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ANACÃ RUPERT AGRA 2001: UMA ODISSÉIA DA PALAVRA À IMAGEM POÉTICA JOÃO PESSOA 2006

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ANACÃ RUPERT AGRA

2001: UMA ODISSÉIA DA PALAVRA À IMAGEM POÉTICA

JOÃO PESSOA 2006

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA E CULTURA LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS COMPARADOS

2001: UMA ODISSÉIA DA PALAVRA À IMAGEM POÉTICA

ALUNO: ANACÃ RUPERT AGRA ORIENTADORA: GENILDA AZERÊDO

JOÃO PESSOA 2006

ANACÃ RUPERT AGRA

2001: UMA ODISSÉIA DA PALAVRA À IMAGEM POÉTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba, para obtenção do título de Mestre em Letras (Literatura e Cultura).

Orientadora: Profa. Dra. Genilda Azerêdo

JOÃO PESSOA 2006

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Profa. Dra. Genilda Azerêdo

(Orientadora)

______________________________________________________ Prof. Dr. Jeová Rocha de Mendonça

(UFPB/DLEM)

______________________________________________________ Prof. Dr. Diógenes Maciel

(UFPB/PPGL)

João Pessoa, ____/____/_____

Agradecimentos

A meu pai, que me ensinou tudo que sei, tanto sobre todas as coisas que não

aparecem aqui nessa dissertação, quanto sobre poesia, prosa, cinema, arte. Não fosse

isso bastante, ainda me indicou, mesmo sem saber, o tema da minha dissertação, quando

eu, ainda na adolescência, questionava sobre o sentido das imagens do filme 2001. E

mais, contribuiu diretamente para o projeto de minha pesquisa e também para o texto

final da dissertação, sempre lendo com cuidado e dando opiniões sinceras e

significativas.

A Genilda, que me orientou de forma brilhante. Sempre fez questão de ler cada

texto meu, e sempre corrigiu com uma precisão incrível. Foi importante desde o projeto,

mas, mais ainda, quando me faltou idéia sobre um recorte teórico, e ela sugeriu o

Cinema de Poesia. Não fosse Genilda, eu teria escrito um texto muito menor do que o

que aqui se encontra, que é, na minha opinião, um texto importante. Ela foi muito mais

que uma orientadora, sempre compreensiva quanto aos meus problemas, e sempre

prestativa.

A Antonio Morais de Carvalho, amigo que me ajudou em todas as fases do

mestrado, desde os primeiros passos do projeto, passando pela prova, pelas disciplinas e

pela dissertação. Morais me indicou bibliografia, procurou textos para mim, deu os

melhores conselhos que poderiam ser dados.

A Aloísio de Medeiros Dantas, que me orientou desde a graduação, e me deu as

primeiras lições sobre os textos acadêmicos. Aloísio, amigo, foi quem praticamente me

arrastou a João Pessoa para que eu fizesse a inscrição no mestrado. Estava presente em

todos os momentos, sempre com palavras de incentivo. Conseguiu livros, revistas, todo

o material de que eu precisei.

A Bráulio Tavares, amigo, que leu meus textos e sempre me incentivou com

palavras de elogio. Bráulio me deu o melhor primeiro conselho, aquele que me fez

seguir o caminho que segui: “se for fazer, faça algo da sua cabeça, não aceite temas e

sugestões dos outros”. Esse conselho me fez seguir o caminho de 2001.

A Danielly Inô, que foi minha colega nos dois anos de mestrado, mesmo que não

tenhamos estudado juntos. Danielly sempre teve paciência para me ajudar nos detalhes

mais banais, e também nos mais importantes. Foi não só uma mente que, por pensar

muito parecido comigo, estava constantemente concordando com as falhas da

burocracia e das regras, mas que também estava sempre disposta a me ajudar no que

quer que fosse.

Agradeço, afetuosamente, a minha mãe, que sempre se interessou pelo

andamento do meu mestrado, e me incentivou a estudar desde os meus primeiros anos

de vida. Também afetuosamente, agradeço a meu irmão, que me acompanhou a João

Pessoa inúmeras vezes para resolver problemas da burocracia acadêmica.

Agradeço, finalmente, a todos os meus outros amigos, aqueles que

invariavelmente me chamaram para “tomar uma”. As noites (e dias, às vezes) em que se

descansa são essenciais para a continuação do trabalho. Não fossem os momentos de

lazer com os amigos (e amigas), eu teria parado a dissertação na idéia.

RESUMO

Neste trabalho, analisamos o filme 2001: uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, a

partir da comparação com o romance homônimo de Arthur C. Clarke. Nossa

comparação tem como objetivo provar que, ao contrário do que é comumente observado

nas comparações entre filmes e romances, o filme 2001 se mostra mais polissêmico e

aberto a várias leituras, enquanto o romance, seguindo uma linha mais narrativa e

referencial, tende a fechar-se em suas possibilidades de interpretação. Dessa forma, o

filme seria mais poético, e o romance seria mais prosaico e narrativo. Para isso, usamos,

como base teórica, a narratologia, a teoria da adaptação, a teoria poética de Jean Cohen

e a de Roman Jakobson, e a teoria do Cinema de Poesia de Pasolini, além de outros

pressupostos teóricos sobre cinema, postulados por outros cineastas. Nosso objetivo é

provar que o filme 2001 se insere no que se pode chamar Cinema de Poesia, um cinema

que, como a poesia (de acordo com Cohen), mostra-se como desvio em relação à

linguagem comum, que, no cinema, seria a linguagem do Cinema de Hollywood. Foi

preciso, para isso, descrever as categorias do Cinema de Poesia, de forma que uma

teoria desse cinema pudesse se tornar mais clara. A partir das categorias do Cinema de

Poesia, elaboradas e elencadas por nós com base em vários autores diferentes,

analisamos o filme 2001.

palavras-chave: adaptação fílmica; 2001; Cinema de Poesia.

ABSTRACT

The present research analyzes the film 2001: a space odyssey, by Stanley Kubrick,

through a comparison with the novel by Arthur C. Clarke, entitled in the same way. Our

comparison aims at proving that, contrary to what is commonly observed in the

comparisons between films and novels, the film 2001 is more polysemous and thus

open to various readings, while the novel, following a more narrative and referential

perspective, tends to close itself concerning its possibilities of interpretation. Therefore,

the film would be more poetic, and the novel more prosaic and narrative-like in its

structure. In order to accomplish our aim, we used several theoretical foundations,

ranging from narratology and adaptation theory to theories of the poetic text (such as

those developed by Jean Cohen and Roman Jakobson), besides the theory of the Cinema

of Poetry by Pasolini, and other theoretical principles about cinema, written by other

film directors. Our objective has been to prove that the film 2001 can be inserted in

what is called Cinema of Poetry, a type of cinema that, as poetry (according to Cohen),

characterizes itself as a deviation from the common language, which, in cinema, would

be the language associated with Hollywood Cinema. For this purpose, it was necessary

to describe the categories of the Cinema of Poetry, in a way that a theory of this type of

cinema could become clearer and somehow systematized. Through the categories of the

Cinema of Poetry, elaborated and listed by us after various different authors, we

analyzed the film 2001.

Key-words: filmic adaptation; 2001; Cinema of Poetry.

SUMÁRIO

Introdução.......................................................................................................... 010

I. A adaptação do texto literário para a tela: pressupostos teóricos.......... 014

II. A narrativa fílmica................................................................................. 022

1. Trama e fábula ................................................................................ 022

2. A narrativa clássica e a narrativa em 2001...................................... 033

3. A narrativa do Cinema de Arte e a narrativa em 2001.................... 042

III. O discurso poético ................................................................................ 051

IV. O Cinema de Poesia .............................................................................. 058

V. 2001: dos contos ao filme ..................................................................... 087

VI. 2001: palavra versus imagem................................................................ 109

Conclusão ......................................................................................................... 157

Bibliografia ....................................................................................................... 168

Filmografia ....................................................................................................... 173

Anexos .............................................................................................................. 175

10

Introdução

O estudo comparativo que faremos aqui, da obra 2001: uma odisséia no espaço,

tanto romance quanto filme, possui muitas questões paralelas que precisam ser discutidas

antes da análise propriamente dita.

Em se tratando de um estudo comparativo entre um filme e um romance, ambos

construídos a partir de uma mesma idéia, de um mesmo roteiro, é necessário verificar como

se dá o estudo da adaptação, tema que remete diretamente à nossa análise aqui proposta. O

estudo da adaptação é examinado no Capítulo II desta dissertação (A adaptação do texto

literário para a tela: pressupostos teóricos), no qual demonstramos como o caso aqui

analisado é único e importante para o estudo da adaptação, e discutimos tópicos

importantes para nossa análise, como a descrição no cinema, e a diferença entre “contar” e

“mostrar”.

Já que estudamos, principalmente, uma obra fílmica, é preciso examinar certos

aspectos concernentes à obra, aspectos que dialogam diretamente com o foco da nossa

pesquisa. Esses aspectos são examinados no terceiro capítulo (A narrativa fílmica). Sub-

dividido em três partes (1. Trama e Fábula; 2. A narrativa clássica e a narrativa em 2001; 3.

A narrativa do Cinema de Arte e a narrativa em 2001), discutimos, nesse capítulo, a

diferença entre “trama” e “fábula”, a narrativa clássica no cinema e a narrativa do Cinema

de Arte. Todos esses aspectos são importantíssimos para nossa análise.

No quarto capítulo (O discurso poético), discutimos o conceito de poesia,

principalmente sob a ótica de Jean Cohen e de Roman Jakobson. O conceito de poesia é de

11

suma importância para nossa pesquisa, já que vamos examinar o poético no cinema. Dessa

forma, o que consideramos como poético nesse capítulo será aplicado ao cinema nos

capítulos posteriores.

Toda essa dissertação se encaminha para o tópico discutido no Capítulo V: O

Cinema de Poesia. A partir de um breve histórico sobre o que já foi escrito a respeito do

Cinema de Poesia (principalmente por Pasolini e por Buñuel), traçamos nosso próprio

conceito do que é esse Cinema. Elencamos as categorias mais visíveis de que cada autor

trata e, junto ao conceito de poesia discutido no Capítulo IV, descobrimos como essas

categorias e esse conceito se aplicam a 2001-filme, e já indicamos como o romance, ao

contrário da obra de Kubrick, distancia-se do poético.

No Capítulo VI (2001: dos contos ao filme) fazemos um estudo comparativo entre

os contos que deram origem a 2001 e o roteiro, comparando também, sempre que possível,

com o filme e o romance. Esse estudo nos permite perceber como o romance enveredou por

uma linha mais explicativa, nos moldes do roteiro, enquanto o filme se distanciou dos dois,

tornando-se mais opaco.

No último capítulo (2001: palavra versus imagem), analisamos, comparativamente,

cena por cena, e capítulo por capítulo, o romance e o filme 2001. Toda a teoria discutida

nos capítulos anteriores aparece implícita tanto nesse quanto no capítulo anterior.

Retomamos nesse capítulo, implicitamente, as categorias do Cinema de Poesia.

Na conclusão, discutimos algumas possíveis leituras de 2001-filme, para comprovar

como o filme pode ser interpretado de várias formas. Junto a essas leituras, listamos as

categorias do Cinema de Poesia de forma mais didática.

Com tantos assuntos diferentes em pauta, o estudo da adaptação de um romance

para as telas de cinema ganha nova perspectiva. Trata-se aqui de duas obras surgidas de

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uma outra, o que torna a comparação entre romance e filme muito mais significativa, já que

não há qualquer tipo de hierarquia, seja em relação à qualidade das obras ou à

originalidade. Dessa forma, podemos estudar duas obras importantíssimas, para a literatura

e para o cinema, verificando diferenças e semelhanças na narrativa e no significado das

duas obras. Além disso, a diversidade de teorias aqui estudadas amplia o conhecimento

sobre as obras, e sobre as próprias teorias. O Cinema de Poesia, por exemplo, nunca foi

sistematicamente teorizado. Aqui, tentamos dar o primeiro passo em direção a uma teoria

do Cinema de Poesia. A leitura do filme 2001, como comprovaremos no decorrer da

dissertação, não pode ser feita a partir da perspectiva de teorias cinematográficas que só

levam em conta o Cinema de Hollywood e o Cinema de Arte, de forma que é imperativo

verificar esse “novo” tipo de Cinema, o Cinema de Poesia.

A seguir, fazemos um resumo da trama de 2001-filme, que funciona não só como

um lembrete a respeito do filme, mas como um ponto de partida para as descrições das

cenas. Fizemos o resumo a seguir de acordo com a divisão das partes do filme, de modo

que, durante a leitura da dissertação, quando nos referirmos a determinada parte do filme

(2ª parte, por exemplo), estamos tratando da divisão feita abaixo. Também é válido, como

forma de recordar a obra fílmica, olhar primeiramente os anexos, que contêm imagens

retiradas do filme, e que funcionam, de certa forma, como um resumo da obra.

2001: Uma Odisséia no Espaço

A primeira parte se passa na pré-história. Uma tribo de homens-macacos se alimenta

de plantas e não tem muito o que comer. Eles também têm que defender seu território de

tribos inimigas, que lutam pela pouca água disponível. Aparece um objeto estranho, um

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monolito1 negro. Algo acontece na mente deles, e os homens-macacos começam a usar

ferramentas. Passam a matar outros animais para se alimentar, e conseguem expulsar os

inimigos e tomar posse da água.

Na segunda parte, já na Lua2, no futuro, um cientista, Dr. Floyd, esconde um

segredo. Todos acham que há uma epidemia na Lua. Em uma conferência, Floyd revela que

a epidemia é uma história inventada para esconder a verdade. Chegando a uma das crateras

da Lua, revela-se o segredo: foi desenterrado um monolito negro ali. Quando estão tirando

fotos em frente ao objeto, um som fere seus ouvidos.

A terceira parte se passa dezoito meses depois da segunda. Uma nave, a Discovery,

viaja para Júpiter. Ela é totalmente controlada por um computador, Hal. Durante a viagem,

Hal prevê uma falha na nave e, diante de circunstâncias estranhas, termina matando todos

os membros da tripulação, exceto Bowman. Bowman consegue desligar Hal, e fica sabendo

da verdadeira missão: encontrar pistas sobre a relação de Júpiter com um objeto que foi

encontrado na Lua, um monolito negro.

Na quarta parte, Bowman chega a Júpiter e encontra um monolito negro gigante

orbitando em uma das luas do planeta. Ele se aproxima do artefato e entra num portal de

luzes. Depois de uma viagem formada por imagens abstratas, ele chega a um quarto de

hotel aparentemente comum. Bowman vê, três vezes, ele mesmo, cada vez mais velho. Na

cama, moribundo, aparece um monolito na frente dele, e Bowman se transforma num feto

envolto numa esfera de energia translúcida. O feto volta para a Terra.

1 O dicionário Aurélio apresenta a grafia da palavra “monólito”, com acento, e acrescenta que a grafia sem acento “corresponde à pronúncia talvez de maior uso”. Preferimos utilizar aqui a grafia sem acento, acompanhando a forma como normalmente se pronuncia a palavra. 2 Preferimos utilizar todos os nomes de astros com letra maiúscula. Assim, Lua e Terra se colocam no mesmo patamar que Júpiter, Ganimedes, etc. Escrever Lua com letra maiúscula é essencial, pois dessa forma não pode haver confusão entre o satélite natural da Terra (a Lua), e um satélite natural de outro planeta (uma lua).

14

I. A adaptação do texto literário para a tela: pressupostos teóricos

Quando se trata de adaptação de um texto literário para o cinema, os críticos

normalmente discutem a questão da fidelidade do filme à obra original. Atualmente, isso

tem mudado um pouco, têm surgido trabalhos nessa área que não debatem apenas a questão

“fidelidade”. Mas em esferas menos acadêmicas, como nas resenhas jornalísticas presentes

em jornais e revistas, é comum dizer que o filme não foi “fiel” ao livro, e que, por não tê-lo

sido, acaba se tornando inferior a este. Ou seja, o princípio de fidelidade também se

relaciona a uma noção vaga de qualidade estética.

Dessa forma, o problema da adaptação, muitas vezes, resume-se a uma comparação

entre as duas obras, sob o pretexto de se descobrir em que medida o filme consegue

reproduzir o texto verbal na tela, ou qual dos dois é esteticamente superior, e comumente o

romance (se já for considerado como grande obra) é tido como mais “artístico”.

Uma boa fuga desse “lugar comum” acadêmico seria estudar duas obras que não

tivessem nenhuma relação de hierarquia, estudar um caso em que duas obras tivessem

surgido de uma outra, de uma mesma fábula3, mas realizadas em meios diferentes, o que

daria uma nova perspectiva ao estudo, já que a comparação não seria de uma obra segunda

baseada em uma primeira, mas de duas obras surgidas de um mesmo texto inicial.

Exemplos de obras desse tipo são as inúmeras versões da vida de Cristo.

Primariamente, existem quatro livros que relatam a vida de Jesus Cristo, os quatro

evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João). Daí, já temos quatro obras surgidas de uma

3 Os conceitos de “trama” e “fábula” serão explicados no capítulo seguinte. O termo “fábula”, como usado por Umberto Eco, surge em oposição a “enunciação”, em McFarlane, ou “trama” em Bordwell.

15

mesma fábula4, cada uma delas com suas características individuais. Dessas quatro obras já

surgiram várias outras, unindo mais de uma delas (como O Evangelho Segundo Jesus

Cristo, de José Saramago; A Última Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis; ou Jesus

Cristo Superstar, de Norman Jewison, baseado na ópera-rock de Tim Rice e Andrew Lloyd

Webber) ou usando apenas uma delas como base (O Evangelho segundo São Mateus, de

Pasolini).

Um caso bem parecido com esse é o de 2001: Uma Odisséia no Espaço5. 2001

surgiu de dois contos de Arthur C. Clarke, “The Sentinel” (A Sentinela), publicado no livro

Expedition to Earth, e “Encounter at Dawn” (Encontro no Amanhecer), publicado no livro

Across the Sea of Stars. Stanley Kubrick, co-roteirista, produtor e diretor de 2001, e Clarke

escreveram um roteiro para cinema inspirado nesses contos. “Encounter at Dawn” inspirou

a primeira parte de 2001, a seqüência com os homens-macacos; “The Sentinel” inspirou a

segunda parte, a seqüência do achado do monolito na lua. Desse roteiro (narrativa

primeira), surgiram duas obras, construídas ao mesmo tempo, o filme 2001 (de Kubrick) e

o livro 2001 (de Clarke).

Com esse caso temos a possibilidade de estudar duas obras realizadas em meios

distintos, e surgidas de uma mesma narrativa, de uma mesma obra. É um exemplo raro e

bastante significativo.

No caso a ser estudado, as diferenças entre as duas obras são notáveis: enquanto o

romance envereda pelos caminhos da ficção científica propriamente dita, de sentido

futurista, com explicações lógicas a partir de um avanço na inteligência humana oriundo da 4 A “fábula” a respeito da vida de Jesus provém da narrativa oral hebraica. Os textos bíblicos resultam primeiramente dessa cultura oral do povo hebreu. 5 2001: uma odisséia no espaço será chamado no resto do texto apenas de 2001, quando estivermos nos referindo às duas obras (romance e filme) em conjunto. Quando formos tratar de uma das obras em específico, deixaremos claro de qual das duas estamos falando através do texto ou utilizando os termos 2001-filme (para a obra de Kubrick) e 2001-livro (para o romance de Clarke).

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intervenção alienígena; o filme caminha em sentido contrário e até conflitante – sem deixar

de entrar, verticalmente, na possibilidade de um futuro tecnológico e científico

absolutamente inovadores, mas representando, o que parece paradoxal, um nascimento, um

início embrionário na evolução da humanidade –, e abre perspectivas múltiplas, não se

fecha como mensagem, abriga em seu bojo uma dimensão de fundo existencial e filosófico.

Perguntas como “o que sou”, “de onde vim”, “para onde vou”, “qual o sentido da vida”,

entre outras, que são questões básicas da filosofia clássica, comparecem no filme não como

soluções/respostas simplistas, mas como investigação e abertura para reflexão. Nesse

sentido, o filme é extremamente mais perturbador e revolucionário que o livro, o qual,

enveredando por um caminho de respostas e soluções para esses enigmas humanos, pode

até ser considerado convencional.

Genericamente, os cineastas tendem a transpor apenas o enredo do romance para o

filme, quando fazem uma adaptação, o que se deve à própria natureza do objeto filme, que,

de modo geral, procura representar o mundo objetivamente, transmitindo uma ilusão de

realidade. O enredo6, inclusive, é mais facilmente transferível (“transfer”), enquanto a

trama, o discurso, é afetado pelo sistema ou meio semiótico em que se insere (“adaptation

proper”) (MCFARLANE, 1996. p. 20). Como conseqüência dessa tendência, o filme se

torna menos artístico do que o romance; o que não acontece com a obra que pretendemos

estudar, já que 2001, o filme, por deixar o campo isotópico aberto, ou seja, por dar abertura

para várias interpretações, torna-se mais artístico do que o romance, que se fecha com

prévios limites isotópicos.

6 McFarlane utiliza o termo “narrativa” (narrative). Preferimos utilizar “enredo”, para não confundir com nosso uso posterior do termo “narrativa”.

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Como dissemos, o que se transfere com facilidade da literatura para o cinema é o

enredo, e também o espaço e o tempo; entretanto, o filme 2001, talvez pelo fato de não ser

uma adaptação propriamente dita, vai além desses aspectos, no tocante a questões como

caracterização psicológica dos personagens e reflexões filosóficas.

As duas obras (livro e filme) bem poderiam ser consideradas como pertencentes aos

dois autores. O filme tem roteiro dos dois, e o romance, como atesta Clarke em seu livro

The Lost Worlds of 2001, deveria ter como autores Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick,

pois os manuscritos que Clarke enviava para Kubrick voltavam sempre cobertos de críticas,

anotações, sugestões e cobranças. E é bastante óbvio que esses manuscritos também

influenciaram a obra de Kubrick.

Com um exemplo raro de duas obras tão importantes e tão singulares, pode-se

verificar as diferenças entre as duas, sem pretender fazer juízos de valor, mas apenas

descrever como as duas obras se distinguem.7

Para verificar essas diferenças entre as obras é importante compreender certos

conceitos da narratologia, que é uma das teorias mais importantes para o estudo de

adaptações cinematográficas de textos literários em prosa, e que se desenvolveu

paralelamente à teoria cinematográfica e à lingüística.

Na narratologia, a narrativa (o texto narrativo) é vista como uma estrutura profunda

independente do meio em que se realiza (através de palavras, imagens, etc.). Outra

característica da narrativa é o “duplo tempo”, ou seja, a narrativa combina a seqüência de

tempo dos eventos da história (story-time) com o tempo de apresentação desses eventos no

texto em que ocorrem (discourse-time). Como conseqüência dessa propriedade do duplo

7 Se fazemos juízo de valor aqui, ao dizer que o filme é mais artístico do que o romance, é somente a partir de um aspecto, ou seja, apenas do ponto de vista artístico, poético. O romance possui seu valor, independente do filme. O valor de uma obra não depende exclusivamente de seu valor artístico.

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tempo, há a possibilidade de se transpor uma narrativa de um meio (p.e.: romance) para

outro (p.e.: filme) (CHATMAN, 1992. p. 404).

Nessa transposição, pode-se verificar, através do estudo das versões cinematográfica

e literária da mesma narrativa, as diferenças e semelhanças entre os dois meios.

Um dos pontos a serem discutidos na transposição de uma narrativa de um meio

para outro é a descrição. Para alguns autores, como Chatman, não pode haver descrição em

cinema, pois a descrição pressupõe uma interrupção do tempo. Num filme, depois que se

inicia a narração, o tempo não pode ser congelado, de forma que todo detalhe

aparentemente descritivo do filme representa uma continuidade na narrativa.8

...o que acontece na descrição é que a linha do tempo da história é interrompida e congelada. Os eventos são pausados, embora nossa leitura ou o tempo discursivo continue, e nós olhamos para as personagens e os elementos do cenário como um tableau vivant.9

Entretanto, em narrativas literárias, algumas descrições, mesmo sendo parte da

narrativa, não perdem sua função descritiva. A descrição no cinema, parece-nos, é dessa

mesma natureza.

Uma grande diferença entre os dois meios de que hora falamos (literatura e cinema)

é a forma como as imagens são “vistas”. Num filme, nós percebemos uma imagem visual,

enquanto que num romance, concebemos uma imagem mental (MCFARLANE, 1996. p. 4).

Isso se dá porque o romance reside em um sistema de signos verbais, enquanto o

cinema varia entre signos visuais, auditivos e verbais, às vezes aparecendo 8 Todas as citações dos textos em inglês aparecerão no corpo do texto em tradução nossa. Colocaremos uma nota com o texto original em cada citação. As citações que não possuem a versão original em nota de rodapé foram transcritas de edições em português, sejam elas escritas originalmente em português ou traduções. 9 “...what happens in description is that the time line of the story is interrupted and frozen. Events are stopped, though our reading or discourse-time continues, and we look at the characters and the setting elements as at a tableau vivant.” (CHATMAN, 1992. p. 405)

19

simultaneamente. O signo verbal, com sua baixa iconicidade, e alta função simbólica,

trabalha conceitualmente, enquanto o signo visual (base dos signos cinematográficos), com

sua alta iconicidade, e função simbólica incerta, trabalha diretamente, sensorialmente,

perceptualmente (MCFARLANE, 1996. pp. 26 e 27).

A fábula é, realmente, o principal elemento transferível do romance para o filme, ou

seja, é um elemento que não precisa passar por uma interpretação para aparecer no filme,

ele vai diretamente do romance para a tela (com a diferença de que a história do filme não

precisa ser contada, pois ela é mostrada10). Os elementos transferíveis são todos passíveis

de transposição direta, já que independem do meio, enquanto os elementos que precisam

ser modificados para atuarem no filme fazem parte da adaptação propriamente dita

(“adaptation proper”) (MCFARLANE, 1996. pp. 23 e 26).

Os elementos mais facilmente transferíveis são as ações, os eventos, algumas

características dos personagens como nome, idade, profissão, e detalhes de cenário. Outros

elementos, como caráter e informações psicológicas dos personagens, atmosfera do

ambiente, e discussões filosóficas são mais difíceis de serem transferidos, por isso precisam

ser adaptados.

Outro elemento difícil de ser transferido é o ponto de vista. Tanto o cinema quanto a

literatura têm ponto de vista flexível, mas o cinema tem dificuldade em apresentar o ponto

de vista psicológico de uma personagem, por exemplo. Mesmo com recursos como o

“voice-over”, a realidade não é filtrada pelo narrador como na literatura, pois ainda há as

imagens, que mostram tudo objetivamente. Assim, de certa forma, todos os filmes são

oniscientes, já que a câmera registra tudo. E o narrador onisciente do romance não

10 Examinaremos o conceito de “narrativa” e também de “mostrar” e “contar” no capítulo seguinte.

20

consegue ser completamente onisciente como a câmera o é num filme, pois o narrador está

ligado intrinsecamente ao romance, enquanto a câmera está fora do discurso fílmico.

Essa “limitação” do cinema, no entanto, é característica apenas do Cinema

Hollywoodiano. Num tipo de cinema mais aproximado da linha einsensteiniana, é possível,

através de recursos como a montagem, expor o ponto de vista psicológico da personagem.

O próprio Eisenstein confirma isso:

Somente o filme dispõe dos meios para uma apresentação adequada de todo o curso do pensamento de uma mente transtornada. Ou só é possível à literatura, uma literatura que rompesse as fronteiras tradicionais. A mais brilhante realização neste campo são os imortais “monólogos interiores” de Leopold Bloom em Ulysses. (EISENSTEIN, 2003. p. 212)

Dessa forma, a literatura (prosa) que se aproxima da poesia (linguagem que rompe

as fronteiras tradicionais), tanto quanto o cinema que se aproxima do cinema

einsensteiniano é capaz de apresentar o ponto de vista psicológico de uma personagem.

Além disso, o registro fílmico pode ser opaco, limitado e não confiável, e pode também ser

feito de modo a enganar o espectador, o que torna um tanto relativa a objetividade do

cinema.

Outra diferença entre filme e romance diz respeito a suas unidades formativas.

Como unidades mínimas teríamos o frame (para o filme) e a palavra (para o romance). Mas

a seqüência de frame seguindo frame não é igual à de palavra seguindo palavra. O frame

fornece informação visual instantânea, e não é registrado na obra como uma unidade

individual, da forma como a palavra é.

Também os códigos da sintaxe, presentes no romance, não encontram paralelo no

filme. Mas existem códigos extra-fílmicos que devem ser entendidos ao se analisar um

21

filme: códigos lingüísticos como acento e tom de voz; códigos visuais; códigos musicais e

auditivos; e códigos culturais (MCFARLANE, 1996. pp. 28 e 29).

Alguns desses elementos serão necessários para a comparação que faremos entre o

romance 2001 e o filme 2001. Nossa comparação terá como princípio básico que o filme se

mostra como poesia, sendo assim parte do Cinema de Poesia de que fala Pier Paolo

Pasolini, enquanto o livro estaria organizado sob o prisma do romance do século XIX, com

uma narrativa tradicional, que busca organizar a trama em favor do melhor entendimento da

fábula.

Desde agora, podemos perceber como 2001-filme utiliza substancialmente os

recursos tidos como parte da adaptação propriamente dita de que fala McFarlane. Sendo um

discurso poético, fica claro que em 2001-filme o principal não é a fábula, e sim o próprio

discurso. É necessário ressaltar, no entanto, que os elementos de 2001-filme que fazem

parte do que McFarlane chama de adaptação propriamente dita (no caso: a subjetividade, a

sugestão de sentidos, as imagens poéticas, as metáforas visuais, entre outros) não estão, em

sua grande maioria, presentes no romance 2001. Isso se justifica por 2001 não ser uma

adaptação, mas sim duas obras que surgiram de um mesmo roteiro.

22

II. A narrativa fílmica

1. Trama e fábula

Uma das diferenças básicas em relação à forma de representação da narrativa

artística é entre “mostrar” e “contar”. Para Bordwell (1985), essa diferença se impõe em

duas teorias, a diegética (“contar”) e a mimética (“mostrar”). É notável que um filme se

aproxima do “mostrar”, enquanto um romance se aproxima mais do “contar”, mas essas

teorias podem servir para analisar qualquer meio.

Teorias Diegéticas concebem a narrativa como consistindo, tanto literalmente como analogicamente, de uma atividade verbal: contar. (...) Teorias Miméticas concebem a narrativa como a representação de um espetáculo: mostrar. Note que, uma vez que a diferença se aplica somente ao “modo” de imitação, as duas teorias podem ser aplicadas a qualquer meio.11

É importante lembrar, antes de passarmos às teorias diegéticas do cinema, que, para

Bordwell, tudo num filme funciona narrativamente. Todos os elementos do filme estariam

então dependentes da narrativa. Dessa forma, imaginamos, os elementos que constituiriam

o Cinema de Poesia estariam também a serviço da narrativa. Não se entenda com isso que

esses elementos seriam usados para facilitar a compreensão do enredo do filme, mas sim

que funcionam de forma a tornar a narrativa única, transformá-la em algo diferente da

“fábula”.

11 “Diegetics theories conceive of narration as consisting either literally or analogically of verbal activity: a telling. (...) Mimetic theories conceive of narration as the presentation of a spectacle: a showing. Note, incidentally, that since the difference applies only to “mode” of imitation, either theory may be applied to any medium.” (BORDWELL, 1985. p. 3)

23

Todas as técnicas fílmicas, até mesmo aquelas que envolvem um evento “pro-fílmico”, funcionam narrativamente, construindo o mundo da história para obter efeitos específicos.12

Os elementos poéticos de um filme funcionam então de forma a construir efeitos

poéticos na narrativa. Os primeiros a tratar o cinema como linguagem (e,

conseqüentemente, a falar sobre a ligação entre o cinema e a poesia) foram os Formalistas

Russos.

Os Formalistas Russos foram os primeiros a explorar as analogias entre linguagem e filme de forma detalhada. Eles isolaram um uso “poético” do filme paralelo ao uso “literário” da linguagem que eles postularam para os textos verbais.13

Tomaremos aqui o poético como sendo inserido nessa linguagem literária geral. O

cinema de poesia não é então análogo ao texto literário como um todo, em relação à forma

como utiliza a linguagem. O cinema de poesia é análogo à própria poesia.

Bordwell descarta a teoria enunciativa (que vê o filme como linguagem) do cinema,

o que não faremos aqui. A justificativa dele é que não há equivalentes fílmicos para os

aspectos da atividade verbal.

A teoria enunciativa proporcionou um grande incentivo para a dissecação do estilo fílmico, e deixou os cinéfilos pensando sobre a narrativa de forma mais sofisticada. Mas por faltar ao filme equivalentes para os aspectos mais básicos da atividade verbal, eu sugiro que abandonemos a causa da enunciação.14

12 “All film techniques, even those involving the “profilmic event,” function narrationally, constructing the story world for specific effects.” (BORDWELL, 1985. p. 12) 13 “The Russian Formalists were the first to exploit the analogies between language and film in a detailed way. They isolated a ‘poetic’ use of film parallel to the ‘literary’ use of language they posited for verbal texts.” (BORDWELL, 1985. p. 17) 14 “Enunciation theory has provided a major impetus for the dissection of film style, and it has set cinephiles thinking about narration in more sophisticated ways. Yet because a film lacks equivalents for the most basic aspects of verbal activity, I suggest that we abandon the enunciation account.” (BORDWELL, 1985. p. 26)

24

Como vamos tratar do cinema dito poético como equivalente à poesia, e não à linguagem

literária em geral, procuraremos esses equivalentes no decorrer do trabalho, e esperamos

provar que há, sim, vários aspectos do Cinema de Poesia que são equivalentes aos da

própria poesia verbal.

Abandonando as teorias já faladas, Bordwell propõe sua própria teoria fílmica, que

vamos resumir aqui em favor da nossa leitura de 2001.

A primeira distinção que nos cabe aqui é entre “ler” e “ver”. Para Bordwell, a

compreensão do espectador não pode ser feita como uma leitura. O espectador apenas “vê”

o filme. Essa distinção é interessante para nos mostrar como o espectador se encaixa no

Cinema de Poesia. Apenas “ver” um filme do Cinema de Poesia não permite que se

compreenda o filme inteiramente, ou de maneira “correta”, pois é necessário uma reflexão

posterior a respeito da obra, para que o filme seja entendido (em muitos casos é preciso

assistir ao filme mais de uma vez antes de se realizar a “leitura”). “Ver” não atende às

especificidades do filme de poesia porque, sendo opaco, ele não se dá a “ver”, exigindo

uma outra estratégia de leitura (ou de “visão”) por parte do espectador. Assim, pensamos,

“ver” não é a única atividade que o espectador do Cinema de Poesia precisa executar, a

“leitura” (mesmo que não seja uma leitura científica, própria da análise crítica, mas apenas

uma reflexão acurada) é extremamente necessária. “Ver” um filme de poesia se iguala a

“ler” poesia. Como o próprio Bordwell explica:

Ver é sinóptico, ligado ao tempo de apresentação do texto, e literal; não requer tradução em termos verbais. Interpretar (ler) é analítico, livre da temporalidade do texto, e simbólico...15

15 “Viewing is synoptic, tied to the time of the text’s presentation, and literal; it does not require translation into verbal terms. Interpreting (reading) is dissective, free of the text’s temporality, and symbolic...” (BORDWELL, 1985. p. 30)

25

Outra distinção importante, também de Bordwell, é entre “percepção estética” e

“percepção não-estética”. A percepção estética, não tendo fins práticos, faz com que a

atenção seja direcionada ao próprio processo.

Em nossa cultura, a atividade estética desenvolve tais habilidades para fins não-práticos. Na experiência artística, em vez de focalizarmos os resultados pragmáticos da percepção, nós damos atenção ao próprio processo.16

Quando a atenção é direcionada ao processo, a obra de arte tem como ênfase a mensagem,

como diz Roman Jakobson17, e, sendo assim, é poética.

Para Bordwell, a própria estrutura da narrativa se constrói a partir de três elementos:

pistas, padrões, e lacunas18.

Quando o filme se estrutura principalmente nas lacunas, é necessário refletir sobre

os significados implícitos. As lacunas tornam o filme mais poético, pois nelas se impõem

sentidos ocultos, como pretendemos mostrar em 2001-filme.

Podemos entrar agora na distinção mais importante da teoria de Bordwell: fábula e

trama 19 . Essa distinção, já apresentada por Aristóteles, e, mais detalhadamente, pelos

Formalistas Russos, pode ser feita nos seguintes termos: a história que é representada

(fábula); e o modo de representação, de construção, dessa história (trama). (BORDWELL,

1985. p. 49)

A fábula é

16 “In our culture, aesthetic activity deploys such skills for nonpractical ends. In experiencing art, instead of focusing on the pragmatic results of perception, we turn our attention to the very process itself.” (BORDWELL, 1985. p. 32) 17 Examinaremos parte da teoria da linguagem de Jakobson no Capítulo IV. 18 Cues, patterns and gaps. (Bordwell, 1985. p. 33) 19 Bordwell usa o termo “syuzhet”; preferimos utilizar aqui o termo “trama”, que é usado por Umberto Eco no sentido aqui referido.

26

O construto imaginário que nós criamos, progressivamente e retroativamente... (...) Mais especificamente, a fábula incorpora a ação como uma cadeia de eventos cronológica, de causa e efeito, ocorrendo numa duração e num campo espacial estabelecidos.20

Já a trama (ou syuzhet) é

o arranjo propriamente dito e a apresentação da fábula no filme. (...) É um construto mais abstrato, o padrão da história reproduzido como uma recontagem minuciosa do filme.21

O mais importante dessa distinção para nossa análise de 2001 é que a trama (e

também a fábula) é independente do meio, podendo ser usada a mesma em um romance e

em um filme.

Como comprova Bordwell:

Logicamente, o padrão da trama é independente do meio; os mesmos padrões da trama podem ser incorporados em um romance, em uma peça, ou em um filme.22

Em 2001, a trama não é a mesma no filme e no romance, embora aparentemente

seja. Pretendemos mostrar em nossa análise que há aspectos muito distintos no tratamento

da fábula em 2001-filme e 2001-livro, e que esses aspectos, concernentes à trama, são os

responsáveis pela poesia do filme, por caracterizarem 2001-filme como Cinema de Poesia.

20 “The imaginary construct we create, progressively and retroactively... (...) More specifically, the fabula embodies the action as a chronological, cause-and-effect chain of events occurring within a given duration and a spatial field.” (BORDWELL, 1985. p. 49) 21 “the actual arrangement and presentation of the fabula in the film. (...) It is a more abstract construct, the patterning of the story as a blow-by-blow recounting of the film could render it.” (BORDWELL, 1985. p. 50) 22 “Logically, syuzhet patterning is independent of the medium; the same syuzhet patterns could be embodied in a novel, a play, or a film.” (BORDWELL, 1985. p. 50)

27

A trama se diferencia também do estilo. Enquanto a trama diz respeito às ações, às

cenas, às mudanças na história (no enredo), o estilo diz respeito ao movimento das figuras,

ao cenário, ao som, à iluminação, à fotografia, à edição. (BORDWELL, 1985. p. 50)

...em um filme narrativo esses dois sistemas coexistem. Eles podem coexistir porque trama e estilo tratam aspectos diferentes do processo fenomenal. A trama materializa o filme como um processo “dramático”; o estilo materializa o filme como um processo “técnico”.23

Ou seja, a trama, sendo responsável pelo modo de organização das ações, situa-se no plano

textual, enquanto o estilo materializa a história e o discurso através dos recursos

tecnicamente cinemáticos. O estilo, sendo dependente do meio, situa-se fora do texto,

embora produza ressonâncias significativas sobre o mesmo. É necessário, no entanto,

perceber que trama e estilo possuem uma dependência muito forte entre si, tornando

praticamente impossível reconhecer apenas uma individualmente em determinado filme.

Essa distinção entre trama e estilo se torna tênue quando colocada em prática, quando

procurada em filmes.

Para Bordwell, a trama se relaciona com a fábula em três princípios básicos: lógica

narrativa, tempo, e espaço.

A lógica narrativa diz respeito à relação entre os eventos (principalmente uma

relação causal). A trama pode facilitar ou dificultar o arranjo lógico. Quando dificulta, por

motivos poéticos, como, por exemplo, para dar margens a várias interpretações, ou a várias

possíveis causas, a lógica narrativa se aproxima do Cinema de Poesia. Em 2001-filme, por

exemplo, o motivo da loucura de Hal não é explicitado, o que leva a várias interpretações;

23 “...in a narrative film these two systems coexist. They can do this because suyzhet and style each treat different aspects of the phenomenal process. The syuzhet embodies the film as a ‘dramaturgical’ process; style embodies it as a ‘technical’ one.” (BORDWELL, 1985. p. 50)

28

já no romance, fica clara a razão da loucura de Hal, de forma que a narrativa se estrutura a

partir de causa e efeito bem explicitados.

Quanto ao tempo, a trama pode organizar os eventos em qualquer seqüência

(ordem), pode sugerir qualquer espaço de tempo (duração) para os eventos, e também

assinalar um número de vezes em que determinado evento ocorre (freqüência). Da mesma

forma que a lógica narrativa, o tempo pode ajudar ou “bloquear” o entendimento da fábula.

O “bloqueio”, ou “problematização”, do tempo contribui para a formação de um sentido

poético. O Cinema de Poesia, como diz Pasolini, possui a lógica do sonho, em que o tempo

não é bem definido. Embora 2001 tenha uma narrativa cronológica (ou seja, os eventos

ocorrem no filme de acordo com sua ocorrência na história), não é uma narrativa

tradicional em termos temporais, pois há lacunas de tempo de meses ou de milhões de anos,

que problematizam a construção do tempo da fábula.

O espaço da fábula também é afetado pela trama. Quando o espaço é bem

delimitado, a trama contribui para um entendimento maior da fábula. No caso oposto, a

trama dificulta o reconhecimento do espaço em que ocorrem os eventos. Em 2001-filme o

espaço é bem delimitado em alguns momentos e em outros não. No início, na primeira

parte, não se sabe ao certo onde vivem aqueles homens-macacos; na segunda parte, na

chegada do Dr. Floyd à Estação Espacial Um, é indicada a cratera para onde Floyd se

dirige, Clavius, mas de forma tão sutil que não se tendo o conhecimento de que Clavius é

uma das crateras da lua, pode-se imaginar que se trata de um outro planeta. Na viagem a

Júpiter, somente os letreiros indicam de que local se trata24. E no final do filme, não há

como determinar, de forma alguma, em que local Bowman se encontra. A confusão

24 Kubrick era contra a colocação das legendas. Elas só foram incluídas depois da primeira apresentação do filme à imprensa, por pressão do estúdio.

29

espacial também aproxima o filme da lógica dos sonhos, que Pasolini indica como

propriedade do Cinema de Poesia25.

Essa distinção entre fábula, trama e estilo é importante para a definição de narração

de Bordwell:

No filme de ficção, a narração é o processo através do qual a trama e o estilo interagem dando pistas e canalizando a construção da fábula pelo espectador. Portanto, é apenas quando a trama organiza as informações da fábula que o filme narra. A narração também inclui processos estilísticos. Seria possível, claro, tratar a narração somente como uma questão da relação trama/fábula...26

Além de todos esses elementos da narrativa, Bordwell (retomando um conceito de

Kristin Thompson) fala também de um elemento que estaria além da narrativa, o “excesso”.

O excesso não seria justificado por quaisquer razões, incluindo razões estéticas. Os

elementos que causam o excesso são os que fogem de impulsos que unificam a estrutura,

que funcionam narrativamente ou esteticamente. O estranhamento, para nós, é causado

principalmente pelo excesso. O excesso seria responsável por um efeito de estranhamento à

moda do efeito produzido em poesia, segundo os formalistas russos.

Qualquer imagem ou som pode contribuir para a narrativa, mas podemos também atentar para um elemento por sua pura ênfase perceptiva. (...) A história canônica em particular favorece o domínio de fatores do mundo-da-história. Dessa perspectiva, é como se apenas a narrativa importasse. (...) Esses elementos “excessivos” são completamente injustificados, inclusive por motivação estética.27

25 O pensamento de Pasolini sobre o Cinema de Poesia será discutido no Capítulo V: O Cinema de Poesia. 26 “In the fiction film, narration is the process whereby the film’s syuzhet and style interact in the course of cueing and channeling the spectator’s contruction of the fabula. Thus it is only when the syuzhet arranges fabula information that the film narrates. Narration also includes stylistic processes. It would of course be possible to treat narration solely as a matter of syuzhet/fabula relations...” (BORDWELL, 1985. p. 53) 27 “Any image or sound can contribute to narration, but we can also attend to an element for its sheer perceptual salience. (...) The canonic story in particular favors the dominance of story-world factors. From this standpoint, it is as if nothing but narration matters. (...) These ‘excessive’ elements are utterly unjustified, even by aesthetic motivation.” (BORDWELL, 1985. p. 53)

30

Assim, sendo o “excesso” o elemento que faz a narrativa fugir do modo canônico de se

narrar, é natural que seja ele um elemento do Cinema de Poesia28. O “excesso”, ligado ao

estranhamento, contribui para uma “deturpação” do modelo narrativo canônico, sendo

assim um elemento que pode ser considerado poético. O “excesso”, para nós, aumenta a

poesia no filme por possibilitar diversidade de leituras.

Mesmo sendo o excesso o elemento que, para Bordwell, foge à narrativa, ganhando

vida própria, e sendo ele também um elemento poético, ainda é possível observar elementos

de dentro da narrativa que funcionam para a criação do que pode ser concebido como

Cinema de Poesia.

Voltemos à relação da trama com a fábula. A trama modela a fábula ao controlar: 1-

a quantidade de informação da fábula; 2- o grau de pertinência da informação; 3- a

correspondência com dados da fábula. (BORDWELL, 1985. p. 54).

Quando é dada muita informação, fica muito óbvia a construção da fábula, o que é

normal no cinema de narrativa clássica. No Cinema de Poesia, a informação é retida, não

ficando clara a fábula, o que leva a muitas possibilidades de interpretação. Em 2001-filme,

por exemplo, a informação sobre a natureza do monolito não é dada pela trama, o que torna

possível interpretá-lo como sendo um artefato alienígena, ou como uma representação de

Deus, ou o próprio Deus, ou como um elemento transformador da humanidade, entre outras

possibilidades. Em 2001-livro, essa informação é dada com clareza pelo narrador, o que

reduz as possibilidades a apenas uma, tornando a fábula clara e óbvia.

28 Nos capítulos em que tratamos de Poesia e de Cinema de Poesia falaremos mais detalhadamente a esse respeito.

31

Essa informação, no caso do monolito, é relevante para a construção da fábula. Mas

quando uma informação não é relevante, ela pode também contribuir para o sentido poético

no filme. Algo que parece deslocado pode funcionar como elemento poético, como a

viagem de Bowman pelo desconhecido, na última parte do filme. A viagem dura vários

minutos, e não parece ter motivo dentro da narrativa.

A correspondência entre a trama e a fábula também pode funcionar para a criação

do Cinema de Poesia. A seleção de elementos da fábula e a forma como a trama os combina

pode formar lacunas, que são elementos essenciais do Cinema de Poesia. Uma grande

lacuna é formada em 2001-filme entre o achado do monolito na Lua e a viagem de Bowman

e seus companheiros. Essa lacuna não é preenchida até o final da viagem, mas surge outra

maior, no final do filme, entre uma aparição e outra de Bowman. Em 2001 há lacunas de

tempo (entre a cena com os homens-macacos e a do balé cósmico há milhões de anos);

lacunas de causa (não se sabe o porquê da loucura de HAL); e lacunas de espaço (não se

sabe onde Bowman chega, depois da viagem pelo “portal das estrelas”)29. (BORDWELL,

1985. p. 54)

De acordo com Bordwell, as lacunas podem ser: temporárias (o motivo da viagem

de Bowman, que, no final da viagem, é revelado) ou permanentes (o motivo da loucura de

HAL); difusas (o que aconteceu nos milhões de anos que separam a cena inicial da viagem

à lua?) ou focalizadas (onde Bowman foi parar depois que passou do portal das estrelas?);

exibidas (quando Bowman recebe a revelação sobre o motivo real da viagem a Júpiter) ou

suprimidas (a verdadeira natureza do monolito nunca é revelada).

A partir dessas dicotomias das lacunas, ainda segundo Bordwell, surgem dois

princípios que governam a composição da trama em qualquer meio: retardação e 29 Essa lacunas (e essas cenas) serão melhor analisadas nos capítulos seguintes.

32

redundância. A retardação serve para criar suspense, curiosidade, e, depois, surpresa. Em

2001-filme, o motivo da viagem a Júpiter é revelado no final da jornada, tornando possível

associar tudo que ocorreu na viagem aos eventos anteriores (a descoberta do monolito na

lua, e a cena na Terra pré-histórica). Mesmo havendo essa “exposição concentrada” na

revelação do motivo da viagem (pois há uma espécie de resumo dos acontecimentos do

filme), 2001-filme não se centra nisso, dando mais importância ao que a trama nos leva a

pensar, e às respostas a que nós podemos chegar pensando nas perguntas que o filme

suscita.

Em 2001-filme a redundância ocorre numa cena que resulta da retardação. A

informação sobre o propósito da viagem a Júpiter é retida (retardação), e quando a

revelação é feita, há um resumo dos acontecimentos do filme (redundância). Essa

característica, muito pouco comum, mostra o quanto o filme é atípico, fugindo às regras

estabelecidas para o funcionamento da trama. Além disso, a redundância em 2001-filme não

funciona tradicionalmente, pois ela serve para aumentar o grau de incerteza, já que faz uma

ligação da viagem com as outras partes do filme, tornando necessária uma reflexão a

respeito do porquê da ligação entre uma parte e outra.

Para finalizar, há mais um elemento, na discussão de Bordwell, que pode ser

relacionado ao Cinema de Poesia: o conhecimento da trama sobre a fábula. Uma trama

pode possuir conhecimento completo a respeito da fábula (como é o caso do romance

2001), ou pode possuir conhecimento moderado (ou limitado), deixando lacunas que só

podem ser preenchidas pelo espectador/leitor (como no filme 2001). Mesmo que a trama do

filme possua conhecimento completo da fábula, não se restringindo ao conhecimento que

suas personagens têm, ela escolhe (no caso de 2001) não comunicar todo o conhecimento

que possui, deixando assim as lacunas para serem preenchidas.

33

...porções da trama serão organizadas em torno do conhecimento de uma personagem e outras porções serão confinadas ao conhecimento de outra personagem. (...) Embora uma narração tenha uma quantidade particular de conhecimento disponível, a narração pode ou não comunicar toda a informação.30

Em 2001-filme há momentos em que o conhecimento é confinado a uma personagem (o

achado do monolito na Lua é registrado pelo Dr. Floyd) ou a outra (o final da viagem a

Júpiter só é conhecido por Bowman).

A teoria da narração fílmica de Bordwell é completa e também é importante para

nossa análise, por isso, merece esse resumo que fizemos aqui. No entando, como diz

Chatman (1993), existem alguns pontos que podem ser criticados:

A teoria de Bordwell da narração fílmica é construída de forma tão admirável que merece uma aceitação vasta e uma discussão extensa. Minha única crítica real é que ela vai muito longe ao argumentar que o filme não tem nenhum agente correspondente ao narrador e que a narrativa fílmica é melhor considerada como um tipo de trabalho totalmente feito pelo espectador. Bordwell permite para um filme uma “narração” mas não um narrador.31

Concordamos com Chatman. É fácil perceber que Bordwell pensa num narrador humano, e,

por isso, fica limitado à literatura. No entanto, se consideramos um narrador não como um

ser, mas como um agente (seja qual for sua natureza), temos uma narração com um

30 “...portions of the syuzhet will be organized around one character’s knowledge and other portions will confine themselves to the knowledge held by another character. (...) Although a narration has a particular range of knowledge available, the narration may or may not communicate all that information.” (BORDWELL, 1985. p. 58 e 59) 31 “Bordwell’s theory of film narration is so admirably constructed as to deserve widespread acceptance and extended discussion. My only real criticism is that it goes too far in arguing that film has no agency corresponding to the narrator and that film narrative is best considered as a kind of work wholly performed by the spectator. Bordwell allows for a film a ‘narration’ but not a narrator.” (CHATMAN, 1993. pp. 124 e 125)

34

narrador, o que se adequa mais à natureza do cinema narrativo. E o Cinema de Poesia aqui

proposto é narrativo.

2. A narrativa clássica e a narrativa em 2001

A “criação” da narrativa do Cinema Clássico32 é comumente atribuída a D. W.

Griffith. Essa narrativa clássica não é só presente no cinema realizado em Hollywood, ou

nos Estados Unidos; é, na verdade, universal, e já foi usada em filmes de todos os lugares

do mundo. No entanto, o cinema que utiliza a narrativa clássica é conhecido como “Cinema

de Hollywood”.

Com freqüência, atribui-se a D. W. Griffith o mérito de ter elaborado a forma de narrativa cinematográfica que vai servir de modelo a todo o classicismo hollywoodiano e europeu a partir do ano de 1915. (VANOYE, 1994. p. 25)

Esse tipo de narrativa foi inspirado nos romances do séculos XIX e, principalmente,

na prosa de Charles Dickens, como atesta Vanoye (1994), quando diz que a narração

fílmica clássica

carrega, sem contestação, a marca das grandes formas romanescas do século XIX. Griffith, aliás, reinvindicou explicitamente Dickens para justificar algumas de suas ousadias narrativas33. (VANOYE, 1994. p. 26)

32 A narrativa clássica, no cinema, apresenta-se sob o mesmo modelo de narrativa clássica da literatura, desde Homero, cujas características são geralmente associadas às noções de linearidade (uma narrativa com começo, meio e fim), continuidade e homogeneidade. 33 Essas “ousadias” a que Vanoye se refere só poderiam ser assim chamadas na época de Griffith, em que a narrativa cinematográfica estava começando a se definir. Alguns anos depois, essas “ousadias” se tornaram o comum na narrativa cinematográfica, deixando de ser “ousadias” para ser “regra”.

35

Para Vanoye (1994), o principal elemento dessa narrativa clássica no cinema é a

continuidade, que se elabora aos poucos com base em dois princípios: “homogeneização do

significante visual (cenários, iluminação)” e “do significante narrativo” (trama, perfil

dramático) e, depois, “do significante audiovisual” (imagens e sons juntos); e “linearização,

pelo modo como se vincula um plano ao plano seguinte”.

Vanoye resume assim as características da narrativa clássica hollywoodiana:

O encadeamento das cenas e das seqüências se desenvolve de acordo com uma dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva. A narrativa centra-se em geral num personagem principal ou num casal (...) de “caráter” desenhado com bastante clareza, confrontado a situações de conflito. O desenvolvimento leva ao espectador as respostas às questões (...) colocadas pelo filme. (VANOYE, 1994. p. 27)

O filme de narrativa clássica, então, apresenta normalmente uma personagem que

precisa atingir certo objetivo, e, para isso, é necessário derrotar seu inimigo. No clímax da

história, há a batalha final, e a conseqüente vitória do herói. A batalha não é

necessariamente uma luta real, física, mas um confronto que determina a vitória do herói.

Como assegura Bordwell, na narrativa fílmica clássica, “o principal agente causal é então a

personagem”34.

Mesmo que o herói fosse derrotado (caso raro no Cinema de Hollywood), ainda a

narrativa estaria seguindo o modelo clássico, pois não é o modo como se resolve a narrativa

que configura o modelo, e sim a estrutura da narrativa em si. Dessa forma, o final da

história possui sempre esse embate, que finaliza a narrativa. Ainda segundo Bordwell: “A

34 “The principal causal agency is thus the character” (BORDWELL, 1985. p. 157)

36

história acaba com a vitória ou derrota decisiva, uma resolução do problema e a realização

ou não-realização clara dos objetivos”35.

Sendo esse o final-padrão da narrativa clássica, podemos observar que em 2001-

filme há dois desvios desse final. O primeiro diz respeito ao final em si, que não possui

disputa, ou qualquer confronto que resulte em vitória ou derrota, e muito menos há a

realização clara de qualquer objetivo.

Embora os finais do romance e do filme 2001 sejam parecidos quanto ao fato de não

haver disputa, fica claro que o objetivo de Clarke era explicar os acontecimentos, e até

dotar o final de 2001 de uma realização de um objetivo, no caso, a Criança-Estrela livrando

a humanidade das bombas atômicas, o que faz o final do romance acordar com a

“realização clara de um objetivo”. Isso se torna evidente principalmente na leitura de 2010:

o ano em que faremos contato (romance seqüência de 2001), em que Clarke explica o final

de 2001 como sendo a transformação de um humano em um ser que possa mediar as

comunicações entre a raça alienígena e a terra. Sendo assim, o final de 2001 seria um

embate entre homem e alienígena, em que o objetivo dos dois é alcançado: a comunicação

entre as duas raças. No filme 2001 nada disso fica claro, e essa interpretação (ou até essa

continuação da história) é apenas uma das muitas possíveis.

O segundo desvio diz respeito ao uso desse embate final de forma não-tradicional.

A “luta”, que poderia ser chamada de batalha final entre herói e vilão, ocorre muito antes

do final da obra, na cena em que David Bowman, o herói, “luta” contra HAL9000, o

“vilão”. Esse embate, que culmina na vitória de Bowman, encaixa-se muito bem no final

35 “The story ends with a decisive victory or defeat, a resolution of the problem and a clear achievement or nonachievement of the goals.” (BORDWELL, 1985. p. 157)

37

hollywoodiano, mas não é o final da obra, o que já constitui um desvio, como se o final

clássico fosse posto no meio da história, como um caso de pouca significância.

Outro aspecto da história tradicional, com a qual o modelo de narrativa clássica

mais se aproxima, é o estado inicial, um estado de equilíbrio, que é violado, para que no

final seja restabelecido. Em 2001 não há um estado de equilíbrio inicial propriamente dito,

pois, na verdade, a história já se inicia com um conflito: a busca por uma forma de

sobreviver dos homens-macacos. Esse estado inicial, mesmo que fosse de equilíbrio, jamais

seria restabelecido, pois milhões de anos separam o início do fim da história. A violação do

estado inicial (se é que se pode chamar assim o aparecimento do monolito aos homens-

macacos) termina por ser o mesmo evento que ocorre no final da história. No início, o

monolito aparece como um elemento transformador do ser humano (seja qual for a sua

natureza), e, na última cena, ocorre o mesmo quando o monolito transforma Bowman,

representante de toda a humanidade, num novo ser. Sendo assim, a violação do estado

inicial, tal como acontece na história canônica, é presente tanto no começo quanto no fim

da história, de forma que o modelo

estado-inicial → violação → restabelecimento-do-estado-inicial

se transforma em:

estado-inicial → violação → estado-inicial → violação.

A repetição do estado inicial em 2001 é possível por se tratar de uma narrativa fragmentada

em várias narrativas praticamente independentes. Assim, o estado inicial é recorrente em

cada uma das partes, e, depois, violado, sem que seja, em quase todas as partes,

restabelecido o equilíbrio. Apenas na terceira parte, na seqüência de Hal, há o

restabelecimento do estado inicial.

38

Outro aspecto muito importante, principalmente para a nossa pesquisa, é a relação

causa-efeito, que, no cinema hollywoodiano, é tida como princípio organizador da trama.

As relações de causalidade são bem delineadas e procuram estabelecer a clareza da trama e

a conseqüente construção clara da fábula. O principal ponto da causalidade, diz Bordwell, é

o prazo-limite (deadline). No cinema de narrativa clássica é comum haver um momento em

que a história vai ter sua conclusão, e esse momento é bem demarcado pela trama, muitas

vezes, inclusive, sob uma contagem de minutos, horas ou dias. O drama surge da

aproximação do prazo, momento no qual o herói deve realizar seu objetivo.

É notável que em 2001 as relações de causa e efeito são um tanto obscuras. No

entanto, a seqüência da viagem a Júpiter, em que Bowman e Hal “lutam” pelo controle da

nave, funciona como um mini-filme hollywoodiano dentro de 2001. Nessa viagem, há o

prazo-limite, em pelo menos dois momentos. Num primeiro momento, Hal avisa que

ocorrerá um defeito em uma peça dentro de 72 horas. E, em todo esse momento, há a

expectativa do final da viagem, e da conseqüente descoberta da verdade sobre o monolito.

Embora os objetivos não sejam alcançados na trama geral, o final da viagem revela um

clímax e a realização de um objetivo: a batalha entre Bowman e Hal e a vitória de Bowman.

A terceira parte, a seqüência inteira com Hal, revela-se então como um enredo

hollywoodiano que participa de um enredo maior, o da obra como um todo, que converte a

seqüência de Hal em um “filme” hollywoodiano atípico. Os objetivos que são alcançados

são provisórios, as vitórias são parciais, o resultado é incompleto, a conclusão da luta entre

Bowman e Hal é somente o início da verdadeira história, da verdadeira jornada: a viagem

pelo desconhecido.

Outro ponto merece ser citado em relação à trama causal do cinema hollywoodiano.

A estrutura causal hollywoodiana se apresenta de forma dupla: uma relação amorosa se

39

desenvolve paralelamente à “batalha”. Cada uma dessas linhas causais possui seus

obstáculos, seus objetivos e seu clímax. (BORDWELL, 1985. p. 157). É fácil perceber que

2001, seja romance, seja filme, não possui de forma alguma a linha de causalidade da

relação amorosa. Em 2001-livro ainda são estabelecidas pequenas relações amorosas entre

os astronautas e seus interesses românticos, mas são detalhes que não se refletem de modo

algum na trama, apenas contribuem para uma maior caracterização das personagens. No

filme, no entanto, não há sequer menção a qualquer relacionamento amoroso; o único

momento em que tal relacionamento é inferido no filme é quando Bowman “telefona” para

casa e pergunta a sua filha onde está a mãe dela (provavelmente, sua esposa).

O Cinema Clássico de Hollywood é linear, e essa linearidade contribui para uma

construção do significado da obra sem que haja possibilidades diversas de interpretação. O

objetivo do filme hollywoodiano é não deixar dúvidas quanto ao significado da obra,

quanto ao que acontece em cada cena, e quanto ao destino de suas personagens. Assim,

mesmo o filme que se estrutura com base em um mistério é tratado em Hollywood como

um problema a ser resolvido; o mistério deve ser solucionado até o final do filme.

O filme de mistério, com seu enigma solucionado no final, é apenas o caso mais evidente da tendência da trama clássica em se desenvolver em direção a um conhecimento completo e adequado.36

Essa é uma das principais diferenças entre o romance e o filme 2001. Enquanto o

filme não procura explicar os acontecimentos, o romance tenta solucionar todos os seus

mistérios.

36 “The mistery film, with its resolved enigma at the end, is only the most apparent instance of the tendency of the classical syuzhet to develop toward full and adequate knowledge.” (BORDWELL, 1985. p. 158)

40

O romance 2001 explica os eventos com clareza, de forma que não haja dúvida

sobre o que aconteceu; o filme, no entanto, não tem nos eventos sua principal fonte de

informação. As informações do filme precisam ser inferidas, são as explicações que não

aparecem no filme em si que constituem a principal fonte de informação para a trama. As

explicações precisam ser “criadas” pelo espectador, ao contrário do romance, em que o

narrador expõe todas as explicações necessárias para o entendimento da trama. 2001-livro,

então, aproxima-se muito do Cinema hollywoodiano, quanto à relação trama-fábula, quanto

ao modo de organização da narrativa.

... já podemos perceber que a narrativa clássica rapidamente nos proporciona uma construção da lógica da história (causalidade, paralelismos), do tempo, e do espaço, de forma que os eventos “em frente da câmera” se tornam a principal fonte de informação.37

Tendo a causalidade como ponto principal da narrativa, o cinema clássico fica sem

ambigüidades, como ocorre em 2001-livro, que é quase completamente sem ambigüidade,

ao contrário de 2001-filme, que é quase inteiramente ambíguo.

O estilo do cinema clássico também contribui para compor um melhor entendimento

da trama. Bordwell elenca três características que, se aplicarmos a 2001-filme, permitem

perceber o quanto o filme tem seu próprio estilo, e o quanto esse estilo se diferencia do

hollywoodiano. Vejamos os pontos que Bordwell elenca:

1. “a narrativa clássica trata a técnica fílmica como um veículo para a transmissão

das informações da fábula através da trama”.38 2001-filme utiliza a técnica para provocar

37 “... we can already see that the classical narration quickly cues us to construct story logic (causality, parallelisms), time, and space in ways that make the events ‘before the camera’ our principal source of information.” (BORDWELL, 1985. p. 161) 38 “... classical narration treats filme technique as a vehicle for the suyzhet’s transmission of fabula information” (BORDWELL, 1985. p. 162)

41

ambigüidades e abertura de significados, tornando a fábula menos perceptível. A técnica

(como a utilizada na viagem pelo desconhecido) contribui para que a trama não dê

informações certas a respeito da fábula.

2. “o estilo normalmente encoraja o espectador a construir um espaço e tempo

coerentes e consistentes com a ação da fábula”.39 2001-filme não possui tempo e espaço

bem definidos, ao contrário, o estilo do filme procura tornar o tempo e o espaço o mais

imprecisos possível, principalmente na última parte do filme.

3. “o estilo clássico consiste em um número rigorosamente restrito de certos

recursos técnicos organizados em um paradigma estável e classificados probabilisticamente

de acordo com a necessidade da trama”.40 2001-filme não utiliza um número restrito de

recursos técnicos; a maioria dos recursos (efeitos especiais) utilizados em 2001 foram

inventados para o próprio filme. E os recursos que utiliza não são organizados de acordo

com a necessidade da trama, pelo contrário, são postos de forma a tornar mais real, mais

verossímil, uma trama que não possui explicação em si mesma. Os recursos técnicos em

2001 permitem que se acredite nos eventos diante da câmera, mas não permitem que esses

eventos sejam entendidos facilmente, e sob uma só explicação.

Sobre a técnica, Vanoye diz o seguinte:

As técnicas cinematográficas empregadas na narrativa clássica serão, portanto, no conjunto, subordinadas à clareza, à homogeneidade, à linearidade, à coerência da narrativa, assim como, é claro, a seu impacto dramático. (VANOYE, 1994. p. 27)

39 “... style typically encourages the spectator to construct a coherent, consistent time and space for the fabula action.” (BORDWELL, 1985. p. 163) 40 “Classical style consists of a strictly limited number of particular technical devices organized into a stable paradigm and ranked probabilistically according to syuzhet demands.” (BORDWELL, 1985. p. 163)

42

Como será demonstrado nos capítulos seguintes, esses aspectos são característicos de 2001-

romance, e não podem ser percebidos em 2001-filme.

3. A narrativa do Cinema de Arte e a narrativa em 2001

O cinema tradicional sempre foi tido como um modelo a se seguir principalmente

em Hollywood, nos Estados Unidos. Na Europa e em alguns países orientais, no entanto,

surgiu um cinema que não obedecia a esse modelo, o chamado Cinema de Arte. Esse tipo

de cinema possui algumas características opostas ao Cinema Hollywoodiano, e merece ser

examinado na presente pesquisa, pois 2001-filme se opõe tanto ao Cinema Clássico quanto

ao Cinema de Arte.

O termo “Cinema de Arte” não é adequado ao cinema que ele representa, pois todo

cinema é, de modo geral, “de arte”, já que se trata de uma forma de expressão artística.41

Mas o chamado Cinema de Arte tem suas características bastante claras, desde que obteve

no neo-realismo sua primeira concretização.

...a modernidade cinematográfica encontra suas origens na Europa do pós-guerra, com o neo-realismo italiano. Desastres da guerra, ausência total de recursos financeiros, crises política e ideológica: trata-se de testemunhar, de mostrar o mundo contemporâneo em sua verdade. A intriga importa menos do que a descrição da sociedade (...). O neo-realismo vincula-se com o documentário (...): filmagens externas, em cenários naturais, recusa dos efeitos visuais ou dos efeitos de montagem, imagens pouco contrastadas, recurso a atores não profissionais (...), temas sociais, intrigas frouxas, sem ações espetaculares... (VANOYE, 1994. pp. 34 e 35)

41 Mesmo considerando o termo como inadequado, continuaremos a chamar esse tipo de cinema de “Cinema de Arte”, e o filme pertencente a ele como “filme de arte”, pois é assim que são chamados na tradição teórica e crítica do cinema. O chamado Cinema de Arte existe, e tem suas características próprias, distintas do Cinema hollywoodiano; o problema que colocamos aqui diz respeito apenas à inadequação do termo.

43

O Cinema de Arte de hoje possui muitas dessas características do neo-realismo, mas

é mais voltado para o subjetivo, o que, historicamente, foi conseqüência da mudança no

modo de pensar da sociedade. Como diz Vanoye:

...por volta do final dos anos 50, a modernidade européia torna-se mais complexa sob pressão de diversos fatores: evolução das mentalidades (as preocupações coletivas, sociais, cedem lugar a problemas psicológicos mais individualizados), evolução das técnicas (...), influência das outras artes (...), modificações do meio cinematográfico (...). (VANOYE, 1994. p. 35)

O filme de arte, assim, distancia-se do clássico hollywoodiano, por refletir uma

subjetividade aguçada e por construir sua trama a partir de uma ou mais personagens, e ter

na personagem seu foco principal, deixando a história em segundo plano.

Embora 2001-filme tenha muito do Cinema de Arte, aqui já vemos uma diferença,

pois 2001 não se apóia em uma (ou mais de uma) personagem. O foco principal de 2001 é a

história em si, a fábula, e os sentidos que perpassam essa história, os problemas filosóficos

e as possibilidades de respostas para as perguntas do filme.

As diferenças entre o Cinema de Arte e o Cinema Hollywoodiano são muitas.

Bordwell, por exemplo, descreve assim o filme de arte:

A realidade do filme de arte é multifacetada. O filme vai lidar com um assunto “real”, problemas psicológicos atuais como a “alienação” contemporânea e a “falta de comunicação”. A mise-en-scène pode enfatizar verossimilhança de comportamento bem como verossimilhança de espaço (p.e., filmagem em local, ou esquemas de iluminação não hollywoodianos) ou tempo (p.e., o “tempo morto” em uma conversa).42

42 “The art film’s ‘reality’ is multifaceted. The film will deal with ‘real’ subject matter, current psychological problems such as contemporary ‘alienation’ and ‘lack of communication’. The mise-en-scène may emphasize verisimilitude of behavior as well as verisimilitude of space (e.g., location shooting, non-Hollywood lighting schemes) or time (e.g., the temps mort in a conversation).” (BORDWELL, 1985. p. 206)

44

A verossimilhança também termina por atenuar a relação causa-efeito tão prezada

pelo Cinema Hollywoodiano, já que, tornando a obra mais parecida com a vida real, o filme

de arte faz surgir o caos, a irregularidade, da realidade. O Cinema de Arte, dessa forma,

representa os eventos de forma mais tênue, com ligações mais indiretas. As lacunas são

importantes aqui, pois determinam a aparente falta de ligação entre os eventos do filme de

arte, tornando a relação causa e efeito menos perceptível, e menos importante.

O filme de arte termina sendo um tanto episódico, assim como 2001-filme, que

possui uma narrativa cheia de episódios aparentemente desconexos. Essa falta de

causalidade no filme de arte é expressada também na trama, que se torna subjetiva,

dependente da personagem. A realidade do filme de arte se molda a partir da personagem.

Normalmente os motivos e objetivos de uma personagem do filme de arte não são

definidos, como é o caso de Michel Poiccard (ou Laszlo Kovacs) em Acossado, de Jean-

Luc Godard.

A personagem do filme de arte parece ir de um problema a outro passivamente,

enquanto no Cinema Hollywoodiano a personagem busca a realização de seu objetivo de

todas as formas. 2001-filme difere dessas duas maneiras de abordagem da personagem. Não

há, em 2001, personagens com dramas fortes, com problemas humanos ou com objetivos a

alcançar. As personagens de 2001 são, antes de tudo, uma das partes da trama, nunca o

ponto principal dela. Tanto o filme de arte quanto o filme hollywoodiano têm na

personagem seu foco principal, o que não acontece em 2001.

A narração no cinema-de-arte emprega todo tipo de subjetividade (...). Sonhos, lembranças, alucinações, o sonhar-acordado, fantasias, e outras atividades mentais podem se corporificar na imagem ou no som. Conseqüentemente, ambos o comportamento da personagem no

45

mundo da fábula e a dramatização da trama focalizam os problemas de ação e sentimento da personagem; o que é o mesmo que dizer que “investigação acerca da personagem” se torna não apenas o material temático principal mas uma fonte central de expectativa, curiosidade, suspense, e surpresa.43

Percebemos, com essa citação de Bordwell, que, embora o Cinema de Arte e o

Cinema de Hollywood tenham na personagem seu foco principal, a forma como esses tipos

de cinema focalizam a personagem é diferente. No Cinema Hollywoodiano, a personagem é

levada pela trama, é a trama que regula os cortes, a montagem, o tempo, o espaço, os

ângulos de câmera, a iluminação. No Cinema de Arte, o mundo parece feito a partir dos

olhos da personagem, o filme é montado sob suas leis, e parece dirigido pela personagem,

não pela trama, o que pode justificar certa dificuldade de entendimento da própria história

de um filme de arte, por pessoas pouco preparadas para esse tipo de cinema.

Em 2001-filme, fica difícil perceber uma ou outra forma de tratar a personagem,

pois, como já dissemos, não há uma personagem que tome o filme por completo. Mas se

verificarmos apenas as últimas duas partes, da viagem para Júpiter ao final do filme, temos

David Bowman como foco do filme. A forma de tratar a personagem como foco em 2001

parece reter características tanto do Cinema Hollywoodiano como do Cinema de Arte.

Enquanto, no início da viagem, a trama comanda a direção do filme, ditando a escolha de

ângulos, cortes, etc.; a partir do ataque de HAL9000, o mundo da fábula começa a ser

retratado como pelos olhos de Bowman, o filme começa a seguir suas ações e seus

sentimentos. Como exemplo disso, temos uma cena em que há o que comumente é tido

43 “Art-cinema narration employs all the sorts of subjectivity (...). Dreams, memories, hallucinations, daydreams, fantasies, and other mental activities can find embodiment in the image or on the sound track. Consequently, the behavior of the characters within the fabula world and the syuzhet’s dramatization both focus on the character’s problems of action and feeling; which is to say that ‘inquiry into character’ becomes not only the prime thematic material but a central source of expectation, curiosity, suspense, and surprise.” (BORDWELL, 1985. pp. 208 e 209)

46

como erro de continuidade: ao voltar para a nave depois de tentar recuperar o corpo de

Frank Poole (jogado no espaço por Hal), Bowman entra sem capacete, e, num corte brusco,

aparece com um capacete verde, destoante de sua roupa vermelha. Muitos vêem nisso um

erro de Kubrick, mas na verdade a trama, aqui, não se preocupa mais em explicar cada

acontecimento, e sim em mostrar como Bowman lida com Hal. O corte, então, sugere que

para Bowman aquele problema do capacete foi fácil de resolver, enquanto o problema de

Hal é mostrado detalhadamente, pois nele reside o maior desafio de Bowman.

Além desse corte, temos, em 2001-filme, como exemplo maior do subjetivo

afetando o mundo na tela, a viagem pelo desconhecido. Durante a viagem, o mundo toma a

mesma forma e cores (variações de apenas dois tons) que Bowman (representado

metonimicamente por seu olho em close). No final da viagem, o olho de Bowman muda de

cor em padrões iguais aos do mundo que ele viu durante a viagem ou vê naquele momento.

O mundo desconhecido e Bowman se igualam na trama, de forma que um afeta o outro.

Assim, tanto se pode imaginar que o mundo é retratado daquela forma porque nós o vemos

como Bowman o vê, quanto pode-se imaginar que Bowman é afetado pelo mundo externo,

que já possui aquela aparência. Se por um lado o filme cairia numa certa convenção do

filme de arte (embora ainda um tanto diferente da maioria dos filmes de arte), por outro, e,

mais importante, tendo-se em mente as duas possibilidades, o filme foge completamente a

qualquer forma estabelecida de tratar a personagem, de modo que é na dualidade de

possibilidades que ele se firma.

Para Bordwell, por exemplo, os recursos podem ser motivados pela subjetividade da

personagem ou podem ser somente “comentários da narrativa”. Em 2001-filme as duas

possibilidades acontecem ao mesmo tempo, numa mesma cena, da mesma forma.

47

Recursos estilísticos que ganham proeminência em relação às normas clássicas – um ângulo incomum, um corte enfático, um movimento de câmera surpreendente, uma mudança irreal na iluminação ou no cenário, uma disjunção na trilha sonora, ou qualquer outra ruptura do realismo objetivo que não seja motivado como subjetividade – podem ser tomados como comentário da narração.44

Se, na cena de 2001 descrita acima, podem-se perceber os recursos estilísticos como

sendo motivados pela personagem, pelo subjetivo (Bowman afeta o mundo retratado), ou

como sendo comentário da narrativa (já que obedeceria ao caminho inverso, em que o

mundo afeta Bowman), fica claro que a dualidade acontece, não podendo uma das duas

explicações para o uso dos recursos estilísticos ser tomada sozinha.

Podemos perceber, desde já, que o chamado Cinema de Arte não é capaz de explicar

2001-filme. 2001 parece se opor tanto ao Cinema de Hollywood quanto ao Cinema de Arte,

embora possua características de ambos. Um dos pontos mais comuns no Cinema de Arte é

o final “aberto”, e, aqui, temos mais uma diferença entre esse tipo de cinema e o filme

2001.

Como diz Bordwell:

(...) o final “aberto” característico do cinema-de-arte pode ser visto como resultado de uma narração que não irá divulgar o resultado da corrente causal. (...) A história é abandonada quando ela tiver servido o propósito do diretor, mas antes de satisfazer a necessidade do espectador. (...) Assim, o inesperado frame congelado se torna a figura mais explícita da não-resolução da narrativa.45

44 “Stylistic devices that gain prominence with respect to classical norms – an unusual angle, a stressed bit of cutting, a striking camera movement, as unrealistic shift in lighting or setting, a disjunction on the sound track, or any other breakdown of objective realism which is not motivated as subjectivity – can be taken as the narration’s commentary.” (BORDWELL, 1985. p. 209) 45 “(...) the ‘open’ ending characteristic of the art cinema can be seen as proceding from a narration which will not divulge the outcome of the casual chain. (...) The story is abandoned when it has served the director’s purpose but before it has satisfied the spectator’s requirements’ (...) Thus the unexpected freeze frame becomes the most explicit figure of narrative irresolution.” (BORDWELL, 1985. p. 209)

48

O problema do final “aberto” no Cinema de Arte é, então, que o filme acaba antes

de a história acabar, ou seja, a trama acaba antes da fábula se completar. Embora isso não

aconteça em todos os filmes de arte, é notável que aconteça na maioria deles, o que já é o

bastante para se ter esse tipo de final como uma característica desse tipo de cinema.

Teríamos então, de um lado, o final hollywoodiano, em que a trama e a fábula acabam no

mesmo momento, e de outro, o final do Cinema de Arte, em que a trama acaba e a fábula

continua, na mente do espectador apenas.

O final de 2001-filme não obedece a nenhum desses modelos. Em 2001 a fábula e a

trama acabam no mesmo momento, mas o final é “aberto”. Na verdade, o final do filme de

arte não é verdadeiramente “aberto”, pois o problema é saber o que vai acontecer a partir

daí, a partir do final do filme, e não o que significa o final do filme. O verdadeiro final

“aberto” é o de 2001, em que, embora o filme conclua a história (a fábula), não sabemos

que conclusão foi essa, e cabe a nós tomarmos a decisão, não sobre o que vai acontecer

depois, mas sobre o que aconteceu no final, e sobre as interpretações possíveis para esse

final.

O final “aberto” é um dos pontos em que a ambigüidade é mister. Na verdade, toda

obra de arte é ambígua, deve possuir mais de uma interpretação; no entanto, no Cinema

Hollywoodiano as possibilidades de leitura da obra diminuem, pela própria forma como o

filme é realizado. O Cinema de Arte tem mais ambigüidade, tem mais possibilidades de

interpretação. Um filme como 2001, no entanto, possui não só possibilidades de

interpretação várias, mas também usa figuras de linguagem de forma poética, compõe uma

obra complexa, com mistérios irresolutos e discussões filosóficas por trás da sua trama.

Entre o Cinema de Hollywood e o Cinema de Arte, é claro que 2001 se aproxima

mais do Cinema de Arte. Como diz Bordwell:

49

(...) a narração do Cinema de Arte anuncia seu débito com as artes do início do século vinte ao tornar a ambigüidade (...) central. A trama da narração clássica tende a se mover em direção à certeza absoluta, mas o filme de arte, assim como a ficção modernista inicial, detém uma noção relativista da verdade.46

Essa noção relativista da verdade é um dos pontos principais de 2001-filme. E nessa

distinção se impõe também uma diferença básica entre o romance 2001 e o filme. O

romance, ao contrário do filme, que possui relativa noção da verdade, possui uma noção

completa da verdade, e impõe essa verdade o tempo todo, em cada página da obra.

Outras assertivas de Bordwell sobre o Cinema de Arte se aplicam perfeitamente a

2001, inclusive de forma mais clara do que a certos filmes de arte.

Eventualmente, a narração do Cinema de Arte solicita não apenas uma compreensão denotativa, mas também uma leitura conotativa, uma interpretação de alto nível. (...) o slogan processual da narrativa de Cinema de Arte poderia ser: “Interprete esse filme, e o interprete de forma a maximizar a ambigüidade”.47

Para 2001-filme, o slogan deve ser: interprete esse filme de forma a maximizar a

pluralidade de sentidos. Isso nos mostra que, embora 2001-filme possua características que

possam defini-lo como Cinema de Arte, a maioria dos seus elementos não podem ser

classificados sob a ótica desse cinema. É necessário ter em mente um outro tipo de cinema

para analisar 2001-filme, como veremos nos capítulos seguintes.

46 “(...) art-cinema narration announces its debt to the arts of the early twentieth century by making ambiguity (...) central. The syuzhet of classical narration tends to move toward absolute certainty, but the art film, like early modernist fiction, holds a relativistic notion of truth.” (BORDWELL, 1985. p. 212) 47 “Eventually, the art-film narration solicits not only denotative comprehension but connotative reading, a higher-level interpretation. (...) the procedural slogan of art-cinema narration might be: ‘Interpret this film, and interpret it so as to maximize ambiguity’.” (BORDWELL, 1985. p. 212)

50

Revendo as características do Cinema de Arte como colocadas por Vanoye,

podemos verificar que algumas delas se mostram como verdadeiramente pertencentes a

esse cinema, enquanto outras são próprias do Cinema de Poesia, e, algumas delas podem

estar presentes nos dois tipos de Cinema. Vanoye diz que o filme moderno (o filme de arte),

caracteriza-se por: “narrativas mais frouxas, menos ligadas organicamente (...), finais às

vezes abertos ou ambíguos”; “personagens desenhados com menor nitidez, muitas vezes em

crise”; “procedimentos visuais ou sonoros que confundem as fronteiras entre subjetividade

(...) e objetividade”; “uma forte presença do autor, de suas marcas estilísticas, de sua visão

sobre os personagens e sobre a história que conta”; “uma certa propensão à reflexibilidade,

isto é, a falar de si mesmo”. (VANOYE, 1994. pp. 35 e 36)

Enquanto no Cinema de Arte a narrativa fica “menos ligada organicamente” por

conta do subjetivo, ou seja, por uma personagem “determinar” as ligações no filme, no

Cinema de Poesia não há essa personagem para conduzir a narrativa de forma “frouxa”. O

final no Cinema de Arte é “aberto”, no Cinema de Poesia é ambíguo. A confusão entre

subjetivo e objetivo se dá no Cinema de Arte apenas em uma direção (a personagem afeta a

diegese da obra), enquanto no Cinema de Poesia se dá em duas direções (tanto a

personagem afeta a diegese, o mundo objetivo, quanto o mundo objetivo afeta a

personagem). As outras características, como já foi dito, servem aos dois tipos de Cinema.

51

III. O discurso poético

A palavra “poesia” possui vários significados. A poesia, quando considerada como

dizendo respeito também ao sentimento poético suscitado por uma obra artística, não se

restringe somente ao domínio literário, mas se amplia a outras artes.

Tornou-se comum então falar em “sentimento”, ou em “emoção poética”. Depois, por recorrência, o termo [poesia] aplicou-se a todo objeto extra-literário suscetível de provocar esse tipo de sentimento: primeiro às outras artes (poesia da música, da pintura, etc.) depois, às coisas da natureza. (COHEN, 1974. p. 11)

Embora, assim como Jean Cohen, não aceitemos o termo como aplicado às coisas da

natureza, diferentemente dele, vamos aceitá-lo como sendo possível nas outras artes,

principalmente no cinema. Utilizaremos a teoria de Cohen (1974) a respeito da poesia para

verificar como ela pode ser aplicada ao Cinema de Poesia, pelo menos em parte e de forma

um tanto geral.

Cohen considera que a poesia é um desvio da prosa. Assim, ela surge no desvio da

linguagem corrente.

Já que a prosa é a linguagem corrente, podemos tomar esta como norma e considerar o poema como um desvio em relação a ela. (COHEN, 1974. p. 15 e 16)

Se tomarmos o cinema, por exemplo, temos, em um extremo, o Cinema de Hollywood,

com sua narrativa clássica, como sendo a norma. O Cinema de Poesia, oposto a esse cinema

que denominamos aqui (seguindo Pasolini) de “Cinema de Prosa”, surge nos desvios que

ele toma em relação à norma, que esse cinema clássico representa.

52

O estilo é tomado por Cohen como sendo resultado dos desvios à norma. Tomando

o argumento de Cohen como referência, concluímos que o estilo se coloca então como

parte do Cinema de Poesia, já que se mostra como desvio.

É estilo aquilo que não é corrente, normal, conforme ao “padrão” usual; mas não impede que o estilo, tal qual é praticado pela literatura, possua um valor estético. É um desvio em relação à norma, portanto um erro, mas, dizia também Bruneau, “um erro voluntário”. (COHEN, 1974. p. 16)

Tal como Cohen, Michael Riffaterre também considera a poesia dentro desse

contexto de desvio. Sua definição mais famosa afirma que “o poema diz uma coisa e

significa outra” (RIFFATERRE, 1989. p. 95). A esse movimento ou deslocamento de

significado, Riffaterre dá o nome de “obliqüidade semântica” (RIFFATERRE, 1989. p. 96).

Só a comparação com o modelo tradicional de narrativa clássica pode tornar

possível a percepção do desvio no dito filme de poesia. O cineasta que obtém imagens,

sons, cenas, ângulos, cores, etc. distintos dos usados no modelo clássico pode ser tomado

como um poeta, que possui uma linguagem diferente da dos outros.

Antes de saber quais desvios são esteticamente válidos, é necessário percebê-los primeiro como desvios, o que só é possível por comparação à norma. ...o poeta não fala como todo mundo. Sua linguagem é anormal, e tal anormalidade confere-lhe um estilo. (COHEN, 1974. p. 16)

O estilo, segundo Cohen, é um desvio individual. Assim, Kubrick tem seu estilo,

que seria reconhecido em todos os seus filmes (ou pelo menos naqueles em que se pode

verificar a autoria dele). Mas há, de qualquer modo, uma forma de desvio geral, que seria

comum a todos os poetas (e a todos os cineastas do Cinema de Poesia). O Cinema de

Poesia tem, então, suas formas de desvio geral, enquanto Kubrick, inserido nessa forma

53

geral, tem também sua forma individual de desvio (lembrando que o desvio deve ser

esteticamente válido).

Admitimos (...) a existência na linguagem de todos os poetas de uma invariante que permanece através das variações individuais, ou seja, uma maneira idêntica de desviar da norma, uma regra imanente ao próprio desvio. (COHEN, 1974. p. 16)

A comparação é feita então entre o Cinema de Poesia e o Cinema de narrativa

clássica, de Prosa. Mas como estamos tratando de um trabalho de adaptação (mesmo 2001

não sendo uma adaptação propriamente dita), é necessário fazer a comparação com o

romance; sendo assim, os aspectos de desvio do filme não podem figurar no romance, do

contrário, não haveria desvio, já que o romance é a prosa a que se opõe o Cinema de Poesia

de 2001. Assim, 2001-filme se insere na poesia (Cinema de Poesia) e 2001-livro na prosa,

sendo também uma obra artística, e narrativa, mas de características diferentes.

Sendo artísticas as duas obras, não pretendemos fazer juízo de valor; descreveremos

as obras apenas para mostrar que o filme se insere no campo do poético, enquanto o

romance se insere no campo do prosaico; ou, talvez fosse melhor dizer, dentro daquilo que

Jakobson considera como “linguagem referencial”. Fazendo referência a Jakobson, Paul

Ricoeur explica:

A função referencial prevalece na linguagem descritiva, que não é a respeito de si mesma, não é orientada para seu interior, mas, sim, para seu exterior. Aqui, a linguagem apaga-se em favor daquilo que é dito sobre a realidade. (RICOEUR, 1992. p. 153)

Como a prosa literária também é artística, ela possui desvios em relação à prosa

não-artística, e sendo assim, alguns desses desvios são mesmo semelhantes aos da poesia.

54

Mas os desvios da prosa48 são menos significativos e em número menor do que os da

poesia, que é desvio constante.

Sem dúvida, a prosa literária tem processos próprios mas (...) emprega um grande número de processos que caracterizam o poema. Entre prosa e poesia romanesca, a diferença é menos qualitativa que quantitativa. (COHEN, 1974. p. 23)

2001-livro, até mesmo por ser de um gênero próximo da ciência (a ficção

científica), aproxima-se do desvio mínimo, enquanto 2001-filme (mesmo sendo ficção

científica) aproxima-se do desvio máximo, desvio constante. A diferença não está no meio,

ou seja, não é verdade que por se tratar de um filme de ficção científica a obra seja poética,

enquanto um romance do mesmo gênero seja prosaico. Há muitos romances de ficção

científica com alto grau de desvio, como “Fahrenheit 541”, de Ray Bradbury, “O caçador

de andróides”, de Philip K. Dick, “O fim da infância”, do próprio Clarke, e muitos outros

(sem falar em clássicos como “O admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de

George Orwell). Todos esses romances possuem possibilidades de leituras metafóricas, e,

como 2001-livro, embora sejam prosaicos e possuam uma narrativa tradicional, possuem

um pouco (às vezes muito) de poesia. É natural que a literatura em prosa seja também

poética, tenha também elementos de poesia, e utilize a linguagem de forma poética em

algumas obras ou em alguns momentos de obras mais prosaicas. Mas a natureza do desvio é

diferente na prosa literária e no cinema, principalmente se tomarmos 2001-livro como

comparação, pois é uma obra de pouquíssimo desvio.

48 A prosa a que nos referimos aqui é a que se constrói no nível mais prosaico, e menos poético. Estamos cientes, é claro, de que existe prosa bastante poética (mas isso não constitui norma, esse tipo de prosa não é o comum, não é maioria).

55

Sendo o desvio em relação à liguagem comum um aspecto importante do cinema de

poesia, podemos fazer um paralelo dessa importância dada à mensagem com as funções da

linguagem propostas por Jakobson.

Jakobson propõe seis funções para a linguagem, cada uma tendo como foco um dos

“fatores constitutivos” do “processo lingüístico”: função referencial (contexto); função

emotiva (remetente); função conativa (destinatário); função fática (contato); função

metalingüística (código); e por fim, a que aqui nos interessa, mais de perto, a função

poética (que se volta para a mensagem). Dependendo da função predominante da

linguagem, o texto se insere numa ou noutra estrutura. (JAKOBSON, 1975. p. 123)

Embora distingamos seis aspectos básicos da linguagem, dificilmente lograríamos, contudo, encontrar mensagens verbais que preenchessem uma única função. A diversidade reside não no monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica de funções. A estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da função predominante. (JAKOBSON, 1975. p. 123)

Acreditamos que, da mesma forma que a função poética se aplica ao texto verbal, ela se

aplica a textos não-exclusivamente verbais, como o cinema. O Cinema de Poesia seria

aquele que tem como ênfase, como foco principal de sua estrutura, a mensagem em si, no

sentido atribuído por Jakobson a esse termo.

Jakobson propõe ainda que as características indispensáveis, inerentes a toda obra

poética são “os dois modos básicos de arranjo utilizados no comportamento verbal”:

seleção e combinação. (JAKOBSON, 1975. p. 129)

A seleção é feita em base de equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia, ao passo que a combinação, a construção da seqüência, se baseia na contigüidade. A função poética

56

projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sôbre o eixo de combinação. (JAKOBSON, 1995. p. 130)

Esses elementos podem explicar perfeitamente o efeito poético causado pela cena em que o

osso jogado pelo homem-macaco “se transforma” num objeto espacial. Nessa cena, temos a

equivalência entre o osso e o objeto espacial, que se forma através da posição, tamanho na

tela e formato dos dois objetos. Como são postos em seqüência, esses dois objetos criam

um sentido poético não contido nas imagens individuais, ou até mesmo nos objetos reais,

fossem eles postos lado a lado. A cena sugere que o osso, que acabara de ser utilizado como

ferramenta, é o primeiro passo para a tecnologia futura da humanidade, e é causador da

própria evolução humana, sugerindo também que as duas tecnologias (osso e objeto

espacial) possuem a mesma importância para a humanidade. As imagens se colocam como

palavras no final de versos que rimam e se colocam em seqüência, construindo o sentido

como um poema.

A equivalência projetada na seqüência tem significado mais vasto, mais profundo.

Na poesia, isso se dá quando duas palavras que rimam constroem sentidos dentro da

sequência em que aparecem, ou seja, quando som e sentido se unem, criando um

significado mais profundo. No cinema, duas imagens semelhantes, colocadas em seqüência,

criam esse significado “terceiro”, como na cena de 2001 acima descrita.

Numa seqüência em que a similaridade se superpõe à contigüidade, duas seqüências fonêmicas semelhantes, próximas uma da outra, tendem a assumir função paronomásica. Palavras de som semelhante se aproximam quanto ao seu significado. (JAKOBSON, 1975. p. 150 e 151)

Mas a semelhança de som pode significar também dessemelhança de significado:

57

Em poesia, qualquer similaridade notável no som é avaliada em função de similaridade e/ou dessemelhança no significado. (JAKOBSON, 1975. p. 153)

Segundo Jakobson, a rima é somente um dos casos de um problema mais amplo da

poesia, o paralelismo. A metáfora, o símile, a parábola, etc. são paralelismos que procuram

a semelhança, enquanto a antítese, o contraste, etc. procuram a dessemelhança. Isso leva

Jakobson (1975. p. 146) a concluir que “a equivalência de som, projetada na seqüência

como seu princípio constitutivo, implica inevitavelmente equivalência semântica...”.

Paralelamente, no cinema, teríamos equivalência de imagem, mas também de som, de

iluminação, de ângulo, etc. implicando equivalência semântica.

2001-filme possui inúmeros casos de ambigüidade: a natureza do monolito, a

loucura de Hal, o destino de Bowman, entre outros. A ambigüidade é resultado da

similaridade e da contigüidade.

A similaridade superposta à contigüidade comunica à poesia sua radical essência simbólica, multíplice, polissêmica... A ambigüidade se constitui em característica intrínseca, inalienável, de toda mensagem voltada para si própria, em suma, num corolário obrigatório da poesia. (JAKOBSON, 1975. p. 149 e 150)

A ambigüidade, a multiplicidade de sentidos, a polissemia, são, como já dissemos,

elementos essenciais de 2001-filme, que atrai a atenção do espectador muito mais pelo seu

modo de organização discursiva que pela fábula ou história que conta; em contrapartida,

esses são elementos quase ausentes em 2001-livro, cuja ênfase maior recai sobre a realidade

que descreve e a que se refere.

58

IV. O Cinema de Poesia

2001: uma odisséia no espaço é notadamente um filme artístico, e tem sido

considerado como tal pela crítica especializada desde que se tornou um clássico do cinema

moderno, ou seja, cerca de cinco anos depois de ter sido lançado, em 1968. Sendo

considerado dessa forma (embora figure no gênero “ficção científica” oficialmente, e não

no gênero “arte”), é preciso examinar o que faz de 2001 um filme de arte, e,

particularmente, um filme do Cinema de Poesia.

Esse tipo específico de cinema foi proposto por Luis Buñuel e, pela primeira vez

com esse nome, Cinema de Poesia, por Pier Paolo Pasolini. Freqüentemente ligado ao

sonho, o Cinema de Poesia tem sido pouco e superficialmente comentado, ou estudado

somente na área fílmica (sem que se faça uma correlação direta com a poesia escrita).

Em seu artigo “Cinema de Poesia”, Pasolini investiga as diferenças entre o literário

e o cinematográfico. Para ele, enquanto o escritor tem o trabalho de tirar as palavras como

de um dicionário e usá-las de uma maneira específica, o cineasta, não existindo dicionário

de imagens, deve fazer um trabalho duplo: primeiro ele deve retirar a imagem do mundo

sem sentido e lhe dar um sentido individual no mundo; depois ele deve adicionar seu

sentido específico, tal qual o escritor faz.

O próprio Pasolini reconhece, no entanto, que uma espécie de dicionário de imagens

do cinema foi estabelecida:

É verdade que um tipo de dicionário do filme, isto é, uma convenção, foi estabelecido durante os últimos cinqüenta anos de filme. Essa

59

convenção é estranha pela seguinte razão: ela é estilística antes de ser gramatical.49

Dessa forma, as imagens que nasceram no cinema de forma estilística, com seu sentido

próprio em determinada obra, passaram a ser usadas em vários filmes da mesma maneira,

de modo que seu sentido deixou de ser específico, e passou a ser geral, comum. Assim,

recursos expressivos que nasceram como parte do estilo de um autor se tornaram sintagmas,

comuns a todos.

De qualquer modo, as imagens pertencem a um patrimônio cultural de determinada

sociedade, e têm um sentido geral, que tem seu lugar no filme, da mesma forma que o

sentido geral de uma palavra tem seu lugar em um poema.

No entanto, para Pasolini, a diferença entre o “léxico” do cinema e o léxico da

literatura está nos termos abstratos, pois as imagens nunca são abstratas. Pasolini ignora o

fato de que algumas imagens se tornam abstratas depois do uso contínuo50, como por

exemplo, uma lareira queimando, que, já é lugar-comum no cinema, é usada para significar

“paixão”. Outras imagens, tornadas símbolos, podem ser usadas no cinema com sentidos

abstratos, como é o caso do conhecido formato de coração. Esse símbolo, se bem colocado

num filme, pode significar “amor”, um conceito abstrato. Exemplo disso nós temos em

“Sin City” (de Robert Rodrigues), na cena em que Marvin e Goldie estão na cama, que, em

formato de coração, faz alusão ao sentimento dele por ela. As imagens, no cinema, não são

por si só abstratas, mas, dependendo do contexto em que são colocadas, podem, num filme

49 “It is true that a kind of dictionary of film, that is, a convention, has established itself during the past fifty years of film. This convention is odd for the following reason: it is stylistic before it is grammatical.” (PASOLINI, 2005. p. 170) 50 Na verdade ele não ignora, mas imagina que isso venha a acontecer somente mil anos no futuro.

60

de poesia, tornar-se abstratas; esse é um dos motivos pelos quais o Cinema de Poesia é

ambüíguo, não-concreto.

Para Pasolini, todas essas colocações deveriam provar que a linguagem do cinema

(no geral) é a da poesia, mas, na verdade, diz ele, tem sido a da prosa.

Tudo isso deveria, em conclusão, fazer pensar que a linguagem do cinema é fundamentalmente a “linguagem da poesia”. Ao invés disso, historicamente, na prática, depois de algumas tentativas que foram imediatamente eliminadas, a tradição cinematográfica que se desenvolveu parece ser a da “linguagem da prosa”, ou pelo menos a da “linguagem da prosa narrativa”.51

Como o próprio Pasolini ressalta, o processo lógico e ilustrativo da prosa tem sido usado no

cinema, e não só no Cinema de Hollywood, mas também no Cinema de Arte.

Essa tradição que se formou, de o cinema ser prosaico, de ser narrativo, nos leva a

pensar o filme como sendo também objetivo. A prosa do filme é determinada através de

imagens, e as imagens são normalmente, e têm sido quase sempre no cinema tradicional,

objetivas. Mas, como o filme deve, assim como todas as obras de arte, ter seu significado

expressado da maneira específica do autor, ele é, ao mesmo tempo, subjetivo. Como diz

Pasolini:

Resumindo, o cinema (...) tem uma dupla natureza: ele é tão extremamente subjetivo quanto objetivo (a tal ponto que ele alcança um destino naturalista incomparável e esquisito). Os dois momentos da natureza acima citada estão intrinsecamente entrelaçados e não podem ser separados sequer em laboratório.52

51 “All this should, in conclusion, make one think that the language of cinema is fundamentally a ‘language of poetry’. Instead, historically, in practice, after a few attempts which were immediately cut short, the cinematographic tradition which has developed seems to be that of a ‘language of prose’, or at least that of a ‘language of prose narrative’.” (PASOLINI, 2005. p. 172) 52 “In short, cinema (...) has a double nature: it is both extremely subjective and extremely objective (to such an extent that it reaches an unsurpassable and awkward naturalistic fate). The two moments of the above-

61

Dessa forma, as imagens num filme possuem seu significado objetivo, mas também

demonstram um significado específico, subjetivo, próprio da obra. Isso acontece porque,

como argumenta Bazin, existe uma “ambigüidade imanente ao real”, princípio que,

segundo Bazin, deve ser respeitado pelo cinema (AUMONT, 1995. p. 72). Essa visão de

Pasolini, que parece ser geral, não se configura, no entanto, como uma visão do cinema

como um todo, e sim do Cinema de Poesia, pois suas colocações não se aplicam ao Cinema

de Hollywood, e apenas algumas delas podem ser aplicadas ao Cinema de Arte.

Mas, antes de Pasolini, Luís Buñuel já havia falado sobre um tipo de cinema que

pode hoje ser chamado “Cinema de Poesia”. Para ele, um dos elementos essenciais à obra

de arte é o mistério: “aos filmes falta, em geral, o mistério, elemento essencial a toda obra

de arte.” (BUÑUEL, 1983. p. 335). Se falta aos filmes em geral, o mistério é, no entanto,

um elemento abundante em 2001, do início ao fim.

Já na primeira parte do filme, em que homens-macacos lutam pela sobrevivência,

aparece um monolito negro, que reaparece em várias cenas do filme, sem que se possam

tirar conclusões precisas a seu respeito. O monolito é o elemento mais misterioso do filme;

é o que torna 2001 uma obra com várias possibilidades de leitura desde o início. O

monolito pode ser visto, de forma metafórica, como o elemento misterioso que nos tornou

humanos; como um artefato alienígena que “ensina” os homens-macacos a pensar; ou como

Deus (ou a representação de Deus), dando o sopro de vida aos humanos, também de forma

mentioned nature are closely intertwined and are not separable even in the laboratory.” (PASOLINI, 2005. p. 173)

62

metafórica.53 Essas metáforas, tal como se concretizam no filme, são importantes para o

Cinema de Poesia. A metáfora, diz Pasolini, é o ponto inicial desse cinema:

O cinema (...) carecendo de um léxico conceptual e abstracto, é poderosamente metafórico, começa por isso forçosamente ao nível da metáfora. (citado por SAVERNINI, 2004. p. 44)

Outro grande mistério que perpassa o filme é o defeito (ou loucura) de HAL9000. O

super-computador que comanda a Discovery em sua missão a Júpiter é infalível, no

entanto, é tomado por uma psicose assassina e acaba matando toda a tripulação, exceto

David Bowman, que consegue se salvar das tentativas de Hal de matá-lo. Não há uma

explicação para o comportamento de Hal, permanecendo o mistério, e tudo que podemos

fazer é inferir nossas próprias respostas.

Junto com o monolito, outro aspecto envolto em total mistério é o destino de

Bowman. O astronauta entra em um portal (não explicitado no filme como tal), e não há

como dizer onde ele chega. Bowman se vê mais velho e, confrontado pelo monolito, torna-

se um feto dentro de uma esfera de energia, e retorna à Terra. Não há explicações para o

que acontece com ele, as imagens falam sozinhas; completamente sem palavras, a última

parte do filme nos deixa somente com perguntas, e as respostas só aparecem se tirarmos

nossas próprias conclusões (vale dizer, sempre abertas) do mistério.54 Essa cena, além de

envolta em mistério, é também bastante metafórica.

O mistério é, então, um dos elementos que torna 2001 uma obra de arte poética, que

o torna parte do Cinema de Poesia. Esse mistério que é parte do Cinema de Poesia, no

entanto, não se assemelha ao mistério de fácil solução, como o do filme noir ou dos filmes

53 Essas possibilidades de leitura serão melhor analisadas nos capítulos seguintes. 54 A parte final, bem como a psicose de HAL serão analisadas nos capítulos seguintes.

63

policiais em geral, ou dos suspenses hollywoodianos. O mistério do Cinema de Poesia não

se resolve, ele permanece mistério, e sua solução não é importante, e também não cabe

numa resposta curta e “seca”, como “o pai dela”, que é a resposta ao mistério de Twin

Peaks (de David Lynch): “quem matou Laura Palmer?”55. O mistério do Cinema de Poesia,

então, está sempre associado a outros elementos do universo discursivo, a exemplo da

metáfora, e não situa-se apenas no universo da fábula.

Outros aspectos dos quais trata Buñuel, quando fala a respeito do Cinema de Poesia,

são o tempo e o espaço:

O tempo e o espaço tornam-se flexíveis, prestando-se a reduções ou distensões voluntárias; a ordem cronológica e os valores relativos da duração deixam de corresponder à realidade; a ação transcorre em ciclos que podem abranger minutos ou séculos; os movimentos se aceleram. (BUÑUEL, 1983. p. 336)

Embora Buñuel esteja falando a respeito da relação do cinema com o sonho, não há como

negar que essa visão do tempo e do espaço possa ser aplicada a 2001-filme. Na passagem

da primeira para a segunda parte do filme há um corte de milhões de anos. Um osso é

jogado para o alto e em um corte seco se “transforma” em um objeto espacial, que ocupa o

mesmo espaço na tela e possui quase o mesmo formato que o osso, estando na mesma

posição. Essa aproximação do osso com a nave, além de tornar o espaço um pouco

impreciso, já que iguala um fêmur a um objeto gigantesco, faz com que a narrativa dê um

salto de milhões de anos em um segundo.

Essa concatenação não-tradicional de planos faz parte da sintaxe do Cinema de

Poesia. O estabelecimento de uma relação entre um osso na pré-história e uma nave

55 Twin Peaks, no entanto, possui outros mistérios, que podem ser associados ao Cinema de Poesia.

64

espacial no futuro torna a montagem bastante poética. Mais estranha ainda é essa relação

ser de igualdade e se formar a partir de uma montagem de planos em ritmos diferentes;

enquanto a cena em que o homem-macaco joga o osso para cima é rápida e emocionante,

mesmo sendo em câmera lenta, a cena seguinte, do “balé cósmico”, é devagar e fria,

mesmo sendo em tempo normal (nem câmera acelerada nem lenta). É nesse estranhamento

entre planos que se forma a sintaxe do Cinema de Poesia, como diz Erika Savernini:

A sensibilidade perceptiva da montagem seria alcançada no cinema de poesia pelo descompasso nessas duas fases de montagem, estabelecendo relações estranhas entre os planos, seja em relação ao seu conteúdo denotativo, seja quanto ao seu ritmo – estratégia de deslocamento bastante explorada pelos cineastas surrealistas. (SAVERNINI, 2004. p. 53)

Além disso, esse corte é extremamente poético pela aproximação dos dois objetos

quase como numa rima. Tornando um a contra-parte do outro, o filme revela que aquele

primeiro elemento de tecnologia primitiva (o osso como ferramenta de guerra) evolui na

humanidade até chegar a um elemento de tecnologia altamente avançada, um “veículo”

espacial.

Erika Savernini, citando Pasolini, descreve da seguinte forma o Cinema de Poesia:

A constituição de um cinema de poesia ou um cinema de prosa representa uma pendência para uma das duas configurações. Enquanto no cinema narrativo convencional o esforço seria direcionado para fazer-se compreender e compreensível (univocidade), no cinema de poesia a intenção estaria na outra ponta, a da criação da ambigüidade, do imaginativo, subjetivo, não-concreto, impalpável. (SAVERNINI, 2004. pp. 42 e 43)

65

Essas características (ambigüidade, principalmente) fazem de 2001 um filme

poético, com múltiplas possibilidades de interpretação, inclusive devido ao uso da

montagem, mais característica do cinema de Eisenstein, enquanto 2001-romance se mostra

fechado, preocupado em explicar cada elemento, de modo que não há como interpretá-lo de

várias formas, apresentando-se sob o modelo do romance do século XIX, usado por Griffith

no cinema.

A montagem, para Ensenstein, é a combinação de tomadas descritivas, que possuem

apenas um significado, e são neutras em conteúdo, em séries e contextos intelectuais

(EISENSTEIN, 1992. p. 129). Eisenstein diz ainda que a montagem cinematográfica é

análoga ao haikai japonês, em que “A simples combinação de dois ou três detalhes de um

tipo material produz uma representação perfeitamente acabada de outro tipo:

psicológico.” 56 Daí, ele desenvolve seu pensamento sobre a montagem, chegando à

conclusão de que a montagem é caracterizada pela colisão, pelo conflito de duas peças

opostas uma à outra. Dessa forma, a montagem não é, para Eisenstein, simplesmente uma

ligação das peças, em uma cadeia, é, sim, o surgimento de um conceito através do conflito

entre duas imagens. Eisenstein deixa claro, no entanto, que numa forma pura, esse tipo de

montagem pertence a um tipo diferente de cinema, que não o cinema comum:

Esse é um meio e um método inevitável em qualquer exposição cinematográfica. E, numa forma condensada e pura, é o ponto de partida para o “cinema intelectual”. Para um cinema procurando um laconismo máximo para a representação visual de conceitos abstratos.57

56 “The simple combination of two or three details of a material kind yields a perfectly finished representation of another kind – psychological.” (ESEINSTEIN, 1992. p. 130) 57 “This is a means and method inevitable in any cinematographic exposition. And, in a condensed and purified form, the starting point for the ‘intellectual cinema’. For a cinema seeking a maximum laconism for the visual representation of abstract concepts.” (EISENSTEIN, 1992. p. 129)

66

Uma das funções que Vanoye determina para a montagem de um tipo de cinema

que se configura como uma tendência rebelde ao classicismo é uma função

“argumentativa”. A montagem a que Vanoye se refere, uma montagem “rebelde”, oposta ao

tipo de montagem clássica, é bastante semelhante à montagem em 2001, e os exemplos

usados são sempre de cineastas russos, que seguem a linha de Eisenstein. Vanoye diz que a

função de “argumentação”

tende a exprimir idéias, valores, segundo procedimentos como a montagem paralela (que permite comparar os grevistas fuzilados a animais abatidos, a torrente de operários sublevados à do rio quando do derretimento do gelo – ver A greve, de Eisenstein, A mãe, de Pudovkin –, ou instalar antíteses: os burgueses e operários em A nova Babilônia, de Kozintsev e Trauberg), a comparação visual (encadeando um plano de Kerenski a um plano de pavão em Outubro), as legendas (que ironizam, julgam, formulam slogans ou máximas), a luz, os ângulos de tomada ou os primeiros planos gerais (através dos quais é possível ironizar um personagem ou exaltá-lo: ver o famoso plano de detalhe do monóculo em O encouraçado Potemkin, tudo o que resta do médico de bordo depois que a tripulação se livrou dele). (VANOYE, 1994. p. 30)

A estrutura narrativa também diferencia o Cinema de Poesia do Cinema de Prosa.

Diferente do filme “de prosa”, o filme de poesia dá ênfase ao discurso, em detrimento da

fábula. Erika Savernini, citando Pasolini, diz o seguinte a respeito disso:

... Pasolini enfatiza que o cinema de poesia possui uma forma de estruturação distinta da narrativa convencional (...). Não é na temática que se encontra a diferenciação, mas na modulação dos elementos narrativos. (SAVERNINI, 2004. p. 29)

Em 2001, temos um exemplo claro desse tratamento diferenciado da narrativa. No filme,

nenhuma cena se passa na Terra, a não ser a primeira, na pré-história. No romance, há uma

67

cena na Terra, na Flórida, especificamente. Clarke achava a passagem da pré-história para o

espaço muito brusca, e, para fazer o leitor entender melhor os acontecimentos, adicionou

um capítulo (Capítulo 7 do romance) que se passa nos Estados Unidos. Kubrick era contra

essa inclusão, como atesta o próprio Clarke em The Lost Worlds of 2001.

... o romance contém apenas algumas páginas passadas na Terra, em 2001 d. C., enquanto o filme ignora o assunto completamente, e pula direto para o espaço.58

A narrativa do filme não procura explicar o impacto político e cultural da descoberta do

monolito na lua, nem como essa descoberta ocorreu precisamente. O romance, tomando o

rumo dessas explicações, diminui o mistério, e deixa pouco para a imaginação e a

interpretação do leitor.

O salto, no romance, da Terra pré-histórica para a Terra do início do século XXI é

enorme, mas é como se houvesse um salto exclusivamente temporal. No filme, o salto é

temporal e espacial, dando um rumo completamente inesperado à narrativa, da Terra pré-

histórica para o espaço no futuro.

O que Clarke tenta, no romance, é diminuir o estranhamento. Ele próprio assume a

preocupação em explicar os acontecimentos o bastante para tornar a história facilmente

compreendida.

Um dos problemas que qualquer escritor de ficção-científica que pretende atingir o público geral encontra é o quanto explicar e o quanto tomar como garantido.59

58 “... the novel contains only a few pages set on Earth, 2001 AD, while the film ignores the subject completely, and jumps straight into space.” (CLARKE, 1972. p. 76) 59 “One of the problems facing any science-fiction writer who is aiming for the general public is how much to explain, and how much to take for granted.” (CLARKE, 1972. p. 76)

68

Enquanto Clarke procura diminuir o estranhamento, explicando o que acha não ser claro,

Kubrick intenta causar estranhamento; várias cenas do filme atestam isso, como o corte da

Terra pré-histórica ao espaço no futuro, o aparecimento do monolito sem qualquer

explicação a seu respeito (no romance, desde sua aparição, o monolito é descrito como um

artefato alienígena), a viagem de Bowman pelo desconhecido (no romance a viagem é

descrita como sendo através de sistemas estelares, inclusive com descrições bastante

precisas de planetas desses sistemas), entre outras. O estranhamento, materializado no filme

e evitado no romance, é um dos elementos constituintes do Cinema de Poesia, e da obra de

arte em geral, como atesta Umberto Eco (que retoma os Formalistas Russos com esse

conceito):

...o discurso artístico nos coloca numa condição de “estranhamento”, de “despaisamento”; apresenta-nos as coisas de um modo novo, para além dos hábitos conquistados, infringindo as normas da linguagem, às quais haviam sido habituados. (ECO, 1988. p. 280)

2001-filme possui um discurso artístico. Foi um filme que infringiu as normas da

linguagem cinematográfica habitual, tanto que não foi bem aceito em seu lançamento, pelo

estranhamento que causou.

Esse estranhamento se deve, de certa forma, também aos planos mostrados por

longo tempo. Kubrick utiliza a montagem, que é responsável pela sintaxe do filme, da

forma como Pasolini diz ser característica do Cinema de Poesia, enquadrando objetos

insistentemente ou mostrando planos por um tempo muito longo para a informação que ele

contém.

Logo no início da segunda parte, antes de a narrativa começar, naves e estações

espaciais giram e se locomovem com vagareza na tela. Acompanhadas pelo “Danúbio

69

Azul”, valsa de Strauss, as naves parecem dançar no espaço, num balé mecânico com

leveza. A música em 2001-filme não é usada apenas como trilha sonora, ela é parte da obra

de arte, também contribuindo para compor o significado da obra. É somente na junção da

música com a imagem que se pode ver a cena inicial das naves como um balé. Essa forma

de utilizar a música também é própria do cinema de poesia, pois sugere significados que

não seriam possíveis sem aquela trilha sonora específica.

As naves são enquadradas por tempos longos; não possuindo qualquer outra

informação para a narrativa, o motivo da demora nesse balé é artístico, é justamente para

que o espectador reconheça que aquelas máquinas estão “dançando” no espaço, que o plano

é demorado de modo explicitamente intencional. A junção dos dois elementos, a música de

Strauss e as naves quase em câmera lenta, é que insere poesia na cena. A metáfora se forma

a partir da maneira como as naves são mostradas em conjunto com a música. De forma

metafórica, então, o movimento das naves e estações espaciais é comparado a um balé, que

já é, por si só, uma obra artística.

É bom deixar claro que o Cinema de Poesia é também cinema narrativo. Não se

trata de forma alguma de uma diferenciação radical, em que um cinema seria narrativo (o

Cinema de Prosa) e o outro não (o Cinema de Poesia). O próprio Pasolini explicita isso,

deixando claro que desde que pensou em Cinema de Poesia já o fazia diante de um cinema

narrativo.

Quanto a mim, continuo a acreditar no cinema que narra, isto é, na convenção através da qual a montagem escolhe as partes significativas e válidas a partir dos planos-seqüência infinitos que poderiam ser rodados. Mas eu fui também o primeiro a falar explicitamente de um “cinema de poesia”. No entanto, ao falar de um cinema de poesia, eu sempre quis falar de poesia narrativa. A diferença seria de técnica: em

70

vez da técnica narrativa do romance, de Flaubert ou de Joyce, a técnica narrativa da poesia.60

A técnica narrativa da poesia se centra muito na subjetividade, aspecto importante

para o cinema de poesia. Mesclando dois conceitos distintos, o da câmera subjetiva no

cinema e o do discurso indireto livre na literatura, Pasolini cria a câmera subjetiva indireta

livre. O discurso indireto livre é a aparição da voz da personagem como inserida na voz do

narrador. A câmera subjetiva é o discurso direto no cinema, ela se iguala ao olhar de uma

personagem da diegese. Na subjetiva indireta livre (que seria para Pasolini equivalente ao

discurso indireto livre na literatura), o mundo interno da personagem é contaminado pelo

mundo externo, objetivo; assim, mundo objetivo e mundo subjetivo se mesclam, fazendo

com que a experiência da personagem se mostre no objeto retratato, no mundo retratato.

Como diz Erika Savernini:

Os filmes em que se pode observar a tendência para um cinema de poesia caracterizam-se pela existência de uma personagem central que domina a narrativa de tal forma que esta parece representar a sua subjetividade. (...) O sistema significativo e perceptivo da personagem não interfere apenas no desenvolvimento narrativo, mas também em sua visualidade, na articulação dos planos, enfim, na estrutura. (SAVERNINI, 2004. p. 47 e 48)

2001, embora não tenha uma personagem que domine a narrativa inteira,61 possui

uma seqüência inteira dominada por esse estilo subjetivo indireto livre. Na parte final, em

que Bowman fica sozinho na nave, entra pelo portal e viaja ao desconhecido, a subjetiva 60 “As for me, I continue to believe in a cinema which narrates, that is, in the convention through which the editing chooses the meaningful and valid parts from the infinite sequence shots which can be shot. But I have also been the first to speak explicitly of a “cinema of poetry”. However, speaking of a cinema of poetry, I always meant to speak of narrative poetry. The difference was a technical one: rather than the narrative technique of the novel, of Flaubert or of Joyce, the narrative technique of poetry.” (PASOLINI, 2005. p. 251) 61 Na verdade, em 2001 não há sequer uma personagem que figure em todas as partes da obra, seja filme, seja livro.

71

indireta livre é constante. Nessa parte, temos primeiro a viagem de Bowman, em que ele

entra no monolito gigante na órbita de Júpiter e passa por estrelas, e por um caminho

indiscernível. A viagem pelo mar de luzes é claramente afetada pelo olhar de Bowman. Os

“lugares” por onde ele passa são difíceis de serem descritos, e mais difíceis ainda de serem

entendidos pelo espectador, que, olhando pela câmera, vê o que Bowman vê, ou seja, algo

incompreensível para o ser humano.62

No romance, nada disso é passado dessa forma. A viagem é descrita com detalhes

como uma viagem pelos confins da galáxia. Bowman passa por estrelas e por planetas,

chega a um porto espacial desativado, e entra na atmosfera de um planeta, até que possa se

ver dentro do quarto de hotel da cena final. Assim, o que vemos no romance é a descrição

crua do narrador, às vezes pontilhada por comentários sobre os sentimentos de Bowman,

mas nada que se compare à forma como Kubrick insere a subjetividade de Bowman nas

imagens que nos são mostradas. Uma imagem que nos permite perceber a subjetividade de

Bowman afetada e afetando o mundo extraordinário em que ele se encontra é o seu olho. O

olho de Bowman aparece várias vezes durante a viagem pelo desconhecido. Essa

concatenação clássica de imagens (primeiro, a câmera mostra o olho, depois a imagem que

esse olho vê) é usada em 2001 para mostrar que é Bowman que vê aquele mundo como

sendo a coisa mais estranha já vista por um ser humano. O olho também toma as cores

estranhas do meio em que ele está, sendo assim, o olho e, por metonímia, o próprio

Bowman, são afetados pelo mundo.

Mas nem todas as formas de fazer com que o subjetivo de uma personagem afete o

objetivo da realidade do filme são poéticas. Já se tornou comum no Cinema de Hollywood

62 Essa cena será descrita com mais detalhes e melhor analisada no último capítulo (2001: palavra versus imagem).

72

apresentar alterações de câmera, como uma câmera tremida, de foco, como imagens

desfocadas, ou de iluminação, como escurecimento ou clareamento (fade in, fade out), em

cenas em que a câmera assume a visão de uma personagem mentalmente afetada de alguma

forma, como quando acorda, desmaiando, doente, sob o efeito de drogas, etc. Esse tipo de

recurso já foi absorvido completamente pelo Cinema de Hollywood, e por seus

espectadores, de forma que não se configura mais como um desvio da linguagem comum, e

sim como linguagem comum. Mas, é bom lembrar, esses recursos só são liguagem comum

quando usados nas situações acima descritas; no entanto, se usados em situações não-

comuns ao cinema tradicional, configuram-se como linguagem poética, como é o caso já

citado da cena da viagem de Bowman. Conforme Pasolini, no filme que é parte do Cinema

de Poesia, a “câmera indireta livre”

(...) pode ser irregular e aproximada – muito livre, resumindo, já que o cineasta faz uso de um “estado da mente psicologicamente dominante no filme”, que é o de um protagonista doentil, anormal, com a finalidade de tornar o filme uma mimese contínua, que permite ao autor uma grande liberdade estilística provocativa e anômala.63

A “subjetividade” no Cinema de Poesia diz respeito à “aparição” do sujeito da personagem

no filme, ou seja, a adequação da diegese da obra ao estado mental da personagem, mas diz

respeito também a questões estilísticas, à “aparição” do sujeito do artista, do autor, do

criador, na linguagem e na obra em geral. Colocar-se no filme significa, para o cineasta,

colocar seu estilo na obra. As imagens de 2001-filme, por exemplo, demonstram o sujeito

63 “... may be irregular and approximate – very free, in short, given that the filmmaker makes use of the ‘dominant psychological state of mind in the film’, which is that of a sick, abnormal protagonist, in order to make it a continual mimesis which allows him great, anomalous, and provocative stylistic freedom.” (PASOLINI, 2005. p. 182)

73

Kubrick, o estilo do artista Kubrick, na freqüente simetria dos objetos, nos planos

demorados, no uso da cor, etc.

A cor é um elemento utilizado por Kubrick de forma muito artística, de forma

poética, contribuindo também para o Cinema de Poesia. A nave em que eles viajam a

Júpiter é quase inteiramente branca, tanto por fora quanto por dentro, criando um contraste

(antítese) incrível com o vazio negro do espaço. Verifica-se então um contraste entre a paz

humana, dentro da nave, no branco, e a paz do espaço, do vazio, no vácuo. A ausência de

outras cores também contribui para esse contraste, que só é quebrado realmente pelo

constante olho vermelho de Hal. Outra antítese formada a partir do uso da cor se dá na cena

final, em que Bowman aparece com um roupão preto e, na cena seguinte, perto da morte,

vestido de branco. A cor pode ser usada também para enfatizar a importância de

determinado objeto. Em O Selvagem da Motocicleta (de Francis Ford Coppola), só há duas

imagens (ou objetos) coloridos. O filme é todo em preto-e-branco, retratando a forma de

ver o mundo da personagem principal, que é daltônica. No entanto, os peixes dourados, que

são os seres que ele (a personagem principal, interpretada por Matt Dillon) mais ama,

aparecem sempre coloridos. E, na cena final, em que seu irmão morre, ele vê seu próprio

reflexo colorido no vidro do carro da polícia, como para mostrar que agora ele saiu da

sombra do irmão, não mais vai seguir o caminho tomado pelo seu ídolo, e sim um caminho

novo, escolhido por ele mesmo.

No final da obra, em que Bowman se vê em um quarto de hotel, há diferenças

cruciais entre filme e romance, que atestam a subjetividade da personagem inserida no

filme, bem como a multiplicidade de sentidos, em contraste com a unicidade do romance.

No filme, não há como saber de onde o quarto aparece, onde está, e qual a relação daquele

quarto com Bowman. Uma das possibilidades, se tomarmos o caminho da influência dos

74

extra-terrestres como resposta, é que os alienígenas tenham construído aquele lugar a partir

de imagens mentais de Bowman. Mas tudo aquilo também pode se passar apenas dentro da

mente de Bowman, não existindo lugar real. Outra possibilidade é a criação puramente

artística de uma metáfora para mostrar como uma viagem ao desconhecido nos leva de

volta ao conhecido. Todas essas possibilidades são apagadas no romance, pois o narrador

de Clarke descreve o lugar nitidamente como criado pelos extra-terrestres para aliviar a

tensão de Bowman, e mais, não um lugar copiado da mente do astronauta, como claramente

é o caso em Contato (filme de Robert Zemeckis, baseado em romance de Carl Sagan), mas

um lugar copiado de um programa de televisão da Terra.

Dessa forma, no filme, podemos imaginar um discurso metalingüístico, em que,

copiando o quarto das imagens da mente de Bowman (se optarmos por essa explicação), os

alienígenas retiram da subjetividade dele o ambiente em que ele se encontra, da mesma

forma que o cineasta, ao utilizar a subjetiva indireta livre, mescla a subjetividade da

personagem com o mundo retratado, de forma que essa subjetividade afeta completamente

esse mundo. Isso não é possível se tomarmos o romance como explicação para o filme, já

que em Clarke os extra-terrestres copiam o quarto não da mente de Bowman, mas de

programas de televisão.

Também nessa última cena temos outro exemplo de recurso cinematográfico usado

de forma artística, da forma característica do Cinema de Poesia. No cinema de narrativa

tradicional, convencional, é comum que a montagem revele quando uma pessoa olha para

outra, como diz Erika Savernini:

A reprodução da lógica do olhar perseguida pela narrativa clássica, por exemplo, acostumou o espectador a uma série de estratégias convencionais. Assim, quando uma personagem olha para fora do

75

campo de visão da tela e o próximo plano mostra uma outra pessoa à porta, o espectador faz a associação imediata dos dois planos e percebe uma continuidade (conceito central na narrativa clássica). Decodifica-se que a primeira personagem olhou para a pessoa à porta. (SAVERNINI, 2004. p. 54)

Assim, em 2001-filme, na cena final, Bowman aparece já velho, no quarto de hotel

em que chega com sua cápsula espacial. Depois ele olha para sua frente, e no próximo

plano aparece ele mesmo mais velho. Aqui já temos a montagem descrita na citação acima,

em que se percebe Bowman olhando para uma versão mais velha de si mesmo. Por ser tão

estranho, o espectador pode tomar isso como uma passagem de tempo, um pulo no tempo, e

não entender que o astronauta esteja olhando para um outro de si mesmo. Mas Kubrick

descarta essa possibilidade quando torna claro que Bowman vê versões mais velhas de si

mesmo, no corte seguinte, quando ele, já mais velho ainda, olha de lado e vê uma versão

sua bem mais velha, que jaz numa cama perto da morte. Nesse enquadramento, aparece a

cabeça do Bowman que olha, por trás, e o outro Bowman na cama, já moribundo. Esse tipo

de plano também é freqüentemente utilizado no cinema de prosa para mostrar duas pessoas

conversando, ou mesmo uma olhando para outra.

Essa utilização de recursos tradicionais do cinema de prosa de forma não-

convencional é característica do cinema de poesia. Kubrick utiliza esses recursos, que são

comumente usados para explicar o que se passa, e os converte em ferramentas de

estranhamento; subvertendo esse tipo de montagem clássica, ele torna a cena poética.

Bowman aparece duas, três vezes, no mesmo quarto, dividindo o espaço consigo mesmo.

É possivel interpretar essa cena simplesmente como a passagem do tempo, mas há

outras interpretações mais plausíveis, e até mais poéticas. O fato de Bowman se ver mais

velho pode significar um salto na sua experiência como ser humano, pois está diante de

76

coisas nunca vistas pela humanidade. Outra possibilidade é que Bowman, tornando-se mais

velho nesses saltos, transforma-se num ser mais sábio, como manipulado por essa entidade

que é seu anfitrião. Mas tudo pode ser visto de forma metafórica; como representante da

humanidade, Bowman chega ao estado de maior conhecimento humano em dois saltos, mas

esse conhecimento, de toda a humanidade, esse ser idoso, que representa a humanidade

quando dá seu próximo salto, torna-se um feto, como para mostrar que a humanidade,

diante dos mistérios do universo, está ainda no início da vida.64

Percebemos então que, mesmo quando utiliza cortes e enquadramentos tradicionais,

próprios do cinema de prosa, Kubrick os utiliza de forma não-convencional, para, dentro da

narrativa, causar estranhamento, suscitar perguntas e não impor respostas. A afirmação de

Erika Savernini reforça nossa conclusão:

Deve-se, então, ter em mente que, mesmo quando assimilado pela gramática cinematográfica estilística convencional, o cinema de poesia é subversivo. (SAVERNINI, 2004. p. 57)

No romance, Bowman não vê a si mesmo mais velho. Há uma descrição do narrador

sobre a vida da personagem como se passando de trás para a frente, desde o ponto em que

ele se encontra no quarto de hotel, criado pelos alienígenas, até seu nascimento. Assim, no

romance, a trajetória de Bowman é inversa, ele vai do ponto mais velho até o mais novo;

enquanto no filme Bowman passa do estado mais velho diretamente para o estado de feto,

como se o feto fosse uma evolução do seu estado anterior (essa é mais uma das

possibilidades de interpretação, sendo o feto um novo ser, chamado no romance de

Criança-Estrela).

64 Essa cena será melhor descrita e essas interpretações serão aprofundadas no último capítulo (2001: palavra versus imagem).

77

A possibilidade de se interpretar a obra de várias formas é um dos pontos principais

do Cinema de Poesia. Assim como toda obra de arte, a multiplicidade de significados é que

faz com que um filme se defina como objeto artístico. Essa característica do Cinema de

Poesia se iguala ao conceito de Umberto Eco de obra de arte. Para Eco, a obra de arte é

um objeto dotado de propriedades estruturais definidas, que permitam, mas coordenem, o revezamento das interpretações, o deslocar-se das perspectivas. (ECO, 1988. p. 23)

Um dos primeiros cineastas a falar a respeito da multiplicidade de leituras de uma

obra de arte foi Eisenstein. Comentando a respeito de um romance, ele cita a falta de

posicionamento estável, unívoco, sobre os fatos do romance Uma tragédia americana, que

ele começou a filmar, e conta como o filme, por ser aberto a interpretações variadas, foi

tirado de suas mãos pelo estúdio (Paramount Pictures, Inc.) e realizado de forma

tradicional, como um simples policial, por outro cineasta.

O romance de Dreiser é vasto e ilimitado como o Hudson, imenso como a própria vida, admitindo para si múltiplos pontos de vista. Como todo fenômeno “objetivo” da natureza, noventa e nove por cento deste romance são exposição de fatos, um por cento é posicionamento em face deles. (EISENSTEIN, 1983. pp. 204 e 205)

Com 2001 ocorre, como já dissemos, o contrário. Enquanto o romance procura uma

posição diante dos fatos, explicando-os e descrevendo-os como sendo realizados sob a

influência de extra-terrestres, o filme não se posiciona diante dos fatos, simplesmente os

mostra na tela, deixando o posicionamento e as explicações para o espectador. Ou seja, da

mesma forma que o romance de Dreiser, 2001-filme é noventa e nove por cento exposição

de fatos (um monolito chega na terra; homens-macacos aprendem a usar ferramentas; é

78

encontrado, no futuro, um monolito na Lua; é feita uma viagem para Júpiter; o computador

da Discovery mata os tripulantes; Bowman viaja para um lugar desconhecido e se

transforma em outro ser) e um por cento posicionamento diante deles (talvez menos ainda,

como já vimos ao longo do nosso texto). 2001-romance, no entanto, tanto expôe os fatos

quanto os explica, quanto se posiciona em face deles.

Eisenstein, comentando os procedimentos artísticos do cinema, fala sobre um dos

tipos de metonímia como sendo o mais comum deles: a parte pelo todo.

Consideremos, por exemplo, o mais difundido dos procedimentos artísticos, o assim chamado pars pro toto. Ninguém ignora a sua eficácia. (...) Nesse estágio de pensamento não-diferenciado, a parte também é, ao mesmo tempo, o todo... Não existe unidade entre parte e todo, mas, por outro lado, logra-se uma identidade objetiva para a representação do todo e da parte. Parte ou todo, tanto faz – um ou outro assume invariavelmente a forma de agregado e de totalidade. (EISENSTEIN, 1983. p. 226)

Em 2001-filme, diferentemente do livro, Hal aparece o tempo inteiro sob a imagem do seu

“olho”. Os “olhos” vermelhos de Hal, espalhados pela nave, são, em cada cena em que

aparece um deles, a representação do todo. Mas os dois se confundem, parte e todo se

tornam um só, pois é no “olho” vermelho que o espectador cria sua imagem de Hal por

completo. Ainda sobre Hal, temos a cena em que Bowman vai desligá-lo. Bowman retira

uma por uma as “partes” da consciência de Hal, terminando por deletá-lo inteiramente.

Cada parte que Bowman tira de Hal é uma parte morta do computador, retirando todas as

partes, ele aniquila o todo.

Essa cena é a única dotada de drama humano, mesmo se tratando de um

computador, de uma máquina. Até mesmo a morte de Frank Poole é fria, enquanto a morte

de Hal é composta com tristeza por uma música cantada com uma voz tornada infantil.

79

Embora no filme os dramas não sejam vivenciados pelas personagens, 2001-filme passa

sensações para o espectador: a calma do “balé cósmico”, o silêncio do universo, o

estranhamento do desconhecido, etc. Unida a essas sensações está a cientificidade da obra,

construída com o apoio de técnicos especializados. 2001 é cheio de verdades científicas que

muitas vezes nem notamos, como o fato de a Estação Espacial Um girar em volta de si

mesma para reproduzir uma pequena gravidade sob força centrífuga. 2001-filme une, assim,

a lógica científica com a sensação artística.

Eisenstein faz uma diferença entre essas duas categorias de construção (ou efeito);

uma seria “lógico-informativa”, a outra, “sensório-emocional” ou “artístico-sensorial”.

Comentando sobre o uso da metonímia em “O Encoraçado Potemkin”, Eisenstein diz o

seguinte:

Como podem ver, para os fins da impressão artístico-sensorial, costumamos utilizar como método de composição uma dessas leis do pensamento primitivo que não passavam, a dada época, de normas de costumes e comportamento cotidianos. Utilizamos uma construção à maneira do pensamento sensorial e, como resultado, ao invés de um feito “lógico-informativo”, esta construção nos submete efetivamente a um efeito sensório-emocional. (EISENSTEIN, 1983. p. 227)

Enquanto o romance 2001 procura utilizar sempre construções “lógico-informativas”,

chegando até a ser “didático” em certas partes, o filme tende a equilibrar essas construções

com as “sensoriais”. E, como atesta o próprio Eisenstein, esse equilíbrio é o que constrói a

verdadeira obra de arte.

Havendo predominância de um desses elementos sobre o outro, a obra de arte permanece irrealizada. Tendendo para a vertente lógico-temática, torna-se a obra árida, lógica, didática. Mas se tende para a vertente contrária das formas sensíveis de pensamento, em detrimento

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do aspecto lógico-temático, fatalmente, do mesmo modo, a obra acaba se condenando aos (sic) caos sensível, ao primarismo, à extravagância. Somente a interpenetração “dualmente una” das duas vertentes alcança a unidade verdadeira, carregada de tensão, de forma e conteúdo. (EISENSTEIN, 1983. p. 239)

Esse equilíbrio entre as construções “lógico-informativas” e as “sensório-

emocionais” não contradiz a ênfase que o filme 2001 dá à ambigüidade, à multiplicidade de

sentidos. As construções “sensório-emocionais”, embora tenham relação com a

ambigüidade, não são as únicas construções responsáveis por essa plurisignificação. Ou

seja, o fato de o filme equilibrar as construções “lógico-informativas” e as “sensório-

emocionais” não o impossibilita de ser primordialmente multisignificativo, de pender para a

configuração ambígua.

Outro dos primeiros cineastas a falar da relação entre cinema e literatura foi Jean

Epstein. Ele fala da aproximação entre o cinema e a literatura, mas pelos seus comentários

fica óbvio que ele não trata da literatura em geral, e sim da poesia. Epstein (1983. pp. 270 a

275) enumera alguns tipos de estéticas que seriam, para ele, as responsáveis pela

proximidade entre o cinema e a linguagem (para nós, ele fala, na verdade, da linguagem

poética, não da linguagem geral). As mais importantes, para nós, são a estética da sugestão

e a estética de metáforas:

Estética de sugestão: tanto num poema quanto num filme do Cinema de Poesia, as

imagens, as idéias, os sentidos são sugeridos. Em 2001-filme, os sentidos são sugeridos,

cabendo ao espectador descobri-los; além disso, a relação entre uma imagem e outra só é

possível de ser entendida pela construção dos sentidos por parte do espectador.

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Não se conta mais nada, indica-se. O que permite o prazer de uma descoberta e de uma construção. Mais pessoal e sem entraves, a imagem se organiza. (EPSTEIN, 1983. p. 271)

Estética de metáforas: as metáforas visuais do cinema se igualam às metáforas dos

poemas. Várias metáforas de 2001-filme já foram citadas aqui, e, logicamente, todas elas se

incluem nessa categoria de “metáforas visuais”.

Abel Gance foi o primeiro a ter idéia da metáfora visual. A não ser por uma lentidão que a falseia e um simbolismo que a mascara, é uma descoberta. O princípio da metáfora visual é exato na vida onírica ou normal; na tela, ele se impõe. (EPSTEIN, 1983. p. 273)

Eduardo Peñuela Cañizal concilia o pensamento de Pasolini com o de Epstein

atestando que ambos

situam a poesia numa esfera que não cabe no relato, entendido como ordenação do discurso fílmico imposta pela lógica seqüencial dos enunciados narrativos. Ao contrário, o efeito poético parece ter sua origem na ordem que determina o arranjo das imagens que desvendam os sentidos ocultos do mundo ou, quem sabe, das imagens que colocam no mundo sentidos que se ocultam no homem e em seus modos de manipular as linguagens. (CAÑIZAL, 1986. p. 355)

Esse pensamento a respeito da poesia se alinha ao que propomos para nossa análise

de 2001. A poesia surge em 2001-filme justamente a partir da forma e da ordem com que as

imagens são concatenadas, sendo esse aspecto crucial na formação do sentido de cada

imagem, de cada cena, e do filme por inteiro.

Na primeira parte de 2001-filme, após o primeiro contato com o monolito, um dos

homens-macacos segura um fêmur e começa a bater em uma pilha de ossos. Ao perceber

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que aquele osso que ele segura, impelido por sua força, tem o poder de quebrar os ossos

que jazem na sua frente, o homem-macaco percebe também o poder que ele possui de usar

aquela ferramenta como arma, atacando outros animais para matá-los e comer sua carne.

Nessa cena, o quebrar dos ossos pelo homem-macaco é intercalado com imagens de uma

anta caindo como que abatida. Da junção dessas imagens em montagem paralela surge o

sentido oculto e, portanto, o poético. Essas imagens mostram que o monolito (seja qual for

a interpretação escolhida para o que é o monolito) deu a capacidade de pensar àqueles

homens-macacos; e que jaz naquele osso o início de toda a humanidade, criada a partir da

necessidade de se alimentar, mas também a partir da violência.

Essa cena exemplifica perfeitamente o que Pudovkin pensava ser a obrigação do

diretor de cinema. Para Pudovkin, “o diretor de um filme deve manipular os planos como o

poeta manipula as palavras”. (CAÑIZAL, 1986. p. 357).

Kubrick manipula as imagens como poucos outros criadores cinematográficos.

Logo na primeira imagem do filme, o monolito aparece no espaço, em alinhamento com

outros astros, inclusive a Terra. Esse alinhamento, quase como uma rima, mostra o caminho

do monolito e seu objetivo final: a Terra. Apenas com essa imagem, quase estática, Kubrick

sugere o movimento do monolito em direção à Terra. E, a partir daí, o monolito se torna

personagem do filme; e, sendo tomado como tal, torna-se uma das personagens principais.

A utilização de um objeto como personagem não é novidade no Cinema de Poesia.

Conforme Cañizal:

...o objeto que, como queria Epstein, se transforma em personagem num filme de ficção pode se apresentar, de um lado, como um simples objeto cuja presença denuncia sua objetualidade mundana e, de outro, como objeto em que essa objetualidade se deforma – seja no plano do conteúdo, seja no plano da expressão –, provocando, com isso, a

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emanação de significações que nele estavam ocultas. (CAÑIZAL, 1986. p. 361)

Dessa forma, não só o monolito é um objeto transformado em personagem, mas

outros menos importantes também assumem significações ocultas a partir de metáforas

visuais.

Na chegada do Dr. Floyd à cratera da lua em que foi encontrado o monolito, sua

nave (com incrível semelhança) lembra um rosto humano, como um prelúdio de um dos

pensamentos filosóficos transmitidos no filme: a humanização da máquina (e a

mecanização do homem). Esse aspecto filosófico é levado a outro nível, mais à frente no

filme, na parte em que atua Hal, realizando na máquina não apenas uma humanização, mas

uma deificação.

Nessa parte, temos uma segunda metáfora visual, concernente ao formato da nave

Discovery, que se assemelha a um espermatozóide, como uma metáfora de um início da

fecundação do sistema solar, e, por extensão, do universo; fecundação esta que, no final,

resulta no renascimento de Bowman como criança-estrela, representado por um feto

envolto em uma esfera luminosa.

Esses comentários a respeito do Cinema de Poesia já demonstram que este é um tipo

de cinema que exige mais do espectador do que o cinema de prosa. A atividade intelectual

necessária para interpretar um filme que seja parte desse Cinema de Poesia é bem maior do

que o seria para um filme do Cinema de Prosa. Isso se deve, em parte, às “zonas

indeterminadas”.65

65 Esse conceito foi proposto por Anatol Rosenfeld em CANDIDO, 2002.

84

Essas “zonas indeterminadas” ou “pontos de indeterminação”66 são os termos que

designam os momentos em que se tem, numa obra artística (aqui nos interessam apenas

filme e romance), a possibilidade de se interpretar o que ocorre de várias formas, de modo

que o espectador é quem deve tomar para si essa responsabilidade, e interpretar por si só a

cena, a parte ou até a obra inteira. Isso, já está claro, é constante em 2001-filme.

O espectador (ou leitor) muitas vezes nem percebe o aparecimento dessas zonas,

interpretando da sua forma os acontecimentos sem perceber que há outras possibilidades.

Em obras mais poéticas, como é o caso de 2001-filme, isso não acontece com tanta

freqüência, pois o filme se mostra tão aberto a vários sentidos em tantas cenas que o

espectador, mesmo que não perceba as várias possibilidades de interpretação (ou pelo

menos consiga entender uma delas apenas), fica confuso, chegando a achar que o filme não

tem sentido. Nesses momentos em que se acha não haver sentido estão, também, os “pontos

de inderteminação”.

Dessa forma, podem-se elencar dois níveis básicos em que se dão as “zonas de

indeterminação”. O primeiro deles conduz o leitor/espectador a uma interpretação apenas,

levando a um resultado preciso quanto à explicação do ocorrido. O segundo seria mais

próprio do cinema de poesia; nesse nível há apenas a indução às respostas, mas deixando

sempre várias (ou pelo menos duas) possibilidades, e dependendo fortemente da

subjetividade do espectador ou leitor. Assim, as zonas indeterminadas em 2001-filmes são,

por exemplo: as aparições do monolito; a loucura de Hal; a viagem pelo desconhecido; a

estadia no quarto de hotel; e a aparição da Criança-Estrela.

66 Assim denominados por Wolfgang Iser, retomando um conceito de Roman Ingarden em LIMA, 1979. Esse conceito foi aqui resumido tendo como base tanto os textos de Rosenfeld e de Wolfgang Iser quanto o de Savernini (2004. pp. 55 a 57), que retoma os textos de ambos.

85

Além das zonas, temos outro conceito que merece lugar em 2001-filme: os vazios

(já citados aqui como “lacunas”). Os vazios são momentos numa obra em que há lapsos de

tempo (e/ou de espaço) sem que se explique o que aconteceu. Hollywood não aceita esses

vazios, por isso surgiu a estrutura da montage, em que vários acontecimentos são resumidos

numa montagem rápida, fazendo um resumo do que ocorreu entre uma cena e outra.

O primeiro corte aqui descrito, em que um osso se “transforma” em uma nave,

possui um vazio de milhões de anos. O que ocorre nesses anos não é necessário descobrir,

mas todos já percebem que a cena seguinte se passa no futuro, em uma nave comercial que

leva passageiros para a lua. O espectador já cria, a partir dessa informação, todo um

passado de evolução tecnológica para a humanidade ali representada. Outros vazios como

esse podem ser reconhecidos facilmente no filme e, embora não sejam o motivo principal

de torná-lo Cinema de Poesia, são momentos que ajudam a construir as múltiplas

possibilidades de interpretação do filme; como é o caso do salto de meses da descoberta do

monolito na lua para a viagem a Júpiter.

Esses saltos na narrativa fazem com que 2001 se forme a partir de uma estrutura

fragmentada. As cenas, e, mais ainda, as partes do filme, são quase como filmes

independentes, e, além disso, filmes que não têm fim. Na primeira parte, em que os

homens-macacos entram em contato com o monolito, o espectador acaba sem saber o

destino daquela tribo; da mesma forma, essa inderteminação ocorre na parte em que o Dr.

Floyd, ao encontrar o monolito na lua, sofre com o zumbido que ele provoca, pois a cena

acaba sem que se saiba o que aconteceu com ele e com os outros astronautas e cientistas

que estavam com ele. O fim da missão a Júpiter também fica inconcluso, já que só nos é

mostrado o destino de Bowman, que embora tenha um fim específico, não é um fim de

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sentido determinado, sendo deixada para o espectador a responsabilidade de interpretar o

que aconteceu com ele.

A gramática do cinema tradicional, o Cinema de Prosa, é subvertida pelo Cinema de

Poesia. O Cinema de Poesia subverte a gramática do Cinema de Prosa da mesma forma que

a poesia subverte a estrutura tradicional, comum da língua. Essa gramática do cinema

tradicional, embora não seja tão concreta quanto a gramática da língua, é perfeitamente

reconhecível, não deixando dúvidas de sua existência.

A tradição consolidada em torno da narrativa clássica é tomada como a gramática da língua cinematográfica que é, então, reinterpretada, remodelada. Um cinema de poesia (...) só é possível porque se instituiu, minimamente que seja, uma espécie de gramática. Esta gramática estilística apontada por Pasolini identifica-se conceitualmente com o inventário imagético cinematográfico do espectador, na medida em que seria formada pelos procedimentos convencionalizados no cinema clássico. (SAVERNINI, 2004. p. 120)

Como já vimos, em 2001-filme, os longos planos não-narrativos, a aparente falta de

ligação entre as partes do filme, a frieza da narrativa (a falta de drama e de sentimentos

humanos), a descritividade quase excessiva, os cortes que pulam milhares de anos ou vários

meses sem qualquer explicação para o espectador, tudo isso compõe a subversão de 2001-

filme à gramática tradicional do cinema.

Podemos dizer, ainda, que da mesma forma que a linguagem da poesia se afasta, se

desvia, da linguagem da prosa literária (ambos literatura, ambos arte), o Cinema de Poesia

se afasta, se desvia, do Cinema de Prosa, do cinema tradicional (de modo geral, ambos

cinema, ambos arte).

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V. 2001: dos contos ao filme

Arthur C. Clarke conta, em seu livro The Lost Worlds of 2001, que a primeira

versão do roteiro de 2001, surgida em 1964, foi inspirada por um de seus contos, “A

sentinela”. O famoso escritor de ficção científica diz que, quando Kubrick o procurou,

dizendo querer fazer o “notório bom filme de ficção científica”67, ele logo escolheu “A

Sentinela” como ponto de partida, pois Kubrick queria fazer um filme sobre “a relação do

homem com o universo”68. Clarke vendeu os direitos do conto “A sentinela” para Kubrick,

junto com mais cinco outros contos, que foram comprados de volta, pois não foram usados

no filme. Somente “A sentinela”, primeiramente escolhido para ser o final do filme,

permaneceu como fonte de inspiração; contudo, passou a fundamentar não mais o final, e

sim o início da história.

No natal de 1964, Kubrick conseguiu assinar o contrato com a MGM, graças ao

roteiro que ele e Clarke apresentaram ao estúdio, tendo como fonte de inspiração o conto

“A sentinela”; o filme ainda se chamava “Journey Beyond the Stars”, ganhando o nome

“2001: a Space Odyssey” apenas em abril de 1965, nome que foi, segundo Clarke, idéia de

Kubrick.

Outro conto, como atesta Clarke, serviu também de inspiração para a feitura do

roteiro, e, conseqüentemente, para o romance e o filme. O conto “Encontro ao amanhecer”

influenciou bastante o início da história de 2001.

67 “proverbial good science-fiction movie” (CLARKE, 1972. p. 17) 68 “Man’s relation to the universe” (CLARKE, 1972. p.29)

88

Embora “Encontro” não tenha sido um dos seis contos originalmente comprados por Stanley, ele influenciou muito meu pensamento durante os estágios iniciais de nossa empreitada. Nessa época – e inclusive até muito tempo depois – nós imaginávamos que iríamos realmente mostrar algum tipo de entidade extra-terrestre, provavelmente não muito distante do padrão humano.69

Lendo os contos citados e o romance 2001, e assistindo ao filme 2001, fica claro

que a primeira parte da história da obra é inspirada em “Encontro ao amanhecer”, e a

segunda, em “A sentinela”. Essa influência pode ser melhor percebida quando se tem

também em mente o roteiro escrito por Kubrick e Clarke ainda em 1964.

O conto “Encontro ao amanhecer” (“Encounter at dawn”) foi escrito em 1950, mas

só em 1953 foi publicado pela primeira vez, sob o título “Encounter in the Dawn”. Foi

publicado posteriormente com outro título, “Expedition to Earth” (escolha de um editor da

Ballantine Books), mas permanece sendo publicado e conhecido como “Encounter at

Dawn”.

O conto trata de um grupo de cientistas, a serviço do Império, que tem como

trabalho observar planetas com seres inteligentes e, na medida do possível, instruí-los a se

desenvolver. Esses cientistas, da Inspeção Galática, chegam a um planeta em um momento

não muito propício para o Império, provavelmente está ocorrendo uma guerra, e o Império

está em perigo, mas isso não fica claro. O planeta em que eles aterrissam é descrito como

cheio de vida, e eles não tardam a encontrar vida inteligente, de fato, encontram toda uma

civilização em início de desenvolvimento. Eles entram em contato com um caçador

solitário, chamado Yaan, e dão início a uma amizade baseada em presentes e animais

69 “Though ‘Encounter’ was not one of the half-dozen stories originally purchased by Stanley, it greatly influenced my thinking during the early stages of our enterprise. At that time – and indeed until very much later – we assumed that we would actually show some type of extraterrestrial entity, probably not too far from the human pattern.” (CLARKE, 1972. p. 50)

89

caçados pelo robô que acompanha os cientistas. Quando os cientistas estão animados com a

possibilidade de ajudar aquela civilização a evoluir, eles precisam voltar ao Império.

Deixam presentes para o caçador com quem mantiveram certa amizade, e vão embora.

Até a última palavra do conto o leitor é “enganado”, achando se tratar de cientistas

da Terra, num estado tecnológico muito desenvolvido, que encontram um planeta com vida

parecida com a humana de cem mil anos antes. Mas o último parágrafo, a última frase do

conto e, especialmente, a última palavra, explicam a verdade: trata-se de cientistas

“humanos” alienígenas, chegando à Terra pela primeira vez, quando ela ainda está

começando a desenvolver uma civilização.

Abaixo das estrelas, a figura solitária caminhou para casa através da terra sem nome. Atrás dele o rio seguia calmamente para o mar, contorcendo-se através das terras férteis em que, mais de mil séculos à frente, os descendentes de Yaan construiriam a grande cidade que chamariam de Babilônia.70

No entanto, com a segunda leitura, pode-se perceber que o narrador dá várias pistas de que

o planeta em que eles chegaram é a Terra. Essas pistas, à primeira vista, são apenas

descrições do planeta que nos fazem notar a semelhança com a Terra, por isso os cientistas

ficam tão animados com a descoberta. Mas essas semelhanças tanto funcionam para

aproximar o planeta natal dos cientistas do nosso planeta Terra, como para descrever a

própria Terra, de forma que o leitor é duplamente enganado.

Essa surpresa é suprimida nas edições em que o conto se chama “Expedition to

Earth” (Expedição à Terra), pois já sabemos, desde o título, que o planeta em que eles

70 “Under the stars, the lonely figure walked homeward across a nameless land. Behind him the river flowed softly to the sea, winding through the fertile plains on which, more than a thousand centuries ahead, Yaan’s descendants would build the great city they were to call Babylon.” (CLARKE, 1959. p. 31)

90

chegam é o nosso, por isso mesmo Clarke prefere o título “Enconter in the Dawn” (ou

“Encounter at Dawn”), como ele explica em The Lost Worlds of 2001.

Em Novembro de 1950 eu escrevi um conto sobre um encontro no passado remoto entre visitantes do espaço e um homem-macaco primitivo. Um editor da Ballantine Books deu o título ingênuo de “Expedição à Terra” quando foi publicado no livro homônimo, mas eu prefiro “Encontro no amanhecer”. Contudo, quando a Harcourt, Brace and World publicou minha própria coleção de favoritos, Os nove bilhões de nomes de Deus, ele foi misteriosamente mudado para “Encontro ao amanhecer”.71

Imaginamos, na primeira leitura, que o planeta se parece tanto com o nosso por mera

coincidência, mas no final nos é revelado que se trata, realmente, de nosso planeta.

A primeira dica para isso está antes da chegada ao planeta, quando eles entram no

sistema solar.

Eles acharam o primeiro planeta quando descansavam há apenas alguns minutos. Era um gigante, de um tipo familiar, muito frio para a vida protoplasmática e provavelmente sem possuir uma superfície estável. Então eles prosseguiram sua busca em direção ao sol, e foram prontamente recompensados.72

Percebemos que o primeiro planeta que eles encontram é Júpiter, o maior gigante gasoso do

sistema solar (talvez possa ser também o segundo maior, Saturno). Indo de Júpiter (ou

71 “During November 1950 I wrote a short story about a meeting in the remote past between visitors from space and a primitive ape-man. An editor at Balantine Books gave it the ingenuous title ‘Expedition to Earth’ when it was published in the book of that name, but I prefer ‘Encounter in the Dawn’. However, when Harcourt, Brace and World brought out my own selection of favorites, The Nine Billion Names of God, it was mysteriously changed to ‘Encounter at Dawn’.” (CLARKE, 1972. p. 50) 72 “They found the first planet within minutes of coming to rest. It was a giant, of a familiar type, too cold for protoplasmic life and probably possessing no stable surface. So they turned their search sunward, and presently were rewarded.” (CLARKE, 1959. p. 20)

91

Saturno) em direção ao Sol, encontra-se a Terra. Essa é a primeira dica de que se trata de

nosso planeta.

Em outras descrições, notamos os grandes continentes, as Américas (como uma das

massas de terra) e a Europa, África e Ásia (como a outra massa de terra), notamos também

os pólos Norte e Sul e o rio Eufrates, em cuja margem a cidade de Babilônia foi construída.

Também é fácil perceber que os desertos da descrição do planeta são típicos da região em

que a cidade de Babilônia foi construída, o oriente-médio.

Era um mundo que fazia seus corações sentirem saudade de casa, um mundo em que tudo era assombradamente familiar, embora nunca fosse igual. Duas grandes massas de terra flutuavam nos mares azul-verde, coroadas por gelo em ambos os pólos. Havia algumas regiões desérticas, mas a maior parte do planeta era obviamente fértil. (...) A nave desceu através do céu sem nuvens em direção a um grande rio, (...)73

Resumidamente, o conto trata, então, de um encontro de alienígenas com humanos

terrestres na pré-história, embora as primeiras marcas da civilização, como uma pequena

vila com cabanas, já apareçam na história. Esse encontro, principalmente por ter o

propósito de educar os humanos, torná-los mais evoluídos, claramente se assemelha ao

encontro perpetrado em 2001, mais explicitamente se compararmos com o romance, pois o

encontro do filme só funciona como se tratando de um aprendizado sob apenas uma das

várias possíveis interpretações para o significado da aparição do artefato.

A primeira parte do roteiro, intulada “Africa – 3,000,000 years ago” (África –

3.000.000 de anos atrás), é bastante diferente do conto “Encontro ao amanhecer”, mas

73 “It was a world that made their hearts ache for home, a world where everything was hauntingly familiar, yet never quite the same. Two great land masses floated in blue-green seas, capped by ice at either pole. There were some desert regions, but the larger part of the planet was obviously fertile. (...) The ship plummeted through cloudless skies toward a great river, (...)” (CLARKE, 1959. pp. 20 e 21)

92

possui vários pontos de convergência, várias características semelhantes. Logicamente,

também o filme e o romance seguem a linha do roteiro, de forma que se distanciam do

conto, mas a primeira parte do romance possui um capítulo intitulado “Encounter at

Dawn”, que, embora não seja o ponto principal de encontro entre o conto e 2001, já nos faz

ligar uma obra à outra, o conto ao romance, já que possuem esse título em comum.

O encontro de que trata o conto é entre cientistas alienígenas e homens primitivos

da Terra, e os cientistas tentam, através de presentes e ensinamentos, dar início a uma

evolução naquela espécie primitiva. No roteiro, e, conseqüentemente, no romance e no

filme, o encontro se dá entre um cubo transparente (no romance é um monolito

transparente, e no filme é um monolito negro) e homens-macacos. Essas diferenças básicas

não alteram o sentido do encontro, em que uma civilização alienígena entra em contato com

uma raça primitiva para ajudá-la a evoluir. Esse significado do encontro fica claro tanto no

conto, quanto no roteiro e no romance, sendo implícito somente no filme.

Deixando o motivo do encontro implícito (e não só o motivo, mas até mesmo a

própria natureza do monolito), o filme se torna opaco, em oposição à clareza das outras

obras aqui citadas, de forma que ele se aproxima da poesia. A opacidade é característica

sobretudo da poesia e, por isso, não está presente no conto, no roteiro e no romance, que

são obras mais referenciais e, por isso, mais prosaicas. Logicamente, a opacidade poderia

estar presente nessas obras, dotando-as de poeticidade, mesmo sendo obras de prosa. Mas

por ser o filme a obra mais opaca das aqui estudadas, ele se opõe ao Cinema de Prosa,

93

estruturado sob a narrativa clássica, que busca, como a prosa comum, a clareza, e não a

opacidade.74

Ainda na primeira parte de 2001 (filme, romance, e roteiro) há elementos que

podem ajudar a perceber como o filme se volta mais para o poético. No roteiro, há uma

narração que explica as imagens que viriam a aparecer na tela, uma narração que é

extremamente semelhante à do romance; essa narração, estivesse presente no filme,

terminaria reduzindo as possíveis leituras da obra a apenas uma.

A seguir reproduzimos, primeiramente, uma parte da narração contida no roteiro, e,

logo após, a parte correspondente no romance, para que se perceba a semelhança. Feita essa

primeira comparação, passaremos a citar apenas partes do roteiro, pois do romance

trataremos mais detalhadamente no capítulo seguinte.

Nessa terra seca e estéril, somente os pequenos, ou os velozes, ou os ferozes poderiam prosperar, ou até mesmo ter esperanças de existir. Os homens-macacos do campo não tinham esses atributos, e eles estavam na longa e patética estrada em direção à extinção racial. Cerca de vinte deles ocupavam um grupo de cavernas no alto de um pequeno e ressecado vale, dividido por um rio barrento e de água lenta. A tribo sempre esteve com fome, e agora estava morrendo de fome.75

Nessa terra estéril e dessecada, somente os pequenos, ou os velozes, ou os ferozes poderiam prosperar, ou até mesmo ter esperanças de sobreviver.

74 A prosa pode, obviamente, ser muito poética (como a de Virginia Woolf, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, por exemplo). Aqui, nosso uso dos termos “prosaico” e “poético” situa-se num plano geral e extremo, que associa a prosa à função referencial e a poesia à função poética (como vistas por Jakobson). 75 “In this dry and barren land, only the small or the swift or the fierce could flourish, or even hope to exist. The man-apes of the field had none of these attributes, and they were on the long, pathetic road to racial extinction. About twenty of them occupied a group of caves overlooking a small, parched valley, divided by a sluggish, brown stream. The tribe had always been hungry, and now it was starving.” (KUBRICK & CLARKE, 1964. p. a1 e a2) * As páginas, no roteiro, são marcadas por letras e números. A primeira parte do roteiro é marcada com a letra ‘a’, a segunda com a ‘b’ e a terceira com a ‘c’, sendo cada parte numerada a partir do 1: a1, a2, ... b1, b2, ... c1, c2, etc.

94

Os homens-macacos da estepe não eram nenhuma dessas coisas, e eles não estavam prosperando. Na verdade, eles já estavam adiante na estrada em direção à extinção racial. Cerca de cinqüenta deles ocupavam um grupo de cavernas no alto de um pequeno e ressecado vale, que era dividido por um rio de água lenta alimentada pela neve nas montanhas duzentas milhas ao norte. Em tempos ruins a corrente de água desaparecia completamente, e a tribo vivia na sombra da sede. Ela sempre esteve com fome, e agora estava morrendo de fome.76

Essa narração, contida no roteiro, não foi usada no filme, de forma que as imagens

precisam falar por si só, tal qual um poema que não procura se explicar. Mostrar as imagens

das terras secas, dos homens-macacos amontoados nas pequenas cavernas, e procurando

comida em vão, ao mesmo tempo em que uma narração diz o mesmo que essas imagens,

seria redundante nessas cenas; em outras, seria reduzir as possibilidades de interpretação

das imagens do filme a uma só.

Claramente, 2001 subverte o que comumente se pensa a respeito da narração verbal

e da narração visual. A iconicidade do cinema e o caráter simbólico do texto verbal são

substancialmente subvertidos em 2001, em que somente a cena visual transborda de

sentidos metafóricos e simbólicos. Os exemplos mostrados acima questionam o que Paulo

Emílio Salles Gomes diz a respeito do grau de narração formecido pela imagem: “a

narrativa visual nos coloca diante do mais fácil e imediato, do que seria dado a conhecer

por todos.” (in: CANDIDO, 2002. p. 109). No caso de 2001, é a narração do romance, a

narração verbal, que nos coloca diante do mais fácil, e não a narração fílmica, visual.

76 “In this barren and desiccated land, only the small or the swift or the fierce could flourish, or even hope to survive. The man-apes of the veldt were none of these things, and they were not flourishing. Indeed, they were already far down the road to racial extinction. About fifty of them occupied a group of caves overlooking a small, parched valley, which was divided by a sluggish stream fed from snows in the mountains two hundred miles to the north. In bad times the stream vanished completely, and the tribe lived in the shadow of thirst. It was always hungry, and now it was starving.” (CLARKE, 2000. p. 3)

95

O roteiro e o filme possuem diferenças sem importância para a trama, como, por

exemplo: no roteiro, há uma cena em que o líder da tribo (chamado de Moonwatcher77 tanto

no roteiro quanto no romance) acha mel, e se delicia com a especiaria; há também um

ataque noturno de um leão, que no filme (e no romance) se dá por um leopardo. Mas uma

das diferenças importantes é quanto à ordem em que acontecem as lutas entre as tribos e o

aparecimento do monolito.

No roteiro, depois da primeira batalha “verbal” pelo controle da água, há uma

segunda batalha, antes da aparição do artefato (monolito ou cubo), em que Moonwatcher

mata o líder da tribo inimiga, batendo com a cabeça dele numa pedra. Essa batalha

demonstra a superioridade de Moonwatcher em relação aos outros da sua espécie, e, no

roteiro, isso pode significar que os alienígenas escolhem Moonwatcher e sua tribo pela

superioridade que ele tem. No romance e no filme, não há esse momento em que

Moonwatcher, antes de entrar em contato com o monolito, mata o líder inimigo. A cena em

que há a luta e conseqüente morte do líder da outra tribo se dá depois do contato de

Moonwatcher com o monolito, pois é o artefato que o “ensina” a usar ferramentas, e é com

um osso, usado como arma, que Moonwatcher mata o inimigo.

Assim, a idéia inicial, um tanto darwiniana, de haver uma certa escolha pelo mais

forte por parte dos alienígenas, foi descartada na realização final tanto do filme quanto do

romance. O que acontece afinal é um acaso, e dessa forma fica mais fácil perceber, mesmo

que não seja dito explicitamente, que o monolito é responsável pela superioridade da tribo

de Moonwatcher. Perceber isso não reduz as interpretações possíveis para o filme, pois o

artefato pode não ser alienígena, pode ser divino, ou apenas representativo do divino ou do

77 No romance o nome é escrito com hífen: Moon-watcher. Preferimos usar da forma que é comum nos livros e artigos que falam sobre 2001, sem o hífen: Moonwatcher.

96

elemento transformador do ser humano, e mesmo assim continuar valendo o fato de o

monolito causar a evolução do homem. Essas possibilidades de interpretação da natureza

do monolito, como já dissemos, não são válidas para o romance. E, sendo tão aberto a

interpretações, o filme deixa ainda outra possibilidade, essa um tanto mais remota, mas

ainda assim válida, a de que o monolito não causa mudança alguma no homem, e aparece

apenas como um observador, que, registrando o primeiro momento de “consciência”

humana na Terra, deixa o planeta e segue à Lua, para lá esperar que o homem evolua o

suficiente para encontrá-lo.

Outro fator que reduz as possibilidades de leitura, tanto no roteiro quanto no

romance, é o modo como o artefato é mostrado. No roteiro, o artefato é um cubo

transparente, cristalino, assim como no romance (um monolito transparente). No filme, no

entanto, o que nos aparece não é um cubo transparente, é um monolito negro, que se

apresenta, assim, de forma mais misteriosa. O cubo, no roteiro, se assemelha a uma caixa

didática de imagens em movimento, ou seja, uma televisão. No cubo transparente aparecem

imagens que ajudam os homens-macacos a aprender como lutar, como caçar, e como se

defender dos seus predadores. Imagens deles mesmos, ou de seres iguais a eles, usando

ossos como armas, e atacando e comendo as antas que vivem tão pacificamente ao lado

deles, aparecem no cubo, de forma que, através dessas imagens, eles aprendem a prosperar.

Agora, luzes rodopiantes começam a se misturar, e os raios da roda se fundem em barras luminosas que lentamente recuam na distância, girando em seus eixos ao mesmo tempo, e os hominídeos assistem, de olhos arregalados, fascinados, cativos do Cubo de Cristal. Então, por alguma mágica (...) uma cena perfeitamente normal aparece. Era como se um bloco cúbico tivesse sido esculpido do dia e transformado na noite. Dentro daquele bloco há um grupo de quatro

97

hominídeos, que poderiam ter sido membros da tribo de Moonwatcher, comendo pedaços de carne. A carcaça de um javali jaz perto deles.78

No filme, não há essa função didática, o monolito negro aparece como elemento

transformador da realidade daqueles homens-macacos. Através de uma certa telepatia

misteriosa, o monolito impõe às mentes dos homens-macacos as respostas para seus

problemas. O mistério, aliado ao quase-mágico monolito negro, aumenta a poeticidade do

filme, enquanto o cubo didático diminui as possibilidades de leitura das obras, reduzindo

essa primeira parte de 2001 a uma parábola sobre as possibilidades didáticas do cinema. O

cubo didático, usado no roteiro (e transformado num monolito didático no romance), ensina

através de imagens em movimento, de forma que a primeira parte do romance e do roteiro

podem ser vistas como uma parábola de uma das funções do cinema, a função didática,

pois, nessas obras, o cinema é representado pelo cubo (ou monolito) didático.

No roteiro, e também no romance, o cubo parece compreender as necessidades do

grupo de alunos, e chega a repetir cenas em câmera lenta, mostrando cada detalhe para que

os homens-macacos aprendam.

O grande macho de repente se baixa, pega uma pedra pesada que jaz aos seus pés, e arremessa no pobre porco. (...) Então toda a seqüência começa de novo, mas dessa vez ela se desenrola com incrível lentidão. Cada detalhe do movimento pode ser seguido; a pedra se curva ociosamente pelo ar, o porco se fere e afunda no chão.79

78 “Now, spinning wheels of light begin to merge, and the spokes fuse into luminous bars that slowly recede into the distance, rotating on their axes as they do; and the hominids watch, wideeyed, mesmerized captives of the Crystal Cube. Then by some magic (...) a perfectly normal scene appears. It is as if a cubical block had been carved out of the day and shifted into the night. Inside that block is a group of four hominids, who might have been members of Moonwatcher's own tribe, eating chunks of meat. The carcass of a wart-hog lies near them.” (KUBRICK & CLARKE, 1964. p. a16 e a17) 79 “The big male suddenly bends down, picks up a heavy stone lying at his feet – and hurls it upon the unfortunate pig. (...)

98

Esse didatismo não é percebido no filme, nem mesmo na cena que claramente se formou a

partir da cena citada acima. No filme, um homem-macaco pega um osso e começa a

esmagar outros ossos de anta no chão. Em montagem paralela, aparecem imagens de uma

anta tombando ao chão, enquanto o homem-macaco esmaga a carcaça aos seus pés. Na

verdade, essa é uma das cenas mais poéticas do filme, em que o futuro e as possibilidades

de alimentação através da violência surgem na mente do homem primitivo.

É parte tanto do filme quanto do roteiro e do romance a questão da humanidade

surgindo da violência, da força. No filme, tal questão pode ser percebida na cena em que

Moonwatcher ataca seus inimigos com um osso, e também na cena citada acima. No

roteiro, há mais duas cenas, que não foram incluídas no filme, que mostram também isso, e,

talvez por justamente repetir o que já foi mostrado, foram excluídas das filmagens.

Na primeira delas, a tribo de Moonwatcher usa uma anta como isca para matar o

leão a pedradas. Na segunda, já depois que o cubo desaparece, eles atacam a tribo inimiga,

todos armados com ossos, e massacram os outros. Moonwatcher usa a cabeça do leão

enfiada num galho como estandarte. Daí há o salto para a segunda parte do filme, que, no

roteiro, começa com imagens de várias bombas em órbita da Terra.

A segunda parte, como já dissemos, foi inspirada (conforme o próprio Clarke atesta)

no conto “A Sentinela”, escrito em 1948, para uma competição da BBC, na qual não foi

qualificado. Nele, cientistas de uma expedição à lua encontram uma pirâmide alienígena

numa das montanhas da Lua. O conto é, assim como manda a tradição, um recorte num

momento da vida de uma personagem; mas, no final, ele se volta para outra proposta, uma

Then the whole sequence begins again, but this time it unfolds itself with incredible slowness. Every detail of the movement can be followed; the stone arches leisurely trhough the air, the pig crumples up and sinks to the ground.” (KUBRICK & CLARKE, 1964. p. a18)

99

explicação racional e detalhada do porquê da existência daquela pirâmide, uma explicação

que mais parece um resumo histórico.

No conto, em 1996, uma grande expedição à Lua chega ao Mar das Crises. Certo

dia, um geologista (ou senologista, como sugere o narrador/personagem) percebe um brilho

metálico no topo de uma montanha, perto de onde está a expedição. O narrador (o conto é

narrado em primeira pessoa, e o narrador é a personagem principal) e mais um cientista

escalam o pico e, embora acreditassem se tratar de algo comum, como alguma rocha partida

por um meteoro, terminam achando uma pirâmide claramente construída por seres

inteligentes. À primeira vista, o narrador acredita se tratar de um resquício de uma

civilização lunar, mas logo descarta a possibilidade. Ele percebe que ao redor da pirâmide

de faces espelhadas não há sequer poeira, e constata que existe uma espécie de campo de

força em volta do objeto. Então ele descobre se tratar de uma máquina, e logo percebe sua

origem alienígena.

Eu peguei um fragmento de rocha lascada e o joguei gentilmente em direção ao enigma brilhante. (...) pareceu bater uma superfície macia e hemisférica e descer gentilmente no chão. (...) Não era um prédio, era uma máquina (...) De repente, e com uma força esmagadora, a crença me veio de que ela era tão alienígena à Lua quanto eu mesmo.80

No conto, diferentemente de 2001, os cientistas da Terra conseguem, depois de vinte anos,

abrir a máquina. Não entendem os seus mecanismos, mas o narrador, mesmo assim, arrisca

uma explicação para a existência daquele artefato, e, sendo uma explicação tão parecida

80 “I picked up a fragment of splintered rock and tossed it gently toward the shining enigma. (…) it seemed to hit a smooth, hemispherical surface and slide gently to the ground. (…) This was not a building, but a machine (…) suddenly, and with overwhelming force, the belief came to me that it was as alien to the Moon as I myself.” (CLARKE, 1972. p. 157 e 158)

100

com as contidas no romance, vale reproduzi-la, pois é esse tipo de narrativa que reduz a

poeticidade da obra, conforme nosso ponto de vista.

Quando nosso mundo tinha metade da idade que possui agora, algo vindo das estrelas varreu o sistema solar, deixou o sinal de sua passagem, e continuou seu caminho. Até que nós a destruíssemos, aquela máquina ainda estava cumprindo o propósito de seus construtores (...) ... há muito tempo, outras raças de outros mundos de outros sóis devem ter escalado e passado as alturas que atingimos. (...) Esses errantes devem ter olhado para a Terra (...). Aqui, no futuro distante, haveria inteligência (...) Então eles deixaram uma sentinela, uma de milhões que eles espalharam pelo universo, observando todos os mundos com a promessa de vida.81

Pode-se perceber que o motivo do conto é chegar nessa explicação detalhada. O motivo

final, a surpresa, que faz o conto funcionar, sugere duas possibilidades de acontecimentos

futuros.

Agora os sinais dela pararam, e aqueles possuidores do dever vão estar voltando suas mentes para a Terra. Talvez eles desejem ajudar nossa civilização infante. Mas eles devem ser muito, muito velhos, e os velhos têm, com freqüência, uma inveja insana dos jovens. (...) ... nós disparamos o alarme de incêndio e não podemos fazer nada a não ser esperar.82

81 “When our world was half its present age, something from the stars swept through the Solar System, left this token of its passage, and went again upon its way. Until we destroyed it, that machine was still fulfilling the purpose of its builders (…) long ago other races on the worlds of other suns must have scaled and passed the heights that we have reached. (…) Those wanderers must have looked on Earth (…). Here, in the distant future, would be intelligence (…) So they left a sentinel, one of millions they have scattered throughout the Universe, watching over all worlds with the promise of life.” (CLARKE, 1976. p. 172 e 173) 82 “Now its signals have ceased, and those whose duty it is will be turning their minds upon Earth. Perhaps they wish to help our infant civilization. But they must be very, very old, and the old are often insanely jealous of the young. (…) … we have set off the fire-alarm and have nothing to do but to wait.” (CLARKE, 1976. p. 173 e 174)

101

Então, duas possibilidades opostas esperam os humanos: ajuda ou destruição. Dessa forma,

o conto, embora abra o caminho para duas possibilidades, não fica aberto a interpretações,

pois a voz do narrador parece ser a voz da verdade. E, como já dissemos, ao comparar o

Cinema de Arte com 2001, o poético não surge a partir da dúvida “o que vai acontecer a

seguir?”, e sim, a partir da pergunta “o que se pode entender do que aconteceu nessa

história?”.

Desse conto, foi aproveitado o achado na Lua. O artefato deixa de ser pirâmide e se

torna um cubo transparente, e, posteriormente, um monolito negro; mas continua sendo um

artefato de origem desconhecida. No roteiro, e conseqüentemente no romance e no filme, o

artefato não se encontra no topo de uma montanha, mas sim enterrado em uma das crateras

da Lua. Isso não faz grande diferença à primeira vista, mas, se analisado o modo de

operação da máquina em 2001, veremos que a idéia de ela ser ativada pelo Sol requer que

estivesse enterrada. A máquina começa a funcionar, então, no momento em que a luz solar

a toca, de forma que, somente quando é desenterrada por uma civilização tecnologicamente

capaz de encontrá-la, ela pode ser ativada.

No filme, o fato de ela ser tocada pelo Sol e então ativada fica um tanto implícito, só

o espectador mais atento pode perceber isso. Mesmo assim, pelo menos duas interpretações

são possíveis para esse encontro. Sendo um artefato alienígena, ele é ativado pela luz solar,

e dessa forma a civilização que o colocou ali fica sabendo da existência de outra raça

inteligente no universo. Se tomarmos o artefato como representante de Deus, quando é

tocado pelo Sol (símbolo divino para várias culturas), esse arauto de Deus avisa sobre a

chegada do homem a outro estágio, e a partir daí começa a viagem para um encontro com o

divino. Assim, o Sol (Deus), seu arauto (o artefato) e o homem (representado pelos

astronautas) se encontram e marcam um outro encontro, que promoverá a ascensão do

102

homem. No romance e no roteiro, o narrador, esse sim, onisciente, revela que o artefato é

de origem alienígena, de forma que não há outro modo de ver o objeto, um modo mais

representativo, como no filme.

No roteiro, a narração é constante83, e, inclusive, dá início à segunda parte, inspirada

pelo conto “A sentinela”. Ao invés do brilhante corte do osso para o objeto espacial, há

imagens de bombas orbitando a terra, enquanto uma narração explica a que ponto chegou a

tecnologia humana, uma tecnologia de destruição. Essas imagens, junto à narração, teriam

motivo de ser no filme se a intenção fosse dar a entender que os alienígenas iriam destruir a

humanidade, já que somente uma civilização com potencial de destruição poderia

desenterrar o artefato, tornando-se uma ameaça. Isso reduziria não só o filme por completo,

mas também os dois caminhos sugeridos no final do conto, que ainda permanecem válidos

na obra final, filme e livro.

A eliminação do corte é acompanhada por outra falta no roteiro, o “balé cósmico”.

A imagem da nave, no roteiro, é usada apenas como plano de corte entre as imagens das

bombas e a de Floyd dormindo no interior da nave, com a caneta flutuando ao seu lado.

Mais à frente, no roteiro, é mostrada a chegada da nave de Floyd à estação espacial, e há

um indício pequeno do que seria o “balé” das naves mostrado em 2001-filme.

Estação espacial-5. A luz crua do sol no espaço ofusca, brilhando nas superfícies de metal polido da estação espacial de mil pés de diâmetro, que gira lentamente. À deriva na mesma órbita, nós vemos retornando a nave Titov-V. Também a quase esférica Aries-IB.84

83 A narração é, de modo geral, um aspecto característico de roteiros cinematográficos. 84 “Space Station-5. The raw sunlight of space dazzles from the polished metal surfaces of the slowly revolving, thousand-foot diameter space station. Drifting in the same orbit, we see swept-back Titov-V spacecraft. Also the almost spherical Aries-IB.” (KUBRICK & CLARKE, 1964. p. b6) * Essa citação, no roteiro, aparece toda em caixa alta; preferimos reformatar o trecho, de forma que não ficasse estranho em relação às outras citações, pois pareceria uma maneira de grifar, além do já utilizado deslocamento da margem.

103

A partir da cena do “balé”, o filme e o roteiro se igualam, com a pequena diferença de que

no roteiro a burocracia é maior na entrada da estação espacial, e na conversa entre Floyd e

os russos. Depois que Floyd se despede dos russos, aparece nova narração. Nessa segunda

parte, a narração funciona não só para explicar ao espectador o que está acontecendo, mas

também para detalhar as especificações técnicas utilizadas no filme, como, por exemplo, o

modo como certa espaçonave voa pelo cosmos, utilizando jatos de plasma. Esse tipo de

explicação funciona no romance, mas, no filme, ficaria excessivamente técnico.

São poucas as diferenças, nessa parte, entre o roteiro e o filme; no geral, a diferença

é que no roteiro tudo é narrado ou colocado em diálogos, mas no filme, no resultado final,

são poucas as palavras, permitindo que continue com seu estilo inicial, em que o que mais

fala são as imagens; e essa é uma das características que fazem de 2001-filme uma obra tão

aberta a significados múltiplos.

Em uma das cenas dessa parte, uma “espaçomoça” entra num corredor, anda pelas

paredes, subindo e girando, e termina entrando por uma porta, de cabeça para baixo. No

corte seguinte, a moça aparece entrando na cabine do piloto, de cabeça para baixo; a

câmera, bastante ciente de sua utilidade, gira, retornando à posição normal, de forma que o

filme sugere, somente através de imagens, como os conceitos de “em cima” e “em baixo”

não significam nada ali. No roteiro, a narração, redundante, também explica isso.

Outra diferença entre o roteiro e o filme diz respeito à repetição da história da

epidemia. No filme, além da conversa de Floyd com os russos, ainda há a introdução do seu

discurso, em que ele explica como a história da epidemia foi inventada para esconder o

achado do monolito. No roteiro, antes do discurso de Floyd, ainda há muitos diálogos entre

pilotos, “espaçomoças” e Floyd, em que eles discutem a epidemia. Essas diferenças

104

importam bastante para o estudo comparativo entre o romance e o filme, pois são elas que

determinam o caminho que cada um levou. Enquanto o filme não segue o roteiro,

eliminando várias falas, diálogos e narração, desnecessários e redundantes, além de

excessivamente explicativos; o romance, seguindo o roteiro, inclui todas as explicações e

detalhes técnicos.

Outra cena que se distingue bastante entre roteiro e filme é a da chegada à

escavação, onde está o monolito, na Lua. No filme, todos os diálogos acontecem durante a

viagem até a cratera Tycho, onde foi desenterrado o monolito. No roteiro, a maioria dos

diálogos acontecem já dentro da escavação, ao lado do monolito. Essa diferença é

importante por se tratar de uma referência ao próprio filme, construindo mais uma metáfora

comparativa. Como no filme não há diálogos entre os homens ao lado do monolito, a cena

se aproxima da inicial, em que os homens-macacos entram em contato com o artefato,

inclusive a música é igual para as duas cenas. As falas que explicam como o monolito foi,

provavelmente, enterrado há quatro milhões de anos, entre outras, acontecem, no roteiro, ao

lado do monolito, de forma que não há comparação entre os humanos de agora, os

astronautas, e os homens-macacos da primeira parte.

Uma das falas de Halvorsen, um dos astronautas que acompanham Floyd à

escavação, é retirada quase completamente do conto “A Sentinela”. Essa fala só existe no

roteiro, e é uma frase extremamente explicativa, que diminuiria o mistério que perpassa o

filme. Para efeito de comparação, reproduziremos abaixo primeiramente a fala como está

no roteiro, e, em seguida, a frase como está no conto.

105

Quatro milhões de anos atrás, algo, provavelmente das estrelas, deve ter varrido o sistema solar e deixado isso para trás.85

Quando nosso mundo tinha a metade da idade que possui agora, algo vindo das estrelas varreu o sistema solar, deixou o sinal de sua passagem, e continuou seu caminho.86

Além dessa diferença de colocação dos diálogos, há também outra parte narrativa

que foi excluída no filme. Na obra de Kubrick, depois que os astronautas tocam o monolito,

e este é tocado pelo Sol, eles escutam o som agudo que emana do artefato e sentem dor nos

ouvidos; nesse momento, a cena é cortada e já se dá início à terceira parte do filme. No

roteiro, depois da cena descrita acima, ainda há uma narração, explicando como o artefato

enviou uma mensagem para a área de Júpiter quando foi tocado pelo Sol; mais uma vez, a

narração diminui o mistério e reduz os possíveis sentidos do filme a um só, de forma que o

poético é praticamente eliminado.

A terceira parte é a que menos apresenta diferenças entre o roteiro e o filme. O

momento inicial, em que os astronautas Poole e Bowman trabalham ou descansam na nave,

é mais detalhado no roteiro. Nessa parte, também há, no roteiro, um diálogo entre os dois

sobre um possível aumento de salário; no filme, esse assunto é abordado pelos pais de

Poole, na mensagem que enviam da Terra.

Essas diferenças não são importantes; no entanto, mostram como os diálogos no

roteiro são mais detalhados, e, muitas vezes, repetitivos e extremamente explicativos. O

problema do “mistério” que envolve a missão é apresentado logo nos primeiros diálogos

entre os astronautas, que, inclusive, já discutem os rumores de que “algo” foi desenterrado

85 “Four million years ago, something, presumably from the stars, must have swept through the solar system and left this behind.” (KUBRICK & CLARKE, 1964. p. b44) 86 “When our world was half its present age, something from the stars swept through the Solar System, left this token of its passage, and went again upon its way.” (CLARKE, 1976. p. 172)

106

na Lua. No filme, eles não fazem idéia dessa escavação na Lua, e também não se

preocupam com o “mistério” que envolve a missão, pois não existe mistério algum para

eles.

Sem mencionar a escavação na Lua, o filme termina deixando o mistério maior, pois

para o espectador não há ligação entre as partes anteriores e essa terceira parte. No roteiro,

em que já há nos primeiros diálogos a menção à escavação na Lua, fica claro que a missão

tem relação direta com o monolito.

Também no roteiro, o problema que ocorre com Hal é bem explicado, e as razões da

loucura do computador são descritas com detalhes. No filme, a loucura de Hal não tem

explicação aparente, é preciso procurar pistas nos diálogos, e pode-se chegar a mais de uma

explicação. Todas as preocupações de Poole, no roteiro, são as de Hal, no filme. Melhor

dizendo, as falas de Poole, no roteiro, que demostram uma preocupação com os mistérios

da missão, são postas na “boca” de Hal, no filme. No roteiro, Poole se preocupa tanto com

a missão, que procura arrancar de Hal qualquer informação que possa ajudá-lo, chegando a

fazer com que Hal minta.

POOLE Não há outro motivo para essa missão além de continuar o programa espacial, e aumentar nosso conhecimento geral dos planetas. Isso é verdade? HAL É verdade.87

87 “POOLE There is no other purpose for this mission than to carry out a continuation of the space program, and to further our general knowledge of the planets. Is that true? HAL That’s true.” (KUBRICK & CLARKE, 1964. p. c15e)

107

No roteiro, é explicado que, ao mentir, Hal compromete sua estabilidade mental. No filme,

Hal não mente, ele só demonstra preocupação com a missão, o que pode ser explicado de

mais de uma forma, como logo veremos.

Há outras diferenças menos significativas: o aniversariante é Bowman, no roteiro, e

não Poole, como é no filme; no roteiro, Poole vai substituir a peça, fora da nave, na

primeira vez, e não Bowman, como é no filme; no roteiro, Hal comete o mesmo erro duas

vezes, enquanto no filme, ele só erra uma vez.

Outra diferença é a conversa entre Poole e Bowman dentro de uma das cápsulas da

nave. Nesse diálogo, eles se julgam fora do alcance de Hal, mas o computador lê os lábios

dos astronautas, e fica ciente de que os dois planejam desligá-lo (o que é análogo a matá-lo)

caso o erro seja comprovado. Não há essa cena no roteiro, de forma que os atos de Hal se

explicam apenas por loucura; enquanto no filme ele parece se defender, ele tenta evitar sua

“morte”.

A loucura de Hal, então, pode ser causada por diversas razões, no filme. A

preocupação com a perfeita realização da missão, o problema do mistério que envolve a

missão, o fato de ele precisar esconder informações de seus companheiros, ou até a

proximidade do grande monolito, de forma que a ligação com as outras partes do filme

seria maior. Ou seja, se a proximidade com o monolito modificou a espécie humana, pode

também modificar uma inteliência artificial, e essa “evolução” forçada causou uma loucura

no computador. No roteiro, é explicado que o fato de Hal ter mentido causou algo análogo a

uma psicose humana, reduzindo as explicações a uma só.

SIMONSON Olá, Dave. Eu acho que chegamos a uma explicação sobre o problema com o computador Hal 9000. Nós acreditamos que tudo começou dois

108

meses atrás, quando você e Frank interrogaram o computador sobre a missão. (...) Bem, eu temo que Hal estava mentindo. Ele tinha sido programado para mentir sobre esse assunto por razões de segurança...88

Depois da “morte” de Hal, no filme, Bowman recebe uma mensagem falando sobre

o verdadeiro motivo da missão; é uma mensagem curta, que não detalha muito. No roteiro,

a mensagem é bastante longa, e resume todo o filme, explicando cada parte. As explicações

contidas nessa parte do roteiro constam também no romance, e serão detalhadas no capítulo

a seguir.

Depois dessa mensagem, começa a quarta e última parte do filme. Não há como

comparar com o roteiro, pois este acaba na terceira parte. Depois da mensagem, no roteiro,

é mostrado o grande monolito orbitando Saturno (no filme ele orbita Júpiter), e uma

narração (mais uma vez) explica como os alienígenas deixaram o primeiro monolito na

Terra, explicitando todos os motivos para isso. São várias páginas de pura narração,

acompanhadas por imagens de Saturno, que terminam quando a cápsula de Bowman,

saindo da nave, entra no grande monolito. O roteiro acaba, então, quando começa a quarta

parte do filme, a mais poética, a nosso ver.

88 “SIMONSON Hello, Dave. I think we may be on to an explanation of the trouble with the Hal 9000 computer. We believe it all started about two months ago when you and Frank interrogated the computer about the Mission. (…) Well, I'm afraid Hal was lying. He had been programmed to lie about this one subject for security reasons…” (KUBRICK & CLARKE, 1964. p. c119 e c120)

109

VI. 2001: palavra versus imagem

O romance 2001 é subdividido em seis partes, ao contrário do filme, que se divide

em apenas quatro partes. As seis partes do romance, no entanto, não formam uma divisão

tão nítida quanto as divisões do filme, o que nos permite colocar algumas partes do livro

juntas, de forma que ele obedeça à mesma divisão apresentada na obra cinematográfica.

Podemos, então, reconhecer, tanto no romance quanto no filme, quatro partes que se

mostram bastante distintas umas das outras, como se fossem filmes (ou contos) por si só.89

Obedecendo a essa divisão, traçaremos, a seguir, um paralelo entre o romance e o filme

2001. As subdivisões de cada uma das partes a seguir são feitas de acordo com os capítulos

do livro, que, por serem curtos, oferecem a possibilidade de descrever as cenas como se

passam no romance, e depois como elas se dão no filme, de forma que a comparação não se

torne difícil de acompanhar. Os títulos de cada capítulo dizem respeito somente à divisão

do romance, não tendo qualquer paralelo no filme, e não serão considerados nesta

dissertação. O paralelo detalhado que oferecemos aqui entre romance e filme tem o

propósito de aprofundar e ilustrar as diferenças entre esses textos: o verbal, em sua

configuração mais narrativa e referencial; o filme, como um texto mais polissêmico, mais

ambíguo, dotado de opacidade, de maior subjetividade, e, por isso, podendo ser inserido

dentro do chamado “Cinema de Poesia”.

89 O filme possui apenas três subtítulos que identificam três das quatro partes da obra. No entanto, a segunda parte, que não tem subtítulo, é nitidamente diferenciada da primeira. A legenda indicativa da segunda parte não foi posta, obviamente, para não quebrar a ligação direta entre a imagem do osso na última cena da primeira parte e o objeto espacial na primeira cena da segunda parte.

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1. Primeira parte: A Aurora do Homem

O título da primeira parte no romance é “Noite Primitiva” (Primeval Night), mas

preferimos utilizar o título apresentado no filme (The Dawn of Man).

Capítulo 1: A Estrada para a Extinção (The Road to Extinction)

No romance, tudo é descrito com clareza. Os homens-macacos passam fome, a

comida a que têm acesso não é suficiente para todos. A personagem principal dessa parte é

nomeada: Moonwatcher. O pai dele morre, e ele sente algo parecido com tristeza, embora

nem saiba que aquele era seu pai. Esse acontecimento diminui um pouco a importância do

monolito, pois parece que esses homens-macacos já estão prestes a se tornarem humanos,

de forma que o monolito se torna somente um catalisador, algo que acelera um processo já

em andamento. Os homens-macacos comem frutas, raízes e folhas. Eles ameaçam, com

gritos e gestos, a tribo inimiga, chamada de Os Outros, mas todos bebem da única fonte de

água da região, de forma que as disputas são inúteis. Eles vivem junto a animais parecidos

com antílopes, ancestrais destes, e não percebem que esses animais são uma fonte de

comida. Um leopardo mata um deles durante a noite, todos temem o leopardo, e não tentam

ajudar a vítima. Durante a noite, Moonwatcher observa a Lua, e, aqui, temos uma passagem

poética na obra de Clarke.

De todas as criaturas que já tinham andado na Terra, os homens-macacos foram os primeiros a olhar fixamente para a Lua. E embora ele não pudesse lembrar, quando ele era muito jovem Moonwatcher algumas vezes tentava alcançar e tocar aquela face fantasmagórica se elevando acima das colinas.

111

Ele nunca tinha conseguido, e agora ele era velho o bastante para entender por quê. Pois antes, claro, ele tinha que achar uma árvore alta o bastante para subir.90

A árvore de que Moonwatcher precisa, metaforicamente, é um veículo espacial capaz de

chegar à Lua, e ele, Moonwatcher, claro, nunca chegará lá, mas seus descendentes, a

humanidade, chegarão. Metaforicamente, a passagem citada coloca Moonwatcher como

representande da humanidade, que sonha em alcançar a Lua, e sabe que precisa encontrar

um meio para isso. A árvore alta o bastante é a metáfora para o foguete, o veículo espacial

capaz de levar o homem à Lua. A metáfora, juntamente com o foreshadowing, tornam a

passagem poética.

O filme começa com a música por si só enigmática, sem imagem alguma, a tela

completamente negra, e desde já o clima de mistério. Aparece o logotipo da MGM,

estilizado, somente em duas cores (azul e amarelo). Começa a música de Richard Strauss,

Also Sprach Zarathustra (Assim Falou Zarathustra), juntamente com a primeira imagem do

filme, um alinhamento entre a Lua, mostrada em primeiro plano, a Terra, em segundo

plano, e o Sol (figura 1). Enquanto o Sol surge com maior intensidade na tela, aparecem os

créditos. A imagem em que se fixa o nome do filme (2001: A SPACE ODYSSEY) é

completamente simétrica (figura 2). Essa simetria já demonstra a utilização da rima visual

no filme, que é constante. A primeira imagem da Terra é de um deserto ao nascer do Sol, e

então aparece o título da primeira parte do filme, A Aurora do Homem (The Dawn of Man).

Várias imagens do deserto seguem a primeira. Essas imagens possuem o que é comumente

90 “Of all the creatures who had yet walked on Earth, the ape-mans were the first to look steadfastly at the Moon. And though he could not remember it, when he was very young Moonwatcher would sometimes reach out and try to touch that gostly face rising above the hills. He had never succeeded, and now he was old enough to understand why. For first, of course, he must find a high enough tree to climb. (CLARKE, 2000. p. 9)

112

chamado “poesia” da natureza, são imagens tão belas que por si já se mostram poéticas

(figuras 3 e 4). A seguir vemos esqueletos de animais e de homens-macacos, e logo

aparecem os homens-macacos se alimentando de frutas e raízes, junto a várias antas (figura

5). A escassez de comida não é nítida como no romance, em que o narrador descreve a vida

dos homens-macacos como difícil, por conta da falta de comida e dos inimigos. É preciso,

no filme, prestar atenção às imagens, e fazer inferências, para notar que, enquanto os

homens-macacos se alimentam de quase nada, há uma fonte de comida farta, as antas, junto

a eles, e eles não percebem isso. Um leopardo ataca um deles, durante o dia, e os seus

companheiros fogem, deixando-o indefeso à mercê do felino. Eles bebem água numa poça,

e aparecem Os Outros (assim são chamados no romance), uma tribo que mal pode ser

diferenciada da primeira. Depois de um confronto leve, só de gritos e gestos, todos bebem

da água. Os homens-macacos, além de todos esses problemas, ainda sofrem por não terem

um lugar espaçoso e apropriado para dormir: eles se entulham em pequenas cavernas (onde

ficam protegidos dos perigos da noite). Mais uma vez, essas informações precisam ser

inferidas pelo espectador do filme, enquanto no romance elas são detalhadas pelo narrador.

Capítulo 2: A Nova Rocha (The New Rock)

Moonwatcher escuta um barulho durante a noite. No dia seguinte, ele sai e encontra

o que parece ser uma nova rocha, mas uma rocha muito estranha, transparente e com um

formato jamais visto por ele. Moonwatcher e os seus companheiros chegam perto da rocha,

ele a toca, não sente nada especial.

Ela [a rocha, o monolito] era certamente um tanto atraente, e embora ele fosse sabiamente cauteloso com a maioria das coisas novas, ele não

113

hesitou muito antes de se aproximar dela. Como nada aconteceu, ele colocou sua mão, e sentiu uma superfície fria e dura.91

Depois de perderem o interesse pela nova rocha, os homens-macacos vão procurar comida.

No final do dia, escutam sons de tambores e se aproximam da rocha, de onde o som emana.

O monolito os estuda, sem que eles saibam. Para o leitor desacostumado com o gênero

literário ficção-científica, um objeto de certa forma consciente e racional pode causar

estranhamento, mas as máquinas pensantes, mesmo sem uma “humanidade”, são comuns

na literatura do gênero.

Eles nunca imaginariam que suas mentes estavam sendo sondadas, seus corpos mapeados, suas reações estudadas, seus potenciais avaliados. No início, toda a tribo permaneceu meio agachada em um quadro estático, como se paralisados como pedras. Então o homem-macaco mais próximo à laje subitamente se tornou vivo.92

Nesse momento, Moonwatcher é “possuído” pelo monolito e forçado a atirar uma pedra

num alvo que se forma na superfície do artefato. Dessa forma, todos os homens-macacos

são ensinados, como num treinamento pavloviano.

Um por um, cada membro da tribo foi brevemente possuído. Alguns conseguiram, mas a maioria falhou nas tarefas que lhes foram determinadas, e todos foram apropriadamente recompensados com espasmos de prazer ou de dor.93

91 “It was certainly rather attractive, and though he was wisely cautious of most new things, he did not hesitate for long before sidling up to it. As nothing happened, he put out his hand, and felt a cold, hard surface.” (CLARKE, 2000. p. 11) 92 “They could never guess that their minds were being probed, their bodies mapped, their reactions studied, their potentials evaluated. At first, the whole tribe remained half crouching in a motionless tableau, as if frozen into stone. Then the man-ape nearest to the slab suddenly came to life.” (CLARKE, 2000. p. 14) 93 “One by one, every member of the tribe was briefly possessed. Some succeeded, but most failed at the tasks they had been set, and all were appropriately rewarded by spasms of pleasure or of pain.” (CLARKE, 2000. p. 16)

114

No filme, o primeiro contato dos homens-macacos com o monolito é misterioso,

impossível de se explicar da forma como o romance faz. De manhã, um som metálico e

agudo chama a atenção dos homens-macacos. Eles saem da caverna e encontram o

monolito, ficam agitados, começam a pular e gritar ao redor do artefato (figura 6). Eles

tocam o monolito, ainda hesitantes. O monolito aparece em alinhamento com o Sol e a Lua

(mais uma rima visual) e a cena acaba (figura 7). Claramente o mistério permanece no

filme, enquanto no romance tudo é explicado desde o início. Não há, no filme, um monolito

didático, como há no romance, o que permite que o monolito seja interpretado de várias

maneiras. Bizony nota também essa diferença entre o romance e o filme:

Clarke trabalhou prontamente em uma extensa abertura pré-histórica para o romance, esboçando a educação de nossos ancestrais primitivos sob a orientação de alguns visitantes celestiais bem mais avançados. (...) O filme, no entanto, adotou imagens mais amplas e mais sutis – tão sutis, de fato, que muitas pessoas não entenderam completamente a conexão entre a misteriosa laje negra e o interesse súbito do homem-macaco Moonwatcher em ossos velhos.94

Capítulo 3: Academia (Academy)

O monolito continua a criar imagens na mente dos homens-macacos, mostrando

uma família de seres iguais a eles se alimentando de carne, caçando, e felizes.

Moonwatcher fica descontente, o que, conforme a narração, é um primeiro passo em

direção à humanidade. Nesse capítulo, sabemos que existem outros monolitos espalhados

pela terra.

94 “Clarke duly worked in an extensive prehistoric opening to the novel, outlining our primitive ancestor’s education under the guidance of some rather more advanced celestial visitors. (…) The film, however, adopted a broader, more subtle imagery – so subtle, in fact, that quite a lot of people didn’t fully understand the connection between the mysterious black slab and the apeman Moonwatcher sudden interest in old bones.” (BIZONY, 2000. p. 76)

115

Era um serviço lento e entediante, mas o monolito de cristal era paciente. Nem ele, nem suas réplicas espalhadas através de metade do globo, esperava obter sucesso com todos os grupos envolvidos no experimento. Cem fracassos não teriam importância, quando um único sucesso poderia mudar o destino do mundo.95

O descontentamento de Moonwatcher é justamente o primeiro passo para o sucesso da

experiência do monolito. Esse descontentamento, junto com as lições aprendidas por ele,

levam Moonwatcher a matar um dos animais (um javali) que vivem pacificamente com os

homens-macacos.

Então, como em um sonho, ele [Moonwatcher] começou a verificar o chão (...) Era uma pedra pesada e pontuda (...) À medida que balançava a mão de um lado para o outro, intrigado pelo seu repentino aumento de peso, ele teve uma sensação agradável de poder e autoridade. Ele começou a se mover em direção ao porco mais próximo. (...) Ele [o porco] continuou arrancando a grama até que a pedra-martelo de Moonwatcher obliterasse sua fraca consciência.96

No filme, os homens-macacos, indiferentes ao monolito, andam em volta de ossos.

Um deles (Moonwatcher) pára em frente a vários ossos. O monolito aparece alinhado ao

Sol e à Lua, mais uma vez. Começa a música de Richard Strauss novamente (Also Sprach

Zarathustra), Moonwatcher olha para os ossos com curiosidade, virando a cabeça para um

lado e para o outro, calmamente. Ele pega um dos maiores ossos, cheira, e começa a bater

95 “It was a slow, tedious business, but the crystal monolith was patient. Neither it, nor its replicas scattered across half the globe, expected to succeed with all the scores of groups involved in the experiment. A hundred failures would not matter, when a single success could change the destiny of the world.” (CLARKE, 2000. pp. 19 e 20) 96 “Then, as if in a dream, he started searching the ground (…) It was a heavy, pointed stone (…) As he swung his hand around, puzzled by its suddenly increased weight, he felt a pleasing sense of power and authority. He started to move toward the nearest pig. (…) It went on rooting up the grass until Moonwatcher’s stone hammer obliterated its dim consciousness.” (CLARKE, 2000. pp. 21 e 22)

116

com leveza, como quem brinca, nos outros ossos. As batidas da música aumentam junto às

batidas de Moonwatcher nos ossos. A câmera mostra a mão de Moonwatcher se elevando

com força, em close e em câmera lenta. Ele bate com força nos ossos e quebra vários,

sentindo o poder em suas mãos, ainda em câmera lenta. No clímax da música, ele pega o

osso com as duas mãos, e esmaga o crânio que jaz a sua frente. Logo após, aparece uma

anta caindo ao chão, como abatida. O rosto de Moonwatcher em close revela sua ira. Mais

uma vez é dado um close na mão do homem-macaco se elevando e, ainda em close, o resto

do crânio sendo esmagado mais uma vez. E, mais uma vez, close na mão de Moonwatcher

e no crânio sendo esmagado. A montagem, nesse momento, mesmo mostrando imagens em

câmera lenta, deixa a cena acelerada, pois as tomadas são cada vez mais rápidas, os cortes

cada vez mais súbitos, até que a imagem da anta caindo aparece mais uma vez, seguida de

Moonwatcher, que lança os restos dos ossos para o alto (figuras 8, 9, 10, 11, 12 e 13). A

beleza da cena é indescritível, é pura poesia. A montagem, primeiro mostrando o monolito,

depois o homem-macaco quebrando os ossos, e, paralelamente, a anta caindo abatida no

chão, sugere (apenas sugere) as relações de sentido entre os elementos. Dessa forma, pode-

se inferir que o monolito (não importa que interpretação se escolha para ele) insere de

alguma maneira o saber na mente do homem-macaco, um saber referente à caça, a como

matar os animais para se alimentar. As imagens da anta caindo ao chão, intercaladas com as

imagens do rosto de Moonwatcher, terminam por sugerir dois caminhos interpretativos: a

imagem da anta caindo pode ter sido colocada na mente do homem-macaco pelo monolito,

mas pode ser também um vislumbre do que vai ocorrer no futuro, um foreshadowing. Esses

dois caminhos não se excluem, na verdade os dois são verdadeiros ao mesmo tempo. Além

disso, a semelhança da batida da música com o bater dos ossos de Moonwatcher revela um

117

paralelo incomum: a música acompanha as imagens, o ritmo das imagens, que adquirem

uma espécie de métrica, como um verso de um poema.

Embora, na descrição do romance, a cena seja comparada a um sonho, e, de certa

forma, seja semelhante à do filme, a diferença é imensa, pois no filme o abatimento da anta

só acontece na mente do homem-macaco, sendo real (no momento) somente o

“abatimento” dos ossos. A cena, no filme, acontece tanto na mente de Moonwatcher (as

imagens da anta caindo) quanto na realidade física (os ossos sendo quebrados), e acontece

também tanto no presente (os ossos sendo quebrados) quanto no futuro (as imagens da anta

caindo). No romance, a cena se dá somente no presente, e somente na realidade física.

Capítulo 4: O Leopardo (The Leopard)

Moonwatcher leva alimento para as cavernas. Os homens-macacos da tribo de

Moonwatcher todos usam ferramentas, e se juntam para matar o leopardo. Fazem uma

armadilha bastante complexa para sua capacidade mental, e conseguem matar o felino. Esse

episódio não aparece no filme. Além do que já foi citado, no filme, há apenas algumas

cenas rápidas dos homens-macacos comendo carne. As cenas são bastante bonitas, pois o

vermelho da carne causa um contraste com os tons escuros dos pêlos dos homens-macacos,

de forma que a carne, que toma importância maior na tela, devido a sua cor, é também o

elemento mais importante na vida daqueles seres, pois lhes deu a chance de continuar

vivendo e de se desenvolver ainda mais (figura 14).

Capítulo 5: Encontro ao amanhecer (Encounter in the Dawn)

No romance, o monolito desaparece sem deixar rastro. Há outro confronto entre a

tribo de Moonwatcher e Os Outros. A disputa, dessa vez, é diferente, pois Moonwatcher

118

usa a cabeça do leopardo como estandarte. Na luta, Moonwatcher mata o líder inimigo,

One-Ear. Os Outros são expulsos do riacho, e a tribo de Moonwatcher agora tem controle

total sobre a água.

No filme, não é em um riacho que eles se encontram. Como da outra vez, a disputa

se dá em uma poça d’água, o que dá um tom ainda mais dramático à situação. Os homens-

macacos da tribo de Moonwatcher seguram ossos, mas o líder inimigo não tem medo, e

avança contra eles. Moonwatcher mata o líder inimigo, One-Ear (nome dado a ele no

romance), com um osso. Ainda furioso, Moonwatcher atira o osso para cima, em câmera

lenta (figura 15, 16 e 17).

Aqui, basicamente, só há uma diferença entre romance e filme. Enquanto no filme

os homens-macacos continuam os mesmos, apenas utilizam ossos para se defender e atacar

os inimigos; no romance, os homens-macacos da tribo de Moonwatcher encontram-se num

estágio extremamente superior aos Outros, inclusive visualmente, pois além de usarem

facas, pedras e ossos, utilizam também meios de amedrontar os inimigos, como a cabeça do

leopardo empalada em uma estaca. A diferença, então, seria que no filme a mudança mais

importante se dá apenas no processo mental do ser, enquanto no romance a evolução se dá

muito rapidamente, de forma que eles inclusive aprendem a fabricar ferramentas (fazem

facas com ossos e pedras) e também utilizam, como já foi dito, meios para amedrontar os

inimigos. O que está registrado no filme é a centelha de mudança na espécie, o primeiro

passo em direção à humanidade, enquanto no romance já é registrado todo um processo

evolutivo.

Capítulo 6: A Ascensão do Homem (Ascent of Man)

119

Nesse capítulo, há uma descrição detalhada da evolução do homem. O osso evolui

para ferramentas mais sofisticadas, como facas de ferro, depois armas de fogo, e em

seguida armas de eliminação em massa. Paralelamente à evolução das armas, o narrador

descreve a evolução do homem, como, por exemplo, o fato de a utilização da faca ocasionar

uma diminuição dos caninos. O capítulo se torna interessante também quando o narrador

fala que o homem sempre utilizou as armas contra ele mesmo, o homem. Dessa forma, do

mesmo modo que Moonwatcher usou o osso para matar seu semelhante, os homens

continuam a usar todo tipo de armas contra ele mesmo, contra seus semelhantes. Mas,

mesmo assim, as armas são responsáveis pela evolução da humanidade.

Sem aquelas armas, embora freqüentemente utilizadas contra ele mesmo, o Homem nunca poderia ter conquistado seu mundo. Nelas ele tinha colocado seu coração e sua alma, e durante eras elas o tinham servido bem.97

Embora não exista parte do filme paralela a essa do romance, é notável como o tema

da evolução das armas é trabalhado nas duas obras de forma bastante distinta, por isso cabe

aqui uma descrição do corte do final da primeira parte para a segunda parte do filme.

Na cena em questão, depois que Moonwatcher mata o líder inimigo, ele aparece, em

câmera lenta, jogando, para cima, o osso que usou na luta. A câmera acompanha o osso,

ainda em câmera lenta, que gira enquanto sobe, e continua girando quando começa a

descer. Um corte seco revela um objeto no espaço, o que parece ser um satélite ou uma

nave espacial (figura 18). A montagem é extremamente poética, como já foi dito, pois

iguala os dois objetos, como numa rima visual, e, ao mesmo tempo, faz uma comparação,

97 “Without those weapons, often though he had used against himself, Man would never have conquered his world. Into them he had put his heart and soul, and for ages they had served him well.” (CLARKE, 2000. p. 37)

120

uma metáfora, entre o osso e o “satélite”. É lícito chamar o objeto de satélite, pois, como a

Lua e qualquer outro objeto que seja colocado em órbita permamente da Terra, ele é,

realmente, um satélite. Mas, na verdade, não é um satélite de comunicação, é uma bomba

nuclear. Mesmo que não se perceba que se trata de uma bomba, no entanto, o poético

permanece. A semelhança entre os dois objetos é feita através de uma comparação rica.

Inicialmente, o osso é o primeiro objeto de tecnologia humana, o mais primitivo, e o satélite

é o mais avançado, milhões de anos na frente. O corte sugere, então, uma evolução, desde o

osso até o satélite, mas uma evolução em um único salto, diferente da do romance, que

mostra todas as fases das armas humanas. Além da evolução da tecnologia, temos dois

objetos de tamanhos completamente diferentes, um é pequeno, cabe na mão de um homem,

o outro é gigante, comporta, provavelmente, vários homens dentro de si; no entanto, os dois

objetos aparecem do mesmo tamanho na tela, pois só assim é feita a metáfora; e mais, dessa

forma, os dois objetos têm a mesma importância para a humanidade: no passado remoto, o

osso era a ferramenta mais importante da humanidade, agora, é o satélite, de forma que para

cada época determinada os dois objetos têm a mesma importância, por isso, têm o mesmo

tamanho na tela. Além disso, o osso se movimenta em câmera lenta, enquanto o satélite

aparece em tempo normal (nem câmera lenta nem acelerada), mas os dois adquirem o

mesmo ritmo, de forma que a aproximação é maior ainda. Toda essa comparação é possível

mesmo se tratando somente de um objeto espacial qualquer, um satélite de comunicações,

ou uma estação espacial, por exemplo. No entanto, a aproximação se torna maior ainda

quando ficamos sabendo que se trata de uma bomba nuclear.

Moonwatcher triunfantemente arremessa seu osso-clava – sua arma primitiva – para cima no céu azul, onde ele ...

121

... se torna uma arma moderna, uma bomba nuclear, orbitando bem acima da Terra. Para ser honesto, eu tinha pensado que o veículo espacial em que o osso se transforma era uma nave espacial. Mas Frederick Ordway, um consultor técnico do filme, escreve que “nós cortamos para as bombas em órbita”.98

De qualquer forma, mesmo não se percebendo que se trata de bombas nucleares, a metáfora

continua funcionando. Na verdade, não deixar claro que eram bombas foi uma vontade de

Kubrick.

Kubrick encomendou vários designs de plataformas de armas nucleares em órbita para Lange e Masters. (...) Ansioso para evitar muitas associações com Dr. Fantástico, no entanto, Kubrick decidiu não deixar tão óbvio em seu filme que esse artefato espacial delicado e caro era uma máquina de guerra.99

As figuras 17 e 18 mostram como a aproximação visual dos dois objetos, seja o segundo

uma bomba ou não, é enorme.

2. Segunda parte: TMA-1

Como não há título na segunda parte do filme, utilizamos aqui o título dado no

romance.

Capítulo 7: Vôo Especial (Special Flight)

98 “Moonwatcher triumphantly flings his bone-club – his primitive weapon – high into the blue sky, where it… … becomes a modern weapon, a nuclear bomb, orbiting high above the earth. To be honest, I had thought that the space vehicle the club becomes was a spaceship. But Frederick Ordway, a technical consultant on the film, writes that ‘we cut to the orbiting bombs’.” (WHEAT, 2000. p. 20) 99 “Kubrick ordered many designs for orbiting nuclear weapon platforms from Lange and Masters. (…) Anxious to avoid too many associations with Dr Strangelove, however, Kubrick decided not to make it so obvious in his film that this expensive and delicate artifact of space was a war machine.” (BIZONY, 2000. p. 108)

122

Na Terra, o Dr. Floyd viaja de Washington para a Flórida, onde se prepara para

viajar à Lua. Antes de sair da Terra, repórteres questionam Floyd a respeito dos boatos

sobre uma epidemia na Lua. A viagem da Terra à Lua é detalhada com bastante

tecnicidade. Em órbita da Terra, há trinta e oito armas nucleares: essa informação é

importante para o entendimento do final do romance. Durante a viagem, uma

“espaçomoça” pergunta a Floyd sobre a epidemia. Todo o capítulo funciona como uma

preparação para a ida ao espaço, e como uma introdução à questão da epidemia como

boato.

Não há nenhum equivalente desse capítulo no filme. Como já foi dito, o romance

não dá o salto temporal e espacial ao mesmo tempo, da cena na pré-história da Terra passa-

se para o futuro também na Terra. Mas, no filme, não há qualquer cena que se passe na

Terra além dos acontecimentos pré-históricos. Dessa forma, o salto no filme é temporal e

espacial, por isso não há, no filme, paralelo a essa cena que, no romance, se passa na Terra

no futuro.

Capítulo 8: Encontro em Órbita (Orbital Rendezvous)

A espaçonave Orion III entra na Estação Espacial Um (Space Station One). Dela,

sai o Dr. Floyd, que logo encontra com Miller, responsável pela segurança da estação.

Floyd telefona para casa e deixa uma mensagem. Saindo da cabine, ele encontra o Dr.

Dimitri Moisevitch.

No filme, um satélite100 em órbita da Terra passa pela tela. A câmera se move em

direção à Terra. Outro satélite passa, também circulando o globo, e logo depois mais um.

100 Sabemos que é uma bomba nuclear, mas vamos chamar de satélite, por não estar claro no filme que se trata de uma bomba, e por ser também um nome apropriado.

123

Sabe-se que são satélites diferentes pois possuem símbolos, como bandeiras, diferentes.

Aparece outro satélite, dessa vez, de um modelo diferente dos anteriores. No fundo da

imagem aparece a Lua. Em seguida, vemos a Estação Espacial Um, girando em torno de si

mesma, e também orbitando em redor da Terra (figura 19). Depois da Estação, aparece a

espaçonave Orion III, com o logotipo da Pan-Am bastante visível (figura 20). Durante toda

a cena a câmera se move com leveza; ao mesmo tempo, os objetos (satélites, estação

espacial, espaçonave e a Terra) também se movem. A seqüência de movimentos juntamente

com a música de Johann Strauss, a valsa Danúbio Azul (Blue Danube Waltz), constrói o

que já se tornou comum chamar de “balé cósmico”. Os objetos espaciais parecem dançar ao

som da valsa, e compõem uma cena poética que, além de mimetizar um balé (que por si só

já é uma obra artística), aproxima as naves, a tecnologia, as máquinas, ao homem, pois as

máquinas aqui dançam, artisticamente, como os seres humanos. Além disso, temos o uso da

música, que, de forma nada comum, compõe o significado da cena. Não fosse a música, a

cena não poderia ser entendida como um balé, e as máquinas não seriam colocadas como

metáfora de dançarinos, de seres humanos. O balé continua dentro da nave, com a caneta

que flutua perto de Floyd, e com o braço do próprio Floyd, que também flutua (figura 21 e

22). Até o caminhar titubeante da espaçomoça contribui para o balé, já que ela utiliza “grip

shoes” (sapatos de prender, agarrar) para se manter no chão, o que torna seu andar

vacilante, mas também lento, calmo, e de acordo com a música. No espaço, a Terra, a

espaçonave da Pan-Am (Orion III) e a Estação Espacial continuam o balé, até que em close

vemos a Orion se aproximar da Estação. Floyd aparece no interior da Estação, e a primeira

fala (aos 25 minutos de filme) já demonstra a banalidade, a casualidade, dos diálogos: uma

mulher que o acompanha diz “Here you are, Sir.” (algo como “Chegamos, Senhor.”). Floyd

encontra Miller, os dois passam pela burocracia da segurança da Estação. Aqui, vemos

124

como a cor é um elemento forte em 2001-filme: o branco e o vermelho tomam conta do

interior da Estação, o que é uma verdadeira imagem futurista; e, além disso, pode-se notar o

teto iluminado (figura 23), que retomaremos no final deste capítulo, na descrição de uma

das últimas cenas do filme. Logo depois, Floyd telefona para casa, numa cabine cujo

telefone tem também vídeo (Picturephone). O diálogo ao telefone, com sua filha, é

extremamente “seco”, sem qualquer emoção. Os diálogos no filme inteiro são banais e

destituídos de “calor humano”, o que aproxima mais o homem de uma máquina.

Aqui, a diferença mais importante entre as duas obras é o “balé cósmico”, que,

ausente completamente no romance, insere poesia nas cenas do filme, além de contribuir

para a construção de significados múltiplos da obra.

Capítulo 9: Trânsito Lunar (Moon Shuttle)

No romance, durante o diálogo entre Floyd e Dimitri, o russo pergunta sobre a

epidemia e sobre a natureza da ATM-1, que ele ignora completamente. Nesse diálogo há

um pouco do mistério que é comum no filme, mas, como já foi dito no início do romance

que o monolito é um artefato alienígena, fica fácil deduzir que a ATM-1 tem alguma

relação com ele, o que diminui o mistério. Floyd, na viagem para a Lua, faz uma refeição,

vai ao banheiro e lê um jornal eletrônico, e termina por chegar a Clavius, uma das crateras

da Lua.

No filme, Floyd encontra uma amiga, Elena, e outros russos. Ele conversa

principalmente com um deles, Andrei Smyslov (que claramente faz o papel tomado por

Dimitri do romance). Smyslov pergunta a Floyd sobre o mistério que ronda a Lua

(inclusive utiliza a palavra “mistério”), sobre o boato da epidemia. Floyd não dá resposta

alguma, o que torna o diálogo mais misterioso. Ao final do diálogo, aparece uma tela negra

125

que funciona como plano de corte para a viagem à Lua. Mais uma vez a nave que leva

Floyd, aproximando-se da Lua, é “envolvida” pelos sons do Danúbio Azul. No interior da

nave, as espaçomoças comem, enquanto Floyd dorme. Uma das espaçomoças, segurando

duas bandejas, gira andando e fica de cabeça para baixo (figura 24). Para mostrar que as

noções de “em cima” e “em baixo” nada significam no vácuo do espaço, Kubrick coloca a

imagem da espaçomoça entrando na cabine do piloto de cabeça para baixo, em relação à

posição da mulher, e depois gira, deixando a espaçomoça no que é, para o espectador, a

posição correta (figuras 25 e 26). Floyd se alimenta dos “sucos” na bandeja, e vai ao

banheiro. A Lua, tema de poemas durante toda a história da literatura, aparece com grande

relevância nas imagens. A nave que desce em direção à Lua parece um rosto humano: uma

imagem que revela uma metáfora visual, mais uma vez aproximando homem e máquina

(figura 27). De dentro da nave, é possível ver uma cidade na Lua, tão grande quanto uma

metrópole da Terra. Comportas, na colônia lunar, abrem-se para a entrada da nave; a

aparência de flor desabrochando das comportas revela que a vida na Lua é mecânica, em

mais uma metáfora visual (figura 28).

Mais uma vez, a ausência das metáforas (que no filme são visuais) e os diálogos

explicativos tornam o romance prosaico, enquanto a existência de inúmeras metáforas

visuais e de diálogos que levantam mais perguntas do que dão respostas tornam o filme

mais poético.

Capítulo 10: A Base em Clavius (Clavius Base)

Há uma descrição pormenorizada, bastante técnica, científica, da vida na base lunar.

Floyd conversa com Halvorsen, um dos cientístas que vivem na Lua. A cena que foi

126

filmada da vida na Lua foi cortada do filme, de forma que diretamente do pouso passa-se,

no filme, para a conferência.

Capítulo 11: Anomalia (Anomaly)

No romance, Floyd inicia a conferência. Dr. Michaels mostra fotos de Tycho e do

campo magnético gerado pela TMA-1. O monolito, que no início do romance era cristalino,

é agora negro. Logo aqui, no início da conferência, já se sabe sobre o que se debate: um

monolito foi encontrado na cratera Tycho, na Lua. Um dos cientistas descreve o monolito

como sendo prova de vida inteligente fora da Terra.

“...TMA-1 não tem nada a ver com os Chineses. Na verdade, não tem nada a ver com a raça humana – pois quando ele foi enterrado, não havia humanos. “Veja só, ele tem aproximadamente três milhões de anos. O que você está vendo agora é a primeira evidência de vida inteligente fora da Terra.”101

No filme, nada disso é discutido tão cedo. Da conferência, vemos somente a

abertura, em que Floyd fala apenas sobre a história inventada, o boato sobre a epidemia, de

forma que o espectador fica sabendo que a epidemia não existe, mas não faz idéia do que

esteja por trás de tanto segredo. O discurso breve de Floyd fala sobre “uma das descobertas

mais importantes da história da humanidade” e sobre “o possível choque social e cultural”

que tal descoberta pode provocar; o que aumenta o mistério. Também é notável como o

101 “ ‘...TMA-1 has nothing to do with the Chinese. Indeed, it has nothing to do with the human race – for when it was buried, there were no humans. ‘You see, it is approximately three million years old. What you are looking at is the first evidence of intelligent life beyond the Earth.’” (CLARKE, 2000. pp. 83 e 84)

127

ângulo que mostra a conferência apresenta uma simetria incrível da sala como um todo, e

da mesa, em formato de U (figura 29).

Capítulo 12: Jornada à luz da Terra (Journey by Earthlight)

Floyd, Halvorsen e Michaels usam um veículo lunar para irem da cratera Clavius a

Tycho, onde está a TMA-1. Dr. Michaels diz que a TMA-1 foi enterrada de propósito, e o

narrador, onisciente, revela que o monolito é um artefato alienígena, a primeira prova de

vida inteligente fora da Terra.

Finalmente, uma das perguntas mais antigas do Homem tinha sido respondida; aqui estava a prova, sem qualquer sombra de dúvida, que a dele não era a única inteligência que o universo tinha trazido à tona.102

Floyd e os outros chegam ao local do TMA-1, e vêem o monolito.

Da mesma forma que no romance, Floyd, Halvorsen e Michaels vão, no filme, em

um veículo lunar, até Tycho, para ver o monolito. Desde o início da viagem, a música de

György Ligeti contribui para o clima de mistério. Dentro do veículo, os doutores

conversam olhando fotos que mostram a anomalia magnética. Um deles descreve como a

anomalia foi detectada e como eles escavaram ao redor da anomalia e encontraram o

objeto; diz também que o objeto foi enterrado de propósito, há quatro milhões de anos. O

veículo chega em Tycho e pousa, acompanhado da trilha sonora perturbadora de Ligeti.

Enquanto no romance o narrador, instância do saber completo da narrativa, afirma

que o monolito é um artefato alienígena, no filme, não há sequer menção a isso. Nem

sabemos ainda que se trata de um monolito no filme. As possíveis interpretações para a

102 “At last, one of Man’s oldest questions had been answered; here was the proof, beyond all shadow of doubt, that his was not the only intelligence that the universe had brought forth.” (CLARKE, 2000. p. 88)

128

natureza do monolito são eliminadas pelo narrador do romance, enquanto no filme o

mistério continua, e aumenta cada vez mais.

Capítulo 13: O Lento Amanhecer (The Slow Dawn)

Floyd e seus companheiros chegam ao local onde está o monolito. Mais uma vez o

narrador descreve o monolito como uma artefato alienígena; dessa vez, a descrição é quase

igual à contida no conto “A Sentinela” e a uma das descrições presentes nas narrações do

roteiro, mas que não foram utilizadas no filme (essas duas citações estão reproduzidas,

aqui, na página 88).

Três milhões de anos atrás, algo tinha passado por aqui, deixado esse desconhecido e talvez incompreensível símbolo de seu propósito, e tinha retornado para os planetas – ou para as estrelas.103

Os astronautas tiram fotos em frente ao monolito, e o Sol bate nele pela primeira vez desde

que foi descoberto. Um som ecoa e dói nos ouvidos de Floyd, depois tudo fica em silêncio.

O narrador descreve o som como saindo do monolito. Mesmo que, no filme, não se possa

interpretar o som como vindo de outro lugar que não o monolito, há uma grande diferença

entre deixar implícito (próprio da poesia) e deixar claro, explícito (próprio do texto em

prosa que prima pela referencialidade), como faz o narrador do romance.

No filme, Floyd e seus companheiros se aproximam do monolito. A música, de

Ligeti, é a mesma de quando o monolito apareceu pela primeira vez, na primeira parte.

Tanto a música quanto o deserto lunar contribuem para uma cena extremamente parecida

com a da primeira aparição do monolito. Os astronautas, da mesma forma que os homens-

103 “Three million years ago, something had passed this way, had left this unknown and perhaps unknowable symbol of its purpose, and had returned to the planets – or to the stars.” (CLARKE, 2000. p. 97)

129

macacos, ficam ao redor do artefato (figuras 6 e 30). As duas cenas são aproximadas visual

e sonoramente, como numa metáfora, para mostrar que aqueles seres humanos, embora

avançados tecnologicamente em relação aos homens-macacos, têm a mesma natureza que

os seres primitivos da primeira parte do filme. A cena se passa durante a noite, mas a luz do

Sol começa a aparecer. Floyd toca o monolito com a mesma hesitação que os primeiros

homens-macacos. Um dos astronautas está tirando uma foto dos outros, quando um som

estridente os assola. O monolito é mostrado sendo “tocado” pelo Sol; mais uma vez, a

imagem é simétrica, como numa rima visual (figura 31).

Pode-se perceber que os mesmos elementos, os mesmos acontecimentos, aparecem

no romance e no filme, com a diferença de que tudo no filme é sugerido, é implícito,

enquanto no romance tudo é explicado, é explícito.

Capítulo 14: Os Ouvintes (The Listeners)

Nesse capítulo, satélites (sondas) por todo o sistema solar registram o pulso

energético enviado pelo monolito. Esse capítulo funciona como uma ligação entre a parte

dois e a parte três do livro, pois o pulso, enviado pelo sistema solar, prevê o caminho que a

Discovery vai tomar. No filme, não há qualquer ligação entre as partes dois e três,

ocorrendo um salto temporal e espacial mais uma vez.

Já nessa segunda parte fica claro que os monolitos podem ser vistos

metaforicamente, como marcos da evolução do homem.

O monolito simboliza a própria coisa que ele lembra: um marco em pedra (milestone), o primeiro marco na estrada da evolução humanóide. Nesse marco, o macaco vira homem. No próximo marco,

130

na lua, o homem vai “evoluir” em (através da criação) uma máquina humanóide que se tornará um beco sem saída evolucionário.104

O segundo monolito, no entanto, se considerado figurativamente, e, em conseqüencia, de

forma metalingüística, não marca a criação de Hal, e sim sua aparição no filme.

3. Terceira parte: Missão Júpiter

O título da terceira parte do romance é “Entre Planetas” (Between Planets).

Utilizamos aqui o título do filme, apenas tirando a referência ao tempo passado (Jupiter

Mission – 18 Months Later)

Capítulo 15: Discovery105

No romance, a missão da Discovery (coleta de informações sobre Saturno e suas

luas) é detalhada tecnicamente, mesmo não sendo a missão verdadeira. A hibernação

também é descrita com detalhes técnicos.

Capítulo 16: Hal

HAL9000, o computador que controla toda a Discovery, é descrito. Ele pode

mimetizar o pensamento humano, e age como um sexto membro da tripulação.

Capítulo 17: Modo de Viagem (Cruise Mode)

104 “The monolith simbolizes the very thing it resembles: a milestone, the first milestone along the road of humanoid evolution. At this milestone, ape becomes man. At the next milestone, on the moon, man will ‘evolve’ into (by creating) a humanoid machine that will become an evolutionary dead end.” (WHEAT, 2000. p. 65) 105 Pode ser traduzido como Descoberta, mas como também é o nome da nave, preferimos utilizar somente o titulo original.

131

A rotina diária de David Bowman e Frank Poole na Discovery é descrita. As

personagens, aqui, são desenvolvidas, e possuem mais profundidade do que no filme. Além

de descrever um pouco do passado de Bowman, seus pensamentos e emoções aparecem no

romance.

Há cinqüenta anos, ele teria sido considerado um especialista em astronomia aplicada, cibernética, e sistemas de propulsão no espaço – mas ele estava predisposto a negar, com uma indignação genuína, que era um especialista. Bowman nunca tinha achado possível concentrar seu interesse exclusivamente em um assunto; ...106

A nave Discovery é comparada, quanto a seu aspecto físico, a um navio antigo, o que,

como veremos, é uma metáfora um tanto pobre. Além disso, a Discovery é descrita com

toda a cientificidade própria de Clarke.

No filme, depois da legenda que situa o espectador107, aparece a Discovery, que,

diferente da descrição do romance, se parece com um espermatozóide (figura 32) – de

forma que a nave parece “fecundar” (metaforicamente) o sistema solar – e não com um

navio antigo. Dentro da nave, Poole se exercita, e podemos ver os “sarcófagos” em que três

astronautas estão em estado de hibernação (figura 33). O olho de Hal aparece várias vezes

(figura 34). A rotina no filme se parece muito com a do romance. Enquanto Bowman e

Poole comem, recebem uma transmissão de um jornal da Terra, e assistem a uma

reportagem sobre sua missão. No jornal, uma entrevista com Bowman e Poole explica os

fatos sobre a hibernação, sobre Hal (em que sua responsabilidade é enfatizada), e sobre a

106 “Fifty years ago, he would have been considered a specialist in applied astronomy, cybernetics, and space propulsion systems – yet he was prone to deny, with genuine indignation, that he was a specialist at all. Bowman had never found it possible to focus his interest exclusively on any subject; …” (CLARKE, 2000. p. 122) 107 A legenda, que Kubrick colocou sob pressão, depois da primeira exibição-teste do filme, é a seguinte: Missão Júpiter – 18 meses depois (Jupiter Mission – 18 Months Later)

132

missão no geral. Quando Hal é entrevistado, ele diz ser infalível, e parece ter emoções

genuínas, que, inclusive, são discutidas na entrevista.

Até aqui são poucas as diferenças entre as duas obras: o formato da nave Discovery,

que gera mais uma metáfora visual; o fato de, no romance, o destino ser Saturno, e, no

filme, ser Júpiter, que tem pouca importância; e a descrição das personagens, que, no

romance, parecem humanos, têm densidade psicológica, enquanto no filme não têm

profundidade humana nenhuma, são frios, parecendo destituídos de emoções, o que os

aproxima a máquinas.

Capítulo 18: Através dos Asteróides (Through the Asteroids)

A Discovery se aproxima de Júpiter e passa por um campo de asteróides. A viagem

deles é o tempo todo comparada às viagens marítimas, uma metáfora um tanto pobre,

tradicional.

Eles fitaram a rocha que passava no céu com as emoções de marinheiros em uma longa viagem marítima, navegando uma costa em que eles não podiam aportar. Embora eles soubessem perfeitamente que a 7794 era somente um pedaço de rocha sem vida e sem ar, esse conhecimento não afetava quase nada seus sentimentos.108

Além da metáfora, nessa citação, percebemos como os astronautas são “humanizados”,

quando comparados aos antigos marinheiros.

Capítulo 19: Trânsito em Júpiter (Transit of Jupiter)

108 “They stared at that passing pebble in the sky with the emotions of sailors on a long sea voyage, skirting a coast on which they cannot land. Though they were perfectly well aware that 7794 was only a lifeless, airless chunk of rock, this knowledge scarcely affected their feelings.” (CLARKE, 2000. p. 131)

133

A Discovery faz trânsito em Júpiter (a nave entra na órbita do planeta e utiliza a

velocidade de rotação dele como impulso para continuar a viagem), e passa por Europa,

uma das luas do gigante gasoso. Bowman e Poole lançam uma sonda ao planeta, e rumam

para Saturno.

Capítulo 20: O Mundo dos Deuses (The World of the Gods)

A sonda entra em Júpiter e envia imagens à Discovery. A superfície de Júpiter é

descrita.

Capítulo 21: Festa de Aniversário (Birthday Party)

Aqui, no romance, começa a Parte IV, Abismo (Abyss). No entanto, no filme, que

não contém as descrições técnicas detalhadas do romance 109 , a Parte III ainda está

começando.

Nesse capítulo, no romance, começa a “festa” de aniversário de Poole. Logo após a

transmissão dos pais dele, Hal reporta um erro aos astronautas. Hal diz que em 72 horas a

unidade AE-35 vai falhar, cortando a comunicação com a Terra. Bowman e Poole pedem

permissão ao Controle da Missão (na Terra) para trocar a unidade. Quando Bowman e Hal

estão jogando xadrez, chega a resposta do Controle da Missão, que pede a Bowman para

fazer uma transmissão para a Terra, tranquilizando toda a população quanto à situação. A

mensagem de Bowman é reproduzida no romance, o que funciona como uma reiteração do

ocorrido.

109 O filme apresenta, em suas imagens, todos os detalhes técnicos e é cientificamente correto em todos os aspectos. No entanto, essa cientificidade só pode ser percebida no filme se estudada acuradamente, pois fica o tempo todo em segundo plano, subordinada às imagens poéticas e à trama.

134

No filme, Poole recebe a transmissão dos pais, que o parabenizam. Bowman joga

xadrez com Hal. Bowman desenha, e Hal pede para ver os desenhos, e dá sua opinião sobre

eles. Hal parece ser realmente humano, jogando xadrez, discutindo arte, etc. Hal então

questiona Bowman a respeito da missão, perguntando sobre boatos de algo ter sido

desenterrado na lua, e sobre as estranhas preparações para a missão. Aqui temos a primeira

pista da relação entre essa parte do filme e as anteriores, quando Hal pergunta sobre “algo

desenterrado na lua”. Nesse momento, Hal detecta o erro (o mesmo do romance). Os

astronautas recebem resposta do Controle da Missão, que confirma o plano de substituir a

unidade AE-35.

Percebemos que Hal no filme é mais “humano”, enquanto Bowman e Poole

continuam frios, destituídos de emoções. No romance os papéis não são esses, Bowman e

Poole parecem realmente humanos, enquanto Hal parece mimetizar um ser humano. A

preocupação de Hal sobre a missão, no filme, funciona como uma pista para a explicação

dos acontecimentos posteriores, como veremos mais adiante. Também, no filme, o mundo é

mostrado do ponto de vista de Hal, numa câmera subjetiva, aproximando mais ainda o

computador de um ser humano (figura 35).

Capítulo 22: Excursão (Excursion)

No romance, as cápsulas espaciais (space pods) e a saída da nave para o vácuo do

espaço são descritas cientificamente. Poole troca a unidade AE-53, e essa cena é descrita de

forma extremamente técnica. Já se pode perceber como o romance envereda por esse

caminho, o de explicar os acontecimentos de forma científica, e de fazer descrições

técnicas, distanciadas das descrições poéticas.

135

No filme, quem vai fazer a substituição da peça é Bowman, não Poole. Desde a

primeira imagem de Bowman com o uniforme de astronauta, escutamos o som de sua

respiração. Diferente do modo comum de tornar a diegese do filme dependente do

subjetivo, da personagem (que seria utilizar a câmera subjetiva), Kubrick utiliza uma

câmera objetiva e o som da respiração de Bowman, que toma conta do filme, sendo

acompanhado unicamente pelo som do oxigênio sendo expelido para seu capacete. A cena é

lenta, e as imagens são tranqüilas, mas o som da respiração do astronauta deixa uma tensão

que prevalece sobre a calma do espaço. Bowman retira a peça e, antes de colocar a unidade

substituta, a cena é cortada, ficando implícito o fato de que ele realizou a substituição.

Capítulo 23: Diagnóstico (Diagnosis)

Bowman e Poole testam a unidade AE-35, ela não apresenta defeito. Recebem uma

transmissão da Terra que diz que o erro foi de Hal, e que pode ser necessário desligá-lo. Os

dois astronautas conversam, e fica um clima tenso na nave.

O que quer que tivesse acontecido, a atmosfera a bordo da nave tinha se alterado sutilmente. Havia um sentimento de tensão no ar – um sentimento de que, pela primeira vez, algo poderia estar dando errado. A Discovery não era mais uma nave alegre.110

No filme, enquanto Bowman e Poole testam a unidade AE-35, Hal os observa, e,

inclusive, a câmera assume seu ponto de vista. Outra forma, freqüentemente usada por

Kubrick, de mostrar o ponto de vista de Hal, metonimicamente, é mostrar seu olho em close

e, no reflexo, o que ele vê (figura 36). Quando não acham erro, Hal diz que é “intrigante”, e

110 “Whatever happened, the atmosfere aboard the ship had subtly altered. There was a sense of strain in the air – a feeling that, for the first time, something might be going wrong. Discovery was no longer a happy ship.” (CLARKE, 2000. p. 170)

136

recomenda recolocar a peça e esperar que ela falhe para identificar o problema. O Controle

da Missão concorda com o plano, mas alerta que Hal cometeu um erro na sua previsão.

Quando questionado, Hal diz que deve ter sido “erro humano”. Bowman chama Poole para

ajudá-lo quanto a um problema em uma das cápsulas, o que, claramente, é uma desculpa

para os dois poderem discutir o problema sem o conhecimento de Hal.

As duas obras se diferenciam aqui pela forma como apresentam o perigo, a tensão.

Enquanto no romance é necessário atestar, verbalmente, que ficou um clima de tensão na

nave, no filme, apenas as imagens, o som, os diálogos um tanto enigmáticos, e,

principalmente, as respostas de Hal, tornam o filme tenso, de forma que o espectador tem

na sua frente uma experiência essencialmente sensorial. A experiência sensorial, unida ao

cientificismo por trás das imagens do filme, dá uma qualidade artística maior à obra,

dotando-a de significações mais plurais.

Capítulo 24: Circuito Quebrado (Broken Circuit)

Hal começa a pigarrear antes de falar, o que o torna mais humano. Ele prevê um

segundo erro, uma falha na outra unidade AE-35 que substituiu a primeira. O Controle da

Missão diz que Hal está errado novamente. Quando Bowman e Poole já não acreditam mais

em Hal, este, deliberadamente, sem o conhecimento dos astronautas, faz a unidade AE-35

falhar.

No filme, Bowman e Poole entram na cápsula para conversar, desligam o som e

comprovam que Hal não pode ouvi-los. Eles concordam em recolocar a unidade para

esperar que ela falhe, mas decidem que, se Hal estiver realmente errado, eles vão desligá-lo

(ou seja, matá-lo). Durante toda a cena o olho de Hal aparece na tela, em segundo plano e a

simetria da imagem é notável (figura 37). No momento em que falam em desligá-lo, o olho

137

vermelho aparece em close (figura 38). Logo depois, aparece mais uma vez a visão de Hal,

a câmera mostra o ponto de vista do computador (figura 39), que lê os lábios dos

astronautas e, conseqüentemente, fica sabendo do plano dos dois.

O enredo das duas obras se diferencia um pouco aqui pois, enquanto no romance há

uma segunda previsão de erro, no filme, há apenas a decisão de recolocar a peça. Da

mesma forma que na cena anterior, Hal se aproxima do humano por ser mostrado seu ponto

de vista. Além disso, ele aparece como superior aos humanos, pois, além de derrotar

Bowman no xadrez e controlar toda a nave, ele tem habilidades como a de leitura labial.

Capítulo 25: Primeiro Homem em Saturno (First Man to Saturn)

No romance, Poole sai da Discovery para pegar a unidade que falhou. Antes de

retirar a peça ele percebe que a cápsula que ele usou para sair da nave está indo em sua

direção. Bowman percebe que há algo errado e tenta contato com Poole, logo depois vê o

corpo do amigo vagando pelo espaço. Poole está morto.

No filme, há aqui uma pausa. Aparece a legenda “Intermission” (Intervalo), que

logo depois é substituida por uma tela toda negra, acompanhada dos sons estranhos da

música de György Ligeti, que transformam essa parte numa espécie de recomeço, já que é a

mesma introdução utilizada antes do início do filme. Logo depois, Poole vai substituir a

unidade AE-35, ou seja, ele vai recolocar a peça anterior. A cena é bastante semelhante

àquela em que Bowman sai da nave. A respiração de Poole é o único som no filme. Quando

Poole se aproxima da antena, a cápsula gira e, como se fosse um monstro, se aproxima da

câmera, como se nosso ponto de vista fosse do local onde o astronauta está (figura 40). O

olho de Hal aparece em cortes rápidos em closes cada vez maiores (figuras 41 e 42). Poole

é jogado e vaga pelo espaço, ele se debate e tenta segurar a mangueira de oxigênio que está

138

partida, não há som algum, nem mesmo o de sua respiração. Bowman entra em outra

cápsula e sai em busca de Poole. Ele volta com o corpo de Poole, já morto, preso nos

braços mecânicos da cápsula. Na Discovery, Hal desliga os hibernáculos, matando os

outros astronautas, que ficam, agora, ainda mais parecidos com sarcófagos (figura 43), de

modo que mais uma metáfora visual se forma. O olho de Hal aparece, observando,

enquanto os cientistas morrem.

Há aqui uma diferença crucial na trama. No romance, Bowman não sai da nave,

enquanto no filme ele sai para pegar o corpo de Poole. Isso, no filme, indica que Bowman

ainda confia em Hal, ou melhor, ainda não desconfia de que Hal tenha se tornado um

psicopata. No romance, como veremos a seguir, a dúvida de Bowman é explicitada.

Capítulo 26: Diálogo com Hal (Dialogue with Hal)

O narrador atesta que Bowman ainda tem dúvidas sobre o ocorrido, não sabe se foi

um acidente ou não. Hal não obedece às ordens de Bowman, e só então ele começa a temer.

Hal termina cedendo os controles manuais dos hibernáculos a Bowman. Quando ele vai

retirar os cientistas da hibernação, Hal abre as comportas da Discovery, dando início à

retirada de todo o oxigênio da nave.

No filme, Bowman manda Hal abrir o compartimento de cápsulas, mas ele não

obedece. Hal revela a Bowman que sabe do plano de desligá-lo. Bowman decide entrar pela

câmara de descompressão, mesmo sem o capacete. Ele se livra do corpo de Poole e entra na

nave. Fica implícito que Hal, depois que Bowman entra, abre as comportas da nave, pois na

cena seguinte Bowman está de capacete, mesmo dentro da Discovery.

No romance, o clímax dessa parte é eliminado pela forma seccionada como os

acontecimentos ocorrem. No filme, embora tudo pareça acontecer em câmera lenta, ou seja,

139

mesmo com tudo ocorrendo lentamente, os acontecimentos (o assassinato de Poole, a morte

dos cientistas em hibernação, a revolta de HAL, e a entrada de Bowman, à força, na

Discovery) se dão praticamente ao mesmo tempo, o que aumenta a tensão da narrativa.

Capítulo 27: “É Necessário Saber” (“Need to Know)

O narrador do romance explica o que aconteceu com Hal: seu único propósito de

existência era a missão; ele não agüentava guardar o segredo, se sentia culpado; Bowman e

Poole não sabiam do segredo pois iriam lidar com a mídia; o erro de Hal é causado por um

conflito entre saber a verdade e ter que escondê-la; neurótico, Hal, prestes a ser desligado,

se defende, matando quem ameaça sua vida.

No filme, não há essa explicação, embora seja uma das explicações possíveis.

Podemos entender também que Hal, tendo realmente errado, tenta proteger sua integridade,

matando aqueles que podem provar que ele errou. Mas, a principal diferença, e a mais

importante, é que no romance fica claro que Hal não tem culpa, que o erro foi humano, um

erro de “programação”. Como no filme o erro é realmente de Hal, ele se aproxima mais do

humano, pois errar faz parte da nossa natureza. E não há como negar que Hal é a

personagem mais humana (talvez a única realmente humana) de todas no filme.

O computador na espaçonave Júpiter (sic) – um gênio presunçoso e trapalhão chamado Hal, que tem boas maneiras e uma lamuriante necessidade de confirmar que é querido – fala mais como um ser humano do que qualquer ser humano no filme.111

111 “The computer on the Jupiter spaceship – a chatty, fussy genius called Hal, which has nice manners and a rather querulous need for reassurance about being wanted – talks more like a human being than any human being does in the picture.” (BIZONY, 2000. p. 65)

140

A falha é o que mais humaniza Hal, inclusive tornando-o um assassino. O humano é

mostrado, em 2001-filme, como fruto da violência, tanto na primeira parte, com o

surgimento do ser humano a partir da violência dos homens-macacos, quanto nessa parte

em que Hal, tornado também humano, mata os que o ameaçam. A semelhança é ainda

maior quando percebemos que, da mesma forma que Moonwatcher usou uma ferramenta

(um osso) para matar seu inimigo, Hal usou também uma ferramenta (a cápsula espacial)

para matar Poole.

Capítulo 28: No Vácuo (In Vacuum)

Ainda no romance, Bowman e os cientistas em hibernação estão para morrer, pois

não há oxigênio na nave. Bowman consegue colocar um traje espacial, mas os outros

morrem. Ele vai desligar Hal, e conversa com o computador enquanto o mata. Hal canta

“Daisy”, e morre.

No filme, a respiração de Bowman mais uma vez toma conta da cena. Hal tenta

convencer Bowman a não desligá-lo. O astronauta entra num compartimento que simboliza

Hal, Bowman está “dentro” de Hal, para desligá-lo (figura 44). Além da voz de Hal, há

ainda o seu olho, que o torna mais presente na sua morte, diante da execução. A cena

encontra seu clímax quando Hal começa a cantar, com a voz titubeante. Toda a cena é

dramática, pois, mesmo com a voz monotônica de Hal, o espectador sente um apelo quase

infantil em suas palavras, além de um verdadeiro desejo de viver. O efeito no romance é

próximo do realizado no filme, mas a certeza relutante de Bowman deixa a cena mais

dramática no filme. No momento da morte de Hal, aparece a imagem de Bowman refletida

no olho do computador (figura 45), o que revela que Bowman se identifica com Hal, pois,

assim como o computador, Bowman está matando em legítima defesa.

141

No final, tanto no filme quanto no romance, a luta entre a máquina e o homem é

vencida pelo representante da humanidade, Bowman, e é ele quem vai entrar em contato

com o(s) ser(es) que deixou (deixaram) o monolito na Terra.

Capítulo 29: Sozinho (Alone)

Bowman conserta os problemas da nave, inclusive a antena, e entra em contato com

a Terra. Esse capítulo descreve, objetivamente, as ações de Bowman, enquanto ele conserta

a Discovery.

Capítulo 30: O Segredo (The Secret)

Bowman recebe uma mensagem de Floyd, da Terra. Floyd explica tudo: o achado

na Lua, a natureza do monolito (objeto alienígena), e sua função de alarme (o monolito

manda um sinal de energia, como um alarme, para uma das luas de Saturno). Floyd explica

também qual é a verdadeira missão de Bowman: investigar Japetus112 (uma das luas de

Saturno), que parece possuir alguma relação com a ATM-1.

No filme, assim que Bowman desliga Hal, aparece uma mensagem pré-gravada de

Floyd. Nela, ele diz que: por razões de segurança, só Hal sabia da verdadeira missão; foi

encontrada a primeira prova de vida inteligente fora da Terra; a ATM-1 tem quatro milhões

de anos, e que sua origem e objetivo continuam sendo um mistério. A mensagem no filme é

bem mais curta e sem detalhe algum, o que deixa o espectador na mesma dúvida anterior,

apenas sabendo que há uma ligação entre todas as partes do filme. Vale lembrar que no

filme só os cientistas tratam o monolito como “prova de vida inteligente fora da Terra”, o

que se configura como apenas uma das possibilidades de interpretação, já que os cientistas 112 Em português, o nome da lua é Jápeto. Preferimos utilizar o nome conforme usado no romance original.

142

são seres humanos, são falíveis. No romance, como já foi mostrado, o narrador, cuja

palavra é verdade absoluta na diegese da obra (no caso de 2001, pois o narrador não é

unreliable), trata o monolito da forma citada, tornando somente essa interpretação válida.

4. Quarta parte: Júpiter e Além do Infinito (Jupiter and Beyond the Infinite)

Aqui começa a quinta parte do romance, intitulada The Moons of Saturn (As Luas

de Saturno). Consideramos a quinta e a sexta parte do romance como sendo apenas uma,

que é referente à parte quatro do filme. Nessa parte, os capítulos 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 37

não têm qualquer paralelo no filme, provavelmente por se tratar de capítulos extremamente

técnicos, e que, de certa forma, retomam o que já foi visto até então, tornando-se um tanto

redundante.

Capítulo 31: Sobrevivência (Survival)

Nesse capítulo há um resumo dos acontecimentos, da situação da nave, e de alguns

aspectos do monolito, como suas dimensões, por exemplo. O narrador diz também que Hal

entrou em pânico, por estar prestes a “morrer”. O capítulo inteiro funciona como uma

retomada dos acontecimentos, contendo explicações extras.

Capítulo 32: A Respeito dos ETs (Concerning E.T.’s)

Aqui, o narrador descreve possibilidades sobre a natureza dos ETs. A possibilidade

mais extrema, mais avançada, mais evoluída, é quanto à libertação da matéria, de forma que

os ETs podem ter virado seres de pura energia. A discussão detalhada sobre de onde podem

ter vindo os alienígenas, que tecnologia possuem, qual sua aparência física, etc. termina

143

deixando claro que por trás do monolito e dos acontecimentos todos da obra estão os ETs.,

o que elimina outras possibilidades de interpretação.

Capítulo 33: Embaixador (Ambassador)

Bowman é descrito como embaixador da humanidade. No filme, isso fica apenas

implícito, Bowman representa, de forma metafórica, toda a humanidade, não é,

explicitamente, um embaixador. O narrador da obra de Clarke sugere, também nesse

capítulo, uma relação entre o surgimento dos anéis de Saturno e o surgimento da

humanidade (ambos há mais ou menos quatro milhões de anos), de forma que os ETs

estariam por trás do surgimento de ambos.

Capítulo 34: O Gelo em Órbita (The Orbiting Ice)

A Discovery chega a Saturno, entra na órbita do planeta, e Bowman vê uma mancha

negra em Japetus. Há, nesse capítulo, uma passagem um tanto poética.

Quando ele olhou para baixo de uma altura de dez mil milhas, Bowman pôde ver através do telescópio que os anéis eram feitos, em sua maioria, de gelo, brilhando e cintilando na luz do Sol. Ele poderia estar sobrevoando uma tempestade de neve que ocasionalmente se tornava limpa e revelava, onde deveria estar o chão, vislumbres desconcertantes de noite e estrelas.113

O poético surge aqui, principalmente, da expressão “revelar noite e estrelas”, que se

configura como um desvio da linguagem comum, até mesmo da linguagem da prosa

113 “As he looked down upon them from a height of some ten thousand miles, Bowman could see through the telescope that the rings were made largely of ice, glittering and scintillating in the light of the Sun. He might have been flying over a snowstorm that occasionally cleared to reveal, where the ground should have been, baffling glimpses of night and stars.” (CLARKE, 2000. p. 235)

144

literária, se considerarmos sua forma mais extrema, menos poética. Também há um

contraste entre “revelar” e “vislumbres desconcertantes” (baffling glimpses), ou seja, há

uma intermitência da visão, da revelação. A inversão de perspectiva por “a noite” e as

“estrelas” ocuparem o lugar do chão também causa um estranhamento. De forma que essa

passagem se mostra, realmente, poética.

Capítulo 35: O Olho de Japeto (The Eye of Japetus)

A Discovery de aproxima de Japetus, Bowman vê, em Japetus, uma mancha que se

assemelha a um olho. A Discovey sai da órbita de Saturno e entra na órbita de Japetus.

Capítulo 36: Irmão Mais Velho (Big Brother)

A Discovery passa pela “mancha” de Japetus, e Bowman vê um monolito idêntico

ao da Lua, mesma cor e mesmas proporções, porém, gigante, e orbitando, assim como a

Discovery, ao redor de Japetus.

Capítulo 37: Experiência (Experiment)

No capítulo inteiro, o narrador descreve o “experimento”: os alienígenas

encontraram a Terra; construíram o grande monolito, chamado de “Portal das Estrelas”;

evoluíram até se livrarem da matéria e se tornarem seres de pura energia; e ainda observam

os experimentos que seus ancestrais iniciaram. Esse é mais um capítulo extremamente

explicativo e reducionista.

Capítulo 38: A Sentinela (The Sentinel)

145

Bowman decide usar uma das cápsulas espaciais para se aproximar do Portal das

Estrelas que, diz o narrador, começa a funcionar.

Capítulo 39: Dentro do Olho (Into the Eye)

Bowman, usando a cápsula, começa a se aproximar do monolito gigante. Ele vai

pousar no topo do Portal, quando percebe que a figura do artefato muda, como se tivesse se

virado ao avesso, e fica aberta. Ele entra no Portal, e vê que está cheio de estrelas.

Capítulo 40: Saída (Exit)

No romance, o Portal se fecha, com Bowman dentro.

No filme, os acontecimentos dos capítulos 38, 39 e 40 do romance se dão

rapidamente. Logo no início da quarta e última parte do filme, aparece a legenda “Júpiter e

Além do Infinito” (Jupiter and Beyond Infinite). Logo depois, começa a música de György

Ligeti, a mesma que se escuta todas as vezes em que o monolito aparece. Júpiter aparece na

tela, e logo em seguida o monolito gigante se mostra, orbitando uma das luas do planeta. A

Discovery se aproxima de Júpiter. Com o crescer da música, a cena fica cada vez mais

tensa. A cápsula sai da Discovery, que já está perto do monolito. Há mais um alinhamento,

dessa vez, entre Júpiter e várias de suas luas (figura 46). A cápsula se aproxima da tela,

como se indo na direção do espectador, de forma que a câmera assume o ponto de vista do

monolito (o monolito aparece como personagem). Outro alinhamento se mostra: Júpiter,

várias luas e o monolito gigante, todos mantendo a mesma distância (na tela) um do outro

(figura 47). O monolito se afasta dos outros corpos celestiais, a câmera se desloca para

cima, deixando o planeta e suas estrelas fora do campo de visão. Começa a viagem pelo

desconhecido.

146

Percebe-se que os capítulos 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 37, no romance, servem para

explicar os acontecimentos. No filme, a ausência de qualquer cena que encontraria seu

paralelo nesses capítulos permite que o espectador tire suas próprias conclusões. Além

disso, vemos, a partir daqui, a ausência completa de falas no filme, e outras “rimas” visuais,

que contribuem para aumentar o poético de 2001-filme.

Capítulo 41: Grande Central (Grand Central)

Aqui começa a sexta e última parte do romance, intitulada “Through the Star Gate”

(Através do Portal das Estrelas). Bowman viaja por um túnel retangular cheio de estrelas.

Ele não tem noção de distância, de posicionamento ou de tempo. As descrições, aqui, são

um pouco aproximadas do surrealismo, das imagens de sonhos, que dominam o filme

durante a viagem pelo desconhecido.

O retângulo a sua frente estava ficando mais iluminado. As faixas luminosas das estrelas estavam empalidecendo contra um céu leitoso, cujo brilho aumentava a cada momento. Parecia que a cápsula espacial estava indo em direção à margem de uma nuvem, iluminada uniformemente pelos raios de um sol invisível.114

As descrições “surrealistas” são, no entanto, poucas e breves. Logo ele chega em um

planeta e vê uma carcaça de uma nave. Bowman vê uma nave dourada descendo ao planeta

e logo depois a cápsula dele também desce. No final do capítulo, ele chega a uma Grande

Estação Central da Galáxia, o que revela que todo o caminho que ele tinha tomado era

como uma viagem de trem pelo espaço.

114 “The rectangle ahead was growing lighter. The luminous star streaks were paling against a milky sky, whose brilliance increased moment by moment. It seemed as if the space pod was heading toward a bank of cloud, uniformly illuminated by the rays of an invisible sun.” (CLARKE, 2000. p. 261)

147

No filme, a viagem começa com duas paredes verticais de luzes que parecem se

aproximar da tela. Bowman treme com o balançar da cápsula espacial. Só o rosto de

Bowman, em close, aparece durante a viagem, sempre com o reflexo das luzes do túnel no

vidro do capacete. As luzes não são nem um pouco parecidas com estrelas (figura 48), o

que é destoante em relação à descrição do romance. No romance, é fácil reconhecer que

Bowman está num portal que atravessa as estrelas; no filme, no entanto, não havendo

estrelas, a viagem se apresenta mais misteriosa, mais opaca. O rosto de Bowman aparece

algumas vezes parado, como se estivesse congelado, o que revela a incerteza do passar do

tempo durante a viagem. As paredes de luzes ficam horizontais. O olho de Bowman

aparece em apenas dois tons (azul e amarelo). As imagens que seguem são: uma mancha

branca; uma nuvem colorida que parece ser uma nebulosa; um brilho que parece ser uma

estrela; algumas manchas vermelhas; outras manchas brancas, amarelas, negras, vermelhas.

Um objeto circular meio amarelado passa de um canto a outro da tela. Mais uma vez

aparece o olho de Bowman, agora nos tons azul claro e roxo. Algo como uma pista de luzes

se forma na tela, e, sobre ela, aparecem losangos tridimensionais azuis. O olho de Bowman

aparece mais uma vez em close, nos tons azul e laranja. Voltam as paredes horizontais de

luzes. O olho de Bowman fica em tons roxo e azul.

Podemos perceber, nas descrições acima, que o romance explica a natureza da

viagem de Bowman; enquanto o filme não revela nada, deixando tudo implícito. O círculo

amarelado que atravessa a tela pode ser a nave dourada citada no romance, mas não há

certeza de se tratar de uma nave. Da mesma forma, os losangos podem ser naves

alienígenas, mas isso também não fica claro. O que vemos, no filme, é uma aproximação de

tons entre o mundo estranho por onde Bowman passa e o seu olho. De modo que o mundo é

mostrado como Bowman o vê, ou seja, ele não entende o que seus olhos registram. Da

148

mesma forma, ele, metonimicamente, é afetado pelo mundo, pois seu olho, em cada uma

das vezes em que aparece na tela, apresenta os mesmos tons do mundo estranho por onde

ele passa.

Capítulo 42: O Céu Alienígena (The Alien Sky)

Bowman volta ao espaço, e vê mais estrelas. Ele se aproxima de uma estrela gigante

vermelha, que é orbitada por uma estrela anã branca. Ele passa por várias naves

gigantescas.

Em volta de muitas delas [máquinas do tamanho de cidades] estavam reunidos grupos de objetos menores, agrupados em filas e colunas bem arranjadas. Bowman tinha passado por vários desses grupos antes que ele entendesse que eram frotas de espaçonaves; ele estava voando sobre um estacionamento orbital gigante.115

Como ele não vê movimento, descobre que não é um estacionamento, e sim um ferro-

velho.

Não há nada sequer remotamente parecido com um ferro-velho espacial no filme.

Capítulo 43: Inferno (Inferno)

Bowman se aproxima mais do sol vermelho, e pensa ver seres nadando no fogo da

estrela.

No filme, imagens semelhantes a desertos em dois tons aparecem variando de cor:

azul e roxo; azul e cinza; azul e verde; azul e vermelho; e azul e amarelo. Toda a viagem é

115 “Around many of these were assembled scores of smaller objects, ranged in neat rows and columns. Bowman had passed several such groups before he realized that they were fleets of spaceships; he was flying over a gigantic orbital parking lot.” (CLARKE, 2000. p. 270)

149

acompanhada da música de Ligeti. Aparece algo semelhante a um mar, que também muda

de cor sempre em dois tons: verde e azul escuro, com um “céu” avermelhado; roxo e

amarelo; vermelho e rosa; azul com “céu” amarelo; dourado e azul. Logo em seguida

aparece o olho de Bowman, mais uma vez em close. A cada vez que ele pisca, seu olho

muda de cor, sempre em dois tons, “imitando” os tons do mundo pelo qual ele passa: azul e

vermelho; verde e vermelho; rosa e verde; amarelo e roxo; verde e vermelho; e amarelo e

azul. Na última vez em que ele pisca, o olho de Bowman retorna às cores normais.

Aqui, mais uma vez, percebemos o mundo sendo afetado pelo olhar de Bowman, e o

olhar dele (e ele próprio) sendo afetado pelo mundo. A diegese do filme toma as cores do

sujeito, que, metonimicamente, é representado pelo seu olho, que também toma as cores do

mundo, numa simbiose tonal (figuras 49, 50, 51 e 52).

Capítulo 44: Recepção (Reception)

No romance, tudo fica escuro, a cápsula pousa em algum lugar. Quando a luz volta,

Bowman se vê, dentro da cápsula, em um quarto de hotel perfeitamente comum. Há dois

quadros pendurados nas paredes do quarto: “Bridge at Arles”, de Van Gogh, e “Christina’s

Worlds”, de Wyeth. Bowman sai da cápsula e, ainda nos trajes espaciais, deixa cair um

braço, para testar a gravidade. Ele faz todo tipo de testes no local, percebe que a lista

telefônica é falsa (as páginas são em branco), e que o telefone não tem linha e nem as

gavetas abrem. As luzes funcionam, o guarda-roupas tem roupas de verdade, e no banheiro

tudo funciona perfeitamente. Na geladeira há pacotes, garrafas e latas, todos contendo uma

espécie de pudim azul. Bowman tira o capacete e o traje espacial. Ele prova o pudim e

gosta. A água que sai da torneira é completamente pura. Ele começa a assistir televisão e,

entre vários programas, vê um filme que se passa no quarto em que ele está. Ele percebe

150

que foi daquele filme que os ETs tiraram as imagens para construir o quarto. Logo depois,

ele dorme.

Então foi assim que essa área de recepção tinha sido preparada para ele; seus anfitriões tinham baseado suas idéias da vida terrestre em programas de TV. A sensação de que ele estava no cenário de um filme era quase literalmente verdadeira.116

Capítulo 45: Recapitulação (Recapitulation)

Algo penetra a mente de Bowman e ele começa a reviver toda a sua vida, de trás

para frente, do momento em que ele está até o seu nascimento. No final, ele vira um recém-

nascido. A descrição do (re-)nascimento do bebê é bastante poética:

O instante infinito passou; o pêndulo reverteu seu balanço. Num quarto vazio, boiando entre os fogos de uma estrela dupla há vinte mil anos-luz da Terra, um bebê abriu os olhos e começou a chorar.117

O “instante infinito” constitui um oxímoro, o instante é curto, breve, oposto ao infinito.

Além disso, temos o “pêndulo” como metáfora do tempo voltando, retornando à origem, da

mesma forma que Bowman volta a ser um bebê. O bebê também “bóia” no fogo, o que

constitui também um oxímoro, pois boiar é uma atividade que se faz na água. No entanto, a

descrição perde força poética, pois, como resultado das explicações sobre a natureza dos

ETs, e do final do livro, sabemos que houve uma transformação de Bowman numa criatura

de energia, um novo ser, igual aos seres que o levaram até ali. Não é possível, sabendo se

116 “So that was how this reception area had been prepared for him; his hosts had based their ideas of terrestrial living upon TV programs. His feeling that he was inside a movie set was almost literally true.” (CLARKE, 2000. p. 287) 117 “The timeless instant passed; the pendulum reversed its swing. In an empty room, floating amid the fires of a double star twenty thousand light-years from Earth, a baby opened its eyes and began to cry.” (CLARKE, 2000. p.291)

151

tratar de um ser de pura energia, um ser transmutado, interpretar a Criança-Estrela de forma

metafórica, o que, como veremos, é perfeitamente possível no filme.

Capítulo 46: Transformação (Transformation)

Na frente do recém-nascido aparece um monolito transparente, cristalino (igual ao

da primeira parte do romance). O bebê sabe que passa por um novo nascimento, e vê tudo

se desfazer ao seu redor. Ele não precisa mais do Portal das Estrelas para ir de um canto a

outro da galáxia, ele agora é parte da entidade que o criou. Ele é sobre-humano. O bebê é

agora uma das entidades de que o narrador fala no Capítulo 32 do romance, um ser livre da

prisão da matéria, uma Criança-Estrela. Sabendo que o bebê é um ser avançado em relação

ao ser humano, a interpretação, que se pode ter no final do filme, de que o ser humano é um

feto diante do universo, não é válida no romance.

Capítulo 47: Criança-Estrela (Star-Child)

A Criança-Estrela volta ao planeta Terra. Ele tem superpoderes, é o mestre do

mundo. Ao ver as bombas nucleares que orbitam a Terra, a Criança-Estrela as desativa.

Mil milhas abaixo, ele percebeu que uma carga adormecida de morte havia acordado, e estava se ativando lentamente em sua órbita. As energias débeis que ela continha não eram ameaça para ele; mas ele preferia um céu mais limpo. Ele colocou à frente seu desejo, e os megatons circulantes floresceram numa detonação silenciosa que trouxe uma falsa e breve alvorada para metade do globo adormecido.118

118 “A thousand miles below, he became aware that a slumbering cargo of death had awoken, and was stirring sluggishly in its orbit. The feeble energies it contained were no possible menace to him; but he preferred a cleaner sky. He put forth his will, and the circling megatons flowered in a silent detonation that brought a brief, false dawn to half the sleeping globe.” (CLARKE, 2000. p. 297)

152

Além desse trecho ter uma linguagem poética, ao descrever uma “explosão” como um

“florescer” (o que constitui uma metáfora), ele oferece duas possibilidades de interpretação.

A Criança-Estrela pode ter detonado as bombas e destruído a Terra, ou pode ter desativado

as bombas. Leonard F. Wheat, autor do livro Kubrick’s 2001: A Triple Allegory, escolhe a

primeira opção como verdadeira:

No romance de Clarke, a última cena mostra a criança-estrela detonando as bombas nucleares que orbitam a terra. Isso é algo que eu e você não podemos fazer, pelo menos não figurativamente estalando nossos dedos.119

No entanto, essa não era a intenção de Clarke. Para ele, havia ficado claro que a Criança-

Estrela tinha desarmado as bombas, como explica David Hughes, citando o próprio Clarke.

Como Clarke observou. ‘Muitos leitores interpretaram o parágrafo final como se ele [a Criança-Estrela] tivesse destruído a Terra... essa idéia nunca me veio à mente; parece ficar claro que ele detonou as bombas nucleares sem causar dano’.120

Mas, mesmo Clarke achando que só há uma forma de entender o final do seu livro, é

possível interpretar das duas formas. Essa arbetura no final, no entanto, não é tão poética

quanto a do filme, ela oferece duas possibilidades nítidas, ao contrário da obra de Kubrick,

que não oferece caminhos, apenas perguntas.

Em 2001-filme, logo após a viagem pelo desconhecido, vemos a imagem do interior

de um quarto, de dentro da cápsula espacial de Bowman. Em close, aparece o rosto de

119 “In Clarke’s novel, the last scene has the star-child detonating the nuclear bombs orbiting the earth. That’s something you and I can’t do, at least not by figuratively snapping our fingers.” (WHEAT, 2000. p. 33) 120 “As Clarke noted. ‘Many readers have interpreted the final paragraph to mean that he destroyed Earth... this idea never occurred to me; it seems clear that he triggered the orbiting nuclear bombs harmlessly’.” (HUGHES, 2001. p. 156)

153

Bowman, tremendo. A cápsula está dentro do quarto, e é o único objeto destoante na

imagem (figura 53). É mister notar que o chão do quarto é igual ao teto da Estação Espacial

Um. Essa semelhança nos mostra que o quarto de hotel não é tão absurdo (não tem portas

ou janelas), e que pode ser extremamente realista, se tomarmos aquele tipo de construção

como típica do futuro. Ou seja, a semelhança entre o teto da Estação e o chão do quarto de

hotel (ambos são a fonte de iluminação de seus respectivos ambientes) aumenta as

possibilidades de interpretação, pois o quarto de hotel pode ser, comprovadamente, somente

um quarto de um hotel do futuro121. Os quadros no quarto não são os descritos no romance

(Christina’s World’s, de Wyeth, e Bridge at Arles, de Van Gogh). A imagem mostrada de

dentro da cápsula é a visão de Bowman, o ponto de vista dele. Vemos, desse mesmo ponto

de vista, o próprio Bowman, ainda vestido nos trajes espaciais (figura 54). Vamos enumerar

as aparições de Bowman, para simplificar a descrição. O primeiro Bowman, o que olha de

dentro da cápsula é Bowman-1, o segundo, o que fica em pé em frente a cápsula, é

Bowman-2. Em seguida, vemos o rosto de Bowman-2 em close, ele é mais velho que

Bowman-1, deve ter cerca de 50 anos. Quando a câmera mostra o ponto de vista de

Bowman-2, a cápsula já não está mais no quarto. Bowman-2 anda pelo quarto, enquanto

sons estranhos são ouvidos pelo espectador (e, provavelmente por Bowman também). Os

sons enigmáticos de György Ligeti ajudam a compor o clima de mistério, de

estranhamento, da cena. Bowman-2 verifica o banheiro, tudo parece perfeitamente normal.

Ele se olha no espelho e parece surpreso, talvez com sua idade. A respiração dele se torna

perceptível. A câmera, do ponto de vista dele, se desloca para a porta do banheiro e revela,

do lado de fora, um velho sentado a uma mesa, comendo. Bowman-2 fica perplexo,

121 Vale ressaltar que o ano 2001 do filme e do romance não é nosso ano 2001, e, por isso, permanece no futuro.

154

provavelmente por ter reconhecido ele mesmo mais uma vez. O velho olha para trás, é

Bowman-3 (figura 55). Ele tem entre setenta e oitenta anos, e está usando um robe preto.

Bowman-3 se levanta e anda em direção ao banheiro, não há mais ninguém lá. Ele volta a

comer. A mesa é composta por objetos e comidas perfeitamente normais: pratos e talheres,

verduras, pão, vinho. Bowman-3 derruba, por acidente, a taça de vinho. Nessa cena temos

um vislumbramento, uma antecipação (foreshadowing), através de uma metáfora, do que

vai ocorrer a seguir. A taça que se quebra pode representar o corpo, que se parte, e o vinho

pode representar a alma, que se liberta da prisão da matéria. Bowman-3 se abaixa para

pegar a taça e percebe que há alguém deitado na cama. A câmera mostra a parte de trás da

cabeça de Bowman-3 olhando para Bowman-4, que repousa na cama (figura 56). Nesse

enquadramento, há, como já dissemos, a utilização de um recurso do cinema

hollywoodiano de forma não-convencional, pois não é uma pessoa que olha para outra, e

sim, uma pessoa que olha para si mesma. Bowman-4 aparenta cerca de cem anos, ele olha

para a frente e levanta a mão com dificuldade. Aparece um monolito flutuando a sua frente,

ele tenta tocá-lo (figura 57). O monolito é mostrado de frente, do ponto de vista de

Bowman-4 (figura 58). A seguir vemos, em cima da cama, um feto envolto em uma esfera

de energia, de luz (figura 59). Começa a música “Also Sprach Zarathustra” novamente, a

mesma da cena em que o homem-macaco dá o primeiro passo para se tornar um ser

humano. Podemos, por conta da música, igualar o salto evolucional dado pelo homem-

macaco ao salto dado agora pelo homem, que se transforma em outro ser. O feto aparece

em close, e a câmera assume seu ponto de vista, que mostra o monolito (figura 60). A

imagem se aproxima da tela, tudo fica escuro. Aparecem a Lua e a Terra, e, logo após, o

feto mais uma vez, junto à Terra (figura 61). A última imagem do filme é um close do feto,

olhando diretamente para a câmera (figura 62).

155

Enquanto o final do romance deixa duas possibilidades de interpretação, o filme

deixa inúmeras. Podemos entender toda a cena metaforicamente, ou seja, o homem, diante

dos mistérios do universo, mostra-se ainda um feto. Podemos também, de acordo com a

forma como se entende o monolito, interpretar que Deus (ou deus) transforma o homem

mais uma vez, dá um segundo sopro de vida ao homem, transformando-o num ser divino.

Outra possibilidade é uma mudança perpretada pelos alienígenas, e, dessa forma, o

monolito seria realmente um artefato alienígena. O filme funciona também como uma

alegoria (comprovada pelo uso da música “Also Sprach Zarathustra”) de Assim falou

Zarathustra, de Nietzsche, em que o homem passa por três estágios: homem-primitivo,

homem e super-homem (que seria a Criança-Estrela)122. Bowman pode ter se tornado

também um arauto de Deus, que volta à Terra para perpetrar seu plano divino. Há várias

outras possibilidades de entendimento do final do filme, que se mostra completamente

aberto a múltiplos sentidos.

Wheat (2000) apresenta uma leitura interessante da parte final de 2001-filme.

Verificando as inúmeras imagens do filme com conotação sexual, ele compara a viagem

pelo desconhecido como sendo um espermatozóide (a cápsula espacial) atravessando as

trompas de falópio (o Portal das Estrelas) e chegando ao óvulo (o quarto de hotel). Depois

da divisão celular (as várias aparições de Bowman) e do desenvolvimento do feto (o

envelhecimento de Bowman), nasce a criança (a Criança-Estrela). No entanto, Wheat diz

que o final tem que ser visto simbolicamente, o que não condiz com a realidade. É lógico

que, mesmo sendo bastante estranhas as imagens do final, é possível tomá-las em seu

sentido literal, ou seja, Bowman chega realmente àquele local, àquele quarto de hotel

(sendo ele, por exemplo, uma construção dos ETs), e ele pode, também, ter-se multiplicado 122 Essa interpretação é detalhada em WHEAT, 2000.

156

(sendo manipulado pelos ETs), e, por fim, ele pode ter-se transformado naquele ser que

parece um feto. Essa leitura é completamente literal, não há simbolismo, não há metáfora,

não há alegoria. Então, além das leituras simbólicas, metafóricas, que Wheat reconhece, há

também uma leitura literal, inclusive no final do filme. Para Wheat, também as várias

aparições de Bowman e seu envelhecimento não podem ser tomadas literalmente. Já está

claro que é possível, sim, tomar toda a cena literalmente; através da influência e da

tecnologia alienígena, aqueles acontecimentos que parecem mágicos podem ter sido

efetivados na realidade. É mister lembrar o aforismo criado por Clarke: “qualquer

tecnologia avançada o bastante é indistinguível da mágica” (“any technology advanced

enough is indistinguishable from magic”).

157

Conclusão

O Cinema de Poesia é aquele que subverte as leis do cinema comum, de sintaxe

conhecida pela grande maioria dos espectadores de cinema. Assim, quando uma

característica do Cinema de Poesia é absorvida pelo cinema comum, de prosa, ela passa a

ser entendida por todos, de forma que não faz mais parte do Cinema de Poesia. Nisso

reside, também, o poder de um filme como 2001, que, embora já se tenham passado

décadas desde que foi feito, ainda não teve suas características incorporadas pelo Cinema

de Prosa. A leis do Cinema de Poesia mudam, e é preciso verificar, nos anos que seguem,

que leis Hollywood incorporou, e, mais importante, que recursos cinematográficos são

incorporados pelo grande público, de forma que sejam percebidas novas leis no Cinema de

Poesia. Mas a característica principal do Cinema de Poesia não muda, pois a multiplicidade

de leituras é típica da poesia desde o seu início; sendo assim, embora leis específicas sejam

mudadas, a lei geral, a da multiplicidade de leituras, permanece para sempre.

2001-filme tem várias interpretações distintas, e pode ser visto de várias maneiras:

como um filme de ficção científica, como um filme de discussão filosófica, como uma obra

poética. Mas o romance, retido somente na forma da ficção científica, explicando os fatos a

partir da influência alienígena, reduz as leituras possíveis da fábula de 2001. Ter

conhecimento dessa “explicação” (da “leitura” que o romance faz da fábula de 2001) por

trás da obra também prejudica a apreciação do filme, pois, sendo de Clarke, que é o co-

autor do roteiro, o romance pode ser tomado como “explicação oficial” para o filme. Esse

não é o caminho. São duas obras distintas, embora resultantes do mesmo texto original, o

158

roteiro. Ter as obras como distintas é primordial para se entender como o filme funciona

por si só. Não se queira, só por conhecer a “explicação” de Clarke sobre os acontecimentos

de 2001-filme, que o filme seja visto dessa forma apenas. O filme deve ser visto como uma

obra que é passível de ser interpretada da forma como é mostrada a fábula no romance,

também, entre várias outras formas, e deve-se ter em mente que nenhuma delas, sozinha, é

tão poética quanto a existência de todas elas juntas.

Alguns autores (ou críticos) que falam sobre 2001-filme, mesmo percebendo que a

obra possui mais de uma possibilidade de leitura, terminam reduzindo o filme a somente as

possibilidades que eles pensaram, as que eles têm em mente. É o caso de Leonard F. Wheat,

que reconhece três possíveis leituras alegóricas, mas descarta todas as outras.

Outros símbolos foram reconhecidos mas mal-interpretados. Ao contrário do que Geduld escreve, o veículo esférico lunar que vai da estação espacial para a lua não é um óvulo; (...) E ao contrário do que Agel sugere, a quebra da taça de vinho na última ceia de Bowman não é um símbolo judeu.123

Wheat descarta essas possibilidades para comprovar as dele. No entanto, isso não é

necessário, tanto os símbolos vistos por Geduld e por Agel quanto os vistos por Wheat

podem ser válidos, desde que comprovados dentro da obra, comprovados a partir do

próprio filme.

No entanto, Wheat, de certa forma, reconhece a diferença básica entre o romance e

o filme.

123 “Other symbols have been recognized but misinterpreted. Contrary to what Geduld writes, the spherical moon lander that goes from the space station to the moon is not an ovum; (…) And contrary to what Agel suggests, the wine glass’s breaking at Bowman’s last supper is not a Jewish symbol.” (WHEAT, 2000. p. 11)

159

O romance também perde a maior parte do simbolismo de Kubrick, e não apenas porque muito do simbolismo é visual. Clarke aparentemente não estava inteirado na maioria dos símbolos de Kubrick, embora a verdade possa ser que Clarke ou não estava interessado na parte alegórica da história ou estava respeitando os segredos de Kubrick.124

Mas, mesmo reconhecendo essa diferença, ele explica a fábula do filme e termina

reduzindo seu sentido a uma só possibilidade. Quando, na verdade, de acordo com a

interpretação, a fábula pode ser descrita de várias formas.

Vamos reescrever o resumo do enredo do filme de acordo com três possíveis

leituras, a título de exemplo.

a) Influência alienígena

Na pré-história, alienígenas visitam a Terra e deixam aqui um monolito negro, uma

máquina que afeta o cérebro dos homens-macacos e os torna mais evoluídos, de forma que

eles possam matar para se alimentar e para se defender.

Na Lua, no futuro, cientistas encontram um monolito negro (o mesmo da pré-

história ou um outro igual). O monolito, quando ativado pela energia solar, envia um sinal

para Júpiter.

Dezoito meses depois, a Discovery vai à Júpiter. Hal, o computador da nave,

tornado humano (por influência do monolito na Lua, ou pela próximidade do monolito em

Júpiter, ou simplesmente pela evolução natural da inteligência artificial), comete um erro e,

por orgulho, tenta esconder seu erro, matando os tripulantes da nave. Bowman consegue

sobreviver e desliga o computador.

124 “The novel also loses most of Kubrick’s symbolism, and not just because so much of Kubrick’s symbolism is visual. Clarke apparently was not privy to most of Kubrick’s symbols, although the truth may be that Clarke either wasn’t interested in the allegorical part of the story or was respecting Kubrick’s secrets.” (WHEAT, 2000. p. 29)

160

Bowman chega a Júpiter e entra em um Portal das Estrelas, um monolito gigante

que o leva, através de túneis no espaço, para um planeta alienígena. Lá, os seus anfitriões,

(quatro milhões de anos mais avançados tecnologicamente em relação a quando chegaram à

Terra pela primeira vez) compõem um quarto de hotel para ele se sentir bem, e o

transformam num ser de pura energia, igual a eles.

b) Evolução do homem

Na pré-história, os homens-macacos passam fome e sede. Um elemento

desconhecido (o monolito, que marca um momento histórico) faz com que eles evoluam, e

dêem o primeiro passo em direção à humanidade.

Na Lua, no futuro, cientistas se deparam mais uma vez com o elemento

desconhecido. Outro passo evolutivo é dado. E o caminho para a evolução final é indicado.

Dezoito meses depois, a Discovery vai à Júpiter. Hal, o computador da nave,

tornado humano (dentro do próprio caminho evolutivo do homem) comete um erro e fica

louco, matando os tripulantes da nave. Bowman consegue sobreviver e desliga o

computador, terminando uma possível linha evolutiva.

Bowman chega a Júpiter e, passando por um caminho nunca trilhado pela

humanidade, chega a um lugar reconhecível. Mais uma vez o elemento desconhecido causa

uma evolução no homem, tranformando Bowman num outro ser. Ele retorna para a Terra,

pois a evolução maior é um retorno ao lar.

c) Influência divina

Na pré-história, Deus (ou deus) dá um presente aos homens-macacos. Algo que os

torna mais evoluídos, humanos, de forma que eles possam matar para se alimentar e para se

defender.

161

Na Lua, no futuro, cientistas encontram o presente dado por Deus aos homens. O

objeto indica o caminho para se chegar a Deus.

Dezoito meses depois, a Discovery vai à Júpiter. Hal, o computador da nave,

tornado humano, por influência divina, comete um erro, e mata os tripulantes da nave.

Bowman consegue sobreviver e desliga o computador.

Bowman chega a Júpiter e entra em um Portal que o leva para mais perto de Deus.

Lá, Deus cria um local adequado para transformá-lo em seu arauto. Deus transforma

Bowman num ser divino.

Cada uma dessas leituras é comprovada no próprio filme. A segunda leitura, a

questão da evolução do homem, é nítida e facilmente perceptível. A primeira leitura, que

diz respeito à influência alienígena, tem sua prova não só no romance de Clarke e no roteiro

de Kubrick e Clarke, mas também no fato de os cientistas tomarem o artefato como “prova

de vida inteligente fora da Terra”. A terceira leitura (influência divina) pode ser contestada,

mas há várias formas de comprová-la. É fácil perceber como na literatura cristã, por

exemplo, Deus age diretamente com os homens, seja mandando-os fazer algo ou

entregando-lhes um presente como as tábuas com os dez mandamentos. Tendo em mente

um Deus que age diretamente, não é difícil aceitar que Ele daria um presente como o

monolito (representando o “sopro de vida”) aos homens-macacos, para que eles se tornem

homens. Podemos recorrer também a outros autores que já falaram sobre 2001, como Piers

Bizony:

As criaturas estão tão perto de serem humanos que elas têm impulsos religiosos. Uma laje que elas subitamente encontram os coloca em

162

uma reverência apavorada enquanto a tocam, e o filme emite um ruído colossal de canto.125

Outros críticos também já relacionaram 2001 ao divino, principalmente ao interpretar o

monolito como uma representação de um deus, como é o caso de Hoch, citado por Wheat:

Ele [Hoch] diz que o monolito (os quatro vistos como um) “lembra” ou é “parecido” com uma entidade mítica (sobrenatural), como o Deus acima do Deus do teísmo de Paul Tillich (Paul Tillich’s God above God of theism). Mas Hoch está errado. Para começar, o Deus acima de Deus de Tillich é mais um Deus figurativo, a humanidade, do que uma entidade sobrenatural.126

Não só Hoch está certo em interpretar o monolito como uma representação de Deus (um

deus figurativo), mas também o próprio Wheat, sem saber, nos dá outra possibilidade

plausível: além de representar um Deus figurativo, o monolito pode representar, também,

um Deus real, uma entidade sobrenatural. A maior prova da relação de 2001 com o divino é

dada, no entanto, pelo próprio Kubrick, em entrevista cedida à revista Playboy americana.

PLAYBOY: por falar no sentido do filme – se você permite retornar à interpretação filosófica de 2001 – você concorda com aqueles críticos que o chamam de um filme profundamente religioso? KUBRICK: eu digo que o conceito de Deus está no coração de 2001 – mas não uma imagem de um Deus tradicional, antropomórfico.127

125 “The creatures are so nearly human that they have religious impulses. A slab that they suddenly come upon sends them into panicked reverence as they touch it, and the film emits a colossal din of chanting.” (BIZONY, 2000. p. 64) 126 “He says the monolith (the four viewed as one) ‘resembles’ and is ‘like’ a mythical (supernatural) entity, such as Paul Tillich’s God above God of theism. But Hoch is wrong. To begin with, Tillich’s God above God is a figurative God, humanity, rather than a supernatural entity.” (WHEAT, 2000. p. 33) 127 “PLAYBOY: Speaking of what it’s all about – if you’ll allow us to return to the philosophical interpretation of 2001 – would you agree with those critics who call it a profoundly religious film? KUBRICK: I will say that the God concept is at the heart of 2001 – but not any traditional, anthropomorphic image of God.” (in: SCHWAM, 2000. p. 274)

163

Não se trata, então, do Deus de barbas brancas do imaginário cristão, mas de um Deus real,

uma entidade sobrenatural, qualquer que seja sua natureza. E, como já dissemos, além de

um ser real, é possível também interpretar como sendo um ser figurativo, um Deus

figurativo.

Além dessas três leituras, aqui apresentadas, Wheat nos proporciona três diferentes

destas, que, ao contrário do que ele diz, não são simplesmente alegorias, são possíveis

formas de se ver a obra por inteiro, de se interpretar a obra. Wheat propõe três alegorias: A

Odisséia (2001 seria, para nós, não somente uma alegoria da Odisséia, mas uma releitura da

obra de Homero); A Simbiose Homem-Máquina (um tema que, para nós, não se configura

como alegoria, mas como uma discussão filosófica sobre o futuro da humanidade);

Zarathustra (além da alegoria em relação à obra de Nietzsche, para nós, 2001 funciona

também como uma releitura da obra, e como um texto que discute a filosofia de Nietzsche).

2001-filme, dentro dos padrões do Cinema de Poesia, mostra-se aberto a várias

interpretações. Como já foi dito, essa é a característica principal desse tipo de cinema. O

Cinema de Poesia, como foi visto no Capítulo V, tem várias características específicas, que,

determinadas como categorias, compõem a essência desse Cinema. De forma bastante

sintética, vamos citar aqui as categorias e, sempre que possível, lembrar os exemplos que

ilustram cada uma delas.

Algumas categorias são gerais, dizem respeito à obra inteira, não são perceptíveis

em uma cena específica, mas sim no filme como um todo:

01- ambigüidade temática (várias possibilidades de interpretação);

02- criação de efeitos tanto “lógico-informativos” quanto “sensório-emocionais”;

03- sugestão de sentido (Zonas de Indeterminação);

164

04- uso de vazios, lacunas (que tornam a narrativa fragmentada, episódica);

05- irresolução ou inconclusão dos acontecimentos, dos episódios, das cenas;

06- existência clara do estilo do autor;

Outras categorias são específicas, podem ser percebidas em alguns momentos do filme, em

determinadas cenas, objetos, personagens ou partes do cenário:

01- uso de figuras de linguagem, principalmente metáfora e metonímia;

Exemplos – metáfora: o osso e a bomba nuclear; metonímia: o olho de Hal que representa

Hal por completo.

02- metáforas visuais;

Exemplos – a nave-rosto humano que pousa na Lua; a Discovery-espermatozóide; os

hibernáculos-sarcófagos.

03- “rima” (simetria visual entre objetos num mesmo quadro, ou entre um objeto

num quadro e outro no quadro seguinte);

Exemplos – os alinhamentos de planetas, luas e estrelas; o osso e a bomba.

04- concatenação significativa (montagem como “conflito”);

Exemplos – a montagem osso + bomba; a montagem paralela do homem-macaco

destruindo os ossos e da anta caindo ao chão, abatida.

05- estranhamento entre planos (e no geral);

Exemplos – a junção osso-bomba; o monolito em todas as cenas em que aparece; a

Criança-Estrela.

06- uso significativo da música e do som em geral;

Exemplos – a música no “balé cósmico”; a respiração dos astronautas; os barulhos no

quarto de hotel.

165

07- uso significativo da cor;

Exemplos – a paridade de cores entre o olho de Bowman e o mundo desconhecido; os

contrastes (como antíteses) criados entre o negro do espaço e o branco da Discovery, e

entre o negro do robe de Bowman-3 e o branco da roupa de Bowman-4.

08- mistério (que não se resolve);

Exemplos – a natureza dos monolitos; o envelhecimento e duplicação de Bowman; a

Criança-Estrela.

09- tempo e espaço pouco definidos;

Exemplos – o salto cronológico de quatro milhões de anos; o envelhecimento de Bowman;

a viagem pelo Portal das Estrelas; a localização e natureza do quarto de hotel.

10- disparidade entre o “tempo” da informação de certa imagem e o tempo que essa

imagem toma na tela;

Exemplos – o balé cósmico; os closes demorados no olho de Hal (descrição);

11- utilização de recursos cinematográficos tradicionais (enquadramentos, ângulos,

cortes, etc.) de forma não-tradicional, não-convencional;

Exemplos – montagem paralela, usada, em 2001, com cenas que não se passam no mesmo

momento (destruição dos ossos – abatimento da anta); enquadramento em que uma

personagem olha para outra, usado, em 2001, nas cenas em que Bowman olha para si

mesmo.

12- utilização de um objeto como personagem;

Exemplos – o monolito; Hal (Hal não deixa de ser um objeto, um computador)

13- uso do discurso indireto livre (câmera subjetiva indireta livre).

Exemplo – durante a viagem pelo desconhecido.

166

Podemos perceber, através do que foi exposto até aqui, que o Cinema de Poesia que

descrevemos não se iguala ao de Pasolini, ao de Buñuel, ou ao de qualquer outro que tenha

falado sobre o tema (ou sobre o cinema em geral). Mas, mesmo não se igualando a nenhum

deles, possui características de cada um. Nem Pasolini, nem Buñuel (e nenhum outro autor)

descreve o Cinema de Poesia como um tipo de cinema que se desvia do cinema tradicional.

Se, para nós, o Cinema de Poesia nasce do uso significativamente oposto de recursos, ou

seja, se os recursos cinematográficos são usados de forma oposta à do Cinema de

Hollywood, então tudo que se mostra como desvio desse cinema, desde que seja desvio

significativo, é parte do Cinema de Poesia. No entanto, o Cinema de Arte possui muitos

desvios em relação ao cinema de Hollywood. E isso torna o Cinema de Poesia e o Cinema

de Arte duas formas parecidas de se fazer cinema. No entanto, as duas se diferenciam por

motivos claros. A obra do Cinema de Arte possui somente uma leitura, há somente uma

forma de se ver a narrativa, de se interpretar os fatos ocorridos no filme. Já no Cinema de

Poesia, a multiplicidade de significados, de interpretações, de leituras, de sentidos, é

obrigatória, e é o principal elemento que diferencia esse tipo de cinema do Cinema de

Hollywood e do Cinema de Arte.

Comparando os traços básicos, podemos chegar a um quadro sucinto das

características básicas dos três tipos de cinema aqui descritos. Antes, gostaríamos de propor

uma nova nomenclatura para esses tipos de cinema: o Cinema de Hollywood, ou Cinema

Clássico (Cinema de narrativa clássica), seguindo a sugestão de Pasolini, poderia se chamar

de Cinema de Prosa; o Cinema de Arte, que, como vimos, não é o termo mais adequado,

poderia se chamar Cinema de Personagem; e o último tipo, seguindo Pasolini, chama-se

Cinema de Poesia.

167

Podemos perceber, então, que o Cinema de Prosa é objetivo, centrado na

personagem, que é levada pela trama, que domina o filme; e que a fábula fica em primeiro

plano, há uma narrativa encadeada logicamente (não-episódica), e não possui final

“aberto”.

Já o Cinema de Personagem é subjetivo, centrado na personagem, que domina a

trama e a diegese do filme, e que a personagem fica em primeiro plano, há uma narrativa

episódica regida, dominada, por uma personagem, e tem um final “aberto”, mas que

apresenta caminhos nítidos (normalmente dois apenas).

O Cinema de Poesia é objetivo e subjetivo, é centrado nos possíveis sentidos, que

dominam a narrativa, o espetáculo sensório e a mensagem (como termo de Jakobson) ficam

em primeiro plano, a narrativa é episódica sem domínio de uma personagem, e o final é

“aberto” (ambíguo), não mostrando caminhos possíveis, mas possíveis formas de se

interpretar.

O filme do Cinema de Personagem possui um final “aberto” em que a trama acaba

antes da fábula ser completada, por isso o espectador tem dúvidas sobre o que vai acontecer

a seguir, que não é mostrado no filme. Já no Cinema de Poesia, a trama e a fábula terminam

no mesmo momento, mas o final deve ser interpretado, não fica explícito o que aconteceu,

por isso o espectador deve interpretar o ocorrido.

Tendo em vista essas características, pode-se fazer uma releitura dos filmes de

personagem (chamados filmes de arte), de forma que se perceba como muitos deles são, na

verdade, filmes de poesia. Essa distinção permite compreender melhor as obras

cinematográficas, de modo que os filmes de poesia podem ser, a partir da teoria aqui

exposta, melhor entendidos e analisados com mais precisão.

168

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Fontes secundárias:

2010: O ano em que faremos contato. Direção de Peter Hyams. EUA: 1984. 1 DVD. son., color., leg. Baseado no romance 2010: Odyssey two, de Arthur C. Clarke.

174

“Nenhuma obra de arte jamais é terminada, ela é apenas abandonada”

- anônimo, atribuído a Leonardo DaVinci e a outros.

175

ANEXOS

Figura 1: alinhamento entre a Lua, a Terra, e o Sol.

Figura 2: simetria no título.

176

Figura 3: “poesia” da natureza, no cenário da pré-história.

Figura 4: “poesia” da natureza, no cenário da pré-história.

Figura 5: os homens-macacos convivem pacificamente com as antas.

177

Figura 6: os homens-macacos ao redor do monolito.

Figura 7: o monolito em alinhamento com o Sol e a Lua.

Figura 8: Moonwatcher em frente a uma pilha de ossos de anta.

178

Figura 9: o braço de Moonwatcher em close.

Figura 10: Moonwatcher quebra os ossos.

Figura 11: Moonwatcher esmaga o crânio da anta.

179

Figura 12: a anta cai ao chão.

Figura 13: rosto de Moonwatcher em close.

Figura 14: o vermelho da carne em contraste com o tom do pêlo do homem-macaco.

180

Figura 15: Moonwatcher mata o líder inimigo.

Figura 16: Moonwatcher atira o osso para cima.

Figura 17: o osso é lançado para o alto.

181

Figura 18: um objeto no espaço, que parece ser um satélite ou uma nave espacial.

Figura 19: a Estação Espacial Um, orbitando em redor da Terra.

Figura 20: a espaçonave Orion III, com o logotipo da Pan-Am.

182

Figura 21: dentro da Orion, a caneta flutua perto de Floyd.

Figura 22: o braço de Floyd também flutua.

Figura 23: o branco e o vermelho no interior da Estação, bem como o teto iluminado.

183

Figura 24: uma das espaçomoças gira e fica de cabeça para baixo.

Figura 25: a espaçomoça entra na cabine do piloto de cabeça para baixo

Figura 26: a câmera gira, deixando a espaçomoça na “posição correta”.

184

Figura 27: a semelhança entre a nave que pousa na Lua e um rosto humano.

Figura 28: as comportas na colônia lunar se abrindo como o desabrochar de uma flor.

Figura 29: simetria na sala de conferências.

185

Figura 30: os astronautas ao redor do artefato na Lua.

Figura 31: o monolito sendo “tocado” pelo Sol, mais uma vez a imagem é simétrica.

Figura 32: a Discovery e sua semelhança com um espermatozóide.

186

Figura 33: os hibernáculos, semelhantes a sarcófagos.

Figura 34: o olho de Hal.

Figura 35: o mundo é mostrado do ponto de vista de Hal, numa câmera subjetiva.

187

Figura 36: o olho de Hal, em close e, no reflexo, o que ele vê.

Figura 37: o olho de Hal em segundo plano.

Figura 38: o olho de Hal no momento em que falam em desligá-lo.

188

Figura 39: a visão de Hal, lendo os lábios dos astronautas.

Figura 40: a cápsula se aproximando de Poole, como um monstro.

Figura 41: closes cada vez maiores no olho de Hal.

189

Figura 42: os closes usados para aproximar o olho de Hal de um olho humano.

Figura 43: os hibernáculos se parecem mais com sarcófagos, com os astronautas mortos.

Figura 44: Bowman “dentro” de HAL, prestes a desligá-lo.

190

Figura 45: a imagem de Bowman refletida no olho de Hal, no momento da sua morte.

Figura 46: alinhamento entre Júpiter e várias de suas luas.

Figura 47: Júpiter, várias luas e o monolito gigante, todos mantendo a mesma distância.

191

Figura 48: as luzes do Portal, nada parecidas com estrelas.

Figura 49: o mundo desconhecido como visto por Bowman.

Figura 50: o olho de Bowman nos mesmos tons do mundo desconhecido.

192

Figura 51: o mundo desconhecido como visto por Bowman.

Figura 52: o olho de Bowman nos mesmos tons do mundo desconhecido.

Figura 53: a cápsula espacial dentro do quarto distoa do resto dos objetos e do cenário.

193

Figura 54: do ponto de vista de Bowman-1, vemos Bowman-2.

Figura 55: o velho, Bowman-3, olha para trás.

Figura 56: Bowman-3 olha para Bowman-4, que repousa na cama.

194

Figura 57: o monolito aparece na frente de Bowman-4.

Figura 58: o monolito é mostrado do ponto de vista de Bowman-4.

Figura 59: o feto envolto em uma esfera de energia.

195

Figura 60: o monolito se aproxima da câmera, que assumiu o ponto de vista do feto.

Figura 61: o feto junto à Terra.

Figura 62: o feto olha diretamente para a câmera, na última imagem do filme.