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Ana Paula von Bochkor Podcameni Uma análise wittgensteiniana do processo de construção do significado da prática de intervenção humanitária nos anos noventa. Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio. Prof. Mônica Herz Orientadora Rio de Janeiro Dezembro de 2007

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Ana Paula von Bochkor Podcameni

Uma análise wittgensteiniana do processo de construção do significado da prática de intervenção

humanitária nos anos noventa.

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-

Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio.

Prof. Mônica Herz Orientadora

Rio de Janeiro Dezembro de 2007

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Ana Paula von Bochkor Podcameni

Uma análise wittgensteiniana do processo de construção do significado da prática de intervenção

humanitária nos anos noventa.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Professora Mônica Herz Orientador

Instituto de Relações Internacionais (PUC-Rio)

Professor Danilo Marcondes Departamento de Filosofia (PUC-Rio) Internacionais (UnB)

Professor José Maria Gomez Instituto de Relações Internacionais (PUC-Rio)

Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 2007

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total

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ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

.

Ana Paula von Bochkor Podcameni

Graduou-se em Ciências Sociais com ênfase em Relações Internacionais pela PUC-Rio em 2003 e ingressou no mestrado em Relações Internacionais ministrado pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) em 2005. Em seus trabalhos acadêmicos simpatiza-se com os temas envolvendo Segurança Internacional e Organizações Internacionais. Adicionalmente, a autora acredita nos ganhos para a disciplina provenientes de trabalhos interdisciplinares, assim mantém-se, constantemente, direcionada a trazer algo de fora dos cânones, a fim de acrescentar ao debate teórico existente.

Ficha Catalográfica CDD:327

Podcameni, Ana Paula von Bochkor Uma análise wittgensteiniana do processo de construção do significado da prática de intervenção humanitária nos anos noventa / Ana Paula von Bochkor Podcameni ; orientadora: Mônica Herz. – 2007. 124 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Relações internacionais – Teses. 2. Intervenção humanitária. 3. Pós Guerra Fria. 4. Conselho de Segurança das Nações Unidas. 5. Tomada de decisão. 6. Indefinição conceitual. 7. Wittgenstein. 8. Jogo de linguagem. 9. Construção de significadoI. Herz, Mônica. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Instituto de Relações Internacionais. III. Título.

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Em memória ao meu pai, meu primeiro e único grande herói, obrigada pelos anos de dedicação, incentivo, orientação e

muito amor. Agradecimentos

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Primeiramente à minha orientadora, Prof. Dr. Mônica Herz pela liberdade, confiança e estímulo referente ao presente trabalho, além da indiscutível amizade e compreensão em momentos difíceis. Ao Professor Dr. Danilo Marcondes de Souza Filho, pelas aulas inspiradoras e pela incondicional ajuda na pesquisa realizada. Ao Professor Dr. Noel Struchiner pelas aulas cujas discussões foram fundamentais à realização do trabalho. Aos professores do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, pela chance de crescer academicamente e humanamente junto a uma equipe ilustre. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão da bolsa de mestrado e a possibilidade de dedicação exclusivamente às atividades acadêmicas. Á Coordenação Central de Cooperação Internacional da PUC-Rio pela oportunidade inexpressível de aprofundar minha pesquisa de mestrado na Universidade Brown cuja experiência veio a atuar na ampliação de minha visão ao mundo acadêmico das Relações Internacionais. Á todos os professores da PUC pelo acompanhamento e incentivo. Aos funcionários do Instituto de Relações Internacionais, em especial, Vera Lira e Luciana Varanda pela incansável ajuda e carinho durante a experiência do mestrado. Ao querido amigo Pedro Cavalcante pelas idéias e correções que permitiram iluminar e melhor lapidar as formas desse trabalho. Ao papai por tudo que tenho, inclusive o gosto pela pesquisa e coragem de se engajar em tais desafios. Á minha mãe Vera pela constante força e minha irmã Gabriela, pelo amor e incentivo nessa e em muitas outras jornadas. .Ao Ralph, meu filho canino que participou de todos os processos da presente dissertação. Ao Gabriel, pelo amor constante e a possibilidade de acreditar em mim, cada vez mais.

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Resumo

Podcameni, Ana Paula von Bochkor; Herz, Mônica Machado. Uma análise

wittgensteiniana do processo de construção do significado das práticas de intervenção humanitária nos anos noventa. Rio de Janeiro, 2007, 124p. Dissertação Mestrado – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Essa dissertação visa analisar o debate referente às tomadas de decisão para as

práticas de intervenção humanitária nos anos noventa utilizando instrumentos teóricos

provenientes da Filosofia da Linguagem de Wittgenstein. O foco investigativo se

direciona aos discursos dos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas

(ONU) e como estes, por meio do uso da linguagem, atribuem significados variados aos

conceitos centrais que arquitetam o entendimento acerca desta nova prática, ainda sem

conceituação formal e jurídica na diplomacia e na academia das relações internacionais.

O ponto de partida para a presente análise é a constatação da falta de definição das

práticas de intervenção, assim também, a ausência de critérios que qualifiquem os casos

de violação de direitos humanos para uma intervenção de caráter humanitário. No

entanto, enquanto a maioria dos praticantes e estudiosos de relações internacionais

aponta para os efeitos negativos da ausência de definição conceitual da prática, o

presente trabalho ressalta a condição natural da indeterminação da linguagem e enfatiza

que apenas devido à natureza porosa das palavras e o funcionamento dinâmico e

interativo da linguagem novos caminhos de significação às práticas humanas podem ser

traçados.

Palavras-chave

Intervenção humanitária - pós Guerra Fria - Conselho de Segurança das Nações Unidas - tomada de decisão - indefinição conceitual - Wittgenstein - jogo de linguagem - processo de construção de significado.

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Abstract

Podcameni, Ana Paula von Bochkor; Herz, Mônica (advisor). An analysis of

the wittgensteinian process of meaning construction of the practices of humanitarian interventions in the nineties. Rio de Janeiro, 2007 124p. MSc. Dissertation – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The present work focuses on how the use of language by the Member States of

the United Nation´s Security Council during the decision making for humanitarian

interventions in the post Cold War period, can come to mean different things in

different scenarios. For this job we have used analytical tools concepts from

Wittgenstein´s Philosophy of Language, such as language games, in order to investigate

the relationship between language and things within the dynamics process of meaning

constructing. The investigation space is represented by the Security Council forum and

the negotiations of the possibility of interventions and its terms are the main focus of the

work. The dissertation starts out by characterizing the practice of humanitarian

interventions, and in addition, pointing out the absence of a conceptual definition for its

identification. According to the theoretical framework adopted in the present work,

language carries within its words a natural open texture when investigated the

relationship between words and things, and therefore, meaning can only be constructed

within a language game. By following Wittgenstein´s idea of the language games

dynamics we can begin to understand how can the same words, such as the main

concepts that construct the meaning of the practice of humanitarian interventions, can

mean different thing in different contexts, and therefore, start to wonder if a codification

of a rule for humanitarian intervention can possibly do more warm that the absence of it.

Keywords humanitarian intervention - post Cold War - UN Security Council - decision

making- conceptual indetermination - Wittgenstein - language games - meaning construction process.

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Sumário 1. Introdução 11 2. Apresentação do tema intervenção humanitária 25

2.1 Introdução 25

2.2 Por que e quando uma intervenção humanitária ocorre? 26

2.3 Breve histórico 29

2.4 O desenvolvimento e internacionalização dos direitos humanos 30

2.5 Estrutura do regime internacional dos direitos humanos 33

2.6 A entrada dos direitos humanos no espaço do Conselho e

emergência da prática de intervenção humanitária 39

3. Ambigüidades, imprecisões e indeterminações no entendimento

da prática de intervenção humanitária 42

3.1 Introdução 42

3.2 Identificando e “tratando” a imprecisão do significado da prática

de intervenção humanitária e a tese da indeterminação da linguagem 47

4. As palavras e as coisas: a construção do significado por meio dos jogos de

linguagens wittgenstenianos 56

4.1 Introdução 56

4.2 Jogo de linguagem 62

4.3 Regras do Jogo 65

5. O Conselho de Segurança e o processo de tomada de decisão para uma

intervenção humanitária militar 69

5.1 Introdução 69

5.2 O Conselho de Segurança 71

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5.3 Como o Conselho de Segurança atua? 73

5.4 Regras Procedimentais, Regras Jurídicas e “Regras do Jogo” 78

5.5 Como os membros do Conselho de Segurança da ONU obtêm

informações provenientes do campo? 82

5.5.1. Os Casos de Intervenção Humanitárias Pós Guerra Fria 84

5.5.1.1. Norte do Iraque 84

5.5.1.2. Somália 90

5.5.1.3. Ruanda 95

5.5.1.4. Bósnia e Kosovo 99

6. Conclusão 113

7. Bibliografia 116

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“Those who try to ignore philosophy

succeed in reinventing it.”

(Bunge, 1983)

“Pai, mas o mundo acadêmico é muito

difícil? Como você consegue?”

“It gets better with time, my Pituca”

(Conversa entre papai e eu durante a realização da dissertação)

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1. Introdução

Desde o fim da Guerra Fria, em territórios que abrangem desde o norte do Iraque

ao Timor Leste, uma sucessão de situações urgentes, envolvendo sofrimento em massa,

resultaram em intervenções militares autorizadas pelas Nações Unidas (ONU) e

justificadas, em grande medida, em bases humanitárias. Em todos os casos, o espaço da

Organização foi utilizado como um palco para o desenvolvimento e para a

implementação de missões operacionais, assim como também para a condução de uma

série de debates a respeito da atual prática de intervenção humanitária.

No centro dos debates sobre intervenção humanitária e sua relação com as

Nações Unidas, a instituição responsável pela autorização, pela condução e pelo

controle das missões militares de ajuda reside um paradoxo, evidenciado por Sir Adam

Roberts em “United Nations and Humanitarian Intervention” (2006). Nos primeiros

quarenta e cinco anos, a Organização promovia, fortemente, o principio de não

intervenção de qualquer Estado nos assuntos internos dos demais. O principio de não

intervenção era (e continua sendo) uma regra e um postulado central para as relações

internacionais, e encontra-se devidamente codificado na Carta da ONU, garantindo a

não intervenção e o predomínio dos Estados no espaço internacional. Desde 1945, a

ONU tem, sistematicamente, assegurado sua predominância na sociedade internacional.

Nos anos após a Guerra Fria, percebe-se uma mudança comportamental nas Nações

Unidas, abraçando-se também um padrão intervencionista de ação que tem por base,

mesmo que parcialmente, missões militares com objetivos humanitários.

Normalmente, as missões intervencionistas direcionam seus alvos a países

instáveis e violentos domesticamente, em sua maioria, frutos de uma política agressiva

de incentivo à descolonização a partir dos anos sessenta. Assim, ressalta-se uma

perceptível mudança no comportamento das Nações Unidas nos últimos cinqüenta anos:

de uma instituição mundial orientada pela norma de não intervenção, para uma

organização cujo instrumento principal volta-se à autorização de missões

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intervencionistas com a possibilidade do uso da força (Roberts, 2006, p.71).

Nesse trabalho, entende-se como intervenção humanitária a prática de envio de

tropas militares, além fronteiras, com o objetivo de proteger estrangeiros da violência

humana (Finnemore, 2003, p.54).

A prática de intervenção humanitária mostra-se um objeto interessante para uma

análise de cunho acadêmico por não estar devidamente autorizada pelos documentos

internacionais, podendo ser exercida, de forma legítima pelos Estados, mediante uma

autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) Isso ocorre,

normalmente, frente à constatação que o caso em questão representa uma ameaça à paz

e à segurança internacional.

Pela falta de regras jurídicas a autorização é concedida, ou não, exclusivamente

por meio de um processo político de tomada de decisão. Para que tal autorização possa

ser realizada pelo Conselho, dado que sua autorização não se encontra na Carta da

ONU, os membros devem acordar, previamente, que o presente caso de violação

representa uma ameaça à paz e à segurança internacional. Assim, o caso passa a se

encaixar no Artigo 39 da Carta que aponta a competência política do Conselho em atuar

sobre os casos reconhecidos como ameaças internacionais.

É importante reforçar que o processo de tomada de decisão para uma

intervenção humanitária constitui o objeto central do referente trabalho, cuja hipótese

configura-se na afirmativa que a construção do significado referente às atividades de

intervenção humanitária, desde 1991, ocorre também mediante o uso da linguagem nas

argumentações e discussões dos membros no Conselho de Segurança. O período

histórico escolhido para a presente investigação retrata o início dos anos noventa,

período inicial do pós Guerra Fria, no qual ocorrem as primeiras intervenções

humanitárias em proteção dos direitos humanos.

Como entender esta mudança: a possibilidade de violar as regras de soberania,

não intervenção e não uso da força, em nome de proteção aos direitos humanos?

Diversos autores da área se voltaram a responder esta pergunta. Martha Finnemore

(2003) parte do princípio que os Estados vieram a construir seus interesses de formas

diferentes, atuando de modo menos egoísta que nas épocas anteriores, enquanto

Nicholas Wheeler (2000) acredita que a construção de um aparato normativo que

dificulta o abuso de poder nos exercícios necessários de intervenção possibilitou que a

prática viesse a ser autorizada. Assim, os Estados estariam mais preocupados em

abraçar atividades que se encontram em conformidade com os critérios de legitimidade

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da atual sociedade internacional. Autores como Noberto Bobbio (1992) e Andrew

Linklater (1982) apontam uma inversão de prioridade nas recentes relações

internacionais, de uma forte ênfase nos direitos dos países para uma crescente

preocupação com os direitos e o bem estar da figura humana. Como veremos a seguir,

essa ênfase mais humana atribuída às relações internacionais adquiriu uma

materialização mais evidente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial com a

institucionalização de um regime internacional dos direitos dos homens.

Partindo da constatação dos autores da disciplina Relações Internacionais e de

diplomatas que as razões para uma intervenção humanitária e seus critérios

identificadores não se encontram definidos de forma objetiva, o presente trabalho

propõe uma investigação à condição de imprecisão do entendimento da prática. É

importante apontar que quando os autores e praticantes da política internacional

ressaltam a condição de imprecisão da prática de intervenção humanitária, na maioria

das vezes, estão se referindo à falta de critérios e regras comuns que venham identificar

e regular a prática. Assim, para resolver a condição de imprecisão, que é vista como

problemática, na maioria das vezes, apontam para a necessidade do desenvolvimento

destes mesmos critérios e normas supracitadas. Porém, se déssemos um passo adiante na

investigação acerca da condição de imprecisão, seria interessante levarmos em

consideração as idéias de H.L.Hart em “O Conceito de Direito” (1996), teórico jurídico

que bebe da influência de Wittgenstein. Para Hart, todo sistema de normas apresenta a

constante potencialidade de apresentar sentenças que venham a se tornar vagas. Isso

ocorre porque um sistema jurídico é composto por normas, que por sua vez, são

constituídas e comunicadas por meio do uso da linguagem. E as palavras, por fim,

apresentam por natureza uma textura porosa. Dito de outra forma por Friedrich

Waismann, filósofo que deu origem ao conceito de textura aberta da linguagem em

“Verifiability” (1978), as palavras, quando utilizadas para constituir e comunicar o

mundo empírico e psicológico, nem sempre realizam essas tarefas de forma conclusiva.

Como conseqüência, haverá sempre uma possibilidade de dúvida a respeito de seus

significados. Assim, todo sistema de normas e regras pode vir a conter sentenças

indefinidas, uma vez que o sistema jurídico se mostra incapaz de prever os casos futuros

e preparar uma moldura normativa que vá encaixá-los devidamente. As análises de Hart

e Waismann refletem suas influências nos estudos de filosofia da linguagem de

Ludwing Wittgenstein. Ele será utilizado no restante da dissertação para analisar de que

forma, por meio da utilização da linguagem durante as tomadas de decisão nos casos de

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intervenção humanitária, o significado dessa prática é construído caso-a-caso.

A presente dissertação nasceu das aulas de Filosofia da Linguagem que cursei

durante meu último ano do mestrado de Relações Internacionais. Ao longo das aulas

pude experimentar, com imensa satisfação, a possibilidade de enxergar um objeto de

estudo da disciplina de Relações Internacionais, as intervenções humanitárias, com os

olhos da Filosofia. Lados diferentes foram se evidenciando e novos questionamentos se

fizeram presentes, resultando na pergunta inicial de: como o uso da linguagem atua

durante as tomadas de decisão para as práticas de intervenção humanitária?

Participando das aulas de Filosofia da Linguagem na PUC-Rio, me pus a pensar

na atuação da linguagem durante as tomadas de decisão, me colocando particularmente

focada em como esta, atuava como meio de comunicação e também na representação

dos significados das palavras utilizadas no fórum de discussão. Foi quando obtive a

idéia de associar o processo de tomada de decisão que ocorre dentro do Conselho ao

conceito de jogo de linguagem desenvolvido por Ludwing Wittgenstein (1958).

A semelhança entre a tomada de decisão e o jogo de linguagem mostra-se

relevante quando percebemos que, durante as tomadas de decisão para a prática de

intervenção humanitária, os significados referentes aos termos centrais que arquitetam o

entendimento da prática variam em acordo com os contextos lingüísticos, assim como o

funcionamento de um jogo de linguagem wittgensteiniano. No jogo de linguagem de

Wittgenstein, o significado das palavras utilizadas durante um ato lingüístico não

depende apenas de seus conteúdos, mas principalmente da forma como as palavras são

inseridas e trabalhadas em um determinado contexto lingüístico.

Então, por meio dessa aproximação, pode-se afirmar que o entendimento da

prática é constituído caso a caso na tentativa de adaptar cada situação às demandas

normativas da sociedade internacional (Stromseth, 1999). Adicionalmente, a atividade

argumentativa possibilita o embate comparativo de diferentes entendimentos a respeito

de um mesmo caso, com a tendência de obter resultados que mais se pareçam com as

necessidades específicas do caso em questão. Dessa forma, as múltiplas leituras a

respeito do que consiste uma intervenção humanitária podem contribuir para uma visão

alternativa no debate acerca de sua identificação e regulação.

Wittgenstein, em sua mais tardia obra, “Investigações Filosóficas” (1958) foi o

primeiro filósofo a chamar a atenção para a necessidade de se investigar um objeto, em

seu caso, a linguagem, como um fenômeno dinâmico, heterogêneo, complexo e presente

no “mundo real”, fugindo dessa forma, da formulação de modelos únicos e esquemas

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abstratos. Para esse cientista, um fenômeno, quando investigado, não deve sofrer recorte

sem suas complexidades a fim de encaixá-los em categorias previamente estabelecidas,

pois a heterogeneidade e as múltiplas leituras de uma mesma coisa fazem parte do

objeto, e amputá-las seria construir uma artificialidade. Dessa forma, podemos

compreender, pelas idéias de Wittgenstein, que um mesmo objeto pode ser encontrado

em diferentes formas, e o caminho para se entender sua natureza e sua forma de

funcionamento reside em sua complexidade.

Logo, para a realização desse trabalho, foi utilizado um aparato teórico de

Wittgenstein que aponta inicialmente para a multiplicidade de formas pelas quais um

objeto pode se configurar. Essa multiplicidade não deve ser vista como uma fonte de

indeterminação do objeto em si, mas como a possibilidade de sua existência em

múltiplos contextos. Karin Fierke, em “Changing games Changing strategies” (1998,

p.3) aponta mais duas grandes razões para se trazer Wittgenstein aos estudos de

Relações Internacionais. Primeiramente, a necessidade do pesquisador se afastar de

teorias abstratas a respeito de seu objeto de estudo, para então se aproximar da forma

como este objeto é constituído e utilizado na prática pelos indivíduos. E,em segundo

lugar, a abordagem do autor a respeito das regras que constituem múltiplos jogos de

linguagem nos aponta para a possibilidade de se fazer sentido diante de situações de

mudança contextual.

Transformações no cenário internacional são comuns no mundo das relações

internacionais e, por isso, mostra-se fundamental concebermos as mudanças nos

comportamento dos Estados, organizações e indivíduos como resultantes de processos

políticos e sociais. Esse ponto também foi levantado por Fierke (1998, p.2-3) ao

também escolher trabalhar com Wittgenstein para as análises no campo das Relações

Internacionais. Em sua opinião, por mais que o trabalho de Wittgenstein permaneça

largamente não explorado dentro das Relações Internacionais, formas de análise, tendo

por base conceitos provenientes da Filosofia da Linguagem, se mostram amplamente

produtivas para compreender os motivos ou as experiências subjetivas que orientam os

indivíduos e suas práticas no cenário internacional.

A fim de evidenciar com a identificação do contexto e do tipo de jogo em ação

influencia o processo de construção de significado das palavras, Wittgenstein nos monta

um exemplo:

[i]magine um jogo de linguagem no qual B informa a A, respondendo a uma pergunta

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deste, o número de lajotas ou cubos de um monte, ou cores e formas das pedras espalhadas aqui e ali. Tal informação poderia, pois, enunciar-se: ‘cinco lajotas’. Qual é pois a diferença entre a informação ou afirmação ‘cinco lajotas’, e o comando ‘cinco lajotas’! Ora, o papel que o pronunciar dessas palavras desempenha no jogo de linguagem . Mas também podemos pensar que o tom é o mesmo - pois um comando e uma informação podem ser pronunciados em muitos tons diferentes e com muitas expressões faciais diferentes --- e que a diferença reside somente no emprego (Wittgenstein, 1958, § 21).

Assim, mediante a utilização de uma metodologia wittgensteiniana, podemos

começar a entender como em casos de intervenção humanitária, ou seja, casos

semelhantes, os resultados nas decisões podem se mostrar tão adversos.

Como o nosso objeto de investigação direciona-se à forma como a imprecisão

dos conceitos centrais da intervenção humanitária atua na emergência e pluralidade da

prática, podemos sugerir, seguindo a analogia de jogos, que quando esses conceitos são

contextualizados em um jogo especifico, nesse caso, o jogo das negociações do

Conselho, eles adquirem precisão em seus significados. Melhor explicando, as regras

que atribuem significado as práticas em cada jogo (regras do jogo no sentido

wittgensteiniano) são desenvolvidas, via interação, entre os participantes, e atuam

atribuindo sentidos específicos aos conceitos centrais discutidos. Assim, dependendo da

forma que forem usados, os termos centrais da prática de intervenção humanitária

(soberania, violação aos direitos humanos, ameaça à paz e segurança internacional,

conflito internacional) adquirem diferentes significados. A viabilidade plural mostra-se

frutífera ao fomentar a necessidade de debates a respeito dos casos e de categorias

pouco claras, cujo resultado é a possibilidade de construção de uma moldura normativa

especifica para cada caso.

O debate acadêmico acerca da prática de intervenção humanitária encontra-se

situado em territórios interdisciplinares, abraçando conceitos e discussões provenientes

de áreas diversas, como Política Internacional, Direito, Filosofia, Estudos Estratégicos,

etc. No debate atual da prática de intervenção humanitária encontramos discussões cujos

conceitos centrais são oriundos do Direito, tais como quando discutimos a legalidade da

intervenção, ou debatemos uma possível codificação de uma norma jurídica para a

prática de intervenção, como também a influência e a importância do regime dos

direitos humanos nas intervenções humanitárias. Adicionalmente, a afirmativa que a

emergência das práticas de intervenção humanitárias tem por base uma noção ética de

dever humano é proveniente da crença na existência de uma natureza humana se

encaixando nas esferas da filosofia política e nos debates acerca da ética na filosofia

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tradicional. Ademais, a argumentação de que Estados intervêm por uma questão

exclusiva em elementos estratégicos e interesses nacionais centraliza a temática das

discussões nas esferas tradicionais de Política Internacional.

A abordagem interdisciplinar nos permite argumentar que para cada uma dessas

disciplinas, o objeto intervenção humanitária pode ser retratado sob diferentes

perspectivas. O transbordamento do debate da prática de intervenção humanitária para

as demais esferas científicas, ou seja, para além das Relações Internacionais, reafirma a

necessidade de uma abordagem científica que privilegia a multiplicidade do objeto em

análise. Assim, torna-se um tanto perigoso, para não dizer limitador, a tentativa de

encaixar múltiplas visões de um mesmo objeto em fórmulas unívocas e parcimoniosas

de conhecimento.

A contribuição do presente trabalho ao atual debate nas Relações Internacionais

se espelha na explanação de como a linguagem atua possibilitando a emergência de

novos significados à objetos e conceitos, via processos de interação. Como em um jogo

de linguagem de Wittgenstein onde os significados das palavras e condutas são

negociados pelos jogadores, a analogia do processo de tomada de decisão do Conselho

com os jogos de linguagem de Wittgenstein se mostra particularmente interessante, pois

expõe a natureza dinâmica do uso da linguagem em cada rodada de negociação dentro

do Conselho, influenciando resultados adversos. Isso se mostra relevante para

entendermos a atuação da linguagem na produção de significado às coisas materiais.

Em cada rodada de negociação que ocorre dentro do espaço do Conselho de

Segurança, uma ponderação de princípios decorrentes dos interesses, intenções,

preocupações, perspectivas dos representantes de Estados e expressos em forma de

linguagem e também das informações contextuais proveniente do ambiente político em

questão. Assim, estabelece-se como objetivo principal deste trabalho iniciar uma

investigação sobre o processo de tomada de decisão para a atual prática de intervenção

humanitária, mais especificamente, a forma como o uso da linguagem atua no processo.

Para isso, o presente trabalho estará focado nas negociações que ocorrem dentro do

Conselho de Segurança da ONU, a fim de apontar diferentes caracterizações para os

termos que arquitetam o significado da prática de intervenção.

O lócus da linguagem foi escolhido nessa pesquisa pela relação que as palavras

desenvolvem com a construção de significados no mundo que nos rodeia,

representando-as e as constituindo.

O presente trabalho também estabelece uma ponte alternativa às argumentações

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tradicionais das Relações Internacionais que apontam os interesses e os recursos de

poder de cada participante como elementos que determinam, quase que exclusivamente,

os resultados das tomadas de decisão, apontando para a capacidade dos participantes

controlarem os resultados de processos interativos intermediados pela linguagem. Como

veremos, com Wittgenstein uma situação lingüística precisa de certas regras que possam

vir a estabelecer a interação entre os participantes, assim configurando os diferentes

tipos de cenários lingüísticos. Apenas mediante a existência dessas regras que

estabelecem a interação, chamadas por Wittgenstein de “regras do jogo”, é possível que

a atos e palavras sejam atribuídas um significado comum para aqueles participantes.

Assim, a atribuição de significados aos conceitos, palavras e atos decorre do tipo de

jogo estabelecido pelos jogadores.

A metáfora de jogo de linguagem desenvolvida por Wittgenstein nos permite

observar, utilizando uma metodologia que se diferencia das tradicionais postas em

prática pelas Relações Internacionais e pelo Direito, de que forma podemos obter

resultados tão diferentes para casos semelhantes. Por exemplo, mediante uma

investigação a respeito do processo pelo qual o significado do termo “ameaça à paz e à

segurança internacional” se realiza, podemos ressaltar a influencia da linguagem na

formação de significados que, por fim, podem vir a extrapolar os interesses políticos dos

diplomatas. O funcionamento da linguagem como forma de jogo interativo não se

mostra passível de ser controlado por nenhum dos participantes, independente dos

recursos de poder de cada um. Isso porque, conforme veremos em Wittgenstein, o

processo de construção de significado de um objeto (nesse caso a prática de intervenção

humanitária) extrapola o sentido das sentenças empregadas, uma vez que ao longo do

processo de discussão as ações, os gestos, as posturas e as palavras são negociadas pelos

diplomatas e adquirem significado mediante as informações contextuais e das regras do

jogo compartilhadas por estes.

Nesse sentido, o conceito de jogo de linguagem desenvolvido por Wittgenstein,

responsável pela atribuição de significados às atividades, percepções e intenções dos

jogadores, se mostra radicalmente diferente do termo jogo utilizado na disciplina de

Relações Internacionais, no qual a linguagem é estrategicamente utilizada e reflete os

interesses do interlocutor. Na concepção de Wittgenstein, por mais que os interlocutores

venham a utilizar a linguagem para expor intenções, o meio lingüístico é dinâmico e

ativo e grande parte do sentido do que fora dito sofre influencia do contexto. Dessa

forma, por mais que alguns estadistas venham a utilizar a linguagem de forma

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estratégica, este não tem controle total sobre a construção de significados durante as

interações no jogo de linguagem. Assim, a utilização da linguagem não deve ser vista

como passível de manipulação. Mesmo para aqueles que buscam manipular o uso da

linguagem de forma estratégica, não há prerrogativas que a construção do significado

ocorrerá de acordo com suas agendas. Conclui-se então que a idéia de jogos de

linguagem trazida por Wittgenstein atua de forma significante a esta discussão, pois, ao

mesmo tempo que não possamos negar a possibilidade dos interlocutores tentarem

direcionar o uso da linguagem em favor de certos interesses, a noção de jogo nos

demonstra que seus utilizadores não têm total controle sobre o processo, permitindo que

se ascendam resultados antes não cogitados.

Como o presente debate se insere na bibliografia de Relações Internacionais? A

virada lingüística na Filosofia realizada pelo impacto dos escritos de Wittgenstein

influenciou, em grande medida, a ascensão do terceiro debate nas Relações

Internacionais, marcando o ponto inicial para uma investigação da linguagem. O

chamado terceiro debate, que emerge nos anos oitenta, caracterizou-se pelo

fornecimento de respostas críticas à construção do saber científico mediante a

problematização das metodologias e epistemologias positivistas que se encontravam em

alta nas ciências humanas e sociais desde os anos sessenta. Celebrou-se a abertura para

novas abordagens (pluralismo teórico) ainda assim compatíveis com as noções de

objetividade e racionalidade científicas (Lapid, 1989, p.236). As noções de fronteiras

entre disciplinas também foram questionadas: “teóricos políticos, cientistas políticos e

teóricos das relações internacionais se encontram endereçando as mesmas agendas”

(Brown, 1994, p.213). Com a entrada de novas formas de construção do saber científico

nas ciências sociais como um todo, a investigação da linguagem foi abordada de forma

séria pela disciplina de Relações Internacionais, por mais que ainda atualmente continue

a ser negligente na opinião de Fierke (Fierke, 2002, p. 332-333).

Os autores que analisavam o uso da linguagem em suas abordagens teóricas (leia-

se principalmente os pós-modernos, teoria crítica e os pós-estruturalistas) apostaram na

abertura e na crítica da moldura positivista predominante no estudo das Relações

Internacionais. Sua intenção era a abertura às novas leituras e às novas formas de

produção de conhecimento na disciplina.

Conforme a proposta, os autores provenientes dessas correntes se dispuseram a

olhar as relações internacionais como um espaço de sucessivos eventos contingentes,

onde situações contextuais adquirem significado apenas quando referenciados a posição

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do indivíduo no mundo. Por isso, pode-se argumentar que a linguagem entra no debate

de Relações Internacionais como um objeto co-constituinte do mundo que o rodeia

(Debrix, 2003, p.4). Essas duas correntes de pensamento também se propuseram a

colocar à disciplina importantes questionamentos acerca da construção de conhecimento

e seus usos nas ciências em geral (idem, p.4).

Nesse sentido, é importante mencionar que por mais que Wittgenstein tenha

inicialmente fornecido a base filosófica a uma forma de pensamento que depois veio a

se denominar construtivismo e pós-estruturalismo, os autores destas duas correntes

levaram o estudo da linguagem para outras direções. Enquanto Wittgenstein se voltava a

construir uma investigação dos diversos usos da linguagem e das regras que as

constituem, os construtivistas tenderam a estabelecer um foco apenas na noção de regra

e em sua atuação na organização da vida em sociedade, excluindo de suas agendas a

problemática da construção do significado. Da mesma forma, os pós-estruturalistas

focaram-se nos processos de interpretação e representação da linguagem, e não nas

regras (Fierke, 2002, p.334).

A presente dissertação se compõe de quatro capítulos. No primeiro capítulo,

faremos uma breve apresentação da prática de intervenção humanitária, apresentando-a

como uma atividade heterogênea que vem sendo transformada pelos Estados desde o

séc. XIX até o presente período. No entanto, a intervenção humanitária, como

atualmente tem sido exercida pela sociedade internacional, associa-se à defesa dos

direitos humanos, à ameaça à paz e à segurança internacionais, e se desenvolveu em

tempos marcados pela importância do direito internacional, tendo como respaldo

político e jurídico uma nova interpretação do conceito de soberania e um complexo

processo de tomada de decisão que ocorre entre os representantes de Estados presentes

no Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU).

O segundo capítulo apresenta a atual prática de intervenção humanitária como

uma atividade recente que não se encontra embasada por um consenso a seu respeito e,

tampouco, no que tange aos critérios que configuram os casos que pedem por uma

intervenção. Seguindo-se mais adiante, o capítulo expõe alguns dos inúmeros pontos de

tensão e confronto em relação à identificação e regulação da prática. Caminhando na

direção oposta da maioria dos acadêmicos e praticantes, o texto ressalta os lados

positivos da falta de consenso e precisão no entendimento da atual prática de

intervenção humanitária que atuarão como o ponto de partida para uma análise referente

à construção do significado das recentes práticas de intervenção humanitária.

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A fim de oferecer um tratamento à imprecisão do significado da prática, ou seja, à

eleição de elementos identificadores objetivos para sua caracterização e atribuir

velocidade às tomadas de decisão, uma grande parte de acadêmicos, juristas e

diplomatas aponta, como etapas necessárias para atividades intervencionistas, à

codificação de regras e critérios, revestidos por uma autoridade jurídica. Divergindo

dessa posição, ao final do capítulo, o trabalho reforça a posição da jurista Jane

Stromseth (2003), que defende, ao invés da codificação jurídica, que em sua opinião

seria um retrocesso pela tentativa de encaixar casos bastante diferenciados em uma

única fórmula, a importância da manutenção de um sistema aberto de significação e

regulação da prática da intervenção humanitária. Isso porque apenas mediante uma

estrutura aberta de negociação e significação dos casos, suas demandas práticas e

normativas podem estar em uma posição de debate e negociação com as molduras

normativas já existentes.

Ainda no segundo capítulo, será apresentado e também aplicado aos debates

referentes à codificação de uma norma de intervenção humanitária, conceitos

provenientes do campo da Filosofia da Linguagem que se voltam à tese da

indeterminação da linguagem; uma idéia na qual a linguagem ou o uso das palavras não

determina de forma conclusiva a descrição ou caracterização dos objetos na realidade.

Nesse trabalho, a tese da indeterminação da linguagem tem como principal referência às

idéias de Ludwing Wittgenstein (1958), quando esse ressalta que a linguagem tem por

natureza uma estrutura vaga, não cabendo, dessa forma, aos cientistas indagarem a

respeito dos significados de seus signos (as palavras) sem levar em consideração o

contexto na qual essas estão inseridas. As idéias de Wittgenstein também foram

utilizadas em outros campos científicos como, por exemplo, na Filosofia do Direito.

Levando as teses de Wittgenstein adiante, H.L. Hart aponta que qualquer sistema de

regras, por ser constituído e comunicado por meio da linguagem, convive

constantemente com a possibilidade de se tornar vago e não preciso.

O objetivo da aproximação entre a problemática da falta de critérios

identificadores e de tratamento da prática de intervenção nos debates de Relações

Internacionais (imprecisão) e a tese da indeterminação da linguagem, baseia-se na

sugestão de abrir um possível cenário no qual exista a impossibilidade ou

indesejabilidade de se construir padrões e modelos de precisão que venham tratar uma

atividade nova, como as intervenções humanitárias, com modelos e fórmulas fechadas e

longe da prática.

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O terceiro capítulo apresenta uma explanação acerca de um problema tradicional

da Filosofia da Linguagem; a relação entre a linguagem e a construção do

conhecimento. Para isso, apresentamos um pequeno histórico das posições dos

primeiros filósofos clássicos e modernos que voltaram suas investigações a essa relação.

Os filósofos clássicos, como Platão e Sócrates, apontaram para uma associação

arbitrária entre signo lingüístico e os objetos, ressaltando, como conseqüência, a não

prioridade do lócus da linguagem para as investigações acerca da construção do

conhecimento. Semelhantemente, os pensadores modernos mostraram desprezo pelo

estudo da linguagem e optaram pela primazia da experiência. Apenas com o advento da

filosofia contemporânea, a linguagem adquire um lugar de destaque nas indagações

filosóficas, mais especificamente, o uso prático da linguagem e sua relação com a

construção do conhecimento. Isso quer dizer que, com a investigação do uso da

linguagem adquirindo posição central nas análises filosóficas, os pensadores deixaram

de buscar, exclusivamente, conteúdos lingüísticos acerca da contribuição da linguagem

na construção do significado para estabelecer um foco na forma como as palavras eram

conduzidas pelos seus interlocutores e inseridas em contextos específicos.

Conforme dito, a aplicação das idéias de Wittgenstein (1958) ao debate da

intervenção humanitária se mostra propício frente às indagações de acadêmicos e

diplomatas acerca da reconhecida falta de definição e precisão ao conceito recente de

intervenção humanitária. Para o filósofo, não há sentido em afirmar que certos termos

lingüísticos são mais ou menos definidos e, logo, precisam de regras adicionais para sua

melhor compreensão e utilização, uma vez que o sentido dos termos, como palavras em

geral, é constituído (de forma mais precisa) apenas quando posto em prática. Assim,

apenas mediante a inserção das palavras em um contexto lingüístico regido por regras,

podemos precisar seus entendimentos. Nesse sentido, Wittgenstein propõe a

investigação não do discurso, mas de como o uso de conceitos ou palavras delimita a

caracterização da dinâmica lingüística em andamento.

Sendo assim, o referente capítulo constrói uma aproximação entre o processo

dinâmico das tomadas de decisão com o conceito de Wittgenstein de jogos de

linguagem, por ambos atribuírem às palavras utilizadas pelos interlocutores um

significado que se encontra de acordo com as formas que são utilizadas dentro de um

contexto lingüístico específico. O significado das palavras mostra-se resultante do jogo

de linguagem em questão. Se variarmos o contexto, os significados dos termos se

transformarão em concordância. A cada rodada de negociação que ocorre no Conselho,

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um contexto lingüístico e político emolduram o debate e atribuem significados aos

termos centrais da prática de intervenção humanitária de acordo com as argumentações

dos participantes da tomada de decisão.

No quarto capítulo será realizada uma pequena introdução da constituição,

funcionamento e importância do Conselho de Segurança no atual cenário internacional.

Nesse momento será reforçada a competência jurídica exclusiva do Conselho em

nomear os possíveis casos. Em seguida, mediante a utilização de uma moldura jurídica

realista, a dissertação evidencia os processos e canais legais pelas quais as tomadas de

decisão ganham revestimentos jurídicos.

O capítulo também apontará nos discursos realizados pelos representantes de

Estado para os casos de intervenção ao norte do Iraque, Somália, Ruanda, Bósnia e

Kosovo, de que forma os principais conceitos de intervenção humanitária foram

trabalhados ao longo das discussões possibilitando a construção de significações

diversas acerca da prática de intervenção em cada caso.

A opção em operacionalizar conceitos vindos da filosofia da linguagem

evidencia-se como uma forma de oferecer à disciplina de Relações Internacionais, um

olhar diferente ao tentarmos compreender as variações de significados e resultados das

rodadas de negociação para os casos de violações de direitos humanos nos quais foi

autorizado o uso da força, ou se cogitou tal emprego Mostra-se bastante comum na

bibliografia da área de Relações Internacionais apontar que a decisão do tratamento dos

casos pelos membros do Conselho se mostra diretamente associado aos interesses dos

Estados envolvidos na tomada de decisão, desenvolvendo-se assim, uma idéia de

seletividade. Nesse cenário, apenas são tratados pelo Conselho os casos que interessam

os membros e a linguagem é utilizada de forma estratégica, associada ao exercício de

poder. Por isso, no presente trabalho, busca-se não negar a influência dos interesses e

das relações de poder no jogo de negociação (discurso tradicional das correntes realistas

e institucionalistas das Relações Internacionais), mas focar na forma como o uso da

linguagem exercitada dentro do fórum atua sobre as o processo de tomada de decisão,

por isso os discursos apresentados pelos membros do Conselho serão tratados com igual

peso.

Logo, pode-se entender a proposta do presente trabalho em oferecer à idéia de

seletividade uma natureza mais fluida e dinâmica, à medida que a presente análise

busca, por meio da utilização do conceito de jogos de linguagem, compreender como a

linguagem influencia o resultado das decisões na constituição de diferentes significados

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para os casos de violação de direitos humanos.

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2. Apresentação do Tema Intervenção Humanitária.

2.1. Introdução

No presente capítulo, faremos uma apresentação do debate sobre intervenção

humanitária, para que possamos, em um segundo momento, investigar seu processo de

tomada de decisão. Atualmente, entende-se por uma intervenção humanitária “o envio

de força militar além das fronteiras com o objetivo de fornecer proteção aos estrangeiros

contra a violência humana” (Finnemore, 2003, p.54).

Desde a criação das Nações Unidas, em sua Carta constitutiva, encontram-se

regras que proíbem o uso da força pelos Estados1 e também a atividade de intervenção

nos assuntos internos de um Estado2. Estas normas se encontram, respectivamente,

codificadas nos artigos quatro e sete do documento. As situações excepcionais para o

uso legítimo da força são apenas duas: o exercício de auto defesa e mediante a

autorização do Conselho de Segurança.

No entanto, o exercício intervencionista humanitário pode ser conduzido por um

ou mais Estados, com ou sem o uso da força, mas para que seja visto como legítimo na

sociedade internacional deve ser autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU, órgão

competente em discriminar os tratamentos de casos emergenciais de segurança

internacional. Sem a devida autorização do Conselho, o exercício de adentrar fronteiras

territoriais com uso da força para salvar vidas de estrangeiros viola três principais

normas internacionais: a defesa da soberania territorial, proibição do uso da força e de

atividades intervencionistas3. Assim, apenas mediante uma caracterização pelo

Conselho de que o caso em questão representa uma “ameaça à paz e à segurança

internacional”, as normas da Carta da ONU de não intervenção e não uso da força

1 Art. 2o, §4o da Carta. 2 Art. 2o, §7o da Carta. 3 Art. 2o, §1o da Carta.

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podem ser suspensas4.

2.2. Por que e quando uma intervenção humanitária ocorre?

Uma intervenção humanitária ocorre quando um Estado ou uma parte da

população acaba por submeter uma outra parte à repressão, guerra ou fome, levando à

comunidade internacional a sacrificar o direito deste Estado à soberania5, a fim de

proteger as vítimas civis dos maus tratos de seu governo (Waal & Omaar, 1994, p.3).

Assim, a atual prática de intervenção, por vincular, de forma singular, a defesa dos

direitos humanos de estrangeiros à questão de segurança internacional, é denominada

por Theo Farrel como um novo intervencionismo (Farrel, 2002, p. 287). Para que

possamos entender melhor a atividade de intervenção humanitária, é fundamental

mantermos em mente que essa se realiza mediante uma limitação do direito de

soberania do Estado violador por uma decisão da sociedade internacional (mesmo

mediante o consentimento soberano dos Estados), por isso tem sido alvo de constantes e

efervescentes debates no mundo acadêmico e diplomático. A fim de apresentar, neste

capítulo introdutório uma parte da natureza controvertida da prática de intervenção

humanitária, destaca-se um trecho do livro das Nações Unidas (2000), que faz menção

ao discurso realizado por Kofi Annan (Secretário Geral das Nações Unidas na época).

Should the international community intervene in a country to stop gross, systematic and widespread violations of human rights? The question raised in 1998 by the Secretary General Kofi Annan, generating a wide debate. The legal framework, Mr.Annan has said, is provided by universal norms embodied in the Charter, international humanitarian law, human rights law and refugee law. The concept of intervention covers a wide range of actions, including, in some circumstances, the Security Council intervening in internal conflicts by authorizing the creation of “safe corridors” and “safe areas” in conflict zones, imposing sanctions against recalcitrant states or taking other measures. In the ensuing debate, one group of nations has maintained that, in the face of massive human rights violations and crimes against humanity, the responsibility of the international community to prevent violations is paramount. Thus, in the last resort, human rights can de legitimately protected through the use of force authorized by the Security Council. A second group of nations has raised three major questions: Where does humanitarian assistance stop and interfere in the internal affairs of states begin? How does one distinguish between humanitarian imperatives and political or economic

4 Há uma permissão expressa, nesse caso, para que a ONU possa agir – tal permissão é concedida pelos próprios Estados membros, que nesse caso limitaram a sua própria soberania. 5 O Conselho somente pode fazer isso porque está expressamente autorizado na Carta da ONU.

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motivations? Is humanitarian intervention valid only for a weak state, or for all states without distinctions? These nations have called for a broad dialogue, and urge that any decision be based on the consensus of Member States. A third group of states has argued that the notion of humanitarian intervention has a potential to undermine the Charter, eroding the sovereignty of states and threatening legitimate governments and the stability of the international system. They have emphasized that all measures to protect human rights should be taken only with respect for the independence, sovereignty and territorial integrity of all countries, and the will of the government and people of the country concerned (s.p.) Percebe-se nessa exposição à existência de pontos de fricção e desacordos dos

países em relação ao status autorizado para a atual prática de intervenção humanitária.

Geralmente, enquanto um grupo de nações abraça a iniciativa de se intervir em casos de

violações massivas de direitos humanos, um outro grupo se mostra inteiramente contra

e, finalmente, um terceiro suspeita da efetividade da ação humanitária militar. É de

fundamental importância, desde já, que as discordâncias da prática de intervenção

humanitária sejam ressaltas nesse trabalho, para que possam investigar com mais

proximidade os referentes pontos de fricção.

Destaca-se que a prática de intervenção humanitária, como atualmente vem

sendo exercida pelos Estados e autorizada pela ONU, não se encontra codificada em

nenhum documento jurídico e nem configurada no direito costumeiro. As suas regras de

reconhecimento e regulação são construídas ao longo do processo decisório que ocorre

entre os membros do Conselho de Segurança, objeto central deste trabalho.

Assim, o Conselho de Segurança da ONU, que representa um dos órgãos mais

importantes da atual estrutura internacional exerce, de acordo com o Art. 24 da Carta, a

responsabilidade de assegurar a paz e a segurança internacionais. “Trata-se de um órgão

permanente e suas decisões têm um caráter obrigatório para os demais Estados da

sociedade internacional, sendo estes membros da ONU, ou não” (Mello, 1996, p.625).

Também está dentre as atribuições exclusivas do Conselho analisar politicamente os

casos que correspondam a uma ameaça à paz e segurança e autorizar o uso da força

direcionada à ameaça. Cada autorização vem seguida da constituição de uma resolução

jurídica e, em caso de ser autorizada uma intervenção humanitária ou missão de paz, o

Conselho também se responsabiliza em desenvolver um mandato internacional para tal

ação. Dessa forma, o Conselho se encarrega em operacionalizar a moldura legal para as

práticas de uso da força na sociedade internacional.

A base jurídica para a associação entre violação de direitos humanos e ameaça à

paz e segurança internacional encontra-se no artigo 39 da Carta da ONU, que garante ao

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Conselho de Segurança o direito de identificar se um determinado caso representa esse

tipo de ameaça. É de fundamental prioridade ressaltar o apontamento de Steven Ratner

(2004) que ameaças de segurança e paz são reconhecidas pela Carta da ONU como

brechas do direito internacional e, assim, o Conselho exerce a competência exclusiva de

tratar o caso de forma que achar mais apropriado (Franck, 2003, p.205). “[To] prevent

and remove breaches and threats to the peace and respond to acts of aggression

conformity and breaches of peace, the Security Council does not include the provision

requiring conformity with international law” (Ratner, 2004, p. 592).

Grande parte da bibliografia de Relações Internacionais tem buscado no Direito

Internacional, área que mais concentra os estudos de intervenção humanitária,

referências para a compreensão acerca desse tipo de intervenção (Wheeler, 2002, p.2).

Por isso, diante da falta de instrumentos para melhor compreender a emergência e

natureza da prática de intervenção humanitária, o presente capítulo recorre a conceitos

provenientes das áreas do Direito internacional, Filosofia do Direito e Filosofia da

Linguagem, a fim de ampliar o debate referente ao tema.

No presente capítulo, a emergência da prática de intervenção humanitária será

vista como um resultado de dois processos concomitantes: (i) a internacionalização do

regime de direitos humanos, e (ii) o ingresso de casos de violação de direitos humanos

nas prioridades do Conselho de Segurança, ambos abordados em seguida.

Desde já, é importante deixar claro que não há como esgotar o tema da

intervenção humanitária, pois há diversas formas pelas quais podemos abordá-lo. Para o

presente exercício, inicialmente, será realizada uma apresentação do desenvolvimento

do regime de direitos humanos, para em seguida evidenciar como, a partir da criação da

ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, este veio a se internacionalizar.

Em um segundo momento, o presente capítulo expõe o ingresso dos casos de violação

entre as prioridades do Conselho de Segurança, apontando uma expansão do conceito de

segurança internacional após o período da Guerra Fria.

É importante destacar que a prática de intervenção humanitária para certos

autores como Wheeler (2000) pode ser vista também como uma tentativa de oferecer

mecanismos de enforcement para o regime internacional de proteção dos direitos

humanos, uma vez que este conjunto de normas se encontra desprovido de mecanismos

de coerção que venham lhe garantir sua obediência por parte dos Estados,

principalmente quando este se encontra na posição de violador.

Por mais que o foco deste trabalho se direcione as ações dos representantes dos

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Estado, nesse capítulo, estarei apontando também as posições de alguns autores

(bibliografia) das áreas de Direito e Relações Internacionais, pois a apresentação dos

debates acadêmicos é de fundamental importância para compreendermos as atuações

dos Estados na esfera internacional.

2.3. Breve Histórico

A ação de intervir militarmente em territórios estrangeiros com justificativas

humanitárias é uma forma antiga de imposição de poder. Podemos citar, por exemplo, o

séc. XIX, quando os Estados passaram a praticar certas missões como o resgate de

próprios nacionais em territórios estrangeiros, e a libertação de cristãos brancos do

domínio do Império Otomano. Ambos os exemplos supracitados, de acordo com Martha

Finnemore (2003), foram justificados como oriundos de motivações humanitárias. Já a

prática de intervenção humanitária, diante de graves violações de direitos humanos, se

apresenta como uma atividade nova nas relações internacionais (Finnemore, 2003, p.3),

Finnemore investiga em seu livro “The Purpose of Force” (2003) os últimos

180 anos da prática de intervenção humanitária, ressaltando como essa tem se

transformado ao longo do tempo, principalmente em relação a três elementos: o objeto

de regate, a forma como é conduzida e, finalmente, uma preocupação cada vez

constante com o status legítimo da prática.

Inicialmente, a autora defende que a percepção dos objetos vistos como “dignos

de proteção” se ampliou. No séc. XIX, apenas os cristãos brancos eram objetos de

resgates, porém, ao final do séc. XX, grupos não-brancos e não-cristãos adentraram o

grupo merecedor de proteção. Em segundo lugar, a forma como se intervêm também

apresentou mudanças. Até o final da Segunda Guerra Mundial, as intervenções eram

realizadas, em sua maioria, de forma unilateral, com ou sem consentimento do país

anfitrião, enquanto para ser reconhecida como legítima, deve ser empreendida de forma

multilateral.

Durante o período da Guerra Fria, intervenções realizadas por pequenas

potências como Índia, Vietnã e Tanzânia (Wheeler, 2000) para amenizar ou cessar

graves violações de direitos humanos não contaram com a devida autorização do

Conselho de Segurança e, consequentemente, sofreram condenações pela comunidade

internacional. Referente a estes três casos supramencionados, os membros do Conselho

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optaram por uma interpretação estreita da Carta da ONU que ressaltava a proibição de

intervenção e uso da força por parte dos Estados sem consentimento do Conselho, a não

ser em casos de auto-defesa.

Porém, com o advento do contexto da Guerra Fria, tendo como conseqüência a

paralisia do funcionamento do Conselho pela sucessão de vetos entre EUA e a ex-

URSS, abriu-se um maior espaço para a atuação da Assembléia Geral que, após a

experiência estarrecedora do Holocausto, toma para si a tarefa de desenvolver um

regime de direitos humanos no seio das Nações Unidas.6 Um regime que partiu da

proposta de posicionar ao centro das relações internacionais contemporâneas a proteção

à figura humana, e que relativiza, em casos excepcionais, a vedação à intervenção.

É importante ressaltar, tendo por base argumentos de Noberto Bobbio, que a

noção de direitos humanos que temos atualmente é proveniente do desenvolvimento de

um conjunto de documentos, instrumentos que vieram a definir e aplicar o regime

internacional de direitos humanos, e é fruto de um tempo histórico. Nasce em certas

circunstâncias, caracterizado por lutas em defesas de novas liberdades contra velhos

poderes, e se desenvolve de forma gradual (Bobbio, 1992, p.5). Nessa primeira parte, o

trabalho volta-se para apresentar, ainda que parcialmente, o contexto histórico no qual

os direitos humanos contemporâneos vieram a se frutificar.

2.4. O Desenvolvimento e Internacionalização dos Direitos Humanos

As origens do movimento contemporâneo dos direitos humanos datam do século

XVII, quando uma reação ao Antigo Regime se solidifica na Europa. Um conjunto de

críticas, com uma base filosófica liberal, emerge entre filósofos como Charles de

Secondat, Baron de Montesquieu, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau, e

economistas como Adam Smith e François Quesnay, fazendo frente ao poder e

intolerância, principalmente, eclesiástica. Todos estes pensadores difundiram as idéias

de liberdade religiosa, liberdade de pensamento, culto à razão e às leis naturais que

nenhum governo poderia se sobrepor. No séc. XIX, com a abolição do tráfico negreiro e a proibição da prática legal de

6 Cassese, 2005.

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escravidão, um processo que Martha Finnemore (Finnemore, 2003, p.66) e outros

acadêmicos como Jack Donnelly (2003) caracterizam como a “expansão da

humanidade” passa a ser delineado. Contribuindo para esse processo, adicionalmente, a

abolição da prática do colonialismo (ibidem, p.70), um século mais tarde, também veio

a solidificar a proliferação de idéias de uma natureza humana comum. Assim, os

indivíduos que eram antes vistos como propriedades passaram a ter reconhecido seu

valor como seres humanos. A noção de “Humanidade” passa a ser concebida cada vez

mais como uma qualidade inerente a todos os seres humanos e não um ensinamento dos

povos mais civilizados aos menos civilizados (ibidem, p.68 e 70-72). Dessa forma,

pode-se argumentar que a percepção de humanidade sofre um processo de

universalização, desvinculando-se do referencial de grupo cultural. Africanos, asiáticos

e latino-americanos passaram a ser donos de direitos, independente de suas posições no

mundo.

Para que possamos entender o desenvolvimento normativo relativo à pessoa

humana, ocorrido durante dos séculos XIX e XX, Finnemore nos aponta que devemos

olhar para o sistema normativo como um todo, a medida que novas normas são inseridas

ou re-interpretadas no sistema. Ademais, no desenvolvimento de um sistema normativo,

as normas não se desenvolvem separadamente; elas se influenciam mutuamente,

conforme evidenciado pela autora: “The rise of human rights norms and decolonization are a

part of a large and inter-related set of changes in the international normative web” (ibidem

p.71). Assim, normas referentes ao tratamento dos indivíduos na prática escravocrata,

por exemplo, convidam a sociedade a uma reflexão e a uma mudança de perspectiva em

relação ao tratamento destes mesmos indivíduos em outras situações repressoras, como

o colonialismo.

Também “é preciso partir da afirmação óbvia de que não se pode instituir um direito em favor de

uma categoria de pessoas sem suprimir um direito de outras categorias de pessoas, por exemplo, o direito a não ser escravizado, implica na eliminação do direito de escravizar” (Bobbio, 1992, p.42).

Na questão das intervenções humanitárias, o direito de resguardar a segurança

das pessoas que são vítimas de perseguições de seus Estados, implica em uma quebra no

direito de não intervenção daquele mesmo Estado.

Bobbio, em “A Era dos Direitos” (1992), apresenta que o processo de

emergência de normas objetivando a proteção humana, por mais que tenha caminhado

lentamente, materializou-se em três grandes esferas normativas:

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Basta examinar os escritos dos primeiros jusnaturalistas para ver o quanto se ampliou à lista de direitos dos homens: [Thomas] Hobbes conhecia apenas um deles, o direito à vida. Como todos sabem, o desenvolvimento dos direitos humanos passou por três fases; num primeiro momento, afirmaram-se os direitos da liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o individuo, ou para os grupos particulares uma esfera de liberdade em relação ao Estado. Num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais - concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não-impedimento, mas também positivamente, como autonomia- tiveram como conseqüência a participação cada vez mais ampla, generalizada e freqüente dos membros de uma comunidade no poder político ou liberdade no Estado; e finalmente foram proclamados os direitos sociais que expressam o amadurecimento de novas exigências - podemos mesmo dizer, de novos valores--, como os de bem estar e de igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado (ibidem, p.42).

Esse mesmo processo gradual em direção à institucionalização dos direitos do

Homem foi evidenciado também por Antonio Cassese no pós Primeira Guerra Mundial

quando foram dados os primeiros passos que marcaram a emergência do atual regime de

direitos humanos. Vieram por meio da assinatura de tratados que visavam conferir

proteção, ainda que pontual, aos trabalhadores e minorias religiosas, étnicas e

lingüísticas. No entanto, tal processo tornou-se mais acelerado e global após a Segunda

Guerra Mundial, frente aos horrores das atividades de massacre realizadas durante o

Holocausto (Cassese, 2005, p.379). As potências vencedoras da guerra compartilhavam

a convicção que a agressão nazista e as atrocidades perpetuadas durante a guerra apenas

foram possíveis mediante um sistema jurídico internacional que permitia graves

violações dos direitos humanos em nome da inviolabilidade soberana. Sendo assim,

uma das formas de se evitar que situações de violência semelhantes viessem a se repetir

seria por meio da proclamação e legalização de certos direitos básicos do homem

(ibidem, p.377). Assim, de acordo com Antonio Cassese (ibidem, p.377), as mudanças

de perspectiva das grandes potências contribuíram como uma mola impulsionadora para

o desenvolvimento do regime internacional dos direitos humanos.

No plano histórico, Bobbio sustenta que as afirmações, assim como a

institucionalização dos direitos humanos, derivam de “uma radical inversão de

perspectiva na representação política, ou seja, relação Estado/cidadão na sociedade

interna e internacional” (Bobbio, 1992, p.4). A prioridade de segurança apenas dos

Estados encontrava-se antes assegurada pelo princípio de soberania. Entende-se por

soberania o direito do soberano resguardar seu território e população contra

interferências externas. Porém, atualmente, tal conceito se mostra, cada vez mais,

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vinculado à capacidade do Estado em providenciar bem estar aos nacionais e garantir a

obediência aos direitos humanos. Assim, podemos destacar uma passível flexibilização

e, até limitação, do direito de soberania frente às crescentes demandas pela asseguração

dos direitos dos homens, não apenas enquanto cidadãos, mas enquanto indivíduos.

Bryan S.Turner, em seu texto “Outline of a theory of Human Rights”, aponta

que a categoria de cidadania normalmente se mostra um mecanismo inadequado para o

fornecimento de proteção dos indivíduos contra Estados repressores e autoritários, ao

contrário da categorização de direitos humanos, que são universalmente mais inclusivos,

com uma proposta de serem direitos extra-políticos e super-societários e, por isso, têm

sua legitimidade assegurada além das fronteiras e controles estatais protegendo os

indivíduos contra a violência estatal (Turner,1993, p.182).

2.5. Estrutura do Regime Internacional de Direitos Humanos

O que chamamos de regime internacional dos direitos humanos é composto por

um sistema de princípios, procedimentos e regras que visam à construção,

implementação e observação dos direitos humanos, ou seja, um conjunto de instituições

e documentos que compilam e fundamentam os direitos fundamentais do homem, dentre

os quais destaca-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A Declaração Universal, sendo um fruto histórico, por meio das quais foram

afirmados os direitos de uma figura humana, representa a “consciência histórica que a

humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX

(Bobbio, 1992, p.34). No texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

podemos perceber a materialização de um processo de mudança de perspectiva dos

Estados em relação à necessidade de flexibilização do princípio de soberania diante de

casos excepcionais de violência humana7. A institucionalização desses valores em

normas internacionais evidencia na opinião de Bobbio, um grande passo na história da

humanidade, pois “pela primeira vez um sistema de princípios fundamentais da conduta

humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos pela 7 Em 1948, quando o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos foi produzido, não era a vontade de todos os Estados flexibilizar sua soberania, motivo pelo qual a DUDH nasceu como um documento jurídico não vinculante. Somente com o passar do tempo, na medida em que suas normas tornaram-se costume internacional, é que elas passaram a influenciar decisivamente a conduta dos Estados.

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maioria dos homens livres que vive na Terra” (ibidem, p.28). Assim, Bobbio chega a

afirmar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem “representa a manifestação

da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado

humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca

de sua validade” (ibidem, p.26). No entanto, mais adiante, no próximo capítulo, será

apresentado as bases do questionamento acerca do consenso de valores apontado por

Bobbio, a fim de evidenciar como tal fundamento ainda encontra-se em controvertidas

discussões entre praticantes e acadêmicos das relações internacionais.

A estrutura atual do regime internacional de direitos humanos, conforme

delineados por Jack Donnelly (2003), é composta pelos seguintes principais órgãos: o

Conselho dos Direitos Humanos, o Comitê de Direitos Humanos e o Alto Comissariado

da ONU para os Direitos Humanos.

O Conselho dos Direitos Humanos evidencia-se como o mais novo órgão do

regime internacional dos direitos humanos, aprovado, em maioria, pela Assembléia

Geral da ONU. Entrou em operação em 15 de Março de 2006 e veio substituir a

Comissão da ONU para os Direitos Humanos (Mingst & Karn, 2007, p. 251). Desde

1967, a Comissão era o principal fórum na negociação das normas de direitos humanos,

inclusive da Declaração Universal e das Convenções internacionais, tendo o direito de

conduzir investigações a respeito de possíveis casos de violação de direitos humanos8. É

importante ressaltar que a Comissão não tinha, assim como os demais órgãos do regime

de direitos humanos internacional, a competência jurídica de coibir os Estados a

respeitarem os direitos humanos. A atividade mais dramática exercida pela Comissão

era a divulgação pública de provas que confirmassem a violação dos direitos humanos

exercida por um determinado país. Mesmo diante das limitações correspondentes à

implementação de normas de direitos humanos nos países, o papel de destaque

destacável da Comissão se revelava no desenvolvimento de normas internacionais de

direitos humanos (Donnelly, 2003, p.132).

O segundo órgão em importância na estrutura do regime de direitos humanos é o

Comitê de Direitos Humanos da ONU. Composto por 18 especialistas independentes

que exercem a função principal de monitorar a obediência dos Estados frente ao Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 28 do seguinte pacto). Adicionalmente, o

órgão que monitora o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais é 8 A partir de 1967 (Res. 1235/67 do ECOSOC)

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o Comitê de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, que entrou em operação em

1987, também composto por 18 especialistas (criado pela resolução do ECOSOC

1985/17). Esses comitês, formalmente, não julgam as práticas dos Estados, e os

relatórios são discutidos em uma sessão pública cujo resultado é uma troca de

informações que atua positivamente no monitoramento da observância dos direitos

humanos (ibidem, p. 133).

O Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos é o terceiro órgão na

estrutura. Criado em 19939 a fim de aprofundar, ligeiramente, a capacidade coercitiva e

efetiva do monitoramento da observância aos direitos humanos, tem como vantagem o

exercício de um mandato explícito para lidar com qualquer Estado na sociedade

internacional e a respeito de qualquer assunto que abarque a questão dos direitos

humanos.

Em relação aos documentos principais que compõem o regime, encontramos a

Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta da ONU como seus corações

centrais, seguida das Convenções de Direitos Políticos e Civis e de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, cujos tratados entraram em vigor em 1976.

Ainda em relação às instituições e documentos que compõe o sistema

internacional de direitos humanos, seguem-se também a Primeira Conferência Mundial

dos Direitos Humanos realizada em Teerã em 1968 e a Segunda Conferência Mundial

dos Direitos Humanos ocorrida em Viena no ano de 1993.

A Primeira Conferência deu origem à “Proclamação de Teerã”, um documento

que materializava esforços dos Estados em direção à busca de soluções para a proteção

humana em situações de graves violações dos direitos humanos (Cançado Trindade,

1994, p.169), e que foi posteriormente endossado pela Resolução 32/130 da Assembléia

Geral. Esse evento também foi particularmente importante, pois em seu texto foi-se

traçada a relação entre os direitos humanos e o direito humanitário, onde lê-se que “a

paz é a condição primordial para o pleno respeito aos direitos humanos e que a guerra é

a negação desse direito”. Tendo como resultado que as regras direcionadas a situações

de conflito vieram a ser considerada parte integrante do regime de direitos humanos, o

direito humanitário foi reconhecido como os direitos humanos em período de conflito

armado (Swinarki,1988, p.22, grifo do autor).

Nesse momento, é oportuno nos retermos um pouco mais na relação entre o 9 Resolução 48/141 da AG.

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regime internacional de direitos humanos e o direito humanitário. O Direito

Internacional Público, em sua versão clássica até 1945, era constituído de duas grandes

esferas normativas; a primeira continha um conjunto de normas que regiam os Estados

em situações de paz e uma segunda regulava os Estados em situações de conflito

armado. Nesse contexto, recorrer à força militar era concedido como expressão do

atributo supremo de soberania até 1945 (ibidem, p.13). Já o Direito Humanitário foi

originário de normas que regiam o direito na guerra. Seu ano oficial de nascimento

remonta a 1864, marcado pela celebração da primeira Convenção de Genebra. Nessa

Convenção, os Estados especificaram e codificaram as primeiras normas que atuariam

protegendo os feridos e doentes no campo de batalha. É importante mencionar que, por

mais que marquemos a data de nascimento do direito humanitário em 1864, no âmbito

consuetudinário, já existiam regras a respeito dos métodos e meios para a condução de

hostilidades e proteção de certas categorias de vítimas.

Adicionalmente, em 1899 e 1907, os Estados acordaram, por meio das

Convenções de Haia, regras e princípios que viriam a estabelecer limites jurídicos aos

métodos e aos meios de combate. De acordo com esses documentos, qualquer meio que

viesse a causar danos e sofrimento desproporcionais e desnecessários em uma situação

de conflito militar, estaria proibido.

Assim, pode-se afirmar de acordo com Swinarski (1988) que a união do Direito

de Genebra e Direito de Haia (incluindo a Declaração de São Petersburgo) constituiu o

corpo de normas denominado direito na guerra (jus in bello) e marcam a origem do

atual direito humanitário.

Somam-se ao conjunto de normas jurídicas do direito à guerra (jus ad bellum),

outros procedimentos para a regulação do uso da força nas relações internacionais, para

seu abuso. Em 1928, uma parte da comunidade internacional assinou o Pacto Kellogg-

Briand10, decidindo pela renúncia ao uso da guerra como instrumento político, tendo

apenas como situações de exceção o uso da força para a auto-defesa.

Também não podemos esquecer de mencionar o Comitê Internacional da Cruz

Vermelha, quando o assunto constitui ações internacionais humanitárias, pois essa

instituição foi responsável pela convocação dos Estados a negociarem o texto das

Convenções de Genebra de 1949. E constantemente, tem se mantido ator imprescindível

na luta pelo reconhecimento ao direito de assistência às vítimas de guerras

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(Swinarski,1988, p.20-22).

Chegamos a um ponto da dissertação que se mostra extremamente oportuno

fazer-se uma diferenciação entre ação humanitária internacional e intervenção

humanitária internacional.

Uma ação humanitária se constitui em atividade não coercitiva realizada, na

maior parte dos casos por ONGs (organizações não governamentais) que se encarregam

da distribuição de ajuda, serviços básicos e bens essenciais às vítimas de catástrofes.

Essas atividades também se voltam a providenciar proteção à população afetada. Têm-

se como princípios orientadores de tais ações a imparcialidade, uma vez que a ajuda é

fornecida de civil para civil e de acordo com a necessidade e sem diferenciações de

origens e crenças; ademais a ajuda humanitária não pode atuar contribuindo para o

fortalecimento de nenhuma das partes e prescinde do consentimento do Estado ou das

partes envolvidas. Já a intervenção humanitária é entendida como uma interferência

militar nos assuntos internos do Estado, ou seja, sem a necessidade de um

consentimento do Estado a ser adentrado, com o objetivo de responder a violações

massivas de direitos humanos ou alívio de uma grande parcela da população em

sofrimento (Morris, 2006, p.98).

Voltando ao regime internacional de direitos humanos, a Segunda Conferência

Mundial dos Direitos Humanos foi convocada pela Assembléia Geral da ONU e

realizada em Viena, no ano de 1993. Nessa conferência os Estados, por meio de suas

assinaturas, comprometeram-se em abraçar, em suas políticas internacionais e

domésticas, ações que viessem a contribuir para a proteção aos direitos humanos,

atribuindo às suas sociedades o papel de fiscal de suas condutas políticas11.

Adicionando de forma significativa o conjunto de documentos jurídicos em

direção a proteção da pessoa humana, no âmbito regional foram desenvolvidas e

adotadas a Convenção Européia dos Direitos Humanos (1950), a Convenção Americana

de Direitos Humanos (1969) e a Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos

(1981). Semelhantemente, outros tratados setoriais também foram desenvolvidos no

cenário internacional para a proteção da pessoa humana. Entre estes, encontramos as

Convenções para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948), contra a

discriminação racial (1965), contra a discriminação da mulher (1979) e contra a tortura

(1984). 11 É importante deixar claro que a assinatura não era uma obrigação estritamente jurídica – a Declaração de Viena não possui efeito jurídico vinculante sobre os Estados.

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Percebemos, então, que a partir do surgimento da ONU e sua participação no

processo tornou-se possível o desenvolvimento de uma estrutura física e normativa que

viesse codificar e universalizar o regime internacional de direitos humanos.

Em relação ao regime em discussão, um ponto extremamente discutido e

debatido pelos diplomatas, juristas e acadêmicos de Relações Internacionais e a ser

enfatizado nesse trabalho é sua falta de uma autoridade coercitiva, ou seja, por mais que

o regime internacional de direitos humanos se constitua de um conjunto de normas

reconhecidas e assinadas por um número considerável de países e embasadas pelos

princípios expressos na Carta das Nações Unidas, suas medidas de monitoramento e

observância atuam apenas por meio de recomendações e alertas, sem a possibilidade do

uso da força.

Donnelly (2003) aponta a referida fraqueza coercitiva do regime como uma

conseqüência da falta de interesse de seus arquitetos (Estados) em atribuir ao regime

mecanismos que garantam sua observância: “A fraqueza procedimental do sistema não

é acidental, mas o resultado de decisões políticas conscientes” (Donnelly, 2003, p.135).

Assim, um forte regime de direitos humanos simplesmente não reflete os interesses

percebidos dos Estados ou coalizão capaz de implementá-lo (ibidem, p.136).

Nesse momento, encaixa-se bem o argumento de Wheeler de que as

intervenções humanitárias mostram-se como as últimas e fundamentais formas de

garantir dos Estados à obediência às normas internacionais de direitos humanos

(Wheeler, 2000, p.1). Ademais, situa-se no exercício da violência o início daquele tipo

de proteção (a coercitiva) a que estamos habituados, por uma longa tradição, a chamar

de jurídica” (Bobbio, 1992, p.39).

Dentre as normas do regime internacional de proteção à pessoa humana,

possivelmente, a única expressão um pouco menos flexível se encontra redigida no

texto da Convenção Sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948), uma

vez que direciona a tarefa de punir os praticantes e dessa forma prevenir os crimes de

genocídio aos seus signatários. O texto da Convenção deixa claro que as práticas de

genocídio são reconhecidas como crimes contra a humanidade e as atividades que

possam atuar em direção ao alívio das vítimas e interrupção das práticas devem partir da

competência das Nações Unidas. “A Convenção permite que qualquer parte signatária

possa chamar para a competência das Nações Unidas para prevenção e supressão dos

atos de genocídio” (Artigo VIII).

No corpo do texto da Convenção, encontramos uma definição a respeito do que

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constituem as práticas de genocídio. Porém, é fundamental destacar que o

desenvolvimento de critérios para a identificação de práticas de genocídio reflete um

consenso político e jurídico entre os Estados a respeito da seriedade desses crimes.

No entanto, conforme será exposto nos capítulos seguintes, mesmo diante de

violações que categorizam crimes contra a humanidade, não há garantias que os

membros do Conselho irão responder de forma coercitiva, conforme o esperado em

muitos casos, pois ainda cabe a estes o direito de interpretar se a violação representa ou

não, uma ameaça à paz e segurança internacionais (Franck, 2003).

Assim, conforme veremos a seguir, devido ao fato de regime de direitos

humanos se encontrar desprovido de mecanismos de coerção que venham aumentar sua

aquiescência, é apenas a partir da associação de violações de direitos humanos com

ameaças à segurança internacional que esses direitos adquirem status de segurança, ou

seja, adquirem um status de prioridade dentro do Conselho de Segurança e, assim,

podem até ser impostos militarmente.

2.6. Entrada dos Direitos Humanos no espaço do Conselho e emergência da prática de Intervenção Humanitária.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos incentivos internacionais à

descolonização, territórios coloniais que lutaram por suas independências

desencadearam, em muitos deles, disputas políticas em direção ao exercício do poder

central. Como conseqüência, grupos e facções civis guerreavam entre si pelo controle

do território, mergulhando a população civil em meio às suas batalhas políticas.

Devido à desintegração do confronto Leste-Oeste tornam-se cada vez raros os

incentivos para as grandes potências controlarem os conflitos civis, conforme apontado

por Simone Pinto: O fim da Guerra Fria acentua desordem e caos político, econômico e social em países como a Angola, Moçambique, Somália, Afeganistão, onde conflitos outrora fomentados pelas superpotências perderam sua relevância em termos de política internacional. Paises instáveis como estes já não mais atraíam o interessa dos grandes e foram abandonados às suas elites repressoras e guerrilhas (Pinto, 2000, p.9). E como resultado, “tem-se o aumento das massas populacionais em deslocamento ao longo das fronteiras em direção a países vizinhos, provocando instabilidade econômica e social pelos países por onde passam” (idem).

O cenário de esquecimento para os países em guerras e instabilidades civis se

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estende até o ponto de os refugiados e as ondas de violência começarem a incomodar o

restante da comunidade internacional, principalmente os países vizinhos, conforme

ocorrido ao norte do Iraque em 1991, o qual materializou sob as vestes da ONU, o

primeiro caso de autorização de uma intervenção militar apontada pelos membros como

humanitária.

É de fundamental importância mencionar os dois casos de violação aos direitos

humanos anteriores aos anos noventa que obtiveram um tratamento proveniente do

Conselho de Segurança por meio de sanções obrigatórias, baseadas no Capítulo VII da

Carta da ONU: foram os da Rodésia do Sul em 1966, e África do Sul em 1977. Em

ambos os casos, as violações de direitos humanos foram caracterizadas como “ameaças

à paz e à segurança internacional” e tratadas, pela primeira vez, como questões de

segurança internacional (Malone, 2004, p.10 e Roberts, 2006, p.79).

Tendo estes dois casos como precedentes à prática de intervenção humanitária nos

anos noventa, período no qual torna-se mais freqüente a passagem das questões de

proteção dos direitos humanos da esfera da política interna dos países à esfera do

Conselho de Segurança (Mingst & Karns, 2007, p. 28) e a possibilidade de um

tratamento coercitivo as violações de direitos humanos, assuntos políticos antes não

vistos como ameaçadores como a questão do meio ambiente, acesso à água, acesso a

medicamentos e à comida, passam a representar, frente à comunidade internacional,

possíveis elementos desestabilizadores da comunidade internacional. Conforme

ressaltado por Linda Fasulo: “The non-military sources of instability in the economic,

social, humanitarian and ecological fields have become threats to peace and security”

(Fasulo, 2004, p.46). Como consequência, levantaram-se questionamentos a respeito

dos objetos de segurança internacional: “Questions have been raised about the referent

objects of security, that is whether states or individuals, as well as questions about what

constitutes a security threat” (Fierke, 1998, p.9). Sessenta anos após a criação das Nações Unidas as maiores ameaças à atual comunidade dos Estados se estendem além da concepção de Guerra militar, abraçando situações de extrema pobreza, doenças contagiosas, degradação ambiental, conflitos internos, produção de armas nucleares, radiológicas, biológicas, terrorismo e crime organizado (A/59/565, 2 Dezembro de 2004, p.11). No painel realizado pela Assembléia Geral em Dezembro de 2004, referente a

ameaças, desafios e mudança intitulado “A more secure world: our shared

responsibility” (2004), os representantes de Estado advertem para a identificada

“interconexão entre as ameaças à paz e à segurança internacionais”, concluindo que as

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ameaças atuais não reconhecem fronteiras e limites nacionais, são conectadas e devem

ser endereçadas por meio dos níveis globais, regionais e nacionais. Dessa forma, em

essência todos os Estados compartilham a responsabilidade pela segurança dos demais

(ibidem, p.12).

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3. Ambigüidades, imprecisões e indeterminações no entendimento da prática de intervenção humanitária.

3.1. Introdução

Esse capítulo tem o objetivo de lançar um olhar mais aprofundado e aproximado

sobre um lugar comum entre acadêmicos e praticantes das relações internacionais: a

constatação de que há uma falta de definição nos conceitos que arquitetam a atual

prática de intervenção humanitária. Para tal tarefa investigativa, propõe-se,

primeiramente, identificar o que esses dois grupos entendem por imprecisão à prática,

para em um segundo momento questionar a respeito de sua origem, natureza e possíveis

formas de ‘tratamentos’ apontados pelas duas áreas mencionadas. Dessa forma, o

problema da imprecisão dos conceitos e, conseqüentemente, da prática perpassa todo o

capítulo e será o fio condutor da presente parte da dissertação que, ao final, desemboca

em uma discussão da problemática da construção do significado por meio do uso de

palavras no campo da Filosofia.

Para o Conselho de Segurança, órgão responsável pela autorização de missões

humanitárias militares, uma intervenção materializa-se quando violações de direitos

humanos atingem o nível extremo de serem tratados como questões de segurança

internacional. Mas como identificar estes momentos já que os membros não sabem, ao

certo, a partir de quando, ou mediante o preenchimento de quais critérios, certas

violações de direitos humanos passam a representar ameaças à paz e segurança

internacionais.

É importante ressaltar que, por mais que o foco do trabalho sejam as

negociações entre os representantes dos Estados que ocorrem dentro do Conselho de

Segurança, estaremos utilizando, adicionalmente, referências bibliográficas acadêmicas

para auxiliar no entendimento dos pontos de tensão referentes ao significado da prática

de intervenção. É importante deixar claro que o presente trabalho não pretende esgotar a

exposição de esferas de tensão, uma vez que o debate a respeito da prática ainda se

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mantém capaz de estar, constantemente, gerando novos pontos de confronto.

Finalmente, o trabalho argumenta, diferentemente da maioria da literatura de

Relações Internacionais e do Direito Internacional, que a condição de imprecisão dos

termos que compõem o conceito de intervenção humanitária pode atuar de maneira

positiva na construção de molduras normativas mais frouxas para a sua prática,

possibilitando a emergência de um gradual consenso a respeito das necessidades

normativas e empíricas, em cada caso. Sendo assim, ao final do capítulo, reforçaremos a

posição da jurista Jane Stromseth (2003) quando essa defende a necessidade de se

manter, nas tomadas de decisão a respeito da prática de intervenção humanitária, um

sistema aberto de construção de significado e regulação. Tal posição é paralela à noção

de Wittgenstein quando esse aponta-nos a necessidade de vislumbrar estruturas amplas

da análise pelas quais os objetos possam preservar suas multiplicidades.

Conforme mencionado no capítulo anterior, a prática de intervenção humanitária

não se encontra redigida nos documentos internacionais e, nem tampouco, faz parte do

conjunto de normas costumeiras da sociedade internacional. Na Carta da ONU,

principal documento internacional, o termo intervenção encontra-se claramente proibido

no Artigo 2(7): “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a

intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer

Estado...”.

A atividade intervencionista humanitária também não pode ser considerada uma

norma costumeira, pois não há um consenso entre os Estados a respeito dos elementos

que a compõem, como também não reflete um comportamento novo e constante

exercido por uma parte preponderante dos Estados, durante um período considerável de

tempo (Buchanan, 1999, p. 134).

Enquanto alguns autores como Fernando Téson (1984) e Terry Nardim (2006,

p.1) afirmam que a maior dificuldade em definir o termo intervenção humanitária se

encontra na imprecisão denotativa e conotativa do termo ‘intervenção’, uma vez que

intervenção pode vir a representar desde uma interferência política em assuntos

domésticos de um Estado, até a uma invasão territorial militar sem o convite prévio,

outros como Stephen Garrett (1999, p.1) apontam para a falta de especificidade do

conceito “humanitário” como contribuinte à falta de precisão ao termo intervenção

humanitária. Na opinião de Garrett, o termo humanitarismo vem sendo utilizado nas

relações internacionais para apontar ações que visam melhorar as condições de vida dos

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seres humanos, desde a distribuição de ajuda às vítimas de desastres ao uso da força

para assegurar determinados direitos. Como Tesón e Garrett, que se voltaram a

investigar as imprecisões a respeito dos conceitos “intervenção” e “humanitário”, volto-

me a investigar de que forma as imprecisões nos conceitos centrais que compõem a

prática de intervenção humanitária, por exemplo, “violação de direitos humanos” e

“ameaça à segurança internacional” contribuem para a nebulosidade em relação ao

significado da prática. Como, então, reconhecer casos que se qualificam na categoria de

ameaça à paz e à segurança internacionais?

Para Barry Buzan, Ole Waever e Jaap de Wilde (1998) questões de segurança

são aquelas que representam um perigo existencial ao objeto em questão, qualquer que

seja este objeto. Esses três autores, em suas análises no “Security: a new framework for

analysis” (1998), aduzam que a sociedade é dividida por setores (militar, político,

econômico, social e ambiental) e cada um desses apresenta seus devidos objetos e suas

correspondentes ameaças existenciais. A identificação e tratamento da ameaça se mostra

de acordo com a natureza e o funcionamento do objeto em questão (ibidem, p.25).

Nesse sentido, cada setor é composto por tipos específicos de interações: o setor militar

é composto por relações de força e seu objeto de referência, na maior parte das vezes,

trata-se do Estado. Adicionalmente, ainda no setor militar, sua noção de segurança tende

a abarcar quaisquer instâncias militares. O setor político, por sua vez, é constituído por

relações de autoridade, status governamental e reconhecimento; e suas ameaças

existenciais são as direcionadas aos princípios constitutivos da unidade política,

normalmente o Estado, como o princípio de soberania, etc (Buzan et al, p.7 e 22).

O trabalho desenvolvido por Buzan, Waever e de Wilde apresenta uma resposta

a um debate mais amplo voltado às fronteiras e à natureza da noção de segurança que

ocorreu durante os anos 70, 80 e 90. As discussões giravam em torno da necessidade ou

perigo de ampliar o conceito de segurança a fim em abarcar novos tipos de ameaça. Este

debate era dividido entre os autores que advogavam a favor da ampliação e os que eram

contra (os tradicionalistas). Os três autores, por mais que reconhecessem a necessidade

de ampliar o debate, também levaram as críticas dos tradicionalistas (os que eram contra

a ampliação) a sério, expressando perigo se abrir demais o conceito a ponto deste não

mais fazer sentido.

Uma das grandes contribuições do trabalho desses três autores refere-se à

caracterização de um processo denominado de securitização, isto é, a passagem dos

assuntos não militares para a esfera militar de segurança. De acordo com esses autores,

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para que um assunto venha a ser transferido de um espaço político tradicional (espaço

onde as questões se encontram abertas para discussão) para o espaço de segurança

(espaço privativo, fechado e manuseado apenas por lideres), esse deve receber um

tratamento de urgência e prioridade pelas quais as normas e regras podem ser refeitas e

renegociadas a fim de tratar o caso em questão (Buzan et al, 1998, p.29).

Adicionalmente, sua audiência, ou seja, o público receptor da referida questão, deve

reconhecer que tal assunto deva ser tratado como uma ameaça (ibidem, p.25), conforme

apontam os autores: “Securitizar uma questão é apresentá-la como uma ameaça

existencial, na qual necessita de medidas de emergência e ações cujas justificativas

passam por fora dos procedimentos políticos tradicionais” (ibidem, 1998, p.24).

Assim, a caracterização de questões de segurança e, conseqüentemente, de suas

ameaças depende da identificação de elementos que serviam à manutenção da

sobrevivência dos objetos principais de um determinado setor. Logo, identificando-se o

processo pelo qual questões que não vieram a envolver o uso da força adquiram status

de segurança, os autores puderam contribuir para que o conceito de segurança pudesse

ser ampliado, sem perder seu foco (ibidem, p.4-5). A exposição do processo político de

securitização mostra-se relevante nesse trabalho por levantar um questionamento a

respeito do que compõe a natureza das questões de segurança.

Outro ponto de controvérsia para a caracterização da prática de intervenção

humanitária refere-se à falta de critérios que identifiquem quando uma extrema violação

de direitos humanos se qualifica como representando uma ameaça à paz e à segurança

internacionais. Nesse sentido, de acordo com os primeiros autores abordados, a falta de

consenso a respeito do que consiste uma grave violação de direitos humanos também

deriva da falta de precisão do que consistem os direitos humanos. Entendemos como

precisão a presença de critérios definidos de medida ou caracterização. Esse ponto foi

ressaltado na literatura por Jack Donnelly, quando expõe o Artigo V da Declaração

Universal dos Direitos Humanos: “ninguém deve ser sujeito à tortura ou tratamento

cruel, desumano, degradante ou punição”, para em seguida questionar os limites para

que um tratamento venha a ser tornar cruel. Apesar da universalidade dos direitos

humanos ter sido reforçada pelas diplomacias ao redor do mundo, principalmente, pelas

ocidentais, na Declaração Universal dos Direitos Humanos não há uma descrição mais

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objetiva a respeito do se considera crueldade no tratamento de pessoas1. Apesar de todos

concordarem que o princípio à vida deve ser protegido, alguns sistemas jurídicos

utilizam a pena de morte como forma de punição, como alguns estados americanos,

enquanto em países europeus a pena de morte é vista como uma punição cruel e

desumana (Donnelly, 2003, p.95).

Adicionalmente, a falta de consenso a respeito da caracterização dos direitos

humanos entre os representantes dos Estados no Conselho de Segurança influencia

negativamente a tomada de decisão dentro do Conselho, tornando-a bastante lenta e, às

vezes, até improvável (Reisman, 2000, p.7-8).

A fim de apontar o motivo pelo qual o regime de direitos humanos mostra-se

incapaz de gerar consenso em torno de seus direitos, Antonio Cassese (2005) ressalta

que, no texto da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), há mais espaço

reservado aos direitos civis e políticos do que aos direitos econômicos, sociais e

culturais, sugerindo uma dificuldade na aquisição de um status universal ao regime.

Aprofundando um pouco mais a questão, Cassese sugere que a Declaração Universal

dos Direitos Humanos, ao nos apresentar uma lista constituinte de direitos fundamentais

do homem, não leva em consideração que os diversos Estados na comunidade

internacional apresentam culturas distintas e níveis de desenvolvimento econômicos

diferentes. Dessa forma, podemos sugerir que o texto pode acabar dificultando a

formação de um espaço de concordância a respeito dos mínimos denominadores

comuns que compõem o regime internacional de direitos humanos (ibidem, p.381).

Na disciplina de Relações Internacionais, a falta de consenso em relação à

natureza e importância do regime de direitos humanos também se mostra presente nos

debates acadêmicos. Por exemplo, em discussões referentes à possibilidade de

existência de denominadores culturais comuns para a constituição e aplicação do regime

de direitos humanos. Nesse debate, as posições se confrontam. De um lado, os

universalistas, como Jack Donnelly (1999, p.71-102), defendem a existência de um

consenso entre as culturas sobre os critérios mínimos para o reconhecimento de uma

vida digna, enquanto os relativistas, como Ken Booth (1999, p.31-70) e Chris Brown

(1999, p. 103-127) alertam para o perigo de se universalizar concepções que apenas

existem e fazem sentido imersos em contextos sócio-culturais específicos. Ainda há os

1 Isso é importante para não “ossificar” o direito, já que o conceito de crueldade tem se alterado com o desenvolvimento da consciência humana.

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acadêmicos situados ao meio, como o filósofo Richard Rorty (1993, p.113) e Bhikhu

Parekh (1999, p.128-159). Rorty defende que os arquitetos liberais do projeto de

universalização dos direitos humanos deveriam recorrer a uma educação sentimental,

para construir algum tipo de aproximação e consenso entre indivíduos de diferentes

culturas, enquanto Bhikhu Parekh aponta para a possibilidade e a necessidade de se

construir um diálogo inter-cultural como forma de oferecer voz às culturas não

ocidentais, silenciadas no processo de universalização dos direitos humanos. Nessa

última visão, a possibilidade de participação em um debate maior e inter-cultural acerca

dos significados dos direitos fundamentais dos homens aproximaria as culturas

diferentes, possibilitando a ascensão de um consenso para a eleição de critérios mínimos

inter-culturais.

Tendo como ponto de partida a afirmação de que não há um consenso na

literatura e entre os Estados a respeito do que consiste uma intervenção humanitária,

Paula Spiller (2007) em sua pesquisa, elabora uma moldura na qual expõe linearmente,

os principais pontos caracterizadores de uma intervenção humanitária. Em cada

categoria, a autora nos apresenta um alto nível de discordância entre os acadêmicos das

Relações Internacionais. Estão entre os critérios selecionados pela autora: (i) o agente

da intervenção; (ii) o uso ou não da força; (iii) as violações de direitos humanos que

pedem por uma intervenção humanitária; (iv) os objetivos da intervenção humanitária;

(v) o momento da intervenção e (vi) os motivos da intervenção humanitária. O trabalho

da autora se mostra fundamental a fim de expor com grande riqueza as discordâncias a

respeito da caracterização do que se constitui uma intervenção humanitária (Spieler,

2007).

Conclui-se essa primeira parte do capítulo evidenciando a presença notável de

uma falta de consenso nas esferas acadêmicas referentes à caracterização e conceituação

da prática de intervenção humanitária.

3.2. Identificando e “tratando” a imprecisão do significado da prática de

intervenção humanitária e a tese da indeterminação da linguagem

Como acabamos de ver, a posição mais comum encontrada dentro da academia

de Relações Internacionais aponta a falta de definição para a prática de intervenção

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humanitária como um problema, por uma série de motivos. Inicialmente, por que sem

um consenso mínimo a respeito dessa prática, torna-se inviável construir qualquer

moldura que a regule. Seguindo essa linha, a falta de normatividade pode atuar como

condição permissiva ao abuso da pelos mais fortes (Weiss & Chopra, 1995, p. 90), além

de impossibilitar que se construam expectativas correspondentes aos comportamentos

dos Estados, quando estes se encontram diante de severas violações de direitos

humanos. Finalmente, a ausência de um entendimento a respeito dos critérios

necessários para a prática de intervenção humanitária pode tornar demasiadamente

lento, quando possível, o reconhecimento dos casos que pedem por uma intervenção

(Buchanan, 2003, p. 131).

No mundo da diplomacia, tal posição pode ser averiguada segundo o relatório

anual “Reports on the Work of the Organization” em 1991, onde o ex-Secretário Geral

da ONU, Javier Perez de Cuéllar, chama os membros a interpretar os princípios de

soberania e não-intervenção, expressos na Carta da ONU, a fim de que se permita o

exercício de intervenções humanitárias em casos graves de violações de direitos

humanos, e enfatiza a necessidade de se identificar condições objetivas pelas quais a

intervenção deve se materializar, para melhor orientar os tomadores de decisão no

Conselho de Segurança (UN DOC.no. A/46/I, Sept.6, 1991, p.10-11).

Semelhantemente, durante a experiência da intervenção em Kosovo, o Primeiro

Ministro inglês Tony Blair discursa apontando que seus representantes têm ativamente

promovido diretrizes na identificação dos casos em que o Conselho deve atuar: “(they)

[h]ave actively promoted guidelines for humanitarian intervention that aim to identify the

circumstances in which the Security Council should be prepared to act” ( Blair, 1999, s.p.).

O argumento inglês é uma parte de uma proposta mais ampla, na qual o governo

desse Estado sugere cinco critérios a serem acordados e utilizados nas rodadas de

decisões do Conselho de Segurança. O objetivo é construir um consenso mínimo para a

ação de intervenção humanitária, permitindo também que as tomadas de decisões do

Conselho, no futuro, sejam mais rápidas (Wheeler, 2003, p.240). Na opinião do

Primeiro Ministro, o desenvolvimento de critérios comuns atuaria de forma a diminuir o

espaço entre a necessidade de ação e os interesses políticos entre os Estados membros.

“The most pressing foreign policy problem we face is to identify the circumstances in

which we should get actively involved in other people’s conflict”.

Assim, os dois líderes apresentados ressaltam a importância de se codificar

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critérios objetivos que governem as circunstâncias para as quais a intervenção

humanitária apresenta-se como justificável e necessária.

Como vimos, os conceitos centrais que compõem o significado de uma

intervenção humanitária no Conselho de Segurança não se encontram definidos pelo

direito internacional público, por essa razão alguns diplomatas sugerem a necessidade

de desenvolver critérios que qualifiquem um caso como uma questão de segurança, ou

em outras palavras, que nos apontem a passagem de um assunto não militar, como uma

violação de direitos humanos, para a esfera de segurança internacional, constituindo o

processo que Buzan, Waever e de Wilde denominaram de securitização (Buzan et al,

1998).

No entanto, também não podemos afirmar que há um consenso referente aos

critérios que possam identificar violações de direitos humanos que qualifiquem uma

intervenção humanitária. Para Nicholas Wheeler (2000), uma intervenção humanitária

deve ocorrer frente a situações de emergências humanitárias supremas, entendidas pelo

autor como casos de abuso tão grandes e chocantes que a única esperança de alívio

venha de fora das fronteiras. Percebemos, em sua definição, uma caracterização bastante

ampla e, principalmente, subjetiva, o que para Wheeler é proposital, pois em sua

opinião definir uma situação de emergência suprema contabilizando mortos e refugiados

parece demasiadamente arbitrário, além de não refletir a qualidade emergencial do caso.

Posição semelhante é reforçada por Michael Walzer (1977, p. 251-68), quando aponta

que uma intervenção deve ocorrer a partir do momento que o grau de violência passe a

alarmar a consciência humana. Nesses dois autores, percebemos um desprezo ou a

defesa de uma posição de impossibilidade em eleger critérios objetivos que venham a

quantificar e qualificar uma situação de violência humana digna de uma intervenção

humanitária.

A fim de dar continuidade ao presente capítulo e adentramos a próxima parte,

considera-se importante uma pequena recapitulação do que já fora dito previamente.

Vimos até então, que, de acordo com os acadêmicos de Relações Internacionais e do

Direito Internacional, a imprecisão referente ao significado da prática de intervenção

humanitária pode ter como origem a indefinição dos conceitos centrais que a

arquitetam. Nesse caso, a maioria dos autores e diplomatas aponta a necessidade de

criação de critérios ou normas a fim de precisar o significado dos termos centrais, como:

‘violação de direitos humanos’, ‘intervenção’, ‘ameaça à paz e à segurança

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internacionais’, etc. Nesse sentido, podemos sugerir que a imprecisão referente à prática

ocorre pela falta de critérios e regras jurídicas que a identifiquem (Weiss & Chopra,

1995, p.105).

A primeira sugestão ao “tratamento” da imprecisão das normas internacionais,

ou do sistema jurídico como um todo, como previamente exposto, aponta para o

fornecimento de regras mais claras sobre o uso dos termos em regras já existentes (Hart,

1996). Por exemplo, quando os membros do Conselho questionam se um determinado

caso se qualifica como uma violação massiva de direitos humanos, percebemos a

necessidade de adicionar critérios objetivos que possam indicar, de forma clara, o que se

entende por violação massiva de direitos humanos. Logo, a decisão da aplicação de uma

regra em um caso concreto recai sobre a questão do significado ou abrangência de um

termo classificatório encontrado na regra (Struchiner, 2002, p.69).

No entanto, se elaborarmos um pouco mais o que foi dito acima, podemos partir

do pressuposto que, mesmo se criássemos normas e critérios para identificar e regular

todos os casos até então existentes, ainda haverá a possibilidade de emergirem novos

casos análogos que não se encaixam nas normas e critérios vigentes. Frente a esses

novos casos, o sistema de regras passa se constituir em algo pouco preciso, pois tais

situações trazem novos elementos que nem sempre se incluem no atual sistema jurídico.

Dessa forma, qualquer sistema de leis, potencialmente, apresenta uma condição de

indeterminação jurídica, isto é, uma possibilidade constante de possuir regras imprecisas

diante de novos casos ou casos que pedem novas abordagens, já que os legisladores não

conseguem prever e criar, de forma antecipada, todas as normas necessárias para reger

estas situações (Hart, 1996).

Diante da falta de caracteres específicos para tratar os novos casos ou casos que

pedem uma re-interpretação, recai então, sobre os membros do Conselho de Segurança

preencher os espaços entre estes e as regras já existentes ou até criar novas normas

costurem as lacunas existentes (Ratner, 2004, p. 602). Assim, quando os Estados se

encontram diante de um caso identificado como uma ameaça internacional, cabe ao

Conselho realizar as declarações jurídicas interpretar o texto da Carta, promover a

relevância das normas internacionais na resolução de disputas e requerer que os Estados

respeitem e ajam de acordo com as regras jurídicas, incluindo regras por ele estipuladas

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que não constam no texto da Carta2 (Ratner, 2004, p. 602).

Para Thomas Franck (2003), um jurista que bebe da influencia do realismo

jurídico, e o acadêmico Steven Ratner (2004), o Conselho de Segurança assume a

posição central de garantir o preenchimento das lacunas jurídicas, exercendo o papel de

juiz da sociedade internacional (além do exercício das funções de legislador e executor

das regras jurídicas referentes às questões de segurança).

É importante mencionar que, de acordo com Ratner (2004, p. 592), os membros

do Conselho atuam frente a uma situação de brecha no direito internacional, ou seja, em

uma condição além do alcance das normas internacionais. Nesse sentido, o Conselho

atuará interpretando cada caso em questão, ou seja, se esse consiste ou não uma ameaça

à paz e se segurança internacional, e atribuindo-lhes o tratamento mais adequado.

Assim, por mais que o processo de tomada de decisão seja embasado por normas

internacionais, o Conselho pode se ausentar de sua obediência quando julgar um caso

uma ameaça à paz e à segurança internacional. “It is significant that the first-listed, core UN

function - to prevent and remove threats to the peace –does not include the provision requiring

conformity with international law” (Ratner, 2004, p.592).

Steven Ratner chega a afirmar que o Conselho não sofre constrangimento do

direito internacional quando age face a uma ameaça ou uma brecha da segurança e paz

internacional (idem, p.592), pois assume, por meio da sua posição de autoridade na

estrutura internacional, uma posição de inviolabilidade. Logo, as resoluções do

Conselho de Segurança são juridicamente obrigatórias, e não precisam estar baseadas

nas normas internacionais existentes, já que o Conselho emana regimentos quando os

casos são identificados como ameaças à paz e à segurança internacional. A opinião

desse autor se mostra em conformidade com a de Thomas Franck, jurista realista

internacional, quando ambos ressaltam o papel do Conselho em interpretar as normas

internacionais vigentes a fim de adaptar os casos práticos às molduras normativas

existentes.

Para H.L. Hart (1996) jurista ilustre por ter trazido ao estudo jurídico as idéias

provenientes da Filosofia da Linguagem, na esfera do direito podemos encontrar dois

tipos de casos: os simples e os difíceis. Os casos simples não são problematizados pelo

autor, pois exprimem um relativo consenso a respeito dos significados dos termos

2 No entanto, de acordo com o Art. 36,§3o quando a questão é jurídica, o Conselho de Segurança da ONU deve recomendar que as partes em litígio a submetam à Corte Internacional de Justiça, que é órgão judicial por excelência.

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empregados nas regras. Já nos casos denominados “casos difíceis” ou “hard cases”, o

significado dos termos empregados em suas regras pode ser visto como objeto de

discordâncias, como ocorre nos caso de intervenção humanitária, e para que o direito

possa regulá-los, deve-se recorrer à atividade interpretativa dos juízes, que apontam os

significados mais apropriados para cada caso. Ainda de acordo com o autor, os casos

difíceis são menos comuns no direito doméstico, pois, na maioria das vezes, a

linguagem das regras é facilmente acordada e compreendida pelos participantes. Porém,

como supramencionado, regras claras convivem, constantemente, com a possibilidade

de se tornarem vagas e indeterminadas, principalmente quando novos casos emergem

cujas caracterizações não são semelhantes o bastante para se encaixem nas regras

vigentes.

Em qualquer caso, mas principalmente nos casos juridicamente difíceis como as

intervenções humanitárias, onde às regras por si só não determinam uma única e clara

solução, os julgadores remediam as lacunas recorrendo à atividade discricionária, ou

seja, interpretando as regras (Struchiner, 2003, p.36). A idéia de um sistema jurídico que

está em constante possibilidade de apresentar uma condição de indeterminação jurídica,

por ser desenvolvido e intermediado pela linguagem, foi claramente expressa por

H.L.A. Hart em sua obra “O Conceito de Direito” (1996). É importante mencionar que a

referente tese, que aponta para um potencial de indeterminação jurídica em qualquer

sistema de normas, teve sua influencia nos escritos de Wittgenstein (1958) e refere-se à

impossibilidade da linguagem não conseguir esgotar as caracterizações das coisas no

mundo. Assim, os comandos jurídicos, por serem compostos de linguagem, não

conseguem se apresentar de forma conclusiva. Destarte, nenhuma regra adicional ou

“nenhuma explicação poderia afastar toda a possibilidade de indeterminação, uma vez

que, nenhum sistema de regras pode, de antemão, estimar as incontáveis possibilidades

passiveis de ocorrência” (Wittgenstein, 1958, p.84-7).

Logo, podemos sugerir que mesmo que “tratássemos” a imprecisão da prática de

intervenção humanitária com a adição de normas e critérios codificados, quanto à

identifiquem e regulem os casos potenciais e as ações militares humanitárias, ainda

caberia aos membros do Conselho interpretar, politicamente, os critérios e normas que a

viriam a ser utilizados em cada caso.

Reflete-se, na opinião da jurista internacional Jane Stromseth (2003), que a falta

de consenso entre os estadistas referentes à caracterização, legalidade e critérios de

qualificação da prática de uma intervenção humanitária apontam para o fato do

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significado do termo intervenção humanitária ainda encontrar-se em andamento e

negociação. Por isso, qualquer iniciativa de tentar precisar de forma arbitrária as normas

para a identificação e regulação das missões humanitárias seria uma ação imatura e

retrógrada, pois os casos de intervenção humanitária são demasiadamente diferentes uns

dos outros, e os Estados ainda não sabem como desenvolver um conjunto de regras

jurídicas que pudesse levar em consideração essas diferenças. Dessa forma, na opinião

da jurista, a maneira mais produtiva de se decidir pelo tratamento mais adequado para

os casos de intervenção humanitária seria por meio do fomento de debates entre os

atores internacionais em direção ao desenvolvimento de linhas gerais que viessem a

orientar os membros do Conselho nas tomadas de decisão. Logo, percebe-se que o

terreno da ambigüidade também pode ser visto como um campo fértil para a emergência

gradual de um consenso normativo baseado nas decisões tomadas caso a caso.

Como vimos, o primeiro tipo de vagueza trazida por esse trabalho foca-se na

imprecisão, ou seja, falta de critérios e regras secundárias que venham definir de forma

mais criteriosa conceitos e regras na identificação e regulação da prática de intervenção

humanitária.

Já o segundo tipo de imprecisão a ser analisado nesse final de capítulo é um

tradicional problema abordado pela Filosofia da Linguagem, denominado de

indeterminação natural da linguagem. Friedrich Waismann (1978), inspirado nas idéias

de Wittgenstein, veio primeiramente apontar em “Verifiability” a incapacidade da

linguagem de descrever o mundo empírico, afirmando que as palavras que referenciam

objetos no mundo tendem a conter uma zona de penumbra em relação ao seu

significado. Isso acontece por que não é possível, por meio de seu uso, descrever toda a

complexidade de um determinado objeto. “Nunca saberemos ao certo se incluímos na

nossa descrição tudo aquilo que deveria ter sido incluído e, portanto, o processo de

definição e refinamento de uma idéia vai continuar sem nunca atingir um estágio final”

(Waismann, 1978, p.123). A impossibilidade dos termos lingüísticos abarcarem

integralmente as descrições empíricas leva esse filósofo a desenvolver o conceito de

textura aberta da linguagem:

Por textura aberta da linguagem, Waismann pretende dizer que nossos conceitos empíricos e psicológicos não se encontram delimitados a priori, em todas as possíveis direções, não apresentado uma definição esgotada e delimitada de forma que não surjam espaços de duvida em relação ao seu significado (Struchiner, 2002, p.16).

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A incapacidade de descrição da realidade tem sua base na constituição

demasiadamente porosa dos termos lingüísticos, como se as palavras fossem compostas

de sistemas abertos ou tecidos porosos.

Hart (1996), conforme mencionado, um jurista inovador por ter trazido, ainda no

início da década de sessenta, para a disciplina de Direito parte das indagações também

feitas por Waismann (1978) a respeito da incapacidade das palavras expressarem o

mundo empírico (indeterminação da linguagem), aponta que, em todo sistema jurídico,

pelos comandos serem constituídos pela linguagem, seus significados dependem do

entendimento e das limitações dos termos lingüísticos utilizados. Assim, sempre haverá

a possibilidade de encontramos regras e normas pouco precisas a fim de reger os casos

materiais. Dessa forma, mostra-se fundamental ressaltar que a adição de regras

secundárias e termos explicativos não impedem que, futuramente, essas mesmas normas

venham a se tornar novamente vagas. Por isso,

enquanto a vagueza das regras (imprecisão) pode ser corrigida, a textura aberta que representa o potencial constante de vagueza mostra uma condição natural da linguagem e não pode ser resolvida, já que sempre poderão surgir casos em que o uso do conceito não foi previsto e não sabemos ao certo como caracterizá-lo (Struchiner, 2002, p.17).

Assim, concluímos o presente capítulo identificando dois tipos de origem para a

condição de imprecisão apontada previamente: (i) a vagueza proveniente da falta de

regras claras e precisas para o reconhecimento e regulação de uma determinada prática

(tipo de imprecisão mais comum abordada pelos juristas e atuante das relações

internacionais) e (ii) a vagueza (não tratável) proveniente do uso de termos de conceitos

empíricos que não oferecem um entendimento conclusivo a respeito de seus

significados, identificada pela filosofia contemporânea como a tese da indeterminação

da linguagem (ponto de partida dos escritos do segundo Wittgenstein).

No entanto, os dois tipos de vagueza (imprecisão das regras e indeterminação da

linguagem) se aproximam quando percebemos que mesmo com a inserção de novas

regras explicativas, todas as normas apresentam o potencial de se tornarem vagas pelas

palavras utilizadas não definirem de forma conclusiva seus significado. Dessa forma,

não há como oferecer um tratamento à linguagem a fim de torná-la mais precisa para

descrever, comunicar e constituir o mundo a nossa volta.

Como veremos adiante, a resposta de Wittgenstein ao problema da

indeterminação da linguagem se direciona em reafirmá-la como característica natural,

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assim como apontar que, apenas com seu uso. No contexto da prática da linguagem, as

palavras adquirem significados mais delimitados. Por isso, reforçamos que a dinâmica

de atribuição de significado às palavras, conceitos e comandos deve ser estruturada

como um sistema aberto de significação, possibilitando regular e fazer sentido de casos

diferentes referentes a um mesmo objeto, como as práticas de intervenção humanitária.

A fim de concluir a presente parte, vimos que os dois tipos de vagueza

apresentados nesse capítulo derivam das preocupações das ciências do Direito, das

Relações Internacionais e da Filosofia em tentar atribuir critérios mais objetivos às

regras jurídicas e palavras que denominam coisas no mundo empírico. Vimos também

nessa apresentação um ponto de partida para discutirmos, sob uma perspectiva

diferente, a problemática da falta de critérios nas regras e conceitos principais que

regem a prática de intervenção humanitária. A conclusão do seguinte capítulo direciona-

se em afirmar a indeterminação natural do instrumento da linguagem e, por isso, sua

impossibilidade em definir de forma conclusiva as coisas do mundo que nos rodeia.

Essa “porosidade dos conceitos” se mostra bastante adequada para a presente discussão,

inclusive, em debates fora dessas três esferas científicas, por não tratar a imprecisão

como um problema, e sim como uma propriedade intrínseca da linguagem. A linguagem

deve passar a ser entendida, de acordo com Wittgenstein (1958), como uma atividade

dinâmica que possibilita constantemente a abertura para novas formas de significação.

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4. As palavras e as coisas: a construção do significado por meio dos jogos de linguagem wittgenstenianos.

4.1. Introdução

A fim de compreender a construção de diferentes significados para casos de

violação de direitos humanos discutidos no espaço do Conselho de Segurança, o

seguinte capítulo apresenta uma breve exposição dos principais pontos de discussão e

contextos da chamada Filosofia da Linguagem.

Nesse trabalho, a linguagem adquire um lugar central, e o filosofo Wittgenstein

será utilizado para uma investigação a respeito de como a linguagem influencia e atua

no processo de tomada de decisão para as práticas de intervenção humanitária.

Afastando-se da tradição filosófica (tempos clássicos e modernos), Wittgenstein

descarta a viabilidade de uma teorização para a análise de seu objeto (a linguagem),

alegando ser imprescindível a tarefa de pesquisá-lo empiricamente, na prática. Isso

porque, de acordo com Wittgenstein, os filósofos e indivíduos em geral apenas têm

acesso à forma como a linguagem é utilizada quando essa encontra-se em exercício, no

dia a dia. Por isso, deve-se eleger a esfera prática da linguagem como o lócus

privilegiado para uma investigação acerca do problema da construção de significado.

Quando falamos sobre a construção de significado, queremos explicitar a relação entre o

uso da linguagem e o significado que as palavras possuem para os objetos ao nosso

redor. Logo, para Wittgenstein, todas as informações devem vir do uso da linguagem, e

não de construções abstratas sobre um funcionamento estrutural da construção do

significado.

A proposta wittgensteniana de observação da prática, mais especificamente,

direcionada à forma como a linguagem atua na construção do significado, encontra-se

em correspondência à linha teórica proveniente da Filosofia da Linguagem chamada

Pragmática, utilizada nesse trabalho. De acordo com Danilo Marcondes:

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Na lingüística, a pragmática se caracteriza pelo estudo da linguagem em uso, ou, segundo a definição de Charles Morris (1938), o primeiro a usar esse termo contemporaneamente, o estudo da “relação dos signos com seus intérpretes”. Rudolf Carnap (1938), o lógico e filósofo da ciência de origem alemã com quem Morris trabalhou em Chicago, por sua vez, definiu a pragmática como o estudo da linguagem em relação aos seus falantes, ou usuários. Tanto a definição de Morris quanto à de Carnap fazem parte da já consagrada distinção geral do campo de estudos da linguagem entre pragmática, que considera a linguagem em seu uso concreto, semântica, que examina os signos lingüísticos em sua relação com os objetos que designam ou a que se referem, e sintaxe, que analisa a relação dos signos entre si (Marcondes, 2000, p.39).

Conforme exposto, a linha da pragmática tem como objeto principal à

investigação da natureza e do funcionamento da linguagem em seus domínios práticos,

e não por meio de modelos abstratos, uma vez que acredita-se que apenas em

funcionamento os signos lingüísticos atuam no processo de construção de significado.

Quando aduzimos que a imprecisão referente ao significado da prática de

intervenção humanitária tem como respaldo explicativo à indefinição dos termos

centrais que compõem seu entendimento, conforme ressaltado por autores como Nardim

(2006) e Téson (1984), estamos realizando uma análise conceitual tradicionalmente

semântica. A Semântica, “como estudo das preposições”,busca desenvolver uma

investigação a respeito da relação dos termos lingüísticos, ou seja, as palavras, com a

construção de significados das coisas do mundo. “A Semântica refere-se à relação entre

os sinais e seus designatas, sendo designatum tudo aquilo que levamos em consideração

em virtude da presença do sinal”. Designatum não é uma coisa, mas uma espécie de

objeto ou classe de objetos”(Stalnaker, 1982, p.61). Em termos comuns, podemos

entender a semântica como a linha de estudos da linguagem que busca entender a

relação entre linguagem e as coisas no mundo. Ou seja, de que forma a linguagem, a

palavra, contém as verdades que representam as coisas no mundo externo”. Assim, cada

palavra apresenta em si um conteúdo lingüístico responsável pelo seu significado e, esse

mesmo conteúdo lingüístico, permite aos indivíduos o entendimento sobre as coisas que

os cercam.

A linha de análise semântica da linguagem teve seu período de predominância até

a primeira metade do séc. XX, e foi marcada pela preocupação de explanar um conjunto

específico de saber em meio à crença de uma realidade externa. Porém, em meados

desse mesmo século, um redirecionamento nos estudos marca uma mudança de fase.

Produziriam-se investigações que não se direcionavam exclusivamente à estrutura das

palavras, mas a sua relação com o contexto lingüístico e a possibilidade de construção

de múltiplos usos e significados. O que chama-se de fase contemporânea foi (e continua

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sendo) marcada, em grande medida, pelos últimos escritos de Wittgenstein em meados

do séc. XX.

Podemos sugerir que, quando buscamos compreender a relação entre linguagem

e o significado, neste trabalho e em geral, a linha mais atual, a Pragmática, talvez nos

mostre ser mais apropriada, pois direciona-se para a forma como as palavras são

utilizadas em um contexto específico, a fim de construírem significados. Assim, para

Wittgenstein,

não há um ideal de exatidão. O contraste entre exato e inexato é relativo a um contexto e a um propósito. Uma definição inexata não é aquela que deixa de satisfazer o fugaz ideal das determinabilidade, mas sim aquela que deixa de satisfazer os requisitos para a compreensão em um dado contexto (Wittgenstein, 1958 § 88).

A maior crítica de Wittgenstein aos demais filósofos da linguagem era referente à

tentativa desses de sistematizar o funcionamento da linguagem. A linguagem, de acordo

com Wittgenstein, não permite sistematização, pois é demasiadamente heterogênea e

diversa nas formas como se apresenta na prática. Logo, se viéssemos a confinar as

múltiplas formas encontradas de linguagem em um modelo ou em uma simplificação,

amputaremos dessas práticas suas múltiplas formas, qualidade intrínseca que

Wittgenstein se propõe a investigar. As diversas formas de linguagem não podem ser

sistematizadas a um nível de abstração que nos faça perder a dimensão de sua prática

cotidiana. “Não pense, veja” (Wittgenstein,1958 § 66) como as palavras, os gestos estão

sendo utilizados em um certo contexto para se compreender o significado da linguagem

utilizada.

Isso se mostra importante, pois, conforme vimos, uma grande parte dos

acadêmicos e diplomatas insiste na falta de precisão dos termos que compõem o

significado da prática de intervenção humanitária como responsável pela imprecisão a

respeito da própria prática. Nesse sentido, se aproximam das análises da semântica, e

argumentam a favor da criação de regras e critérios que venham a identificar, delimitar

e regular de forma mais eficiente a prática de intervenção humanitária.

Platão, em Crátilo (sobre a Natureza dos Nomes), aponta para a improdutividade

do estudo das palavras no entendimento da construção do significado, uma vez que o

vínculo entre essas duas instâncias apresenta uma natureza convencional. Assim, os

sons das palavras que produzem os significados das coisas, em sua opinião, são

resultantes de acordos prévios realizados na sociedade, refletindo uma realidade

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convencionada e não o mundo externo que o filósofo visa alcançar (Marcondes, 1986, p.

84-85). Em outras palavras, pela relação entre as palavras e as coisas se estabelecer

arbitrariamente, cabendo ao legislador o papel de atribuição de nomes às coisas, o

estudo das palavras (ou signos lingüísticos) pouco acrescenta a compreensão a respeito

do significado das coisas no mundo empírico.

Sócrates (1987), outro pensador clássico representante da linha teórica

Naturalista, defende que apenas o conhecimento das palavras da linguagem inata levaria

ao conhecimento das coisas. Sócrates acreditava que, na origem da formação das

primeiras linguagens humanas, essas eram onomatopéicas, ou seja, as palavras

reproduziam os sons das coisas, evidenciando-se, assim, uma natureza comum entre as

duas. Porém, à medida que as linguagens inatas foram se diversificando e se

transformando nas diversas linguagens cotidianas, o acesso ao nível natural se perde

junto com a relação de correspondência entre nome e coisa. Logo, conclui-se, da mesma

forma que Platão, que as linguagens comuns, utilizadas no dia-a-dia, não devem ser

levadas em consideração para um questionamento a respeito da construção do

significado das coisas, uma vez que o funcionamento dessa relação é entendido como

convencional e, assim, pouco contribui para o entendimento das coisas do mundo ao

nosso redor.

Aristóteles (1985), a fim de dar um tratamento diferenciado a questão da

convencionalidade dos signos nas indagações acerca da construção do significado,

introduz um terceiro elemento na equação entre linguagem e conhecimento: a mente. De

acordo com Aristóteles, a mente é dotada de uma estrutura discursiva capaz de

converter as afecções da alma em palavras. A instituição mental atuaria como um meio

intermediário da relação convencional entre as palavras e o significado das coisas.

Assim, as palavras expressam algo que se encontra anteriormente no pensamento.

Percebe-se, em Aristóteles, a introdução de uma teoria mentalista para responder

ao problema da convencionalidade dos signos lingüísticos trazidos anteriormente por

Platão e Sócrates.

Com o advento da Filosofia Moderna, o questionamento referente à construção

do conhecimento se manteve, porém, a linguagem se mostrava cada vez mais

desprezível para um entendimento acerca do conhecimento. Os filósofos modernos

passaram a evitá-la pela sua capacidade de produzir erros e falsas representações do

mundo externo. John Locke foi um dos poucos pensadores modernos (senão o único)

que garantiu ao estudo da linguagem um espaço em seus escritos filosóficos. Em seu

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Livro III do Ensaio Sobre o Entendimento Humano (1979), Locke aponta a linguagem

como um fruto da experiência humana; o homem desenvolve a capacidade de

comunicação com a intenção de viver melhor. Para Locke, a atividade comunicativa

associa cada palavra a uma idéia que, por sua vez, está associada à coisa que queremos

representar. “O uso das palavras deve ser marca sensível de idéias, e as idéias que elas

indicam são a sua própria e imediata significação”. Logo, as palavras representam as

coisas, intenções e interesses que os homens querem expressar, atuando como o meio

para a comunicação do pensamento.

Destacado por sua trajetória no estudo da linguagem, Wittgenstein inicia em

1922 seus escritos, partindo ainda de uma concepção abstrata e lógica do funcionamento

da linguagem. Em seu primeiro trabalho, Tractatus Logicos-Philosophicus, as palavras

atuariam de forma a substituir, de forma fidedigna, os objetos a que se referem,

construindo, dessa forma, uma “teoria pictória” do significado da linguagem cujo

critério de análise ainda pertencia ao mundo externo, objetivo e independente da

agência humana (Fierke, 2002, p.334-6). Tal teoria chama-se de pictória, porque as

palavras representavam coisas que existem no mundo, no sentido que quando falamos

sobre elas, podemos constituir imagens mentais a seu respeito (Marcondes, 1994, 221-

3), idéia semelhante a seu antecessor Locke.

No entanto, Wittgenstein, se predispondo à observação prática do uso da

linguagem e seus múltiplos usos, acaba por perceber a limitação de suas idéias originais,

e (Wittgenstein, 1921, 2.1-2.225) opta por um afastamento da vida acadêmica. Seu

retorno ocorre apenas ocorre anos depois, trazendo consigo idéias novas que

confrontavam às suas anteriores.

Em “Investigações Filosóficas” (1958), o segundo Wittgenstein direciona suas

análises à condição de multiplicidade da linguagem e à forma como tal multiplicidade

atua, dinamicamente, na construção de uma realidade social e de natureza intersubjetiva

(Fierke, 2002). Associando a idéia da condição de imprecisão natural da linguagem ao

conceito de jogo de linguagem, Wittgenstein desenvolve uma representação dinâmica

do uso da linguagem para a construção do significado, e afirma ser apenas quando

inseridas em um específico jogo de linguagem que as palavras, enquanto unidades de

significação, passam a adquirir uma maior precisão em seu significado.

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Assim,

A palavra não tem significação quando nada lhe corresponde. É importante constatar que a palavra “significação” é usada incorretamente quando se designa com ela a coisa que ´corresponde´ a palavra. Isso é confundir a significação de um nome com o portador do nome (Wittgenstein, 1958 § 40).

Dito de outra forma, Wittgenstein afirma que as palavras detêm uma natureza

imprecisa e porosa e apenas quando postas em um contexto argumentativo, dentro de

um jogo argumentativo específico, passam a adquirir um significado mais preciso.

Nesse sentido, pelas palavras naturalmente apresentarem uma estrutura porosa e

imprecisa, não se deve argumentar que a essas falta alguma coisa, como definição e

precisão. A condição de incompletude dos signos lingüísticos para Wittgenstein é

natural da linguagem e fundamental, pois possibilita a manutenção da multiplicidade

das formas de linguagem.

O segundo Wittgenstein, em seus escritos, buscou responder ao que ele próprio

denominou no inicio de Investigações Filosóficas, a tese de que o significado de uma

expressão é o objeto a que se refere. Essa mesma tese foi defendida, conjuntamente,

pelos filósofos Ferge e Russell, a qual Wittgenstein rebate em seus escritos, adotando

uma posição bastante adversa. De acordo com Ferge, para que um conceito possa existir

e atuar como tal deve possuir “limites bem definidos”, isto é, sua definição deve

“determinar formas não ambíguas, para qualquer objeto, se ele cai ou não no conceito”

(Laws II parágrafos 56-64; Posthumous 155). Como isso, a tese do presente filósofo

refere-se a exigência da completude de definição para os conceitos, de forma que a

vagueza da linguagem, posta como natural para Wittgenstein, em Ferge, assim como em

Russell, é vista como um defeito e deve ser evitada por meio do desenvolvimento de

uma linguagem ideal adequada aos propósitos científicos (Glock, 1997, p.126).

Dessa forma, em sua segunda fase, Wittgenstein desenvolve, com maior

plenitude, a defesa da tese do atributo da vagueza constituir uma característica natural e

essencial da linguagem. É bastante importante deixar claro que Wittgenstein não tem a

intenção de promover a vagueza da linguagem como algo positivo, nem negativo. Trata-

se de uma característica natural da linguagem e, por isso, não se deve exigir, conforme

Ferge e Russell, a determinabilidade do sentido, isto é, a insistência na idéia de que a

possibilidade da dúvida ou do desacordo quanto à aplicação de uma expressão deve ser

eliminada (ibidem, p.127). “Longe de estar insistindo na idéia de que a vagueza é

desejável, Wittgenstein insiste que o uso de termos como “inexato” e “incompleto” para

caracterizar o uso de expressões são depreciativos” (ibidem, p.128)

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Para Wittgenstein:

[O] significado de um signo não é o corpo de significado; uma entidade que determina o seu uso. Um signo não adquire significado por estar associado a um objeto, mas sim por ter um uso governado por regras. Se é ou não dotado de significado é algo que depende da existência de um uso estabelecido, da possibilidade de ele ser empregado na realidade, em atos lingüísticos dotados de significado; e o significado que possui depende de como ele pode ser usado” (Glock, 1997, p.359).

4.2. Jogo de Linguagem

Wittgenstein, em suas observações, estava interessado em investigar de que

forma, nas linguagens ordinárias, os interlocutores passam a construir significado por

meio de jogos de linguagens. De forma mais ampla, a curiosidade filosófica de

Wittgenstein se direcionava a analisar como é construído o processo de significação

mediante o uso da linguagem entre os indivíduos. Nesse sentido, Wittgenstein navega

na contramão filosófica daqueles que, ao longo dos anos, buscaram encontrar a

linearidade e não diferenças nas várias formas de linguagem.

Para que Wittgenstein viesse a compreender o processo pelo quais os conceitos

adquirem significados, ou seja, a forma como a linguagem funciona, esse pensador

desenvolve uma determinada moldura analítica que permite enquadrar o funcionamento

da linguagem sem castrá-la de sua complexidade e heterogeneidade. A moldura em

questão refere-se à analogia extremamente funcional do uso da linguagem com uma

noção de jogo. Funcional, pois ao mesmo tempo em que a idéia de jogo permitia que se

contextualizasse o funcionamento da linguagem, essa conseguia manter a idéia de

dinamismo e pluralidade atrelada ao uso da linguagem (Fierke, 1998, p.3). Dessa forma,

a moldura analítica desenvolvida por Wittgenstein é dotada de dinamismo necessário, já

que o funcionamento da linguagem se encontra em processo contínuo de construção de

significado.

Wittgenstein realiza o seguinte argumento: “Chamarei de jogo de linguagem o

conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada” (Wittgenstein,

1958, §7). É como se as atividades lingüísticas se encontrassem interligadas com nossas

práticas não lingüísticas: são sistemas de comunicação interligados as nossas atividades

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cotidianas. Nossos jogos de linguagem, então, se encontram submersos nas atividades

comunicativas do dia-a-dia, e dizem respeito às nossas vidas e às práticas gerais de uma

comunidade lingüística (1958, p.229). Dessa forma, Wittgenstein os denomina de “uma

forma de vida”. Por exemplo, o jogo de linguagem dos construtores de obras civis é tão

importante para a condução de seus trabalhos quanto o raciocínio indutivo aos

filósofos”.

O termo “jogo de linguagem” surge quando, a partir de 1932, Wittgenstein passa a

estabelecer uma analogia entre o funcionamento do jogo de xadrez e o funcionamento

da linguagem. A analogia principal se resume ao fato de ambas as experiências serem

guiadas por regras. Para Wittgenstein, o significado de um signo matemático, ou

lingüístico, assim como uma peça de xadrez, é a soma das regras que determinam “os

possíveis lances”. In using the term “language games” Wittgenstein makes the point that

using language is like making moves in a game, and it´s on the basis of shared rules that

we know ‘how to go on’ in particular contexts” (Fierke, 1998, p.17).

Um jogo de linguagem possui regras constitutivas, chamadas pelo filósofo de

regras de gramática ou regras do jogo. Distinguindo-se das regras estratégicas, as regras

gramaticais não determinam que a jogada terá êxito, mas sim se aquilo faz sentido e o

que se concebe como correto, definindo desta forma os possíveis caminhos no jogo de

linguagem.

A fim de exemplificar como um jogo de linguagem atua na significação das ações

dos indivíduos, construímos o seguinte exemplo: um homem vai ao mercado para

comprar maçãs, chega ao balconista do mercado e diz: “cinco maçãs verdes”, sem dizer

mais nada. Ele não está descrevendo os objetos em sua frente, mas sim, informando ao

vendedor que quer comprar as maças. O comprador não precisa explicitar que seu

pedido refere-se à atividade de compra, pois o fato de estar em um mercado frente a um

vendedor de maçãs já determina que a ação deve ser de compra. A resposta do

balconista está de acordo: “são três reais”, sem precisar determinar que este é o valor

referente às maças. Percebe-se, conforme o exemplo, que as palavras utilizadas neste

episódio adquirem um sentido específico de acordo com o jogo de compra e venda.

A situação acima descrita, por mais simples que seja, não deve ser vista de

forma banal, uma vez que serve ao propósito de expor que o significado as práticas e as

palavras utilizadas estão de acordo com o contexto em questão e o reconhecimento

pelos jogadores do tipo de jogo em andamento.

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Wittgenstein nos evidencia que o significado de uma palavra não é um objeto do

qual ela é um sucedâneo, sendo antes determinado pelas regras que governam seu

funcionamento. Assim, um indivíduo aprende o significado das palavras com a prática,

a partir do momento que aprende a utilizá-las.Tal aprendizado ocorre da mesma forma

pela qual aprendemos a jogar xadrez, não pela associação de peças a objetos, mas pelo

conhecimento relativo aos movimentos possíveis de cada peça. “O sentido das peças no

jogo configura-se no papel que cada uma desempenha” (Wittgenstein 1958, § 23, 199,

421).

Assim, nos jogos de linguagem, “o significado das palavras não se encontra

estabelecido pelas sentenças e, tampouco, pelo sentido de seus componentes, mas pela

função que fazemos das expressões lingüísticas (termos, sentenças, etc.) nos diferentes

contextos ou situações em que as empregamos, pelos efeitos e conseqüências que geram

em seus usos específicos” (Marcondes, 1994, p. 225). Na analogia do funcionamento da

linguagem com os jogos, Wittgenstein afirma que não podemos nos colocar fora da

linguagem para, então, assistirmos como essa descreve o mundo ‘real’, uma vez que nos

encontramos submersos em um mundo concebido e percebido pela linguagem. Para

Wittgenstein, o significado dos signos lingüísticos depende, em grande medida, de sua

utilização e de seu contexto de aplicação. Se o contexto vier a mudar,

conseqüentemente, os significados mudam concomitantemente. Assim, a linguagem

compõe o mundo em que vivemos, garantido-lhe significado e o funcionamento. “O

significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (Wittgenstein, 1958, §43).

Apesar de Wittgenstein não oferecer uma definição que venha a determinar a

caracterização de um jogo argumentativo, pode-se estabelecer que um jogo evidencia-se

como uma determinada situação dotada de regras que a constituem e atribuem

significados as jogadas executadas por seus participantes.

Ao se questionar sobre uma possível definição para aquilo que estaria

considerando como jogo de linguagem, Wittgenstein não nos apresenta uma figura ou

conceitos coesos, apenas relatando a pluralidade e heterogeneidade dos tipos de jogos, e

afirmando que todos são interligados por uma semelhança de família.

Considere, por exemplo, os processos que chamamos de jogos. Refiro-me aos jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. O que é comum a todos eles? Não diga: Algo deve ser comum a todos estes, senão não se chamariam jogos – mas, veja se há algo comum a todos eles. Pois, se você contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos eles, mas verá semelhanças, parentescos e até toda série deles. Como disse: não pense, veja! (Wittgenstein, 1958, §66).

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Como explicaríamos a alguém o que é um jogo? Creio que lhe descreveríamos jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: isto e outras coisas semelhantes chamamos de jogos. Não conhecemos limites (para esta caracterização), pois nenhum está traçado”. “Mas se o conceito de jogo é deste modo não delimitado, então você não sabe propriamente o que quer dizer como jogo” ·. “Pode-se dizer que o conceito de jogo é um conceito com contornos imprecisos. Mas conceito impreciso é realmente um conceito? Uma fotografia pouco nítida é realmente a imagem de uma pessoa? Sim, podemos substituir com vantagem uma imagem pouco nítida por uma nítida, mas não é a imagem pouco nítida justamente de que, com freqüência, precisamos?” (Wittgenstein, 1958 § 71).

4.3. Regras do Jogo As regras têm uma importância crucial para a filosofia de Wittgenstein, por ser a

linguagem uma atividade guiada por estas. As regras não apenas regulam o

comportamento lingüístico, mas também lhe atribuem identidade e ação (Fierke, 1998,

p.16), delineando um significado dentro de um determinado contexto. A motivação

central de Wittgenstein diante da investigação a respeito do papel das regras foca-se na

forma como estas guiam nossos comportamentos e determinam o significado das

palavras (Glock, 1997, p.312).

Todo jogo é munido de regras próprias que permitem sua condução: as

chamadas “regras do jogo”. A noção de regras trabalhada por Wittgenstein não diz

respeito às regras jurídicas, mas sim as regras da linguagem, ou seja, regras específicas

a cada situação lingüística que possibilitam a manutenção da interação. Apenas

mediante um contexto compartilhado de regras que sabemos como proceder, como nos

conduzir em contextos específicos (Wittgenstein, 1958, § 167, 179, 186, 198 e 566).

Assim, a linguagem utilizada em um contexto se encontra munida de regras que lhe

garantem significado. “Qualquer ação dentro das regras de um jogo específico pode ser

interpretada como uma expressão de seguimento ou quebra das regras” (Fierke, 1998, p.

18). Desta forma, “as regras do jogo apontam os limites de cada jogo, o ponto último

esperado por cada jogador” (idem, p.17). Sair do escopo destas regras é não fazer mais

sentido, é “não jogar o jogo”. É de fundamental importância mencionar que as regras do

jogo lingüístico, assim como em qualquer outro jogo, não se encontram previamente

estabelecidas, sendo desenvolvidas ao longo do jogo, “as we go along” (Wittgenstein,

1958, §83).

Podemos chamar, nesse trabalho, as regras do jogo como regras de experiência,

por se basearem em uma expectativa que os jogadores têm em relação as jogadas dos

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demais. Assim, percebe-se a importância da manutenção das relações de interatividade

dos jogos em geral, pois sem essas os jogos não mais poderiam existir. Wittgenstein, em

seus escritos, não oferece uma definição analítica para o conceito de regra, pois

acreditava ser um conceito determinado por semelhanças de família (semelhança entre

objetos encontrados na realidade), sendo melhor explicado por meio de exemplos

variados.

De acordo com Wittgenstein, regras são:

(i) padrões de correção, não descrevendo o que as pessoas falam, mas definindo o

que é falar corretamente (o que é fazer sentido dentro de um determinado

contexto).

(ii) inerentemente gerais, governando uma multiplicidade ilimitada de

ocorrências.

(iii) a expressão verbal indicativa da realização de um ato

(iv) pressupostas com base em um certo padrão de regularidade, onde há o

conhecimento da regra e intenção de seguí-la.

Assim, a regra oferece um padrão, pelo qual podemos descrever, caracterizar

ações como “obedientes” ou “transgressoras”. (p. 316). “Compreender a regra é saber

como aplicá-la, saber o que pode ser considerado, como agir em conformidade com ela

ou transgredi-la” (Wittgenstein, 1978, p.331-2).

No entanto, por mais que o acordo comunitário para o desenvolvimento e

aplicação de uma determinada regra mostra-se como um fator fundamental, “fazer o que

a maioria faz” nem sempre está de acordo com o agir corretamente, uma vez que as

regras podem ser mal aplicadas por um grupo de pessoas. A regra é nosso padrão

comunitário de correção, mas esse padrão apenas pode existir se houver prática

suficiente para determinar o que conta como seguir a regra e o que conta como

transgredí-la (p.316). Uma regra não determina o caminho de uma ação, apenas

determina o que faz sentido em um determinado jogo. “Qualquer movimento dentro de

um jogo (xadrez, por exemplo) é uma expressão de seguir ou quebrar as regras que

descrevem as fronteiras nas quais seja possivel dizer ou fazer” (Fierke, 1998, p.18).

Quando os jogos são semelhantes (como emergências humanitárias), algumas

regras podem ser utilizadas dos jogos anteriores, ou seja, jogos passados influenciam no

significado do jogo atual devido ao seu grau de similitude (Fierke, 1998, p.20).

Regras procedimentais entre jogos semelhantes também podem ser as mesmas.

Nesses casos, as experiências de casos de intervenção anteriores podem atuar na

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identificação de novos casos. Esse ponto se mostra particularmente interessante para a

discussão a respeito do reconhecimento de casos para intervenções humanitárias.

Porém, mesmo diante de similitudes com jogos anteriores e regras de

procedimento, nada ainda garante que o resultado seja o mesmo. “The unfolding of one

game is not a guide to how future matches will unfold” (idem, p.20). Nesse sentido,

podemos começar a entender como em casos reconhecidos como semelhantes pelos

tomadores de decisão, os casos influenciam, sem, no entanto, aprisionar e determinar

seus resultados e significados presentes, possibilitando a construção de significados

diferentes. Isso por que, para além das influencias passadas e semelhantes, o significado

e os resultados do jogo presente dependem do arranjo de informações e argumentações

específicas apresentados em seu contexto, não permitindo, dessa forma, uma fiel

reprodução dos casos anteriores.

Um jogador, por melhor que seja, não tem o conhecimento de todas as regras

que orientam um jogo, pois essas conforme vimos, são desenvolvidas com a

participação dos demais participantes ao logo do andamento do jogo. Dessa forma, um

bom jogador de xadrez, por exemplo, pode tentar encontrar, dentre as variações de

jogadas possíveis, a melhor jogada tomando por base o conhecimento de jogos

anteriores. No entanto, dois jogos de xadrez não resultam da mesma forma. A

possibilidade de aprendizado existe e o bom jogador aprende a antecipar as possíveis

jogadas dos demais jogadores. Mas em momento algum podemos confirmar que o

cálculo do jogador experiente irá se confirmar, pois não há como um jogador antecipar

todas as jogadas possíveis (Fierke, 1998, p. 20).

A especificidade de um resultado apenas pode ser compreendida mediante a referencia ao sistema de regras. Regras são sociais por natureza, e por isso, são inseparáveis da atribuição de significado humano. Se uma pessoa lhe informar que irá jogar xadrez, mas não tem conhecimento das regras, será difícil continuar, uma vez que as regras constituem não apenas a identidade das pecinhas do jogo, mas também o significado das jogadas (Wittgenstein, 1958, § 54).

Uma das grandes propostas desse trabalho é investigar como em jogos que se

mostram semelhantes, ou seja, que apresentam semelhanças de famílias estruturais

como as práticas de intervenções humanitárias, é possível o desenvolvimento de

resultados, cenários e significados diferentes. Para atendermos a essa indagação,

Wittgenstein aponta a referencia de sistemas de regras específicos que orientam cada

jogo e, assim, apontando os possíveis caminhos a serem percorridos. Por mais que os

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jogos sejam semelhantes, dificilmente se configuram da mesma forma. Em cada jogo,

desenvolvem-se regras constitutivas diferentes que atribuem significado as ações dos

jogadores. “No two games of chess will follow precisely the same course. The

specificity of an outcome can be understood by reference to a system of rules” (Fierke,

1998, p.20)

O presente capítulo mostrou ser importante para a compreensão dos conceitos

principais trazidos pelo filósofo Ludwig Wittgenstein referentes à forma como a

linguagem constitui e intermédia, por meio de jogos, o significado das coisas que nos

rodeiam. Assim, os conceitos relativos à indeterminação da linguagem e ao jogo de

linguagem foram devidamente apresentados. Mostrou-se fundamental também

evidenciar a relação entre esses dois conceitos, o primeiro (indeterminação da

linguagem) atuando como uma condição de existência do segundo (jogo de linguagem),

pois apenas mediante essa constatação pode-se problematizar de que forma palavras

semelhantes ou iguais podem desenvolver significados diferentes.

Esse ponto é extremamente importante para a discussão acerca da prática de

intervenção humanitária, uma vez que podemos constatar, a partir dele, que os conceitos

centrais que constroem um entendimento da prática, antes visto como imprecisos

quando se encontram submetidos à negociação no Conselho de Segurança, apresentam,

na verdade, significados diferenciados que receberam seu conteúdo de acordo com as

interações entre os membros do Conselho de Segurança em cada caso.

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5. O Conselho de Segurança e o processo de tomada de decisão para uma intervenção humanitária militar.

5.1 Introdução

Após as devidas interjeições acerca da prática de intervenção humanitária, seus

problemas de definição junto ao debate de codificação e a apresentação dos conceitos

centrais de Wittgenstein, esse capítulo fará uma tentativa de aplicação dos conceitos

wittgensteinianos às tomadas de decisão para a prática de intervenção humanitária dos

anos noventa. Para isso, teremos como espaço privilegiado de análise o Conselho de

Segurança da ONU.

O presente capítulo será dividido em duas partes. Na primeira parte faremos uma

explanação a respeito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, isto é, o que é e

como funciona dentro do sistema ONU, identificaremos a estrutura do processo de

tomada de decisão como particularista e buscaremos compreender de que forma e por

quais meios suas decisões vem a adquirir vestimentas jurídicas. Para isso, utilizamos

como referências centrais Frederick Schauer, da Filosofia do Direito, e dois realistas

jurídicos, Thomas Franck e Jane Stromseth, que voltam suas análises ao direito

internacional e, sobretudo, ao debate da intervenção humanitária.

Serão apresentados também, na segunda parte do capítulo, os discursos

proferidos pelos membros do Conselho de Segurança durante as tomadas de decisão

para as intervenções humanitárias nos territórios ao norte do Iraque, Somália, Ruanda,

Bósnia e Kosovo. O objetivo da apresentação dos discursos é meramente apontar de que

forma os conceitos centrais à prática da intervenção humanitária: soberania, conflito

interno/internacional, violação massiva de direitos humanos e, principalmente, ameaça à

paz e à segurança internacionais, adquiriram significados e, assim tratamentos,

diferentes em todos os cincos casos.

Na presente análise, cada tomada de decisão será aproximada a um jogo de

linguagem wittgensteiniano, no qual a linguagem e as regras do jogo que a conduz são

negociadas ao longo das relações de interação. As regras jurídicas examinadas,

interpretadas ou descartadas nas tomadas de decisão também são objetos de negociação

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dos membros e sofrem influência das regras do jogo no sentido wittgensteniano (as

regras que permitem, mantêm e orientam as relações de interação em cada jogo, em

cada tomada de decisão).

Conforme vimos nos capítulos anteriores, na Carta da ONU comprova-se a

existência de uma regra que proíbe a intervenção, mas nada se encontra escrito a

respeito da possibilidade de exercer atividades intervencionistas com a autorização da

sociedade internacional. Assim, a intervenção aparece no corpo do texto apenas sendo

proibida e nada mais. Semelhantemente, há normas que proíbem o uso da força pelos

Estados dentro da sociedade internacional, tendo como situações de exceções apenas o

exercício de legítima defesa ou mediante a autorização do Conselho de Segurança.

Dessa forma, a prática de intervenção humanitária, como atualmente vem sendo

exercida pelos Estados, mesmo quando autorizada pela ONU, não se encontra

respaldada por normas jurídicas que antecedem cada caso. As regras de reconhecimento

e regulação são construídas ao longo do processo decisório de autorização que ocorre

entre os membros do Conselho, diante de situações específicas de violações de direitos

humanos.

A atual parte da dissertação se volta a investigar o processo de tomada de

decisão que ocorre dentro do Conselho de Segurança, pois apenas mediante seu

desenlace, a possibilidade de uma intervenção humanitária autorizada se constrói. Sendo

assim, identifica-se a instituição do Conselho como, juridicamente, a responsável pelo

processo de construção das regras que caracterizam e regulam os casos de intervenção

humanitária.

Ao olhar para as tomadas de decisões no Conselho, estaremos interessados em

ressaltar como os conceitos centrais que arquitetam o entendimento da atual prática são

negociados por meio do uso da linguagem e adquirem significados diferentes em cada

caso de intervenção analisado (desde a intervenção no Iraque em 1991 à intervenção em

Kosovo em 1998).

Porém, antes de investigarmos o processo de tomada de decisão que ocorre,

basicamente, dentro do espaço do Conselho de Segurança, devemos iniciar essa parte

com uma exposição do Conselho, suas regras de funcionamento e seu papel na atual

configuração internacional.

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5.2. O Conselho de Segurança da ONU

O Conselho de Segurança configura um dos principais órgãos do sistema ONU.

Seu nascimento converge com o surgimento das Nações Unidas em 1945 e sua principal

tarefa refere-se à manutenção da paz e da segurança internacional. A responsabilidade

de ser o guardião da segurança internacional lhe é respaldada, juridicamente, pelo

Artigo 24 (1) da Carta das Nações Unidas que dita:

A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações Unidas, seus Membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles.

De acordo com os Artigos 24(1) e 24(2) da Carta da ONU, ocupar uma das

cadeiras do Conselho de Segurança carrega a grande responsabilidade de atuar na

manutenção da paz e da segurança internacional, independente dos interesses nacionais

de cada membro. Os membros do Conselho devem agir em conformidade com os

propósitos e princípios das Nações Unidas. No entanto, nem todos os membros

assumem essa responsabilidade conforme apontado por Allen Buchanan:

Not all permanent members are willing to act in accordance with their special responsibility for the maintenance of international peace and security under the United Nation Charter (S/PV.3988, 24 March 1999, p.6-7). There is a growing perception that the requirements of Security Council authorization are an obstacle to the protection of basic human rights in internal conflicts (Buchanan, 2003, p.131).

Adicionalmente, de acordo com o Artigo 39 da Carta da ONU, a Organização

atribui ao Conselho de Segurança à liberdade de definição dos casos qualificados como

ameaça à paz e à segurança internacional, e os Artigos 41 e 42, respectivamente,

evidenciam que o tratamento pode ser de forma pacífica ou com o uso da força. Assim,

para atuar de acordo com suas responsabilidades, o Conselho tem o direito de agir em

nome dos demais membros da Organização. Sendo assim, constitui-se o único órgão

cujas resoluções têm um caráter obrigatório a todos os países da sociedade internacional

(Fasulo, 2004, p. 39).

Na estrutura do Conselho, pode-se notar uma grande quantidade de poder na

mão de poucas potências, o que é visto como problemático para autores como Buchanan

(2003), texto no qual o autor defende a necessidade de uma reforma no Conselho de

Segurança em direção a uma estrutura de representatividade mais fidedigna ao atual

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desenho de poderio internacional. Buchanan ressalta que as assimetrias de poder entre

os Estados na sociedade internacional resultam em participações diferenciadas nos

processos de criação e aplicação das normas internacionais, criando discrepâncias e

afetando a eficiência e legitimidade do direito internacional. “A handful of powerful

states wield a disproportionate influence over the creation and above all the application

and enforcement of international law” (Buchanan, 2003, p.145).

O Conselho de Segurança da ONU também é o único órgão que contém em suas

formação membros permanentes e não-permanentes. Os cinco permanentes são as

potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial: EUA, Reino Unido, França, China e

Rússia (antes URSS) e os membros não permanentes são países que atuam sob posições

rotativas com mandatos de dois anos sem reeleição consecutiva. Os cinco membros

permanentes, a fim de cristalizar seu predomínio em relação aos demais, exercem, de

forma exclusiva, o direito ao veto nas questões emergenciais de segurança internacional

discutidas pelo Conselho. O exercício de veto impossibilita que a devida questão venha

a receber um tratamento do Conselho. Outra atividade de práxis nas reuniões é a

participação de paises que não membros do Conselho de Segurança da ONU. Se assim

lhe forem concedidos, à autorização de participação pelo presidente do Conselho e os

demais membros, esses exercem o direito de se manifestar, via discursos, dentro do

espaço do Conselho, ainda que de forma limitada, sem direito a voto.

O poder demasiadamente assimétrico entre os membros permanentes e não-

permanentes do Conselho, materializado no direito de veto para os mais fortes, é objeto

de extensas discussões na academia, conforme demonstrado no capítulo dois. É

importante mencionar que além do direito ao veto, os membros permanentes também

podem se abster de exercício do voto quando desejar ou quando lhe for requisitado. A

abstenção não optativa deve ocorrer na seguinte situação: quando um membro

permanente do Conselho de Segurança estiver envolvido na controvérsia1.

A abstenção, assim como a votação a favor ou contra, também se evidencia

como uma jogada, em um sentido wittgensteiniano, uma ação, uma forma de expressão

silenciosa de não participação de um jogador membro permanente em um referido jogo

em andamento, evidenciando-se como uma marca de ausência do participante e falta de

cooperação.

O Conselho de Segurança foi arquitetado para conter um número reduzido de

1 Art. 27, par. 3 da Carta da ONU.

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membros, de forma a tornar mais eficientes as tomadas de decisão voltadas a ameaças à

paz e à segurança internacionais. A fim de manter o número reduzido de países, mas

não falhar em uma representação balanceada das regiões do mundo, a Assembléia Geral

adotou em 1965 uma resolução apontando que dentre os membros não permanentes,

cinco devem vir da África e Ásia, dois da América Latina, um do Leste Europeu e dois

um da Europa Ocidental (Mingst & Karns, 2007, p. 25-27). Desde 1965, dez países

compõem os membros não permanentes do Conselho. Estes são eleitos para um

mandato de dois anos e durante o tempo determinado, participam plenamente das

discussões e votações no Conselho.

Na atual dissertação, os discursos dos membros do Conselho, futuramente

apontados, serão tratados com igual peso, apesar de ressaltarmos a diferença de poder

entre os membros permanentes e não permanentes do Conselho. Isso se deve, uma vez

que o trabalho se volta a identificar de que forma a atribuição de significados

específicos nos discursos de cada membro para os mesmo termos centrais da atividade

humanitária influencia o entendimento a respeito da prática, e assim, o resultado da

votação. Logo, todos os discursos apresentados no fórum de discussão contribuem para

um resultado, pois a atividade de negociação é interativa e foge ao controle dos

participantes, independente dos recursos de poder de cada um.

5.3. Como o Conselho de Segurança atua?

Quando um possível caso de ameaça à paz e à segurança internacional é trazido

ao Conselho pelos seus membros, pela Assembléia Geral ou pelo Secretário Geral das

Nações Unidas, a primeira iniciativa do Conselho é recomendar que as partes em

conflito tentem alcançar um acordo por meios pacíficos. Sendo assim, a participação

inicial da instituição é em delinear os princípios para um deslinde pacífico2. Em alguns

casos, o Conselho pode até vir a conduzir uma investigação a respeito da situação de

conflito para facilitar a materialização de acordos de paz entre as partes. Ainda, na

tentativa de obtenção de um acordo de paz, o Conselho também pode enviar uma

missão a campo, apontar representantes especiais para o caso e requisitar ao Secretário

Geral seu envolvimento. No entanto, quando os meios pacíficos se esgotam, o Conselho

2 Art. 38 da Carta da ONU.

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possui competência para autorizar e enviar uma missão militar para reduzir o nível de

tensão e permitir que um caminho para a paz possa ser desenvolvido. Se o uso da força

for necessário para a contensão da violência, o Conselho exerce a competência jurídica

de autorizar o uso de força militar, sob o Capítulo VII da Carta, como um último recurso

a ser operacionalizado (UN, 2000, p. 69).

Uma intervenção não deve ser confundida com uma operação de missão de paz,

pois, de acordo com o site das Nações Unidas, podemos entender uma missão de paz

como “uma atividade direcionada ao controle de conflitos por meio da presença das

Nações Unidas em campo (normalmente envolvendo soldados tanto militares quanto

civis), com o consentimento das partes, a fim de implementar ou monitorar o

desenvolvimento de arranjos relativos ao controle do conflito, sua solução e/ou a

proteção da distribuição de ajuda humanitária” 3. As missões de paz também podem ser

militares ou de observação, e nas duas o uso da força é apenas autorizado em casos de

auto-defesa (UN, 2000, p.73). Já as intervenções militares humanitárias, conforme

previamente exposto, são atividades militares que podem vir a fazer o uso da força, se

assim for determinado pelos membros do Conselho de Segurança, desconsiderando, em

última instância, o consentimento do Estado violador. Outra diferença que deve ser

mencionada é a freqüência na qual essas duas atividades ocorrem. Enquanto as missões

de paz podem ser originariamente traçadas desde a formação da ONU em 1945, e são

muito mais freqüentes na sociedade internacional, as intervenções militares

humanitárias iniciaram suas ocorrências em 1991, com a intervenção ao norte do Iraque,

e são de mais rara utilização. Há também pontos de semelhança entre essas duas

instâncias, como, por exemplo, em ambos os casos, suas prática têm envolvido respostas

ad hoc para seus casos, de acordo com as demandas específicas apresentadas. Ademais,

por mais que ambas necessitem da autorização do Conselho de Segurança4, as missões

de paz, assim como as intervenções humanitárias, não se encontram expressas na Carta

da ONU, e como uma das conseqüências, de instância prática, dessa ausência, vemos

que ambos os termos podem ser utilizados de várias formas na diplomacia e também

nos textos acadêmicos.

Para que o Conselho possa autorizar o uso da força em uma determinada missão,

seus membros tendem a concordar que um caso específico possa vir a se configurar em

3 http://www.un.org/ Depts /dpko/glossary/p.htm Ultimo acesso 22/11/07. 4 As missões de paz, no passado, já foram autorizadas pela AG no contexto da Uniting for Peace.

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uma ameaça à paz e à segurança internacional, invocando-se, assim, o Capítulo VII da

Carta da ONU. As práticas de intervenção humanitária também contaram como a

sentença “utilização de todos os meios necessários para a contenção da ameaça” como

parte da construção de uma moldura jurídica que autoriza para o uso da força nas

missões. Delineia-se, conforme exposto, o caminho procedimental jurídico para o uso

da força na sociedade internacional. Apesar dos três fatores supracitados constituírem a

moldura jurídica para uma intervenção humanitária autorizada, nem sempre iremos

encontrá-los juntos, presentes tanto nas discussões do Conselho, quanto no texto da

resolução e no mandato das missões.

Conforme explicitado no Artigo 39 da Carta, cabe apenas ao Conselho a tarefa

de reconhecer os casos enquanto ameaças à paz e à segurança internacional, e autorizar

uma missão intervencionista. No entanto, vimos também que não há critérios objetivos

que possam orientar, nas tomadas de decisões, os membros do Conselho em relação aos

casos que qualificam, ou não, a necessidade de uma intervenção. Logo, contata-se um

amplo espaço para a negociação dos critérios e regras que orientarão cada caso a ser

discutido.

Frederick Schauer (1991) identifica o tipo de funcionamento de tomada de

decisão, descrito acima, como referente a um modelo particularista. Nesse modelo, o

que importa para os tomadores de decisão é encontrar o melhor resultado para os casos

específicos. Logo, a dinâmica da tomada de decisão é orientada pela aquisição dos

resultados que façam sentido ao caso em questão, estando de acordo com as concepções

e expectativas dos participantes. Assim, há um certo desprezo acerca da forma como as

decisões são alcançadas, seja por vias jurídicas, ou não. Aprofundando um pouco mais a

questão, Struchiner (2005) nos explica, com devida clareza, que uma estrutura

particularista de tomada de decisão permite que os responsáveis pela decisão sejam

sensíveis e mais orientados pelo contexto ao tentar encontrar a resposta mais adequada

aos casos. O modelo particularista de tomada de decisão, então, aparece nesse trabalho

como o mais próximo da estrutura de tomadas de decisão observada em funcionamento

no Conselho por dois motivos: primeiramente, por basear os resultados das tomadas de

decisão em um exercício de interpretação das delegações participantes, e, finalmente,

pelas situações serem discutidas e tratadas caso-a caso, levando-se em consideração

suas demandas específicas.

Tal dinâmica particularista também se aproxima da proposta de análise de

Wittgenstein, ao apontar a necessidade de tratar, separadamente, as situações humanas

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lingüísticas como se cada uma desenvolvesse uma dinâmica e uma lógica próprias.

Como nos casos de intervenção, cada situação apresenta suas singularidades, não

havendo uma única fórmula que permita caracterizar todos os casos de intervenção

humanitária no pós Guerra Fria e, nem tampouco, uma única forma de tratar os casos.

Por isso, a proposta wittgensteiniana apresentada no trabalho fornece-nos a capacidade

de identificar as “distinções finas” entre os casos semelhantes, e desenvolver

tratamentos que estejam mais de acordo com os cenários e as demandas de cada caso.

As reuniões do Conselho, assim como dos demais órgãos das Nações Unidas,

na maior parte das vezes, geram documentos. Documentos esses que, na opinião de

Thomas Franck (2003), não devem ser vistos como contendo uma moldura congelada,

ou pouco flexível (frame-freezed), uma vez, que são dignos de interpretação por seus

órgãos competentes. Na concepção dos realistas jurídicos, as regras jurídicas devem ser

entendidas como em constante construção e adaptação, à medida que os operadores do

direito se voltam a buscar respostas mais adequadas aos novos casos a partir de seus

surgimentos (Struchiner, 2005, p.205).

In the course of the operations from day to day of the various organs of the Organization, it is inevitable that each organ will interpret such parts of the Charter as are applicable to its particular functions. This will be manifested in the functioning of such body as the General Assembly, the Security Council or the International Court of Justice (Statement of Commitee IV/2 of the San Francisco Conference, UNCIO Doc.933, IV/2/42(2), at 7; 13 UNCIO Docs. At. 703, 709).

Percebemos aqui uma noção de direito que se baseia nas atividades

interpretativas dos juízes acerca de cada caso em questão. A atividade interpretativa se

direciona às informações colhidas dentro e fora de campo, e, adicionalmente, aos

documentos jurídicos existentes, regras, valores e sentenças jurídicas, tal como aos

casos precedentes.

Essa característica adaptativa do sistema ONU é o que permite a professora e

juíza Rosalyn Higgins afirmar que a autoridade necessária para resolver disputas a

respeito da interpretação da Carta para cada caso específico emana dos órgãos

responsáveis no sistema ONU, o que reforça a concepção de que cada órgão da ONU

detém a autoridade de atuar como árbitro das questões que encaixam em sua área de

competência e de acordo com suas com seus limites de atuação. “It can be said with a

mild overstatement that the Charter is what the organs do” (Franck, 2003, p.206). A

partir dessa constatação de Thomas Franck, na qual a Carta acaba, por fim, sendo

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reformulado constantemente pelas decisões de seus principais órgãos, vemos uma

aproximação entre os documentos jurídicos escritos e as regras e decisões das rodadas

de negociação.

Adicionalmente, para os realistas jurídicos como Franck, a esfera do direito

evidencia-se como uma arena onde são desenvolvidas certas discussões e deliberações

para as tomadas de decisão que em nada diferem das deliberações e decisões em outros

sistemas normativos como, por exemplo, a política e a moralidade. Dessa forma, a

leitura realista jurídica nos aponta que a fronteira entre o que é direito e o que não é

direito (no nosso caso, a esfera política) se mostra inexistente ou, nos casos mais

otimistas, altamente porosa (Struchiner, 2005, p.45-46). Dessa forma, pela proximidade

entre as esferas jurídicas e os demais espaços normativos, as decisões jurídicas são

fortemente influenciadas por elementos não tradicionalmente qualificados como de

direito, como por exemplo, os interesses dos tomadores de decisão, suas percepções de

justiça, suas expectativas em relação às ações dos demais, noções de moralidade e o uso

da linguagem. (idem, p.45-46). Assim, fortalece-se a premissa realista jurídica de que as

decisões, que ao final vestem roupagens jurídicas, como as do Conselho, são

influenciadas pelo uso que se faz da linguagem na comunicação e na caracterização dos

casos.

Seguindo-se essa linha, sugere-se a necessidade da construção de uma estrutura

“aberta” de reconhecimento e tratamento dos casos de intervenção humanitária, pois

cada caso debatido pelo Conselho pede respostas normativas e práticas diversas. Tal

sugestão já previamente formulada aproxima-se, demasiadamente, da proposta de

análise científica wittgensteiniana, onde a atribuição de uma regra geral mostra-se

contrária à idéia de análise do funcionamento de um suposto objeto (em ambos os casos,

o funcionamento da linguagem) nas relações humanas.

Aproximando o processo de tomada de decisão a uma noção de jogo que toma

forma por meio das negociações no Conselho de Segurança, durante uma reunião de

discussão, os jogadores são os representantes dos Estados que se encontram sentados à

mesa, cada um com a posição de seu país referente à questão em pauta. Todos devem

saber a forma que devem se comportar dentro de um órgão que exerce a autoridade

suprema em decidir sobre as questões de segurança internacional. Há regras formais e

institucionalizadas que orientam a condução das discussões, assim como o

comportamento dos membros dentro do Conselho. Essas são chamadas de regras

procedimentais. Adicionalmente, percebe-se a existência de outros tipos de regras, com

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graus menores de institucionalização, como as regras jurídicas e em seguida as regras

que orientam e atribuem significado às ações e termos lingüísticos utilizados durante as

discussões. Essas últimas serão denominadas nesse trabalho de “regras do jogo”,

conforme a nomenclatura utilizada por Ludwig Wittgenstein em Investigações

Filosóficas (1958).

5.4. Regras Procedimentais, Regras Jurídicas e “Regras do Jogo”

O funcionamento do Conselho de Segurança é regido por normas

institucionalizadas procedimentais, que funcionam de forma a estruturar e organizar as

atividades do Conselho. São sessenta e uma regras codificadas e conhecidas pelas

delegações e recomendadas a quaisquer outros participantes da reunião e podem ser

encontradas na página das Nações Unidas. Por serem escritas, todos têm acesso a essas

regras, independente de serem membros ou participantes das tomadas de decisão. As

regras procedimentais são teoricamente regras claras, regras ditas que servem para

conduzir e ordenar o andamento das reuniões. Indicam, por exemplo, quais as

responsabilidades dos membros, como desenvolver a agenda do Conselho e submeter

uma representação dos países membros ao fórum, a relação entre o Secretariado com o

Conselho, as conduções de atividades do Conselho, as línguas ali faladas, e finalmente o

papel do Conselho na admissão de novos membros às Nações Unidas. São regras que

contam com um grande grau de institucionalização, por isso, são vistas pelos membros

como menos abertas a debates e interpretação.

O segundo grupo de regras que atua sobre o funcionamento do Conselho são as

normas jurídicas. Essas, assim como as procedimentais, na maioria dos casos, também

são regras ditas, ou seja, acessíveis a qualquer Estado, porém com um menor grau de

institucionalização, o que as torna mais propícias à interpretação e negociação.

Ademais, no conjunto de comandos jurídicos encontramos também os princípios legais

não codificados que servem para orientar as decisões alcançadas via negociação no

Conselho de Segurança.

Para os realistas jurídicos, as regras do direito internacional público, mais

especificamente, os comandos contidos na Carta da ONU, devem atuar como guias para

os membros durante as votações, apontando as possíveis direções de acordo com as

molduras jurídicas existentes. Conjuntamente, os membros ficam incumbidos de

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interpretar os artigos relevantes da Carta de acordo com o assunto em questão. “Voting

in the Security Council shall be in accordance with the relevant Articles of the Charter

and of the Statute of the International Court of Justice” (regra 40, p.7)5.

Diante da emergência de novos casos potenciais de intervenção humanitária, os

tomadores de decisão nem sempre encontram regras claras e já confeccionadas para sua

identificação e regulação, verificando assim, situações de indeterminação jurídica.

Nesses momentos, os realistas jurídicos apontam que as regras presentes atuariam

apenas como referências secundárias, ou melhor, setas que apontam as direções

possíveis, como “guias heurísticos transparentes que apenas auxiliam na busca pelo

melhor resultado” (Struchiner, 2005, p.160)

O terceiro grupo de regras que auxilia na configuração e andamento da tomada de

decisão do Conselho de Segurança são regras não ditas, não formais, acessíveis somente

aos participantes das negociações no Conselho. Essas regras, não institucionalizadas

chamaremos de “regras do jogo”, por assim, como nas análises de Wittgenstein, serem

responsáveis pela construção e manutenção das relações de interação que compõem a

dinâmica dos jogos de linguagem, aqui assemelhados ao processo de tomada de decisão

para uma intervenção humanitária.

Em qualquer jogo, as “regras do jogo” são constituídas mediante a preocupação dos

jogadores em desenvolver e manter as relações de interação que o compõem. Assim,

não há uma direção única na qual o jogo virá a seguir, o objetivo inicial dos jogadores é,

inicialmente, apenas manter a interação, pois sem interação não há jogo. Dessa forma,

mostra-se fundamental que haja mais de um indivíduo para que seja possível o

desenvolvimento do jogo de linguagem, assim como a construção de significado aos

termos e ações empregados por estes. Por isso, as primeiras regras do jogo de linguagem

são as regras de interação.

Cada jogador, ao se inserir no jogo, deve ter conhecimento de suas regras ditas,

regras procedimentais acessíveis a qualquer um, sendo este participante ou não. Porém

apenas mediante a aquisição de experiência, um conhecimento das regras que orientam

cada jogo, um jogador pode melhor estabelecer suas jogadas realizando um cálculo de

expectativas em relação as possíveis manobras dos demais participantes. Não é que os

interesses de cada jogador não contem, mas o objetivo é afirmar que, associado aos

motivos internos pelos quais cada jogador estabelece suas ações, há também a

5 http://www.un.org/Docs/sc/scrules.htm.

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influência referente às expectativas do comportamento dos demais. Em outras palavras,

a expectativa de comportamento dos outros, conta para se estabelecer as jogadas, uma

vez que o primeiro objetivo em qualquer jogo é, como falamos, a manutenção da

interação.

Para jogar um jogo, seja ele qual for, há uma série de regras, ditas e não ditas,

conforme vimos. Porém, nem todas as regras são utilizadas ao mesmo tempo. De acordo

com o andamento do jogo e as jogadas dos participantes, umas aparecem e são

utilizadas enquanto outras se mostram ausentes. Dessa forma, pode-se sugerir que, em

cada jogo, há também uma negociação entre os jogadores acerca das regras que serão

utilizadas. Aqui vemos um ponto de aproximação extremamente interessante com a

condução do processo de tomada de decisão no Conselho para uma intervenção

humanitária. Em cada reunião, são negociadas as regras ditas (em grande parte as regras

jurídicas) e não ditas que farão parte de cada jogo, ou seja, de cada tomada de decisão.

A seleção das regras não é realizada, no seu todo, de forma consciente e acordada pelos

participantes antes do jogo, elas são negociadas durante o jogo, mediante as jogadas dos

participantes. No contexto sócio-político e lingüístico da tomada de decisão, é de suma

importância o jogador reconhecer as regras que foram negociadas durante o jogo para

que possa reconhecer o tipo de jogo e saber jogá-lo.

Um outro ponto importante que vale a pena destacar quando analisamos uma

tomada de decisão no Conselho de Segurança, é que o resultado dos debates e

negociações que ocorrem entre os membros apresenta resultados nem sempre cogitados

pelos participantes da tomada de decisão. Isso por que o processo de discussão é uma

atividade dinâmica e interativa, que não cogita o controle por nenhum membro em

específico, independente de seus recursos de poder e influência sobre os demais

membros, uma vez que controlar o processo significaria a possibilidade de antecipar as

jogadas. Além do mais, as regras negociadas durante o jogo influenciam fortemente o

andamento das jogadas e as rodadas de discussão.

A cada rodada de negociação no Conselho de Segurança, um novo jogo se configura

no qual se desenvolvem regras próprias mais adequadas ao contexto sócio-político e

argumentativo em questão. No jogo de tomada de decisão, elementos variados, que não

apenas os interesses dos jogadores, vão atuar influenciando o processo de interação

entre os participantes. Os interesses dos jogadores nem sempre garantem o resultado

final do jogo, uma vez que, por mais que os participantes tenham suas intenções de

jogada, estes não são capazes de exercer controle sobre o andamento do jogo. O jogo

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evidencia-se como uma atividade dinâmica e interativa, e foge ao controle completo dos

jogadores, por mais experientes que estes sejam.

Também é interessante notar que jogos que ocorrem dentro de um mesmo ambiente

podem variar. Por exemplo, no espaço de um mercado de frutas, posso participar de

uma série de jogos: de compra, de barganha, de troca de mercadoria...E as palavras que

serão proferidas terão seus significados associados a cada tipo de jogo. Podem também

ocorrer jogos mistos, quer dizer, enquanto um interlocutor entende as jogadas e age de

acordo com um tipo de jogo, para um outro o jogo se mostra diferente.

Por exemplo, em um jogo no qual se discute uma forte violação de direitos humanos

com possibilidade de intervenção em um país fraco do sistema internacional, alguns

diplomatas podem insistir em defender a necessidade de uma intervenção humanitária.

Nesse sentido, estão inseridos em um jogo de negociação e convencimento. Países mais

fracos, por sua vez, podem interpretar a jogada dos primeiros como algo perigoso e se

recusarem a participar do jogo. Para esses, o jogo não é de negociação, mas sim uma

possibilidade de ameaça à sua existência. Um terceiro grupo pode ver nas discussões a

respeito da intervenção uma boa oportunidade de reforçar a importância do principio de

soberania e a ilegalidade dos atos intervencionistas e, para esse último, o jogo está

sendo conduzido de forma inapropriada e em confronto com as normas jurídicas

internacionais.

Assim, conforme supramencionado, a identificação dos jogos em andamento pode

se evidenciar como uma tarefa difícil uma vez que cada participante pode reconhecer o

jogo em andamento e as expectativas em relação ao comportamento dos demais de

acordo com seus interesses, e jogá-lo de maneiras diferentes. Mesmo assim, a afirmativa

de que os atos e as palavras apenas adquirem significados dentro de um contexto

específico ainda se mantém válida, por mais que os contextos possam ser

compreendidos de formas diferentes para cada jogador. As regras são resultados de

consensos entre os jogadores. Dessa forma, jogadores podem acordar regras que

venham a constituir mais de um jogo, assim, como um jogador pode participar de

inúmeros jogos.

Quando os jogos são semelhantes (como emergências humanitárias), algumas

regras podem ser utilizadas dos jogos anteriores, quer dizer, jogos passados podem

influenciar no significado do jogo atual devido aos seus graus de similitude (Fierke,

1998, p. 20). Por exemplo, as regras procedimentais e as regras jurídicas entre jogos

semelhantes também podem ser as mesmas, porém dificilmente as regras do jogo serão

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iguais, pois conforme mencionado, essas são desenvolvidas durante as tomadas de

decisão. Esse ponto se mostra particularmente interessante para a presente discussão

acerca dos casos de violações de direitos humanos, que têm o potencial para serem

interpretados como situações dignas de intervenções humanitárias, pois as experiências

de casos de intervenção anteriores podem atuar na identificação de novos casos. No

entanto, as regras do jogo conferem à dinâmica de interação do jogo a possibilidade de

resultados novos não cogitados por nenhum jogador em específico.

5.5. Como os membros do Conselho de Segurança da ONU obtêm

informações provenientes do campo?

Para a realização da coleta de informações e evidências, os membros do

Conselho contam com os relatórios oficiais do Secretário Geral e das agências

responsáveis dentro do sistema ONU. Adicionalmente, cada vez mais, agentes não-

governamentais e intergovernamentais fazem parte do jogo de recolhimento de

informações e as transmitem aos representantes dos Estados. Todos esses atores, estatais

e não estatais, por fim, acabam contribuindo de forma fundamental para o processo

denominado por Franck de fact-finding (Franck, 2003, p.227-9) O jurista Franck aponta

que, durante as tomadas de decisão do Conselho de Segurança da ONU, entram no jogo

as informações e evidências provenientes do caso presente, que serão confrontadas e

comparadas aos casos anteriores na procura de semelhanças e disparidades. É por meio

desse exercício de analogia que os membros chegam a uma conclusão, via interação,

referente ao tratamento do caso em questão. No entanto, mesmo diante de similitudes

com jogos anteriores e regras de procedimento, nada garante que o resultado seja o

mesmo. “The unfolding of one game is not a guide to how future matches will unfold”

(Fierke, 1998, p.20) Assim, tendo acesso aos relatórios construídos pelo Secretário

Geral e as informações provenientes das demais fontes que participam do recolhimento

de informações para o Conselho, os quinze atuais membros apresentam seus pontos de

vista a respeito do caso em discussão, antes ou depois da votação.

No presente trabalho, reforçamos a seguinte constatação: no conjunto de

intervenções humanitárias, em um determinado período após 1991, dentre as

argumentações das delegações no Conselho, há variações referentes aos significados

dos termos intervenção humanitária, ameaça à paz e à segurança internacionais, ameaça

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regional, soberania, violação de direitos humanos, etc. Percebe-se que as caracterizações

dos casos mudam quando os contextos lingüísticos e políticos no qual se inserem

também se transformam. Veremos também como em cada caso as regras ditas e não

ditas foram negociadas pelos membros por meio de seus discursos, oferecendo

caminhos possíveis de serem traçados.

Porém, antes de darmos um passo adiante, mostra-se necessário fazermos uma

pequena recapitulação a respeito da tese da indeterminação dos conceitos de

Wittgenstein e a discussão referente à atribuição de precisão ao conceito de intervenção

humanitária, para que possamos evidenciar uma segunda forma de atribuir precisão a

conceitos e regras que não seja pelo caminho da institucionalização. A segunda forma

de atribuir precisão, conforme já previamente mencionada nos capítulos dois e três e, de

origem wittgensteiniana, é proveniente da inserção das palavras (unidades lingüísticas)

em seus contextos argumentativos, uma vez que, conforme vimos no segundo capítulo,

para a realista jurídica Jane Stromseth (2003), as diferentes caracterizações referentes à

prática de intervenção humanitária atuam positivamente na construção de molduras

jurídicas flexíveis para sua regulação. Positivamente, porque a falta de consenso a

respeito da prática abre a necessidade de debates entre os acadêmicos e políticos,

referentes ao significado da prática de intervenção (Stromseth, 2003, p.233).

No entanto, por mais que o presente trabalho também defenda a tese da jurista

Stromseth, há os que, contrariamente, defendem a necessidade da atribuição de uma

precisão por via institucional, ou seja, por meio da eleição de critérios objetivos para a

caracterização e condução da prática de intervenção humanitária. Assim, podemos

construir regras auxiliares que venham a orientar a interpretação das regras principais e

apontar critérios que identifiquem a partir de quando uma violação de direitos humanos

se torna uma ameaça à paz e à segurança internacional.

A fim de oferecer uma visão alternativa a esse último grupo, há, entretanto, uma

segunda forma de atribuir determinação ao significado das palavras e sentenças

apontada por Wittgenstein que não encontra-se mencionada nos estudos de política

internacional. Para esse filósofo, as palavras, em geral, adquirem um significado

“delimitado” (ou seja, determinado) apenas quando inseridas em um contexto

lingüístico. Assim, por meio da atividade argumentativa, os interlocutores utilizam

informações provenientes do contexto para especificar o significado dos conceitos

centrais utilizados em seus discursos. Nesse sentido, as atividades de argumentação e

negociação que acontecem dentro de fóruns de discussão, como o Conselho, atuam em

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direção a precisar seus significados, levando-se em consideração o contexto em questão

para cada caso e abrindo-se mão da fórmula “one size fits all”, ou seja, de que a regra ou

conjunto de regras, uma vez devidamente institucionalizados, possa vir a tratar todos os

possíveis casos.

5.5.1. Os Casos de Intervenção Humanitárias Pós Guerra Fria

5.5.1.1. Ao Norte do Iraque

A primeira invasão coercitiva humanitária autorizada pelas Nações Unidas se

direcionou contra o governo iraquiano6. O objetivo era conter os atos de violência

realizados contra a minoria curda ao norte de seu território em 1991. Apesar da falta de

autorização do governo anfitrião e da ausência de um consenso na sociedade

internacional a respeito da legalidade da missão intervencionista, as operações de alivio

Safe Heaven e Provide Confort contaram com a participação de aproximadamente treze

mil soldados americanos e suprimentos de mais doze países que, juntos, distribuíram 25

milhões de libras de água, comida, suplementos médicos, remédios, roupas, abrigo para

as áreas protegidas ao norte do Iraque. Vários observadores internacionais identificaram

a iniciativa como uma nova versão de intervenção humanitária, até então apenas

exercida para resgate de próprios cidadãos em território estrangeiro (Weiss & Chopra,

1995, p. 87).

Os que apoiaram a ação defenderam-na como necessária para a proteção dos

direitos do homem, mesmo que no presente caso, a intervenção viesse a esbarrar nas

regras de soberania e não intervenção. No entanto, esse não era o caso para a maioria

dos membros no Conselho, já que os atos de violência eram provenientes do governo

iraquiano, entidade entendida como responsável pela asseguração do bem estar e da

segurança à sua própria população (Wheeler, 2003, p.144).

A iniciativa de trazer o caso do massacre dos curdos realizado pelo governo de

Saddam Hussein ao Conselho de Segurança em 1991 foi atribuída à França e à Turquia,

por ambos os países temerem na época uma invasão de refugiados curdos em seus 6 Nos termos da Resolução 688 do CSNU.

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territórios (Wheeler, 2000, p. 141). O Ministro das Relações Exteriores da França

apontou na reunião do Conselho 2982 (5 abril de 1991) que o destino dos curdos estava

nas mãos da sociedade internacional e, por isso, a comunidade internacional

compartilhava uma ‘obrigação’ de intervir.

Violations of human rights such as those observed become a matter of international interest when they take on such proportions that they assume the dimension of a crime against

humanity. That indeed is happening in Iraq. The influx of refugees, the continued fighting in the border areas, the increasing number of massacres are arousing indignation and are threatening international peace and security in the region(S/PV.2982, 5 Apr, 1991: 53, grifo do autor) Nessa mesma reunião, a Turquia e o Irã requisitaram, por meio de cartas dirigidas ao

Conselho, uma ação internacional para prevenir até um milhão de refugiados ao norte e

quinhentos mil ao sul. Ambos os países defenderam que o deslocamento de grandes

quantidades de refugiados representava uma ameaça à paz e à segurança da região

(grifo do autor).

O representante da Turquia apontou em seu discurso que a onda de violência

posta em prática pelo governo iraquiano contra as minorias curdas, provocara o

deslocamento de um grande número de refugiados. “Cidades inteiras estão desertas

como conseqüência desses atos [de violência]” e a situação na parte norte do Iraque,

próxima a fronteira da Turquia e Irã, se mostrava especialmente alarmante (S/PV 2982,

5 abril de 1991, p. 4-5).

Na atual parte da dissertação, apontaremos para os discursos realizados na

reunião 2982 do Conselho de Segurança da ONU, que ocorreu no dia 05 de Abril de

1991, pois foi na presente reunião que foi votada e autorizada a primeira ação

intervencionista humanitária, ainda que sem a autorização para o uso da força. A

configuração dos membros não permanentes era a seguinte:

1 Áustria 2 Bélgica (na presidência) 3 Costa do Marfim 4 Cuba 5 Equador 6 Índia 7 Romênia 8 Iemen 9 Zaire 10 Zimbábue

Dada a tragédia humana proveniente das ações do governo iraquiano e o que era

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entendido como as implicações internacionais dessa situação, a delegação turca

defendeu a impossibilidade de alegação de que os atos de violência poderiam vir a

serem vistos como assuntos internos daquele país. Assim, não caberia ao Conselho

abraçar o papel de mero espectador enquanto as calamidades tomavam forma. A

delegação ainda adicionou que os atos de violência representavam uma clara ameaça

para a segurança da região e, sendo assim, a Turquia não permitiria que suas fronteiras

fossem inundadas por ondas de refugiados (S/PV 2982, 5 de abril 1991, p .6, grifo do

autor)

Na mesma direção, a delegação paquistanesa apontou as condições de extrema

violência na região, onde duzentos e vinte mil iraquianos foram forçados a abandonar

suas casas e estão se direcionando às fronteiras com a Turquia e Irã, desestabilizando a

região, constituindo o caso como uma violação massiva de direitos humanos no Iraque

( S/PV 2982, 5 de abril 1991, p.9, grifo do autor).

O delegado Kharrazi, da República Islâmica do Irã, convidado a participar da

reunião, alegou a necessidade de observância à regra da não intervenção, o que tornaria

a missão intervencionista ilegal. No entanto, no momento seguinte, repensou sua

posição, retirar e passou a recriminar o governo iraquiano pela crise humana que havia

se instalado no país. Defendeu, ao final, que o povo iraniano não poderia se manter

indiferente diante do sofrimento da população iraquiana (S/PV 2982, 1991, p.12). De

acordo com os números apresentados pela delegação iraniana, cento e oitenta mil

refugiados já haviam deixado o território iraquiano em direção aos países vizinhos.

It is evident that the situation inside Iraq, due to its gravity and implications for neighboring countries, has consequences that threaten regional and international peace and security. We believe that it is incumbent upon the Security Council to take immediate measures to put an early end to the suffering of the Iraqi people (S/PV 2982, 5 de abril, 1991, p.13-15).

Também, a fim de fortalecer uma posição favorável à intervenção, a delegação

romena lançou um apelo ao Conselho por uma ação internacional, afirmando que:

The international community cannot remain passive in the face of such tremendous human suffering. Indeed, the international community is confronted with a great humanitarian problem, and the United Nations system should do its best to address urgently the critical needs of all the refugees and the displaced Iraqi population (S/PV 2982, 5 de abril de 1991, p. 23).

A delegação romena também lembrou os membros da mesa que, em uma guerra,

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os primeiros alvos e principais vítimas são a população civil, declarando então, a

situação em questão como uma “repressão desumana realizada em larga escala pelas

autoridades iraquianas contra sua própria população” (S/PV 2982, 5 abril 1991, p.22,

grifo do autor).

O discurso da delegação do Equador foi bastante elucidativo, mencionando os

dois princípios basilares da Carta da ONU: “o respeito irrestrito aos direitos humanos

e o princípio de não intervenção nos assuntos domésticos de um Estado”, dois

princípios em contradição quando a comunidade internacional está diante de violações

de direitos humanos, realizadas por um governo contra sua própria população, como o

caso iraquiano. No entanto, o representante reconheceu que diante de graves violações

de direitos humanos, que “vão além da esfera doméstica do Estado” como a iraquiana,

suas conseqüências afetam as relações internacionais, e podem vir a se constituir em

uma ameaça à paz internacional”(S/PV 2982, 5 abril 1991, p.36, grifo do autor)

devendo, portanto, constituir uma prioridade do Conselho de Segurança.

Em relação aos demais membros permanentes do Conselho de Segurança, as

posições dos Estados Unidos, Inglaterra, e ex-União Soviética foram favoráveis à

intervenção e a China se absteve da votação.

A delegação norte-americana menciona em seu discurso a “responsabilidade

legítima do Conselho de Segurança” em responder as preocupações da Turquia e Irã

acerca do numero massivo de refugiados adentrando seus territórios por causa das

brutalidades inaceitáveis do governo iraquiano (S/PV 2982, 5 abril 1991, p. 58, grifo

do autor).

A União Soviética, que também se mostrou a favor da missão, afirmou não

poder se manter indiferente diante do sofrimento do povo iraquiano, apontando a

necessidade urgente do Conselho em obstar as condições de violência que estão

obrigando milhares de cidadãos de bem deixarem suas casas em busca de abrigo nos

países vizinhos (S/PV 2982, 5 de abril 1991, p .61, grifo do autor).

A China confirmou sua preocupação com as alegações de Turquia e Irã no

referente a invasão de refugiados em seus territórios, mas reconheceu o caso como de

jurisdição interna (S/PV 2982, 5 de abril 1991, p .55-56), logo, fora do alcance do

Conselho de Segurança da ONU.

Finalmente, o Reino Unido deu um passo quando defendeu que violações de

direitos humanos não deveriam ser tratadas como uma questão de política interna,

conforme fora estabelecido, anteriormente, no caso da condenação da política de

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apartheid na África do Sul, no final da década de noventa (S/PV 2982, 5 de abril 1991,

p. 64-65, grifo do autor).

Dessa forma, submetido à votação do documento S/22448, o Conselho, acabou

por fim, autorizando, por dez votos a favor e três votos contra (além de duas

abstenções), a primeira intervenção humanitária (ainda que sem o uso da força) a ser

realizada ao norte do Iraque, sob a jurisdição da resolução 688 (1991).

Podemos sugerir, concordando com constatação de Wheeler, que os dez

membros que discursaram no Conselho, nomeando os efeitos transnacionais da

repressão iraquiana uma “ameaça à paz e à segurança internacional” influenciaram,

amplamente, o resultado das discussões, conforme também apontado em “Saving

Strangers” (2000, p.143):

Esse resultado reflete que a adoção da resolução foi resultado não apenas do sofrimento da população curda, mas principalmente, de argumentações dentro do Conselho referentes aos diferentes significados que emergem do Artigo 2(7), agora em um novo período, o pós Guerra Fria. Em relação às regras debatidas e negociadas pelos membros durante o processo de

tomada de decisão para a intervenção no Estado iraquiano, a regra de não intervenção

mostrava-se não adequada às regras de proteção aos direitos humanos, conforme

evidenciando pelo diplomata equatoriano. Por isso, percebemos, com a presente

ilustração dos discursos, que durante a tomada de decisão, as regras de soberania e não

intervenção foram praticamente silenciadas, sendo garantida, ao contrario, uma ênfase

nas regras de proteção aos direitos humanos e a na desobediência do governo de

Saddam Hussein às leis humanitárias internacionais.

O caso iraquiano entrou para a história internacional como a primeira missão

humanitária intervencionista a ser autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU,

sem, no entanto, contar com uma autorização para o uso da força. Seu objetivo era

fornecer ajuda e alivio à população afetada pela violência estatal do governo iraquiano

que estava sendo acusado de violações massivas de direitos humanos contra sua

população curda. A violência utilizada pelo governo iraquiano também foi

compreendida como um fator de instabilidade regional, caracterizado pelo intenso

deslocamento de refugiados para os países vizinhos. A violência empregada contra os

curdos e as suas conseqüências transnacionais contribuíram imensamente, para a

caracterização da situação como uma ameaça à paz e à segurança internacional.

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É importante lembrar que, nos jogos de tomadas de decisão dentro do contexto de

uma intervenção humanitária, os discursos proferidos pelas delegações atuaram como

ações, jogadas em um contexto sócio-político e lingüístico específico, em que as

delegações dos membros são os jogadores.

No caso iraquiano, a maioria dos membros optou pela defesa dos direitos

humanos, identificando o caso como um de amplitude e natureza incapaz de se

enquadrar no contexto dos assuntos internos do Estado, adquirindo proporções de

ameaça à paz e à segurança internacionais.

Os membros também reforçaram o papel do Conselho de Segurança em não

apenas agir frente às situações caracterizadas como ameaças internacionais, como

também autorizar missões que venham a garantir a obediência dos direitos humanos

mesmo em situações de confronto com as regras de soberania, não intervenção e não

uso da força.

A China, no entanto, sustentou a opinião oposta de que o conflito no Iraque, por

mais que tenha criado ondas de refugiados que desestabilizaram a região, ainda assim,

deveria ser visto como uma situação de jurisdição interna. Na opinião da delegação

chinesa, mesmo diante da extrema violência estatal contra a população curda, a regra de

não intervenção deveria vir acima da defesa dos direitos humanos. Logo, a intervenção

não deveria ser vista como um mecanismo legítimo.

Como resultado da tomada de decisão, pode-se argumentar que o reconhecimento

dos membros de que os fluxos de refugiados adentrando países vizinhos em busca de

segurança contribuiu imensamente, para a interpretação da situação de violência como

algo de amplitude internacional que deveria pousar sob a atenção e os cuidados do

Conselho de Segurança da ONU.

Em relação às “regras do jogo”, essas não conseguem ser devidamente apontadas

e reconhecidas, pois, conforme previamente evidenciado por Wittgenstein, os jogadores

as constroem à medida que o jogo vai se configurando. Logo, apenas podemos antecipar

que essas regras são responsáveis pela manutenção das relações de interatividade, que

por sua vez, desenvolvem a construção dos significados das palavras empregados e

assim, das jogadas de cada participante. Ademais, são regras que orientam os jogadores

por meio da experiência em direção às futuras jogadas. Logo, para que possamos

identificar tais regras do jogo, devemos desviar o olhar das regras em geral, e recolocá-

lo em direção ao resultado de suas atuações, ou seja, analisar de que forma certas regras

vêm a contribuir para a construção do significado das palavras empregadas.

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Pode-se concluir que, na reunião de 5 de abril de 1991, foi apontado pela maioria

dos membros que a ameaça à paz e segurança internacional derivava da extrema

violência empregada pelo governo iraquiano contra a população curda, constituindo

graves violações de direitos humanos: atos de “repressão desumana realizada em larga

escala pelas autoridades iraquianas contra sua própria população” foram

reconhecidos como atos de covardia que “vão além da esfera doméstica do Estado”

ganhando, desta forma, uma dimensão internacional (grifo do autor). A violência foi,

em grande medida, problematizada devido aos grandes fluxos de refugiados adentrando

as fronteiras vizinhas. Ademais, a tomada de decisão para a intervenção ao norte do

Iraque pode ser relacionada à condução de um jogo de cooperação no que diz respeito à

caracterização do conflito como uma ameaça à paz e segurança internacional pelo grau

de violência empregado pelo governo iraquiano contra a população curda e o efeito

transnacional de fluxo de refugiados, mesmo um membro permanente não tendo

concordado com tal caracterização, pois esse mesmo optou pela abstenção, ou seja,

optou em não interferir no resultado final da votação.

Pode-se argumentar também que, de acordo com o discurso apresentado pelo

diplomata inglês, a autorização da intervenção sofreu influência do caso precedente da

África do Sul onde seu governo, por meio da política discriminatória do Apartheid,

desrespeitou, por meio do uso da violência, as noções de direitos humanos. Assim,

percebemos como casos semelhantes anteriores podem vir a influenciar as expectativas

relativas às ações dos jogadores no presente jogo.

5.5.1.2. Somália

A segunda intervenção autorizada pelas Nações Unidas foi realizada em

território somali em 1992 e foi liderada pelo governo norte-americano. A missão

direcionava-se à violência e a fome proveniente de uma guerra civil que havia se

instalado desde a retirada do poder do presidente Muhammad Siad Barre, em 1991. A

luta pelo poder central criara uma situação de caos e fome, levando o país a uma

desintegração política.

Nas discussões de 1992, frente à situação de desordem generalizada que havia se

instalado, a caracterização do caso como uma ameaça à paz e à segurança internacionais

foi atribuída à tragédia humana causada pela guerra civil e pela fome. Nos discursos,

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muito pouco foi dito às conseqüências transnacionais do conflito (como correu no caso

do Iraque) como a fuga de milhares de nacionais aos países vizinhos.

A iniciativa do Conselho de Segurança em intervir na Somália em prol dos

direitos humanos não encontrou uma barreira nas regras de soberania e de não

intervenção, pois os membros do Conselho argumentaram, consensualmente, em seus

discursos que a Somália configurava em um território sem governo. Apesar de haver

dúvidas nas Relações Internacionais se fato de não ter governo retira de um Estado suas

prerrogativas soberanas.

A reunião 3145, na qual autoriza-se uma missão intervencionista humanitária na

Somália, ocorreu no dia 3 de dezembro de 1992 e os países que compunham o conjunto

de membros não permanentes, sentados à mesa, eram:

1 Áustria 2 Bélgica 3 Cabo Verde 4 Equador 5 Hungria 6 Índia (presidente) 7 Japão 8 Marrocos 9 Venezuela 10 Zimbábue

Em 1992, um dia antes do presidente americano George W. Bush ter decidido

liderar a missão militar na Somália, o Secretário Geral da ONU Boutros Boutros-Ghali,

havia escrito para o Conselho reportando uma situação de deterioração que havia se

instalado na Somália. Nesse relatório, concluíu afirmando que a única forma de evitar a

morte de mais de dois milhões de somális seria por “quebrar o ciclo de extorsão e

chantagem” vindo das elites guerreiras e “estabelecer condições de segurança que

venham a permitir a distribuição dos suprimentos humanitários” (The Guardian,

Nov.1992).

At the present, no government exists in Somalia that could request and allow such use

of force. It would be therefore necessary for the Security Council to make a determination, under Article 39 of the Charter, that a threat to peace exists, as a result of the repercussions of the Somali conflict on the entire region, and to decide what measures should be taken to maintain international peace and security (Roberts, 1993, p. 440, grifo do autor). Na reunião 3145, o embaixador de Zimbábue afirmou que “não poderiam apoiar

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o presente episódio de uma história não revelada de sofrimento de homens inocentes,

mulheres e crianças famintos” na Somália (S/PV.3145, 3 dezembro de 1992, p.6).

Enquanto o embaixador Marroquino afirmou pousar no Conselho de Segurança “a única

esperança de alívio já que a situação na Somália abalava a consciência universal”

(S/PV.3145, 1992, p.6, grifo do autor). A delegação equatoriana contribuiu para a

caracterização da situação da Somália como um episódio chocante à consciência

humana, apontando em seu discurso que:

The civilized conscience of mankind has been watching with bafflement and anguish how the Somali population, exposed to the rigorous of hunger (...) ”Solidarity and

interdependency, principles that underline our international order, do not permit us to remain impassive in the face of human tragedy, regardless of where it may occur (S/PV.3145, 3 dezembro, 1992, p. 11, grifo do autor) Ademais, para os membros do Conselho, a intervenção se mostrava necessária

pois a violência proveniente da guerra civil e o confisco dos suprimentos humanitários

pelas elites guerreiras serviram para aumentar, cada vez mais, o número de vítimas e a

dinâmica de violência do conflito. Adicionalmente, o caso foi identificado, de forma

unânime, pelos membros do Conselho, como um de natureza excepcional, sem

precedentes, uma vez que não havia naquele território um governo somali que pudesse

ser responsabilizado pela onda de violência. Logo, a intervenção não estaria

confrontando a soberania daquele país, uma vez que a Somália foi caracterizada pelos

membros como um país sem governo, que viesse a ser o interlocutor das Nações Unidas

a fim de consentir e concordar acerca de uma missão de assistência humanitária”

(S/PV.3145, 3 dezembro de 1992, p.13, grifo do autor); “o caso da Somália evidencia-

se como uma situação única que pede uma abordagem também única” (S/PV.3145, 3

dezembro 1992, p.7, grifo do autor); “trata-se de uma situação sui generis” (S/PV.3145,

1992, p.14, grifo do autor) e finalmente, a delegação chinesa se diz:

[t]aking into account the long-term chaotic situation resulting from the present lack of

Government in Somalia...exceptional measures should be taken for the settlement of the

Somali crisis (S/PV.3145, 3 de dezembro de 1992, p.16, grifo do autor).

A delegação chinesa ressaltou que a situação de caos e fome que vinham

assolando a população somali estava apenas se agravando, uma vez que a ajuda

humanitária intermediada pelas Nações Unidas não conseguia alcançar a população

afetada. Também, devido à falta de governo no território em questão, as Nações Unidas

deveriam tomar medidas urgentes, fortes e excepcionais a fim de se criar um ambiente

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seguro e viável para a ajuda humanitária (S/PV.3145, 3 de dezembro de 1992, p.16-17,

grifo do autor)

A Rússia, durante as negociações do caso, reconheceu a situação na Somália

como caótica, onde milhões de pessoas estavam sendo levadas à morte pela violência e

fome, sendo as crianças as principais vítimas. A delegação alegou estar convencida da

necessidade do uso de forças armadas, sob controle das Nações Unidas, para garantir

a distribuição da ajuda humanitária à população e a segurança da missão de paz que

se encontrava em território somali (S/PV.3145, 3 de dezembro de 1992, p.26, grifo do

autor)

Após o discurso russo, o representante francês defendeu o papel prioritário das

Nações Unidas no processo, afirmando que, apesar dos esforços da instituição em

oferecer uma ajuda humanitária substantiva à Somália, a violência no país vinha se

agravando. A delegação francesa, então, chamou à atenção da comunidade internacional

para a necessidade de uma “ação vigorosa”, diante de uma situação que caracterizou

como sem precedentes, e abraçou a iniciativa da resolução 794, baseada no Capítulo VII

da Carta, em utilizar todos os meios necessários para por um fim ao caos na região

(S/PV.3145, 3 de dezembro de 1992, p.29, grifo do autor)

Na opinião de Sir. David Hannay, da delegação da Inglaterra, a Somália poderia

ser caracterizada como uma tragédia humana na qual a vida de milhões de pessoas

estava ameaçada e 700.000 refugiados já havia deixado suas casas. Hannay ainda

relatou a grande generosidade dos países da União Européia em enviar ajuda à

população atingida, mas que, no entanto, a maioria dos suprimentos estava sendo

interceptada antes de alcançar seus destinos. O problema, então, parecia estar na falta de

segurança dentro do país que vem impedido a distribuição da ajuda humanitária.

Assim, a delegação inglesa acreditava repousar na atividade intervencionista a única

opção para evitar um prolongamento da crise (S/PV.3145, 3 de dezembro de 1992,

p.34, grifo do autor).

A intervenção na Somália caracteriza-se como a primeira missão

intervencionista onde foi autorizado o uso da força militar, respaldada pelo uso do

Capítulo VII da Carta da ONU, e justificada claramente com propósitos humanitários.

No Iraque, o uso da força militar não havia sido garantido pela resolução 688 e, na

Bósnia, o Capítulo VII não fora invocado. Logo, podemos perceber que a categoria

ameaça à paz e à segurança internacional durante a reunião 3145 havia sido vinculada,

dentro do Conselho de Segurança, à situação calamitosa de fome e conflito interno que

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havia se instalado na Somália. Parecia não haver entre os membros o entendimento de

que a uma missão intervencionista viria a confrontar a regra de não intervenção, uma

vez que o caso da Somália havia sido caracterizado pelos membros, excepcionalmente,

como um país sem governo.

Também identificando o caso na Somália como uma “tragédia humanitária com

proporções indescritíveis”, a delegação norte-americana reafirma a natureza pacífica da

missão intervencionista diante da recém aprovada resolução 794, defendendo como o

único objetivo da missão a construção de um ambiente seguro para a distribuição da

ajuda humanitária. Afirmou, adicionalmente, que a comunidade internacional, agindo

em direção a responder aos trágicos eventos ocorridos na Somália, tem se mostrado apta

a desenvolver a estratégia necessária para lidar com a potencial desordem e com os

conflitos gerados no mundo pós-Guerra Fria (S/PV.3145, 3 de dezembro de 1992, p.36,

grifo do autor)

A fim de concluir essa parte, vimos que na tomada de decisão para a missão

militar na Somália, a regra jurídica de não intervenção foi reafirmada como

incompatível com o caso em questão, pelo país ser visto pelos membros como um

território sem referência governamental que pudesse ser responsabilizado pelo ocorrido

ou consultado acerca da entrada de uma missão humanitária internacional. Conforme já

mencionado, pela opinião da maioria dos membros, o episódio gerador da necessidade

de intervenção, o conflito civil, continha uma natureza interna extremamente violenta e

pouco se falou na reunião a respeito de seus possíveis efeitos transnacionais. O uso da

força, princípio limitado pela Carta da ONU, mostrava-se necessário para a maioria,

pois os esforços de distribuição de suprimentos e ajuda humanitária, anteriormente

autorizados pela ONU, e também oferecidos por organizações humanitárias não

governamentais, estavam sendo confiscado pelas elites guerreiras que se utilizavam

destes para realimentar o conflito por meio de chantagens e barganhas. Assim, a

violência escalava a cada dia. A desobediência das partes em conflito às regras do

direito humanitário, principalmente, àquelas referentes à proteção da população civil,

também foram invocadas, fortalecendo uma situação de não aceitabilidade dos membros

frente a extrema violência, guerra e fome generalizadas. Assim, pela concepção dos

membros do Conselho, cabia à este órgão a prioritária missão de interceptar o conflito e

conferir às vítimas proteção contra tamanha destruição e desumanidade.

Pode-se identificar a condução da presente tomada de decisão como um jogo de

negociação de cooperação, onde os discursos dos membros somaram-se contribuindo,

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ao final, para a construção de uma interpretação oficial.

5.5.1.3. Ruanda

O terceiro grave caso de violação de direitos humanos que iremos discutir nesta

dissertação ocorreu em Ruanda em 1994, quando a matança da maioria Hutu contra a

minoria Tutsi chocou a sociedade internacional. Resistências em caracterizar a guerra

civil como também um caso de genocídio resultaram em demora e negligência na

tomada de decisão para uma intervenção militar. Foi apontado pelo acadêmico Wheeler

que o caso de Ruanda evidencia a fragilidade dos arranjos jurídicos quando falta

vontade política para ação (Wheeler, 2000, p.208). Havia uma noção de que a decisão

de não se intervir coercitivamente em Ruanda havia sido bastante influenciada pela

interpretação de um fracasso na missão na Somália que levou à morte soldados

americanos na Somália, dias antes.

Ruanda já havia sido palco de uma guerra civil logo após o fim da colonização

belga, durante a qual a minoria Tutsi contava com privilégios econômicos e sociais

sobre a maioria Hutu. Em 1959, a maioria Hutu, a fim de finalizar a dominação Tutsi,

derrubou violentamente a monarquia feudal, se colocando no poder. A derrubada da

monarquia abriu espaço para uma guerra civil cujas conseqüências resultaram na morte

de aproximadamente vinte mil pessoas e no deslocamento de cento e sessenta mil

refugiados para fora do país. Um acordo de paz entre as duas partes foi assinado em

Arusha em 4 de agosto de 1993, sob observação das Nações Unidas, e uma missão de

paz foi enviada a Ruanda (UNAMIR) com a tarefa de observar se as partes cumpriram o

acordo e garantir uma transição pacífica e legítima para a democracia (S/PV 3288, 5

outubro, 1993, p.24). Assim, o mandato da missão de paz expressava a tarefa de

monitorar o cessar-fogo e enviar um claro sinal aos extremistas de ambos os lados para

que não retomassem a violência (Wheeler, 2000, p.215).

Com a maioria no poder e a retirada progressiva da ONU na região após a

transição democrática e a manutenção da paz, as sementes para a construção de um

plano de vingança da maioria Hutu vinham se tornando aparentes. O plano se

direcionava ao extermínio do grupo étnico minoritário, os Tutsis.

O abate do avião do então presidente Hutu Habyarimana funcionou como um

ponto de partida para a política de extermínio.

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No curso de cem dias em 1994, o governo Hutu de Ruanda e seus aliados civis realizaram o extermínio de aproximadamente oitocentos mil Tutsis e Hutus moderados, caracterizando-se na matança mais rápida e eficiente do século XX, utilizando para os assassinatos armamentos de fogo, machados e uma variedade de ferramentas de jardim (Powers, 2001, p. 84).

Frente à situação extremada que havia se instalado em Ruanda e sua escalada

rumo à constituição de uma das maiores catástrofes mundiais já vistas, o Secretário

Geral da ONU apresentou um primeiro relatório especial ao Conselho, no qual optou

pela caracterização do caso como um episódio de guerra tribal e, logo, de domínio

interno (S/1994/470). Ademais, como os membros não-permanentes dependiam da

obtenção de informações do Secretário Geral, esses não tiveram chance de questionar a

interpretação oficial do Secretário (Barnett, 1997, p.559).

Em entrevista oferecida à Linda Melvern, Colin Keating, então presidente do

Conselho de Segurança para o mês de abril de 1994, afirmou “Fomos deixados no

escuro. A situação era muito mais grave e perigosa do que apresentada no Conselho de

Segurança” (Wheeler, 2000, p.217).

Na reunião 3377 de 16 de maio de 1994, onde os membros do Conselho votaram

a extensão da UNAMIR e uma possível mudança de mandato para incluir o uso da

força, os membros do Conselho não chegaram a uma categorização comum para o caso

de violência que estava ocorrendo em Ruanda.

O quadro de membros não permanentes para essa reunião era configurado por:

1 Argentina

2 Brasil

3 Djibouti

4 Espanha

5 Nigéria (presidência)

6 Nova Zelândia

7 Oman

8 Paquistão

9 República Tcheca

10 Ruanda

Para a China, a situação foi caracterizada como uma guerra civil (S/PV. 3377,

1994, p.9, grifo do autor), para a Rússia (S/PV. 3377, 16 de Maio de 1994, p.9, grifo do

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autor) e Nigéria (S/PV. 3377, 1994, p.16, grifo do autor), uma carnificina. A França,

por sua vez (S/PV. 3377, 16 de maio de 1994, p.11, grifo do autor), reforçou a

interpretação de que se tratava de massacres de civis e, finalmente, as duas únicas

delegações a apontar para a ocorrência de um genocídio em Ruanda foram a República

Tcheca (S/PV. 3377, 16 de maio de 1994, p.16, grifo do autor) e a Nova Zelândia

(S/PV. 3377, 16 de maio de 1994, p.12, grifo do autor). Adicionalmente, para a

delegação de Dijubouti, a guerra civil representava um fator de instabilidade na região,

contribuindo para o reconhecimento de uma ameaça à paz e à segurança dos países

vizinhos (S/PV. 3377, 16 de maio de 1994, p.8)

A Grã-Bretanha afirmou que o Conselho não poderia atuar como um mero

espectador da onda de violência (S/PV. 3377, 16 de maio de 1994, p.12), enquanto a

delegação norte-americana enviou uma mensagem ao Conselho, chamando seus

membros para agirem o quanto antes. “The cries of the victims in Rwanda have been

heard calling upon the Security Council to act”, uma vez que a magnitude do desastre

demandava uma ação da entidade responsável (S/PV. 3377, 16 de maio de 1994, p.12-

3).

Durante as discussões referentes à extensão da Missão UNAMIR (Reuniões

3377 e 3388 do Conselho de Segurança), nas quais se contemplava a possibilidade de

uma mudança de mandato para conceder autorização do uso da força para a missão de

paz, a proposta de acréscimo de soldados para a missão foi aceita, de forma unânime,

enquanto o uso da força foi rejeitado por dois dos membros permanentes. Todos,

contudo, acabaram por condenar os atos de violência em Ruanda. A China afirmou que

“a reconciliação nacional apenas pode ser alcançada quando as espadas forem

transformadas em instrumentos de trabalho após o cessar fogo” (S/PV. 3377, 16 maio,

1994, p.9). A Rússia mostrou-se clara na condenação do uso da força militar na

operação, afirmando: “A Rússia condena as tentativas de resolver o conflito de Ruanda

por meio do uso da força” (S/PV. 3377, 16 maio, 1994, p.10). A França, ressabiada,

apontava que o objetivo da missão era humanitária e o papel das Nações Unidas em

direção à observância do acordo de paz seria o único caminho viável, até então, para se

resolver à crise (S/PV. 3377, 16 maio, 1994, p.11).

Por um pedido do Conselho de Segurança, o Secretário Geral elaborou um

segundo relatório especial, no qual incluiu recomendações apontando para a

constituição de uma força de cinco mil e quinhentos homens a ser enviada, em fases, à

Ruanda, a fim de, progressivamente, criar condições de segurança para os civis

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refugiados e assistir na distribuição de ajuda humanitária à população atingida. Em

relação à possibilidade do uso da força pela missão, essa deveria ser acionada, somente,

mediante a autorização do Conselho, caso a presente proposta viesse a falhar (S/ 1994/

565).

A proposta do Secretário Geral deu origem ao documento S/1994/571, votado e

autorizado pelo Conselho, constituindo-se após a votação na resolução 918 (1994).

Porém, por mais que a resolução tenha sido autorizada pelos quinze membros do

Conselho, contando com os votos favoráveis daqueles que não discursaram no

Conselho, a delegação da República Tcheca (S/PV. 3377, 16 de maio, 1994, p.16) e da

Nova Zelândia confirmaram seu descontentamento com o conteúdo do documento,

afirmando ser mais fraco do que se mostrava necessário para que a atual missão

UNAMIR viesse a efetivamente proteger os civis em perigo.

My delegation voted in favor of the resolution 918 (1994), but I cannot conceal its disappointment that the resolution only approves a very modest first phase of the expanded United Nations presence which we believe is essential in Rwanda.(S/PV. 3377, 1994, p. 11). The situation is being described as a humanitarian crisis as though it were

famine or perhaps a natural disaster. In the view of my delegation, the proper description

is a genocide (S/PV. 3377, 16 maio, 1994, p.16, grifo do autor).

Em relação aos significados construídos durante as jogadas no processo de

tomada de decisão, duas delegações caracterizaram o caso em questão como um crime

de genocídio e defenderam a aplicação de medidas coercitivas. Porém, para a grande

maioria, a situação, por mais calamitosa, inaceitável e urgente que fosse, não pedia uma

solução militar. Assim, o conflito interno ocorrido em Ruanda, por mais que tivesse

sido considerado uma “carnificina”, um “massacre de civis”, continuava não requerendo

uma intervenção coercitiva, conforme ocorrera na Somália. Foi devidamente

argumentado, pela Rússia e pela China, que o uso da força poderia vir a influenciar uma

escalada de violência no conflito. A China também considerou o caso como de

jurisdição interna, uma guerra civil, sem grandes efeitos transnacionais. Também, por

mais que em Ruanda não houvesse uma referência clara de governo, a regra da

soberania não foi argumentada suspensa (conforme ocorreu no caso somali), diante das

graves violações de direitos humanos pelas facções da maioria.

Mostra-se interessante sugerir que na tomada de decisão para uma intervenção

humanitária militar em Ruanda, mesmo diante de um grau de violência extremo, há a

ocorrência de um jogo onde há pouca concordância, um jogo de discórdia extremado em

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relação à caracterização do caso e quanto ao tratamento com ou sem o uso da força. Se

de um lado temos a maioria dos membros favoráveis a uma solução política e pacífica,

de um outro, são apontados os discursos da delegação da Nova Zelândia e Republica

Tcheca, ressaltando, como indignação, a ocorrência de um genocídio e com a

necessidade urgente do uso da força intervenção pela sociedade internacional.

O que ficou bastante evidente na análise da linguagem utilizada para

caracterizar o caso foi a omissão pela maioria (como exceção da Republica Tcheca e da

Nova Zelândia) da palavra genocídio para caracterizar o episódio. Havia uma relutância,

entre os membros do Conselho em se utilizar a palavra alcunhada de the g-word

(Powers, 2001, p.96, grifo do autor), pois temia-se uma maior pressão do restante da

comunidade internacional para que fosse autorizada uma ação de intervenção, uma vez

que a condenação ao crime de genocídio encontra-se codificada na Convenção sobre a

Prevenção e Punição ao Crime de Genocídio (1948).

Ademais, o caso ruandês foi bastante influenciado pelo resultado desafortunado

da operação militar e humanitária na Somália, conforme evidenciado pelo discurso do

embaixador britânico, Sir David Hannay, em uma reunião informal do Conselho de

Segurança. Nessa reunião, ele se volta aos membros e pede para que “voltem e pensem

no que pedimos as nossas tropas para fazer na Somália”.

5.5.1.4. Bósnia e Kosovo

Em 1992, entre os membros do Conselho, cultivava-se a opinião de que a

severidade dos ataques à população na Bósnia pelo governo de Milosevic chamava por

uma intervenção internacional. No entanto, temia-se arriscar a vida dos soldados e

colocar à prova, mais uma vez, a eficiência e credibilidade da ONU. Por mais que

França e Reino Unido tivessem pressionado o Conselho para que tropas fossem

enviadas ao conflito, compartilhava-se no Conselho um sentimento de relutância frente

às ameaças de veto da Rússia e China (Wheeler, 2003, p.260-1).

Favorecendo os defensores de uma intervenção militar na Bósnia, em agosto de

1992, foi votada a resolução 770, que invocava o Capítulo VII da Carta, autorizando o

uso de todas as medidas necessárias para providenciar ajuda humanitária aos civis e a

segurança dos soldados que atuavam sob mandato internacional (grifo do autor). A

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sentença destacada acima, utilizada na resolução 770, é de fundamental importância

uma vez que, quando presente, permite a uso da força pela ONU contra o país violador.

No caso da Bósnia, a intervenção foi autorizada pela ONU permitindo, inclusive, o uso

da força, embora não houvesse uma clara justificativa humanitária,. Havia referencias à

dimensão transnacional do conflito e da limpeza étnica realizada pelas tropas do

governo.

De acordo com Wheeler (2000), podemos compreender a violência

desencadeada pelo governo sérvio nos dois casos seguintes de intervenção humanitária

(Bósnia e Kosovo) como resultante de uma tentativa do governo Milosevic em construir

uma grande Sérvia por meio de uma anunciada política de limpeza étnica na região.

Durante as tomadas de decisão, a delegação inglesa caracterizou a situação de

violência instalada na Bósnia como um confronto inaceitável à moralidade e às normas

de direito humanitário:

Mistreatment in detention camps, enforced expulsions on the ground of ethnic origin, attacks on civilians and on the United Nations and the ICRC personnel are affronts to

morality and are contrary to all the provisions of international humanitarian law

(S/PV. 3106, 13 agosto de 1992, p. 36, grifo do autor). Os Estados Unidos apontam a destruição das vilas, execuções e os assassinatos

indiscriminados como uma parte da política desumana de limpeza étnica do governo de

Belgrado (S/PV.3106, p.37, grifo do autor).

No caso da Bósnia, apesar de uma intervenção com propósitos humanitários ter

sido consentida pelo governo sérvio, dois membros permanentes, Reino Unido e França,

por questões de legitimidade, preferiram trabalhar por meio do Conselho (Wheeler,

2000, p.251). A resolução 770, votada e endossada pelo Conselho na reunião 3106 de

13 agosto de 1992, contou com doze votos e três abstenções (China, Índia e Zimbábue).

Tal documento invocava o Capítulo VII da Carta da ONU e convidava os Estados

membros a utilizarem todos os meios necessários para distribuir ajuda humanitária na

Bósnia. Na reunião responsável pela votação da resolução 770 (reunião 3106) os

membros não permanentes presentes eram:

1 Áustria

2 Bélgica

3 Cabo Verde

4 Equador

5 Hungria

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6 Índia

7 Japão

8 Marrocos

9 Venezuela

10 Zimbábue

O representante da delegação de Cabo Verde caracterizou a situação da Bósnia

como uma na qual:

Cities are being bombed and fired upon indiscriminately, leaving behind a trail of destruction and death. Bosnian Muslims are being expelled from their homes to give way to “ethically pure” areas, of bad memory, in a show of total disregard to humanitarian

law and creating a serious and difficult refugees situation. Concentration camps and mass detention centers, things that seemed to belong to a remote pass have once again made their appearance as evidence of the inhuman nature of this conflict and portraying the ruthless manner in which Bosnians are being treated (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 5, grifo do autor). Acrescenta ainda que o caso em debate apresenta um “potencial para se

configurar em uma grande fonte de instabilidade à paz e à segurança internacionais, se

não for contido ou controlado pela comunidade internacional” (S/PV. 3106, 13 de

agosto de 1992, p. 6, grifo do autor).

O diplomata Lasso, representante da delegação do Equador, também associou a

política exercida pelo governo sérvio às atividades de limpeza étnica praticadas pelo

governo alemão durante a Segunda Guerra Mundial:

Fifty years after the Second World War, racial hatred is still being manifested in expulsion camps and the deaths of the detainees in concentration camps is the final chapter of the so-called ethnic cleansing (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 8, grifo do autor)

Acredita-se que a associação de tal imagem tenha sido fundamental para a

formação de uma opinião favorável à intervenção. Para o diplomata, por mais que o

caso da Bósnia pudesse ser caracterizado como um conflito interno, suas

conseqüências alcançaram um extremo que se mostrava inadmissível a qualquer

consciência civilizada, por isso, a comunidade internacional não poderia se mostrar

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insensível diante do sofrimento de civis indefesos. Sendo assim, o diplomata concluiu

apontando que as violações de direitos humanos exercidas pelo governo sérvio são, sem

sombra de dúvida, uma ameaça à paz e à segurança internacionais (S/PV. 3106, 13 de

agosto de 1992, p. 9, grifo do autor).

A posição da delegação indiana foi a favorável à condenação da limpeza étnica

na Bósnia, defendendo também a não exclusão do uso legítimo da força em situações de

extrema gravidade:

We have no doubt that whatever that the critical and desperate plight of the population demands urgent and effective response on the part of the international community and that such a response cannot and must not exclude the use of force (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 11-2, grifo do autor). O Japão defendeu que, em meio à guerra civil em andamento na Bósnia e o

fracasso das tentativas da ONU em convencer as partes a abandonarem suas armas, a

situação vinha se deteriorado, construindo um quadro de extrema dificuldade no acesso

à ajuda humanitária pelas vítimas, com mais de dois milhões de bósnios expulsos de

suas casas (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 21, grifo do autor).

A Áustria, apontando para os esforços do governo sérvio em bloquear o acesso e

distribuição de comida, remédios e ajudas humanitárias para as vítimas, também veio a

caracterizar o episódio de limpeza étnica, como constituindo, um crime contra a

humanidade (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 23, grifo do autor), chamando a

responsabilidade para a atuação da sociedade internacional. Conjuntamente com as

delegações de Equador e Cabo Verde, a delegação austríaca também utiliza a imagem

do Holocausto para reafirmar a não aceitabilidade do que estava se passando na Bósnia.

Fifty years ago, Europe has suffered the insanity of the quest of ethnic purity and its corollary, ethnic cleansing and concentration camps. We cannot allow this to happen again. A new world order, where diverse nations are drawn together in common cause to achieve the universal aspirations of mankind: peace and security, freedom, and the rule of law...where brutality will go unrewarded and aggression will meet collective resistance (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 26). Para a delegação russa, a “prática de limpeza étnica na virada do século XX era

vergonhosa e o Conselho de Segurança agiu corretamente condenando severamente

essas práticas” (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 28, grifo do autor). Essa mesma

delegação aponta que havia chegando o momento no qual não residia nenhuma outra

alternativa de solução do conflito que fosse por meios pacíficos (S/PV. 3106, 13 de

agosto de 1992, p. 29-30, grifo do autor). Assim, defendeu a adoção do documento

S/24421, que deu origem à autorização da intervenção na Bósnia, “refletindo a

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responsabilidade pela qual o Conselho de Segurança foi construído, a manutenção da

paz e segurança expressas claramente na Carta das Nações Unidas” (S/PV. 3106, 13 de

agosto de 1992, p. 27).

A Hungria ressaltou que as fortes violações de direitos humanos, materializadas

em uma política de limpeza étnica, representavam uma ameaça à paz e segurança

internacionais, constituindo assim, uma prioridade de ação da comunidade

internacional como um todo (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 31, grifo do autor),

tendo, assim, o Conselho a obrigação moral de atuar frente a presente crise.

A delegação da Grã-Bretanha chamou a atenção para a falta de autorização na

resolução aprovada para o uso da força, mesmo que viesse a ser necessária.

The resolution calls upon States to use any measures necessary for the delivery of humanitarian relief, including military means, but it does not prescribe the use of force. The use of force is not desirable, but it may be necessary ((S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 34).

A delegação britânica também defendeu a decisão pela intervenção, já que essa

se mostrava moral e juridicamente permitida, uma vez que, o governo sérvio havia

violado as leis internacionais, cabendo a sociedade internacional o dever de interceptar

os atos de violência (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 36, grifo do autor).

A delegação francesa apontou que, diante da continuação do conflito interno, a

população da Bósnia e Herzegovina teria experimentado um verdadeiro pesadelo

marcado pelo não suprimento de suas necessidades básicas como comida,

medicamentos e segurança. Adicionalmente, enquanto a comunidade internacional

vinha considerando grandes esforços para mitigar a violência da política de limpeza

étnica do governo sérvio, a violência evidenciava-se como um grande obstáculo à

distribuição de ajuda humanitária. A França também defendeu a necessidade de se

considerar a autorização do uso da força,no âmbito das Nações Unidas para não se

permitir que a população viesse a ser abandonada à fome e à privação (S/PV. 3106, 13

de agosto de 1992, p. 46-7, grifo do autor).

Mesmo diante da expressão de preocupação evidenciada no discurso do

delegado chinês, o Sr. Li Daoyu se absteve em votar para a autorização da resolução

770 que permitia a intervenção na Bósnia e Herzegovina, por não concordar com a

possibilidade do uso da força para garantir a distribuição de ajuda humanitária.

E finalmente, o senhor Perkins da delegação norte americana caracterizou a

situação na Bósnia como alarmante, já que o quadro de limpeza étnica vinha se

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intensificando frente às preocupações da comunidade internacional. No discurso

oferecido no Conselho, o delegado norte-americano utilizou também imagens que

aproximaram o caso da limpeza étnica na Bósnia e Herzegovina aos episódios ocorridos

durante a Segunda Guerra Mundial.

We are witnessing some of the most egregious abuses of human rights that Europe has seen since the Second World War, symbolized by the ethnic cleansing being conducted against the innocent victims of this tragedy (S/PV. 3106, 13 de agosto de 1992, p. 37-8).

Conforme vimos, a tomada de decisão no Conselho de Segurança acerca de uma

possível intervenção na Bósnia foi recheada com imagens referentes à política de

limpeza étnica executada durante a Segunda Guerra Mundial pela Alemanha nazista. As

descrições de campos de concentração e a vergonha sobre a sociedade internacional por

estar servindo de espectadora à ocorrência de um segundo Holocausto marcaram os

discursos das delegações norte-americana, austríaca e equatoriana. Porém, todas as

delegações que discursaram, apesar de não terem construído tal aproximação,

condenavam intensamente a política de limpeza étnica comandada pelo governo sérvio

na região. A solução para o conflito interno parecia não pousar mais em soluções

políticas, mas sim na possibilidade do uso da força contra o agressor estatal. Fora

mencionado também, diversas vezes, os efeitos transnacionais das ondas de violência,

que vinham contribuindo para uma escalada de caos e instabilidade nos países vizinhos.

Havia uma ênfase nos discursos que a violação massiva de direitos humanos estava

constituindo, claramente, uma à ameaça à paz e segurança internacionais. Assim, como

argumentado também nos casos do Iraque, Somália e Ruanda, o grau de violência

submetido à população era de tamanha grandeza e intensidade que passou a ser

interpretado como uma ameaça à paz e segurança internacionais. No entanto, o jogo

realizado no Conselho foi cooperativo (mesmo tendo a China, um membro permanente

com direito ao veto discursando contra a possibilidade do uso da força absteve seu voto

optando assim, pela não alteração do jogo de cooperação em andamento no Conselho).

A intervenção, então, mostrava-se necessária em grande medida pela aproximação dos

eventos na Bósnia e Herzegovina com as trágicas memórias da Segunda Guerra

Mundial.

Seis anos após a tomada de decisão de intervir na Bósnia, um novo cenário de

limpeza étnica voltou a assolar a Europa, tendo também como agente promotor o

governo sérvio. O governo de Milosevic, em 1998, dando continuidade a sua política de

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pureza étnica, voltou seu maquinário de guerra aos albaneses na província de Kosovo.

Confirmando o episódio de Kosovo como uma continuidade à política de limpeza étnica

realizada pelas autoridades sérvias, a secretária de Estado norte americana mencionou a

possível ocorrência de uma segunda política de limpeza étnica na região, e conclamou a

responsabilidade da sociedade internacional em interceptar o governo de Belgrado. We

believe that in 1991 the international community stood by and watched ethnic cleansing

in Bosnia…We don’t want that to happen again (Kosovo) this time (Steele, 1998, p. 19).

No entanto, apesar das semelhanças entre os dois casos, esses receberam

tratamentos bastante diferenciados pelos membros do Conselho. Enquanto o caso da

Bósnia foi caracterizado por muitos como uma imagem do ocorrido na Segunda Guerra

Mundial com a política do Holocausto, o caso de Kosovo foi identificado por dois

membros permanentes apenas como um conflito interno sem repercussões

internacionais, impossibilitando, dessa forma, o tratamento do caso pelo Conselho de

Segurança.

Nas reuniões do Conselho nas quais foram discutidas as possíveis linhas de

conduta da comunidade internacional frente à situação crítica que havia se estabelecido

em Kosovo (reunião 3868 responsável pela votação da resolução 1160 e a reunião 3937

que deu origem à resolução 1203), os discursos dos membros do Conselho permanentes

e não permanentes procuraram aproximar as violações massivas do caso das violações

massivas de direitos humanos em Kosovo com a política de limpeza étnica realizada

pelo governo sérvio no território da Bósnia: “para prevenir mais um massacre como o

que ocorreu na Bósnia e Herzegovina, o Conselho deve agir rapidamente...” (S/PV.

3868, 31 março de 1998, p.9).

Encontramos também, repetidas vezes, as delegações caracterizando o caso de

Kosovo como uma ameaça à paz e segurança internacionais, direcionando o caso a uma

prioridade do Conselho de Segurança.

Belgrade cannot pass off the repressive acts of recent weeks as a purely an internal affair”. Human rights matters to us all. And we (a comunidade internacional) have a particular responsibility to reduce the tension in the region before it causes instability in neighboring countries (S/PV. 3868, 31 de março de 1998, p. 12). A configuração dos membros não permanentes nas duas reuniões foi a mesma:

Reunião 3869 e Reunião 3937

1 Bahrain 2 Brasil

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3 Costa Rica 4 Gabão 5 Gâmbia (presidência) 6 Japão 7 Quênia 8 Portugal 9 Eslovênia 10 Suécia

A delegação polonesa, convidada pelo Conselho a se pronunciar foi a primeira a

falar, e traduziu a opinião do representante polonês para a Organização para a

Segurança e Cooperação na Europa7, de que o conflito em Kosovo deveria ser

endereçado de forma política e não coercitiva e o principio de territorialidade da

República Federal da Iugoslávia, assim como as demais regras definidas na Carta da

ONU, como o direito à autonomia para a província de Kosovo, deveriam ser

respeitadas na busca pela solução da crise. A delegação também elogiou a iniciativa de

cooperação entre as Nações Unidas e a OSCE, uma vez que juntas estão atuando

“construindo uma noção de solidariedade internacional que se mostrava indispensável

para realizar pressão as autoridades da República a fim de que mudem suas políticas”

(S/PV. 3868, 31 março de 1998, p.2-3, grifo do autor).

A próxima delegação a falar foi a (também convidada) Ucrânia. Paralelamente à

posição polonesa, defendeu uma resolução à crise por meios pacíficos, e disse acreditar

que as Nações Unidas não poupariam esforços para facilitar que as partes achassem um

caminho pacífico de entendimento, providenciando também ajuda à crise humanitária.

A delegação ucraniana também abraçou a iniciativa de cooperação interorganizacional

materializada na assinatura dos acordos de 16 de Outubro de 1998 entre a Republica da

Iugoslávia e a OSCE, autorizando o envio de uma missão de observação para

comprovar a obediência do acordo assinado pelas autoridades iugoslavas em 16 de

Outubro. No discurso, o representante ucraniano também ressaltou a importância da

obediência do princípio de soberania e da integridade territorial da República,

ressaltando, ao mesmo tempo, a necessidade da proteção aos direitos humanos. Assim,

para seguir essa posição, a delegação ucraniana se mostrou contrária o uso da força na

missão de observação (S/PV. 3868, 31 março de 1998, p.4).

O delegado da Costa Rica apresentou um discurso no qual insistiu na

7 OSCE; uma organização em cooperação com as Nações Unidas na tentativa de restabelecer, junto às partes, um acordo de paz que viesse a resolver a crise em Kosovo.

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necessidade de medidas que estariam em conformidade com as normas jurídicas

internacionais e a Carta da ONU (grifo do autor). Aproximando-se das primeiras duas

delegações já mencionadas, elogiou a iniciativa de cooperação entre a ONU e a OSCE

para fiscalizar o cumprimento pelas partes das resoluções 1160 e 1199, mas alertou que

a ONU deveria se manter como única instituição responsável pela manutenção da paz e

segurança internacionais, não devendo transferir essa responsabilidade à outras

instituições, e tampouco devendo se abster se abster de sua função estabilizadora. Ainda

emoldurou a questão de Kosovo como uma que continha um conteúdo ético e moral

inquestionável, e por isso, deveria ser resolvida por via das normas internacionais

(S/PV. 3868, 31 março de 1998, p.6, grifo do autor).

A delegação sueca também elogiou o acordo entre as organizações, pois apenas

mediante seu estabelecimento, a comunidade internacional poderia verificar a

observância das resoluções da ONU pelas partes. No entanto, concebeu a possibilidade

do desenvolvimento de medidas mais firmes se tais iniciativas políticas não viessem a

servir para garantir o cumprimento das resoluções impostas pelas Nações Unidas (S/PV.

3868, 31 março de 1998, p.7).

A representação eslovena apontou, assim como todas que discursaram no

Conselho na presente reunião, a ocorrência de sérias violações de direitos na política

interna da região, ressaltando, no entanto, que tais violações têm ocorrido por décadas e

têm se mostrado fora do escopo de preocupações do Conselho. No entanto, com a

eclosão de um conflito armado cujas conseqüências serviram como fatores

desestabilizadores na região, a crise acabou por ganhar a atenção do Conselho. Para a

delegação eslovena, o conflito em Kosovo representou, sem sombra de dúvida, uma

ameaça à paz e segurança internacional e, conforme supramencionado, constituiu um

grande fator de instabilidade à região (S/PV. 3868, 31 de março de 1998, p.7-8, grifo do

autor).

O representante japonês, ao mencionar a estarrecedora situação humanitária na

região de Kosovo, lembrou o Conselho da proximidade do inverno europeu, o que viria

a contribuir para aumentar a urgência em se encontrar um desfecho para a crise já que

milhares de refugiados ainda se encontravam distantes de suas casas e sem proteção

(S/PV. 3868, 31 março de 1998, p.9). Na opinião da delegação japonesa, o caminho a

ser percorrido pela ONU deveria ser o político e direcionado a pressionar o

cumprimento, por completo, do governo sérvio às resoluções impostas pela ONU, que

incluiam “o fim das hostilidades, a retirada das forças militares e de segurança, a

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permissão da chegada dos trabalhadores de instituições humanitárias, a permissão e

auxilio no retorno dos refugiados, e o estabelecimento de um diálogo com as lideranças

albanesas kosovares” (S/PV. 3868, 31 março de 1998, p.9, grifo do autor).

A delegação do Gabão enfatizou na reunião que:

“Enquanto o conflito tinha dimensões internas e tratava-se de uma questão de

responsabilidade da República Federal da Iugoslávia, mostrava-se também igualmente

verdade que os membros da comunidade internacional, particularmente as Nações

Unidas, deveriam exercer o dever e a obrigação moral de prover assistência e alivio à

população afetada sem critérios de distinção” (S/PV. 3868, 31 março de 1998, p.10,

grifo do autor).

Para o delegado norte-americano, Sr. Richardson, uma mobilização frente à onda de

violência que vinha se delineando em Kosovo mostrava-se importante, pois caberia ao

Conselho evitar os erros do passado quando diante de política de limpeza étnica

anterior pouco se fez para contê-la. A delegação norte-americana reconheceu também

que a segurança da região dos Bálcãs afetava diretamente os interesses internacionais e

que sua desestabilização constituía uma ameaça à paz e à segurança internacionais. “A

situação de Kosovo não se evidencia como uma questão interna do Estado e exerce um

impacto direto na estabilidade dos países vizinhos, desafiando a paz nos Bálcãs” (S/PV.

3868, 31 março de 1998, p. 13, grifo do autor).

Para a delegação britânica, os abusos e as violações dos direitos humanos que

estavam ocorrendo na região dos Bálcãs evidenciavam-se como uma questão de

natureza internacional e coletiva. “Abusos de direitos humanos são uma questão para

todos”, pousando sobre a comunidade internacional a responsabilidade particular de

reduzir as tensões na região antes de causar instabilidades nos países vizinhos (grifo do

autor). A delegação também abraçou a posição que a situação em Kosovo representava

uma ameaça à paz e à segurança internacionais por materializar violações severas de

direitos humanos exercidas por ambas as partes em conflito.

Do lado oposto à caracterização do conflito como uma questão de

responsabilidade internacional, a delegação russa caracterizou a situação como de

natureza interna, desencadeada por uma reação do governo sérvio aos albaneses que

utilizaram atos terroristas na luta por um Kosovo autônomo. “A situação em Kosovo,

apesar de sua complexidade, não constitui uma ameaça à segurança regional e,

tampouco, uma ameaça à paz e à segurança internacionais” (S/PV. 3868, 31 de março

de 1998, p. 10, grifo do autor).

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A China também defendeu que o conflito em Kosovo, em essência, versava sobre

uma situação doméstica e deveria ser resolvido por meio de negociações entre as partes,

respeitando-se o princípio de soberania e territorialidade da República Federal da

Iugoslávia (grifo do autor).

The question of Kosovo is, in its essence, an internal matter of the Federal Republic. It should be resolved properly through negotiations between both parties concerned on the basis of the principle of respect for the sovereignty and of the principle of territorial

integrity of the Federal Republic of Yugoslavia. We don’t think that the situation in Kosovo endangers regional and international peace and security. Many countries in the region are multiethnic and if the Council is to get involved in a dispute without a request from the country concerned, it may set a bad precedent and have wider negative complications (S/PV. 3868, 31 março de 1998, p. 11-2, grifo do autor).

Assim, pela identificação vinda de dois membros permanentes de que o conflito

consistia em uma questão doméstica da República da Iugoslávia, foi descartada a

possibilidade de uma autorização do Conselho de Segurança para um tratamento

intervencionista. No entanto, as interpretações de que a intervenção era necessária e

desejada, pois as violações de direitos humanos haviam atingido um tal nível que se

mostravam intoleráveis, contribuíram para a decisão de se autorizar uma missão de

intervenção por meio da OTAN em 1998.

O que se mostra importante nessa parte é ressaltarmos a forma, durante a tomada de

decisão para uma possível intervenção em Kosovo, que a crise foi caracterizada pelos

representantes e, de que forma as correspondentes regras e princípios jurídicos, muitas

vezes em confronto, foram negociados durante os discursos. A crise em Kosovo foi

caracterizada pelos membros (com exceção de China e Rússia) como um conflito

interno, porém com dimensões internacionais devido as fortes violações de direitos

humanos e o fluxo de refugiados adentrando países vizinhos e trazendo instabilidade à

região dos Bálcãs. A noção de soberania mostrava-se atrelada à responsabilidade

primeira do governo da República Federal da Iugoslávia em providenciar segurança e

bem estar aos seus nacionais, assim como no caso da Bósnia e do Iraque. O conflito em

Kosovo foi identificado como um afronto à idéia supracitada de soberania, proveniente

do exercício de uma política de limpeza étnica do governo de Belgrado contra a

população albanesa. Percebe-se, dessa forma, que, de acordo com essa caracterização

tem-se bem definidas a imagem do agressor e das vítimas. No entanto, mesmo com a

noção de soberania associada ao bem estar da população, a China e a Rússia insistiram

na interpretação tradicional e estreita do conceito de soberania que liga o governo (o

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soberano) ao controle exclusivo de seu território. As duas delegações também

apontaram à necessidade de obediência a tal principio, mesmo diante de fortes violações

de direitos humanos.

Vimos nos discursos realizados no Conselho que a maioria das delegações optaram

pelo caminho político e não coercitivo para trazer as duas partes conflitantes (governo

de Belgrado e a liderança albanesa de Kosovo) a uma abstenção à luta armada. O uso da

força para trazer as partes a um entendimento e cessar as agressões aos civis em Kosovo

foi rejeitada pela maioria dos membros, mesmo diante dos graves violações de direitos

humanos. Havia um governo naquela região e o caminho para a paz deveria ser traçado

com o consentimento e o auxílio do governo responsável.

No entanto, algumas delegações, como a da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da

França, disseram não descartar possibilidade de medidas mais firmes, inclusive

mencionando a possibilidade de se recorrer à força, caso não houvesse um

comprometimento das partes, principalmente do governo sérvio, em cessar com as

hostilidades. Foi elogiada pela maioria a iniciativa de se construir relações de

cooperação entre as Nações Unidas e duas organizações regionais, a OSCE e a OTAN,

para melhor observar e verificar o acatamento das resoluções 1160 e 1199. Em alguns

discursos, foi mencionada a obrigação moral e ética da sociedade internacional em

intervir em Kosovo para providenciar, urgentemente, ajuda e alívio humanitário, sem

distinção, às vitimas da assombrosa crise.

Para o caso de Kosovo, as regras do jogo lingüístico possibilitaram que o significado

dos principais termos que arquitetam o entendimento a respeito da prática de

intervenção humanitária tenham se apresentado, durante os discursos, da seguinte

forma:

(i) A regra prioritária de soberania do Estado foi atrelada à capacidade deste em

providenciar segurança e bem estar à sua população.

(ii) O exercício por um Estado de políticas agressivas contra sua própria população,

desembocando em violações massivas de direitos humanos, suspende seu direito de

proteção contra a invasão externa e interferência em seus assuntos domésticos

provenientes do princípio de soberania.

(iii) Um conflito interno que tenha provocado uma violação massiva de direitos

humanos e fortes fluxos de refugiados para os países vizinhos foi considerado, na

grande maioria dos casos, uma ameaça à paz e segurança à internacional, devendo

pousar sobre a sociedade internacional, por meio das Nações Unidas, a responsabilidade

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de tomar as providências necessárias.

Conclui-se nessa parte final do presente capítulo, a fim de reforçar a tese central do

trabalho, as noções de espaço interno/ internacional, assim como as regras jurídicas que

orientam cada caso foram também, em cada tomada de decisão, objetos de negociação.

os discursos dos membros, ao longo do processo de tomada de decisão,

caracterizando as situações de extrema violação de direitos humanos de diferentes

formas, foram fundamentais para se construir, ao final, um entendimento, por mais que

não compartilhado por todos, referentes aos casos que pediam por uma intervenção.

No primeiro caso de intervenção, ao norte do Iraque, a interpretação mais

comum na reunião, e não apenas no círculo seleto dos membros permanentes, foi que o

termo ameaça à paz e segurança internacional decorria do entendimento de que fluxos

de refugiados adentrando países vizinhos significavam uma ameaça aos países vizinhos

e ao restante da comunidade internacional. O conceito central de soberania estava sendo

atrelado à capacidade do governo em providenciar proteção e bem estar a sua própria

população.

Já no conflito civil somali em 1992, o termo “ameaça à paz e à segurança

internacional” adquire um significado proveniente da situação alarmante causada por

guerra civil e fome generalizada e, pouco se menciona a existência dos efeitos

transnacionais do conflito interno.

Frente ao episódio de extrema violência ocorrido em Ruanda no ano de 1994, assim

como na Somália, não havia uma referência de um governo central que pudesse

consentir qualquer tipo de ação ou esforço para cessar a onda de violência, porém a

maioria dos membros não alegou a necessidade de uma intervenção. O que marcou os

discursos referentes ao caso de Ruanda foi uma completa falta de cooperação, tanto na

caracterização do caso, como nos apontamentos para o tratamento da questão. Ficou

patente também o esforço dos membros, com a exceção de Nova Zelândia e República

Tcheca, em recusar o uso da palavra genocídio em seus discursos durante as tomadas de

decisão para a extensão do mandato da missão de paz. Isso por que o crime de

genocídio apresenta-se como um crime codificado pelo direito internacional público,

que consensualmente pede uma condenação por parte da comunidade internacional.

E finalmente, nos casos seguintes, Bósnia e Kosovo, foi aduzido por uma grande

parte dos membros do Conselho (misturando-se membros permanentes e não-

permanentes), que ambos os casos representavam uma ameaça à paz e à segurança

internacional pela condução de uma política de limpeza étnica realizada pelo governo

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sérvio contra as minorias croatas e albanesas. Os intensos fluxos de refugiados que ao

fugir da violência se direcionavam aos países vizinhos também foram apontados como

fatores de instabilidade na região. A intervenção na Bósnia foi autorizada pelo Conselho

em 1992 pela aproximação das imagens da política de limpeza étnica com o Holocausto,

enquanto em Kosovo, seis anos mais tarde, tal associação foi pouco reiterada, Muitos

alegaram a importância da utilização de meios pacíficos para a resolução da crise

humanitária, e, adicionalmente, foi argumentado por dois países que detinham poder de

veto que o conflito se caracterizava como uma guerra interna e, por isso, não cabia ao

Conselho intervir em assuntos domésticos de um país. Percebe-se, então, que em todos

os casos, os termos centrais que atuam na construção do entendimento da prática de

intervenção humanitária: “ameaça à paz e segurança internacionais”, “soberania”,

“violação de direitos humanos” “conflito interno/ internacional” foram trabalhados de

formas diferentes e adquiriram significados em conformidade com seus usos durante as

tomadas de decisão, explanando a afirmativa de Wittgenstein de que “a significação de

uma palavra é seu uso na linguagem” (Wittgenstein, 1958, §43).

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6. Conclusão

Para respondermos a presente indagação que se mantém central, ao longo do

presente trabalho, devemos, inicialmente, reapresentar as idéias de Friedrich Waismann

(1978, p.117-144), que inspirado em Wittgenstein demonstra que a linguagem utilizada

no dia-a-dia não pode ser verificada de forma conclusiva. Isso quer dizer que todas as

palavras que se destinam a reproduzir o mundo empírico e psicológico têm “a

possibilidade permanente de existência de uma região de significado onde não

conseguimos determinar com segurança se certa palavra se aplica ou não” (Struchiner,

2002, p.6). Ou seja, não conseguimos verificar absolutamente o significado proveniente

das palavras quando estamos diante de casos novos, ou quando “as palavras utilizadas

na afirmação criam uma combinação que nunca foi usada antes, e por isso, carecem de

uma explicação (significado)” (idem, p.14). Por isso, para Waismann, a capacidade de

verificação (do significado) apenas se faz presente quando o tipo de situação em que ele

deve ser usado é descrito (Waismann, 1978, p.122). O contexto no qual o objeto se

encontra deve ser revelado em sua descrição, para que este mesmo possa ser verificado.

Nesse sentido, é fundamental ressaltarmos que, por mais que a maioria dos

autores nas Relações Internacionais e no Direito Internacional venha a afirmar a

imprecisão referente ao termo intervenção humanitária ou aos termos centrais que a

compõem na prática, para Wittgenstein, tal afirmativa não faria sentido. Para o autor, o

significado da linguagem não pousa nos signos lingüísticos (nas palavras) conforme se

acreditava até a primeira metade do século XX, e sim no uso das palavras em um

contexto específico. Nesse sentido, todas as palavras são dignas de imprecisão em seu

significado, uma vez que os signos lingüísticos apenas adquirem significados

delimitados quando postos em prática (Mc Ginn, 1997, p.44).

Logo, a ambigüidade proveniente do significado das palavras (quando não se

sabe ao certo seus significados na prática) é proveniente de sua própria natureza. Para

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Wittgenstein, o significado da linguagem não tem proveniência dos conteúdos

lingüísticos das palavras, conforme havia se pensado na tradição clássica e moderna da

filosofia, emanando, na verdade de um jogo dinâmico de comunicação.

Wittgenstein ressalta em suas anotações que utilizar a linguagem é como realizar

uma atividade, uma ação. A comunicação permite que os objetos representados

materializem-se enquanto tais. A linguagem, então, é constitutiva e representacional ao

mesmo tempo. Logo, os atos humanos estão no inicio das construções das estruturas

sociais, cuja regulação ocorre por meio de regras sociais que, por sua vez, são

comunicadas e possibilitadas via linguagem. Sem as palavras e sua capacidade

representacional, os atos se manteriam silenciados (Debrix, 2003, p.10).

Trazendo Wittgenstein ao debate a respeito da intervenção humanitária, o ponto

principal da discussão é argumentar que a condição de ambigüidade e imprecisão dos

conceitos centrais que arquitetam a justificativa para uma intervenção humanitária são

características intrínsecas da linguagem e não devem ser vistas como problemáticas,

uma vez que, de acordo com Wittgenstein, seus significados apenas adquirem precisão

quando os signos lingüísticos são inseridos em um contexto argumentativo específico.

Assim, as zonas cinzentas de Waismann, as zonas de dúvida, fazem parte do processo

constitutivo de significado da linguagem, e permitem que, à medida que as palavras são

contextualizadas em ambientes diversos, venham a adquirir diferentes significados. Por

isso, grande parte do significado das palavras encontra-se no contexto, e não se deve

investigar o significado da linguagem olhando-se apenas para o conteúdo linguísticos

das palavras de forma descontextualizada.

Nesse sentido, se trouxermos as análises de construção de significado para uma

investigação referente às tomadas de decisão para uma intervenção humanitária, o

significado dos principais termos que arquitetam o entendimento da prática emerge do

jogo de negociação em andamento no Conselho de Segurança e, não exclusivamente,

das intenções e interesses dos representantes sentados à mesa de discussão. Os

significados não emanam da externalização de interesses conforme sugerido por Locke

e, nem tampouco, as palavras emanam da alma conforme apontado por Aristóteles. Para

que possamos entender o papel da linguagem na atribuição de significados aos termos

principais que arquitetam o entendimento a respeito da intervenção humanitária,

devemos olhar para o jogo de negociação em andamento entre os membros no Conselho

de Segurança.

Logo, pode-se concluir que, tomando por base as idéias de Wittgenstein, o

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processo de tomada de decisão que ocorre no Conselho de Segurança foge do controle e

da interpelação exclusivos dos interlocutores e dá margem à construção de significados

diversos, de acordo com as negociações que ocorrem entre os membros durante as

tomadas de decisão. Eis a capacidade dinâmica e criadora da linguagem, quando

analisada, em seu uso.

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