "Quantos vierem terão o teu rosto!" (RODRIGUES, 1993: 579) E Ismael tem horror ao espelho. Ismael é o castigo de Virgínia. Ela mereceu esse castigo por ser bonita. A beleza leva o noivo de sua prima a desejá-la. É a beleza também que faz Ismael sentir-se atraído por ela. Pode-se dizer que a beleza é a sua maldição. Nos marcos da família patriarcal, a única alternativa fora do casamento é a prostituição. A possibilidade não é descartada. A filha da empregada se prostituíra e, mesmo ajudada por Virgínia, não quisera abandonar o prostíbulo. Virginia descreve para Ana Maria, sua filha, esse lugar encantado do onde as putas não querem sair: "(adoçando a voz) Nós poderíamos ir ─ nós duas ─ a um lugar que eu conheço. Foi uma empregada minha que me falou. Ela teve uma filha que foi para lá; e a filha escrevia contando maravilhas, tanto que não voltou nunca mais. Para esse lugar vinham homens de todas as partes, até da Noruega! (encantada) Marinheiros, de cabelos louros, anelados..." (RODRIGUES, 1993: 617-618) Mas, chegada a ocasião, expulsa de casa por Ismael, Virgínia confessa: "Eu não sabia que te amava, mas minha carne pedia por ti". (RODRIGUES, 1993: 621) Aparece aqui, então, o mito do homem negro como objeto do desejo sexual feminino, mito sexual com o qual a sociedade patriarcal dos brancos tem dificuldade de lidar: "Virgínia (fora do tempo) ─ Quando me tapaste a boca ─ na primeira noite ─ sabes de que é que me lembrei? Apesar de todo o meu terror? (deslumbrada) Me lembrei de quatro pretos, que eu vi, no Norte, quando tinha cinco anos ─ carregando piano, no meio da rua... Eles carregavam o piano e cantavam... Até hoje, ainda os vejo e ouço, como se estivessem na minha frente... Eu não sabia por que esta imagem surgira tão viva em mim! Mas agora sei. (baixa a voz, na confidência absoluta) Hoje creio que fosse esse meu primeiro desejo, o primeiro." (RODRIGUES, 1993: 621) Virgínia descobre que a casa murada na qual se isolara com Ismael é o seu lugar encantado. Mas Ismael deve escolher entre Virgínia e Ana Maria, a cega. É a escolha entre aquela que o enxerga, que o sabe negro, e a outra que o idealiza. A opção por Virgínia, é a metáfora da superação da alienação. Temos aí a vitória da balzaquiana, experiente, sobre a jovem, ingênua. Ao matar Ana Maria, ajudado por Virgínia, Ismael está escolhendo o caminho do reconhecimento da sua negritude. Essa opção torna-se possível para Ismael quando Virgínia o faz ver que é desejado e que o desejo que desperta está ligado à sua condição de negro. 2- A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói

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Análise da obra A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, novela publicada em 1886, retrata com uma aguda profundidade o tema da morte e o sentido da vida, personalizada em Ivan Ilitch, um juiz russo que na antecâmara da morte faz uma reflexão profunda sobre todas as etapas da sua vida desvendando-se a si próprio. Nessa magistral obra-prima, considerada por Vladimir Nabokov como a mais artística, mais perfeita e de mais sofisticada realização da história mundial, defrontamo-nos com o soberano do destino: o fim. A morte é uma prova final, aplicada a qualquer momento; e por mais que se creia não estar preparado, todos somos aprovados. Escarafunchando a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch, em breves 85 páginas, Tolstói brinda o leitor com o relato de um acerto de contas, revelando a futilidade do modelo de vida burguês. Será, preso ao leito, frente a morte certa, que a vida de Ivan Ilitch se revelará mais livre, mais autêntica e pujante. As preocupações corriqueiras, os afazeres mundanos impediram-no de pensar nela. É com espanto que, diante da morte iminente, atina que viveu uma vida de aparências, tanto no desempenho de seu trabalho, quanto no casamento e em suas demais relações sociais. Ivan Ilitch conclui que sua existência fora desprovida de um propósito mais significativo, que não passou daquilo que a sociedade, com seu mero jogo de interesses, de galgar posições de prestígio, de “parecer estar bem”, preconizava. Em resumo: uma autêntica vida de falsidades. Para seu desespero, até mesmo àqueles a quem julgava ser fundamental e amado, sua mulher e filhos, vivenciam sua convalescênça como sendo um capricho inexplicável (a mulher) ou um aperreio, um estorvo (sua filha). O sucesso profissional, o empenho pela manutenção da ordem, do status quo, daquilo que, aos olhos dos outros era tido como o “certo”, sempre fora o norte de sua “aparentemente” bem sucedida vida: “Não era um adulador, nem quando menino, nem quando homem feito, porém, desde a infância, sentira-se naturalmente atraído pelas pessoas que ocupavam posição elevada na sociedade, tal como mariposas pela luz, e assimilava-lhes as maneiras e as opiniões, forçando ainda relações amistosas com elas”. Ivan Ilitch dá um rosto à imprudência moderna. Ele é o juiz bem sucedido, que crê desempenhar perfeitamente o seu papel, ou seja, que “aplica” o Direito. Ele é o “escravo da lei”, a “boca da lei”, que no fundo no fundo sabe que tais coisas não existem, mas que age profissionalmente como se existissem. À semelhança dos médicos com os quais se depara ao longo de sua agonia e que, ali onde se encontra um homem a ser cuidado (um homem que sofre e que necessita de cuidados), só enxergam uma doença a ser eliminada, Ivan Ilitch também se mostra incapaz, durante toda sua vida como juiz, de levantar os olhos dos autos e dos códigos para ver os homens e seus problemas. Ele “aplica” o direito, mas não sabe (ou finge não saber) que o Direito não pode ser “aplicado” de uma forma mecânica. Sua prudência (no sentido moderno), que se manifesta em sua dócil submissão a um legalismo convenientemente apropriado ao carreirismo, é máxima imprudência (no sentido clássico). E por essa imprudência, Ivan Ilitch paga um preço alto. O preço da falta de sentido.

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Moribundo, reconstitui, na imaginação, suas origens, sua vida como estudante de Direito, os concursos públicos, as motivações que o levaram a eleger Prascóvia Fiódorovna como esposa: “Dizer que Ivan Ilitch se casou por ter se apaixonado pela moça e por ter encontrado nela compreensão para a sua concepção da vida, seria tão incorreto quanto afirmar que se consorciara porque a sua roda social aprovara o enlace. Esposou-a movido por suas próprias razões: o casamento lhe proporcionava particular satisfação e era visto como uma boa solução pelos seus amigosmais altamente colocados”. Nem por amor, nem somente por puro interesse, embora seja notória a importância que dava aos valores prezados pelos mais bem situados. O magistrado não encontrou felicidade no lar. Passado o breve mar-de-rosas que fora a lua-de mel, o matrimônio se revelou perturbador: “E, não mais que um ano após o casamento, Ivan Ilitch chegou à conclusão de que a convivência familiar, embora ofereça certas vantagens, era uma coisa verdadeiramente complexa e difícil, para a qual é preciso elaborar uma relação definida, tal como perante o trabalho, a fim de se poder cumprir honradamente o dever, ou seja, levar-se uma vida que, pela correção, a sociedade aprove”. Problemas de ordem prática, soluções igualmente práticas. Nada como refugiar-se no trabalho como forma de blindagem para evitar que algum incômodo nos perturbe e podermos assim, anestesiados, deixar a vida seguir seu curso, sob controle: “Todo o interesse da sua existência se concentrou no mundo judiciário e esse interesse o absorvia. A consciência da sua força, que permitia aniquilar quem ele quisesse, a imponência da sua entrada no tribunal, a deferência que lhe tributavam os subalternos, seus êxitos com superiores e subordinados e, sobretudo, a maestria com que conduzia os processos criminais e da qual se orgulhava – tudo isto lhe dava prazer e lhe enchia os dias, a par das palestras com os colegas, os jantares o [jogo] uíste. Assim a vida de Ivan Ilitch decorria da maneira que achava conveniente – agradável e digna”. Sobre o contentamento que o jogo lhe proporcionava, confidencia-nos o autor: “A alegria que Ivan Ilitch encontrava no trabalho era a alegria da ambição; as alegrias da vida social eram as da vaidade; mas as verdadeiras alegrias eram as proporcionadas pelo uíste”. Entreve-se mais um pouco da alma do corretíssimo juiz Ivan Ilitch: ambicioso, vaidoso e frívolo. Dentre as demais atividades nas quais encontrava prazer ocupavam-no uma inocente e tipicamente burguesa: a decoração e organização do lar; mas nem sequer nessa sua individualidade aflorava: “Teve a sorte, principalmente de poder comprar barato certas antiguidades, que emprestavam à casa um ar pronunciadamente aristocrático. (...) Na verdade, havia ali o mesmo que se encontra nas casas de gente remediada, mas que pretende aparentar opulência e apenas consegue que se pareçam extraordinariamente umas com as outras (...) enfim, tudo aquilo que as pessoas de certa classe possuem para parecer com as pessoas da mesma classe. A casa de Ivan Ilitch era uma perfeita imitação, mas ele a achava absolutamente original”. Tudo corria relativamente bem na pacata e irretocável vida de Ivan Ilitch. Até que um dia, envolvido na arrumação da nova casa, ansioso por demonstrar a um operário como queria que um serviço fosse executado, deu um passo em falso, escorregou duma escada e deu uma pancadinha de lado, na moldura da janela. Na hora, não

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sentiu muito, apenas uma dorzinha boba. Mas após esse episódio, as dores foram se tornando cada vez mais intensas e insuportáveis. Apesar de ter se submetido a renomados especialistas, nada pôde fazer. A morte o rondava. A inesperada condição de enfermo será extremamente favorável à observação, à avaliação isenta e imparcial dos relacionamentos cultivados com todos os que o cercavam, inclusive com seus colegas juízes. É com profundo desapontamento que Ivan constata que, indiferentes, a única coisa que importava mesmo era manter o enfadonho, mas necessário, protocolo de visitas e confabular sobre quem ocuparia o posto que ele deixará, bem como quem ficará com o cargo vago por aquele que o substituir, e assim por diante. Recapitulando seus valores, suas realizações e frustrações, conclui que “farinha do mesmo saco”, não teria agido diferente de seus interesseiros e ambiciosos amigos magistrados. Afundando num sofrimento desesperado, Ivan Ilitch se dá conta da insignificância de sua vida, da fragilidade de suas conquistas. Apesar de suas dores físicas serem terríveis, doía ainda mais a sua consciência moral. Próximo à finitude e com fome de imortalidade, a ânsia de encontrar propósito para sua breve e vulgar existência martelava lhe o cérebro. Foram três meses, de intensa agonia. Dependente de auxílio para tudo, inclusive para as constrangedoras necessidades fisiológicas, encontra na alma do singelo camponês Guerássin, ternura e, testemunha a bondade humana. Certa vez, agradecendo pelo desagradável préstimo, ouviu o mujique afirmar que fazia isso com prazer; que qualquer um faria. Essa ingenuidade o comovia profundamente. Acalmava lhe a presença desse prestativo enfermeiro. Sob o crivo de uma lucidez perturbadora, repassou sua vida: “E quanto mais longe da infância e mais perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera lhe pareciam insignificantes e vazias. A começar pela faculdade de direito. Nela conhecera alguns momentos realmente bons: o contentamento, a amizade, as esperanças. Nos últimos anos, porém, tais momentos já se tornavam raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, gozara alguns belos momentos: amara uma mulher. Em seguida tudo se embrulhou e bem poucas eram as coisas boas. Para adiante, ainda menos. E, quanto mais avançava, mais escassas se faziam elas. Veio o casamento, um mero acidente e, com ele, a desilusão, o mau hálito da esposa, a sensualidade e a hipocrisia. E a monótona vida burocrática, as aperturas de dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos. E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim – a sepultura me espera”. Sem que ninguém visse: “Chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade de Deus, que o abandonava”. Vulnerável, clamava por carinho, piedade e, em silêncio, nutria um desejo inconfessável para um homem de respeito: queria ser cuidado como se fosse uma criança. Buscar e encontrar o significado da vida é algo particular. O juiz Ivan Ilitch foi um homem que não atentou para a liberdade de poder escolher seu destino. Sem discutir, fez o que era para ser feito e pronto. Mas isso fora insuficiente para deixá-lo partir em

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paz. Não questionou o télos(propósito/objetivo/finalidade) de seus comparsas; “fechou” com a futilidade encantatória da classe dominante; almejada, sem pestanejar, por toda manada, ilusório alvo de imitação. Três horas antes de morrer, Ivan Ilitch vislumbra luz no fundo do saco escuro. Sensibiliza-o as lágrimas nos olhos do filho e da mulher, se apieda por eles: “e percebia que a sua vida não fora o que deveria ter sido, mas ainda podia ser reparada”. No instante em que adota uma atitude em relação ao sofrimento, algo fenomenal o liberta da fantasmagórica ameaça da vala-comum psíquica. Ah, a morte: “Que alegria!”. Ivan Ilitch recebe-a de braços abertos! 3- Menino do Mato- Manoel de Barros Manoel de Barros, após um intervalo de três anos, durante o qual nenhuma obra sua foi publicada, lança Menino do Mato, seu 20º livro de poemas. É praticamente seu presente de aniversário, quando o autor atinge os 93 anos. Seu livro mais recente, anterior a este, é Memórias Inventadas III, lançado em 2007, no qual constam ilustrações de sua filha Martha Barros. Esta nova obra poética está configurada em duas metades – ‘Menino do Mato’ e ‘Caderno de Aprendiz’. O leitor tem diante de si 96 páginas da mais pura poesia e suavidade, nas quais ele tem um encontro marcado com o dom de encantar deste poeta único. A segunda parte do livro é estruturada essencialmente por versos concisos, mas nem por isso desprovidos de energia imagética e de riqueza de sentidos. A idade não é em momento algum um obstáculo para Manoel de Barros, que se mantém em pleno vigor criativo. Adotando o estilo tradicional, ele elabora seus poemas à mão, tendo com sua caligrafia o mesmo zelo que o move quando traz à luz seus versos. Este livro resgata a figura do Menino, presente em obras anteriores, o qual sempre ressurge a cada criação do poeta. As figuras desconexas e plurais de Manoel de Barros circulam mais uma vez por Menino do Mato. Ao se ler este volume de poesias, a primeira questão que intriga o leitor é compreender de que fonte provém toda a inspiração deste autor. Ele a credita aos seus tempos de meninice, vividos em uma fazenda em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Neste período ele construiu a sua famosa ‘oficina de desregular a natureza’, que continua ativa até hoje. Setenta e três anos após o lançamento de Poemas Concebidos sem Pecado, em 1937, seus recursos poéticos continuam em ação. Os temas selecionados pelo poeta são

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ainda os mesmos do início – os tolos, os pássaros, o crepúsculo, Bernardo, as pedras, os cantos melodiosos dos passarinhos, o rio, os recantos despovoados, a quietude, o avô, o isolamento. A sensação que se tem, ao ler este livro, mesmo quando já se conhece sua obra anterior, é que o Menino é um novo personagem, recém-nascido na extremidade de seu lápis. Em janeiro de 2010 esta figura surgiu também nas telas do cinema, no documentário Só Dez por Cento É Mentira, de Pedro Cezar, que tem como protagonista a região do Pantanal, mostrando de que forma ela é inserida na produção poética do poeta. Ele também revela o processo de criação de seus personagens. 4-Contos de Sagarana - São Marcos (Conto de Sagarana), de Guimarães Rosa Análise da obra

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O conto São Marcos, segundo o próprio autor "a peça mais trabalhada do livro Sagarana (Rosa, 1984, p.11). O narrador joga com o leitor de forma que, a princípio, desdobra-se em mais de um personagem. No início da narrativa, ele declara que entrava na mata para observar o seu "xará João-de-barro", coincidindo o nome sugerido com o nome do próprio autor, o que causa no leitor um certo desconforto ou surpresa, por imaginar-se, repentinamente, diante daquele, e como que traído na sua empreitada pelo mundo da ficção. Narrado em primeira pessoa, o foco narrativo ilumina os passos do protagonista, mas também revela certas sutilezas que servem para esclarecer o sentido mais profundo da história. São Marcos revela uma ambiguidade completa em relação ao seu narrador-personagem e às personagens secundárias que sustentam a narrativa e amarram a simbologia do conceito de crer ou não em feitiçarias, ou seja, no desconhecido, na lenda, no mito, no mágico e religioso, enfim, no poético. A história do narrador-personagem se dá com o início da narração. Percebemos uma dissociação entre narrador e personagem, afinal seu próprio nome é ambíguo: "(...) meu xará joão-de-barro"(p. 361) ou, se quiser, "(...) nesta história eu também me chamarei José"(p. 361). Instalada a primeira ambiguidade: qual o nome do narrador e qual o do personagem, de fato? Essa dicotomia sem solução também garante a universalidade do personagem, pois é como todo e qualquer João ou José (ou o nome que quiser). Um Severino, como um dos personagens de João Cabral. Como todo e qualquer ser humano. Quando lemos São Marcos pela primeira vez, temos a impressão que narrador e personagem são sujeitos autônomos, a ponto do narrador isentar-se das culpas imputáveis ao personagem. Isso, porém, é uma ilusão discursiva que pode ser comprovada pela organização dos planos narrativos do texto. Afinal, os dois planos, o da estória e o do discurso, não seguem paralelamente no conto. Ora se fundem e confundem, ora se distanciam. É a interferência do narrador no discurso que dá o tom oblíquo e cria a ambiguidade sugerida em todo o texto. Há duas histórias neste conto. Uma delas, bem menor, é inserida no meio da outra, que conta a desavença entre o narrador e um feiticeiro. Por ter ridicularizado o negro Mangalô. José, o protagonista, torna-se alvo de uma bruxaria. Mangalô constrói um boneco-miniatura do inimigo, e coloca uma venda em seus olhos, o que faz José ficar cego, perdendo-se no meio do mato. Para conseguir achar o caminho de volta, mesmo sem enxergar, ele reza a oração de São Marcos, sacrílega e perigosa. - Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo Mau, seu e meu companheiro... - Ui! Aurísio Manquitola pulou para a beira da estrada, bem para longe de mim, se persignando, e gritou: - Pára, creio-em-Deus-padre" Isso é reza brava...

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Com o poder dado pela oração, mesmo cego José encontra a casa de Mangalô, ataca o negro e o obriga a desfazer a feitiçaria. O cenário é Calango-Frito, arraial do interior de Minas Gerais. O conto tem sua espacialidade centrada no mato. Esse espaço físico é rico em vidas, sons e sensações. Faz parte do mundo encantado, mágico. É a voz de comando do personagem José que, à medida que desce no âmago do mato, também mergulha no seu próprio interior. Ou seja, enquanto José adentra o mato, João revive e reativa sua memória. E vice-versa, enquanto João narra cada detalhe lembrado, José aprofunda-se pelo desembrenhar mato adentro. Dentro do mato e dentro de si mesmo. Em São Marcos, homem e natureza, longe de constituírem duas entidades distintas postas em conflito, são os dois lados de um todo que se complementam. O protagonista do texto, por um lado, é um personagem tipo no sentido de que expressa o caráter coletivo de sua gente (sua região/sociedade e a função que desempenha neste contexto), mas transcende sua tipicidade pela dimensão humana de que é dotado. Assim, ele abarca as condições de tipo e de indivíduo, cuja tipicidade se revela através de sua individualização no universo narrativo. Por isso, uma das maiores preocupações que afligem o protagonista ao longo da narrativa é a questão do bem e do mal que, embora viva no "mundo dos jagunços", é, antes de mais nada, uma preocupação humana, existencial. Neste conto o mito e a fantasia aparecem sob formas de superstições e premonições, crença em aparições, devoção a curandeiros e videntes, misticismo e temor religioso, como o temor ao diabo (representado pela "Reza brava de São Marcos") e certa admiração pelo mistério e o desconhecido. Percebemos que o sobrenatural é tratado como parte do complexo mental do homem do sertão, do aspecto mítico-sacral e, como tal, passível também de questionamento. A outra história, dentro desta, constitui um pequeno episódio no qual José fala de um bambual onde ele e um desconhecido travam um duelo poético; o desconhecido fazendo quadrinhas populares, e ele colocando poemas como nomes de reis babilônicos. Personagens José - Narrador, um admirador da natureza. Gostava de observar árvores, pássaros, rios, lagos e gente. João Mangolô - Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro. Aurísio Manquitola - Sujeito experiente, contador de histórias; conhecia bem todas as pessoas de Calango-Frito. Tião Tranjão - Sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no arraial. Ficou indomável depois de aprender a oração de São Marcos. Resumo do conto Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro. O narrador, saindo do povoado (ia caçar), passou pela casa de Mangolô e tirou brincadeira. Gritou para o preto velho: "primeiro: todo negro é cachaceiro; segundo:

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todo negro é vagabundo; terceiro: todo negro é feiticeiro". Eram os mandamentos do negro. Mangolô não gostou da brincadeira. Fechou-se na casa e bateu a porta. Mais à frente, na mesma caminhada, o narrador alcança Aurísio Manquitola. O narrador, por brincadeira, começou a recitar a oração proibida de São Marcos. Aurísio enche-se de medo. É um perigo dizer as palavras dessa oração, mesmo que por brincadeira. Aurísio conta ao narrador a história de Tião Tranjão, sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no arraial. Tião amigou-se com uma mulherzinha feia e sem graça. Pois o Cypriano, carapina já velho, começou a fazer o Tião de corno. Mais ainda: os dois, Cypriano e a mulher feia, inventaram que foi Tião quem tinha ofendido o Filipe Turco, que tinha levado umas porretadas no escuro sem saber da mão de quem... O Gestal da Gaita, querendo ajudar o Tião, quis ensinar a ele a reza de São Marcos. Tião trocava as palavras, tinha dificuldade para memorizar. Gestal teve que lhe encostar o chicote para fixar a reza. Aí sim, debaixo de peia, Tião Tranjão aprendeu direitinho a reza proibida, tintim por tintim. Depois da reza decorada, vieram uns soldados prender Tião. Ele desafiou: com ordem de quem? Os soldados explicaram: com ordem do subdelegado. Então, que fossem na frente. Ele iria depois. Com muito jeito, conseguiram levar Tião para a cadeia e lá, bateram nele. Depois da meia-noite, Tião rezou a oração de São Marcos e, misteriosamente, conseguiu fugir da cadeia, voltar para casa – quatro léguas. Não encontrando a mulher, foi direto para a casa do carapina. Aí, com ar de guerreiro, bateu na mulher, no carapina, quebrou tudo que havia por lá, acabou desmanchando a casa quase toda. Foram necessárias mais de dez pessoas para segurá-lo. O narrador vai descendo por trilhas conhecidas, reconhecendo árvores, identificando pássaros, até chegar finalmente à lagoa. Senta-se e põe-se a observar o movimento dos bichos em perfeita harmonia com a natureza. De repente, sem dor e sem explicação, ficou cego. O desespero não veio de imediato. Aos poucos, foi concluindo que estava distante, afastado de qualquer ser humano, impossibilitado de voltar para casa. Resolveu gritar. Gritou repetidas vezes e só teve o eco por resposta. Tentou, então, voltar tateando as árvores. Logo percebeu que estava perdido, numa escuridão desesperadora. Já ferido por espinhos invisíveis, machucado de quedas, chegou a chorar alto. Sem pensar, o narrador começou a bramir a reza-brava de São Marcos. E sem entender o porquê, dizendo blasfêmias que a reza continha, começou a correr dentro da mata, tangido por visões terríveis. De repente, estava na casa de João Mangolô, tangido por uma fúria incontrolável. E a voz do feiticeiro pedindo pelo amor de Deus que não o matasse. Os dois rolaram juntos para os fundos da casa. E de repente, luz, muita luz. A visão voltava esplêndida. E o negro velho tentando esconder alguma coisa atrás do jirau. Depois de levar alguns sopapos, Mangolô mostrou um boneco. Mais alguns socos e o feiticeiro explicou: não queria matar. Amarrara apenas uma tirinha de pano preto nas vistas do boneco para o narrador passar uns tempos sem enxergar. Tudo terminou em paz. Para garantir tranquilidade, o narrador deu um dinheiro a João Mangolô. Era a garantia de que, agora, eram amigos. A volta do marido pródigo (Conto de Sagarana), de Guimarães Rosa

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Análise da obra Conto narrado em 3ª pessoa, sendo pois o narrador onisciente, não participa da história. Neste conto, farto em citações de lugares e personagens da região de Itaguara, assim como em Conversa de bois, os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber. Em A volta do marido pródigo, o autor descreve um ladino que vende a mulher para dedicar-se a aventuras na cidade grande, mas depois se arrepende, volta para sua região e, malandramente, reconquista sua posição e sua mulher. O conto é uma paródia da "parábola do filho pródigo”, e apresenta traços de humor, presentes, principalmente, na maneira pela qual a personagem protagonista é caracterizada como malandro folclórico. Essa questão também é amparada na concepção de mundo às avessas presente na narrativa. O que se percebe é que, no conto, não existe julgamento moral a respeito de nenhuma das atitudes de Lalino, que poderiam, segundo o senso comum, ser consideradas “más”. Também, as personagens do texto ditas respeitáveis são descritas como “não tão respeitáveis assim”. No entanto, em qualquer caso, a leveza e a ironia com que tais situações de desregramento moral são apresentadas amenizam a seriedade que o tratamento desses assuntos poderia assumir. Na releitura de Guimarães Rosa há uma visão bem diferente daquela encontrada no ensinamento moral que aparábola pretendeu passar. No conto, o que importa é retratar a personagem do malandro, do típico brasileiro que, para tudo, dá um “jeitinho”. Personagens Lalino Salãthiel - todos o chamam de Laio. Mulato vivo, malandro, contador de histórias. Garante que conhece a capital, Rio de Janeiro, mas nunca foi lá. Certa vez, foi realmente conhecê-la. Maria Rita - mulher de Lalino; trata-o com especial carinho. Marra - encarregado dos serviços; depois que a obra acabou, mudou-se do arraial. Ramiro - espanhol que ficou com Ritinha, a mulher de Lalino. Waldemar - Chefe da Companhia. Major Anacleto - chefe político do distrito, homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar. Tio Laudônio - irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Era conselheiro do Major. Benigno - inimigo político do Major Anacleto. Estêvão - capanga respeitado do Major Anacleto. Jamais ria. Tinha pontaria invejável:

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atirava no umbigo para que a bala varasse cinco vezes o intestino e seccionasse a medula, lá atrás. Lalino é um sujeito simpático, espertalhão e falante, avesso ao trabalho, sabe como poucos contar uma estória. A chave para entendê-lo melhor está em suas contínuas alusões a peças de teatro, quase sem ter visto nenhuma. Ele parece constantemente representar, em tudo o que faz ou fala. Assim, sai-se bem em tudo o que faz. Assemelha-se a Leonardo, de Memórias de um sargento de milícias, e a Macunaíma: os três heróis sem nenhum caráter. Essas são as aventuras de um herói picaresco, Eulálio Salãthiel (Lalino), que abandona a mulher após seis meses de casado e vai conquistar o mundo. Antes de viajar, consegue extorquir algum dinheiro de um espanhol interessado nela e que dela iria tomar conta. Sua esposa, Maria Rita, abandonada por ele, passa a morar com o espanhol Ramiro. Ao vender Ritinha, o protagonista abre mão do que lhe é mais caro, mas que ele ainda não é, naquele momento, capaz de perceber. Desiludido com o Rio de Janeiro retorna à sua terra e urde um plano para recuperar a mulher - Maria Rita - e o prestígio junto ao povo do lugar. Com paciência e astúcia, vence todos os obstáculos, recupera a mulher, expulsa os espanhóis do lugarejo e reconquista o prestígio junto ao coronel para cuja vitória nas eleições contribui. Após ter passado por tudo o que passou, o Lalino do final não é mais a mesma pessoa, que se engana no que decide fazer e apressa-se a reparar o erro, nem tampouco se utiliza de todos os seus atributos de astúcia e malandragem para recuperar o que havia perdido, mas sim, aprende a dar importância às coisas que realmente devem ter importância atribuída. Ele agora tem plena consciência de que deve cuidar de seu tesouro mais precioso, pois, do contrário, corre o risco de entregá-lo, mais uma vez, de mãos beijadas, a quem o estiver cobiçando. Através de ironia claramente perceptível, o autor mostra lendas populares da região dos Campos Gerais de Minas, assim como ditados que louvam a esperteza e a paciência. Resumo do conto Na introdução do conto o cenário é apresentado: homens trabalham duro escavando o solo para dele retirar minério. Seu Marra é o encarregado, de olho em todos para que o trabalhe ande a contento. Lalino Salãthiel é um mulato vivo, malandro, que chega tarde ao trabalho e inventa desculpas. Em vez de trabalhar duro, como os outros, inventa histórias, conta causos. A maioria admira-o. Mas há quem enxergue nele apenas um aproveitador. Generoso acha que Ramiro, um espanhol, anda rondando a mulher de Lalino. Laio, naquela noite, não comparece à casa de Waldemar para a aula de violão. No outro dia, fica em casa vendo umas revistas com fotografias de mulheres. À tarde, vai à

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empresa e acerta as contas com Marra. Está disposto a ir embora. Na volta para casa, encontra Ramiro, o espanhol que lhe anda cercando Maria Rita. Nasce, imediatamente, um plano: tomar um dinheiro emprestado do espanhol. O argumento é convincente: quer ir embora sem a mulher, mas falta-lhe dinheiro para viajar. Ramiro empresta-lhe um conto de réis. Com o dinheiro no bolso, Laio pegou o trem na estação rumo à capital do País. Seu Miranda, que foi levá-lo, ainda tentou dissuadi-lo. Não conseguiu. Um mês depois, Maria Rita ainda vivia chorando, em casa. Três meses passados, Maria Rita estava morando com o espanhol. Todos diziam que Laio era um canalha, que vendera a mulher para Ramiro. E assim, passou-se mais de meio ano. As aventuras de Lalino Salãthiel no Rio de Janeiro excederam à expectativa. Seis meses depois, Laio estava quase sem dinheiro e começou a sentir saudades. Tomou a decisão: ia voltar. Separou o dinheiro da passagem e programou uma semana de despedida: "uma semaninha inteira de esbórnia e fuzuê". Acabada a semana, Laio pegou o trem: queria só ver a cara daquela gente quando o visse chegar! Enquanto atravessava o arraial, Laio teve que ir respondendo às chufas dos moradores. Finalmente, chegou à casa de Ramiro, o espanhol que se apossou de Ritinha. Laio informou-lhe que estava de volta para devolver o dinheiro do empréstimo. Ramiro, querendo evitar que Laio visse Ritinha, perdoou o empréstimo: a dívida já estava quitada. Mas Laio insistiu: "eu quero-porque-quero conversar com a Ritinha"! E disse isso com a mão perto do revólver. O espanhol concordou, desde que não fosse em particular. De repente, Laio esmoreceu: não queria mais ver a Ritinha. Queria só pegar o violão. Depois, quis saber se o espanhol estava tratando bem a Ritinha. E despediu-se. Primeiro pensou em ir à casa de seu Marra. Depois, dirigiu-se para a beira do igarapé: era tempo de melancia. Depois de apreciar a paisagem, Laio deu de cara com seu Oscar. Trocaram ideias, e Oscar prometeu que ia falar com o velho (Major Anacleto) e tentar arranjar um trabalho para Laio na política. Além de chefe político do distrito, Major Anacleto era homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar. Quando Oscar lhe falou de Laio, ele foi categórico: aquilo é um grandessíssimo cachorro, desbriado, sem moral e sem temor a Deus... Vendeu a família, o desgraçado. Tio Laudônio era irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Pois foi Tio Laudônio que intercedeu a favor de Laio. O Major concordou. Era mandar chamar o mulato no dia seguinte. Mas Laio não apareceu no dia seguinte. Só apareceu na fazenda na quarta-feira de tarde. E topou logo com o Major Anacleto. Quando o Major tentou expulsá-lo da fazenda, Laio deu-lhe notícias de todas as manobras políticas da região, quem estava com o Major e quem o estava traindo. Já descobrira a estratégia do Benigno para derrotar o Major na próxima eleição. Em troca de tanta informação, pediu a proteção do Estêvão, o capanga mais temido do Major. Assim, o povo do arraial ficou sabendo que Laio era o cabo eleitoral do Major Anacleto e, como tal, merecia respeito. Major Anacleto, depois do relatório de Laio, mandou selar a mula e bateu para a casa

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do vigário. O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, confissão e o cargo de inspetor escolar. Antes de o Major sair, o padre contou-lhe que Laio estivera na igreja. Também se confessara e comungara e ainda trocara duas velas para o altar de Nossa Senhora da Glória. Quando o Major e Tio Laudônio passaram em frente à casa de Ramiro, o espanhol aproveitou para denunciar Lalino: o mulato estava de amizade com Nico, o filho do Benigno. Foram juntos à Boa Vista, com violões, aguardente, e levando também o Estêvão. O Major ficou danado de zangado. Não via a hora de encontrar o Laio. Depois de peregrinar por todas as bandas, o Major voltou para a fazenda, onde Laio já o esperava. Primeiro o Major xingou o mulato de muitos nomes feios, depois Laio teve tempo de explicar: era tudo estratégia política para saber das coisas. Passara, sim, em frente à casa de Ramiro, mas não o insultara. Dera vivas ao Brasil porque não gostava de espanhóis. E tinha mais (coisa que o Major não sabia): espanhol não vota porque é estrangeiro. Houve um período de calmaria política em que Laio ficou tocando viola e fazendo versos no meio da jagunçada do Major. Um dia, pediu um favor a seu Oscar, filho do Major: que ele fosse ter com Ritinha e conversasse com ela, mas sem dizer que era da parte do Laio. Oscar foi e fez o contrário: falou mal do mulato, disse a Ritinha que o marido andava fazendo serenata para outras mulheres. Aproveitou a proximidade e pediu-lhe um beijo. Ritinha expulsou-o, não sem antes confessar que gostava mesmo era do Laio, que ia morrer gostando dele. De volta, seu Oscar contou o contrário: que Ritinha não gostava mais do marido, gostava de verdade era do espanhol. Certa tarde, depois de dormir um pouco na cadeira de lona, o Major foi acordado com uma barulheira dos diabos. O mulherio no meio da casa, os capangas lá fora, empunhando os cacetes, farejando barulho grosso. Ritinha jogou-se aos pés do Major e suplicou-lhe proteção. Que não deixasse os espanhóis levá-la à força dali. O Ramiro, com ciúmes, queria matá-la, matar o Laio e, depois, suicidar-se. Disse tudo isso chorando e falando na Virgem Santíssima. O Major mandou chamar o Eulálio e foi informado de que o mulato estava bebendo juntamente com uns homens que chegaram de automóvel. Foi a conta: o Major pensou que eram da oposição e começou a xingar o Laio. Cabra safado, traidor. Ia levar uma surra, pelo menos isso. Tio Laudônio procurava acalmá-lo. De repente, lá vem o Laio dentro de um automóvel. E a surpresa foi geral. Era gente do governo, Sua Excelência o Senhor Secretário do Interior. Aí o Major desmanchou-se em sorrisos e gentilezas. E a autoridade satisfeita, elogiando muito o Laio, pedindo ao Major que, indo à capital, levasse o mulato junto. O Major, contentíssimo, mandou trazer Maria Rita para as pazes com Laio. Convocou a jagunçada e ordenou: "mandem os espanhóis tomarem rumo"! Se miar, mete a lenha! Se resistir, berrem fogo! 7-O abraço, de Lygia Bojunga

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Em O abraço, de Lygia Bojunga, a morte não é tema transversal e, sim, protagonista. A própria autora escreve, em clima de conversa, no apêndice da edição de 2005, sobre sua aproximação com a questão da morte e a vontade de sentir -se melhor aparelhada para a vida. Só mesmo a habilidade de um grande escritor para extrair disso a vitalidade de sua obra. O estilo narrativo, entremeado com diálogos ágeis e concisos, de linguagem e ritmo próprios da comunicação juvenil, coloca o leitor no tempo real e cativa -o a entrar na trama. Isso torna sua assimilação da história uma experiência inteiramente particular. Assim, estabelece -se confidência com a narrativa e credibilidade com a ação, num enredo em que a fusão do fantástico e do real é tão perfeita e tão integrada que não há marco de passagem de um para o outro. Em O abraço, a autora, surpreendida em um encontro com seus personagens, é levada para uma história onde um crime hediondo e suas consequências formam o tear que envolverá uma menina, sua personalidade, seus amigos e a morte, sendo que: “o guarda -roupa da morte é vastíssimo; ela usa as vestimentas mais inesperadas, se disfarça de tudo que a imaginação pode inventar” (pg.11). A própria autora não consegue deter a personagem em suas ações. Pode o que inventamos escapar de nosso comando? Será que temos controle sobre tudo na vida? Com domínio para tratar do desconhecido íntimo e pessoal, Lygia em momento algum interpela diretamente o leitor ou lhe oferece uma explicação final. A começar pelo título, O abraço provoca o uso dos sentidos e isso nos aproxima ainda mais do mistério. Em meio à narrativa, a personagem, com sede, para e bebe água. Ela conta que ouviu o silêncio e a cantoria do galo, provou leite, sentiu cheiro de capim e enfiou o pé na areia molhada, e diz: “- Tá escuro! – Eu não sabia se era cheiro de pão que eu estava sentindo. Mas tinha cheiro de terra, isso eu sabia. Eu estava sem sapato e o meu pé sentia a umidade do chã o de terra. – Tá escuro!” (pg. 29). A ação transita por cenários variados e sem rigidez cronológica; vida e morte se juntam e separam, em formas livres de cores e sombras. A história se desenrola em um fôlego só, sem quebra de capítulos e com uma única pausa proposta por um grafismo, bem enigmático, antes do desfecho. Aliás, o livro segue o padrão da Casa Lygia Bojunga, com propostas precisas para ilustração de capa e miolo. O artista plástico presente nesta obra é Rubem Grilo, um dos mais conceituados grav uristas da atualidade. Sua ilustração entra em O abraço com simplicidade e poucos grafismos internos, tudo em preto e branco, de acordo com o clima de charada. É a única adição visual ao enredo de fantasia e imaginação, que brinca com a realidade ao mesmo tempo que atravessa zonas nebulosas da vida. O abraço é uma peça de arte que propicia o diálogo espontâneo sobre assuntos latentes como a morte ou o silêncio de uma infância arrombada, confundida e violentada.

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6-Hídrias. Autora: Dora Ferreira da Silva. Essa pequena obra vem coroar 50 anos de uma das mais exuberantes trajetórias poéticas da literatura brasileira - a de Dora Ferreira da Silva, autora de vários livros de poesia. Nesse livro em que sua ligação com o mundo grego se dá por vias profundas e misteriosas, qual uma 'herança ancestral', cada um dos poemas evoca um determinado mito e encerra um kósmos completo em si mesmo, um kósmos que poderia ser condensado em uma imagem pictórica representativa. Assim como as hídrias são recipientes que contêm água, elemento sagrado de pureza e de purificação por excelência, cada poema parece constituir-se no receptáculo do elemento sagrado e vivificante que o próprio espírito da poesia mesmo quando divino parece se ausentar do nosso mundo. O IMAGINÁRIO MÍTICO DE DORA FERREIRA DA SILVA A poeta que tem parte de sua obra analisada é Dora Ferreira da Silva, e o livro sobre o qual serão feitas análises é Hídrias (2004), além de outros poemas de outras obras da autora em que a temática grega - que é bastante pertinente às análises feitas à luz da teoria do imaginário - é explicitada. Um dos principais objetivos da pesquisa é pontuar os elementos míticos e simbólicos que atuam nos poemas escolhidos e verificar, tendo como base a teoria do imaginário, a importância que eles têm na relação existente entre homem e o mundo em que habita. O trabalho compreende três diferentes etapas, que são: pesquisa teórica, pesquisa crítica e pesquisa analítica do corpus escolhido. As referências bibliográficas citadas ao final do texto são todas aquelas que já foram, serão, ou poderão ser utilizadas como base para o desenvolvimento do texto dissertativo. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TEORIA DO IMAGINÁRIO O imaginário tem sido amplamente estudado pela Antropologia, Psicologia, Sociologia, Etnologia, dentre outras disciplinas, e o que atrai tantos interesses é o estudo dos mitos, dos símbolos e de sua importância na relação homem/cosmos, isto é, como as configurações simbólicas formatam as maneiras de pensar, bem como as práticas sociais que instituem o homem e seu meio. A MITICIDADE E O LIRISMO DE DORA FERREIRA DA SILVA A aproximação entre mito e poesia pode ser exemplificada e estudada a partir da obra

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da autora paulista Dora Ferreira da Silva. Nascida em Conchas, São Paulo, no dia 1 de julho de 1918, Dora Ferreira, lamentavelmente, ainda é pouco conhecida nos meios acadêmicos, apesar da vasta obra e da qualidade excepcional de sua poesia, pela qual, aliás, recebeu por três vezes o prêmio Jabuti. Pelo livro Poesia Reunida (1999), a autora recebeu premiação da Academia Brasileira de Letras (Prêmio Machado de Assis). Além de poeta, Dora era tradutora, traduziu autores como Rilke, Hölderlin, e Jung (só para citar os mais famosos). Sua tradução de Elegias de Duíno (Rilke), feita quando a poeta tinha apenas 28 anos, lhe valeu numerosos elogios da crítica. Dora era admirada por 156 nomes de relevo como Carlos Drummond de Andrade e José Paulo Paes. A autora faleceu aos 87 anos, na tarde de 6 de abril de 2006, em São Paulo. O imaginário de Dora Ferreira está intimamente imbricado com a Grécia e o Mediterrâneo, fontes inspiradoras não só por estarem relacionadas com as origens da poeta (sua avó materna era grega) e da própria poesia, mas também por sua força arquetípica, descoberta por Dora ao envolver-se com a tradução de obras de Carl Gustav Jung. Sua relação com a Grécia e o mundo helênico era intensa e apaixonada, e ia além da aproximação genética. Em entrevista ao site WebLivros, Dora disse: “Quando estive em Delphos, não vi nenhum turista, de tão forte que é a Grécia para mim. Só vi os turistas depois, nas fotografias. Lá em Delphos tive a impressão de que, se ficasse um, dois meses, nunca mais voltaria” (WEINTRAUB, 1999). Em toda a sua obra Dora reconta os mitos gregos, demonstrando como determinados acontecimentos míticos referem-se a uma realidade humana, contribuindo para que o lirismo de seus poemas repercuta na interioridade do ser. Com esta poeta, os mitos ganham novos contornos e a energia simbólica dos tempos arcaicos é renovada. A obra da autora é marcadamente povoada pela presença de imagens simbólicas e arquetípicas, por isso seu imaginário mítico é tão vasto e rico, assim, é bastante apropriada a crítica do imaginário desenvolvida por Gilbert Durand para que seja feita a análise de sua poesia. A pesquisa em questão apoiar-se-á também em obras de outros grandes autores que são fundamentais para o entendimento e apreensão da teoria do imaginário, como Mircea Eliade e Carl Gustav Jung. O eixo central do trabalho terá como objeto o último livro publicado pela autora, Hídrias, de 2004, pelo qual Dora recebeu o terceiro Jabuti. Nesse livro, a relação da poeta com a cultura helênica é mais fortemente explicitada; além disso, poemas diversos, ainda relacionados ao universo grego, dos outros nove livros de Dora, que podem ser encontrados em um único volume, o livro Poesia Reunida de 1999, serão também objeto de análise. Dizer que poesia e mito são revelação é coerente, pois o homem revela-se através dos símbolos que deles fazem parte e, ao mesmo tempo, descobre-se. O que Dora Ferreira da Silva faz é recriar liricamente a tradição mítica, aproximando ainda mais dois tipos de criação humana que já têm afinidade natural. A crítica do imaginário resgata essa parte do pensamento humano, a parte simbólica, imaginária, que faz parte das origens do homem e que nunca deixou de ser a ele essencial. Assim, se dentro da teoria do imaginário proposta por Gilbert Durand os mitos e as representações arquetípicas e simbólicas têm importância fundamental, já que estão 157 na base do imaginário humano, e se Dora Ferreira da Silva foi uma poeta que dedicou a maior parte de sua produção aos poemas inspirados na mitologia helênica, acredito que o estudo desses poemas à luz da teoria do imaginário é pertinente, esclarecedor.

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OBJETIVOS E METODOLOGIA DA PESQUISA Os objetivos, gerais e específicos, da pesquisa são os seguintes: Discutir as linhas teóricas sobre a teoria do imaginário adotadas para o desenvolvimento da pesquisa; situar o imaginário no itinerário poético de Dora Ferreira da Silva; pontuar os elementos míticos e simbólicos que atuam nos poemas escolhidos para a pesquisa (os do livro Hídrias e alguns outros de obras diversas); realizar análise formal dos poemas; e realizar uma mitocrítica deles, isto é, analisá-los a partir da hermenêutica dos símbolos e dos mitos, de acordo com os princípios desenvolvidos por Durand. Procurar-se-á responder às seguintes perguntas ou hipóteses de pesquisa: como se dá a reatualização dos mitos em Dora? Os mitos são recriados de forma patente ou latente? Por que a forte presença da cultura helênica em sua obra? Como relacionar a teoria dos arquétipos, que faz parte da crítica do imaginário, à forte presença da mitologia grega em Dora? Quais os mitos mais recorrentes? A linguagem que resgata os mitos é clássica ou moderna? Quanto à metodologia, o trabalho compreende três etapas, a saber: pesquisa teórica, pesquisa crítica e pesquisa analítica. A pesquisa teórica diz respeito às leituras bibliográficas referentes ao suporte teórico da pesquisa, ou seja, como a problemática das imagens, dos símbolos e dos mitos pode ser interpretada frente ao universo poético de Dora Ferreira da Silva. Assim, será imprescindível a leitura de alguns autores já citados na introdução deste projeto, são eles: Gilbert Durand, Gaston Bachelard, Carl Gustav Jung, Mircea Eliade, Paul Ricoeur, Ernst Cassirer, entre outros; além das brasileiras Maria Zaira Turchi, Ana Maria Lisboa de Mello e Danielle Perin Rocha Pitta. A segunda etapa corresponde ao estudo da bibliografia sobre poesia, bem como sobre a crítica a respeito de Dora Ferreira da Silva. Essa pesquisa bibliográfica trará esclarecimentos quanto à compreensão de Hídrias e dos outros poemas escolhidos para a pesquisa. Neste percurso, pretende-se estudar os seguintes autores: Octavio Paz, Alfredo Bosi, Ivan Junqueira, Vilém Flusser, Constança Marcondes César, entre outros que formam a fortuna crítica de Dora Ferreira da Silva. A terceira etapa consiste na análise dos poemas à luz das teorias relacionadas. É nessa etapa que acontece a mitocrítica propriamente dita, ou seja, é feita a análise total da obra e dos poemas, a partir da hermenêutica das imagens, dos símbolos e dos mitos, para o desvelamento e compreensão do imaginário de Dora Ferreira da Silva. DISTRIBUIÇÃO DOS CAPÍTULOS Como o trabalho já passou pela etapa da qualificação, tendo sido aprovado, já existe uma proposta delineada para a construção dos capítulos dissertativos, que é a seguinte: No primeiro capítulo, intitulado “Dora Ferreira da Silva e a crítica do imaginário: convergências”, apresentar-se-á, sucintamente, o caminho trilhado por Dora

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Ferreira em seu percurso como poeta, isto é, seus livros, sua relação com o universo grego, suas leituras e influências recebidas, dentre outras coisas. Isso será feito de forma sucinta porque fazê-lo detalhadamente traria elementos suficientes para a escritura de um novo trabalho de dissertação. Terão ainda enfoque no capítulo em questão os pressupostos teóricos da antropologia do imaginário defendidos por Gilbert Durand. No segundo capítulo, denominado “Miticidade e lirismo: profundas relações”(repensar este título), será feito um estudo a respeito do mito e suas relações com o imaginário e ainda sobre a relevância da mitologia e cultura gregas tanto para a obra de Dora como para a humanidade como um todo, já que exerceu e exerce grande influência sobre a sociedade ocidental. A maneira como o mito se encaixa dentro da teoria do imaginário será também explanada nesse capítulo. Para tanto, a análise de poemas em que aparecem personagens míticos ou nos quais um mito grego é recontado será fundamental. No terceiro e último capítulo, intitulado “Nos passos de Perséfone”, as reflexões centrar-se-ão no mito grego de Perséfone e sua recorrência dentro da obra de Dora. Há uma forte relação existente entre a personagem do mito (que pode ser Koré, nome da deusa quando jovem e ingênua; ou Perséfone, o nome que ganhou ao tornar-se esposa de Hades) e a poeta. Dora declarou, em entrevista dada à revista Cult em maio de 1999, que a relação existente entre Koré/Perséfone e Hades era um de seus mitologemas. Nessa pesquisa serão feitas análises de poemas de Dora (especialmente de Hídrias) em que o mito de Perséfone aparece e, a partir deles, procurar-se-á entender a importância dessa personagem dentro da obra da autora. As diferenças existentes entre Koré e Perséfone dentro dos poemas serão também observadas e o papel desempenhado 159 por Hades e Deméter, personagens essenciais para o entendimento do mito, também serão analisados. Além disso, a maneira como esse mito se reatualiza em junção com a contemporaneidade deverá ser estudada. CONCLUSÃO A obra de Dora Ferreira da Silva, mesmo quando reduzida apenas aos poemas em que a autora se vale dos mitos gregos para poetizar, é ampla e extensa. Assim, não se pretende a partir dessa dissertação de mestrado abarcar tudo o que Dora escreveu envolvendo o universo helênico, pretende-se um caminho de análise e interpretação que permita fazer com que a densidade simbólica e imaginária do livro Hídrias, e também dos outros poemas escolhidos, seja percebida, valorizada e, principalmente, fruída pelos antigos e novos leitores da obra da poeta paulista. Na esteira dessas ponderações, esta pesquisa justifica-se face à oportunidade de se conhecer melhor a obra de uma grande autora brasileira que ainda não foi devidamente valorizada pelos meios acadêmicos literários, tudo isso a partir da compreensão dos fenômenos mítico e simbólico presentes em sua poesia. A abordagem do imaginário e sua íntima conexão como o texto lírico elucidam uma rica multiplicidade de sentidos que poderão ser descobertos a partir da pesquisa proposta. Tendo em vista o exposto, acredita-se na pertinência do trabalho em pauta no sentido de contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre a articulação entre imaginário e texto poético. Além disso, espera-se que a pesquisa contribua para que haja um maior interesse nos meios acadêmicos brasileiros, sobretudo os literários, pelos estudos acerca da teoria do imaginário e também acerca da vasta obra de Dora Ferreira da Silva.

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7 - Felicidade Clandestina. Autor: Clarice Lispector (10 primeiros contos) Lançado inicialmente em 1971, "Felicidade Clandestina" reúne diversos textos de Clarice Lispector que foram escritos em diversas fases da vida da autora. Os textos reunidos nessa obra podem mais facilmente serem classificados como “contos”, mas como Clarice não se prendia a convenções de gêneros, todo o conjunto reunido em Felicidade Clandestina migra de gênero em gênero, ora aproximando-se do conto, ora aproximando-se da crônica, ou por vezes sendo quase um ensaio. De fato, muitos dos textos reunidos neste livro foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde Clarice escrevia semanalmente de 1967 a 1972. Ao todo, Felicidade Clandestina reúne 25 textos que tratam de temas diversos, tais como a infância, a adolescência, a família, o amor e questões da alma. Assim como a crônica que dá título ao livro, muitos dos textos apresentam algo de autobiográfico, trazendo recordações da infância da autora em Recife, alguma personagem que marcou seu passado, etc. Através da recordação de fatos do seu passado, Clarice Lispector busca nos contos fazer uma investigação psicológica de autoanálise. Uma das técnicas mais empregadas nesses contos é a da narrativa em fluxo de consciência, que é uma tentativa de representação dos processos mentais das personagens. Esse tipo de narrativa não possui uma estrutura sequencial, uma vez que o pensamento não se expressa de uma forma ordenada. Dessa forma, seria como se o autor não tivesse controle sobre a personagem e a deixasse entregue a seus próprios pensamentos e divagações. Assim, dentro desse processo de associação de ideias e pensamentos desconexos, em um dado momento a personagem passa por um momento de epifania, que é uma súbita revelação ou compreensão de algo. Ao passar por esse momento de epifania, a personagem descobre a essência de algo que muda sua visão de mundo ou sua própria vida. Através desses momentos de epifania, personagens que poderiam ser considerados sem relevância alguma aos olhos da sociedade ganham profundidade psicológica e existencial. Contos representativos “Felicidade clandestina” Nesta crônica a narradora em primeira pessoa conta sua primeira experiência com um livro. Porém, este livro é de uma menina má que o oferece emprestado para a narradora, mas sempre inventa uma desculpa para não entregar o livro a ela. Até que a mãe da menina má descobre isso e entrega o livro para a narradora, que passa a saborear o livro como se fosse um amante. Esta crônica tem um cunho autobiográfico, como comprovou a própria irmã da escritora dizendo que se lembra da “menina má”. O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora parece se questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente na crônica parece conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Uma vez que ela ganhou permissão para ficar com o livro pelo tempo que desejasse, ela o deixa no quarto e finge esquecer que o possui, só para se redescobrir possuidora dele. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento “clandestino”, já que nem ela mesma pode se conscientizar de sua própria felicidade para que esse sentimento não acabe.

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Concluísse, portanto, que a felicidade deve ser descoberta a todos os momentos e nas coisas mais simples. “Amizade sincera” Este conto é a história de dois homens que se tornam amigos inseparáveis, mas em dado momento começa a faltar assunto entre eles. Os dois vão morar junto, mas não conseguem mais voltar a ser amigos como antes e, por fim, eles tomam rumos diferentes na vida e sabem que não irão mais se ver. Este conto tematiza os paradoxos das relações humanas e o individualismo das pessoas. Se por um lado queremos manter uma amizade a todo custo, a ponto de quase “ceder a alma” ao amigo, quem de fato gostaria de “ceder a alma”? – pergunta-se o narrador. Assim como aparece em outros contos de Clarice, a relação entre as pessoas parece estar fundamentada em uma “relação de troca”. No conto, os dois amigos já não encontram mais o que “trocar” entre si e disso nasce uma grande melancolia e desilusão, corroendo a amizade entre os dois. Por fim, o que sobra de sincero aos dois é saber que eles não mais se falarão porque escolheram isso. “O ovo e a galinha” Este é um dos contos mais emblemáticos de Clarice Lispector. A partir da visão de um ovo que está sobre a mesa da cozinha, o narrador inicia uma série de pensamentos a cerca das mais diversas coisas. Esses pensamentos aparecem de forma aleatória e em fluxo de consciência, onde uma ideia, sentimento, sensação etc, desencadeia outro e assim sucessivamente. Dessa forma, ele vai desconstruindo o objeto que está sendo visto e o ovo passa, então, a ser uma representação de qualquer coisa, física ou abstrata (liberdade, amor, vida, etc.). Assim, através dessa “desconstrução”, o ovo deixa de ser simplesmente um ovo e torna-se a chave para a compreensão do amor, da vida e da própria existência humana. “Os desastres de Sofia” Neste conto a narradora relembra seus tempos de escola. Por volta dos nove anos de idade, ela nutre uma espécie de amor pelo professor, um homem feio e aparentemente frustrado. A menina-narradora entra em um jogo sádico com o professor, de forma que ela faz tudo para que ele a odeie. Até que em certo momento da narrativa ele pede para que a sala escreva uma história a partir de dados que ele fornece. Ansiosa para ser a primeira a terminar, a menina-narradora escreve a sua história rapidamente e sai da sala triunfante. Porém, após o professor ler o texto que ela escreveu, ele se mostra impressionado e até sorri. A menina-narradora percebe que o olhar do professor não tem mais o ódio de antes, e ela se desespera com sua nova realidade. A partir disso ocorre um momento de epifania em que ela se depara com a verdade do mundo e sua vida muda. O título do conto é provavelmente uma alusão a um livro infantil escrito no século XIX pela francesa Condessa de Ségur e que também se chama “Os desastres de Sofia”. Porém, no conto de Clarice, o nome “Sofia” não aparece nenhuma vez além do título. Este nome, “Sofia”, é de origem grega e significa “sabedoria”. Assim como em muitos outros contos da escritora, o núcleo temático de “Os desastres de Sofia” parece ser o da autodescoberta. Isso parece ser sugerido também pela ausência do nome Sofia no conto, pois a personagem estaria em busca de sua própria identidade, o que acontece só ao final do livro com o momento de epifania.

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Por fim, cabe ressaltar que a narradora traça o seu passado de uma forma autobiográfica, mas ela não o faz de uma forma “fiel”. Ao invés de simplesmente contar os fatos e acontecimentos de seu passado, ela o reinventa a partir das experiências do “eu” presente. Isso fica bem marcado em passagens em que a narradora confessa ter dúvidas sobre o que aconteceu ao certo em determinadas ocasiões e se mostra constantemente hesitante. Assim, através da reconstrução não sistemática de seu passado, a narradora constrói a imagem que faz de si mesmo no seu presente. Comentário do professor O Prof. Marcílio Gomes Júnior, da Oficina do Estudante, frisa que Felicidade Clandestina foi publicado no auge da carreira de Clarice Lispector, sendo o seu quarto livro de contos. Como escritora, pode-se dizer que Clarice já havia atingido sua maturidade e conseguia realizar com maestria o que seria o ponto chave de suas obras: o estudo e análise do ser humano. Através de um mergulho no universo interior das personagens, Clarice trazia à tona temas existencialistas e as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. Nesse ponto, o prof. Marcílio comenta que ela se aproxima bastante de escritores como o russo Dostoievsky (autor de Crime e Castigo), e dos brasileiros Machado de Assis e Graciliano Ramos. Em seus contos, Clarice também explora muito o tema da família e seus confrontos, exibindo o cerne da família brasileira. Quanto à questão existencialista, o prof. Marcílio chama atenção para o fato de que esse existencialismo sempre conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento. Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores e inquietações. Através de um mergulho no interior do ser humano, essas personagens cheias de crises existenciais sempre irão passar por um momento de epifania, que seria um “momento de tomada de consciência” ou um “momento de iluminação”. Esta experiência epifânica irá ampliar o campo de percepção da personagem e ela será elevada a outro nível de consciência, passando a ver o mundo a sua volta de outra maneira. Assim, após ver a existência humana de um novo modo, a personagem ou voltará a ser o que era, mas agora com uma consciência elevada, ou então irá manter seu novo estado de consciência. Por fim, o prof. Marcílio ressalta que como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na história, não encontraremos nenhuma passagem descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetivada, abusando de adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, vale a pensa ressaltar que Clarice utiliza um chamado estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático.

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8 - Clara dos Anjos. Autor: Lima Barreto. Concluído em 1922, ano da morte de Lima Barreto, o romance Clara dos Anjos é uma denúncia áspera do preconceito racial e social, vivenciado por uma jovem mulher do subúrbio carioca. O Realismo-naturalismo, que tanto influenciou Lima Barreto na composição de Clara dos Anjos, é cientificista e determinista, considerando que as ações humanas são produtos de leis naturais: do meio, das características hereditárias e do momento histórico. Portanto, os romances naturalistas procuravam, através da representação literária, demonstrar teses extraídas de teorias científicas. Para isso, o Naturalismo buscou compor um registro implacável da realidade, incluindo seus aspectos repugnantes e grotescos. São exatamente esses os aspectos que mais chamam à atenção na narrativa exagerada de Clara dos Anjos. Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio, que apesar das cautelas excessivas da família, é iludida, seduzida e, como tantas outras, desprezada, enfim, por um rapaz de condição social menos humilde do que a sua. É uma estória onde se tenta pintar em cores ásperas o drama de tantas outras raparigas da mesma cor e do mesmo ambiente. O romancista procurou fazer de sua personagem uma figura apagada, de natureza "amorfa e pastosa", como se nela quisesse resumir a fatalidade que persegue tantas criaturas de sua casta. Espaço O romance passa-se no subúrbio carioca e Lima Barreto descreve o ambiente suburbano com riqueza de detalhes, como os vários tipos de “casas, casinhas, casebres, barracões, choças” e a vida das pessoas que ali vivem. Ao descrever o subúrbio, Lima Barreto aborda o advento dos “bíblias”, os protestantes que alugam uma antiga chácara e passam a conquistar novos fiéis para seu culto: “Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado para fora e alugado aos "bíblias"… O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já por encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, já por procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer existência humana.” E reflete sobre a nova seita: “Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees fundadores de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão protestante dessa raça que deseja a felicidade de nós outros, na terra e no céu, à luz de uma sua interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os quais não sabem muito bem por que foram para tal novíssima religiãozinha e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.” A crítica às “novas seitas cristãs” revela também a ojeriza de Lima Barreto à influência americana no Brasil. Como o colocou Antônio Arnoni Prado, o autor de Clara dos Anjos “interessou-se pelos Estados Unidos, em virtude do tratamento desumano que este país dispensava aos seus cidadãos de cor. (…) Censurou duramente a discriminação racial americana, assim como o expansionismo imperialista dos ‘yankees’, que, através da diplomacia do dólar, ia, a seu ver, convertendo o Brasil num autêntico protetorado.” Nada mais profético.

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Personagens Marrameque - Poeta modesto, semiparalisado, Marramaque freqüentara uma pequena roda de boêmios e literatos e dizia ter conhecido Paula Nei e ser amigo pessoal de Luís Murat. Lima Barreto denuncia, na figura de Marramaque, a influência das rodas literárias, grupos fechados que abundam no Brasil; a cultura da oralidade, dos que aprendem “muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas”, tendo um cultura superficial, de verniz; e o azedume dos que não conseguem brilhar nas “rodas de gente fina”. Clara: a “natureza elementar” - Clara era a segunda filha do casal, “o único filho sobrevivente…os demais…haviam morrido.” Tinha dezessete anos, era ingênua e fora criada “com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.” O autor reitera sempre a personalidade frágil da moça – sua “alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor” – como resultado de sua educação reclusa e “temperada” pelas modinhas: “Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.” Essa “natureza elementar” de Clara se traduzia na ausência de ambição em melhorar seu modo de vida ou condição social por meio do trabalho ou do estudo: “Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. (…) Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma mulher.” A descrição de Clara reforça os malefícios da formação machista, superprotetora, repressiva e limitadora reservada às mulheres na nossa sociedade. Ecoa, portanto, a descrição de Luísa, do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, ou a Ana Rosa de O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Todas são, na verdade, herdeiras diretas da figura de formação débil, educada nas leituras dos romances românticos, que é Emma Bovary, criada por Gustave Flaubert no romance inaugural do Realismo, Madame Bovary (1857). Cassi: o corruptor - Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim passa a receber em casa o pretendente de Clara, Cassi Jones de Azevedo, que pertencia a uma posição social melhor. Assim o descreve Lima Barreto: “Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as

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melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio — a famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.” O padrinho Marramaque, que já lhe conhecia a fama, tenta afastá-lo de Clara quando percebe seu interesse. Na festa de aniversário da afilhada, provoca Cassi e deixa claro que ele não é bem-vindo ali e que seria melhor que se retirasse. Cassi vinga-se de modo violento: junta-se a um capanga e ambos assassinam Marramaque. Clara, que já suspeitava das ameaças do rapaz ao padrinho, passa a temê-lo, mas ele consegue seduzi-la, principalmente ao confessar seu crime, dizendo que matou por amor a ela. Malandro e perigoso, Cassi já havia se envolvido em problemas com a justiça antes, mas sempre fora acobertado pela sua família, especialmente sua mãe, que não queria que fosse preso. Assim, conseguia subornar a polícia e continuar impune, mesmo depois de ter levado a mãe de uma de suas vítimas ao suicídio e da perseguição da imprensa. O exagero narrativo de Lima Barreto torna-se patente ao descrever a figura do sedutor. Branco, sardento e de cabelos claros, é a antítese de Clara. Como o apontou Lúcia Miguel Pereira: “Até os animais da predileção de Cassi, os galos de briga, são apresentados com visível má vontade: ‘horripilantes galináceos’ de ‘ferocidade repugnante’.” Joaquim dos Anjos - carteiro, acredita-se músico escreveu a polca, valsas,tangos e acompanhamentos de modina. polca: siti sem unhas; valsa: mágos do coração. Uma polca sua - "Siri sem unhas" - e uma valsa - "Mágoas do Coração: - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas pianos da Rua do Ouvidor. O seu saber musical era fraco; adivinha mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudo. Aprendeu a "artinha" musical da terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igrejas a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor, mas não saíra dela, para ir além" (p.21/22) Natural de Diamantina, filho único. A convite de um inglês, pesquisador, foi para o Rio de Janeiro e lá ficou. Confiava em todos que o rodeavam. "Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consiência." (p.115) Dona Engrácia - era católica, romana, filhos trazidos na mesma religião, era caseira, insegura, e rude. Calado - músico e compositor brasileiro (polcas "Cruzes, minha prima!")

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Patápio Silva - "Uma polca sua - "Siri sem unha"- e uma valsa - "Mágoas do coração" - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de música e piano da Rua Ouvidor." (p.21). João Pintor - era um cidadão que visitava "os bíblias" aqueles que pregavam o evangelho. "era preto retinto, grossos lábios, malares proeminentes, testa curta dentes muito bons e muitos claros, longos braços, manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés que não havia calçado."(p.25). Mr. Shays - chefe da seita bíblica, homem tenaz cheio de eloqüência bíblica faz seus adeptos ouvir a palavra. Quando os adeptos se acham preparados põem-se a propagá-la. Eduardo Lafões - religiosamente ia aos domingos à casa de Joaquim para jogar o solo. Eduardo Lafões gostava dos assuntos do comércio. Era um homem simplório, que só tinha agudeza de sentidos para o dinheiro. Vivendo sempre em círculos limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era dele, para se interessar generosamente por alguém. Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo - pais de Cassi. O pai não gostava dos procedimentos do filho, enquanto a mãe, cobria-lhe as desfeitas com as proteções. Dona Margarida Weber Pestana - viúva, mãe de Ezequiel, descendente de Alemão; ela, russa. Casou no Brasil com tipógrafo que falecera dois anos após o casamento. Era dona de uma pensão, mulher corajosa. "O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinho de Amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade que era mulato, mais tinha os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos e nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno." (p.60) D. Laurentina Jácone - gostava de rezer, ficar zelando a igreja. D. Vicêntina - cartomante. "Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na vizinhança também e vivia a deitar cartas e cortar "cousas feitas". O seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de cartomante com toda a seriedade e convicção."(p.60) Praxedes Maria dos Santos - "gostava de ser tratado por doutor Praxedes. Foi um dos convidados de Joaquim. Era um homem bom. Ficou indeterminada das correspondência de Clara com o Cassi. Etelvina - crioula, colega de Clara, notou a impaciência de Clara porque o rapaz Cassi ainda não chegara à festa. Leonardo Flores - grande poeta. Velho Valentim - era português.

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Barcelos - um português fichado na detenção. Arnaldo - era um colega do grupo dos valdevino (desoculpados que andava com Cassi). "Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido procurar por "Seu" Menezes, que ele conhecia. - Se ele não estiver? - indagou Arnaldo. - Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem estar, entre outros o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você ouvir, guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse dele." (p.91). Menezes - o dentista da família. Intermediário dos bilhetes e cartas de Cassi para Clara. Senhor Monção - caixeiro vendedor; Belmiro Bernedes & Cia. - "tocava realejo", era um moço português, simpático, educado, e bom porte. Helena - tia de Marramaque, econômica, prendada, costurava para o arsenal do governo. D. Castolina - mulher de Meneses. Leopoldo - marinheiro. Cedo, saiu de seio da família para melhorar de vida. Há 30 anos não via família. Meneses com a sua pobreza tratou de visitar o imrão já que eram os únicos vivos da família. Enredo Clara é uma mulata pobre, que vive no subúrbio carioca com seus pais, Joaquim e Engrácia, mulher “sedentária e caseira.” Joaquim era carteiro, “gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora”. Também “compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.” Além da música, a outra diversão do pai de Clara era passar as tardes de domingo jogando solo com seus dois amigos: o compadre Marramaque e o português Eduardo Lafões, um guarda de obras públicas. Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Convencida pela vizinha, dona Margarida, que procurara na tentativa de conseguir um empréstimo e fazer um aborto, ela confessa o que está acontecendo à sua mãe. É levada a procurar a família de Cassi e pedir “reparação do dano”. A mãe do rapaz humilha Clara, mostrando-se profundamente ofendida porque uma negra quer se casar com seu filho. Clara “agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos.” O autor representa, na figura de Clara e no seu drama, a condição social da mulher, pobre e negra, geração após geração. No final do romance, consciente e lúcida, Clara reflete sobre a sua situação: “O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...” E, na cena final, ao relatar o que se passara na casa da família de Cassi Jones para a sua mãe, conclui, em desespero, como se falasse em nome dela, da mãe e de todas as mulheres em iguais condições: “— Nós não somos nada nesta vida.”