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161 Recensões epistemológicos do seu tempo. Refiro-me à psiquia- tria e a todas as formas contemporâneas de “medi- calização do passado”, a usar a sugestiva expressão de Young (p. 39). Finalmente, importa pensar o modo como uma determinada categoria nosológica se projecta sobre um fundo fenomenológico, isto porque os perigos de uma eventual trivialização do sofrimento tornam-se evidentes, quando nos situa- mos numa leitura que quer fazer destacar os domínios da representação a expensas da experiên- cia pessoal (em grande parte intransmissível e irredutível aos suportes verbais e iconográficos). Um outro aspecto que se me afigura decisivo nas discussões de Hacking e Young sobre a memória traumática e as nosologias implicadas tem a ver com o facto de estas circunscreverem um espaço ade- quado à discussão sobre a relevância dos nossos conceitos de “realidade” e “verdade”. Gostaria de destacar comparativamente as respostas de ambos os autores a este aspecto. Em primeiro lugar, Young e Hacking lançam- -nos ao encontro de todo um conjunto de proposi- ções acerca das etnoepistemologias ocidentais sobre a doença e o estatuto que aí ocupam os conceitos de “realidade” e “verdade”. Para ambos os autores o “real” afigura-se como aquilo que é independente quer dos “tecnofenómenos e estilos de pensamento do investigador” (Young, p. 10) ou, e mais especifi- camente, daquilo que “não é usualmente iatrogé- nico” (Hacking p. 12), ou seja, e por exemplo, do que se furta a qualquer hipótese de indução por hipnose (Hacking, p. 270). Porém Hacking, que sobrepõe o conceito de realidade ao conceito de verdade — precisamos de saber o que é uma verdadeira ou real “entidade psiquiátrica” (p. 12, itálicos meus) —, não deixa, em todo o caso, de nos sugerir a hipótese de um céptico: “O mais fidedigno vaticinador da ocorrência da personalidade múltipla é um clínico que diagnostica e trata múltiplos” (p. 270, nota 14), ou “pode ser que muitos dos pedaços floreados do comportamento múltiplo sejam iatrogénicos” (p. 12). Em segundo lugar, Young aposta numa distin- ção entre realidade e verdade que Hacking não subscreve. A verdade para Young sugere uma pre- tensão à atemporalidade na qual se abastecem os “tecnofenómenos da ciência psiquiátrica”, pensados como “neutrais e objectivos” (Young, p. 10), não podendo “as questões sobre a verdade ser divor- ciadas das condições sociais, cognitivas e tecnoló- gicas através das quais os investigadores e clínicos vêm a conhecer os seus factos e o sentido da facticidade” (p. 10). Para Young (p. 5), a desordem pós-traumática de stress não é atemporal nem possui uma unidade intrínseca. Ela é um produto his- tórico. IAN HACKING REWRITING THE SOUL: MULTIPLE PERSONALITY AND THE SCIENCES OF MEMORY Princeton, Princeton University Press, 1995 ALLAN YOUNG THE HARMONY OF ILLUSIONS: INVENTING POST-TRAUMATIC STRESS DISORDER Princeton, Princeton University Press, 1995 Uma das ideias clássicas do pensamento ociden- tal prende-se com o modo como nos singularizamos como sujeitos que possuem uma continuidade no tempo, ou que são capazes de potenciar criativa- mente essa continuidade num processo integrador em que, narrativamente, atribuímos sentido e coe- rência a um percurso biográfico. A ideia de memória é aqui decisiva pela sua dimensão insofismavel- mente redentora. Em Santo Agostinho, por exemplo, a memória representa o único modo de escapar à fragmentação da experiência, resultante da existên- cia no tempo. A memória é um “acto” de constitui- ção reflexiva da totalidade e, como advoga Gene- vieve Lloyd (1993: 20), um “acto narrativo” por excelência a partir do qual se acede à compreensão da consciência, contrariando-se deste modo a destrutiva (e dolorosa) passagem do tempo. Mas é a partir de meados de oitocentos em diante que uma outra conceptualização de memória ganha uma dimensão até aí inaudita, que passa a coexistir, nas abordagens terapêuticas que entretanto se desenham, com a noção clássica atrás identificada. Com Charcot, Janet, Freud e Rivers, entre outros, é a impossibilidade em transformarmos o que de aparentemente indelével subjaz à nossa experiência do mundo que está na base da invenção de uma memória traumática e das categorias nosológicas que lhe associamos contemporaneamente. Refiro-me especificamente à “desordem de personalidade múltipla” (multiple personality disorder), sobre a qual se debruça Ian Hacking em Rewriting the Soul, e à “desordem de stress pós-traumático” (post-traumatic stress disorder) sobre a qual temos o trabalho de reflexão antropológica desenvolvido por Allan Young em The Harmony of Illusions 1 . O que Hacking e Young nos oferecem transpor- ta-nos para o facto de só podermos pensar a memória traumática e as modalidades nosológicas que ela recobre através de uma perspectiva que equacione as relações mutuamente constitutivas entre memória e consciência individual nas etnopsi- cologias ocidentais, e o modo como uma determi- nada actividade científica e terapêutica moderna se instituiu e institui, construiu e constrói os seus objectos, incorporou e incorpora os debates

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Recensões

epistemológicos do seu tempo. Refiro-me à psiquia-tria e a todas as formas contemporâneas de “medi-calização do passado”, a usar a sugestiva expressãode Young (p. 39). Finalmente, importa pensar omodo como uma determinada categoria nosológicase projecta sobre um fundo fenomenológico, istoporque os perigos de uma eventual trivialização dosofrimento tornam-se evidentes, quando nos situa-mos numa leitura que quer fazer destacar osdomínios da representação a expensas da experiên-cia pessoal (em grande parte intransmissível eirredutível aos suportes verbais e iconográficos).

Um outro aspecto que se me afigura decisivonas discussões de Hacking e Young sobre a memóriatraumática e as nosologias implicadas tem a ver como facto de estas circunscreverem um espaço ade-quado à discussão sobre a relevância dos nossosconceitos de “realidade” e “verdade”. Gostaria dedestacar comparativamente as respostas de ambos osautores a este aspecto.

Em primeiro lugar, Young e Hacking lançam--nos ao encontro de todo um conjunto de proposi-ções acerca das etnoepistemologias ocidentais sobrea doença e o estatuto que aí ocupam os conceitos de“realidade” e “verdade”. Para ambos os autores o“real” afigura-se como aquilo que é independentequer dos “tecnofenómenos e estilos de pensamentodo investigador” (Young, p. 10) ou, e mais especifi-camente, daquilo que “não é usualmente iatrogé-nico” (Hacking p. 12), ou seja, e por exemplo, do quese furta a qualquer hipótese de indução por hipnose(Hacking, p. 270). Porém Hacking, que sobrepõe oconceito de realidade ao conceito de verdade— precisamos de saber o que é uma verdadeira ou real“entidade psiquiátrica” (p. 12, itálicos meus) —, nãodeixa, em todo o caso, de nos sugerir a hipótese deum céptico: “O mais fidedigno vaticinador daocorrência da personalidade múltipla é um clínicoque diagnostica e trata múltiplos” (p. 270, nota 14),ou “pode ser que muitos dos pedaços floreados docomportamento múltiplo sejam iatrogénicos” (p. 12).

Em segundo lugar, Young aposta numa distin-ção entre realidade e verdade que Hacking nãosubscreve. A verdade para Young sugere uma pre-tensão à atemporalidade na qual se abastecem os“tecnofenómenos da ciência psiquiátrica”, pensadoscomo “neutrais e objectivos” (Young, p. 10), nãopodendo “as questões sobre a verdade ser divor-ciadas das condições sociais, cognitivas e tecnoló-gicas através das quais os investigadores e clínicosvêm a conhecer os seus factos e o sentido dafacticidade” (p. 10). Para Young (p. 5), a desordempós-traumática de stress não é atemporal nem possuiuma unidade intrínseca. Ela é um produto his-tórico.

IAN HACKING

REWRITING THE SOUL: MULTIPLE PERSONALITY

AND THE SCIENCES OF MEMORY

Princeton, Princeton University Press, 1995

ALLAN YOUNG

THE HARMONY OF ILLUSIONS: INVENTING

POST-TRAUMATIC STRESS DISORDER

Princeton, Princeton University Press, 1995

Uma das ideias clássicas do pensamento ociden-tal prende-se com o modo como nos singularizamoscomo sujeitos que possuem uma continuidade notempo, ou que são capazes de potenciar criativa-mente essa continuidade num processo integradorem que, narrativamente, atribuímos sentido e coe-rência a um percurso biográfico. A ideia de memóriaé aqui decisiva pela sua dimensão insofismavel-mente redentora. Em Santo Agostinho, por exemplo,a memória representa o único modo de escapar àfragmentação da experiência, resultante da existên-cia no tempo. A memória é um “acto” de constitui-ção reflexiva da totalidade e, como advoga Gene-vieve Lloyd (1993: 20), um “acto narrativo” porexcelência a partir do qual se acede à compreensãoda consciência, contrariando-se deste modo adestrutiva (e dolorosa) passagem do tempo.

Mas é a partir de meados de oitocentos emdiante que uma outra conceptualização de memóriaganha uma dimensão até aí inaudita, que passa acoexistir, nas abordagens terapêuticas que entretantose desenham, com a noção clássica atrás identificada.Com Charcot, Janet, Freud e Rivers, entre outros, éa impossibilidade em transformarmos o que deaparentemente indelével subjaz à nossa experiênciado mundo que está na base da invenção de umamemória traumática e das categorias nosológicasque lhe associamos contemporaneamente. Refiro-meespecificamente à “desordem de personalidademúltipla” (multiple personality disorder), sobre a qualse debruça Ian Hacking em Rewriting the Soul, e à“desordem de stress pós-traumático” (post-traumaticstress disorder) sobre a qual temos o trabalho dereflexão antropológica desenvolvido por AllanYoung em The Harmony of Illusions 1.

O que Hacking e Young nos oferecem transpor-ta-nos para o facto de só podermos pensar amemória traumática e as modalidades nosológicasque ela recobre através de uma perspectiva queequacione as relações mutuamente constitutivasentre memória e consciência individual nas etnopsi-cologias ocidentais, e o modo como uma determi-nada actividade científica e terapêutica moderna seinstituiu e institui, construiu e constrói os seusobjectos, incorporou e incorpora os debates

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Em terceiro lugar, assinale-se que para ambos osautores é equívoco ou irrelevante desenhar umaclara descontinuidade ou oposição entre umadesordem psiquiátrica e as circunstâncias tecnoló-gicas e sociais da sua invenção, sendo que “[o] factode um certo tipo de doença mental aparecer apenasem contextos históricos ou geograficamente precisosnão implicar que seja manufacturado, artificial, oude qualquer outro modo não real” (Hacking, p. 12).

Em quarto e último lugar, Young faz corres-ponder o “real” à experiência de dor e sofrimentodas “pessoas que são diagnosticadas ou diagnos-ticáveis com PTSD” (Young, p. 10), sugerindo impli-citamente a necessidade de se desenvolver umaperspectiva que tenha em conta, justamente, essereal fenomenológico representado pela experiênciada doença. Escreve Young:

Dizer que a memória traumática e a PTSD são consti-tuídas através dos tecnofenómenos e estilos de pensa-mento do investigador não nega a dor que é sofridapelas pessoas que são diagnosticadas ou diagnosticá-veis com PTSD. Nada do que eu escrevi neste livrodeve ser interpretado como trivializador dos actos deviolência e das terríveis perdas pessoais que seencontram por detrás de muitas memórias traumá-ticas (p. 10).

É sem dúvida este um dos aspectos que ficamem aberto nas discussões de Hacking e Young emtorno das desordens de personalidade múltipla e destress pós-traumático, respectivamente.

Em relação ao trabalho de Hacking, a ausênciade uma perspectiva que contemple o “real” cons-tituído pela experiência das pessoas diagnosticadascom uma dada categoria psiquiátrica, no caso adesordem de personalidade múltipla, não chega aconstituir sequer uma objecção. Ian Hacking é fun-damentalmente um filósofo e historiador das ciên-cias. O seu trabalho não se propõe nunca realizaruma leitura etnográfica da realidade vivencial daspessoas diagnosticadas. A sua atenção centra-se naemergência das “ciências da memória” e no modocomo a desordem de personalidade múltipla foiconstruída.

Já Young recorre, como antropólogo, ao métodoetnográfico. E esta é, sem dúvida, a parte menoseficaz do seu trabalho. Não porque a descriçãoetnográfica não tenha grande acuidade, sobretudona forma como desvela o modo como os processosde diagnóstico e as aproximações terapêuticas sãoconstituídas na prática, mas porque se situa, talvezexcessivamente, num plano que privilegia asnarrativas dos clínicos em detrimento das narrativasdos ex-combatentes da Guerra do Vietname, a quemfoi diagnosticada a desordem de stress pós-trau-mático. O que me surge como evidente, pese embora

(se me for permitido enfatizar este ponto) a análiseetnográfica de detalhe que Young constrói em redorde sessões com veteranos do Vietname num CentroMédico da Administração dos Veteranos (VeteransAdministration Medical Center) no Midwest norte--americano, é o modo como Young deixa em sus-penso aquilo que nos sugere logo no início do seulivro: a importância de que se reveste, precisamente,“a dor que é sofrida pelas pessoas que são diagnos-ticadas ou diagnosticáveis com PTSD”. Esta ausênciapoderia ser colmatada com uma perspectiva comoaquela que vem sendo defendida por antropólogoscomo Arthur Kleinman (ver, por exemplo, 1988) ouByron J. Good (1994a e 1994b).

Pensar o real da experiência de dor e sofrimentodos sujeitos diagnosticados (ou diagnosticáveis) põeem causa, como assinala Byron J. Good (1994b: 117),ao referir-se especificamente à “dor crónica” (chronicpain), um dos dados centrais da biomedicina: o deque o conhecimento objectivo do corpo humano e dadoença é possível fora de um entendimento daexperiência subjectiva dos sujeitos implicados. Goodescreve assim a partir de uma “teoria da experiênciada doença”, em que “[as] relações entre experiênciaincorporada, significado intersubjectivo, narrativasque reflectem e refazem (rework) a experiência dadoença, e as práticas sociais que medeiam o compor-tamento na doença (illness behavior)” (1994b: 118), setornam centrais a uma perspectiva que procurevalorizar esta dimensão fenomenológica. É, assim,aos “mundos da experiência” (1994b: 122), viaHusserl, Merleau-Ponty ou Nelson Goodman, que sepretende ganhar acesso. Young não explora estaconstelação de temas, o que não retira, em todo ocaso, mérito à sua proposta.

Notas1 A comunidade psiquiátrica traduz vulgarmente a palavradisorder por “distúrbio” e/ou “perturbação”. Como sobreeste aspecto não há consensualidade, preferi usar umaterceira solução: a tradução literal da palavra pelo equiva-lente em português “desordem”. (Agradeço ao psiquiatraManuel Quartilho os esclarecimentos que me permitiramfundamentar esta opção.)

Outras referências bibliográficas:GOOD, Byron J., 1994a (1992), “A Body in Pain — the Ma-

king of a World of Chronic Pain”, in Good, Mary-JoDelvecchio, Paul E. Brodwin, Byron J. Good e ArthurKleinman (eds.), Pain as Human Experience: An Anthro-pological Perspective, Berkeley e Los Angeles, Univer-sity of California Press.

GOOD, Byron J., 1994b, Medicine, Rationality, and Experience:An Anthropological Perspective, Cambridge, CambridgeUniversity Press.

KLEINMAN, Arthur, 1988, The Illness Narratives: Suffering,Healing & the Human Condition, Nova Iorque, BasicBooks.

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Recensões

LLOYD, Genevieve, 1993, Being in Time: Selves and Narra-tors in Philosophy and Literature, Londres & NovaIorque, Routledge.

Luís Quintais

MIGUEL VALE DE ALMEIDA (ORG.)CORPO PRESENTE: TREZE REFLEXÕES

ANTROPOLÓGICAS SOBRE O CORPO

Lisboa, Celta, 1996

Será que a antropologia nos propõe, atravésdas suas incursões recentes em torno do corpo,“um novo conhecimento da realidade”, a usarum verso de Stevens (1984: 534), ou, de outro modo,será que a problematização do corpo nos remetepara a emergência de um novo paradigmaantropológico, como nos quer fazer crer Csordas(1990)?

Tudo isto a propósito da publicação do volumecolectivo de ensaios Corpo Presente: Treze ReflexõesAntropológicas sobre o Corpo, organizado por MiguelVale de Almeida. À interrogação ”de que falamosquando falamos do corpo”, respondem doze antro-pólogos (Vale de Almeida, Nélia Dias, Rosa MariaPerez, Maria Cardeira da Silva, Manuela Cunha,Jean-Yves Durand, Paulo Raposo, Maria JoséFazenda, Susana de Matos Viegas, Clara Saraiva,Cristiana Bastos, João de Pina Cabral), e umpsicólogo e acupunctor (Inácio Fiadeiro). A inclusãodeste último, como refere Vale de Almeida, “nãopretende ser uma forma de introduzir interdisci-plinaridade no volume”, visto que “as questõesabordadas no texto constituem um exemplo con-creto de algumas das preocupações correntes emantropologia” (p. 18). Das treze propostas que aquise reúnem uma é co-autorada. Em ”Cravado naPele, o Hospital”, Cristiana Bastos toma o seu“informante” principal, Alfredo González, comoco-autor do ensaio, escrevendo em nota: “A colabo-ração de Alfredo González, activista do ActUp-NewYork de longa data e também estudante deantropologia, foi indispensável não só para aredacção deste texto, mas também como compa-nheiro de percurso de vários anos de observação--reflexão-participação” (p. 190).

No contexto da antropologia portuguesa, é deregistar uma diferença de ênfase em relação a traba-lhos publicados ao longo da década de 80. A lógicaque parece presidir à discussão é centrífuga, aocontrário da que caracterizou a maioria dos estudosantropológicos de relevo publicados em Portugal aolongo daquela década, que, dadas as suas preocupa-ções com temas e contextos que se reportavam auma matriz nacional (quando não estritamente

rural) parecem preconizar, hoje, analisados à distân-cia, uma lógica centrípeta. Tal aspecto é identificadopor João de Pina Cabral na sua contribuição final aCorpo Presente:

Correndo o risco de exagerar um pouco, pode dizer--se que as principais obras da antropologia portu-guesa dos anos 80 eram obras de estrangeirados que,voltados a Portugal, faziam a sua própria tradução dasociedade rural portuguesa. As obras dos jovensantropólogos dos anos 90, pelo contrário, são criadaspor pessoas que, profundamente radicadas na vidasocial nacional, dialogam com mundos intelectuaisexteriores — sejam eles as mulheres intocáveis daÍndia (Rosa Perez), as adolescentes de Marrocos(Maria Cardeira da Silva), as teóricas da dançaamericanas (Maria José Fazenda) e os doentes de sidanova-iorquinos (Cristiana Bastos); ou, alternativa-mente, sejam eles os antropólogos americanos, ingle-ses e franceses cujas obras os autores citam, comen-tam e criticam (Paulo Raposo, Susana Matos Viegas,Nélia Dias) (p. 200).

Outro aspecto a assinalar prende-se com ocarácter heterogéneo das reflexões propostas, quepode ser apreciado, justamente, pela constelação deautores citados. Assim, se Miguel Vale de Almeidanos faz o ponto da situação da denominada “antro-pologia do corpo”, circunscrevendo esse imenso arcoque vai de Mauss a Douglas até às leituras maisrecentes que se apoiam na fenomenologia e na teoriada prática, via Merleau-Ponty e Bourdieu, a grandemaioria dos autores desta obra colectiva não faznecessariamente sobrepor as suas referências aouniverso bibliográfico criticamente avaliado naintrodução. A unidade não é, pois, programática outeórica. A unidade de Corpo Presente é fundamen-talmente temática, inserindo-se num contexto deproblematização mais amplo que se prende comnoções caras à antropologia contemporânea, comosejam as de “pessoa”, “self”, ou “consciência”. A aná-lise crítica destas noções não é ignorada. Destacariaaqui o ensaio de João de Pina Cabral, “Corpo Fami-liar”, que, através de uma avisada crítica ao “pessoa-lismo”, se impõe como um contra-peso a alguns dosexcessos em que se comprazem, por vezes, aspropostas mais radicais nesta área.

Por último, e na esteira das minhas interro-gações iniciais, gostaria de chamar a atenção para oseguinte: a reflexão sobre o corpo assume-se, numadas suas modalidades mais ousadas e indubita-velmente mais estimulantes, como um investimentonos domínios fenomenológicos da experiência, ecomo uma recusa de todas as formas de logocen-trismo e intelectualismo de que padeceram nãoapenas a filosofia ocidental, mas também disciplinascomo a antropologia, que pese embora a sua vocação

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pela diferença, se nortearam por esquemas inter-pretativos e vectores ideológicos que implícita eexplicitamente se abasteceram desse logocentrismoe intelectualismo.

A crítica é legítima e transporta-nos para algunsdos textos mais decisivos dos últimos anos. Refiro--me em particular a Jackson e ao notável Paths To-ward a Clearing: Radical Empiricism and EthnographicInquiry (1989), e a Csordas em “Embodiment as aParadigm for Anthropology” (1990). Estes trabalhosparecem querer acrescentar um domínio da reali-dade à realidade estudada e uma orientação episte-mológica nova. Daí, no caso de Csordas, as suaspretensões paradigmáticas. Mas metodologicamenteestamos perante um impasse que deriva da naturezado trabalho antropológico ele mesmo. É que sepretende aceder a domínios pré-objectivos ou ante--predicativos da experiência, a glosar Merleau-Ponty(1945), transportando-os depois para um meio, ostextos, que são, por inerência, um processo depredicação e segmentação de uma realidade fenome-nológica que sabemos ser avessa a esse transporte.Ou seja, a dizermos que a experiência cultural dossujeitos não é redutível à linguagem e que devemosprocurar formas de articular aquilo que não éarticulável, teremos de encontrar um meio que nãoos textos para o fazermos, sob o risco de noslimitarmos a constatar a ineficácia da linguagem parase aceder a tais domínios pré-objectivos ou ante-predicativos da realidade.

Não penso que tal meio tenha sido encontrado(pese embora algumas das tentativas no domínio dachamada “antropologia visual”). Entre as coisas e asideias sobre as coisas, parecemos inevitavelmentelimitados pelas ideias sobre as coisas. Isto a situar-mo-nos numa leitura somente referencial e repre-sentacional da linguagem. A reafirmar que qualquerforma de conhecimento tem limites e que o nossohorizonte de visibilidade, no domínio da antropo-logia, foi e continua a ser aquele que nos é fornecidopela linguagem.

Outras referências bibliográficas:CSORDAS, Thomas J., 1990, “Embodiment as a Paradigm

for Anthropology”, Ethos (1), 5-47.JACKSON, Michael, 1989, Paths Toward a Clearing: Radical

Empiricism and Ethnographic Inquiry, Bloomington eIndianapolis, Indiana University Press.

MERLEAU-PONTY, Maurice, 1994 [1945], Phénoménologiede la Perception, Paris, Gallimard.

STEVENS, Wallace, 1984, Collected Poems, Londres e Boston,Faber and Faber.

Luís Quintais

DAVID PARKIN, LIONEL CAPLAN E HUMPHREY

FISHER (EDS.)THE POLITICS OF CULTURAL PERFORMANCE

Oxford, Berghahn Books, 1996

The Politics of Cultural Performance é uma colec-tânea de ensaios organizada e editada por trêsespecialistas da School of Oriental and African Stu-dies (SOAS) — D. Parkin, L. Caplan e H. Fisher —que se desenvolve em torno da reflexão sobre omodo como diversas performances culturais — isto é,modos de comportamento comunicativo e/ou tiposde acontecimentos comunicativos cuja naturezareflexiva decorre da sua instrumentalidade enquantoexpressões culturais — criam e reflectem as trans-formações que as constantes mutações das relaçõesde poder conferem à frágil demarcação entre o queos grupos sociais consideram tradicional e moderno.Mas esta obra colectiva é acima de tudo uma home-nagem e uma importante recensão das principaisinquietações teóricas de um dos mais importantesmembros da SOAS — Abner Cohen.

Num eixo que vai das cerimónias de Estado àsfestas de aldeia, das peregrinações aos ritos depossessão, da dança à comensalidade ritual, etc..., eonde África surge como o principal palco — cruzadopontual e comparativamente com contextos euro-peus e asiáticos — o conjunto dos ensaios aquireunidos dão sobretudo continuidade à sugestão deAbner Cohen de que existe uma relação dialécticaentre poder e simbolismo, entre acção política eformas culturais simbólicas. Trata-se de discutir omodo como os grupos sociais através de múltiplasperformances culturais, e ao longo de uma linha dedemarcação entre o que consideram como tradicionalou moderno, criam e reflectem as tensões ou confi-gurações das relações de poder estabelecidas nointerior de cada sociedade ou grupo.

As quinze contribuições dos mais diversosespecialistas reunidas nesta obra procuram revelarainda como cerimoniais, rituais, dramatizações eoutras performances culturais podem a um temposervir para exprimir e eximir a ameaça dascontingências externas ou, pelo contrário, obscureceressa tensão e revelar o caracter plástico e ambiva-lente das formas culturais e simbólicas. Nestesentido, a obra fornece uma interessante reflexãocomparativa — frequentemente unindo a antropo-logia à história — salientando uma articulação sin-gular entre conceitos como política, cultura esimbolismo, os quais, aliás, têm sido protagonistasde longa data dos debates antropológicos.

Finalmente, tal como Abner Cohen havia expli-citado na sua obra Masquerade Politics: Explorations inthe Structure of Urban Cultural Movements (1993,

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Recensões

natureza das ciências sociais e humanas, o espaçotem sido pensado como uma entidade absoluta,completamente presente no homem, como um en-quadramento anterior à sua percepção do mundo,ou na natureza, como um recipiente independentedas actividades humanas que nele têm lugar.

É um espaço abstracto, geométrico, objectivo,universal, exterior ao homem e à sociedade que éconceptualmente construído pela “nova geografia”nos anos 60. O espaço é reificado, através do seucarácter de dimensão comparável, e separado, comoum continente, da prática social. Também a “novaarqueologia” assenta neste conceito de espaço.O significado simbólico e o papel social da culturamaterial e do meio ambiente são negligenciados.Espaço e sociedade são conceptual e fisicamenteseparados. As relações entre o homem e o seu meioambiente, pensadas como entidades independentes,são reduzidas, pelas ciências sociais e pela arqueo-logia, a parâmetros adaptativos e funcionais e aassuntos como recursos, níveis populacionais etecnologia. O espaço fica fora da sociedade, logo aarqueologia separa-se das ciências sociais. Por outrolado, o mundo natural torna-se irrelevante para osestudos da cosmologia e da estrutura social e,quando considerado, é como um objecto classificadopor estruturas cognitivas e sociais dele indepen-dentes. A sociedade e a cultura são reificadas, legiti-mando a autonomia das ciências sociais que, aopensarem o espaço, o reduzem a uma organizaçãosimbólica.

Durante as décadas de 70 e 80, a geografiahumana e a arqueologia começaram a redefinir arelação entre natureza e cultura e, utilizando a feno-menologia, a desconstruir a oposição sujeito/objecto.O conceito de espaço socialmente produzido,indissociável das relações e práticas sociais, substituio conceito de espaço recipiente, abstracto, absolutoe universal. A geografia e a arqueologia recorrem,portanto, à teoria social para pensarem um espaçohumano e com significado, o qual combina o físico,o cognitivo e o emocional, que, produzido pelainteracção entre as pessoas e entre estas e o ambientenão-humano, é o resultado e o meio da acção. Porseu turno, a antropologia passa a considerar o papelactivo do meio ambiente (simbólica e politicamentemarcado mas não passivamente moldado ouenquadrado por estruturas cognitivas e sociais a eleexteriores) na vida social, como uma forma deultrapassar o sociocentrismo ou a circularidade dodeterminismo cultural. A não separação e a mútuaconstituição entre mente e corpo, natureza e cultura,sendo agora reconhecidas acabam com o determi-nismo cultural e ecológico e, assim, com as fronteirasentre as ciências.

Berkeley, University of California Press) através doconceito de masquerade (que poderíamos traduzir pormascarada ou disfarce), também nesta obra é visível ouso de uma perspectiva que contemple a dupladimensão inscrita na acção política que decorre dasperformances culturais: performance e transformação,expressão e efeito, criação de conhecimento ou impe-dimento e empobrecimento do mesmo conheci-mento. Isto significa dizer que se o poder informa ossímbolos, seguramente também o processo de sim-bolização está sempre a produzir novos efeitospolíticos.

Deste modo, e na sequência do refinamento dopensamento de Cohen, os ensaios aqui reunidosrevelam como é no idioma, no figurino ou narepresentação da máscara que repousam as grandesquestões sobre a agência humana e o conhecimento,a sua justificação/função e representação — ques-tões que sempre preocuparam os antropólogos.Cohen, aliás, havia já sugerido que a atenção fossedada não às rotinas quotidianas, mas, e sobretudo,às aparentes bizarrias que melhor permitem com-preender os mistérios da acção social e do pensa-mento que esta encerra. Do mesmo modo, as perfor-mances culturais — como refere F. G. Bailey num dosensaios aqui reunidos — são supostas gerar umapluralidade de significados enquanto são exibidas,postas in actu (staged), e, portanto, resultam difíceisde interpretar, uma vez que são fruto das tensõespolíticas ou das relações de poder. Simultaneamentesão portadoras de símbolos culturais (textos esignificados) que remetem para um contexto cultural(modelos e padrões) que, no entanto, é suposto serpensado pelos seus membros apenas como “real” e“autêntico” na materialidade da interacção social (enão da staged performance). Por outro lado, a rigidezmodelar desta última perspectiva é contrariadasistematicamente pelo carácter plástico e trans-formativo com que os indivíduos ou os grupossociais estrategicamente exibem, deformam ouomitem (de modo reflexivo) significados e acçõespolíticas através das mais variadas performancesculturais. Trata-se, portanto, de uma obra de refe-rência, teórica e etnograficamente falando, para osestudiosos dessa cada vez mais significativaarticulação dos domínios da acção política e das per-formances culturais.

Paulo Raposo

CHRISTOPHER TILLEY

A PHENOMENOLOGY OF LANDSCAPE: PLACES,PATHS AND MONUMENTS

Berg, Oxford, 1994

Através da oposição kantiana e cartesiana entreo homem e o mundo, que separa as ciências da

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O próprio campo semântico da palavraambiente e o contexto de uso no qual surgiu apalavra paisagem demonstram como a reflexãosobre o espaço esteve marcada pela dicotomiahomem/mundo natural. Segundo a Encyclopedia ofSocial and Cultural Anthropology, no seu uso comum,ambiente refere a influência não humana sobre ahumanidade. A ele está associada a imagem dahumanidade rodeada por factores biofísicos rele-vantes (cf. Thin 1996: 185). Assim, ao falar-se deambiente separa-se o homem do mundo natural ese, por um lado, se exclui o homem do seu contextobiofísico, por outro, este é pensado atravésdaquele. Ou seja, no termo ambiente está inscrito oparadoxo de uma visão antropocêntrica de ummundo ao qual o homem não pertence. Este mesmoparadoxo está presente no termo paisagem que, noséculo XVI na Holanda, surgiu na linguagem dapintura, para referir uma visão pictórica danatureza (Bell 1993: 5). O mundo natural, do qualse afasta o citadino, é na e pela paisagem repre-sentado, de uma forma distanciada, enquantoobjecto distinto do homem. A paisagem pictóricaconstitui um olhar humanamente construído quesubtrai o homem do mundo natural representado e,assim, nela se separa o homem (sujeito) da natureza(objecto). Isto é, paisagem evoca simultaneamente,mas como identidades distintas e autónomas,homem e mundo natural.

É esta oposição, inerente à representação econceito pictórico de paisagem, entre homem emundo natural, que Tilley procura desconstruirneste livro. Ao reflectir sobre a paisagem, Tilley,como arqueólogo, contribui para a humanização datopografia natural e, como antropólogo, demonstracomo esta participa activamente na formação debiografias pessoais, de memória e identidade sociale dos sistemas de dominação (pp. 26 e 27), diluindoassim a fronteira entre estas ciências.

Ao situar-se numa perspectiva fenomenológica,Tilley considera que a paisagem não é um objectoda natureza que existe independentemente dohomem, nem uma representação mental ou formacognitiva, mas que é constituída pelo “estar com ascoisas” (o conceito de “residência” de Heidegger),no qual o corpo se torna na forma de as entendere percepcionar e, assim, nela se ligam cognição erealidade, mente e corpo, utilitário e simbólico, aforma física e visual da terra (topografia, rios,relevo, formações rochosas) e os significados,nomes de lugares e memórias, humanamentecriados, reproduzidos e transformados em relaçãocom ela.

Assim, Tilley retém a palavra paisagem,porque, ao deslocá-la da representação pictórica

para o “vivido”, o homem e a natureza que naquelaestavam dissociados, passam a estar por ela inter-ligados:

A paisagem tem importância ontológica porque sevive nela e através dela, é mediada, trabalhada ealterada, repleta de simbolismo e significado cultural— e não é apenas algo para o qual se olha ou acercado qual se pensa, um objecto para mera contem-plação, descrição, representação e esteticização(p. 26).

O termo paisagem transforma-se naquele que,em geografia, melhor é capaz de descrever a inter--relação entre o “lugar” meramente humano e omeio ambiente:

Desejo defender neste livro que os locais huma-namente criados utilizam as qualidades da paisagempara criar, naqueles que o usam, parte do seusignificado, e a própria percepção da paisagem podeser fundamentalmente afectada pela localizaçãodestes locais (pp. 25-26).

Na segunda parte deste livro, Tilley utiliza esteconceito de paisagem e alguns trabalhos etnográficos— que demonstram a importância simbólica dascaracterísticas topográficas em duas sociedades decaçadores-recolectores (Austrália e Alasca) e em ou-tras duas de agricultores (México e Melanésia) —,para reinterpretar alguns achados arqueológicos doPaís de Gales e Sul de Inglaterra, constituídos princi-palmente por fragmentos de sílex mesolíticos emonumentos neolíticos. Tilley propõe assim àarqueologia uma nova agenda teórica e metodo-lógica. Convida os arqueólogos, que apenas têm emconta os locais em si ou os inserem num espaçopensado independentemente deles como um dadoda natureza, a considerarem a inter-relação entre oslocais arqueológicos e as características dominantesda paisagem envolvente (rios, elevações rochosas,costa, vertentes). O significado e localização dosachados depende do impacte fenomenológico e dosignificado humanamente construído das caracte-rísticas da topografia natural. Por outro lado, aconstrução perceptual e simbólica da paisagempré-histórica deve ser inferida a partir dasevidências arqueológicas. Tilley sugere também que,como instrumentos metodológicos, se devemsubstituir os mapas pelo movimento e presença napaisagem. Os mapas não permitem ver e com-preender como os lugares se inter-relacionam com ascaracterísticas topográficas. É através do corpo,como o lugar universal das experiências espaciais,que podemos percepcionar e conhecer a paisagemque construiu e foi construída pelos lugares meso-líticos e monumentos neolíticos.

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Recensões

Outras referências bibliográficas:BELL, Desmond, 1993, “Framing Nature: First Steps into

the Wilderness for a Sociology of the Landscape”,Irish Journal of Sociology, vol. 3, 1-22

THIN, Neil, 1996, “Environment”, in BARNARD, Alan, eSPENCER, Jonathan, Encyclopedia of Social and CulturalAnthropology, Londres & Nova Iorque, Routledge.

Sandra Xavier

ROY ELLEN E KATSUYASHI FUKUI (EDS.)REDEFINING NATURE: ECOLOGY, CULTURE

AND DOMESTICATION

Oxford e Washington DC, Berg, 1996

Na ressaca dos niilismos pós-modernos, apósvárias décadas de debate filosófico em torno dascondições de possibilidade do conhecimento cientí-fico, e depois de a neurobiologia ter desarticuladoconsistentemente os alicerces cartesianos de umsaber fundamentado nas oposições mente/corpo ehomem/natureza, resta agora às ciências sociaisreformularem alguns dos problemas centrais de quese têm ocupado e que permitiram a sua reproduçãoinstitucional mais ou menos bem sucedida. A antro-pologia, por virtude de uma promiscuidade teóricaque revela incessantemente as suas próprias poten-cialidades criativas, não poderia deixar de se posi-cionar na linha da frente da renovação dos saberes.Um exemplo interessante vem, justamente, de umaárea tradicionalmente associada com a economia, aecologia e a análise das sociedades de caçadores--recolectores. Trabalhos como os de Stephen Gude-man, Tim Ingold ou Roy Ellen, para citar apenasalguns, têm vindo a oferecer importantes contributospara a implementação de debates alargados emtorno da reformulação de problemas e categoriasherdadas das gerações precedentes.

Os textos que constituem esta obra são oproduto de um simpósio que teve lugar no Japão(Kyoto e Atami), em Março de 1992 — Beyond Natureand Culture: Cognition, Ecology and Domestication —e onde se confrontaram praticantes de antropologiacognitiva e ecológica, biologia e etnografia. O textointrodutório, da autoria de Roy Ellen, proporcionauma boa síntese dos vários e diversificados con-teúdos incluídos neste volume, evidenciando umconjunto de questões cuja relevância se poderá,talvez, subsumir nesta interrogação: “Can personand environment ever be anything but implicate ineach other?”

Destacam-se os contributos de Tim Ingold(“Hunting and Gathering as Ways of Perceiving theEnvironment”), com um argumento que se desen-

volve através das etnografias provenientes dos BatekNegritos da Malásia, dos Mbuti do Zaire e dosNayaka do Sul da Índia; Peter D. Dwyer (“The In-vention of Nature”), que é biólogo de formação,explora a oposição visível/invisível com exemplosde três sociedades da Papua-Nova Guiné; JamesBoster (“Human Cognition as a Product and Agentof Evolution”) compara as taxonomias para classi-ficar aves usadas pelos Jívaros e pelos ornitólogos,para sugerir “a pan-human (or possibly pan-mam-malian) perceptual strategy for making sense of bio-logical diversity” (p. 274); e Emílio F. Moran (“Nur-turing the Forest: Strategies of Native Amazo-nians”), que esclarece uma questão de suma im-portância:

The most recent views on human ecology no longertalk about adaptation to physical environment as themost important dimension of ecological analysis (...).Nor do they focus on nature or culture to determinewhich is causally prior. Rather, the ecologicalbehaviour of individuals is taken to be a productof multiple sources of information and influence:history, demographic experience, the cognized physi-cal environment, social membership and politicalforces (p. 534).

Francisco Oneto Nunes

GEORGE MARCUS E PETER DOBKIN HALL

LIVES IN TRUST: THE FORTUNE OF DYNASTIC

FAMILIES IN LATE TWENTIETH-CENTURY

AMERICA

São Francisco e Oxford, Westview Press, 1992

Lives in Trust representa um passo importantena escassa produção sobre elites no campo disci-plinar da antropologia. É um livro sobre famíliasdinásticas americanas, unidades sociais que seconstituem quando o fundador transmite aos seusdescendentes as empresas, a família e a riquezapessoal que criou durante a sua vida, e o faz de umaforma integrada, utilizando estratégias jurídicas queorganizam burocraticamente a sua fortuna emtrusts 1, de forma a perpetuar os seus impérioseconómicos e familiares. No entanto, o conjunto detextos que constitui o presente livro não é exclusi-vamente uma descrição etnográfica das famíliasdinásticas estudadas por Marcus e Peter Hall. Osautores utilizam o material empírico para elaboraruma crítica à concepção clássica das elites, vistascomo um grupo social homogéneo, para reflectirsobre a natureza das famílias dinásticas americanas,e para pensar na importância da lei e dos instru-

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mentos jurídicos na formação da elite norte-ame-ricana.

A forma como Marcus, nos textos que assina,desconstrói a ideia de que as famílias dinásticasamericanas são grupos de parentesco é uma dascontribuições mais importantes desta obra, tantopara os trabalhos sobre elites, como para a reflexãosobre a família nas sociedades capitalistas. Umadinastia não pode ser considerada um grupo deparentesco, pois ela é, fundamentalmente, uma orga-nização administrativa onde uma família e uma for-tuna se relacionam num conjunto de instituições nãofamiliares que interferem na continuidade de uma eoutra. Como resultado do processo de constituiçãodos trusts, as relações que têm lugar no interior dasfamílias dinásticas são orientadas por arranjos jurí-dicos, geridas por especialistas legais e financeiros ea única razão para a sua continuidade são os cons-trangimentos decorrentes do facto de os parentespartilharem uma riqueza hereditária. De facto,

é irónico que nas sociedades capitalistas esta forma delinhagem encontre a sua força numa racionalidadeestranha aos sentimentos que normalmente atribuí-mos à motivação das relações familiares e que a dura-bilidade das dinastias enquanto grupo de descenden-tes seja adquirida através da assimilação de caracte-rísticas pensadas como antitéticas aos grupos basea-dos no parentesco (p. 70).

Esta é a base de um dos argumentos centrais deMarcus segundo o qual os conceitos legais sãocategorias culturais do sistema de valores do paren-tesco no contexto da sociedade americana, pelo queas regras e instrumentos legais devem ser consi-derados uma dimensão fundamental das relaçõesfamiliares nos trusts familiares americanos. Assim,para dar conta etnograficamente da complexidadesociológica destas famílias dinásticas, Marcus propõea utilização de uma forma alternativa de narrativafamiliar que não se centre nesta unidade, mas queseja analiticamente multicentrada, de forma apermitir dar conta do conjunto de processos externose diversos que formam a história da família e tornarevidentes as diversas esferas sociais implicadas naconstrução da sua identidade.

Nesta obra são abordados diversos temas(a domesticação do capital feita por famílias dinásti-cas; os modelos de crescimento destas formaçõesempresa/família; a importância dos fiduciários namanutenção destes impérios; as relações entregerações; o carácter abstracto do dinheiro para osherdeiros destas fortunas; a formação de pessoaspiedosas; a “falsa curiosidade” subjacente às fun-dações artísticas criadas por estas famílias; e a des-crição etnográfica de Peter Hall sobre os Rockfeller

e os problemas inerentes à produção de uma ima-gem pública da família), que no seu conjunto pode-riam contribuir para a compreensão das formas deviver em trusts. No entanto, os autores não elaboramuma etnografia “densa” que dê conta das experiên-cias de vida, valores culturais e visões do mundodeste grupo social. Por outro lado, também nãofazem, e é pena, uma reflexão mais sistemática sobrequestões de significado mais abrangente que levan-tam, sem analisar, ao longo do livro. Como exemplodisto podemos apontar a interessante sugestão deque os trabalhos sobre este contexto social podemcontribuir para uma reflexão mais geral sobre asociedade americana, pois o facto de as dinastiasdarem prioridade à realidade colectiva sobre o selfúnico e autónomo dos seus membros faz com queelas se tornem num dos poucos contextos onde sepode desenvolver uma crítica do individualismoamericano (p. 179). Da mesma forma, a ideia de queao estudar formações dinásticas a antropologia podecontribuir para revitalizar a teoria das elites, “cujaimportância se revela na demonstração das conexõessistemáticas entre riqueza e poder nas sociedadescapitalistas” (p. 102) é referida sem qualquer tipo dedesenvolvimento. No entanto, trabalhos como este,que se debruçam sobre contextos sociais normal-mente ignorados pela antropologia, e que fazemuma análise cultural de categorias económicas hege-mónicas mostrando a variação contextual dos seussignificados, tornam bem clara a contribuição queesta disciplina pode dar para o estudo das econo-mias modernas.

Notas1 Trust: entidade que detém material e juridicamente osbens de uma pessoa, ou pessoas, passando estes a seradministrados por terceiros — os fiduciários.

Antónia Pedroso Lima

PAUL STOLLER

EMBODYING COLONIAL MEMORIES: SPIRIT

POSSESSION, POWER AND THE HAUKA IN

WEST AFRICA

Londres, Routledge, 1995

“O cheiro acre das resinas ardentes espalha-sepela casa de Adamu Jenitongo.” Desde a frase comque abre o novo livro de Paul Stoller, encontramo--nos na presença do universo narrativo e etnográficoque o autor foi construindo ao longo de diversasobras: os cheiros de Africa que lhe servem em TheTaste of Ethnographic Things para nos guiar através

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Recensões

dos Songhay do Níger e da sua experiência de jovemetnógrafo aprendiz; o universo de encantações queimpregna o relato de uma imersão nas práticasrituais dos Sorki, mestres de magia Songhay, em InSorcery’s Shadow, escrito de parceria com CherylOkes; e a presença de Adamu Jenitongo, seu mestree mentor na magia e metafísica Songhay, cujareferência recorrente em todas as obras do autor astransforma (também) numa memória em construção.

Em Embodying Colonial Memories, Stoller aban-dona os Sorki para se debruçar sobre os Hauka, osespíritos que caricaturizam os Europeus durante assessões de possessão a que se entregam os “cavalosde génio”, os possuídos e performers: no decorrer deum sessão em Tillaberi, no Níger, o autor foiincumbido de escrever “sobre nós, porque tu és um‘europeu’ como nós” por Istambula, um dos espí-ritos presentes. A referência aos Hauka remete-nosobrigatoriamente para o impressionante retrato feitopor Jean Rouch em Les Maîtres Fous, filme realizado(igualmente) a pedido dos Hauka. O cineasta previaque estas figuras caricaturais dos elementos daadministração colonial e do poder europeu desapa-recessem com a independência das antigas colónias.Contudo, as sessões de possessão em que os corposse tornam hirtos e rígidos como numa paradamilitar, os olhos ora esbulhagados ora ameaçadoresse fixam em realidades distintas, as bocas espumame gritam, continuaram em todo o seu fulgor derepresentação dura e aumentaram a sua influêncianos últimos vinte anos. Para explicar esta perma-nência o autor conduz-nos numa viagem pelo Nígerindependente, mostrando-nos a criação de um tecidosocial esquizofrénico, em que os assanara (branco emSonghay), aqueles que procuraram seguir o modelodas burguesias ocidentais, se afastam cada vez maisda massa da população concentrada no interior enos subúrbios da capital, onde o primeiro presidentedo Níger independente, Hamani Diori, cria em seutorno um governo e um grupo de clientes querecriam a noção de poder como domínio exteriorsobre uma população sem voz activa. A revolta doexército coloca na presidência o general SeyniKountche, ele próprio um suposto “cavalo de génio”Hauka, cujas atitudes públicas são para Stoller umareinvenção dos mimetismos deste grupo: a atitudeameaçadora, o poder como purificação e comoutilização da força sem justificação.

Mas a compreensão dos fenómenos de posses-são não pode ser reduzida a uma dimensão inte-lectualizante ou mesmo a uma teoria da performance.Segundo Stoller, os Hauka mimetizam os elementoscaricaturais e incompreensíveis do poder, comotentativa de incorporação e apropriação dessasmesmas forças exógenas, e como forma de resis-

tência à sua estranha hegemonia. Fiel aos princípiovividos em In the Sorcery’s Shadow e Fusion of theWorlds, e depois expostos em The Taste of Ethno-graphic Things, Stoller defende que só se podecompreender a possessão como um acto de corpo-ralização de uma memória colectiva e, como tal, umfenómeno não textual mas sensitivo, gravado numcorpo sensível. A sensualidade da percepçãohumana é expressa na transmissão de uma memóriacolectiva que evoca os gestos, os cheiros e sabores,os medos e terrores, as apetências e prazeres, comooutros tantos elementos significantes para além dadifusão de conhecimentos textualizáveis.

Em The Taste of Ethnographic Things, o autorcriticava uma “etnografia sensaborona” face aos“factos etnográficos saborosos” e defendia o“conhecimento profundo” obtido através de umlongo envolvimento que implica, sobretudo, umaligação profunda e emocional com as pessoas. Todasas suas obras se dedicaram a explorar os contornosdestas relações, ao longo de narrativas estruturadascomo contos. Embodying Colonial Memories émoldado num material mais fluido, transportando--nos dos encontros pessoais em “clubes” depossessão Hauka para a história recente da Áfricaocidental e do Níger. Os elementos que tornaobjectos de análise e significação são tão dísparescomo os estados de possessão, a cinematografia deRouch, o estranho teatro dos jovens governos afri-canos, o corpo como primeiro elemento de criaçãoindividual e cultural; contudo, eles são já parteintegrante de um imaginário sobre África. Maisalargada nos seus objectivos e menos precisa nasrelações que retrata — sobretudo a sua interpretaçãoda história do Níger é nitidamente novelística —, aúltima obra de Stoller ganha em revelação o queperde em precisão. A sua interpretação sobre osfenómenos de possessão como mimetização dopoder e corporalização da resistência é profunda-mente apelativa e, mesmo tratando-se de um olharexterior, é uma visão comunicante. Ambiciosa nashipóteses que defende, esta obra é susceptível derelançar um debate sobre as formas de recriação ereapropriação (e corporalização) dos elementos depoderes exógenos.

Outras referências bibliográficas:STOLER, Paul, 1987, In Sorcery’s Shadow, Chicago, Chicago

University Press.STOLER, Paul, 1989, Fusion of the Worlds: An Ethnography

of Possession among the Songhay of Niger, Chicago, Chi-cago University Press.

STOLER, Paul, 1989, The Taste of Ethnographic Things. TheSenses in Anthropology, Filadélfia, University ofPennsylvania Press.

Clara Carvalho

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RITA ASTUTI

THE PEOPLE OF THE SEA

Cambridge, Cambridge University Press, 1995

Esta é uma obra baseada em notas do trabalhode campo, decorrentes da estada da autora na costasudoeste de Madagáscar, e consiste no estudo deduas formas diferentes de identidade social co-exis-tentes na mesma comunidade — os Vezo —, umaoperando no presente e outra reportando-se aofuturo. O objectivo principal da obra é o de explorara aparente incompatibilidade dessas característicasidentitárias.

The People of the Sea divide-se claramente emduas partes distintas. Na primeira metade, Astutidescreve com rigor as acções que diariamente“fazem” dos indivíduos Vezo, salientando toda acontextualidade e efemeridade dessa forma de ser.Numa sequência de eventos muito bem narrados, aautora leva-nos a descobrir como os Vezo fazem erefazem diariamente a sua identidade numa únicadimensão temporal, o presente, e num único posi-cionamento geográfico, o litoral — o seu afastamentodo mar leva-os ao abandono das performances a eleassociadas, base da sua identificação colectiva.

Os Vezo são uma comunidade que foge aospadrões classificatórios convencionais de grupoétnico. Como se irá descobrindo ao longo da obra,não é uma língua nem um território comuns, nemtão-pouco uma história partilhada que os definecomo povo. Qualquer um pode deixar de ser Vezoe, paralelamente qualquer indivíduo pode tornar-senum deles, basta que aprenda pela acção a sê-lo, ea repita diariamente.

Esta é a primeira grande constatação de Astuti— não se é Vezo por descendência mas pela acção.O seu grande desafio é perceber a identidade Vezoatravés da definição de identidade que eles própriosconstruíram, numa postura muito diferente datradicional aplicação/teste da grelha teórica doinvestigador.

A autora realça que os Vezo estão “algemados”ao presente e que o passado, enquanto conjunto deacções donde decorre um saber empírico, é-lhesalheio, descobrindo-lhes assim uma identidade so-cial transitória, mutável em que se é o que se faz.

Astuti introduz também a questão da identi-ficação geográfica, como possível enquadramentopara esta peculiar identidade social dos Vezo,propondo que a dependência do mar representariauma espécie de essência estruturadora da acção dosindividuos. Como ela própria constata e os seusinterlocutores sublinham, não há projecção no

passado (posse de terras) nem no futuro (esperapelas colheitas). A sua subsistência está no mar talcomo ele se apresenta quotidianamente.

Ancorados no presente, renegam também a suasujeição no passado ao poderoso reino vizinho deSakalara. Negam assim uma identificação histórico--cultural que os ligaria a um passado genealógicocomum. A história transporta a genealogia: aonegarem uma, negam a outra.

Mas há um resíduo histórico que os prende aopassado e que os Vezo não conseguem anular. Delese ocupa a segunda parte desta obra, centrada naincontornável existência do parentesco e no modocomo esta leva este grupo homógeneo a subdividir--se em grupos heterogéneos com identidade própria.

Astuti tenta compreender a coexistência destasduas formas de identidade, uma orientada pelaprática e inclusiva, a outra pela descendência eexclusiva.

A autora descreve como o parentesco, empresença da poligamia e não estabelecendo relaçõespreferenciais, se estabelece geracionalmente, origi-nando relações de afinidade indiferenciadas entrevários grupos de ascendentes, descendentes e co-laterais. Contudo este parentesco plural e dispersoé reconduzido após a morte à unidade de uma únicaraza — grupo específico e identificado de antepassa-dos que os Vezo elegem em vida, e dentre váriospossíveis, como o grupo de ascendentes em quequerem ficar incluídos.

Se enquanto vivos os Vezo formam um grupohomogéneo e com uma só identidade — a colec-tiva —, a morte impele-os a optarem por uma identi-dade individual, dividindo o túmulo o que a vidaunia. O futuro é feito momentaneamente presenteatravés da evocação do passado e da opção que cadaVezo faz sobre a sua raza, estabelecendo-se duasformas de parentesco distintas, uma operando nopresente e outra que irá ter lugar no futuro.

A explicação proposta por Astuti, na tentativade compreensão desta “bizarra” co-existência iden-titária, baseia-se no facto dos seus interlocutoresterem consciência de que com a morte a sua capa-cidade de agir como Vezo cessa, como tal a suaidentificação formal com um grupo específico deindivíduos (raza) é a única forma de identidade quelhes restará no futuro.

Nesta obra, a descrição dos rituais funerários émuito realista. Salientaria o modo como o grupo dosvivos enfatiza a sua unidade e a forma efusiva comocelebram os seus mortos ( em especial se o defuntofor idoso), o que significa que viveu longamenteagindo como Vezo.

Numa apreciação geral, acrescentaria que adescrição de Astuti sobre o dia-a-dia Vezo é muito

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Recensões

rica, pautada por transcrições de diálogos quesublinham toda a dinâmica da vida desta comu-nidade. Poderá causar alguma surpresa a atitudeaparentemente passiva a que a autora se remete emtermos analíticos. Contudo, a dado momento começaa tornar-se perceptível que ela se retrai intencio-nalmente nas considerações que tece sobre a matéria,deixando os Vezo falar e agir. Narra, reflecte pon-tualmente, mas deixa ao leitor a tarefa de extrairilações sobre estas duas formas de identidadeco-existentes, associadas a dimensões temporaisdistintas. The People of the Sea transmite-nossobretudo um novo olhar sobre velhos conceitos dacultura ocidental — “povo”, “cultura”, “parentesco”e “temporalidade”.

Emília Lopes

NIKO BESNIER

LITERACY, EMOTION AND AUTHORITY:READING AND WRITING ON A POLYNESIAN

ATOLL

Cambridge, CUP, 1995

Teoricamente ancorado no designado modeloideológico proposto por Brian Street (Literacy in Theoryand Pratice, CUP, 1994), este estudo olha para aliteracia como uma construção sociocultural, ou seja,postula que as práticas de leitura e de escrita nãopodem ser analisadas independentemente doscontextos sociais, económicos e políticos nas quaistêm lugar. Neste sentido, e contrapondo-se àperspectiva defendida por Jack Goody desde os anos60, o modelo ideológico chama a atenção, por exemplo,para o facto de a introdução da escrita em muitassociedades não ter espoletado as consequênciassociais e cognitivas propostas pelo modelo autónomo,designação proposta pelo mesmo Brian Street paradefinir a teoria do autor de The Domestication ofthe Savage Mind. Nas palavras de Niko Besnier:“The ideological reaction to autonomous approachesto literacy (...) represents a call away from facilecategorizations, a retreat from hasty generaliza-tions, and a return to the ethnographic drawingboard” (p. 4).

Os príncipios básicos deste tipo de abordagenspodem sintetizar-se em quatro aspectos fundamen-tais: em primeiro lugar, aquilo que é tomado comoobjecto de inquérito é a diversidade de experiênciasde literacia que emergem dentro e através dassociedades; em segundo lugar, procura-se mostrarcomo dentro das sociedades a diversidade se articulacom diferenças entre contextos de uso da escrita e da

leitura, com diferentes tradições religiosas e compadrões de desigualdade entre grupos; em terceirolugar, particularmente nos estudos que privilegiamuma perspectiva comparativa, analisa-se como aheterogeneidade da literacia resulta de um conjuntode factores incluindo a natureza das práticas peda-gógicas ligadas ao processos de ensino/aprendi-zagem da escrita e leitura, as suas origens e evoluçãohistóricas, e as atitudes face à leitura e à escrita; emquarto e último lugar, os estudos ancorados nomodelo ideológico, em vez de se preocuparem com asconsequências sociais e cognitivas da escrita, cen-tram-se nas actividades, acontecimentos e constru-ções ideológicas associadas com manifestações parti-culares de literacia.

O presente livro procura cruzar tanto a perspec-tiva que privilegia a análise de acontecimentos oupráticas de literacia particulares — os designadosevent-centered studies, metodologia mais frequente-mente usada nas análises sobre as sociedadesocidentais com longa tradição escrita e escolarizaçãomassiva — e a perspectiva mais holista que procuradar conta da totalidade e diversidade dessas práti-cas — mais comum em contextos não europeus ondea escrita foi recentemente introduzida, como é o casode Nukulaelae, um pequeno atol situado no Pacíficocentral. Deste cruzamento resulta, talvez, o aspectomais interessante e inovador deste estudo, aomostrar como a análise aprofundada de um assuntocomo a literacia faz dela um pivô que permiteentender múltiplos aspectos da vida social. Anali-sando os sermões proferidos (e previamente escritos)pelos pastores e membros da comunidade, o autormostra como esta forma de literacia é usadaenquanto instrumento e justificação de estruturas dedesigualdade social. Examinando de forma deta-lhada as complexas relações entre a autoridade, averdade e a noção de pessoa que a prática do sermãoevidencia, o autor põe em evidência duas coisas: emprimeiro lugar, que, mais do que opor oralidade eescrita, é necessário entender como ambas ascategorias se articulam num continuum; em segundolugar, o modo como a prática do sermão contribuipara a manutenção do poder, a emergência deformas de resistência e a definição e construção daidentidade entre os Nukulaelae. Por outro lado,através de um vasto corpo de cartas recolhidas entreos habitantes do atol, o autor analisa a profundaimbrincação existente entre esta forma quotidiana deescrita e certos aspectos da expressão das emoções,assim como a relação que existe entre a escrita decartas (a troca de correspondência dá-se entre habi-tantes do atol e parentes emigrados em ilhas vizi-nhas) e o controlo das actividades económicas. Nassuas palavras “letters become mediating tools

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between emotions and material transactions” (p.16).É também analisada a relação entre literacia egénero: embora o acesso à escrita e à leitura nãoesteja condicionado pelo género, certas formas deliteracia assumem qualidades de género (caso dossermões e escrita dos mesmos, e certas formas deexpressão das emoções só possíveis, para os homens,através de cartas). Por último, o autor discute aindaas questões que decorrem da introdução da escritanum contexto não letrado (no caso analisado aescrita é introduzida ao longo do século XIX pormissionários samoanos): os dados mostram inten-ções discrepantes entre os introdutores e os reci-pientes da literacia, que a usam no presente comobjectivos (as cartas, por exemplo) muitos diferentesdas intenções dos seus pios alfabetizadores. Aquisim, pode afirmar-se que se virou o feitiço contra ofeiticeiro.

Filipe Reis

ANGELO TORRE

IL CONSUMO DELLE DEVOZIONI: RELIGIONE

E COMUNITÀ NELLE CAMPAGNE

DELL’ANCIEN RÉGIME

Veneza, Marsilio, 1995

Que as práticas religiosas tenham (ou, pelomenos, possam ter) uma dimensão política, ou queos rituais possam constituir uma representação dasrelações entre grupos sociais, não é novidade para osantropólogos. A investigação desse nexo políticoconstitui, de facto, muitas vezes o ponto de partidapara investigações sobre fenómenos e práticas rituaisquer em sociedades exóticas, quer no contextoeuropeu. Sirva como exemplo destas últimas oclássico estudo de Jeremy Boissevain sobre asrelações entre faccionalismo político e a organizaçãode festas religiosas em Malta (Saints and Fireworks,Londres, 1965). Com o florescimento relativamenterecente de estudos de antropologia histórica, algunshistoriadores procuraram investigar o mesmo tipode relação nas sociedades europeias do passado.Entre outros estudos, merece ser aqui recordado oensaio de Giovanni Levi sobre a carreira de umexorcista no Piemonte de seiscentos (L’Eredità Imma-teriale, Turim, 1985; trad. fr. Le Pouvoir au Village,Paris, 1989), onde destaca a importância do controlopolítico sobre as actividades das confrarias religio-sas. Mas o estudo de Levi, tal como a maioria dosestudos realizados por antropólogos, concentra-sesobre o nexo religião-política e sobre as utilizaçõespolíticas de instituições e de rituais de carácterformalmente religioso no tempo breve. Esta visão

puramente instrumental da relação religião-políticareflecte sobretudo as limitações das fontes de infor-mação disponíveis. Nem o historiador empenhadonuma penosa e minuciosa reconstituição das rela-ções sociais no interior de uma comunidade, nem— a fortiori — o antropólogo, cuja investigação seencontra condicionada pelas possibilidades de obser-vação no terreno, têm a possibilidade de adoptar umponto de vista mais distanciado do ponto de vistatemporal e de investigar a interdependência demédio e longo prazo entre as esferas política ereligiosa.

O recente estudo de Angelo Torre sobre areligiosidade popular no Piemonte nos séculos XVI,XVII e XVIII pretende justamente examinar essarelação na sua dinâmica de longo prazo, utilizandopara o efeito a documentação das visitações pasto-rais entre 1570 e 1770. A fonte, já abundantementeutilizada por historiadores para o estudo das crençase superstições populares, é aqui objecto de umaleitura brilhante e inesperada. Concentrando-sesobre aquelas partes da documentação geralmentemenosprezadas por historiadores — as minuciosasdescrições do estado de conservação de cada igrejae capela, dos respectivos altares e ornamentos, daorganização de procissões, etc. — e através de umaanálise extensiva, simultaneamente topográfica ediacrónica, o autor reconstrói, à maneira de umarqueólogo, a distribuição no espaço piemontês, e aevolução ao longo dos dois séculos que se seguiramao Concílio de Trento, das formas de devoção popu-lar, relacionando-as com fenómenos de carácterpolítico, como a construção do território, as dinâ-micas dos grupos de parentesco e dos mecanismosde sucessão e as relações centro-periferia durante aconstrução do Estado moderno. Falta aqui espaçopara mencionar exemplos específicos das relaçõesevidenciadas neste estudo. Mas pelo seu alcancemais geral valerá a pena recordar a análisecuidadosa da maneira como, no período que seseguiu a Trento, a Igreja logrou impor formas dedevoção baseadas no culto da eucaristia e nofortalecimento do papel da paróquia, em substi-tuição de formas de devoção anteriores de caráctercomunitário dedicadas ao culto do Espírito Santo ecaracterizadas pela distribuição ritual de alimentospor altura de Pentecostes (tentando ao mesmotempo transformar estas últimas em manifestaçõesde caridade), ou a demonstração de que as discus-sões a respeito do carácter legitimador do sagrado,e das suas fronteiras, tenham constituído um doseixos principais da política local nesta época.

Trata-se, em resumo, de um livro importante:não apenas pelo seu contributo para a renovaçãometodológica no campo da história social, como

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Recensões

também, e sobretudo, pelo modo como exemplificaa contribuição potencial dos estudos de antropologiahistórica, em particular daqueles que não menos-prezem a importância da dimensão temporal, parao enriquecimento da própria antropologia.

Robert Rowland

INÊS SALEMA MENESES E PAULO DANIEL MENDES

SE O MAR DEIXAR: COMUNIDADE E GÉNERO

NUMA POVOAÇÃO DO LITORAL ALENTEJANO

Lisboa, Edições do Instituto de Ciências Sociaisda Universidade de Lisboa, 1996.

Como é sabido, a antropologia que se tem vindoa praticar em Portugal há duas décadas tem-sedebruçado, quase exclusivamente, sobre universosrurais. A despeito da fama de país marinheiro e deuma história geograficamente condicionada pelapresença do oceano, as comunidades piscatórias donosso extenso interface litoral não têm merecido adevida atenção pela parte dos investigadores. O pre-sente trabalho de Inês Salema Meneses e PauloDaniel Mendes surge, pois, como uma lufada de arfresco neste panorama. Trata-se de um ensaio etno-gráfico dedicado a uma pequena povoação doconcelho de Odemira — a Azenha — onde a pescaconstitui uma actividade muito recente, o que permi-tiu aos investigadores situarem-se de forma peculiarna sua abordagem ao terreno. Os pontos fortes desteestudo centram-se nos processos de construção sim-bólica da comunidade, com destaque especial paraa análise das ideologias de género — temática esta,aliás, que foi também abordada por autores estran-geiros (Sally Cole, nomeadamente), que publicarammonografias sobre comunidades piscatórias portu-

guesas e com os quais o presente trabalho mantémum excelente nível de diálogo crítico. As elabora-ções em torno da esfera conjugal e da densa tramade produção, negociação e partilha de sentidos queoperam a mediação entre estas relações diádicas e oconjunto mais vasto de unidades domésticas sãotratadas com grande rigor e equilíbrio descritivo.Assim, o público e o privado, a solidariedade e oconflito, a cooperação e a competição, formam umamatriz de contrastes que nos leva a uma perspectivahistórica e sociologicamente esclarecedora acerca dosprocessos de autoprodução simbólica da identidadecomunitária, isto é, sobre o trabalho no mar: “A Aze-nha do Mar resulta da descoberta de uma oportu-nidade económica: a pesca” (p. 97).

Este ensaio beneficia ainda de uma resenhabibliográfica sobre a antropologia das pescas, assimcomo de um espaço introdutório em que se procura“situar a temática das pescas na literatura antropo-lógica” (p. 20). Faço minhas as palavras finais doprefácio escrito por João de Pina Cabral e AntóniaPedroso de Lima:

Na nossa opinião, a maturidade de uma tradiçãocientífica disciplinar — e muito particularmente deuma tradição etnográfica — não se pode medir pelaquantidade de estudos realizados, nem até pelaqualidade intrínseca de cada um deles, mas antes pelaforma como, do seu inter-relacionamento, surgemnovas temáticas e novas propostas teóricas. Para quetal ocorra, tem de haver interconhecimento, tem dehaver diálogo, debate e polémica. A nossa esperançaé que estudos exploratórios como este possam ter estafunção fertilizadora, dando vida a uma áreadisciplinar que em Portugal tem vindo a primar maispelo silenciamento mútuo do que pelo diálogocriativo (p.16).

Francisco Oneto Nunes