ana maria educação e cuidados em creche sarmento coelho...

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Universidade de Aveiro 2004 Departamento de Ciências da Educação Ana Maria Sarmento Coelho Educação e Cuidados em Creche Conceptualizações de um grupo de educadoras Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências da Educação, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Gabriela Correia de Castro Portugal, Professora Associada do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro.

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Universidade de Aveiro 2004

Departamento de Cincias da Educao

Ana Maria Sarmento Coelho

Educao e Cuidados em Creche Conceptualizaes de um grupo de educadoras

Dissertao apresentada Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Doutor em Cincias da Educao, realizada sob a orientao cientfica da Professora Doutora Gabriela Correia de Castro Portugal, Professora Associada do Departamento de Cincias da Educao da Universidade de Aveiro.

o jri

presidente Prof. Doutor Joo Pedro Paiva de Oliveira

vogais Prof. Doutor Jos Pereira da Costa Tavares

Prof. Doutora Maria Gabriela Correia de Castro Portugal

Prof. Doutora Rosa Lcia de Almeida Leite Costa Madeira

Prof. Doutora Teresa Maria Sena de Vasconcelos

Prof. Doutora Maria Joo Cardona Correia Antunes

agradecimentos

Prof. Doutora Gabriela Portugal pelo permanente encorajamento, pela confiana que depositou em mim ao longo do processo de elaborao deste trabalho, e especialmente pela sua atitude de orientao empenhada, rigorosa e disponvel. s educadoras que participaram neste estudo pela sua disponibilidade, frontalidade e empenhamento, e porque o seu contributo foi inestimvel e a condio necessria concretizao deste percurso. Ao Prof. Doutor Rui Paixo pelo seu sentido crtico e pela amizade que representou o seu contributo na reviso do texto final. Aos Conselhos Directivos (anterior e actual) e Cientfico da Escola Superior de Educao de Coimbra pelas condies institucionais que viabilizaram a minha disponibilidade para esta tarefa. Aos meus amigos da Escola Superior de Educao de Coimbra pelo seu estmulo e pelo incentivo que resultou das suas expectativas positivas, valiosas especialmente nos momentos de incerteza e de cansao. Agradeo em especial o apoio mais directo de algumas colegas, as Dras Anabela Ramalho, Madalena Baptista, Paula Neves e Vera do Vale. Aos meus amigos por se terem feito sentir sempre presentes e solidrios. Ao meu pai e tio Lus pelos afectos que na saudade se prolongaram como confiana e incentivo. minha famlia pelo estmulo, compreenso e tolerncia, e em especial ao Francisco, Manuel e Joo por todos os sacrifcios a que este meu percurso os obrigou.

resumo

Em Portugal tem sido realizada pouca investigao acerca da educao e cuidados de crianas pequenas em contextos colectivos de atendimento. Embora seja aceite que uma das principais variveis que afectam a qualidade da creche se relaciona com a formao e desempenho dos educadores que a trabalham, o modo como eles compreendem as suas prticas e contextos de prticas no tm sido interrogados. O presente trabalho tomou como referncia o designado paradigma do pensamento do professor, e foi realizado atravs de uma abordagem qualitativa (a grounded theory), tendo conduzido formulao de um modelo compreensivo das conceptualizaes (crenas e teorias implcitas) de um grupo de educadoras acerca da educao e cuidados de crianas em creche. Esse modelo procura condensar os dados que emergiram do processo analtico e que dizem respeito aos processos atravs dos quais as educadoras do significado s suas prticas em creche, aos princpios que lhes servem de orientao, aos dilemas que enfrentam na definio de padres de aco e na construo curricular, bem como ao modo como a experincia efectiva nesse contexto questiona e tambm interrogada pelas suas ideias prvias acerca da educao no parental e acerca da sua prpria profissionalidade como educadoras de creche.

abstract

Very little research has been carried out in Portugal into the care and education of children under three. Although it is widely accepted that one of the main variables that influences child care quality relates to the practitioners education and performance, the question of the way practitioners understand their practices and contexts of practice has not been addressed. The theoretical framework of this study was the teacher thinking paradigm, and grounded research methodology was employed in order to develop a comprehensive model of the conceptualizations (beliefs and implicit theories) of a group of early child teachers about the education and care of young children in child care centers. The model built through the research process focus on the way early child teachers create meanings for their practices in child care centers, the principles that serve to them as orientation, the dilemmas they face in the definition of patterns of action and in the curricular construction, as well as the way their effective experience in those settings questions and is also interrogated by their previous ideas concerning non parental education and also concerning the specific professional nature of their own roles and missions.

NDICE

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2.2.2.3.

INTRODUO ......

ENQUADRAMENTO TERICO

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA .....

Perspectivas em torno da infncia e do seu atendimento ...

A infncia e a educao de infncia como construes sociais .

Em direco a uma abordagem integrada da educao de infncia .

A educao e os cuidados para as crianas entre os 0 e os 3 anos em Portugal ..

O debate sobre a creche: do estudo dos efeitos problemtica da qualidade

A investigao dos efeitos da creche ..

A determinao da influncia directa da educao no parental ...

A pesquisa dos efeitos conjugados .

A questo da qualidade .

A qualidade como construto global

Concepes multidimensionais da qualidade

O questionamento do conceito de qualidade .

DIMENSO EDUCATIVA DA INTERVENO EM CRECHE .

Os currculos em educao de infncia .

Breve perspectiva histrica sobre os currculos em educao de infncia ..

A diversidade dos currculos em educao de infncia ..

Os modelos curriculares na educao de infncia em Portugal

As prticas curriculares mais comuns .

As orientaes curriculares para a educao pr-escolar ...

Currculo e princpios educativos para a creche

As orientaes da NAEYC para a creche ..

Enquadrando as prticas desenvolvimentalmente adequadas

As DAP .

As orientaes especficas para a creche ..

As crticas s DAP ..

Anlise de outras propostas curriculares para a creche ..

O modelo de Willis e Riccuitti ...

O modelo de Gonzalez-Mena e Eyer ..

O modelo de Cataldo .

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O modelo de Goldschmied e Jackson .

O modelo de Post e Hohmann .

O modelo de Bergen, Reid e Torelli

Reflexes finais em torno da intencionalizao educativa em creche ..

PROFISSIONALIDADE E SABERES DOS EDUCADORES DE INFNCIA ..

A docncia como profisso ...

Os conceitos de profisso e de profissionalizao ...

As perspectivas das diversas correntes sociolgicas ..

O educador de infncia como profissional .

Profisso e profissionalizao em educao de infncia .

O desenvolvimento profissional

A profissionalidade especfica do educador de infncia ..

O conhecimento profissional em educao de infncia ..

O conhecimento profissional na docncia ..

O conhecimento profissional dos educadores de infncia ..

CONTEXTUALIZANDO O ES TUDO DO PENSAMENTO DOS PROFESSORES/EDUCADORES ..

Tendncias dominantes na investigao educacional .

A investigao processo-produto .

Os modelos mediacionais e ecolgicos ..

A investigao dos pensamentos do professor .

Pressupostos bsicos do paradigma do pensamento do professor ..

Linhas da investigao centrada nos pensamentos do professor ..

CRENAS, CONHECIMENTOS E TEORIAS PRTICAS DOS PROFESSORES/EDUCADORES .

Crenas, teorias implcitas e construtos .

As crenas educacionais ...

As teorias implcitas

Os construtos pessoais .

Conhecimento e teorias prticas ..

Duas correntes principais no estudo do conhecimento e das teorias prticas .

Os contributos de Elbaz e de Clandinin e Connelly ..

O contributo de Schn ...

Estudos realizados com educadores de infncia ..

Questes metodolgicas da investigao das crenas e do conhecimento prtico

Teoria e experincia em educao de infncia .

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8.3.

8.3.1.

APRESENTAO DO ESTUDO QUALITATIVO

ENQUADRAMENTO METODOLGICO ..

A investigao qualitativa ..

A Grounded Theory

Primrdios e fundamentos

A especificidade de uma grounded theory .

Elementos de uma grounded theory

Caractersticas da Grounded Theory como mtodo ...........

Formulao do problema e recolha dos dados .

Codificao e anlise comparativa constante

Amostragem terica ...

A reviso da literatura

O PROJECTO DE INVESTIGAO

Definindo o objecto do estudo: Finalidade e questes iniciais da investigao ...

A escolha da metodologia .

Os instrumentos de pesquisa ...

As educadoras participantes .

Desenvolvendo o processo de amostragem terica .

O processo analtico e a identificao da teoria emergente .

A credibilidade da investigao

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE:

UM MODELO COMPREENSIV O DAS CONCEPTUALIZAES DAS EDUCADORAS .

A agenda das educadoras

Centrar-se na afectividade .

Individualizar a interveno ..

Desenvolver e socializar a criana ..

Articular com as famlias

Desenhando o currculo .

Definir uma intencionalidade .

Organizar e gerir o contexto educativo ...

Prever e regular ..

(Re)definindo a profissionalidade .

Tornar-se educadora de creche

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8.3.2.

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8.4.1.

8.4.2.

9.

Identificar os saberes profissionais ..

(Re)formulando as concepes acerca da creche

Pensar a educao no parental e a creche .

Transformar a creche num bem

CONSIDERAES FINAIS

BIBLIOGRAFIA .

ANEXOS ..

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1

INTRODUO

Em Portugal tem sido realizada pouca investigao acerca da educao colectiva

de crianas em creche, o que se reflecte na escassez de literatura acerca desta temtica.

Embora seja socialmente aceite que as experincias precoces tm um impacto

duradouro no desenvolvimento da criana, e tambm que uma das principais variveis

que influenciam a qualidade dos cuidados e educao da criana em creche se relaciona

com a formao e o desempenho dos profissionais que a trabalham, o modo como eles

compreendem as suas prticas e contextos de prticas no tm sido interrogados.

De facto, o estudo do pensamento dos educadores, e em particular a investigao

das suas crenas, teorias implcitas ou conhecimentos prticos, e do modo como se

articulam com as prticas que desenvolvem, um campo pouco explorado. Como afirma

Teresa Vasconcelos (1997), os educadores de infncia so, de todos os professores,

aqueles a quem a sociedade reconhece menos poder, o que ter determinado a menor

ateno que tem sido dada investigao das suas prticas e dos seus pensamentos,

ou, na expresso da autora, s suas vozes (p. 33).

O nosso estudo partiu, pois, do interesse em dar voz aos educadores que

trabalham em creche, procurando apreender o modo como eles compreendem a sua

actuao nesse contexto, os significados que constroem e os princpios que lhes servem

de orientao para enfrentarem as situaes incertas, singulares e especficas desse

mundo interaccional.

No trajecto para dar corpo a este interesse e tornar possvel a sua formulao

como objecto de pesquisa, assumimos o pressuposto de que, medida que se defende a

promoo da profissionalizao das pessoas que trabalham no domnio da educao de

infncia, parece crtico perceber a natureza da sua prtica profissional e das crenas e

conhecimentos que ela mobiliza e desenvolve.

Nessa medida, pretender dar voz aos educadores em creche procura ser

tambm uma forma de assumir que se a creche est para ficar, se a certificao da

qualidade est na ordem do dia, o percurso da profissionalizao no necessariamente

um percurso marcadamente tecnicista. ntimo, pessoal, especfico, no so traos que

procuremos ignorar na investigao dos pensamentos do educador em creche. Pelo

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

2

contrrio, o nosso esforo vai no sentido de considerar essas dimenses no que elas se

relacionam com o esforo dos prprios educadores para apreender e desenhar um

significado preciso ainda que subjectivo para o seu desempenho do dia-a-dia. Neste

sentido dar voz ao educador em creche tambm pretender identificar as dimenses

especificamente profissionais do seu trabalho, reconhecendo o que existe de pessoal,

comunicacional e necessariamente privado na misso que ele assume. Trata-se no fundo

de, semelhana da intensa produo de literatura sobre os professores que procura

desocultar uma profisso que todos conhecem do exterior, mas cuja interioridade s

muito dificilmente se vem abrindo a olhares alheios (Estrela, 1997, p. 9), assumir que o

nosso estudo visa interesses prticos e emancipatrios (Habermas, 1973, in op. cit.),

procurando desocultar as prticas dos educadores em creche e aspirando a que o seu

resultado possa ser reconhecido como socialmente vlido (Greenwood & Levin, 2000) e

profissionalmente capacitador.

Sob o ngulo dos seus fundamentos conceptuais e metodolgicos assumimos

que a partilha da significao das experincias constitui um modo de aceder a uma

compreenso do mundo da prtica tal como ele visto pelos seus protagonistas

(Schoonmaker & Ryan, 1996), e tambm a ideia de narrativa de acordo com a qual ns

compreendemos as nossas vidas contando histrias acerca delas (Connelly & Clandinin,

1998). Deste modo se foi desenhando o nosso prprio itinerrio como investigadora,

atravs da inteno de, em conjunto com educadores de creche, organizar uma leitura

das suas experincias profissionais, assumindo a subjectividade e a qualidade afectiva

dessas experincias como um aspecto inerente ao nosso objecto de estudo.

Pretendamos essencialmente que o nosso encontro com os educadores que viessem a

colaborar neste estudo pudesse encorajar a formulao uma definio compreensiva das

suas concepes prticas e implcitas, o que, como tambm refere Marland (1998),

sabemos ser raramente proporcionado ou favorecido nos seus contextos de trabalho e

at mesmo nos processos de formao a que tm acesso.

A nossa investigao pretendeu, pois, explorar as conceptualizaes (crenas e

teorias) que os educadores organizam atravs da sua experincia com crianas com

menos de trs anos em contexto de creche, nomeadamente as suas crenas e teorias

em relao a esse contexto, s crianas e ao processo educativo. Para tal, partimos das

seguintes questes gerais:

INTRODUO

3

- quais os aspectos relevantes das conceptualizaes (crenas e teorias) que os

educadores em creche evidenciam a partir da descrio e interpretao das

suas prticas e contextos de prtica?

- como se organizam essas crenas e teorias?

- como que essas crenas e teorias lhes servem de orientao para as suas

prticas?

Constituindo estas as questes de investigao iniciais, a sua reformulao e

especificao sob a forma de questes analticas mais precisas foi sendo ditada pela

recolha e anlise simultnea dos dados.

O estudo que desenvolvemos estruturou-se portanto em torno da sua

legitimizao conceptual no mbito do paradigma do pensamento do professor (Marcelo,

1987) e, em termos metodolgicos, da opo pela grounded theory (Glaser & Strass,

1967), opes que sero explanadas no corpo desta dissertao.

Importa todavia esclarecer, no que se refere estrutura adoptada para a sua

apresentao, que ainda que essa estrutura se tenha formalizado atravs da diviso em

duas partes distintas (o enquadramento terico e a apresentao do estudo qualitativo),

ela corresponde a uma construo que se foi organizando no tempo como um processo

interdependente, j que a delimitao dos contedos a analisar e a sua formatao como

captulos independentes foi sendo sucessivamente reformulada em funo dos temas

que foram emergindo a partir do prprio processo de investigao.

Assim, ainda que os captulos relativos ao aparato conceptual e respectiva

legitimizao desta investigao (Zabalza, 1994, p. 29) e ao seu enquadramento

metodolgico tenham sido os primeiros a serem por ns delineados, eles surgem no

corpo do texto numa sequncia que nos pareceu, na fase final de redaco da

dissertao, ser aquela que a tornava mais inteligvel. Na organizao do texto final

procurmos que a justificao da incluso de cada um dos captulos e a definio dos

seus contedos fossem sendo clarificados, e que a sua leitura tornasse perceptvel o

modo como eles se organizam como uma narrativa da nossa prpria construo dos

temas para que a delimitao do campo e do objecto de estudo e, posteriormente, o

prprio desenvolvimento da investigao nos foram encaminhando.

A estrutura final desta dissertao pode ser sumariada do seguinte modo:

A primeira parte inicia-se com um captulo em que se procura fundamentalmente

reflectir sobre as modalidades de cuidados e educao das crianas entre os 0 e os 3

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

4

anos, e em particular sobre a creche, reflexo que enquadrmos no contexto mais vasto

do debate actual acerca da infncia e dos seus contextos de desenvolvimento e

socializao. Nesse captulo procura-se fundamentalmente traar um quadro de

referncia acerca das novas conceptualizaes sobre a infncia e os servios que lhe

so destinados, como ponto de partida para a anlise mais focalizada da creche, que

organizmos sequencialmente partindo da problemtica dos seus efeitos para nos

centrarmos depois no debate acerca da qualidade.

O segundo captulo centra-se na anlise do processo de intencionalizao

educativa da interveno em creche, abordando-a sob o ngulo da reflexo sobre o modo

como curricularmente esse contexto poder ser compreendido. A opo por abordar a

dimenso educativa da aco em creche sob o ngulo do currculo resultou da inteno

de enquadrar aspectos relativos, nomeadamente, a ideologias ou teorias educacionais,

ou ainda a perspectivas sobre o desenvolvimento e a aprendizagem, especificamente sob

o ngulo da problematizao dos aspectos que devero ser considerados na formulao

de quadros de referncias que sirvam de suporte ao desenvolvimento concreto de

prticas e organizao de oportunidades educacionais que apoiem a tendncia

intrnseca e precoce da criana para se relacionar, aprender, desenvolver e construir

conhecimentos.

O terceiro captulo centra-se na problematizao da questo da profissionalidade

do educador e da identificao do corpo de saberes prprios da profisso. Nesse captulo

so abordadas questes ligadas com a definio da docncia como profisso, com a

especificidade da profissionalidade do educador em funo da singularidade das suas

misses e dos seus contextos de trabalho, e com a natureza dos saberes que so

constitutivos da emergncia da educao de infncia como mbito profissional.

O quarto captulo procura enquadrar a emergncia do paradigma do pensamento

do professor no mbito das principais linhas de investigao educacional, sintetizando as

consequncias que resultaram da emergncia desse paradigma, os seus pressupostos

bsicos e respectivas linhas de investigao.

O quinto e ltimo captulo da primeira parte aprofunda alguns conceitos que nos

ajudaram a delimitar o campo de investigao, em particular os de crenas e teorias

implcitas (Spodek, 1888a, 1988b; Clark & Peterson, 1990), conhecimento prtico (Elbaz,

1983; Clandinin & Connelly, 1987), e teorias prticas (Sanders & McCutcheon, 1986;

Handal & Lauvas, 1987). Nesse captulo tambm apresentada uma reviso dos estudos

realizados nesta rea com educadores de infncia.

INTRODUO

5

A apresentao do estudo por ns desenvolvido inicia-se com um captulo

dedicado ao seu enquadramento metodolgico, o qual procura resumir as nossas opes

localizando-as em termos paradigmticos. So apresentados os motivos que

determinaram a escolha da grounded theory, bem como as principais caractersticas

desta metodologia.

No captulo seguinte (stimo captulo) apresentado o projecto de investigao,

sendo descritos os procedimentos e o percurso metodolgico efectivamente

concretizados, nomeadamente no que se refere ao processo de amostragem, aos

instrumentos de pesquisa e ao processo analtico.

No captulo oitavo so extensamente apresentados os dados e a sua leitura

interpretativa, que condensmos sob a forma de um modelo compreensivo das

conceptualizaes de um grupo de educadoras acerca dos cuidados e educao em

creche.

Finalmente, no captulo nono apresentado um conjunto de consideraes finais

que, mais do que concluses, pretende condensar a nossa leitura dos dados, destacando

a reflexo a que o processo de investigao nos conduziu atravs da sistemtica

interrogao das concluses que, como em qualquer pesquisa qualitativa, foram sendo

continuamente geradas, questionadas e reformuladas.

9

CAPTULO 1 INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

A reflexo acerca das modalidades de cuidados e educao das crianas entre os

0 e os 3 anos, e em particular a interrogao acerca da creche, parecem-nos dever ser,

em primeiro lugar, enquadradas no contexto mais vasto do debate actual acerca da

infncia e dos seus contextos de desenvolvimento e socializao.

Estando o aprofundamento histrico para alm do escopo da nossa anlise,

centrar-nos-emos nos traos mais evidentes do debate actual acerca desta temtica,

incluindo apenas algumas breves notas sobre os seus determinantes histricos, na

medida em que tal se afigurar necessrio compreenso dos discursos actualmente

produzidos acerca da infncia, das particularidades que marcam a sua emergncia como

categoria social, e do modo como essas particularidades influenciam as perspectivas

actuais acerca dos servios destinados infncia.

Fundamentalmente o que pretendemos no primeiro ponto deste captulo traar

um quadro de referncia acerca das novas conceptualizaes sobre a infncia e os

servios que lhe so destinados, como ponto de partida para a anlise mais focalizada da

creche, que desenvolveremos partindo da problemtica dos seus efeitos para nos

centrarmos depois no debate acerca da qualidade.

1.1. PERSPECTIVAS EM TORNO DA INFNCIA E DO SEU ATENDIMENTO

1.1.1. A INFNCIA E A EDUCAO DE INFNCIA COMO CONSTRUES SOCIAIS

Um dos traos mais evidentes da sociedade contempornea ocidental , sem

dvida, a aparente contradio entre, por um lado, a tendncia para se estandardizar, e,

por outro, a importncia que tende a ser reconhecida diversidade dos contextos sociais

e culturais em que as pessoas vivem, e em que portanto as crianas se desenvolvem. ,

alis, no mbito deste duplo movimento de leitura e conceptualizao dos fenmenos

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

10

sociais que se assiste, no domnio do discurso educativo, emergncia de conceitos

como os de parcerias, redes ou contratos, que implicam a contextualizao dos recursos,

das iniciativas e do prprio saber, cuja construo se admite passar pela apropriao de

elementos da cultura e da realidade social. Estes aspectos esto hoje presentes quer em

documentos orientadores das polticas educativas quer no discurso dos agentes

envolvidos, nomeadamente dos educadores, professores e mesmo dos pais. Embora se

definam polticas gerais, que prescrevem orientaes ou currculos a nvel nacional,

reconhecem-se as componentes regionais do currculo, ou a importncia de

contextualizar a aco educativa, abrindo-se por essa via a possibilidade de se tecerem

vivncias, aprendizagens e saberes que surjam como significativos em cada escola, em

cada jardim de infncia ou em cada creche, ou seja, em cada local e em cada tempo

educativos.

nesta tendncia geral da sociedade ocidental contempornea de aparente

revalorizao do local enquanto contexto de deciso e de iniciativa, que emerge e poder

ser compreendida a revalorizao da escola como local e tempo, como lugar de encontro

de prticas e saberes socialmente contextualizados, construdos e interpretados, a qual

constitui precisamente uma espcie de contra-fora tendncia para o mundo se tornar

mais homogneo.

Nas crticas globalizao destaca-se, sem dvida, o argumento de que ela

uma tendncia que, embora encerrando uma ideia de aproximao, entendimento e troca

entre as sociedades, conduz tambm a uma assimilao, e por essa via a uma

uniculturalidade empobrecedora (Kagan, 2001). Da que ganhe fora a ideia de ser

necessrio favorecer a conciliao entre, por um lado, as vias abertas pela sociedade da

informao, e, por outro, a identidade culturalmente enraizada, a aceitao da

diversidade (cultural, tnica, religiosa ou de outra natureza), no como um obstculo a

vencer, mas como um recurso para as sociedades, em geral, e para as comunidades

educativas e escolares, em particular.

O relatrio publicado recentemente pela OCDE acerca das polticas e realidades

da Educao de Infncia em vrios estados membros dessa organizao (OECD, 2001)

reflecte tambm esta tendncia ao relacionar explicitamente a compreenso das

diferentes imagens acerca da criana, presentes nos diversos pases, com as polticas e

os servios implementados para o seu atendimento (Kagan, 2001; Moss, 2001). Tal

assuno tem implcita a ideia de que a infncia uma construo social, o que implica

aceitar que ela no nem um dado universal nem natural (Pinto, 1997).

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

11

A infncia no uma experincia universal de qualquer durao fixa, mas diferentemente construda, exprimindo as diferenas individuais relativas insero de gnero, classe, etnia e histria. Distintas culturas, bem como histrias individuais, constroem diferentes mundos da infncia (Franklin, 1995, citado em Sarmento & Pinto, 1997, p. 17).

Tambm Moss, Dahlberg e Pence (2000a), reconhecendo o contributo do que tem

vindo a ser designado como uma nova sociologia da infncia, admitem que de um ponto

de vista universal a infncia constitui basicamente um facto biolgico, e que o modo como

a infncia compreendida socialmente construdo, originando sobre ela diversos

discursos que, por sua vez, a definem como categoria social:

There are many different ways of understanding the child for example, as an empty vessel, to be filled with knowledge by adults; as an innocent in the golden age of life; as the natural or scientific child following biological stages of development; or as a co-constructor of knowledge, culture and identity in relationship with other children and adults (Moss, Dahlberg & Pence, 2000a, p. 109).

definio da infncia como uma construo social associa-se estreitamente a

crtica ideia de criana universal, considerada como uma ideia moderna e positivista,

que, pretendendo construir uma verdade universal, corresponde fundamentalmente a

uma categoria criada pela linguagem, segundo critrios de racionalidade e de acordo com

uma viso essencialmente normativa. Cannella (1997) faz notar como no domnio da

educao tem sido reconhecida a modificao das concepes acerca da infncia, ao

longo do tempo e em funo de diferentes contextos histricos. Todavia, considera que o

que tem predominado na interpretao desta modificao a convico de que

progressivamente se atingiria uma concepo mais completa, que permitiria aceder a

uma verdade universal porque determinada por critrios de cientificidade e de

racionalidade. Na verdade, diversos autores (Rinaldi, 1993, 2001; Leavitt, 1994; Silin,

1995; Cannella, 1997, 1999; Dahlberg, Moss, & Pence, 1999; Burman, 2001; Fleer,

2003a, 2003b, entre outros) tm questionado a viso pr-determinada e universal da

infncia, bem como a correspondente estandardizao das prticas educativas. Aubrey

(2002), por exemplo, refere a este respeito a funo reguladora que tem sido exercida

sobre o campo da educao de infncia por um discurso cientfico dominante, o qual tem

moldado a compreenso acerca das crianas e a construo de imagens sobre a

infncia1.

1 Estes autores, adoptando em geral perspectivas ps-modernas, baseiam-se nomeadamente em Foucault, autor que, questionando aquilo que constitui o conhecimento legtimo, prope uma anlise das relaes entre conhecimento e poder, defendendo essencialmente que as descries e discursos oferecidos pela procura da certeza e da normalidade se tm organizado e imposto como regimes de verdade (cf. Cannella, 1999).

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

12

A concepo da infncia como uma construo social tem sido ainda marcada

pelo progressivo reconhecimento de que as prprias crianas participam da sua

determinao, uma vez que como agentes activos e socialmente criativos produzem no

apenas as suas culturas infantis com carcter nico, mas simultaneamente contribuem

para a produo das sociedades adultas (Corsaro, 2000). A este respeito parece-nos

essencial a distino proposta por Manuel Pinto (1997) entre duas formas dominantes de

encarar os processos de socializao, a primeira das quais a partir da sociedade e dos

seus agentes socializadores, e a segunda em funo dos sujeitos em processo de

socializao e dos seus respectivos mundos sociais. Admitindo, com Giddens (1993,

citado em Pinto, 1997), que a socializao no corresponde a uma programao

cultural, atravs de um processo passivo de absoro, e que a criana um ser activo

desde que nasce, torna-se especialmente importante reconhecer que os processos de

desenvolvimento e de socializao devem tambm ser considerados luz no s da

integrao dos valores e prticas dominantes de um dado contexto cultural, mas tambm

da sua apropriao e reconstruo pelos sujeitos em desenvolvimento. Esta perspectiva,

que se aproxima da que Corsaro (2000) adopta e designa de interpretative reproduction

(p. 92), acentua essencialmente o modo como as crianas, produzindo e participando nas

suas prprias culturas infantis, esto no apenas a internalizar os valores da sociedade e

da cultura, mas a contribuir de modo activo para a sua transformao.

Corsaro (2000), apoiando-se em Qvortrup (1991, in op. cit.) insiste, alis, na

noo de que a infncia, como um perodo culturalmente determinado, uma categoria

estrutural, uma parte da sociedade, que se inter-relaciona com outras categorias como a

classe social, o gnero, o grupo de idade, a famlia, o trabalho, as condies econmicas,

cujos re-arranjos ou modificaes afectam, por sua vez, a natureza da infncia.

Modificaes operadas nessas categorias, criando configuraes diversas, e em

particular, no que se refere s sociedades ocidentais, determinando vivncias

institucionais precoces, contribuem para o desenvolvimento de culturas infantis que, por

sua vez, agem como reprodutoras mas tambm como transformadoras da cultura social

mais extensa.

A influncia recproca entre estas diversas estruturas serve tambm de

enquadramento compreenso no apenas da infncia como uma construo social

(que apenas em determinado momento se constitui tambm verdadeiramente como uma

categoria social), como tambm dos servios destinados ao seu atendimento. Alis, a

noo de que quer a infncia quer os sistemas que visam o seu atendimento e educao

tm uma origem social e cultural, encontra-se tambm implcita em Spodek (1993b),

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

13

quando, ao contestar a noo de infncia natural como origem do currculo em

educao de infncia, afirma que essa ideia no se sustm, na medida em que no h

nada de natural em qualquer escola mesmo na pr-escola. (...) De facto todas as escolas

so invenes culturais para fazer coisas s crianas, para as mudar (p. 9). Na verdade,

hoje amplamente reconhecido que a inveno da educao institucionalizada est

ligada evoluo das concepes acerca da infncia e sua emergncia como categoria

social (cf. Cardona, 1997, Magalhes, 1997, e Vilarinho, 2000, no que refere anlise

desta problemtica no nosso pas)2.

Contudo, para alm do reconhecimento do carcter eminentemente cultural e

socialmente construdo de toda a aco e contexto educativos, para Sarmento e Pinto

(1997) o que resulta evidente da concepo da infncia como uma categoria social o

pressuposto de que as crianas sejam reconhecidas como actores sociais de pleno

direito, ainda que com caractersticas especficas (nomeadamente em virtude da sua

dependncia), concepo que opem a uma viso das crianas como meros

destinatrios de cuidados sociais especficos.

O reconhecimento das crianas como actores sociais, afirmam esses autores, tem

levado discusso acerca dos seus direitos, a qual se tem baseado na distino

tradicional entre direitos de proteco (nomeadamente do nome, identidade, pertena a

uma nacionalidade), de proviso (cuidados e educao, entre outros aspectos), e de

participao (nas decises relativas s suas vidas e s instituies em que actuam). Para

Sarmento e Pinto (1997) justamente no domnio do reconhecimento das crianas como

actores com pleno direito de participao que tm sido observados menos progressos e

maior controvrsia na construo de polticas e na organizao e gesto das instituies

para a infncia.

2 A variao histrica do conceito de infncia na sociedade europeia tem sido traada, nomeadamente, com base na tipologia apresentada por Hendrick, em 1990, que identifica as seguintes imagens sociais sobre a infncia: a criana romntica, que surge no sculo XVIII e marcada pela valorizao da inocncia da criana, de que a obra de Rousseau a referncia mais importante; a criana trabalhadora, ligada com as mudanas operadas pela revoluo industrial, e cuja visibilidade social est relacionada com as crticas que emergem em relao sua explorao; a criana delinquente, cujos comportamentos indigentes precoces ganham tambm visibilidade a partir das crticas de filantropos sensveis s suas precrias condies de vida; a criana mdico-psicolgica, cuja imagem social se comea a esboar nos sculos XVIII e XIX com base nos saberes mdicos e biolgicos e no discurso higienista, reforando-se no final do sculo XIX com as descobertas da psicologia e da psicanlise; a criana-aluno, que emerge no final do sculo XVIII a par do surgimento da escola pblica, imagem que construda a partir da concepo da criana delinquente e da ideia de que apenas uma educao socializadora e moralizadora evitaria a reproduo dos seus comportamentos indesejveis; a criana bem-estar que, resultando do reconhecimento social e legal da natureza infantil, se materializa no aparecimento de novos servios de apoio infncia, em reas como a preveno social, a sade e a educao (Vilarinho, 2000). Manuel Sarmento (1999, citado no relatrio do Conselho Nacional de Educao, 2003) analisa o modo como estas imagens tendem ainda hoje a persistir na sociedade portuguesa.

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

14

Segundo uma linha de pensamento paternalista, as crianas necessitam de proteco, exactamente porque so incapazes de agir com maturidade (ou mesmo, numa verso mais radical do paternalismo, com capacidade racional) por si prprias, num mundo semeado de perigos e obstculos. Deste modo, a participao e a autonomia que lhe correlativa contraditria com a proteco necessria ao desenvolvimento da criana (...). Esta perspectiva, na qual no possvel deixar de ver a velha teoria da criana como homnculo ser humano miniatural em processo de crescimento no apenas no considera o princpio pedaggico formulado pela Educao Nova que afirma a autonomia como condio de desenvolvimento o que, curiosamente, ao invs do paternalismo, faz coincidir proteco com participao -, como retira s crianas o estatuto de actores sociais, destinando-lhe a funo exclusiva de destinatrios das medidas protectoras dos adultos, inerentemente sbios, racionais e maduros (Sarmento & Pinto, 1997, pp. 19-20).

Esta viso, ainda muito presente na forma como se conceptualiza a organizao

das modalidades de atendimento e de educao, sobretudo no que se refere primeira

infncia, parece-nos alis haver sido tambm identificada pelo Departamento de

Educao Bsica, no seu relatrio preliminar ao estudo levado a cabo pela OCDE, a que

j aludimos, onde, no ponto relativo s concepes gerais sobre a criana e a primeira

infncia, se pode ler (...) subsistem ainda problemas numa sociedade que, muitas vezes,

dando uma viso romntica ou uma viso idlica da infncia, no reconhece as crianas

como actores sociais de pleno direito (Ministrio da Educao, 2000, p. 29). O

reconhecimento deste direito, no exclui, como bvio, sobretudo no caso de crianas

muito pequenas, a assuno da sua imaturidade e a correspondente obrigao de dar

resposta s suas necessidades de dependncia. Todavia, o direito de participao

dever, neste caso, aludir noo da criana como um ser competente. Esta noo tem

sido reforada, mesmo em relao s crianas muito pequenas, como mostram os dados

da investigao em neonatologia realizada nas ltimas dcadas (Stern, 1980; Gomes

Pedro, 1985; Brazelton, 1987; Sameroff & Emde, 1989; Shonkoff & Phillips, 2000), que

tm questionado a imagem do beb como um sujeito passivo alvo de cuidados e o tm

identificado como um ser socialmente orientado, competente e interactivo. No caso da

educao de infncia, a noo da criana como um ser competente, implica, como afirma

Zabalza (1998), pretender no apenas que ela seja feliz e cuidada mas fazer justia ao

seu potencial de desenvolvimento durante esses anos que so cruciais (p. 20).

Numa outra perspectiva, parece-nos ainda importante mencionar o contributo dos

estudos interculturais para a compreenso da infncia, e dos sistemas que cada

sociedade organiza para o seu atendimento e educao, como construes sociais. A

comparao dos modos como a educao de infncia tende a ser compreendida em

diferentes sociedades e culturas, ilustra bem como aquilo que em cada sociedade

julgado apropriado (ou seja, as prticas de socializao e desenvolvimento das crianas),

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

15

varia significativamente, mesmo no interior das sociedades ocidentais. O modo de

compreender a infncia e as prticas educativas traduz-se naquilo que em cada uma das

culturas ou grupos sociais tende a ser compreendido como o nicho desenvolvimental

(Super & Harkness, 1986) a considerado desejvel para que a criana cresa de forma

saudvel. Ou seja, depende das relaes que se estabelecem entre a cultura, os

comportamentos parentais, as modalidades formais e informais de guarda e educao, e

os resultados considerados desejveis no que diz respeito ao desenvolvimento da

criana, passando por aspectos como o modo como tende a ser regulada a vida diria

das crianas e das suas famlias, o modo de cuidar das crianas e os aspectos

psicolgicos dominantes associados a esses cuidados. sabido, por exemplo, como em

certas culturas a nfase colocada no desenvolvimento da capacidade de a criana se

auto-afirmar e ser assertiva (como o caso dos EUA), enquanto noutras a nfase

colocada no domnio das relaes interpessoais e na capacidade da criana para

interagir com os outros de modo considerado adequado (por exemplo no Japo). A estas

diferenas nos processos de desenvolvimento que em cada sociedade so mais

valorizados, correspondem, por sua vez, em numerosos casos, prticas educativas

bastante diferentes, que luz das concepes ocidentais dominantes seriam

consideradas inadequadas. Uma prtica relativa, por exemplo, ao estabelecimento de

rotinas do sono na criana pequena, considerada desejvel em algumas sociedades

ocidentais (onde desde o nascimento se espera que as crianas tenham quarto prprio e

se reprova explicitamente que a criana permanea no quarto dos pais), apenas foi

observada em 10% das sociedades estudadas numa investigao intercultural alargada

(Bhavnagri & Gonzalez Mena, 1997). Em algumas culturas os processos de dependncia

e proximidade fsica entre a criana pequena e o adulto so altamente valorizados e

considerados uma base segura para o desenvolvimento posterior da independncia e da

explorao da realidade, e as atitudes relativas ao sono dos bebs aparecem como um

exemplo do modo como esses valores se traduzem em configuraes diversas do nicho

desenvolvimental que a oferecido criana.

De uma forma mais ou menos explcita cada sociedade mantm, portanto, a sua

prpria definio de educao ideal, que se reflecte nos objectivos e expectativas que

organiza face ao desenvolvimento da criana e sua socializao. No campo especfico

da educao de infncia, investigao diversa tem mostrado tambm como quer os pais

quer os educadores de diversas culturas assumem perspectivas diferentes quando

avaliam os aspectos ligados organizao do ambiente educativo nas instituies, ao

comportamento, qualificao e desempenho dos educadores ou especificamente

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

16

dimenso curricular (Harkness, 1992; Stevenson, Lee & Graham, 1993; Doliopoulou,

1996; Fuller, Holloway & Liang, 1996; Hujala-Huttunen, 1996; Mantovani, 1996, 2001a;

Bhavnagri & Gonzalez-Mena, 1997; Weikart, 1999; Hewitt & Maloney, 2000; Ojala, 2000;

Gonzalez-Mena, 2001; Goodfellow, 2001; entre outros).

Mas a pluralidade das infncias no dever ser entendida apenas como uma

questo que emerge da comparao entre culturas e sociedades diferentes ou

geograficamente diferenciadas. A noo relativa infncia e aos servios organizados

para o seu atendimento como construes culturalmente situadas (Woodhead, 1999;

Woodhead, Faulkner & Littleton, 1998; Rinaldi, 2001) encerra a ideia de que no existe

uma infncia, mas diversas imagens de infncia, as quais so socialmente interpretadas

e reconstrudas no seio dos grupos e dos processos sociais que lhes do origem. Ora em

sociedades como as ocidentais, que, em virtude dos movimentos migratrios, tendem a

ser cada vez mais marcadas pela diversidade, compreender a infncia e definir respostas

que sejam adequadas, implica que em cada instituio educativa, como lugar e tempo

nicos, se aprofundem, interpretem e interaja com os significados que as crianas, as

suas famlias, e os diversos agentes educativos envolvidos conferem aco educativa

em curso.

Admitir uma pluralidade de infncias implica, portanto, assumir a complexidade

da realidade escolar e educativa ocidental, uma vez que as instituies educativas

tendem a ser cada vez mais frequentadas por crianas com histrias e percursos

familiares e culturais diferentes, e tambm a sociedade portuguesa tende a ser cada vez

mais multicultural.

H muito tempo que se reconhece que a(s) cultura(s) influencia(m) o currculo

durante a escolarizao formal. No entanto, no caso da educao de infncia, esto

tambm em causa, como antes afirmmos, as prticas de socializao precoce e de

cuidados culturalmente relevantes e, por essa via, nucleares no apenas para um

determinado grupo sociocultural, mas tambm para cada uma das crianas e para as

suas famlias.

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

17

1.1.2. EM DIRECO A UMA ABORDAGEM INTEGRADA E ABRANGENTE DA EDUCAO

DE INFNCIA

As mudanas operadas nos ltimos anos no domnio das concepes acerca da

famlia, da infncia e dos servios destinados s crianas mais novas tm determinado o

aparecimento de novas terminologias, polticas e programas marcados

fundamentalmente por duas caractersticas, a saber, a deslocao da funo

socializadora primria exclusivamente da arena domstica para uma esfera social mais

alargada, e a emergncia de uma perspectiva mais abrangente mas tambm mais

integrada dos servios destinados infncia. A criao, em 1986, da European

Commission Network on Childcare justamente considerada como um indicador dessas

mudanas, j que a concepo de childcare adoptada pela Comisso apreciada como

sendo suficientemente vasta, abarcando diversas medidas necessrias para permitir o

emprego, a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, o desempenho

apoiado das funes parentais e o bem-estar e desenvolvimento das crianas (Haddad,

2002). Refira-se que, em relao a este aspecto, tambm o relatrio da OCDE (OECD,

2001) identifica o modo como o mbito da educao e dos cuidados para a infncia se

tende a deslocar, em diversos pases estudados, do domnio estritamente privado para o

domnio das medidas e polticas pblicas, definindo de forma complementar os papis

assumidos pelas famlias e pelas instituies para a infncia (Vasconcelos, 2001)3.

Haddad (2002), num extenso relatrio realizado para a UNESCO acerca dos

sistemas relativos aos cuidados e educao para a infncia, refere-se legitimizao da

socializao extrafamiliar como o trao essencial de um novo modelo integrado e

abrangente. Considerando que tal corresponde a uma mudana de paradigma de uma

abordagem selectiva e exclusiva para uma abordagem universal e inclusiva, a autora

destaca o modo como a natureza multidimensional deste campo e a multiplicidade de

factores envolvidos (culturais, histricos, polticos, sociolgicos, psicolgicos,

pedaggicos e fsicos), implicam que se adoptem perspectivas que extravasam limites

disciplinares rgidos, e se definam polticas apoiadas em saberes interdisciplinares e

abordagens sistmicas, que avancem sobre a mera identificao de relaes de causa-

efeito e sobre a anlise isolada dos contextos imediatos em que a criana se desenvolve. 3 Teresa Vasconcelos (2001) sintetizou os traos comuns que emergiram do estudo comparativo realizado pela OCDE identificando sete traos nas polticas actuais de educao e cuidados para a infncia: a expanso das redes de cobertura no sentido de garantir um acesso universal educao de infncia; a melhoria da qualidade de oferta; a promoo da coerncia e coordenao entre as polticas e os servios; a explorao de estratgias que garantam um investimento adequado no sistema; a melhoria da qualidade de formao e das condies de trabalho dos profissionais; o desenvolvimento de quadros pedaggicos de referncia; e, finalmente, o envolvimento dos pais, das famlias e das comunidades (cf. Bennett, 2001, sobre o mesmo assunto).

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

18

O modelo de Bronfenbrenner (1979) , a este respeito, considerado de grande utilidade,

justamente porque oferece um quadro de referncia para a compreenso do modo como

os servios destinados infncia reflectem o contexto social mais alargado, ajudando a

compreender as suas influncias histricas e culturais recprocas. Na verdade,

Bronfenbrenner ao definir nveis de sistemas progressivamente mais envolventes,

oferece um quadro compreensivo do modo como o desenvolvimento da criana vai sendo

directamente afectado no apenas pelas suas transaces especficas com os seus

cenrios imediatos (microssistemas), mas tambm pelos contextos mais vastos em que

esses cenrios se inserem e pelas suas transaces recprocas. Estes contextos mais

vastos incluem, pois, quer as polticas concretas quer os valores e crenas sociais em

que elas se sustentam, possibilitando uma viso sistmica que se descentra da mera

anlise circunstancial e isolada dos contextos imediatos4.

A mudana no sentido do reconhecimento das mltiplas funes e mbitos da

educao de infncia, que extravasam a dicotomia entre funes assistenciais e funes

educativas, tambm considerada como um resultado da investigao entretanto

produzida em diversos domnios da pesquisa social, e da concepo dos servios que lhe

so destinados como places where children can live here and now, a move from the

traditional teaching and learning approach of ECEC5 and school (Haddad, 2002, p. 23).

Peter Moss (2002d), num artigo que sugestivamente intitulou de Time to say

farewell to Early Childhood? , discute justamente a necessidade de se adoptar uma

perspectiva mais abrangente, considerando que a conceptualizao restritiva da

educao de infncia como um domnio delimitado encerra o risco de continuar a

marginalizar as crianas pequenas e os servios que lhes so destinados. Reconhecendo

os progressos alcanados nas ltimas dcadas no domnio da regulamentao e

regulao dos servios destinados infncia, Moss (2002d) defende que se considere

4 Luis Soczka apresentou, em 1986, uma sinopse da teoria ecolgica do desenvolvimento, formulada por Bronfenbrenner (1979), sintetizando-a em torno das seguintes definies: 1) A ecologia do desenvolvimento humano implica o estudo cientfico da acomodao recproca e progressiva entre um ser humano activo e em crescimento e as propriedades em mudana dos cenrios ambientais imediatos em que vive essa pessoa, e da medida em que esse processo afectado pelas relaes entre os cenrios e pelos contextos mais amplos em que esses cenrios se inscrevem; 2) um microssistema um padro de actividades, papis e relaes interpessoais experienciadas pelas pessoas em desenvolvimento num dado cenrio com caractersticas fsicas e materiais particulares; 3) um mesossistema compreende as inter-relaes entre trs ou vrios cenrios em que a pessoa em desenvolvimento participa activamente (tais como, para a criana, as relaes entre o lar, a escola e o grupo de amigos da vizinhana; para um adulto, entre os espaos familiar, do trabalho e da vida social); 4) um exossistema refere-se a um ou mais cenrios que no compreendem a pessoa em desenvolvimento enquanto participante activa, mas em que ocorrem acontecimentos que afectam ou so afectados pelo que se passa no cenrio em que essa pessoa est envolvida; 5) o macrossistema refere-se a consistncias, na forma e contedo dos sistemas infraordenados (micro, meso e exo), que existem ao nvel da subcultura ou da cultura como um todo, bem como sistemas de crenas ou ideologias subjacentes a essas consistncias (Soczka, 1986, citado em Felgueiras, Bairro & Castanheira, 1988, p. 92). 5 Early Childhood Education and Care.

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

19

uma perspectiva mais abrangente, que sem lhes retirar especificidade situe esses

servios, e as correspondentes polticas, num espectro mais abrangente acerca da

infncia e da juventude, e at das outras fases da vida. Neste contexto, os chamados

servios para a infncia deveriam ser considerados em conjunto com outro tipo de

provises, em que inclui a escolaridade obrigatria, bem como os cuidados a prestar a

crianas mais velhas e at a adultos. Considerando que o campo da educao de

infncia tem sido sobretudo dominado pelo que designa como one particularly strong

narrative: an AngloAmerican narrative spoken in the English language, located in a liberal

political and economic context, and dominated by certain disciplinary perspectives, in

particular, psychology and economics (p. 437), Moss afirma, semelhana, por exemplo,

de Cannella (1997), que esta narrativa oferece uma construo particular da infncia,

constituindo um regime de verdade acerca do cuidado e educao das crianas que se

organiza como uma tecnologia para a estabilidade social e o progresso econmico

(Moss, 2001)6. Da que este autor proponha uma nova conceptualizao destes servios,

que designa como childrens spaces (Moss & Petrie, 2002, citados em Moss, 2002d, p.

437), o que implica uma concepo das instituies como ambientes ou fruns, locais de

encontro entre crianas e adultos, marcados no pelo seu carcter normativo, mas pela

diversidade, complexidade, incerteza, e tambm pelas possibilidades de criao e

regenerao social, cultural e por essa via educativa (Dahlberg, Moss, & Pence, 1999).

Embora reconhea que tal concepo dos servios para a infncia encerra o risco de

diluir as suas fronteiras, Moss (2002d), considera que, tal como existem, esses servios

contm fundamentalmente o risco de serem reduzidos to the role of colonies subservient

to the imperium of compulsory education (p. 473).

Na verdade, tambm para Moss (2001, 2002d) a infncia no apenas uma

construo social mas simultaneamente co-construda e desconstruda pelas prprias

crianas nos seus contextos sociais e culturais. A passagem de uma concepo centrada

na organizao de servios para uma concepo centrada na organizao de espaos

ou fruns destinados infncia, sugerida como um modo de avanar sobre uma

concepo demasiado restritiva dos cuidados e educao, a qual no s no faz justia

complexidade e diversidade do que realmente se passa ou deveria passar nas

instituies, como no abrange os sentidos que lhes so atribudos em diversas

comunidades e contextos culturais. Formulando um convite a que se ultrapasse uma

6 Lyotard (1984, citado em Aubrey, 2002) faz notar como para alm das metanarrativas ou o que designa tambm por grand narratives , que tendem a fornecer certezas de ndole histrica ou filosfica, e a sustentar a crena no progresso universal, existe tambm a possibilidade de se explorarem pequenas narrativas ou formas de conhecimento local, interiores em relao s comunidades em que so geradas.

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

20

perspectiva normativa e redutora da psicologia do desenvolvimento tradicional, Moss

(2001) sugere que se deixe de fundamentalmente falar sobre as crianas para se falar

com as crianas, defendendo uma revalorizao dos estudos comparativos internacionais

como estratgia para a compreenso do modo com as crianas vivem nos seus

contextos e os significados que atribuem a essas vivncias. O autor insiste ainda em que

se considere a necessidade de criar, nas instituies para a infncia, uma nova tica do

cuidado, definida como um hbito geral da mente, a qual liga com a capacidade

reflexiva dos adultos que a trabalham para, numa base de infinita ateno ao outro,

tomarem decises em situaes especficas7.

A possibilidade de a educao de infncia, incluindo de modo muito particular os

servios destinados s primeiras idades, se redefinirem em direco a modelos mais

integrados mas tambm mais abrangentes, parece, pois, depender em boa medida do

reconhecimento da criana como um ser activo e dotado, que no privado de

capacidades mas, muitas vezes, de oportunidades de criao (Bruner, 1996), e tambm

de, como mbito de interveno, se desenvolver de forma sustentada (Vasconcelos,

2000b), abrindo-se pluralidade que a diversidade, incorporando o desafio de se abrir

compreenso das imagens em transformao acerca da criana e da sua educao,

mas assumindo tambm que a educao no apenas o assunto de alguns mas de

todos os agentes envolvidos.

Esta possibilidade, avanando sobre o cisma da educao e dos cuidados,

depende tambm da possibilidade de a sua especificidade ser aprofundada no atravs

da demarcao de fronteiras, mas do interesse genuno em considerar que a educao

precoce constitui o que Soto e Swandener (2002) definem como uma janela de

oportunidade para a equidade e a justia social.

Sendo impossvel ignorar que os tempos que vivemos actualmente so marcados

pela imposio que socialmente tende a ser feita a que se leia o que se passa na cena

internacional essencialmente como um confronto de culturas e de civilizaes, a reflexo

acerca da educao das primeiras idades parece-nos dever considerar a possibilidade de

no se perpetuarem vises monolticas ou regimes de verdade (Cannella, 1997), e de

se definir realmente uma tica do cuidado que, no sentido que lhe atribudo por Moss

(2001), implica o reconhecimento do outro na sua diferena e na sua responsabilidade.

Encarar a educao das primeiras idades como uma estratgia em favor da tolerncia e

7 Cf. Teresa Vasconcelos (2001) para uma smula das ideias apresentadas por Peter Moss, em 2001, na conferncia de encerramento da Conferncia Internacional da OCDE, realizada em Estocolmo, a que temos vindo a fazer referncia.

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

21

da diversidade, e aceitar que neste sentido os educadores e os professores podem ser

encarados como activistas sociais (Novinger & OBrien, 2003), constitui, alm do mais,

uma justificao para que nos tenhamos centrado, na nossa investigao, na indagao

e valorizao dos seus saberes e conceptualizaes sobre as suas prprias aces e

mbitos profissionais.

1.2. A EDUCAO E OS CUIDADOS PARA AS CRIANAS ENTRE OS 0 E OS 3 ANOS

EM PORTUGAL

Apesar de ser socialmente reconhecido o impacto duradouro das condies em

que ocorre o desenvolvimento na primeira infncia, as preocupaes acerca da

organizao das modalidades de educao e cuidados para as crianas com menos de

trs anos, susceptveis de contribuir de forma positiva para o seu desenvolvimento e

bem-estar, adquirem ainda pouca visibilidade em Portugal.

No relatrio da OCDE acerca da educao de infncia no nosso pas tambm

reconhecido que a proviso de servios para as crianas at aos trs anos no est to

desenvolvida como a que se destina s crianas entre os trs e os seis anos (Ministrio

da Educao, 2000). No mesmo relatrio referida a ausncia de dados disponveis e

fidedignos sobre as modalidades formais e informais a que os pais que trabalham

recorrem para deixar os seus filhos pequenos, sendo a este propsito feita uma aluso

sugesto de Joo Formosinho (1996, in op. cit.) de que uma percepo social residual

tenderia a permanecer de tempos anteriores, quando se considerava que a educao das

crianas pequenas era um assunto privado que dizia apenas respeito famlia,

parecendo que quanto mais nova a criana mais essa percepo predomina8.

Todavia, hoje inquestionvel que as mudanas sociais, com especial destaque

para o emprego feminino, impedem que se continue a considerar que a quem e onde

ficaro confiadas as crianas, aps a licena de maternidade, fundamentalmente um

problema das famlias ou de cada famlia. Esta questo assume, alis, especial

8 Num estudo por ns realizado, centrado nas representaes sociais acerca da creche verificmos, contudo, que em geral o cidado comum tende a ter uma percepo positiva da creche. Nesse estudo foram identificados trs factores, ou dimenses dessas representaes, que foram designados respectivamente como Educao e Desenvolvimento, Ligao e Cuidados , e Aquisio de Hbitos , tendo sido observado que apenas o segundo, relativo organizao da creche como contexto relacional, suscitou expectativas menos favorveis. As representaes globalmente positivas em relao creche sugerem uma expectativa acerca dos contributos desse contexto na educao e desenvolvimento das crianas pequenas que ultrapassa em muito a simples guarda, sendo essa expectativa claramente reforada nos sujeitos que tendo filhos haviam optado por os colocarem em creche (Coelho & Neves, 2000).

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

22

relevncia no nosso pas, que justamente aquele que apresenta a taxa mais elevada de

emprego materno a tempo inteiro de toda a Europa Comunitria (EC Childcare Network,

1996)9.

Se, ao contrrio do que alguns autores continuam a considerar desejvel (Sroufe,

1990; Wagner & Tarkiel, 1994; entre outros), cada vez mais frequente que a criana

pequena no possa permanecer com a sua me, a discusso acerca das formas de

organizar os cuidados e educao dever centrar-se na organizao de modelos que

garantam a resposta s necessidades da criana de segurana, no apenas fsica mas

igualmente afectiva e relacional, s suas necessidades de desenvolvimento e de

aprendizagem, tomando simultaneamente em linha de conta as necessidades,

expectativas e significados que lhes so atribudos pelas famlias. A ideia introduzida por

Caldwell (1989) de que as dimenses relativas educao e aos cuidados devero estar

presentes e ser compreendidas como indissociveis (educare) levou sugesto de que

os programas para a infncia devero oferecer essas componentes sob a forma de

servios integrados, que, como assinalmos no ponto anterior, constituem uma tendncia

observada internacionalmente e se baseiam numa redefinio das responsabilidades

privadas e pblicas.

Contudo, em Portugal, o primeiro obstculo que nos parece dificultar a

organizao de programas com essas caractersticas relaciona-se com a inexistncia, ao

contrrio do que sucede na grande maioria dos estados membros da Unio Europeia, de

uma poltica educativa que considere globalmente a infncia, pelo menos no que se

refere s crianas com idade inferior de ingresso na escolaridade obrigatria. A

excluso do Sistema Educativo das modalidades de atendimento primeira infncia, ao

definir na sua Lei de Bases (Lei n 46 de 14/10/1986) como destinatrios da Educao

Pr-Escolar as crianas entre os 3 e os 5 anos, tem consequncias que nos parecem

relevantes, quer sob o ngulo organizacional e curricular quer sob o ponto de vista social

e cultural, uma vez que se acentuam as funes assistenciais dessas modalidades, por

oposio a uma concepo educativa relativamente s que se destinam s crianas

com mais de 3 anos10.

9 Como evidente pela data de realizao deste estudo pela EC Childcare Network (1996) os seus resultados no incluem dados relativos aos novos estados membros entretanto admitidos na Unio Europeia. 10 Isabel Lopes da Silva (1993) faz notar que tambm a definio da educao pr-escolar no est isenta de ambiguidades, na medida em que a opo por essa designao parece sugerir uma nfase na preparao para a escolaridade obrigatria ou, como refere a autora utilizando uma expresso de Mialaret (1976, in op. cit.), uma extenso para a base da escola (p. 238). No entanto, os objectivos que esto definidos na prpria Lei de Bases e toda a explicitao posterior desses objectivos (nomeadamente sob a forma dos Estatutos dos Jardins de infncia, e, mais recentemente, sob a forma da Lei-Quadro para a Educao Pr-escolar e das respectivas Orientaes Curriculares) no sustentam essa concepo, na medida em que explicitamente afirmado no se

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

23

No que se refere especificamente organizao dos cuidados e educao

destinados s crianas entre os 0 e os 3 anos, em Portugal so-lhe atribudas duas

grandes finalidades, a saber, apoiar as famlias na tarefa de educao dos filhos, e

proporcionar a cada criana oportunidades de desenvolvimento global, promovendo a

sua integrao na vida em sociedade (Ministrio da Educao, 2000, p. 40). A estas

finalidades correspondem trs objectivos especficos: em primeiro lugar, proporcionar o

bem-estar e o desenvolvimento integral das crianas num clima de segurana afectiva e

fsica, durante o afastamento parcial do seu meio familiar atravs de um atendimento

individualizado; em segundo lugar, colaborar estreitamente com a famlia numa partilha

de cuidados e de responsabilidades em todo o processo evolutivo das crianas; e,

finalmente, colaborar de modo eficaz no despiste precoce de qualquer inadaptao ou

deficincia, assegurando o seu encaminhamento adequado (op. cit., p. 40).

No mesmo documento referido que a creche, constituindo uma das modalidades

formais de oferta educativa existentes em Portugal para as crianas entre os 3 meses e

os 3 anos, corresponde a uma resposta social de mbito socioeducativo, sendo

enfatizado que se destina a receber as crianas durante o perodo dirio correspondente

ao trabalho dos pais. Como modalidades formais so ainda indicadas as amas (pessoa

que, por conta prpria e mediante retribuio, cuida de uma ou mais crianas (at ao

mximo de quatro) que no sejam suas, parentes ou afins, por um perodo de tempo

correspondente ao trabalho ou impedimento dos pais); a mini-creche (uma organizao

pequena e de ambiente semelhantes ao familiar, incluindo 5-6 crianas); e, finalmente, a

creche-familiar (conjunto de amas, no inferior a 12 nem superior a 20, residentes na

mesma zona geogrfica, enquadradas tcnica e financeiramente pelos Centros Regionais

de Segurana Social, Santa Casa da Misericrdia de Lisboa ou Instituies Particulares

de Solidariedade Social) (op. cit., p. 43). Para alm destas modalidades, ainda

reconhecida a existncia de oferta no formal, constituda por entidades como a famlia,

amigos e vizinhos, empregadas domsticas, amas no licenciadas e baby-sitters.

pretender que a educao pr-escolar se organize em funo de uma preparao para a escolaridade obrigatria, mas que se perspective no sentido da educao ao longo da vida, devendo, contudo, a criana ter condies para abordar com sucesso a etapa seguinte (Ministrio da Educao, 1997a, p. 17). Por outro lado, parece-nos interessante registar que num relatrio recente do Conselho Nacional de Educao (CNE, 2003), a propsito do que designam de prticas intencionalizadas para os 0-3 anos, explicitamente afirmado que tem sido amplamente debatido o erro poltico da ltima reviso da Lei de Bases do Sistema Educativo, em se no ter reconhecido e consagrado na lei que a educao comeava aos 0 anos e no aos 3. Este facto tem criado distores graves no processo de expanso da rede de atendimento para os mais pequeninos, gerando situaes aberrantes, nomeadamente em IPSS, em que educadores de infncia, na mesma instituio, recebem salrios diferentes conforme exercem com o grupo etr io dos 0 aos 3 anos ou com o grupo dos 3 aos 6 anos, e obrigando os profissionais que exercem em creche, por razes justificadas, a preferirem exercer em jardim de infncia (p. 240). Apesar do reconhecimento do que os autores deste relatrio designam como erro poltico, verificamos, com pesar, que a nova Lei de Bases da Educao, actualmente em discusso aps o veto do Presidente da Repblica, no prev a correco desse erro.

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

24

Relativamente a esta rede informal o prprio Ministrio da Educao (1996) admite que

ela resulta de uma insuficiente resposta s necessidades da populao, contribuindo para

a proliferao de respostas sobre as quais no exercido qualquer controlo e que, em

muitos casos, se reconhece corresponderem a contextos pouco adequados para o bem-

estar e desenvolvimento das crianas.

O que nos parece de realar nesta breve referncia s modalidades de oferta

educativa destinada primeira infncia, e com especial relevo no que se refere creche,

o predomnio de uma concepo que enfatiza a resposta s necessidades de apoio

social da famlia e a ausncia de objectivos claros do ponto de vista da aco a

desenvolver quer com as crianas quer com as prprias famlias. Como referido no

recente relatrio do Conselho Nacional de Educao (2003):

(...) o enunciado prevalecente ao atendimento s crianas dos 0 aos 3 anos preocupa-se vagamente como a qualidade educativa das estruturas de suporte (desenvolvimento integral), sublinhando a vertente de prestao de cuidados (bem -estar; segurana afectiva e fsica; prestao de cuidados). A nica preocupao real prende-se com questes de deteco precoce de eventuais inadaptaes ou deficincias para garantir encaminhamento adequado (CNE, 2003, p. 69).

A anlise dos objectivos atribudos creche revela que eles correspondem

literalmente aos atrs enunciados de modo genrico para o conjunto das modalidades de

cuidados e educao destinadas s crianas entre os 0 e os 3 anos, ou seja, enfatiza-se

a inteno de proporcionar condies adequadas ao desenvolvimento harmonioso e

global da criana, a par do propsito de cooperao com as famlias em todo o

processo educativo. O papel quase estritamente supletivo em relao famlia, que

atribudo de forma indistinta a estas diferentes modalidades, parece-nos favorecer uma

concepo da creche como uma medida cuja finalidade predominante se situa entre a

mera guarda e o apoio social. Alis, tambm Joo Formosinho (1996a), ao caracterizar

os modelos globais sociopedaggicos de atendimento infncia no nosso pas, situou

os servios destinados s crianas at aos 3 anos predominantemente nas categorias

que designou respectivamente como servios de cuidados e guarda e servios de

cuidados e de assistncia social.

Ainda que nos parea indiscutvel a dimenso relativa ao apoio social s famlias

na organizao destas modalidades de oferta, e ainda mais inquestionvel que qualquer

servio destinado infncia ter que promover a articulao e continuidade entre a aco

que desenvolve e a da famlia, e considerar as interaces que se estabelecem entre

esses dois contextos como ambientes sociais e culturais especficos, julgamos que a

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

25

ausncia explcita de intencionalidade educativa na forma como, nos documentos oficiais,

se exprimem os objectivos da creche, constitui um factor crtico que importa realar,

acentuando claramente a ciso entre cuidados e educao e retardando a possibilidade

de no nosso pas se desenharem respostas integradas e abrangentes, no sentido em que

as definimos no ponto anterior. A exclusiva referncia, no que se refere aos objectivos

directamente relacionados com a criana, noo de desenvolvimento global, traduz-se

numa ambiguidade, na medida em que no sugere quais as concepes de

desenvolvimento e de educao que lhe esto subjacentes. Estes aspectos so alis

objecto de anlise do relatrio final da OCDE, que faz notar a ausncia de qualquer

enquadramento curricular ou educativo (Ministrio da Educao, 2000, p. 194), aspecto

que relacionado com a exclusividade da tutela pelo Ministrio do Trabalho e

Solidariedade e consequente ausncia de envolvimento na regulao destes servios por

parte do Ministrio da Educao.

Da ausncia de uma concepo claramente educacional acerca das modalidades

de atendimento primeira infncia, nomeadamente da creche, decorrem ainda outros

aspectos igualmente identificados como crticos no relatrio da OCDE. Efectivamente

para alm dos aspectos que j mencionmos (o menor desenvolvimento dos servios

destinados a este grupo etrio, a inexistncia de dados actualizados e a ausncia de

enquadramento curricular ou educativo sob orientao do Ministrio da Educao), so

ainda assinaladas a falta de formao especfica para os que trabalham com crianas

entre os 0 e os 3 anos, a ausncia de uma base de igualdade no acesso aos servios

existentes, a falta de qualidade de grande parte desses servios, bem como a

inexistncia de um sistema coerente e coordenado que permita a sua regulao. No

mesmo relatrio sugerido que se reconsidere a diviso irrealista dos servios num

sector social e num sector educativo (Ministrio da Educao, 2000, p. 216), a qual

interpretada como um obstculo ao desenvolvimento de abordagens holsticas na

satisfao das necessidades das crianas e das suas famlias. A segregao entre

cuidados e educao enfraquece seriamente a coerncia do sistema, causa diviso de

responsabilidades e impede o desenvolvimento dos servios globais a prestar s crianas

e s famlias (op. cit., p. 217).

Esta perspectiva , alis, concordante com a que resultou de uma investigao

realizada sob os auspcios da Comisso Europeia, intitulada Care Work in Europe:

Current Understandings and Future Directions, onde no relatrio relativo caracterizao

dos servios no mbito da educao de infncia e dos seus profissionais (Moss, 2002a)

se afirma que a crescente utilizao de expresses hbridas como early childhood

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

26

education and care, early childhood education ou educare, tende a substituir expresses

que anteriormente acentuavam a separao entre o mbito dos cuidados e o da

educao, e a acentuar a sua relao de interdependncia, sendo tambm observado

que em vrios pases da Unio Europeia (Espanha, Sucia, Inglaterra e Esccia) se

verifica a tendncia para transferir a responsabilidade pelos servios de atendimento

infncia do mbito da segurana social para o mbito da educao. No mesmo relatrio

referido como em certos pases o conceito de pedagogia (pedagogy) predomina sobre o

de cuidados (care), pelo menos no que se refere especificamente infncia. A este

respeito o caso mais paradigmtico parece ser o da Dinamarca, onde o conceito de care

no utilizado na designao dos servios relativos infncia por no implicar uma

dimenso desenvolvimental, sendo embora considerado como uma das componentes,

entre outras, da pedagogy11.

Embora a definio conceptual destes diversos termos, e a anlise compreensiva

dos vrios sistemas a que eles esto associados, ultrapasse o mbito da nossa anlise

(nomeadamente por se tratar de uma definio complexa e rica em subtilezas em cada

um dos pases, como tambm assinalado nesse relatrio)12, o que neste ponto do

nosso trabalho pretendemos enfatizar fundamentalmente a ideia de que no nosso pas

no existe uma definio da creche claramente como um servio educativo. A ausncia

dessa definio (que naturalmente deveria ser articulada com a explicitao da sua

funo social e com o desgnio de estabelecer com as famlias verdadeiras transaces e

no apenas relaes de complementaridade), bem como a correspondente excluso do

Sistema Educativo da educao dos 0 aos 3 anos, parecem-nos constituir factores

crticos para a organizao de modalidades e contextos que intencionalmente se

organizem como ambientes susceptveis de, utilizando a expresso de Zabalza (1998),

enriquecerem os mbitos de experincia da criana (p. 20), e poderem efectivamente

constituir, para as crianas e para os adultos envolvidos, espaos de aprendizagem, mas

tambm de criao e construo de novos significados, relativos nomeadamente ao que

verdadeiramente significa cuidar e educar crianas to pequenas.

11 Dada a sua especificidade parece-nos interessante transcrever uma parte do relatrio que se refere Dinamarca: A pedagogical approach is central to much care work in Denmark; indeed it precludes viewing care work as a distinct activity or field. The Danish national report notes that there is no word in Danish for carer and therefore no occupation of carer. What they have instead is the occupation of pedagogue, practicing pedagogy () (Moss, 2002a, p. 20). 12 Como explicitaremos no captulo 3 deste trabalho, a tipologia da profisso de educador varia, mesmo no interior da Unio Europeia, de acordo com noes culturais acerca das instituies de educao de infncia e dos educadores que a trabalham, as quais afectam nomeadamente a imagem que estes constroem de si como profissionais (Oberhuemer, 2000).

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

27

A falta de polticas claras neste sector, que explicitem um claro investimento

pblico, social e cultural, restringe a nosso ver as possibilidades efectivas de as medidas

em relao educao no parental serem enquadradas no mbito de outras medidas

sociais e educativas mais vastas (Ghedini, 2001), e em particular a possibilidade de as

creches serem encaradas, pelos prprios profissionais, como locais de desenvolvimento,

de construo de experincias pessoais e educacionais relevantes para si e para as

crianas, e at mesmo de construo de linguagens que constituam realmente

expresses das prticas e vivncias a experienciadas.

1.3. O DEBATE SOBRE A CRECHE: DO ESTUDO DOS EFEITOS PROBLEMTICA DA

QUALIDADE

1.3.1. A INVESTIGAO DOS EFEITOS DA CRECHE

A noo de que a educao pr-escolar de qualidade tem um impacto duradouro

no decurso da vida ulterior da criana, e de que por esse motivo, retomando ideias

expressas por Katz e Weikart (citados em Formosinho, 1996a, p. 9), os maus servios

educacionais representam uma oportunidade perdida, hoje uma ideia bastante

disseminada a partir de intensa investigao levada a cabo sobre os efeitos dos

programas de educao pr-escolar. Joo Formosinho (1996a) sintetiza os dados

provenientes dessa investigao, que tornaram consensual a ideia de que o investimento

em programas pr-escolares de qualidade representa um benefcio educativo, social e

econmico, tendo em conta as suas consequncias favorveis, quer no domnio da

escolaridade posterior, quer no domnio da insero profissional, social e interpessoal.

Contudo, a investigao acerca dos efeitos especficos dos cuidados e educao

extrafamiliar de crianas com menos de 3 anos foi, desde o seu incio, marcada por maior

controvrsia. Como referem Caldwell e Freyer (1982), enquanto que a investigao dos

efeitos da educao para crianas a partir dos 3 anos foi orientada pelo desgnio de

demonstrar o valor desses programas na vida das crianas, a investigao acerca da

creche, pelo contrrio, foi marcada pela assuno de que ela constitua um potencial

perigo para o seu bem-estar e desenvolvimento13.

13 A ciso no reconhecimento do potencial educativo das instituies destinadas a crianas mais velhas e das que se destinam s crianas muito pequenas resulta tambm, para Haberman (1988), do facto de a procura pelas famlias de programas destinados aos seus filhos pequenos, tendo sido sobretudo marcada por factores sociais e econmicos associados ao emprego feminino, ter valorizado fundamentalmente a sua vertente assistencial e de

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

28

Na verdade, a grande expanso de contextos diversos de guarda e educao de

crianas pequenas fora da famlia, intimamente associada a factores de mobilidade social

como a crescente empregabilidade feminina, foi desde sempre acompanhada do debate

acerca dos efeitos benficos ou adversos que esses contextos poderiam representar para

a criana. Poderemos pressupor que na investigao desta questo sempre intervieram

de forma poderosa, e com maior impacto do que no caso de crianas a partir dos 3 anos,

questes de ordem cultural e ideolgica, relativas s prprias concepes sobre a

infncia, os modos de organizar a sua proteco e cuidado, e em particular os papis

destinados mulher e as consequncias do emprego materno. Como refere Leavitt

(1994), apoiando-se em McCartney e Phillips (1988, in op. cit.), child care poses not only

a challenge to our views about children, but what is suitable for women (p. 8), podendo

afirmar-se que a oposio frequentemente formulada entre os direitos das mulheres e os

direitos das crianas tem sido marcada pela noo de que os primeiros so prejudiciais

em relao aos segundos (Ghedini, 2001).

Grande parte dessa controvrsia foi, contudo, tambm alimentada pelos

resultados contraditrios obtidos atravs das investigaes sobre os efeitos da educao

no parental nos primeiros anos de vida. A complexidade deste tipo de investigaes tem

sido reconhecida, na medida em que determinar se a educao precoce no parental tem

ou no efeitos adversos para a criana implica a formulao de atribuies causais sobre

diferenas identificadas entre grupos de crianas que experienciaram diversas

modalidades de educao no parental, nem sempre facilmente comparveis entre si,

nomeadamente sob o ngulo da sua qualidade (Wessels, Lamb & Hwang, 1996;

Portugal, 1998).

Efectivamente, como tambm Gabriela Portugal (1998) faz notar, a investigao

dos efeitos da creche foi desde o seu incio marcada por diversos problemas de ordem

metodolgica. Na maior parte desses estudos o procedimento adoptado consistiu em

comparar dois grupos de crianas (um dos quais a frequentar a creche), obtendo-se

resultados atravs da comparao das crianas em situao de teste. A obteno de

melhores resultados por parte das crianas a frequentar a creche era ento relacionada

com um impacto positivo desse contexto no seu desenvolvimento, esboando-se

concluses acerca dos seus potenciais efeitos negativos no caso da obteno de

resultados inversos. Em muitos dos estudos iniciais, desenvolvidos sobretudo a partir da

dcada de 60 (sc. XX), a ausncia de variveis relativas aos outros contextos de vida

guarda. Haberman analisa as implicaes dessa ciso, nomeadamente do ponto de vista do reconhecimento social e do prestgio dos profissionais que trabalham nesses contextos.

INFNCIAS E CONTEXTOS DE INFNCIA

29

das crianas, em particular aos seus contextos familiares, s caractersticas das prprias

crianas e ao aprofundamento das experincias que se desenrolam no contexto da

prpria creche, foi sendo assinalada como um poderoso factor limitador da generalizao

das suas concluses. Essa generalizao foi tambm dificultada pelo facto de, em muitos

casos, as investigaes terem sido conduzidas num nmero limitado de creches, muitas

das quais consideradas como creches-modelo, de qualidade claramente superior

mdia, bem como pelo facto de recorrerem a instrumentos de medida que se centravam

em medir ganhos em determinados esferas do desenvolvimento, no tomando em linha

de conta indicadores relativos, nomeadamente, ao bem-estar ou s caractersticas

comportamentais das crianas (Portugal, 1998). Para alm destas limitaes outras

foram ainda assinaladas, nomeadamente por Brofenbrenner, Belsky e Steinberg (1977, in

op. cit.), que, numa reviso dos dados obtidos em mais de 40 estudos acerca dos efeitos

da creche, fizeram notar que nesses estudos se observava a tendncia para considerar

apenas os efeitos imediatos, no sendo estudados eventuais efeitos a longo prazo, sendo

tambm ignorado no s o impacto de outros contextos na vida das crianas, a que j

aludimos, mas ainda o impacto da creche no comportamento da criana nesses

contextos, o impacto da creche nos prprios pais e na dinmica familiar, ou ainda o seu

impacto considerado sob o ngulo mais vasto da sociedade.

Na verdade, os primeiros estudos realizados acerca dos efeitos da creche

enquadram-se no que pode ser descrito como uma investigao essencialmente

psicolgica, predominando neste tipo de estudos sobretudo a focalizao em aspectos

relacionados com o desenvolvimento da criana, em particular aspectos do

desenvolvimento socioemocional, sendo frequentes as investigaes que se centraram

no impacto da creche na ligao materno-infantil. A partir de finais da dcada de 80 (sc.

XX) a investigao acerca dos efeitos da creche passou a ser marcada por dois traos

distintivos em relao s investigaes iniciais: em primeiro lugar, a adopo de

perspectivas longitudinais que se centram fundamentalmente na tentativa de procurar

validar e interpretar as diferenas identificadas como efeitos da creche, e, em segundo

lugar, o recurso a metodologias variadas tendo em vista apreciar o efeito conjugado de

diversas variveis relativas no s criana, mas tambm aos seus contextos de

atendimento e ao meio familiar.

EDUCAO E CUIDADOS EM CRECHE

30

1.3.1.1. A DETERMINAO DA INFLUNCIA DIRECTA DA EDUCAO NO PARENTAL

Como atrs afirmmos, grande parte da investigao inicial relativa aos efeitos da

creche centrou-se de forma predominante na avaliao do seu impacto sobre o

desenvolvimento socioemocional da criana. O aparecimento deste tipo de investigao

foi grandemente influenciado pelo facto de, no domnio da psicologia, em especial nas

correntes psicodinmicas, haver sido reconhecida a importncia das primeiras relaes

que a criana estabelece com as figuras parentais, em especial com a materna. Entre os

vrios modelos tericos que vieram