análise do conto: o homem que sabia javanês

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Considerações Gerais sobre O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto: Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1911, pela Gazeta da Tarde. O relato satírico é uma característica de Lima Barreto como contista. O texto chama atenção por sua modernidade. Apesar da data, o tema continua atualíssimo. Isso porque ele discute, de maneira crítica, como nos deixamos impressionar por um palavreado “difícil”. Como a nossa sociedade valoriza esse tipo de comportamento, seja por meio do palavreado complicado dos médicos, dos engenheiros ou, mesmo, dos nossos políticos. A verdade é que muitos não compreendem, mas respeitam. Justamente por não compreender. Seria esse tipo de linguagem uma forma de domínio ou de poder? Por que essa modalidade de fala remete tanto respeito e reverência das pessoas? É isso que Lima Barreto em O homem que sabia javanês busca revelar. Esse fascínio social pelo que consideramos culto, respeitável. Ele satiriza de forma interessante o quanto nossa sociedade valoriza os “doutores”, bem como a valorização das aparências e do jogo de favores, por meio do personagem Castelo, cujo próprio nome já traduz a ostentação ao poder. O conto mostra um retrato do Brasil e do brasileiro. A vocação para o improviso, o chamado “jeitinho brasileiro”, a malandragem, a “lei” do levar vantagem e, mais do que isso, a cultura de valorizar o status, as aparências. Tudo isso sob o protecionismo da troca de favores. Impossível não destacar também a desordem “camuflada” por meio das tantas burocracias. Como o próprio Castelo diz, énum Brasil burocrático e imbecil que se acham as oportunidades para as "belas páginas da vida". Personagens: Lima Barreto “constrói” seu narrador-personagem com as seguintes características: Nada sabemos de suas origens. Apenas que frequentou a escola da malandragem. Viajado, vivia de “cambalachos”, de pequenos expedientes. Embora não tivesse dinheiro, tendo de se mudar de pensão por falta de pagamento, não quer saber de trabalho regular, com horário e monotonia. Seu universo, até conhecer o barão, era o das ruas, dos bondes lotados, dos pagamentos atrasados. Obrigado a se virar, Castelo aprende a ter olho para as oportunidades, para os “trambiques” rendosos. Disposto a levar vantagem em tudo, não tem escrúpulos em enganar, mentir, para defender o seu. Assim, para haver malandro é preciso haver “ingênuo”. No conto, esse papel é protagonizado pelo Barão de Jacuecanga, aluno de javanês, preocupado apenas em garantir a boa forma de sua descendência. Seu interesse pelo javanês é apenas aparente. Apesar do título e do dinheiro, é supersticioso (teme não cumprir o desejo do pai e condenar a família à infelicidade). Ingênuo, tolo, cai em todas as mentiras de Castelo. Afinal, não é todo dia que se encontra um professor de javanês! Superficial, sem um interesse real pela tal língua, bastam-lhe o título e o cumprimento formal de um pedido. Ao lado do Barão estão todos aqueles que estupidamente veem em Castelo a imagem que o Barão ajudou a criar - a de um sábio respeitável. O título de professor de javanês cala a cobrança do empregado de pensão. "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! Onde estava!", admira-se o genro do barão. Chefes de seções do serviço público, os informados da rua e até o Visconde de Caruru - todos reconhecem nele um ser superior,

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Page 1: Análise do conto: O homem que sabia javanês

Considerações Gerais sobre O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto:

Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1911, pela Gazeta da Tarde. O relato satírico é

uma característica de Lima Barreto como contista. O texto chama atenção por sua

modernidade. Apesar da data, o tema continua atualíssimo.

Isso porque ele discute, de maneira crítica, como nos deixamos impressionar por um

palavreado “difícil”. Como a nossa sociedade valoriza esse tipo de comportamento, seja por

meio do palavreado complicado dos médicos, dos engenheiros ou, mesmo, dos nossos

políticos. A verdade é que muitos não compreendem, mas respeitam. Justamente por não

compreender.

Seria esse tipo de linguagem uma forma de domínio ou de poder? Por que essa modalidade de

fala remete tanto respeito e reverência das pessoas?

É isso que Lima Barreto em O homem que sabia javanês busca revelar. Esse fascínio social

pelo que consideramos culto, respeitável. Ele satiriza de forma interessante o quanto nossa

sociedade valoriza os “doutores”, bem como a valorização das aparências e do jogo de

favores, por meio do personagem Castelo, cujo próprio nome já traduz a ostentação ao poder.

O conto mostra um retrato do Brasil e do brasileiro. A vocação para o improviso, o chamado

“jeitinho brasileiro”, a malandragem, a “lei” do levar vantagem e, mais do que isso, a cultura de

valorizar o status, as aparências. Tudo isso sob o protecionismo da troca de favores.

Impossível não destacar também a desordem “camuflada” por meio das tantas burocracias.

Como o próprio Castelo diz, énum Brasil burocrático e imbecil que se acham as oportunidades

para as "belas páginas da vida".

Personagens:

Lima Barreto “constrói” seu narrador-personagem com as seguintes características:

Nada sabemos de suas origens. Apenas que frequentou a escola da malandragem. Viajado,

vivia de “cambalachos”, de pequenos expedientes. Embora não tivesse dinheiro, tendo de se

mudar de pensão por falta de pagamento, não quer saber de trabalho regular, com horário e

monotonia. Seu universo, até conhecer o barão, era o das ruas, dos bondes lotados, dos

pagamentos atrasados. Obrigado a se virar, Castelo aprende a ter olho para as oportunidades,

para os “trambiques” rendosos. Disposto a levar vantagem em tudo, não tem escrúpulos em

enganar, mentir, para defender o seu.

Assim, para haver malandro é preciso haver “ingênuo”. No conto, esse papel é protagonizado

pelo Barão de Jacuecanga, aluno de javanês, preocupado apenas em garantir a boa forma de

sua descendência. Seu interesse pelo javanês é apenas aparente. Apesar do título e do

dinheiro, é supersticioso (teme não cumprir o desejo do pai e condenar a família à infelicidade).

Ingênuo, tolo, cai em todas as mentiras de Castelo. Afinal, não é todo dia que se encontra um

professor de javanês! Superficial, sem um interesse real pela tal língua, bastam-lhe o título e o

cumprimento formal de um pedido.

Ao lado do Barão estão todos aqueles que estupidamente veem em Castelo a imagem que o

Barão ajudou a criar - a de um sábio respeitável. O título de professor de javanês cala a

cobrança do empregado de pensão. "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah!

Onde estava!", admira-se o genro do barão. Chefes de seções do serviço público, os

informados da rua e até o Visconde de Caruru - todos reconhecem nele um ser superior,

Page 2: Análise do conto: O homem que sabia javanês

especial, digno de todo o respeito. O título gera fama e prestígio que a personagem sustenta

aplicando golpes sucessivos, safando-se, na malandragem, das situações difíceis.

Situações essas que também o fazem contar com a sorte, como as várias vezes em que ele

teve sua farsa “desmascarada”. Além disso, as heranças recebidas tanto por ele (do

Barão)quanto pelo próprio Barão (do parente português), o que sustenta e dá verossimilhança

ao enredo, já que eles deveriam ter dinheiro para sustentara farsa, a “pompa”, como os

inúmeros banquetes e publicações em jornais do exterior.

As publicações em folhetins (que dão a “cara” de novela ao conto) também criam suspense na

história, pois colocam a personagem em perigo. O herói é quase desmascarado, mas salvo no

último instante como os heróis do folhetim.

Linguagem:

Esperto, sortudo, Castelo também é debochado. É em tom de piada que ele narra sua história

ao amigo Castro. A situação cria um clima informal para a conversa. Estão em uma confeitaria,

bebendo. Nesse contexto, o caso ganha ares de assunto mundano. Um caso engraçado para

se contar em mesa de bar. O golpe do narrador vira uma piada que ridiculariza ainda mais

todos os que acreditaram nele, tornando-os caricaturas grotescas da ingenuidade, da

estupidez. O tom da narração sugere que a malandragem é motivo de orgulho para o narrador.

Ele aprendeu que o reconhecimento social nada tem a ver com verdades. Por isso, pode contar

seu grande golpe sem culpas, e até rir daqueles que o levaram a uma glória confortável.

Castro, seu interlocutor, pouco interfere na narrativa. Na verdade está mais próximo do leitor

que de Castelo. Entre incrédulo e ingênuo, suas observações são as que qualquer um de nós

poderia fazer diante de uma história tão "absurda". A ingenuidade de Castro acaba por reforçar

a esperteza de Castelo, que, ao lado dele, parece muito mais habilidoso e experiente no jogo

das relações.

O tom da narração determina também a linguagem do texto: coloquial, tão informal quanto a

situação em que se encontram as personagens. Construções sintáticas simples, gírias e

expressões do cotidiano somam-se ao humor do narrador para transformar o conto num

flagrante do cotidiano.

Espaço:

O Rio de Janeiro do início do século XX aparece na confeitaria onde os amigos conversam,

nos bondes cheios de "cadáveres", na referência à Biblioteca Nacional, ao Jornal do

Commercio, à rua Conde do Bonfim.

Nesse espaço, também, notam-se os limites sociais que Castelo, em sua trajetória, consegue

romper. Ao mundo das pensões e dos bondes lotados opõe-se a reconfortante alameda de

mangueiras da casa do Barão, com suas porcelanas finas e retratos emoldurados em dourado,

a própria confeitaria, lugar, naquele tempo, refinado e frequentado pela burguesia bem

sucedida. O fechado mundo do Barão cede, afinal, à malandragem que Castelo aprendeu no

mundo da rua. Ao ceder, esse mundo fechado, aparentemente ordenado, torna-se cúmplice da

malandragem.