análise da adaptação dona casmurra e seu tigrão, de ivan jaf

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DONALIA M. J. F. BASSO ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO DONA CASMURRA E SEU TIGRÃO, DE IVAN JAF CURITIBA 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

DONALIA M. J . F. BASSO

ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO

DONA CASMURRA E SEU TIGRÃO ,

DE IVAN JAF

CURITIBA

2012

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DONALIA M. J. F. BASSO

ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO

DONA CASMURRA E SEU TIGRÃO ,

DE IVAN JAF

Monografia apresentada à disciplina de Prática de Pesquisa em Educação II, do Curso de Letras, da Universidade Federal do Paraná, como requisito para a obtenção do título de Licenciada em Letras.

Orientadora: Profª Suzete de Paula Bornatto.

CURITIBA

2012

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AGRADECIMENTOS

À professora Suzete Bornatto pela preciosa orientação, dedicação e boa-

vontade.

Ao meu marido, Gabriel, leitor e crítico das minhas escritas. Companheiro para

a vida toda.

Aos meus pais por terem despertado em mim o gosto pela leitura.

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RESUMO

A partir da teoria literária sobre os elementos do romance e sobre o romance

Dom Casmurro em especial, realizou-se neste trabalho a análise da adaptação

Dona Casmurra e seu tigrão, de Ivan Jaf, com a intenção de salientar o aspecto

paradidático de um livro clássico adaptado, tendo como elemento norteador os

artifícios usados pelo mais conhecido adaptador da nossa língua, Monteiro

Lobato. A Análise do texto de Ivan Jaf foi feita por meio de mapeamento e

comparação com a obra original a fim de levantar os recursos utilizados, as

escolhas feitas pelo autor da adaptação, tendo em vista a manutenção da

integralidade da obra original e o seu público-alvo.

Palavras-chave : Adaptação; Dom casmurro; paradidático.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 6

2. DISCUTINDO O CONCEITO ............................................................................................ 8

3. ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO DONA CASMURRA E SEU TIGRÃO ....................... 13

3.1. Elementos da obra ................................................................................................. 13

3.2. Os recursos utilizados para a leitura de Dom Casmur ro ............................ 16

3.3. Mediação da leitura ................................................................................................ 18

3.4. O leitor em potencial ............................................................................................. 25

3.5. O enredo ................................................................................................................... 25

3.6. A linguagem da adaptação .................................................................................. 27

4. CONCLUSÃO ................................................................................................................... 30

5. REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 32

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1. INTRODUÇÃO

“Purismo e preciosismo vocabular”

Ao ouvir da professora de Língua Portuguesa essa frase sobre o

parnasianismo, os alunos do 2.º ano do Ensino Médio ficaram agitadíssimos, a

frase que eles apresentaram como resposta a essa exposição foi:

“- Meu Deus, professora, que língua você está falando?”

Indagação que me surpreendeu, levando em conta que estavam a exato um

ano de pleitear uma vaga na Universidade e tendo, há pelo menos dois anos,

aulas sobre leitura e literatura. Acabei questionando o modo como essas

características são trabalhadas, são contextualizadas ou são simplesmente

colocadas em tópicos para que o aluno as decore? Como é trabalhada a

questão vocabular e de interpretação, enfim?

Pensando nisso, e em outros aspectos de que falarei ao longo desse estudo,

decidi trabalhar com o que, a priori, denominarei “Adaptação literária”, que

pode envolver a adaptação da obra literária no mesmo gênero, apenas para

fins diferentes, como, por exemplo, a adaptação de uma história para crianças.

Embora o livro que será analisado não tenha o objetivo, apenas, de facilitar a

leitura atualizando, por exemplo, o vocabulário, ele põe em questão a análise e

a crítica literária, fazendo com que a leitura de fruição seja também uma leitura

base para o entendimento da escrita do autor do clássico do qual se adapta,

neste caso, a de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

“Clássicos”, segundo Ítalo Calvino: “(...) são aqueles livros que quanto mais

pensamos conhecer por ouvir dizer, mais se revelam novos, inesperados e

inéditos, quando são lidos de fato. (...) São aqueles livros que chegam até nós

trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si

os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais

simplesmente na linguagem ou nos costumes). Toda primeira leitura de um

clássico é na realidade uma releitura.”. Os clássicos são livros consagrados

pela crítica, por estar à frente de seu tempo e por se sobrepor ao tempo, são

atuais mesmo distando anos de sua concepção.

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O livro que será analisado é destinado a alunos do Ensino Médio e intitula-se

Dona Casmurra e seu tigrão, de Ivan Jaf, autor também de outras adaptações.

Leituras desse tipo não são bem vistas por alguns estudiosos que acreditam

não haver substituições para o texto-base, o texto original. O linguista Luiz

Percival Leme Britto, por exemplo, acredita que essas adaptações de clássicos

para uso escolar

[têm] uma intenção deliberada de facilitação, através da escolha de um léxico enorme, já que se destrói o próprio mais próximo do que seria uma linguagem acessível ao leitor jovem e de uma sintaxe em que se evitam frases longas, inversões sintáticas ou intercalações excessivas. [...] Evidentemente o prejuízo para a leitura da obra literária é clima da narrativa e se neutralizam, além do que seria inevitável em qualquer tradução, as marcas próprias do estilo do autor.

Se, em traduções literárias, esta estratégia se manifesta com alguma frequência, no caso de redações de textos didático-expositivos é a regra. (1997, p. 260)

Questionarei esse ponto de vista, partindo da observação – feita durante os

estágios de docência - de que parece não haver trabalho de leitura de obras

inteiras tanto com alunos do Ensino Fundamental quanto do Médio,

principalmente na rede pública de ensino. Sem estímulo na sala de aula e,

considerando a realidade da maioria dos alunos de escola pública, sem

estímulo em casa, os alunos acabam não tendo contato com a leitura de obras

integrais, ela fica restrita aos textos curtos e rápidos. Por isso, os alunos

precisam ser estimulados a partir, por exemplo, da leitura de textos que se

aproximem, inclusive, do seu universo vocabular. Não para substituir a leitura

do texto original, mas para instigá-los a lê-lo e a entendê-lo.

Além disso, segundo Maria Teresa Gonçalves Pereira (2005):

Considera-se a adaptação também literatura, caso seja realizada por escritores que assim a concebem, com resultados estimulantes. (...) O adaptador de talento mantém a literariedade do texto, apenas tornando-o mais simples. Não se trata de tarefa fácil pois, mesmo manipulando o seu próprio acervo linguístico, são muitas as armadilhas que podem comprometer o texto adaptado, afastando-o irremediavelmente do texto original, daí haver adaptações e adaptações. (p.19)

Analisarei a obra de Ivan Jaf, por meio de mapeamento e comparação com a

obra original a fim de levantar os recursos utilizados, as escolhas feitas pelo

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autor da adaptação, tendo como foco a manutenção das características da

obra original e o seu público-alvo, para fim didático.

2. DISCUTINDO O CONCEITO

Em Dona Casmurra e Seu Tigrão, as falas da personagem Lu (quem apresenta

o clássico ao personagem Barrão e ao leitor da adaptação) configuram-se, em

termos teóricos, como paráfrase1, que é uma mudança de linguagem (a

maneira como se diz), sem, no entanto, alterar-se o seu significado (o que se

quis dizer). É uma afirmação do que já foi dito, podendo ser considerado como

um texto que explica e simplifica alguma passagem obscura de um outro texto

(o texto-base).

Quando pensamos em um texto “adaptado”, tendemos a nos deter em

diferentes mídias, por exemplo, um texto que é adaptado para o teatro ou para

a televisão. Ou, no caso da adaptação “texto para texto”, uma facilitação na

linguagem apenas, mantendo a sequência e a ideia do texto original de uma

forma simplificada, sem mediadores.

Há ainda outros termos como: “Releitura”, “Uma leitura de”, “recriação literária”,

“baseada em”; todas elas consistem na criação de uma nova obra, realizada a

partir de outra feita anteriormente, acrescentando nessa nova produção um

toque pessoal e uma nova maneira de ver e sentir, de acordo com a cultura e a

vivência de cada pessoa; todas elas, portanto, podem ser apresentadas sob o

título “adaptação”.

Para entendermos o que significa a “adaptação de clássicos” hoje, precisamos,

antes, entender o que é um “Cânone” (ou “Clássicos”), sobre isso João Ferreira

Duarte escreve no E-Dicionário de Termos Literários:

(...) o conceito e o termo vieram progressivamente a ser aplicados ao domínio da literatura, muitas vezes sob a forma de expressões como "os clássicos" ou "as obras-primas” (...) O cânone literário é, assim, o corpo de

1 SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia paráfrase & Cia. 7.ed. São Paulo: Ática, 2003. (Série

Princípios).

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obras (e seus autores) social e institucionalmente consideradas "grandes", "geniais", perenes, comunicando valores humanos essenciais, por isso dignas de serem estudadas e transmitidas de geração em geração.

Mais adiante, o autor põe lado a lado cânone e adaptadores/adaptação:

De acordo com os estudos empíricos da literatura, com origem na obra do teórico alemão Siegfried Schmidt, são quatro os elementos básicos do sistema de comunicação literária: produtores, intermediários, receptores e agentes de transformação. É a estes últimos (críticos, tradutores, imitadores, adaptadores, etc.) que cabe o papel sistemicamente central de canonizadores. A teoria do polissistema, primeiro desenvolvida em Israel por Itamar Even-Zohar, opera com os conceitos de centro e periferia, respectivamente a literatura canônica, legitimada pelos estratos sociais dominantes e a literatura marginal (popular, de massas, etc.). O acesso ao cânone, fonte de evolução do sistema, faz-se pela migração ou transferência de textos e normas estéticas da periferia para o centro. (2012)

Ou seja, a adaptação é vista, assim, por meio de uma linguagem periférica e,

portanto, mais acessível, como uma “divulgadora” do cânone. Quanto mais a

obra fizer sentido para um maior número de leitores, por mais tempo

permanecerá sendo lida, sendo atual.

Quando escolhi esta adaptação como tema da minha monografia, deparei-me

com outras tantas adaptações e releituras da obra de Machado de Assis. Uma

delas, também voltada para o público infanto-juvenil, chama-se Dom Casmurro

e os discos voadores, numa clara referência ao clássico de Machado de Assis.

Essa é uma obra que mantém os elementos essenciais do clássico, mas que

são transpostos para um contexto diferenciado, o fantástico. Do conteúdo da

obra original, de 30 a 40% foi preservado, segundo o escritor (em uma

entrevista dada à Folha.com): "Era obrigatório manter alguns trechos, como o

da descrição dos olhos de ressaca de Capitu. Mas mesmo esses trechos ficam

com um sentido completamente diferente à luz do resto do texto, que foi quase

totalmente reescrito." Esse é um livro que foi lançado recentemente, em 2010,

com o selo Lua de Papel, que integra uma coleção cujo nome é “Clássicos

fantásticos”.

Outra adaptação, ou releitura, com a qual me deparei ao vasculhar adaptações

de Dom Casmurro, foi o livro Amor de Capitu, escrito por Fernando Sabino, que

já tem quatro edições publicadas. Trata-se de uma revisitação ao clássico sob

um novo ponto de vista. Diferente da original, nesta obra não há um narrador.

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Ao transpor o texto de Machado de Assis para a terceira pessoa, Fernando

Sabino acaba por aumentar o mistério já antes implantado. Abrindo outras

possibilidades de interpretação da história, mas não a modificando, no que

concerne à história contada e aos personagens.

Há ainda outras recriações feitas nos mais diferentes contextos que revisitam a

obra Dom casmurro de Machado de Assis, o que acaba por afirmar a

importância desse autor na cultura brasileira.

Neste trabalho, no entanto, me deterei na adaptação Dona Casmurra e seu

tigrão, em que temos a facilitação da linguagem, mas a partir de resumos e de

citações do texto original. Essa leitura é feita pelos personagens, (a

personagem Lu como mediadora e o personagem Barrão como leitor

principiante) que configuram a história principal do livro.

Recurso muito parecido com o de uma adaptação que já virou um clássico,

Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato. Aqui a história contada é a de

Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, enquanto a história vivida é a do Sítio

do pica-pau amarelo. Dona Benta é quem conta, ela começa lendo a história

original, mas é ignorada pela boneca Emília, que não entende uma palavra do

que é dito e prefere ir brincar:

- Ché! – Exclamou Emília. – Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. (...) Não entendo essas viscondadas, não... (LOBATO, 1965, p.12)

E Dona Benta pondera:

- Meus filhos – disse Dona Benta – esta obra está escrita em alto estilo, rico de tôdas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas. (Idem, idem)

Emília aprova:

- Isso! – berrou Emília. – Com palavras suas e de tia Nastácia e minhas também – e de Narizinho – e de Pedrinho – e de Rabicó. (...) Nós, que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo clara de ôvo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido. (Idem, idem)

Para a aproximação do clássico com o leitor, portanto, fazem-se necessárias

estratégias de superação das dificuldades em relação à linguagem, a

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simplificação, e não banalização: “um texto pode manter-se vigoroso com

palavras que pertencem ao vocabulário comum, dispensando as eruditas ou

utilizando-as apenas num contexto que as exija” (PEREIRA, 2005). É o que

acontece nessa obra, apesar de a linguagem ser repensada para o público

infantil, Monteiro Lobato, por meio de Dona Benta, não deixa de trabalhar com

termos que não estão no campo de conhecimento dos pequenos, mas que

podem vir a estar, depois de devidamente explicados e contextualizados:

-D. Quixote já não estava armado? – observou Emília.

- Ser “armado cavaleiro” é coisa diferente de um cavalheiro armar-se com armadura e armas. Ser armado cavaleiro é “receber o grau de cavaleiro andante dado por outro cavaleiro”. (Idem, p. 19).

Temos nessa obra uma história dentro de outra história. As crianças do sítio

fazem o papel dos leitores em potencial dessa obra de Monteiro Lobato. Os

questionamentos delas e as explicações de Dona Benta é o que deixa a obra

de Cervantes como “clara de ovo” para o leitor dessa adaptação. A história não

é contada integralmente, como deixa claro Dona Benta:

(...) O menino queria saber se ela estava contando a história inteira ou só pedaços.

- Estou contando apenas algumas das principais aventuras de D. Quixote e resumidamente. (...) Para vocês, miuçalha, tenho de resumir, contando só o que divirta a imaginação infantil. (Idem, p.168).

Faz-se uma escolha pelas aventuras que atraiam mais a meninada. A intenção

é levar o clássico ao leitor em condições tais que resultem em recepção

verdadeiramente prazerosa, além de produtiva e enriquecedora. Instigando a

posterior leitura do original, quando o leitor estiver mais amadurecido.

Segundo Ana Maria Machado:

Não é necessário que essa primeira leitura seja um mergulho nos textos originais. Talvez seja até desejável que não o seja, dependendo da idade e maturidade do leitor. Mas creio que o que se deve procurar propiciar é a oportunidade de um primeiro encontro. Na esperança de que possa ser sedutor, atraente, tentador. E que possa redundar na construção de uma lembrança (mesmo vaga) que fique por toda a vida. Mais ainda: na torcida para que, dessa forma, possa equivaler a um convite para a posterior exploração de um território muito rico, já então na fase das leituras por conta própria. (2002, p. 12-3).

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Nessa obra, então, o autor tem a intenção de apresentar um clássico universal,

mas na dose certa para a faixa-etária a que se destina, que interesse a seus

interlocutores e que seja suficientemente apresentado para que eles

carreguem-no em suas lembranças para o resto da vida. A escolha do

vocabulário que se aproxime da linguagem partilhada pelo público-alvo, e a

ambientação da “história vivida” - a das crianças que vão passar as férias na

casa da avó, onde tem uma cozinheira de mão cheia, espaço físico e

imaginação de sobra - aproximam o leitor que apresenta ou almeja as

características das crianças e do ambiente que elas habitam e, principalmente,

as aventuras que elas vivem. O que se procura nessas leituras é a

aproximação com o mundo do leitor, das histórias fantásticas e de aventuras, e

o nível de facilidade de leitura que culmina no maior entendimento do que se lê.

Características que Lobato faz louvavelmente em Dom Quixote das Crianças, o

que fez com que a obra se tornasse um clássico da literatura infantil, lida e

relida até hoje por crianças, adolescentes e adultos.

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3. ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO DONA CASMURRA E SEU TIGRÃO

Voltando ao texto-base desta análise, para entender os artifícios usados pelo

autor adaptador é fundamental estabelecer um paralelo entre o clássico e sua

respectiva adaptação. Dom Casmurro é uma obra que se distingue pela

originalidade quanto aos aspectos formais e quanto ao trabalho com a

linguagem, e é uma obra embasada pela concepção literária de texto - daí ser

denominada “clássica”-, já Dona Casmurra e Seu Tigrão é um texto

fundamentado pela concepção pedagógica de texto, e busca facilitar a obra de

Machado de Assis para o leitor. Para isso, Ivan Jaf constrói sua história por

meio do tema “ciúme”, o mesmo da obra de Machado de Assis. Os artifícios

utilizados por ele, colocados em paralelo ao romance original, serão discutidos

a seguir.

3.1. Elementos da obra

No texto de Ivan Jaf existe uma história inventada, que se passa no Rio de

Janeiro de hoje e que serve de pretexto para o estudo da história de Dom

Casmurro. A ambientação da história é feita quase que inteiramente no colégio,

mais especificamente na biblioteca da escola, mas perpassa também

ambientes como o banheiro da escola, a delegacia da Gávea, a casa de

Pâmela, a casa de Barrão, a casa do professor de história particular de Barrão,

a lagoa Rodrigo de Freitas, a escadaria da Biblioteca Nacional e o Museu de

Arte Moderna. Todos os lugares relatados servem apenas de “pano de fundo”

para a história, e quase sempre apresentam apenas um teor pedagógico,

educacional, remetendo-se, direta ou indiretamente, a ambientes onde, de

alguma forma, o estudo impera.

Dom Casmurro também se passa no Rio de Janeiro, mas do século 19. Nessa

obra, a ambientação tem como função não apenas a imagética, é também um

trabalho de reforço ao entendimento das relações sociais da época. A

descrição da casa de D. Glória, mãe de Bentinho, por exemplo, denota a

posição social em que essa família se encontra; e na passagem em que o

narrador fala da disposição de sua casa em relação à de Capitu (uma dividindo

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muro com a outra), a posição social da família de Bentinho em relação à de

Capitu fica ainda mais evidente:

Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de um corda. Era quase que exclusivamente nossa.

Além da proximidade das casas, evidenciando a relação de proximidade

existente entre os personagens principais desde a infância, nessa passagem, o

verbo “mandar” deixa claro também a relação existente entre a família de

Bentinho e a de Capitu, esta bastante humilde e aquela abastada, a de

superioridade social.

Existem duas personagens protagonistas na adaptação:

Barrão: Adolescente, 17 anos, com pais separados, lutador de jiu-jítsu, “filhinho

de mamãe” que não consegue controlar seus impulsos violentos e acaba por

se encrencar com a polícia por agredir um possível amante de sua namorada

(motivado pela paranoia do ciúme) e que é, na verdade, tio da menina e

militante dos direitos homossexuais. Ameaça bater na namorada, e a mãe dele

tem medo que ele também o faça com ela. Enfim, Barrão é descrito apenas por

meio de atributos físicos, o estereótipo de um adolescente pitboy2 que em tudo

vê como solução a violência e tem pouco, quase nenhum, contato com a

literatura. Para ele, ler um livro chega a ser desconfortável:

Barrão não gostava de livros. Achava livro uma perda de tempo absurda. Era obrigado a estudar por meio deles. Pegar um livro à toa, nem pensar. (...) Era difícil folheá-los com aqueles braços curtos e os grandes peitorais de músculos inchados. (JAF, 2005, p. 15).

A outra personagem-protagonista da história é apresentada apenas pelo

apelido “Lu” (uma aproximação ao mundo adolescente), uma estagiária de

biblioteconomia; inteligente, que conhece literatura, livros, contextos, autores,

2 Pitboy é um estereótipo ligado a indíviduos do sexo masculino, de grande porte físico, que frequentam

academia e praticam artes marciais, e que habitualmente se envolvem em brigas. A origem da palavra vem da contração de “playboy” e “pit bull” (cão feroz).

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enfim que é intelectualizada, “CDF”, nos termos dos adolescentes, mas que

tem problemas pessoais de ordem amorosa, como Barrão, talvez isso a

aproxime dele.

Os personagens de Dom Casmurro, criados por Machado de Assis, são

redondos, imprevisíveis, misteriosos, parciais, apresentam qualidades boas e

más. Apresentam características físicas e perfis psicológicos atrelados ao meio

social e ao modo de pensar da sociedade da época. Já os personagens criados

por Ivan Jaf são planos e estereotipados, têm poucos atributos e são facilmente

identificados. Embora ao longo do texto ambos mudem sua atitude, eles são

previsíveis, e sua construção é plastificada – o que é compreensível, levando

em conta que o objetivo principal de uma obra paradidática é apresentar e

salientar o conteúdo principal, nesse caso, a história de Dom Casmurro.

As motivações para a leitura do clássico são de caráter prático (como para

grande parte dos pré-adolescentes):

Motivação 1ª: Barrão, adolescente, 17 anos, lutador de jiu-jítsu, ouve no

banheiro da escola dois colegas chamarem sua namorada de “tremenda

Capitu”. Ele, o próprio estereótipo do adolescente pitboy, que só malha os

músculos do corpo, não sabe o significado de “Capitu” e acaba indo pesquisar

no computador da biblioteca esse termo que lhe parecia tão ofensivo. Lá

conhece “Lu”, a bibliotecária, um ano mais velha, e alguns anos mais madura,

que o acalma dizendo que esse termo vem de um “romance famoso”:

- Você nunca tinha ouvido essa palavra? - Não. E daí? - Capitu é a personagem feminina principal de um livro chamado Dom Casmurro, de Machado de Assis. - Tô nem aí. - Nunca leu esse livro, não é? - Não gosto de livro, tá ligada?(...) (Idem, p. 19)

Motivação 2ª: Esse livro (Dom Casmurro) está “escalado” como leitura

obrigatória na aula de Língua Portuguesa e, por isso, cairá na prova. Como

Barrão está pendurado nessa matéria, terá que estudar muito para conseguir

passar de ano.

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(...) Peraí... Como é que é mesmo o nome que você falou? - Dom Casmurro. Barrão deu um soco na mão esquerda: - Caraca! Lembrei! A professora de português mandou a gente ler esse Dom Casmurro pra prova, semana que vem! Preciso tirar mais que nove, senão repito o ano! E eu nem comecei... Tem uma mulher chamada Capitu no livro? - Com certeza. - Então é por isso que aqueles dois falaram nela! A turma toda já tá lendo o livro, menos eu. Já deve tá todo mundo sabendo. Quem é o corno na história do livro? - O nome dele é Bentinho. É o tal do Dom Casmurro. Mas ninguém pode provar de fato que houve traição. (Idem, Idem)

Barrão, então, é um menino problemático e com algumas limitações no que

tange às atividades escolares. No terceiro capítulo, nominado “Musculação

cerebral”, ele pede ajuda à Lu para ler Dom casmurro.

Também é interessante contrastar o tempo da narrativa nas duas obras. Para

facilitar a obra Dom Casmurro, Ivan Jaf opta por deixá-la linear, sem voltas ao

passado. Ele apresenta os acontecimentos de acordo com a sequência

temporal em que eles acontecem. Ao contrário do que é feito no livro Dom

casmurro, em que o narrador nos faz passear entre o passado e o presente

num constante vaivém.

3.2. Os recursos utilizados para a leitura de Dom C asmurro

O autor da adaptação opta por suprimir 48 capítulos, dos 148 da obra Dom

Casmurro. Sempre que o narrador acha ser dispensável algum trecho do

original, ele explica com suas próprias palavras, como acontece, por exemplo,

com os capítulos LXXXIV, LXXXV, LXXXVI, LXXXVII, LXXXVIII, LXXXIX, XC,

XCI, que foram condensados em uma frase apenas: “Agora Machado vinha

com uma história ainda mais estranha, sobre um rapaz com lepra tendo uma

morte horrível, que faz Bentinho concluir que sua vida era ótima.”. (p. 91).

Esta redução acaba eliminando uma parte importante do efeito que, segundo

os críticos, o autor do clássico queria produzir e que é bastante comentado,

vejamos o comentário feito por Alfredo Bosi:

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Examinando a estrutura do romance, vê-se que a extensão concedida ao drama conjugal é relativamente pequena: o último terço do livro. Tudo indica que o interesse maior do autor se tenha fixado nos caracteres que vão sendo construídos com maestria por um processo lento de acumulação de traços de comportamento, diálogos episódios e comentários psicológicos e morais. (2002, p. 59)

Essa escolha do autor Machado de Assis é, então, um recurso utilizado para

dar corpo e veracidade à versão transmitida aos leitores por Bento Santiago,

que, por meio dos detalhes mais ínfimos, acaba por tentar delinear os traços

comportamentais tanto dele, quanto da sua acusada, Capitu.

Não fica clara para o leitor da adaptação a escolha pela supressão de alguns

capítulos. Apenas são indicados, por meio da personagem Lu, os capítulos

considerados os mais importantes do livro, os decisivos para o

encaminhamento e o desfecho da história. São eles: os capítulos XXXII (Olhos

de ressaca), XXXIII (O penteado) e o XXXIV (Sou homem!). Talvez por isso

haja uma grande parte de citação, embora também com resumos

simplificadores. Todos esses capítulos estão ligados à passagem em que

Bentinho, enquanto penteava os cabelos de Capitu, troca com ela o seu

primeiro beijo. Além desses, o capítulo CVIII (Um filho) também é mencionado

como importante, ele trata do nascimento do filho de Bentinho com Capitu, o

qual se chamou Ezequiel, primeiro nome de Escobar – que era o melhor amigo

de Bentinho, e o qual Bentinho acreditava ser amante de sua mulher.

Podemos notar na estrutura dessa adaptação que os capítulos são bastante

curtos, tal como na obra Dom Casmurro. Talvez seja uma tentativa de

aproximação à estrutura do clássico de Machado de Assis e também uma

aproximação aos leitores-alvo, viventes em um mundo em que as informações

são cada vez mais rápidas, objetivas, diretas para acompanhar as constantes

inovações tecnológicas.

Barrão faz o papel do leitor da adaptação, o adolescente inquieto, reproduzindo

as dúvidas e as inquietudes geradas ao ler o clássico. A personagem Lu é a

mediadora dessa leitura, é ela quem desfaz as dúvidas de Barrão e acaba

deixando a leitura do livro “estilo clara de ovo”. Já o narrador do livro,

complementa as simplificações, feita por Lu, para o leitor da adaptação.

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Para além de alterar a linguagem do texto, conformando-a à linguagem dos

jovens, essa adaptação, por meio da mediadora Lu, contextualiza-o

historicamente, apresenta dados da teoria literária e do estilo do autor, enfim,

oferece um grande material para que esse leitor principiante da obra de

Machado de Assis consiga ler, além do livro Dom Casmurro integralmente,

também as outras obras desse mesmo autor.

Como em Monteiro Lobato, a linguagem aqui não é apenas simplificada, o

autor vale-se de grande parte de citações o que acaba por colocar o leitor em

contato com a obra original. As citações são intercaladas por resumos e por

comentários a respeito da obra, do seu escritor e do contexto histórico.

3.3. Mediação da leitura

O papel de mediador da leitura ao leitor da adaptação é dividido entre a

personagem Lu e o narrador. Ela, esmiuçando cada parte do livro para o

Barrão, bem como o orientando sobre a postura correta para ler, também

orienta o leitor da adaptação, indiretamente. O narrador reforça tanto na

postura da personagem Lu, quanto na do personagem Barrão, esse caráter

didático e orientador. A Lu faz o papel do professor, o de estimulador da leitura

para o personagem Barrão – e indiretamente para o leitor –, enquanto o

narrador, onisciente, faz o mesmo papel diretamente para o leitor da

adaptação:

Lu pegou na estante um dos três exemplares de Dom Casmurro que havia na biblioteca, mandou Barrão sentar num canto afastado e começou a ler. Ela estaria ali para tirar dúvidas e dar algumas explicações. - E eu, começo por onde? – ele disse, com o livro nas mãos, assim que sentou. - Pela página 1. - Sério. Esse livro trata de quê? - Você quer que eu conte a história? - Tudo não. Mas dá só uma ideia, pra eu saber onde tô me metendo. - Tudo bem. Dom Casmurro não parece, mas é um romance sobre um amor adolescente. É passado no século XIX. - Que saco. - Não começa com ignorância, cara. Presta atenção. Resumindo: é um romance que começa na adolescência, atravessa a vida toda e termina muito mal, por ciúmes do tal Dom Casmurro. Você acaba o livro com dúvida, sem poder dizer se Capitu traiu ou não. Começa ler. Tô ali trabalhando. Lu voltou para suas fichas. Barrão abriu o volume. (JAF, 2005, p.32, 33)

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E o narrador completa, logo depois:

Machado de Assis era um cara legal, ia devagar, explicando o que ia fazer. Isso facilitava as coisas para Barrão, que costumava se perder no meio das histórias. (Idem, p. 34)

A personagem Lu, então, estimula Barrão, enquanto que o narrador estimula o

leitor da adaptação. A personagem-mediadora Lu, nesse trecho, adianta

demais a leitura para Barrão, o leitor-principiante; o que cabia ao leitor concluir,

já foi dito antes mesmo de ele começar a leitura. Uma falha, a meu ver,

cometida pela ânsia de apresentar a obra o mais didaticamente possível.

Na obra de Monteiro Lobato, Dona Benta é quem conta a história às crianças,

adaptando-a de forma que eles a entendam. Aqui o personagem Barrão lê

alguns capítulos do livro sozinho e outros a personagem Lu lê para ele. As

barreiras encontradas por Barrão quando da leitura do texto original são

desfeitas por Lu, a “Dona Benta” dessa adaptação. Uma passagem que ilustra

esse recurso é o comentário que se segue à leitura do capítulo VIII, que na

adaptação foi resumido assim:

Lu sentou-se de frente para ele e começou a ler o capítulo VIII, em que o narrador decide afinal voltar à história, a partir da cena em que está escondido atrás da porta, mas acaba lembrando de outra coisa completamente diferente: um velho amigo, um tenor italiano, numa noite de bebedeira, disse a ele que “a vida é uma ópera”, e justificou isso com uma explicação maluca pelos dois capítulos seguintes. (JAF, 2005, p. 40)

E a indagação feita pelo leitor principiante é:

- Ei – reclamou Barrão. – Esse Machado de Assis é doido? Isso não tem nada a ver com a história. (Idem, Idem)

A mediadora, então, entra em cena:

- Vai se acostumando. Isso se chama processo narrativo. Cada escritor tem o seu. Ele escreve de um jeito que parece até desleixado, como se fosse enfiando os assuntos por acaso, mas depois a gente vai entendendo que tudo tem sentido, tem uma coerência. Dom Casmurro, por exemplo, é um quebra-cabeça. Você vai ver. (Idem, idem)

No trecho acima, podemos entender a importância de uma mediação na leitura,

uma vez que, pensando no perfil de jovens leitores como Barrão, esse seria um

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20

empecilho capaz de fazê-los desistirem de continuar lendo, já que não veriam

sentido desta “fuga repentina” ao tema no desenvolvimento da história e

chegariam à conclusão de que estariam lendo “errado” a obra e/ou de que ela é

muito confusa e que não vai adiantar nada continuar a lê-la, uma vez que já “se

perdeu” a linha de raciocínio.

Outra passagem em que isso ocorre:

- Esse livro é muito estranho... – Barrão interrompeu a leitura de Lu, no final do capítulo vinte e sete. – Olha só... o cara pára de contar a história pra dizer que o mendigo pediu dinheiro ao Bentinho no meio da rua. - É assim mesmo. Os romances do Machado têm um ritmo diferente, são em ciclos, entende? Ele compõe o enredo numa sucessão de quadros. - Mas até agora não aconteceu quase nada. - Não é um romance de aventura, cara. É um romance sobre a alma humana. As pessoas têm alma, sabia? Não somos feitos de carne pura! (...) Num tipo de romance como esse o interesse do leitor não fica preso ao enredo, à aventura, mas às figuras psicológicas dos personagens. Esses episódios que você diz que não tem nada a ver é que vão dando essa densidade psicológica a eles, sacou? - Não. Não saquei nada. O que é que um mendigo pedindo dinheiro tem a ver? - Não reparou que antes de dar a moeda Bentinho pensou em Capitu, e no seminário, e afinal pediu que o mendigo rogasse a Deus por ele, a fim de que pudesse satisfazer todos os seus desejos? - Eu ouvi. Não sou surdo. - Não é surdo, mas é burro! Com um fato corriqueiro, Machado tá explicando como Bentinho agia e pensava, diante da ameaça do seminário, e da perda de Capitu. Enquanto ela se mostra prática e pensa em estratégias, ele se apega a Deus, é fantasioso, fora da realidade. No fundo bentinho quer dizer que Capitu era mesmo dissimulada, mentirosa e ele um pobre garoto ingênuo... para no final acusar Capitu de traição. - Ah... entendi. (Idem, p. 54-55).

A leitura feita pela mediadora Lu, no entanto, pode acabar com o caráter

dialógico do texto original, incutindo apenas uma interpretação possível,

estreitando a visão e fazendo com que os leitores tenham apenas um caminho

a percorrer. Por isso, é importante frisar que não devemos ver esse texto como

um substituto do texto original, podemos adotá-lo, em sala de aula, para que

ele funcione como uma introdução à leitura de Machado de Assis, uma vez que

estaríamos trabalhando com as características recorrentes e, por isso,

fundamentais para o entendimento de sua escrita no sentido amplo. Há

também que se considerar que a personagem Lu faz quase todo o papel da

professora, uma vez que a personagem explica, resume e contextualiza a obra

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21

de Machado de Assis. Por isso, o trabalho em sala de aula deve contemplar,

para além da leitura propriamente dita, a discussão em torno do tema e do

livro-base, além de uma discussão a respeito da própria construção textual que

Ivan Jaf propõe. O papel do professor, neste momento, é também o de

estimulador da leitura da obra original, por meio da discussão da obra

adaptada. Um trabalho de cotejo da obra adaptada com sua adaptação pode

proporcionar uma interessante discussão a respeito de ambas as obras.

Nas minhas pesquisas sobre esta obra, acabei deparando-me com planos de

aulas (publicados na internet) que envolviam esta adaptação. O interessante é

que um dos planos propunha a leitura de Dona Casmurra e seu Tigrão no

primeiro bimestre e a leitura de Dom Casmurro no bimestre seguinte. A

adaptação, portanto, é usada como uma introdução ao estudo do clássico

propriamente dito, e não como substituto. Outras escolas também adotaram a

adaptação para o trabalho de leitura na sala de aula, mas com

encaminhamentos diversos.

Além dos recursos literários usados pelo autor do clássico, a mediadora

também apresenta ao leitor Barrão os recursos utilizados, por exemplo, para a

escolha dos nomes das personagens:

- O nome dela de verdade era Capitolina? - É. Capitu era apelido. - Capitolina... Que horror. - Tem uma explicação. Tudo nesse livro tem uma explicação. Quer saber? - Fala aí. De repente cai na prova. - Capitolino era o nome de um cônsul romano, considerado um herói, por ter rechaçado um ataque dos gauleses ao Capitólio. - Capitólio é o quê? - Um templo na Roma antiga, dedicado ao deus Júpiter. Na época era comum o herói de guerra acrescentar ao seu próprio nome o nome do local da batalha mais importante que tinha travado; então o sujeito passou a se chamar Marcos Manlius Capitolinus. - E o que isso tem a ver com... - Tempos depois esse capitolinus, ou Capitolino, em português, foi acusado de corrupção e condenado à morte. Mas sua culpa nunca ficou bem provada. Foi um processo muito duvidoso. Corrupção era considerada uma traição à pátria. Então ficou sempre a pergunta: Capitolino teria traído ou não? - Ah... Entendi o lance... - Capitolina... Teria traído ou não? Tá vendo? Essa é uma das brincadeiras do Machado. Em cada detalhe ele quer que o leitor nunca tenha certeza da traição de Capitu. (Idem, p. 44).

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Essa já é observação a título de “curiosidade”, que é mais sofisticada, para um

leitor mais atento e mais curioso, mas que não impede o leitor, se não a tiver,

de continuar a ler o livro e entendê-lo. Porém, se ele a tem, a leitura da obra

fica, digamos, mais clara. Além disso, o leitor passará a conferir esses recursos

também em outras obras desse mesmo autor, ou seja, indicações como essa

acabam refinando a leitura. É o que acontece também com o trecho a seguir

sobre o capítulo LXII (“Uma ponta de Iago”) em que a mediadora revela a

intertextualidade presente:

(...) - Entrou um personagem novo aqui. Quem é Iago? - Não é personagem do Machado. - Então o que é que ele tá fazendo no livro? - É um personagem do Shakespeare, de uma peça chamada Otelo, o mouro de Veneza. Conhece? - Não. - É uma peça sobre o ciúme. Otelo é um general mouro, que mata sua esposa Desdêmona por causa das intrigas do traidor Iago. Ele mata Desdêmona por ciúmes, mas ela é inocente. Como eu acho que Capitu é. (....) (Idem, p. 75)

E o “carrega” até a história:

O Iago de Bentinho era José Dias. Um Iago involuntário, já que o agregado não tinha intenção de prejudicar nem de insuflar ciúmes. Queria apenas arranjar um jeito de passear pela Europa. (Idem, idem)

Vale lembrar que essa intertextualidade foi levada em conta somente muitos

anos depois da escrita da obra, em 1960,

antes prevalecia a leitura conformista, de adesão à versão do acusador. Foi a escritora norte-americana Helen Caldwell, a quem a acusação de Bentinho parecia infundada e ditada pelo ciúme quem o fez: Punha a descoberta o artifício construtivo da obra, a ideia insidiosa de emprestar a Otelo o papel e a credibilidade do narrador, deixando-o contar a história do justo castigo de Desdêmona. No básico a charada literária que Machado armara estava decifrada. (Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis, Berkeley, University of California Press, 1960. apud: Roberto Schwarz. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997).

A explicação sobre o contexto histórico em que a obra está inserida também se

configura como parte importante, uma vez que ela dista mais de 100 anos de

nós. Ao contrário do que é apresentado na adaptação, no entanto, seria

necessária, apenas, uma breve contextualização para o total entendimento do

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texto. Uma volta tão grande à história pode confundir o “leitor principiante” que

poderá se perder na explicação dada.

(...) Como a gente viu, eles tavam no ano de 1857, então o Brasil era um Império. D. João VI havia chegado aqui no Rio de janeiro em 1808, e instalado o Império português no Brasil. (...) Em 1821, D. João VI volta para Portugal e deixa o filho aqui, D. Pedro I proclama a independência do Brasil, e a gente se transforma num Império independente. Em 1831, D. Pedro I abdica e nomeia seu filho, D. Pedro II, como príncipe regente, mas como ele é menor de idade o Brasil é governado por uma Regência Trina Provisória. Mas a coisa não dá certo e, em 1840, D. Pedro II, com quatorze anos, assume o Império do Brasil. Então, no momento em que Bentinho conta sua história, o Imperador do Brasil é D. Pedro II, e tem mais ou menos 31 anos. (JAF, 2005, p.58)

- Ah, a história do órfão. Essa ideia Machado deve ter tirado de um procedimento comum na época. Os rapazes ricos pagavam para os rapazes pobres prestarem o serviço militar no lugar deles. (Idem, p. 93)

Talvez apresentar mais dados sobre os costumes da época, como foi feito na

segunda citação, seria mais interessante e mais proveitoso para o leitor desta

obra.

Há, ainda, nos esclarecimentos da personagem mediadora, a respeito da teoria

literária, algumas inconsistências e até erros conceituais, bastante pontuais, é

verdade, devido a especificações atribuídas a Machado de Assis e sua escrita,

é o que acontece na passagem:

- É assim que termina? – Barrão ficou meio indignado.

- Não. Agora vem outra característica de Machado: ir matando os personagens, deixando só o malvado. (Idem, p. 142)

Morre D. Glória, a quem Bentinho homenageou, convencendo o vigário da paróquia a deixar gravar na lápide do túmulo a inscrição “Uma santa”. Morrem José Dias, padre Cabral, prima Justina e tio Cosme.

- Capitu também morreu? - E é assim, em duas linhas, que ele trata do assunto. (Idem, p. 144)

“Matar os personagens” não é uma característica exclusiva do Machado de

Assis. Na Literatura mundial isso era recorrente, inclusive porque, naquela

época, segunda metade do século XIX, era mais comum as pessoas morrerem

muito jovens3. Além disso, textos teóricos sobre Machado de Assis quase

3 Os contemporâneos de Machado de Assis, Olavo Bilac, Lúcio de Mendonça, Artur de Azevedo, por

exemplo, não alcançaram nem os 55 anos de idade.

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nunca apresentam a morte como um tema central, como uma característica

marcante de sua obra, tal como é feito com as características: conversa com o

leitor, ironia e pessimismo.

Além disso, as extremas simplificações feitas a respeito da vida do autor do

clássico fazem com que o leitor entenda um ponto de vista como se fosse o

único possível, vejamos:

Comentário sobre a escrita de Machado:

(...) Machado era anticlerical. (...)

- Antes ele escrevia livros românticos. Depois da internação, com quarenta anos, mudou. Voltou diferente, com um estilo só dele, fora de qualquer corrente literária. Já não tinha os excessos sentimentais dos românticos, nem a frieza dos naturalistas. Passou a escrever romances psicológicos, denunciando a hipocrisia da elite, com personagens comuns, cheios de sentimentos contraditórios, egoístas, que tinham medo da opinião dos outros. Voltou pessimista e cínico. Mas com um humor incrível. Conversando com o leitor. Deixando claro que a história tá sendo contada, que a gente tá lendo um livro... (Idem, p. 93, 94)

O texto passa a ideia de que a internação do Machado foi determinante para o

aprimoramento de sua escrita. Que foi apenas devido à internação que ele se

tornou um autor diferenciado e escreveu o que ficou conhecido como a

segunda fase de sua escrita – o grande salto qualitativo. Sobre isso, Alfredo

Bosi comenta:

A passagem brusca, que se deu quando ele entrou na quadra dos 40 anos, tem suscitado interpretações várias. Lúcia Miguel Pereira rastreou um momento de crise vivido no começo de 1879: depressão, males físicos (estafa ocular e “tísica mesentérica”, no diagnóstico do próprio enfermo) e uma brecha na harmonia conjugal (a sombra de uma mulher capaz de provocar os ciúmes de Carolina) teriam sido os motivos da viagem de repouso a Friburgo, uma das raras vezes em que Machado se afastou do seu tão caro Rio de Janeiro. Um retiro forçado, ao que parece, mas que lhe teria dado condições para repensar o seu modo de considerar a si e ao próximo. (...) ‘A Mário de Alencar, que lhe perguntou um dia como, depois de ter escrito Helena, pôde escrever o Brás Cubas, explicou o romancista que se modificara porque perdera todas as ilusões sobre os homens’. (2002, p.26-7).

A causa da “ruptura”, então, como o autor ressalva, tem interpretações várias;

essa é apenas uma delas. O que é consenso, no entanto, ainda segundo o

próprio Bosi, é que Machado percorreu uma carreira ascensional, com uma

clara transição do “mediano ao excelente”.

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3.4. O leitor em potencial

Barrão chegou ao fim do primeiro capítulo, colocou o livro aberto sobre a mesa, e esticou os braços, alongando os bíceps. - Já parou? – Disse Lu. - Quando o capítulo termina é pra gente dar uma descansada, não é não? - Não necessariamente. Pode ir em frente. Ler não é musculação. Tá achando legal? - Até que não tá mal. Os capítulos são curtos. O cara escreve engraçado. E começou bem, explicando logo porque botaram o apelido nele de Dom Casmurro. Eu gosto de livro assim, que vai explicando as coisas direitinho. Por falar nisso, vem cá, o que é que quer dizer casmurro? - Teimoso, implicante, quieto, triste... Continua a ler. (JAF, 2005, p. 33-4)

Barrão é a personificação da inquietude do jovem, que precisa de alguém que

o direcione, que demora a se concentrar e que quando o faz é por pouco

tempo. Os recursos utilizados por Machado o ajudam na leitura, os capítulos

são curtos e o autor explica tudo direitinho, o nome do livro, seu apelido, o que

atrai Barrão, uma vez que ele tem dificuldade de concentração. Porém, o leitor

ainda sente dificuldade, uma vez que a obra original foi publicada há mais de

100 anos, de entender palavras que eram usuais na época da escrita do livro,

mas que, hoje, já caíram em desuso. O contexto é outro e os recursos

utilizados por esse autor consagrado são únicos (daí seu texto ter virado um

clássico) e, portanto, diferentes do que a grande maioria dos jovens está

acostumada a ler. Por isso a necessidade de alguém que os guie nessa leitura,

pelo menos nesse primeiro contato com o clássico.

O trecho citado na página anterior representa uma conversa “extra-leitura” do

livro Dom Casmurro na qual o leitor Barrão passa a limpo tudo o que foi lido, a

fim de esclarecer possíveis dúvidas do leitor em potencial. Conversas assim

percorrerão o livro todo.

3.5. O enredo

A história da adaptação configura-se como uma história semelhante à história

que está sendo lida, a de Dom Casmurro; é uma transposição. Paralelamente à

leitura do livro, as mesmas situações são vividas no contexto da adaptação,

com todas as suas especificidades.

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Enquanto que na história lida existe uma dúvida quanto à traição pela mulher

do narrador, na história vivida há a mesma dúvida, que envolve o personagem

Barrão e sua namorada, e a personagem Lu e seu namorado, e que no fim da

obra também não é sanada. Além disso, apresenta-se uma identificação por

parte do leitor do clássico, Barrão, que pode ser percebida em várias

passagens do texto:

A escrita envolvente de Machado fez Barrão mergulhar na leitura. Gostou. Descobriu que ler podia ser tão relaxante quanto duzentas flexões. Durante quase uma hora foi capaz de esquecer seus problemas. (...)” (Idem, p. 73) Barrão ficou numa agonia terrível. Era como se ele mesmo estivesse cometendo a maior estupidez de sua vida. (...) Continuou a ler, para saber como seria o encontro de Capitu com Escobar, mas Machado fugiu do assunto.” (Idem, p.90). (...) Barrão reconheceu que era a melhor descrição possível de sexo. De sexo com amor. Era aquilo que Lu chamava de sensibilidade.” (Idem, p. 105) “Barrão notou que seu coração batia acelerado. Machado criara uma expectativa terrível, como quando a câmera persegue um personagem, num filme de terror. Pintava a felicidade de Bentinho com cores tão alegres e claras que quando a tragédia e a escuridão chegassem...” (Idem, p. 106)

O livro apresenta aqui a leitura com papel humanizador, como identificação e

entendimento do mundo. Segundo Antonio Candido, em seu texto “O direito à

literatura”:

A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como um todo articulado. (...) A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo. (...) O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido. (1995, p.177-8).

O leitor Barrão, então, organiza, por meio da leitura, seu caos interior e

consegue usufruir da leitura feita. A leitura passa a ser, para ele, mais do que

uma obrigação, é ao mesmo tempo um prazer e uma dor. “Não é uma

experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas

psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e

transfiguração.”. (Idem, p.175)

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3.6. A linguagem da adaptação

A linguagem da adaptação pretende se aproximar da linguagem produzida

oralmente pelos adolescentes, com gírias como “cara” (que pode ser

encontrada ao longo de todo o livro, pois é a maneira como os dois

personagens se referem um ao outro), “Peraí” (p.19), “caraca” (p.19) “Me

ferrando” (p.31), “vou em cana” (p.31), “(...) Já ganhei muita mina assim” (p.45),

“Tá ligada?” (p. 60, 78, 98, 100, 115), “Diz aí, brother” (p.95), “Pô” (p. 93, 96),

“não se toca” (p. 101), “Segura a onda” (p.63), “Não enche” (p. 69).

Mas, ao mesmo tempo, podemos encontrar frases como “-Você é um bocado

nervosa” (p.55) na fala do personagem Barrão, o que não parece natural para

um personagem que não gosta de ler, nem tem muito contato com “outras

tribos” além daquela pertencente ao seu grupo.

Outras adequações e simplificações feitas no contexto da fala oral dos

adolescentes, isto é, no discurso informal, ficam por conta das “abreviações”,

muito comuns na fala oral, são elas: “Tô” por “estou”; “Tavam” por “estavam”;

“Pra” por “para”; “Tá” por “está”; “A gente” por “nós”; “Dum” por “de um”;

“Pro/pros” por “Para o/ para os”. Aqui também, no entanto, acontecem algumas

inconsistências, como o pronome “você”, que ao longo de todo livro é usado

pelos personagens e em uma passagem, como que por descuido, o pronome

sofre uma redução e aparece como “Cê” (p. 100), na fala do mesmo

personagem; a conjugação do verbo “estar”, também é usada de duas formas:

“estivesse” (p. 29), e “tivesse” (p. 46), ambas no mesmo contexto, na fala da

mesma personagem Lu. A flexão do verbo “estar”, que na maioria das vezes é

usada como “tô”, pode ser encontrada, também no mesmo contexto, como

“estou” (p. 95).

Além disso, outras simplificações que seriam naturais, levando em conta as

acima descritas, não são feitas, como “Vai começar?” (p.29) ao invés de “Vai

começá” ou “Não é”, ao invés de “né” (ao longo de todo o livro).

As inconsistências na transposição da linguagem do jovem acabam

denunciando o autor, adulto, como não usuário dela. E a deixa plastificada, isto

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é, não natural. Essas inconsistências, no entanto, talvez sejam imperceptíveis

aos olhos do leitor principiante.

Ainda no que concerne à linguagem, em várias passagens notamos

simplificações do texto que nem sempre resume (no sentido de “diminuir”) o

que foi dito na obra original, pretende-se ser claro e conciso, uma vez que a

proposta não é apresentar a obra clássica integralmente, mas trabalhar

resumidamente com questões que ilumine sua leitura. A seguir apresento

alguns exemplos de passagens “resumidas” e adaptadas, por assim dizer, do

texto original.

O que no original está:

- Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá que lutar muito para separá-los.

- Não acho. Metidos nos cantos?

- É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira, que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida... (MACHADO DE ASSIS, 1996, p.3).

Nessa adaptação o trecho foi resumido e simplificado assim:

“José Dias dizia à D. Glória que não achava legal Bentinho namorar a filha do vizinho, que se chamava Capitu. Ela era pobre e desmiolada.” (JAF, 2005, p. 35)

Aqui, nota-se a perda da atmosfera criada no clássico. Nele, a ideia era fazer

com que parecesse que José Dias estava encabulado, ainda que

dissimuladamente, com o que queria dizer, dando voltas para chegar à questão

que queria de fato abordar, mas no resumo isso se perde.

Outra passagem interessante no que concerne à linguagem da adaptação,

nesse mesmo capítulo é que o que no original está:

Em todo caso, vai sendo tempo – interrompeu minha mãe -; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes. (MACHADO DE ASSIS, 1996, p. 4)

Na adaptação ficou:

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29

Mas a mãe então lembra que, de qualquer modo, Bentinho não vai poder casar nunca porque ela prometeu a Deus que ele ia ser padre da igreja católica. (JAF, 2005, p. 36).

A forma do discurso muda de uma passagem para outra; na primeira há o

discurso direto (em que o narrador é, também, personagem), e na segunda, o

indireto (em que o narrador não é personagem, está fora da história), o que

evita a intercalação de vozes (do narrador, Bentinho, e de sua mãe). Além

disso, no primeiro trecho, existem alguns “espaços” que, propositalmente,

foram deixados para serem preenchidos pelo leitor. A frase “Em todo caso vai

sendo tempo, vou tratar de metê-lo no seminário o quanto antes”, apresenta a

ideia de que, estando no seminário, Bentinho não poderia casar-se, pois isso

não é permitido. Ao passo que na segunda passagem isso fica explícito: “ele

não vai poder casar nunca porque ela prometeu a Deus que ele ia ser padre da

Igreja Católica”.

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4. CONCLUSÃO

Ao analisar a adaptação Dona Casmurra e Seu Tigrão, é preciso levar

em conta que se trata de uma obra paradidática, isto é, é uma obra que anda

ao lado da didática e é empregada com o mesmo objetivo, o de ensinar. Assim,

tem uma função diferente da literária. Ela pretende apresentar para o leitor

principiante uma das maiores obras de um de nossos maiores romancistas. E,

para isso, vale-se de vários artifícios, como a criação de uma história por meio

da qual se conta a história de Dom Casmurro. Artifício usado de forma louvável

por Monteiro Lobato, que parte da história ambientada no Sítio do Pica-Pau

Amarelo para contar a história de D. Quixote.

Outro artifício semelhante é o do personagem mediador da leitura, que

na obra D. Quixote das crianças é representado pela Dona Benta, a qual

apresenta didaticamente a obra lida para as crianças do Sítio. No livro

analisado, esse papel é atribuído à personagem Lu juntamente com o narrador

da história inventada. Ela apresenta, inclusive, os recursos estilísticos usados

por Machado de Assis e o contexto da época.

Há, no entanto, um direcionamento da leitura, uma apresentação

bastante parcial da obra de Machado salientada na voz da personagem

mediadora. E essa é, creio, a principal diferença entre o didático e o literário.

Enquanto no literário a intenção é suscitar várias interpretações, sem mediador

e, portanto, nenhum direcionamento; o didático direciona a leitura.

Levando em conta que adaptação é uma obra escrita para a

manutenção da obra original, homenageando-a, a adaptação em questão

poderia ter tido um maior cuidado ao tratar de questões referentes à vida e ao

procedimento de escrita de Machado de Assis. Colocando de forma menos

categórica opiniões que são apenas especulações. Além disso, a escrita

poderia ter um caráter menos monológico, e levar em conta as interpretações

possíveis e não apenas a desejada.

Para um primeiro contato com o clássico, o livro Dona casmurra e seu

tigrão cumpre bem o papel de despertar o interesse de leitura no leitor pouco

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habituado, ou ainda não amadurecido para a leitura integral do clássico. A

partir daí, é possível a busca pelo livro-base da adaptação e por outros do

mesmo autor. A adaptação, dessa forma, funciona como impulsionadora de

uma leitura mais aprofundada e atenta da literatura em geral e do clássico em

particular.

Ana Maria Machado em seu texto “Eternos e sempre novos” comenta de

forma bastante esclarecedora o pensamento de Ítalo Calvino em “Por que ler

os clássicos”, o qual, segundo ela, mostrou, como um bom livro acende em

quem o lê um permanente desejo de seguir sempre adiante, em busca da

construção do sentido vivido ao final com um grande momento de gozo e

distensão. Para definir “clássico”, ele acaba fazendo uma ressalva bastante

importante: que os clássicos são aqueles livros que constituem uma riqueza

para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor

para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores

condições para apreciá-los.

É essa a grande qualidade da adaptação. Ela apresenta de maneira

acessível, à faixa-etária a que se destina, um clássico que, talvez, só seria

usufruído em toda sua plenitude anos mais tarde. A adaptação analisada

apresenta ao leitor-principiante uma ideia de leitura, que poderá ser

desenvolvida, por meio do estímulo, em leituras futuras.

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32

5. REFERÊNCIAS

BOSI, A. Folha explica Machado de Assis. São Paulo: Publifolha, 2002.

BRITTO, L.P.L. A sombra do caos. __________ Mercado aberto, 1997.

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dona-casmurra-e-seu-tigrao.html>

<http://www.fenixonline.com.br/imagens/novo/ef2/leituras/leitura_4bimestre.pdf>

<http://www.santadoroteia.com.br/2008/Livros_adotados_na_2%C2%AA_etapa

_SEGMENTO_2.pdf>