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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM
HELDER CÂMARA
PODER, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
GILMAR ANTONIO BEDIN
GISELE GUIMARÃES CITTADINO
FLORIVALDO DUTRA DE ARAÚJO
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P742 Poder, cidadania e desenvolvimento no estado democrático de direito [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFMG/FUMEC/ Dom Helder Câmara; coordenadores: Gilmar Antonio Bedin, Gisele Guimarães Cittadino, Florivaldo Dutra de Araújo – Florianópolis: CONPEDI, 2015. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-126-5 Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações Tema: DIREITO E POLÍTICA: da vulnerabilidade à sustentabilidade
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Cidadania. 3. Estado. 4.Democracia. I. Congresso Nacional do CONPEDI - UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara (25. : 2015 : Belo Horizonte, MG).
CDU: 34
Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br
XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM HELDER CÂMARA
PODER, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Apresentação
APRESENTAÇÃO
A capacidade de organização de eventos de qualidade por parte do Conselho Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Direito CONPEDI está amplamente demonstrada e
historicamente comprovada. Esta capacidade foi novamente demonstrada na realização, em
Belo Horizonte, de 11 a 14 de novembro de 2015, do XXIV Congresso Nacional. O Evento
contou com a presença de um número significativo de participantes, com trabalhos de todas
as regiões do Brasil e foi organizado sob a máxima Direito e Política: da Vulnerabilidade à
Sustentabilidade.
O destaque dado ao vínculo indissociável entre direito e política foi muito apropriado e
perpassou as discussões dos mais de sessenta Grupos de Trabalho que compuseram o Evento.
Entre estes grupos, um chamou diretamente a atenção para as imbricações profundas
existentes entre Poder, Cidadania e Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito (GT
26). Este Grupo de Pesquisa permitiu o resgate da ideia de que a emergência dos governos
limitados (portanto, submetidos ao império do direito) foi historicamente fundamental para a
consolidação da cidadania, a ampliação da liberdade e para a garantia de melhores níveis de
qualidade de vida.
O ponto de partida da análise referida foi que o poder possui várias formas de manifestações
ao longo da história humana. Teve início ainda sob a forma da Cidade-Templo e se
materializou, de forma mais institucional, com o aparecimento da chamada Cidade-Estado da
Antiguidade Clássica. Em seguida, esta estrutura foi suplantada, por um lado, por uma
estrutura máxima (mas um tanto decorativa) denominada Igreja (ou República Cristiana) e,
por outro, pela fragmentação em inúmeros feudos e pequenas estruturas política de base
agrária.
A formação atual do poder (grandes estruturas políticas) somente teve início no Século 13.
Deste momento histórico até a vitória dos Estados soberanos modernos foi uma longa disputa
pela supremacia e pelo poder entre as estruturas religiosas e as estruturas laicas. Este impasse
somente foi resolvido (isto apenas em boa medida) com a chamada Guerra dos Trinta Anos e
com a supremacia política do Estado moderno soberano no Tratado de Paz de Westfália
(1648).
Foi neste momento que a fragmentação política foi superada e que se afirmaram os Estados
como uma estrutura política centralizada e capaz de fazer valer o seu poder, com êxito e de
forma exclusiva, sobre um território e uma população específicos (Max Weber). Esta
transformação foi um grande acontecimento político e foi justificada, entre outros, por
Thomas Hobbes (1588-1679). Para este, o Estado é compreendido como o deus mortal que
caminha sobre a Terra.
Com esta configuração, ficou mais evidente a afirmação que o poder político é, antes de mais
nada, um poder do homem sobre outro homem. Assim, é possível dizer que o referido poder
pode se concretizar de várias maneiras, mas sempre se expressa como uma relação entre
governantes e governados, entre soberanos e súditos, entre Estado e cidadãos (Bobbio). Dito
de outra forma, se expressa de forma mais evidente como uma relação de dominação. Mas,
não apenas isto. É neste contexto que ele vai também passar se expressar como uma
possibilidade de construção de uma boa vida (volta à valorização da cidadania e do
desenvolvimento).
Para também expressar esta segunda possibilidade, é necessário, contudo, ainda uma nova
mutação na estrutura poder: a sua submissão ao império do direito e a constituição. Esta
mudança histórica tem início com as chamadas grandes revoluções dos Séculos 17 e 18
(Revolução Inglesa, Francesa e Norte-Americana) e somente vai se consolidar no decorrer do
Século 20 (é neste período histórico que os chamados regimes democráticos passam a ter um
valor positivo e o Estado passa a se constituir mais claramente como um Estado de direito em
sentido forte como Estado Democrático de Direito). Esta é uma vitória extraordinária da
liberdade.
Configurado desta forma, o poder político passa a fomentar mais claramente a solução
pacífica dos conflitos (método de contar as cabeças) e a valorizar as autonomias individuais e
o pluralismo político. É neste quadro que o Estado deixa de estar voltado a si próprio e passa
a ter que busca sua legitimidade na nação, tornando o poder um lugar vazio (Lefort). Dito de
outra forma, o limite do poder não se restringe àquilo que este pode ou não pode fazer em
função da vontade geral, expressa na forma da lei, mas limita, também, a monopolização do
poder por um indivíduo ou grupo. Além disso, este poder apenas será legitimo se exercido de
acordo com as normas constitucionais. Desta forma, passa a ser um poder limitado e
submetido às regras do jogo.
O GT 26 Poder, Cidadania e Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito dialogou,
de forma aberta e democrática, sobre estas e outras questões relacionadas e, portanto,
cumpriu o seu papel fundamental de ser um espaço de diálogo e de fomento ao exercício da
cidadania e da constituição de sujeitos autônomos e voltados ao desenvolvimento do país.
Os Organizadores
O EMPONDERAMENTO SOCIAL E A EFETIVAÇÃO DA DIMENSÃO HORIZONTAL DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
SOCIAL EMPOWERMENT AND THE REALIZATION OF THE HORIZONTAL DIMENSION OF THE SUBSIDIARITY PRINCIPLE
Linara Da SilvaGabriela Werner Oliveira
Resumo
O objetivo do presente ensaio é analisar os novos contornos conferidos ao poder local a partir
da promulgação da Constituição Federal de 1988, especialmente, no que se refere à expansão
da atuação dos cidadãos no processo de construção da sociedade. Em face da crise de
legitimidade do Ente Estatal, a modernidade incita reflexões sobre a necessidade de uma
redefinição da estrutura do Estado e de suas relações com a sociedade civil. Nesse aspecto, se
faz necessário apresentar uma abordagem em relação ao princípio da solidariedade,
demonstrando a importância de sua reinserção no contexto atual, sobretudo, os benefícios
que pode trazer ao espaço local, enquanto mecanismo de fortalecimento do capital social e de
efetivação da dimensão horizontal do princípio da subsidiariedade, responsáveis em
solidificar as relações comunitárias e, por conseguinte, promover uma cidadania solidária,
voltada à realização de interesses coletivos e, por conseguinte, da justiça e da inclusão social.
Palavras-chave: Capital social, Cidadania solidária, Emponderamento, Princípio da subsidiariedade
Abstract/Resumen/Résumé
The aim of this paper is to analyze the new contours granted to local power since the
enactment of the 1988 Federal Constitution, especially with regard to the expansion of the
role of citizens in the society construction process. Given the legitimacy crisis of the State,
modernity prompts reflections on the need for a redefinition of the state structure and its
relations with civil society. In this respect, it is necessary to present an approach in relation to
the solidarity principle, demonstrating the importance of its reintegration in the present
context, mainly, the benefits it can bring to the local area, as a strengthening mechanism of
the capital and effectiveness of the horizontal dimension of the subsidiarity principle,
responsible for solidifying communitarian relationships and therefore promote a solidary
citizenship, focused on the realization of collective interests and, hence, justice and social
inclusion.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Social capital, Solidary citizenship, Empowerment, Subsidiarity principle
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quando proclamou a sua Independência de Portugal, em 1822, o Brasil apresentava
um contexto ainda marcado pelos três séculos de colonização, ou seja, uma sociedade
extremamente dominável, analfabeta, escravocata, sem cidadãos, sem sentimento de
identidade nacional e, por decorrência, sem povo. A escravidão foi o fator que deixou marcas
mais profundas na história da cidadania e que ainda podem ser sentidas e vivenciadas na
atualidade, uma vez que a violência – física e verbal - com que os escravos eram tratados
impedia a garantia de direitos civis fundamentais, como a liberdade, a integridade física e a
própria vida, tornando-os incapacitados para desenvolver qualquer consciência acerca da
defesa de seus direitos. Nessa ótica, mesmo com a abolição da escravatura, essa relação
oprimido-opressor continua vigente hodiernamente, porém, mais discreta e com uma nova
roupagem.
Foi nesse panorama de dominação e de restrição de direitos que o Brasil se
desenvolveu. Por isso, muitos cidadãos não costumam exercer os seus direitos e deveres de
cidadania, não percebendo que os mecanismos de participação e os processos de tomada de
decisões podem ser utilizados pela sociedade civil. Isso ocorre por várias determinantes, seja
porque historicamente o acesso à gestão era privilégio das elites, ou porque a população está
alienada, temendo o seu envolvimento com questões que julga estar incapacitada para
deliberar, ou porque enxerga o Estado e à Administração Pública com descrença e
desprestígio, preferindo atuarem como meros expectadores. Nessa perspectiva, indaga-se
quantos habitantes, no Brasil, são de fato cidadãos?
Contudo, ao Estado não cabe mais a pretensão de querer enfrentar todos os problemas
sociais de forma isolada. Até mesmo porque a maior parte das grandes intempéries
contemporâneas, como a desigualdade, a exclusão, a alienação e a criminalidade, são
resultados de sua própria insuficiência e má atuação, pois, ao invés de atuar energicamente na
gestão dos interesses públicos, deixa-se dominar pelas imposições do mercado financeiro.
Desse modo, em face da crise de legitimidade do Ente Estatal, a modernidade incita
reflexões sobre a necessidade de uma redefinição da estrutura do Estado e de suas relações
com a sociedade civil. O que se procura é colocar à sociedade por meio de seus
representantes, à frente das dificuldades, de tal modo que auxilie os poderes institucionais em
assuntos de interesse coletivo que ultrapassam os limites de atuação governamental, exigindo
a participação consciente, responsável e eficaz dos atores sociais para a consecução de
políticas significativas, sem que isso implique a substituição do Ente Estatal pela sociedade.
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Muitos problemas atuais podem ser contornados e, até mesmo resolvidos, se a sociedade
intervir a partir do espaço local.
Portanto, o que se persegue neste ensaio, é analisar os novos contornos conferidos ao
poder local a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, especialmente, no que
se refere à expansão da atuação dos cidadãos no processo de construção da sociedade. Nesse
aspecto, se faz necessário apresentar uma abordagem em relação ao princípio da solidarieda-
de, demonstrando a importância de sua reinserção no contexto atual, sobretudo, os benefícios
que pode trazer ao espaço local, enquanto mecanismo de fortalecimento do capital social e de
efetivação da dimensão horizontal do princípio da subsidiariedade, responsáveis em solidifi-
car as relações comunitárias e, por conseguinte, promover uma cidadania solidária.
2 O ESPAÇO LOCAL POSSIBILITANDO A PARTICIPAÇÃO POPULAR
MEDIANTE A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil passou a ser
considerado uma República Federativa, formada pela união indissolúvel dos Estados, dos
Municípios e do Distrito Federal. As autoridades políticas de cada esfera do governo
ganharam soberania e independência em relação às demais. A partir dessa estruturação, os
municípios adquiriram grande evidência, auferindo a natureza de ente federado, possuindo
competências próprias e autônomas, devendo atuar pautado no interesse local, podendo,
inclusive, elaborar suas próprias Constituições, denominadas de Leis Orgânicas. Outrossim,
todos os entes públicos federados foram equiparados e, além das competências residuais
convencionais, ganharam uma série de direitos que evidenciam um comportamento ativo e
inovador, frente às Constituições brasileiras anteriores. Assim, os Municípios estão fundados
em competências locais, que permitem a inclusão do indivíduo no corpo social municipal, de
modo que configura uma forma de integração intermediária entre o indivíduo e o Estado
(BARACHO, 1996, p. 51).
Nesse aspecto, a questão do poder local assumiu grande relevância na atualidade,
propondo uma nova forma de repensar a organização da sociedade. Conhecido como local
authority em inglês, communautés locales em francês ou ainda como espaço local, o poder
local exerce uma expressiva influência nos processos de transformação que envolvem os
conceitos de descentralização, desburocratização e de participação (DOWBOR, 1999, p. 11).
A esse propósito, a característica basilar do modelo federal de Estado envolve a
questão da descentralização político-administrativa, que está em uma posição intermediária
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entre um Estado Centralizado – de esfera única de poder decisório – e a Confederação de
Estados – composta de entes dotados de soberania. Destarte, a Federação, apesar do grau de
descentralização política, possui um direito nacional como pressuposto de articulação das
diversas esferas autônomas, diferentemente da Confederação de Estados, em que cada parte
integrante possui seu ordenamento jurídico desvinculado da coercitiva submissão a um
sistema jurídico de hierarquia imediatamente superior (COSTA, 2007, p. 30).
Constata-se que o Estado Federal concede às unidades regionais e locais de poder uma
autonomia constitucional, que não pode ser desrespeitado pelos órgãos que constituem o
poder central. Dessa maneira, vislumbra-se uma autonomização das unidades que integram a
federação por meio de um sistema de competências e atribuições dispostas na Lei Maior. As
competências constitucionais de Estados e Municípios não estão condicionadas a ações de
searas intermediárias, tendo em vista que procedem da atividade do poder constituinte
originário (COSTA, 2007, p. 32).
O federalismo não se coaduna com a existência de órgãos de abrangência local
detentores apenas de autonomia administrativa ou financeira, sem possuir, no entanto,
autonomia política, a qual torna possível a tomada de decisões a partir do âmbito local ou
regional. Essa é uma questão essencial para o federalismo, pois a inclusão do processo
político decisório em esferas menores autoriza a atuação expressiva do cidadão (COSTA,
2007, p. 32-33).
Logo, se torna fundamental a abordagem de um novo federalismo, que seja capaz de
expandir as competências das esferas locais de poder – condicionadas a um patamar mínimo
referencial obtido na efetivação dos princípios constitucionais - transformando a própria
estrutura interna do poder local. Essa nova concepção do federalismo viabiliza a atuação dos
indivíduos em nível local, mediante o aperfeiçoamento das ferramentas de participação, no
intuito de que as comunidades definam suas prioridades econômicas, sociais e culturais
emergentes, em um grau de articulação com os órgãos institucionais, que fazem do sujeito um
cidadão ativo, envolvido no processo de construção da sociedade.
Com efeito, o papel do poder local é o de impulsionar os indivíduos ao exercício da
cidadania. Dessa forma, ganha importância à divisão de competências, na qual o Estado deve
delegar aos municípios os poderes que os seus atores estão preparados para empreender. A
concepção de que o município deve articular-se com os seus cidadãos-membros,
estabelecendo vínculos e estimulando a participação dos mesmos, provém da ideia de
subsidiariedade.
Nesse contexto, vislumbra-se a importância da subsidiariedade, cuja proposição
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alcançou força de princípio em face da influência que exerce nas relações entre comunidade,
sociedade civil e Estado em todos os níveis, reforçando a noção de federalismo. O princípio
da subsidiariedade remete à questão da repartição de competências, disposta expressamente
no texto constitucional, ao reportar-se ao federalismo, que por sua vez, confere a base
organizativa apropriada à subsidiariedade. Portanto, tem-se que a Constituição Federal de
1988, prevê a descentralização do Estado, da qual emana a ideia de subsidiariedade
(FORTES, 2008, p. 103).
Apesar de sua conotação ampla, abrangendo noções de justiça, de regulação, de
finalidades e funções do Direito, mas empregado prioritariamente nas relações entre Estado e
grupos sociais, o princípio da subsidiariedade está estritamente vinculado com o equilíbrio
entre o poder central e o poder local, e por consequência, com questões referentes à
descentralização, pois é incumbência do Estado transferir ou delegar à sociedade os poderes
que os cidadãos estão aptos a exercer. A ideia de subsidiariedade pode ser aplicada em
qualquer forma de exercício de autoridade, até mesmo nas mais simplórias, desde que estejam
presentes algumas condições antropológicas e filosóficas, a saber: a confiança na capacidade
dos atores sociais, a consciência de que a autoridade não detém o monopólio de competências,
a persecução pelo interesse geral, a autonomia e a iniciativa dos cidadãos. Outrossim,
conjetura-se que os atores sociais não sejam influenciados pelo totalitarismo ou infantilizados
pelo paternalismo estatal (BARACHO, 1996, p. 61).
Bidart Campos, citado por Baracho (1996, p. 47), refere que o princípio da
subsidiariedade trata-se de um princípio de justiça, de liberdade, de pluralismo e de
distribuição de competências, sendo que o Ente Estatal não pode tomar para si atribuições que
a iniciativa privada e grupos sociais podem assumir e resolver por si próprios, devendo apenas
realizar a tarefa de auxiliá-los e estimulá-los nessas empreitadas. Nas palavras do autor
argentino, o princípio da subsidiariedade apregoa que “é injusto e ilícito adjudicar a uma
sociedade maior o que é capaz de fazer, com eficácia, uma sociedade menor”.
Nesse sentido, Pelayo (apud BARACHO, 1996, p. 48) assegura que, em se tratando de
idênticos pressupostos de eficácia, deve-se preferenciar à população, visto que, se alguma
tarefa pode ser cumprida pelo cidadão ou por grupos sociais, bem como pelo Ente Estatal,
deve-se privilegiar aqueles. Deixar os cidadãos de agirem com seus próprios esforços,
transferindo para o Estado aquilo que possuíam condições de realizar, trata-se de um
verdadeiro comodismo e conformidade com um Estado paternalista. O Ente Estatal continua
responsável pelas suas funções essenciais e pela execução de tarefas de interesse geral, mas a
sociedade civil deve participar da viabilização dessas questões de caráter coletivo, por meio
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de suas próprias ações. É essa compreensão que separa a noção de Estado-providência de
Estado-subsidiário.
Denota-se que o princípio da subsidiariedade surge como alternativa ao liberalismo
clássico e ao socialismo centralizador, ao incitar o compartilhamento de competências entre
Estado, Sociedade e Administração Pública, apregoando a solidariedade, obstaculizando o
intervencionismo do Ente Estatal, especialmente em setores específicos da sociedade,
conferindo a cada comunidade o poder necessário para exercer as suas tarefas, desse modo,
equilibrando a liberdade ao proporcionar condições para o desenvolvimento de ações
associativas. O Estado por sua vez, continua a dirigir, vigiar, fiscalizar de forma própria e
direta as competências delegadas a outras esferas, subsidiando e suprindo aquilo que os
grupos sociais não conseguem concretizar (BARACHO, 1996, p. 48-49).
Assim, verifica-se a aplicabilidade do princípio da subsidiariedade na esfera local, no
instante em que o Estado delega ao município que, por sua vez, ainda pode delegar às
organizações da sociedade civil, competências que elas estão aptas para solucionar,
oferecendo uma resposta mais célere e eficiente às demandas locais. Trata-se da
municipalização de políticas públicas que, em razão da descentralização político-
administrativa, promove a tomada de decisões políticas, fornecendo o benefício de serviços
públicos no campo de atuação do município, sem, contudo, obstaculizar que os demais entes
federativos e a própria sociedade civil organizada participem nesse processo (FORTES, 2008,
p. 104).
Nesse viés, as iniciativas do poder local são capazes de ampliar significativamente as
ações no campo das políticas sociais, promovendo programas voltados ao desenvolvimento da
região, com projetos integrados e dirigidos a um público determinado, de modo que é possível
focalizar uma área de intervenção ou um segmento da população, a fim de formular políticas
integrais, vencendo problemas como o da setorialização e da fragmentação institucional
(FARAH, 2001, p. 15).
Demonstrações dessas iniciativas podem ser observados na área da educação, em que
a participação de outros atores sociais, como, conselhos municipais, conselhos nas escolas,
articulam-se à busca de uma maior autonomia à escola, visando garantir eficiência ao sistema
educacional. Já, no que se refere à área da saúde, a descentralização tem como contrapartida o
envolvimento dos cidadãos da comunidade, o que se dá por meio de Conselhos, que gerem
recursos e definem prioridades, como forma de garantir maior equidade e efetividade ao
sistema, ao mesmo tempo em que se introduz controle sobre a ação do setor público estatal. A
área de habitação também permite o envolvimento organizado da comunidade local, de modo
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que a participação dos próprios usuários no processo construtivo tem o condão de viabilizar a
redução de custos e o controle do uso dos recursos disponíveis, evitando, então, os desvios de
recursos públicos (FARAH, 2001, p. 24-25).
Por conseguinte, o Estado, enquanto fomentador e responsável pela concretização de
políticas públicas, precisa compreender a importância de processos sinérgicos entre as
diferentes esferas de poder. Nesse sentido, Kliksberg (1997, p. 54) afirma que o Estado se
mostra inteligente quando incentiva e favorece no espaço local o desenvolvimento de políticas
públicas em parceria com a família, a escola e a comunidade.
Descentralizar competências, permitindo com que decisões sejam tomadas em âmbito
local de forma articulada entre comunidade e Estado, é uma medida que favorece em grande
proporção à população, que, ao participar da resolução de suas demandas consegue supri-las
com mais eficiência e de maneira mais igualitária. É no nível local que se consegue visualizar
com precisão as principais ações distributivas necessárias à coletividade. Já as propostas
globais dificilmente funcionam, tendo em vista que, comumente, deparam-se com interesses
dominantes organizados e complexidades políticas que comprometem a realização dos
projetos. Outrossim, o município permite uma democratização das decisões, uma vez que o
cidadão, em face de sua proximidade com o poder institucional local, pode intervir em
assuntos relativos à comunidade, dos quais possui conhecimento direto, sem a interferência de
outras estruturas políticas. Assim, é possível que o município atue com mais transparência e
agilidade (DOWBOR, 1999, p. 35-36).
Dowbor (1999, p. 86) menciona que além da regulação empresarial e da regulação
governamental existe um processo crescente na base da sociedade, a partir do local em que as
pessoas vivem. Trata-se de um desenvolvimento alternativo, centrado nas necessidades dos
indivíduos e no seu ambiente, mais do que na produção e nos lucros, sendo que para viabilizá-
lo é preciso articulação da regulação local com o poder do Estado. Nesse aspecto, notória é a
conclusão de Perius (2001, p. 274), a seguir:
É no Município que o homem nasce, vive e morre. Recebe os primeiros serviços da saúde, da educação. É no município que somos cidadãos, expressamos a nossa cidadania, exercemos nossos direitos mais elementares e cumprimos nossos deveres mais essenciais. Chegou a hora, portanto, de mudar, começando a definir um novo Brasil a partir da célula básica, que é o município. Com mais recursos, com independência administrativa, alcançar-se-á uma democracia mais participativa, soluções mais rápidas e mais adequadas aos interesses dos cidadãos, e por certo haverá menos burocracia e mais controle direto sobre as ações administrativas do Poder Executivo e maior participação no Poder Legislativo, pois prefeitos e vereadores vivem mais junto à população, sentem de perto os problemas de seus habitantes e convivem com sua cultura e sua história.
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Como visto, é no espaço local que há mais contato do cidadão com a Administração
Pública, possibilitando uma maior interlocução entre ambos. Em que pese à globalização dos
meios de comunicação expandir-se cada vez mais, em um país com a dimensão do Brasil, se
torna difícil a comunicação eficaz entre a comunidade local e o poder central da federação. É
no município que os indivíduos e o Estado encontram o espaço ideal para a sua aproximação
e, a partir de então, aparece a possibilidades de interação e discussão sobre políticas públicas e
questões expressivas para a comunidade. Logo, o município constitui um espaço de
enfrentamento de demandas sociais e compartilhamento das decisões públicas, sendo o lugar
mais acertado para se iniciar as mudanças almejadas socialmente.
Todavia, de nada adianta conceder maior poder de autonomia à esfera local,
descentralizando competências ao município mediante a aplicação do princípio da
subsidiariedade, se os atores sociais não estiverem preparados e dispostos a participar da vida
pública e exercer a razão comunicativa, por meio de deliberações conscientes acerca de
questões essenciais à comunidade. Porém, a criação desse espaço dialógico está estritamente
condicionado ao grau de conexão entre os atores comunitários e a sua capacidade em atuar
cooperativamente. Assim, é fundamental que as comunidades sejam ressignificadas, e isso
somente acontecerá mediante o fortalecimento do capital social.
3 O CAPITAL SOCIAL ESTABELECENDO OS PRESSUPOSTOS DE UMA
COMUNIDADE CÍVICA
Para envolver a cidadania no enfrentamento de conflitos sociais, não basta conceder
autonomia à esfera local, é preciso, sobretudo, o desenvolvimento de cooperação voluntária, o
que está, indubitavelmente, atrelado ao reconhecimento e fortalecimento do capital social. O
capital social, por sua vez, é um termo que vem sendo empregado pela literatura de forma
crescente, apresentando diversas conceituações e enfoques teóricos.
No plano internacional há duas vertentes consagradas sobre sua definição. A primeira
delas entende o capital social como um recurso que os indivíduos dispõem para acessarem
outros recursos socialmente valorizados em razão das relações estabelecidas com o outro.
Infere-se que esse recurso manifesta-se na forma de informações, apoios, conhecimentos, de
modo que configura capital pelo fato de viabilizar ao indivíduo ou às comunidades acessarem
outros meios de capital que melhoram a sua condição humana, como, por exemplo, cargos,
riquezas, emprego, posições sociais elevadas; e é social pelo fato de o seu acesso ocorrer
somente dentro de uma rede de relações (SCHMIDT, 2006, p. 1760).
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Já a segunda vertente considera o capital social como sendo as diversas formas de
interação entre os membros de uma comunidade - sejam elas formais ou informais - assim
como, os fatores psicossociais relacionados, ou seja, os sentimentos de confiança e
reciprocidade. Nesse diapasão, o associativismo e a vida cívica aparecem como elementos
propulsores do desenvolvimento econômico, da eficiência institucional e, mormente, da
resolução de problemas sociais (SCHMIDT, 2006, p. 1760). Corrobora-se que para o presente
estudo, essa vertente que preza pelo associativismo horizontal é a mais adequada, embora não
se desconsidere a primeira.
O capital social não se trata de um termo recente, tendo em vista que a sua primeira
utilização deu-se em 1916 pelo professor Lyda Johnson Hanifan, inspetor estatal das escolas
rurais da Virgínia, que escreveu um artigo sustentando a importância da participação
comunitária para o sucesso das escolas. Para Hanifan o capital social configurava uma espécie
de cooperativismo, em que a tendência dos indivíduos em relacionarem-se uns com os outros,
mediante condutas positivas, estabelecia uma rede de interrelações que beneficiava toda a
comunidade (HERMANY, 2010, p. 43).
O sociólogo James Coleman, a partir das contribuições de Hanifan, introduziu a
expressão capital social de maneira definitiva nos projetos intelectuais da década de 1980,
empregando-a para caracterizar a capacidade de relacionamento do indivíduo e sua rede de
contatos sociais, cujo fundamento encontra-se nas expectativas de reciprocidade e
comportamentos confiáveis, que em âmbito coletivo melhoram a eficiência individual. Assim,
o capital social atuaria na manutenção da coesão social, ao promover o respeito às normas e
incentivar negociações em circunstâncias conflituosas, de modo a prevalecer a cooperação em
detrimento da competição, desencadeando com isso, uma sociedade democrática edificada em
associações espontâneas (PORTO, 2008, p. 137).
Mas, o tema referente ao capital social ganhou notória evidência a partir dos estudos
realizados por Putnam, em meados do ano de 1993, quando analisou as disparidades no
desenvolvimento das regiões norte e sul da Itália, a partir do processo de descentralização da
Administração Pública do País, que transferiu o enfrentamento dos problemas sociais para os
governos regionais e locais. Dessa forma, “durante vinte anos, analistas acompanharam o
processo de implantação e os resultados do governo descentralizado na Itália -
descentralização essa que implicou a criação de vinte regiões administrativas autônomas”
(ARAÚJO, 2003, p. 13).
As pesquisas de Putnam sobre a Itália demonstraram que o capital social trata-se de
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uma ferramenta determinante para o desenvolvimento econômico e social da democracia.1
Nessa perspectiva, para o autor, o capital social manifesta-se na confiança existente entre os
indivíduos, no seu grau de associativismo e no respeito às normas relativas ao comportamento
cívico, como, por exemplo, o pagamento de impostos, os cuidados destinados aos espaços
públicos e aos bens coletivos (PUTNAM, 2000, p. 180).
Assim, enquanto o capital físico se refere a objetos físicos, e o capital humano ao
produto de ações individuais em busca de aprendizado e aperfeiçoamento, tais como saúde e
educação, o capital social guarda relação com os vínculos entre os indivíduos,
correspondendo aos aspectos do ambiente social, como o senso de confiança, a reciprocidade,
as redes sociais e o associativismo, capazes de favorecer a cooperação e a solidariedade,
aumentando o desenvolvimento social e, assim, contribuindo para a construção da cidadania e
da democracia (SCHMIDT, 2006, p. 1757).
O capital social apresenta variadas tipologias, sendo que as principais apresentadas
pela literatura classificam-se em: a) capital social positivo: formado por laços sociais que
permitem ações cooperativas voltadas a interesses sociais comuns; b) capital social negativo:
próprio de grupos cujos interesses colidem com àqueles defendidos pelo grupo social, são
exemplos a Máfia, a Ku Klux Klan e as formas extremas de corporativismo; c) capital social
bonding, de união: vislumbrado em interações sociais estreitas, onde é comum o contato
pessoal, como por exemplo, nos casos de parentesco, vizinhança, amizade; d) capital social
bridging, de vinculação: existente em relações sociais medianamente estreitas, como acontece
entre colegas de trabalho e membros de um clube ou associação; e) capital social linking, de
conexão: visível em relações assimétricas, onde os contatos são ínfimos e a distância é
considerável entre as pessoas, é o que acontece entre empregador-empregado e governante-
cidadão; f) capital social comunitário: ocorre nas relações específicas de uma comunidade,
isto é, envolve ações coordenadas com vistas ao bem comum, assim como, atividades
autogovernadas e com o sentido de identidade (SCHMIDT, 2006, p. 1761-1762).
Do exposto, infere-se que o capital social fundamental para interferir nas demandas
sociais e também o mais difícil de instituir, é o bridging, presente nas relações de indivíduos
1 Após esse período, Putnam verificou que o Norte da Itália havia melhor aproveitado a descentralização efetivada, alcançado um desenvolvimento muito superior que o do Sul, embora essa região também tivesse conquistado avanços expressivos. Diante desses dados, o autor começou a investigar as causas de tamanhas diferenças no desempenho institucional dessas regiões. Analisando a história, Putnam notou que enquanto no norte predominou repúblicas comunais, que oportunizavam o envolvimento do cidadão nas questões públicas, no sul prevaleceu uma sólida monarquia, responsável em instaurar uma cultura apática e indiferente à vida pública, cujo dever cívico foi tolhido. Assim, além de Putnam questionar o desempenho institucional, avaliou igualmente a qualidade da democracia a partir da qualidade de seus cidadãos e, associando esses dois elementos, analisou a valorização da cultura cívica, a cultura política e as tradições existentes, chegando ao conceito de comunidade cívica.
32
não tão próximos. É justamente com a expansão dos vínculos sociais frágeis e eventuais entre
grupos heterogêneos que se encontram as condições necessárias para fortalecer o poder local
e, com isso, permitir o exercício democrático da cidadania.
Em que pese à existência da desigualdade e da exclusão social, o capital social tem o
condão de atenuar essas consequências degradantes, pois fortalece as relações comunitárias,
aproximando indivíduos de diferentes classes ao desenvolver o sentimento de pertencimento
ao local em que convivem. A comunidade é levada a cooperar para o bem comum, já que
todos os membros comunitários são valorizados por pertencerem a uma mesma rede social.
As associações horizontais tornam à vida humana mais rica e produtiva, e até mesmo os
indivíduos que mais sofrem com a exclusão, pelo fato de possuírem poucos vínculos, acabam
sendo beneficiados por viverem em uma comunidade que cultiva o capital social.
É na interação com o grupo que se encontram as ferramentas para multiplicar as forças
individuais, a partir da organização. Dessa forma, expande-se o campo de luta e um
contingente cada vez maior de pessoas toma consciência do sentido e do valor de uma
iniciativa, rompendo com a alienação em que estavam imersos (SANTOS, 1998, p. 78).
Outrossim, “ter a consciência de que não estamos sozinhos e de que as nossas aspirações
pessoais são compartilhadas por outros pode trazer um sentimento de segurança” (BAUMAN,
2003, p. 60). Nessa perspectiva, propícias são as palavras de Bauman (2003, p. 134):
Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisará sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos.
Do suscitado, percebe-se que há um movimento na base da sociedade que propugna a
construção de uma comunidade formada pelo compartilhamento de princípios e objetivos
comuns, de modo que possa valorizar e reconhecer às diferenças. Essas relações em rede são
fontes geradoras de capital social, e, quanto mais sólidas e frequentes forem essas interações,
maior grau de capital social será desenvolvido e reproduzido, sinalizando uma maior
capacidade dos indivíduos em atuar cooperativamente no enfrentando de conflitos em âmbito
local e, dessa forma, resgatando o sentido essencial de comunidade e, por conseguinte,
estabelecendo os pressupostos de uma comunidade cívica (FRANCO, 2002, p. 66)
O modelo de comunidade cívica idealizada por Putnam é caracterizada “por cidadãos
atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura
social firmada na confiança e na colaboração” (PUTNAM, 2000, p. 61). Dessa maneira, uma
33
comunidade cívica tem por fundamento a valorização da corresponsabilidade, da colaboração
e do altruísmo, enquanto elementos necessários e aptos para estabelecer redes integrativas
entre os cidadãos. Na comunidade cívica a reciprocidade e os laços comunitários imperam
sobre o capitalismo, o corporativismo e os jogos de interesses políticos. Para Putnam (2000, p.
101-102), uma comunidade cívica se caracteriza, em primeiro plano, pela participação dos
indivíduos nos negócios públicos, tendo em vista que, “os cidadãos buscam o que Tocqueville
chamava de ‘interesse próprio corretamente entendido’, isto é, o interesse próprio definido no
contexto das necessidades públicas gerais, o interesse próprio que é sensível aos interesses
dos outros”.
A comunidade cívica parte do pressuposto da cidadania, enquanto exercício igualitário
de direitos e deveres pelos indivíduos. O associativismo que move as comunidades cívicas,
torna as relações horizontais edificadas na reciprocidade e na cooperação, em detrimento de
relações verticais consubstanciadas em autoritarismo e dependência. Uma comunidade será
mais cívica e mais política, no momento em que se aproximar do ideal de igualdade política, e
propiciar aos indivíduos a participação nos negócios públicos através de regras de
reciprocidade. Logo, as lideranças comunitárias devem ser responsáveis pelos seus
concidadãos (PUTNAM, 2000, p. 102).
Com efeito, é no espaço local onde os cidadãos conseguem melhor conviver em
comunidade e exercitar os pressupostos de uma comunidade cívica, sendo nesse ambiente
delimitado que acontece um processo mais consciente de comunicação, capaz de refletir as
novas necessidades, demandas, percepções sociais, cujo processamento se faz através de uma
conversa mútua, de um dar e receber coletivo e não no mero interesse ou desejo subjetivo. A
proximidade dos cidadãos tem o condão de edificar uma identidade coletiva, garantindo o
fortalecimento do grupo e a aproximação de seus membros. Com isso, as iniciativas da
comunidade ganham maior vulto e significação, permitindo com que todos os interessados,
possam participar da análise e da execução de políticas eficazes.
Entretanto, instituir ou fortalecer capital social visando a ressignificação das
comunidades para comunidades cívicas, é uma tarefa complexa, tendo em vista que inexiste
meios de criá-lo diretamente e de mensurá-lo precisamente. Trata-se de uma consequência de
inúmeros fatores que integram as ações coletivas, as redes sociais e as iniciativas comunitárias
(SCHMIDT, 2006, p. 1775). Não basta corroborar que para desenvolver capital social é
preciso cooperação, afinal, a questão central que se apresenta em relação a sua criação gira em
torna de saber como mover os homens em direção a atitudes cooperadas (RODRIGUES,
2005, p. 2695). Nesse sentido, é pertinente afirmar que o desenvolvimento de capital social
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ultrapassa os limites da esfera jurídica, encontrando-se em um espaço marcantemente
axiológico. Por isso, o fortalecimento do capital social visando à construção de comunidades
cívicas, preparadas para o exercício da cidadania ativa, está condicionado à (re)inserção do
princípio da solidariedade no contexto moderno.
Do exposto, percebe-se que para se falar em reinserção do princípio da solidariedade
na modernidade como forma de fortalecimento do capital social, é preciso, antes de tudo, uma
mudança cultural, ou seja, o redimensionamento dos comportamentos contemporâneos, no
sentido transformar o indivíduo em verdadeiro cidadão, membro de uma comunidade cívica.
A partir dos pressupostos de uma cidadania solidária é possível a emancipação dos atores
locais para o enfrentamento de seus conflitos.
4 A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA SOLIDÁRIA A PARTIR DO
EMPONDERAMENTO DOS ATORES DA COMUNIDADE LOCAL
Neste início de século assiste-se, em nível mundial, um crescente movimento em torno
de pesquisas sobre o tema da cidadania, na tentativa de elucidar essa abordagem conceitual
que vem sendo apresentada sobre diversas perspectivas. A cidadania, enquanto direito a ter
direitos, vincula-se à ideia de direitos individuais e de sentimento de pertença à determinada
comunidade. Entretanto, não há uma definição universal acerca do conceito de cidadania, já
que esse termo não se trata apenas de uma condição jurídica com uma significação rígida, mas
configura uma terminologia em aberto, que vem se desenvolvendo e aderindo novos
elementos ao seu conceito e à sua prática, em consonância às necessidades e especificidades
de determinado período político e social (ZANATTA, 2009, p. 127).
Mas foi Thomas H. Marshall, o responsável em elaborar a concepção clássica de
cidadania, quando propôs, em 1949, a primeira teoria sociológica de cidadania, nominando os
direitos e deveres intrínsecos aos cidadãos. Levando em consideração o contexto britânico da
época, mormente a oposição de interesses entre capitalismo e igualdade, Marshall
desenvolveu uma tipologia dos direitos de cidadania, a saber: os direitos civis, alcançados no
século XVIII e os direitos políticos, conquistados no século XIX, ambos denominados de
direitos de primeira geração; e os direitos sociais, obtidos no século XX, conhecidos como
direitos de segunda geração (VIEIRA, 2001, p. 33).
Para Nabais (2205, p. 119), a cidadania pode ser traduzida como a qualidade dos
indivíduos que, como membros de um Estado-nação, auferem a condição de titulares ou
destinatários de certos direitos e deveres universais e, dessa forma, possuem um determinado
35
nível de igualdade. É possível encontrar uma noção de cidadania a partir de três elementos
constitutivos, a saber: 1) a titularidade de um determinado número de direitos e deveres em
uma sociedade específica; 2) a pertença a uma comunidade política; 3) a possibilidade de
contribuir para a vida pública dessa comunidade mediante o exercício da participação.
No Brasil, a cidadania está associada ao processo de desenvolvimento dos direitos
humanos, cuja pretensão é garantir o exercício de direitos fundamentais, como a liberdade a
dignidade humana por meio do aperfeiçoamento das instituições jurídicas e políticas. Dessa
maneira, os contornos da cidadania ainda estão sendo delineados. Muitos avanços
significativos já foram conquistados, especialmente na segunda metade do século XX,
marcada por transformações sociopolíticas, que desencadearam o processo de transição
democrática, o retorno de eleições diretas e, sobretudo, a promulgação da Constituição
Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã, em face de seu cunho denotamente
humanista (STURZA, 2010, p. 70-71).
Nesse panorama, a Constituição de 1988, declara em seu artigo 1º, inciso II, a
cidadania como princípio fundamental da República Federativa brasileira. Porém, percebe-se
que a concepção de cidadania evidenciada no Texto Constitucional, do mesmo modo como
nas Constituições nacionais anteriores, é apresentada de forma reducionista, em desarmonia
com o seu sentido essencial, restringindo o seu conteúdo à nacionalidade, à naturalidade e aos
direitos políticos, ou seja, correspondendo a uma ideia limitada do direito de votar e ser
votado (COSTA, 2007, p. 26).
Uma noção contemporânea de cidadania deve compreender necessariamente, além do
aspecto jurídico, um aspecto político-social, que evidencie o elemento da solidariedade. Pois
além de referir-se à condição do indivíduo que, enquanto membro de um Estado, encontra-se
no gozo dos direitos que lhe permitem intervir nos negócios públicos, participando direita ou
indiretamente na formação e na administração do governo; a cidadania importa igualmente
deveres, tendo em vista que a natureza associativa do ser humano e a necessidade de interação
com o outro para enfrentar as dificuldades e satisfazer interesses, tornam a participação e o
envolvimento dos cidadãos imprescindíveis à vida social. Afinal, ser cidadão não significa
apenas ter consciência de seus direitos, mas requer, principalmente, a consciência de seus
deveres perante o Estado e à sociedade, demonstrando, assim, a importância do exercício da
solidariedade (STURZA, 2010, p. 72-73).
Com efeito, é oportuno mencionar que desde o estabelecimento do Estado
constitucional, se está perante uma terceira fase de afirmação da cidadania. A primeira delas
corresponde ao Estado Liberal, com uma cidadania passiva, orientada para a proteção dos
36
direitos privados e da família, encarando a comunidade política como algo externo à vida
comum, de modo que a criação e a execução do direito incumbia a políticos profissionais. Na
segunda fase, denominada de Estado democrático, surge a ideia de cidadania ativa ou
participativa, consolidada no sufrágio universal, em que o cidadão participa por meio do voto
na vida política da comunidade. Já a terceira fase, conhecida como cidadania solidária ou
cidadania responsavelmente solidária, o cidadão assume um novo papel social, tomando
consciência de que a sua participação através do voto e do controle dos poderes, já não basta,
sendo fundamental a assunção de encargos, responsabilidades e deveres públicos, que não
podem mais ser encarados como tarefa que o Estado desempenha exclusivamente segundo um
sistema de caráter redistributivo, a partir das contribuições econômicas dos cidadãos
(NABAIS, 2005, p. 124-125).
Como visto, a complexidade social não admite que o exercício da cidadania se resuma
apenas ao voto, esporádico, ocasional, individual e obrigatório. Mister é que o indivíduo tome
consciência de sua condição de autêntico cidadão, usuário, contribuinte, consorciado e
responsável direto pela consecução de atividades nas esferas social, política e administrativa.
Nesse ímpeto, insurge-se a imperiosidade de uma mudança na forma de pensar e agir a fim de
que os atores sociais possam tomar consciência da importância de sua participação e de sua
influência nas decisões relativas às condições concretas de vida da comunidade local.
Entretanto, as atitudes apenas modificam-se a partir de intensas e frequentes influências
sociais, capazes de promover uma transformação interior. A mudança atitudinal na esfera
individual corresponde à ressocialização e na seara coletiva à transformação cultural. Tal
mudança não vem de fora do sujeito, tendo em vista que necessita ser incorporada por ele
(SCHMIDT, 2006, p. 1774).
O emponderamento configura uma transformação comportamental efetiva de grupos
sociais desfavorecidos, os quais se tornam capacitados para a articulação de interesses, para a
participação comunitária, ação que lhes possibilita um maior acesso e controle dos recursos
disponíveis, com o intuito de compartilharem uma vida autorresponsável, interagindo
ativamente nos processos políticos decisórios. No seu alcance mais amplo, o emponderamento
proporciona condições psicoculturais para que a classe marginalizada desfrute dos direitos de
cidadania (HERMANY, 2010, p. 53)
A questão do emponderamento surgiu por volta do século XVI com a Reforma
Protestante. Nesse período, o sentimento popular não condizia com o autoritarismo da Igreja
Católica e o seu caráter político e religioso destoado das necessidades de justiça social, o que
por sua vez, fez eclodir um comportamento mais proativo dos indivíduos. Porém, foi com os
37
movimentos sociais liderados pelos Estados Unidos, no século XX, que o tema do
emponderamento ganhou notoriedade. Na década de 1990, sob a influência dos grupos de
direitos humanos e cidadania, a expressão empowerment denotou uma expressiva busca por
ações comunitárias e cidadãs perante às demandas sociais. Despertou-se o sentimento de que
integradas, as pessoas poderiam alcançar com maior êxito os objetivos da comunidade,
ganhando mais força frente aos poderes institucionais e às causas opressoras (HERMANY,
2010, p. 54).
Para Foucault, mencionado por Baquero e Keil (2007, p. 214), emponderar-se é livrar-
se das formas de submissão, uma vez que o poder centralizador tende a preferir à indiferença
da população nas questões públicas, visando a docilização do indivíduo. Seguindo esse
raciocínio, para Paulo Freire, o emponderamento corresponde à consciência do cidadão que
passa a enxergar-se como parte de um processo, seja de aprendizagem ou político, de modo
que compreende a dimensão social em que suas ações se inserem, o que provocam e por quê
(FREIRE; SHOR, 1986, p. 131).
Ademais, o empoderamento configura uma estratégia nos processos de transformação
da sociedade. O seu objetivo principal é aperfeiçoar habilidades individuais e coletivas,
intencionando que os indivíduos resgatem ou adquiram o controle sobre suas próprias
condições de trabalho e de vida a partir da possibilidade de participação em ações públicas,
seja individualmente ou por meio de grupos sociais. Nessa senda, o empoderamento é viável
quando há uma atuação recíproca dos sujeitos, edificada no respeito, na tolerância e na
solidariedade, ou seja, só se poderá falar em emponderamento quando existir uma nova
consciência que valorize as formas de interrelação comunitária (JARA, 1999, p. 12).
A esse respeito, o emponderamento está intimamente ligado ao capital social, sendo
um importante catalisador que auxilia na construção da emancipação. Dessa forma, sustenta-
se que, em comunidades com maior grau de capital social, será possível o desenvolvimento do
emponderamento, cujo âmago está na efetivação de ideários locais em face dos poderes
instituídos. A partir da organização, do associativismo e do fortalecimento dos vínculos
interpessoais, as comunidades locais terão maiores condições de cumprir com o seu papel na
edificação de sua emancipação social (HERMANY, 2010, p. 54).
Daí, a importância de a comunidade descobrir a necessidade de se organizar, já que
para enfrentar com satisfatoriedade os problemas sociais que se apresentam, é imprescindível
à organização da cidadania, cuja iniciativa representa meio e fim. É meio porque a
organização se dá a partir do associativismo e é fim porque configura a realização da
democracia. Nesses termos, a democracia denota a participação de base, ou seja, o poder
38
controlado pela própria cidadania empoderada (DEMO, 2003, p. 92-93). Fortalecer o capital
social local é organizar os atores comunitários em direção ao exercício da cidadania solidária,
que pode ser vislumbrado mediante o planejamento e a efetivação de políticas públicas
relevantes.
A solidificação da capacidade de implementar políticas públicas em nível local,
promovendo ações solidárias e orientadas ao alcance coletivo, supõe mecanismos de
interlocução entre diversos atores sociais, além do fortalecimento de parcerias. Nesse intuito,
as comunidades locais assumem um papel de liderança e de coordenação, interagindo com
atores governamentais e não-governamentais, com o propósito de satisfazer interesses e
necessidades comuns entre os cidadãos (FARAH, 2001, p. 28). Logo, a provisão e a gestão
dos serviços ou das políticas públicas passam a ser compartilhadas pelos membros da
comunidade local, deixando de ser atribuição exclusiva do Estado.
Com efeito, a construção de espaços de articulação entre instituições governamentais e
comunidades, traduzidos em canais de participação dos cidadãos nas questões políticas e
sociais, representam a expansão da esfera pública local (COSTA, 2008, p. 84). Afinal, para se
garantir com eficácia o exercício de direitos fundamentais e consagrar políticas sociais
consideráveis, é preciso desenvolver formas inteligentes de colaboração entre os diversos
atores que constituem o tecido social. Privilegiar o paradigma de colaboração em detrimento
ao paradigma da competição é o ideal a ser perseguido (DOWBOR, 2008, p. 131).
Assim, as orientações contemporâneas remetem para a articulação horizontal dos
atores sociais dentro do espaço local. Para tanto, o ponto de partida é a iniciativa e o
sentimento de apropriação das políticas, cujo ideário induz à participação dos cidadãos no
enfrentamento das questões sociais que lhe são pertinentes. A deliberação configura uma
maneira peculiar de participação política que demanda uma ação fundada no fortalecimento
dos vínculos sociais, promovendo uma mudança atitudinal dos cidadãos, que passam a
considerar o nós e o pensar e agir coletivo, de modo que se torna possível uma transformação
de preferências, haja vista que os indivíduos podem mudar suas percepções e ideias
preconcebidas, a partir do momento em que valorizam as manifestações do nós, em
detrimento das ideias do eu e do outro. Esse processo deliberativo une os atores em torno de
objetivos equivalentes e princípios comuns, intensificando o sentido de comunidade
(PEREIRA, 2007, p. 430).
Nessa perspectiva, Amartya Sen reconhece a responsabilidade que os indivíduos
possuem para desenvolver e mudar o mundo em que vivem. Afirma que pelo fato de
conviverem juntas, não é cabível às pessoas omitirem-se em relação aos acontecimentos
39
extraordinários que acontecem ao seu redor, uma vez que, eles são essencialmente, problemas
seus, independentemente de serem ou não de mais alguém. Para o autor, o senso de
responsabilidade não deve relacionar-se somente aos sofrimentos que o indivíduo tenha dado
causa, mas, sobretudo, precisa manifestar-se perante as dificuldades alheias em que existam
condições de auxiliar a remediar (SEN, 2000, p. 320-322).
O que se pretende alcançar com a cidadania solidária é uma Governança, ou seja,
ações que correspondam à capacidade de gestão na implementação das políticas públicas em
nível local e na realização de fins coletivos, proporcionando procedimentos para compreender
a dimensão participativa e heterogênea da comunidade. Dessa forma, o Estado se torna mais
flexível, apto a descentralizar funções e a transferir responsabilidades, expandindo o horizonte
de participação do Município, sem que isso implique o abandono de controle e supervisão. O
resgate da legitimidade do Ente Estatal deve passar, a priori, pelo aperfeiçoamento dos
mecanismos de governabilidade e de democratização de suas instituições (VIEIRA, 2001, p.
85-86).
E é justamente a participação dos atores locais na implementação de políticas públicas
que corresponde ao mecanismo mais nobre do processo de emponderamento social, tornando
os cidadãos, sujeitos de seu futuro. Porém, não existe um modelo a ser seguido para a
construção da participação comunitária. O envolvimento dos cidadãos na vida pública será
diferente conforme o grau de capital social existente na esfera local e a predisposição dos
cidadãos à solidariedade. Mas, o que determinará de forma mais acentuada a participação
comunitária e, por conseguinte, a possibilidade de os atores locais consolidarem políticas
sociais, será o equilíbrio político local e, sobretudo, o grau de conscientização e desalienação
atingido pela população (DOWBOR, 1999, p. 73).
Com a reinserção da solidariedade no espaço local, é possível fortalecer o capital
social e efetivar o princípio da subsidiariedade, tendo em vista a possibilidade de os cidadãos
buscarem de forma cooperativa transformar o seu entorno, mediante trocas de experiências e
vivências, constituindo um pano de fundo comum, edificado nos pressupostos do
emponderamento, de modo que a sociedade participe dos processos políticos decisórios,
proferindo a sua opinião e a sua visão. Não se espera, por sua vez, que o espaço local seja
concebido como um lugar de compreensão mútua, livre de problemas, onde as discussões são
amigáveis e os interesses voltados em prol da coletividade. Pelo contrário, mesmo em uma
comunidade que impere a solidariedade, os atores sociais estão vulneráveis ao conflito, mas a
partir do exercício de uma cidadania solidária há grandes chances de que os dissensos sejam
resolvidos de forma democrática, cooperativa e pacífica.
40
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, percebe-se que o direito ao voto, à nacionalidade ou à prestação
obrigatória de serviço militar ou eleitoral, já não são mais suficientes para traduzir a
cidadania, visto que em face das transformações societais, especialmente, diante da
globalização, da diversidade cultural, da crise de legitimidade do Estado contemporâneo e das
novas formas de comunicação no exercício dos direitos de participação, é necessária a
ressignificação de seu conceito, com a ampliação dos bens a serem tutelados e a reavaliação
do papel do indivíduo perante a sua comunidade.
A Constituição Federal de 1988 conferiu aos Municípios a natureza de ente federado,
detentor de competências peculiares e autônomas, bem como, a responsabilidade em atuar
conforme o interesse local. Dessa maneira, expandiu-se às possibilidades de exercício dos
direitos de cidadania a partir da participação ativa dos cidadãos na gestão pública local. Nesse
contexto, o princípio da subsidiariedade conferiu maior poder de autonomia política às
organizações estatais menores, levando em conta a sua proximidade com às comunidades.
No entanto, reconhecer o espaço local como lócus ideal para o exercício da cidadania,
implica necessariamente estabelecer condições para potencializar as formas de participação
democrática, o que está estritamente condicionado ao grau de conexão entre os atores
comunitários e a sua predisposição em agir cooperativamente, o que, por sua vez, exige, em
grande medida, o reconhecimento e o fortalecimento do capital social. Nesses termos, o
capital social fortalece as relações comunitárias, aproximando indivíduos de diferentes classes
ao desenvolver o sentimento de pertencimento ao local em que convivem. Dessa maneira,
diante de situações conflituosas, prevalece o associativismo em detrimento da competição.
A esse propósito, cumpre afirmar que o desenvolvimento de capital social ultrapassa
os limites da esfera jurídica, encontrando-se em um campo essencialmente axiológico, uma
vez que está relacionado à (re)inserção do princípio da solidariedade no contexto atual. Dessa
forma, a solidariedade configura um meio expressivo para a construção de uma cidadania
solidária, edificada na confiança, na cooperatividade e na reciprocidade, voltada à realização
de interesses coletivos e, por conseguinte, da justiça e da inclusão social.
Com efeito, a cidadania solidária persegue o bem comum, preza pela democracia ao
invés da arbitrariedade, enxerga o outro com respeito, pressupondo que se têm ao mesmo
tempo o direito de ser tratado e de tratar os demais como fim e não como meio. A
proximidade entre os cidadãos permite o fortalecimento do capital social e a efetivação do
princípio da subsidiariedade, pois ao se compartilhar da mesma história, dos mesmos
41
interesses e dos mesmos problemas, articulando-se por meio do sentimento de pertença ao
grupo e de cooperação, ampliam-se os laços existentes entre os cidadãos.
No instante em que os atores sociais deixarem-se levar pelo princípio da solidariedade,
construindo uma sociedade fundada em novos valores e ideais, sobretudo, no que diz respeito
à busca pelo interesse geral, deixando para trás os interesses meramente subjetivos
sustentados pelo capitalismo e pelo corporativismo, será possível uma concreta participação
popular, traduzida em uma cidadania solidária.
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