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XIV Encontro Nacional da ABET – 2015 – Campinas
GT 9 – EDUCAÇÃO, Qualificação e Trabalho
O conceito de qualificação profissional no Pronatec: aproximações e
divergências com Friedmann e Naville
Autora: Maria do Amparo Cardoso Domingues
Co-autor: Domingos Leite Lima Filho
O CONCEITO DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL NO PRONATEC:
APROXIMAÇÕES E DIVERGÊNCIAS COM FRIEDMANN E NAVILLE
RESUMO
Em virtude dos processos de globalização da economia, dos avanços tecnológicos, das
mudanças organizacionais e da consolidação do regime de acumulação flexível, um novo
perfil de trabalhador cujas características são marcadas pela polivalência e flexibilidade tem
sido exigido no processo produtivo, trazendo aos trabalhadores novos cenários de
empregabilidade. Nos últimos anos a questão da qualificação profissional tem estado em
evidência, sendo enaltecida nos discursos governamentais como a tábua de salvação para os
trabalhadores no sentido de inserir ou reinserir jovens e adultos no mundo do trabalho,
criando assim, novas demandas de formação e qualificação profissional. Esse trabalho visa
analisar a conceituação de qualificação profissional que está idealizada no Programa Nacional
de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e no que esse conceito se aproxima ou se
distancia do estudo sobre as questões da automação e qualificação, presentes na produção
teórica dos sociólogos do trabalho Friedmann e Naville, tendo como base as obras “Problemas
humanos del maquinismo industrial” e “¿Hacia el automatismo social?”. Conclui-se que o
conceito de qualificação presente nas diretrizes teóricas e conceituais do Pronatec, se
aproxima do modelo de competências e às exigências do setor produtivo e corporativo, na
oferta de cursos na sua maioria de curta duração, que tendem a oferecer formação
“precarizada” para postos de trabalho “precarizados”.
Palavras-chave: Qualificação profissional; Educação profissional; Formação de
Trabalhadores; Pronatec
1 INTRODUÇÃO
Em virtude dos processos de globalização da economia, dos avanços tecnológicos,
das mudanças organizacionais e da consolidação do regime de acumulação flexível, um novo
perfil de trabalhador cujas características são marcadas pela polivalência e flexibilidade tem
sido exigido no processo produtivo, trazendo aos trabalhadores novos cenários de
empregabilidade e também a constante ameaça de corte de vagas de emprego e de redução de
direitos trabalhistas, pela reconfiguração das formas de contrato e realização do trabalho
(terceirização, trabalho a tempo parcial, contratos temporários, etc.). Nos últimos anos a
questão da qualificação profissional tem estado em evidência, sendo muito enaltecida nos
discursos governamentais como a tábua de salvação para os trabalhadores no sentido de
inserir ou reinserir jovens e adultos no mundo do trabalho, criando assim, novas demandas de
formação e qualificação profissional. Nesse sentido, temos visto nas últimas décadas uma
série de políticas públicas voltadas para a criação de programas de formação e qualificação
profissional, cujo objetivo é o de qualificar massivamente os trabalhadores, na perspectiva de
adequar o processo educativo-produtivo geral e profissional às demandas de reconfiguração
do trabalho e do Estado orientado à acumulação do capital.
A história brasileira mostra que tanto a educação formal quanto os programas de
capacitação profissional estiveram sempre dissociados de um projeto nacional de
desenvolvimento. Como consequência, responderam sempre às demandas formuladas pelos
agentes econômicos, sem que houvesse a preocupação de incorporar a formação escolar para
possibilitar a continuação do processo educativo do trabalhador. Segundo Frigotto (2013)
“Essas políticas, sem a base do ensino médio, constituem um castelo de areia”. Segundo ele
“pavimenta-se esse castelo, mas continuaremos negando a efetiva cidadania política,
econômica, social e cultural à geração presente e futura de nossa juventude”.
No ano de 2011 foi lançado o Programa Nacional de Acesso ao Emprego e Ensino
Técnico (Pronatec), programa que nasceu com o objetivo de orientar uma nova política de
educação profissional no Brasil e segundo palavras da presidente Dilma Rousseff no discurso
de lançamento do mesmo a implantação se fez necessário porque “O sistema de capacitação
profissional brasileiro já não corresponde às necessidades do país e às dimensões de nossa
economia”. Com isso o Pronatec tornou-se a aposta do governo federal para fazer frente ao
tom desenvolvimentista adotado na área econômica, lançando como meta criar 8 milhões de
vagas para qualificação técnica e profissional de trabalhadores e de alunos do ensino médio
até o final de 2014.
Após três anos do seu lançamento o Pronatec está em processo de expansão com a
promessa de ampliar a oferta de qualificação para diferentes públicos, em diversas instituições
e redes de ensino. Enquanto o Ministério da Educação (MEC) argumenta que as ações do
Pronatec garantem a democratização do acesso à educação profissional, muitos afirmam que a
política proposta pelo governo reforça a ideia de formação profissional para o emprego, ao
custo de, muitas vezes, não garantir de fato uma educação de mais qualidade e completa às
populações mais vulneráveis do país.
A qualificação profissional compreendida como mediação entre educação e trabalho,
ao ser analisada pela perspectiva da sociologia do trabalho de Friedmann e Naville, encontra-
se diretamente relacionada às mudanças no mundo do trabalho no pós II Guerra.
Considerados os percussores da sociologia do trabalho da linha francesa, o debate desses
autores tem uma relação direta com a discussão sobre automação e qualificação, neste sentido
Tartuce (2002, p. 37) destaca que Friedmann foi considerado precursor da abordagem
“essencialista”/”substancialista” de qualificação profissional, ao passo que Naville foi
considerado o defensor de uma visão “relativista” da qualificação. Tartuce destaca a
necessidade de inserir a análise dos conceitos em Friedmann e Naville a partir do contexto
socioeconômico específico da França pós Guerra e observa que a obra de ambos é demarcada
especificamente por um olhar limitado a algumas questões:
Claro que, se os dois autores refletem sobre o moderno conceito de trabalho, isto é,
aquele que é exercido por homens, brancos, sindicalizados, diretamente na produção
do setor secundário da economia e que é organizado e regido pelos sistemas de
classificação descritos (e por isso mesmo, mais estável), o uso do termo qualificação
– seja em termos práticos, para classificação dos trabalhadores, seja em termos
teóricos, para discussão sobre o seu conceito e a sua evolução – também se refere e
tem por base essa categoria. Em outros termos, a construção da categoria
“qualificação” vai ser elaborada, como diz Hirata (1995), a partir de uma população
masculina considerada universal. (TARTUCE, 2002, p.38)
Importante destacar que a obra desses dois autores é produzida em um período de
crescimento econômico, em que determinadas questões não se evidenciam como em tempos
de crise do capital, como desemprego e arrocho salarial. Os referidos estudos realizados ainda
no período de vigência do modelo produtivo taylorista-fordista nos remetem a seguinte
questão: Que mudanças mais importantes ocorreram no conceito de “qualificação do
trabalhador”, desde a época dos estudos de Friedman e Naville até o atual estágio de modelo
produtivo flexível?
Esse trabalho pretende analisar o conceito de qualificação profissional que está
idealizada no Pronatec e no que esse conceito se aproxima ou se distancia do estudo sobre as
questões da automação e qualificação, presentes na produção teórica dos sociólogos do
trabalho Georges Friedman e Pierre Naville, tendo como base as obras “Problemas humanos
del maquinismo industrial”, de Friedmann e “¿Hacia el automatismo social?”, de Naville,
auxiliados pela análise de Tartuce (2002). Procura-se apreender o sentido e significado da
concepção de “qualificação” idealizada para nortear os rumos do Pronatec, problematizando
tal concepção, tendo em vista a revisão de literatura e o enfretamento da seguinte questão: As
transformações ocorridas no processo de qualificação para o mundo trabalho beneficiam os
interesses de qualificação profissional dos trabalhadores ou representam as demandas
empresariais face ao modelo produtivo atualmente em expansão?
Para tanto, são utilizados como referencial teórico além dos trabalhos de Georges
Friedmann, Pierre Naville, Gisela Tartuce, Marx, Gramsci, Helena Hirata, Lucília Machado,
Maria Ciavatta, Ricardo Antunes, Celso Ferretti, Silvia Maria Manfredi e documentos legais
do MEC e o do Pronatec. Com base nesse referencial buscamos suscitar uma reflexão sobre
questões, tais como: Qual o tipo de formação está sendo oferecida ao trabalhador no
Pronatec? E que tipo de trabalhador está sendo formando?
2 FORMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL
É ampla e não vem de hoje a discussão em torno da questão da qualificação
profissional e parece ser unanime também que essa discussão ressurgiu nos últimos anos com
bastante vigor, em virtude das transformações tecnológicas, políticas, econômicas e culturais
que atingem o mundo do trabalho, principalmente no contexto de flexibilização das relações
de trabalho e de desemprego. Segundo Tartuce o tema qualificação do trabalho assume um
papel de centralidade nos dias atuais:
“que a centralidade da qualificação passa para o domínio público: cotidianamente,
ela aparece nos discursos do governo, dos empresários, dos sindicatos, da mídia em
geral, como instrumento para a solução de problemas individuais, conquista ou
manutenção de uma posição no mercado de trabalho e sociais – aumento de
produtividade para as empresas e conseqüente desenvolvimento econômico e social
para os países” (TARTUCE, 2004).
Mas o que significa preparar para o trabalho em um mundo como este? Que
conhecimentos são necessários? Para que trabalho? São algumas indagações levantadas por
Ciavatta (2011) em uma pesquisa comparativa desenvolvida a partir da realidade econômico-
politica de três países México, Itália e Brasil. Segundo a autora a formação profissional é vista
como resposta estratégica, mas polêmica, aos problemas postos pela globalização econômica,
pela reestruturação produtiva, pela busca da qualidade e da competitividade, pelas
transformações do mundo do trabalho e pelo desemprego estrutural.
Segundo a autora os termos formação profissional ou técnico-profissional, educação
industrial ou técnico-industrial, qualificação, requalificação, capacitação ganham
complexidade e novos significados em consequência da nova realidade produtiva e
organizacional do trabalho e dos diversos discursos e das ideologias geradas sobre a questão
da formação no contexto das grandes transformações. Surgem “termos novos como
reconversão e educação profissional. Está em curso uma ressignificação dos processos de
formação dos trabalhadores no contexto das transformações produtivas...” (CIAVATTA,
2011, p.103)
O trabalho, o emprego e a formação profissional são percebidos por determinados
ângulos e visões, que constituem três perspectivas: o Estado, os empresários e os
trabalhadores. O Estado possui o papel de regulador da correlação de forças políticas e os
setores hegemônicos, ainda que tal papel esteja sofrendo uma minimização característica da
política econômica neoliberal, na qual o trabalhador fica à mercê dos impactos da
precarização do trabalho. Para os empresários, a formação de um novo perfil de trabalhador é
vista claramente como meio de aumentar a produtividade e de geração de riqueza, e, além
disso, eles têm o poder de decisão de configurar a produção da melhor maneira possível para
que tais objetivos se concretizem, independentemente da desumanização que tal fato possa
acarretar para a classe trabalhadora. E por fim, quanto aos trabalhadores e suas respectivas
necessidades de sobrevivência, as reais possibilidades educacionais, de aquisição de novos
conhecimentos e habilidades para a valorização de sua força de trabalho são mais obscuras.
(CIAVATTA, 2011).
Machado (1996) analisa criticamente que a maioria dos autores utiliza o termo
qualificação sem sua explicação téorico-conceitual e, muito frequentemente, ainda dentro de
uma visão taylorista-fordista da produção. O que segundo ela evidencia uma visão reificada e
essencialista, que não considera a historicidade dos processos. As noções de
qualificação/desqualificação e requalificação são tratadas dicotomicamente ou formalmente e
não dão conta das diferenciações internas aos processos produtivos.
Silva (2005) em sua tese de doutorado “A qualificação para o trabalho em Marx”,
afirma que Marx , em seus inúmeros trabalhos, não tratou diretamente do tema qualificação.
De acordo com a autora, para poder apreender qual seria o entendimento de Marx a respeito
de qualificação, foram necessárias análises minuciosas de suas obras para inferir que o seu
conceito de qualificação fora construído a partir da sua teoria do conhecimento. Na teoria de
Marx, “o modo como os seres humanos se qualificam coincide com o modo como eles
também produzem o conhecimento.” (SILVA, 2005, p. 8). A autora destaca que nos achados
de Marx:
a produção do conhecimento ocorre diante de condições determinadas. Não são os
indivíduos que criam tais condições, mas, ao contrário, comprometem-se nelas,
sendo, portanto, determinados por elas. Isso faz com que as suas vidas sejam
determinadas pelo modo como trabalham, ou seja, pelo modo como produzem a sua
existência. (SILVA, 2005, p. 12).
O interesse pela temática da qualificação surge com o aprofundamento da divisão do
trabalho no capitalismo, quando a fragmentação de tarefas daí decorrente passa a ser objeto de
várias áreas, entre elas a economia, com a visão otimista de Adam Smith e a sociologia, a
crítica pessimista de Karl Marx. Entretanto, se esta última ciência nasceu no século XIX
refletindo sobre vários aspectos da categoria "trabalho", é apenas no século XX, com o
advento da chamada "administração científica do trabalho", que a questão da qualificação vai
ser analisada de maneira mais sistemática. (TARTUCE, 2004).
Na década de 60, houve uma vasta produção acadêmica relativa ao tema face aos
sinais de uma nova revolução tecnológica. Como lembra Castioni (2010, p. 10), o debate
sobre a qualificação remonta aos clássicos da economia, mas, em Marx, a qualificação
oferecida pelo Estado teria como papel essencialmente de “evitar a degeneração completa”
dos trabalhadores. Ela também esteve na base da preocupação dos autores contemporâneos,
inclusive daqueles precursores da Sociologia do Trabalho como Friedmann, Naville e
estudiosos do trabalho de modo geral, visto que a apropriação do conhecimento e dos saberes
dos trabalhadores pelo capital sempre foram uma das condições basais do sistema de
produção de mercadorias no capitalismo.
Nesse cenário de mudanças a situação dos trabalhadores, a estruturação do modelo
de produção flexível trouxe uma série de dificuldades e obstáculos à classe trabalhadora, uma
vez que esse novo modelo implicou diretamente na expansão do desemprego estrutural e na
precarização do trabalho. Segundo Antunes ocorreu uma drástica redução de “emprego por
tempo completo” e o aumento dos empregos “em tempo parcial”, ou seja, “desqualificou-se o
trabalho em vários ramos ou atividades” [...] (ANTUNES, 1997, p.52).
Antunes falando dos novos desafios na sociedade capitalista moderna afirma que a
classe trabalhadora, ao invés de estar em vias de desaparecer, se complexificou, fragmentou e
heterogeneizou ainda mais. Essa classe encontra-se dividida entre
“qualificados/desqualificados, mercado formal/informal, jovens/velhos, homens/mulheres,
estáveis/precários, nacionais e imigrantes, brancos e negros, inseridos e excluídos, etc.”
(2000, p. 104), sem falar ainda nas divisões que decorrem da inserção diferenciada dos países
e de seus trabalhadores na nova divisão internacional do trabalho. Tal processo, ainda segundo
Antunes (1997), enseja uma estratificação em torno das qualificações, compondo uma espécie
de estrutura ocupacional onde os trabalhadores mais qualificados estariam no núcleo central
(menor e mais restrito, mais estável, ocupações de maior complexidade), enquanto outro setor
menos qualificado ocuparia a parcela intermediária e a periferia seria composta por
trabalhadores desqualificados para a ocupação de trabalhos simples e precários (maior e mais
amplo, quantitativamente).
A adaptação do trabalhador a um novo perfil de competências no mundo do trabalho
aponta a afirmação de Gramsci (1976) que a vida da indústria demanda a “adaptação
psicofísica” de determinadas condições de trabalho, costumes, habitação, etc., que não é algo
inato, mas que requer uma assimilação, que consiste na delimitação de um processo formativo
por parte das elites, que por meio da reconfiguração do sistema educacional vigente, coloca
uma nova maneira de viver e trabalhar – que por seu turno, não é assimilada passivamente
pelos indivíduos, pelo contrário, é conflituosa e possui focos de resistência.
A história do industrialismo sempre foi (e hoje o é de forma mais acentuada e
rigorosa) uma luta contínua contra o elemento “animalidade” do homem, um
processo ininterrupto, muitas vezes doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos
(naturais, isto é, animalescos e primitivos) a sempre novos, complexos e rígidos
hábitos e normas de ordem, exatidão precisão, que tornem possíveis formas sempre
mais complexas de vida coletiva, que são a conseqüência necessária do
desenvolvimento do industrialismo. (GRAMSCI, 1976, p. 393).
Analisando fatores como desemprego tecnológico, divisão sexual e internacional do
trabalho, Pinto (1991) conclui que, embora a automação flexível passou a exigir uma força de
trabalho mais qualificada, ela atinge um percentual restrito de pessoas no mundo da produção
e dos serviços. Assim, a "mutação no processo de produção pelos sistemas flexíveis de
manufatura indica possibilidades, não uma fatalidade que vai redimir a classe operária" (Pinto
1991, p. 79). As conclusões da autora apontavam para a necessidade de focar-se a tecnologia
não como uma variável independente, mas, sim, como produto das relações sociais.
O debate acerca dos impactos das novas tecnologias tendia, por um lado, a polarizar-
se em torno das teses da qualificação x desqualificação, e, por outro, a evidenciar a ausência
de um consenso, entre os diversos pesquisadores, acerca do conceito de qualificação, definida,
então, com base em vários indicadores: formação profissional; experiência profissional;
hierarquia dos postos; articulação de diferentes saberes do trabalhador. Ferretti (1994) destaca
que os diferentes enfoques privilegiavam um aspecto específico da qualificação, oferecendo
uma concepção fragmentada do fenômeno, enfatizando determinados caminhos para obtê-la.
Discutindo essa temática, Frigotto adverte que:
"as visões apologéticas da tecnologia e das demandas de qualificação crescente para
todos escondem que, se de fato a mudança da base técnica do processo
produtivo mudou o conteúdo do trabalho e a organização do trabalho, não
mudou ipso facto a relação social que os comanda. Ora, sem entender isso, muitos já
anunciaram o fim do trabalho, a liberação do tempo livre para atividades criativas
inscritas no mundo da 'liberdade humana' quando, para milhões de desempregados
e subempregados, este 'tempo livre' sob relações sociais capitalistas significa
degradação das condições de vida, tensão e desespero" (Frigotto 1991).
No documento “A política de educação profissional” elaborado pelo MEC/MTB
(BRASIL, 1996, p.4), a qualificação é entendida como “recuperação e valorização da
competência profissional do trabalhador”, que não seja apenas uma questão de desempenho
técnico, mas, também, de cidadania. A educação seria hoje uma necessidade da empresa,
interesse dos trabalhadores e da própria sociedade, dentro de “uma estratégia integrada,
construída mediante articulação entre os vários atores sociais” . Assim, o documento afirma
que:
Por isso mesmo, a formulação de políticas nesta área tem que levar em conta a
situação atual dos brasileiros e dos jovens que estão ingressando no mercado de
trabalho, a maioria dos quais se caracteriza por baixos índices de escolarização formal
e de desempenho escolar. Precisamos considerar, ainda, os altos níveis de
desempregados e subempregados, a necessidade de qualificação e requalificação de
trabalhadores. A dívida social precisa ser resgatada para que se possa construir e
sustentar o desenvolvimento. Estas premissas têm implicações diretas sobre a
estrutura do ensino, tanto o formal quanto o profissional, os quais se revelam hoje
demasiadas rígidas e antiquadas para satisfazerem a imensa demanda existente por
níveis mais elevados de qualificação (BRASIL, 1996, p. 4).
Portanto, buscar uma conceituação de qualificação não nos parece ser uma tarefa
fácil, na medida em que este termo pode expressar diferentes preocupações com o fenômeno e
há diferentes bases teóricas que precisam ser levadas em consideração e a qualificação não
pode ser vista como uma maneira de reduzir as habilidades do trabalhador a um mero
„requerimento da tecnologia, pois é um fenômeno é histórico e social, fruto de uma
construção sociocultural complexa.
A qualificação profissional sempre foi descrita como fundamental no papel de
garantia de manutenção do trabalho e da empregabilidade. Sobre este último conceito, Aranha
(2001, p. 281) descreve que "por empregabilidade entende-se a responsabilização do
trabalhador pela obtenção e manutenção do seu emprego, por meio de um processo contínuo
de formação e aperfeiçoamento". Porém, embora seja ponto pacífico que o trabalhador precisa
ser um agente ativo na busca de seu auto aperfeiçoamento, a ênfase cada vez maior na
construção pessoal da empregabilidade merece reflexões, pois a educação não pode deixar de
ser uma política social de pleno emprego e caracterizar-se apenas como uma busca individual.
Gotardo (2009, p.59) alerta que “[...] embora a materialidade nos aponte para a
veracidade da necessidade de requalificação e aquisição de novos conhecimentos” é preciso
recordar que a requalificação dos trabalhadores não garante o emprego, ainda que a falta de
qualificação seja usada ideologicamente como justificativa para o desemprego. Além disso, a
educação é apresentada como a solução para alçar melhores condições de vida, vinculando o
esforço individual de realizar os cursos de qualificação como a resolução do desemprego e
desigualdade social.
Segundo Manfredi (1998) a noção de competência tem sido considerada como
alternativa à de qualificação, sendo reatualizada e utilizada largamente no nível das gerências
pelas equipes de recursos humanos das grandes empresas capitalistas, de modo a construir
novos critérios de acesso e permanência no emprego. Assim, tomadas como base as
considerações da autora sobre competência, entendida como algo em permanente
construção/reconstrução, fica mais perceptível essa noção como uma forma de negociação por
parte dos diferentes atores sociais envolvidos direta e indiretamente no processo do trabalho:
trabalhadores, empresários, governantes, educadores.
A primeira referência ao termo competência aparece na década de 30, no Dicionário
Larousse Comercial (Ropé & Tanguy (1997a). Nos anos 50, Touraine utiliza a noção de
“qualificação social” para definir o termo competência (Dubar, 1996). Offe (1990), também
utiliza a noção de qualificação social em oposição à “qualificação conteudística” (qualificação
técnica). Para Dubar (1996), aquilo que Touraine definiu como "qualificação social", foi
posteriormente definida, nos anos 80, como competência.
Segundo Hirata (1994) o “modelo de competência” representa a atualização do
conceito de qualificação, segundo as perspectivas do capital. Segundo a autora, a competência
é uma noção “oriunda do discurso empresarial nos últimos dez anos e retomada em seguida
por economistas e sociólogos”. A competência, nesse sentido, baseia-se em resultados. A
partir desse “modelo”, observa-se uma perda de importância da qualificação formal e do saber
técnico, em favor de uma outra dimensão (competência), resumida, segundo Ferretti (1997,
p.258):
na expressão „saber ser‟, na qual se confundem/articulam/mobilizam saberes,
comportamentos, racionalidade orientada para fins, sustentada por outros valores
qualitativos como colaboração, engajamento e mobilidade, fortemente apelativos da
estrutura subjetiva do ser-do-trabalho. „Saber ser‟ é, portanto, nesse contexto,
colocar-se por inteiro, mobilizar-se completamente, em direção a um fim, neste
caso, a valorização do capital (FERRETTI, 1997, p. 258).
Para Tartuce (2004) algumas das principais características do “modelo de
competência” dizem respeito à sua forma de organização e de gestão do trabalho. O controle,
nesse modelo, dar-se-ia por objetivos e resultados, e não mais por tarefas, já que a prescrição
estaria sendo substituída por um trabalho flexível que, por isso mesmo, demanda os aspectos
subjetivos da qualificação. Para a autora, desse modo, o modelo de competência discutido
seria, na verdade, uma nova roupagem adotada pelo modelo da qualificação.
3 OS ESTUDOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE AUTOMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO
EM FRIEDMANN E NAVILLE
A construção teórica sobre a qualificação profissional não constitui uma tarefa
simples, pois é necessário recorrer a grandes áreas de estudos como a sociologia, psicologia,
economia, filosofia, entre outros campos de estudos, para se chegar a uma construção teórica
sólida e articulada com os diferentes elementos que sustentam este debate. Villavicencio
(apud Ferretti, 2004) considera que a qualificação:
Não pode ser compreendida como uma construção teórica acabada, mas, sobretudo,
como um conceito explicativo da articulação de diferentes elementos no contexto de
relações de trabalho, capaz de dar conta das regulações técnicas que ocorrem na
relação dos trabalhadores com a tecnologia e das regulações sociais que produzem
os diferentes atores da produção que resultam nas formas coletivas de produzir.
A origem do surgimento destas questões na sociologia do trabalho ocorreu
especialmente na França, nos anos de 1930 e 1940, num momento marcado pela hegemonia
do sistema taylorista, onde os conceitos de qualificação e competência começaram a surgir em
estudos e debates. A escolha deste recorte teórico não é arbitrária, pois de acordo com Tartuce
(2004): (...) “a realidade francesa é, talvez, histórica e analiticamente, aquela que melhor
expressa às condições para a construção social e teórica do conceito de “qualificação" e onde,
por isso mesmo, os resultados políticos e interpretativos dessa construção ganharam maior
relevância” A autora complementa ainda que Friedmann e Naville são não somente os
primeiros a refletir sobre o conceito nessa sociedade, mas aqueles que permanecem como
forte referência para os estudos atuais sobre o tema, já que foram os precursores,
respectivamente, das chamadas visões "substancialista" e "relativista" da qualificação.
Em “Problemas humanos del maquinismo industrial”, Friedmann faz uma análise do
automatismo, no Capítulo IV apresenta o que chama de “dialética da divisão dos trabalhos”.
O autor debate a questão da divisão técnica do trabalho, retomando elementos do maquinismo
para a análise da inserção da automação nos processos de trabalho. Friedmann apresenta a
compreensão de que o maquinismo e, por consequência, a automação se inserem no processo
de divisão técnica do trabalho a fim de livrar determinadas tarefas penosas dos trabalhadores.
Reconhece, também, que o “motor humano” torna-se menos vantajoso em algumas tarefas e
que o seu parcelamento abre as possibilidades de inserção da automação na produção.
Diante disso, podemos observar que a automação significa a inserção de processos
automáticos com a finalidade de realizar determinadas atividades do processo produtivo, em
larga escala, permitindo o parcelamento maior do trabalho e a intensificação do mesmo, à
medida em que um mesmo trabalhador passa a operar/vigiar várias máquinas ao mesmo
tempo. Friedmann também faz uma classificação da automação três etapas: a primeira, em
que se situam as máquinas dependentes; a segunda, as máquinas semiautomáticas; e a
terceira, as máquinas automáticas. Na primeira etapa, o manejo e regulação da máquina
dependem constantemente do trabalhador, as semiautomáticas já se colocam numa relação de
menor dependência e, as automáticas eliminam o trabalhador como operador.
Friedmann também aponta as consequências da automação para os trabalhadores e
destaca que diante do avanço da automação e a substituição gradativa dos trabalhos de
condutores e reguladores do processo, seriam inseridas funções mais complexas e qualificadas
no processo produtivo. Esse debate remete a uma retomada do ofício, considerando a
necessidade de domínio técnico adquirido por longo processo de qualificação, de
aprendizagem espontânea e sistemática, por quem o domina. Nesse sentido, o trabalho braçal
seria substituído pela automação, enquanto os trabalhos complexos de produção da máquina e
sua regulação, o que o autor chama de “novo artesanato”, ou seja, uma nova configuração dos
velhos ofícios. No entanto, o controle do trabalho se encontra aperfeiçoado, e a degradação do
trabalho qualificado a partir da cisão entre planejamento e execução oriunda do Taylorismo se
evidencia.
A separação entre planejamento e execução do trabalho é racionalizada pela Gerência
Científica, inaugurada por Taylor no início do século XX, a fim de ampliar as formas de
exploração do trabalho pelo capital. A questão central estava na análise das possibilidades de
produção com as técnicas e instrumentos disponíveis, a fim de controlar o processo de
trabalho e aumentar a sua produtividade. Braverman (1987) analisa o taylorismo e demonstra
o quanto essa teoria explicita a verbalização do modo capitalista de produção, demonstrando
que a grande contribuição de Taylor está em identificar que o controle da gerência não se
limita à imposição de tarefas. Para além disso, a gerência deve retirar toda e qualquer decisão
sobre o processo de trabalho das mãos dos trabalhadores. A busca pela eficiência do trabalho e
consequente aumento da produtividade está diretamente relacionada a máxima racionalização
de seu processo. À medida que o trabalhador pode escolher como e o que realizar para atingir
os objetivos de sua tarefa, segundo Taylor, o fará sempre atento aos seus interesses e não aos
interesses da empresa.
Embora não definida explicitamente, para Friedmann, a qualificação está relacionada
principalmente à complexidade da tarefa e à posse de saberes exigidos para desenvolvê-la,
define-se pelo saber fazer adquirido no trabalho e na aprendizagem sistemática, ou seja, à
qualidade do trabalho e ao tempo de formação necessário para realizá-lo. Relaciona-se com as
rotinas de trabalho, relativas a um posto ou cargo, vinculando-se, portanto, à dimensão prática
e específica sob o trabalho. De acordo com Tartuce (2002, p. 18): “Mais precisamente pode-se
dizer que o problema da qualificação profissional é introduzido a partir do momento em que
há uma separação entre formação e trabalho, separação esta que pode ser melhor visualizada
mediante o exemplo do artesanato, onde a aprendizagem dava-se no próprio local de
trabalho”.
Em outras palavras, a qualificação, para GF, está profundamente relacionada com a
complexidade do trabalho, com seu grau de dificuldade, e com os conhecimentos
necessários para realizá-lo. Ela é inversamente proporcional à divisão do trabalho e
à facilidade da tarefa: quanto mais dividido um trabalho e, portanto, mais simples
para ser efetuado, menos qualificado ele será. O parcelamento das tarefas acaba
sendo, portanto, o fator preponderante para explicar a degradação da qualificação,
pois essas tarefas não exigem aprendizagem propriamente dita e, portanto, não
propiciam um trabalho de qualidade. (TARTUCE, 2002, p.90)
Para Friedmann, a definição de qualificação não é sistemática, mas uma construção
social que engloba diversas realidades. Dadoy (1987) afirma que o autor utiliza dois índices
para “medir” esta noção de qualificação através da duração da formação e a estrutura da
qualificação. Apesar de tender, em vários momentos, para uma concepção mais ampla da
qualificação, o autor concentra sua reflexão na apropriação do saber do trabalhador pela
máquina e/ou pela organização capitalista e toma a qualificação nela mesma, como uma
"coisa" que pode ser mensurada pelo grau e pela frequência de atividade intelectual que o
trabalho exige para ser executado (ALALUF, 1986, apud TARTUCE, 2004).
A obra de Friedmann é pautada na pesquisa empírica, especialmente pela influência
dos estudos de sociologia norte-americana. Nesse sentido, sua preocupação com os problemas
da classe operária e consequências do progresso técnico o levam a realizar visitas às fábricas e
fazer descrição das situações de trabalho. Segundo Tartuce (2002, p.45) “No decorrer de sua
carreira, essas viagens tornar-se-ão recorrentes, como forma de obter informações in loco e de
observar as situações concretas de trabalho: dimensões da relação homem/máquina, da
divisão e do conteúdo do trabalho, das relações de trabalho etc.”. A partir de uma perspectiva
empírica, portanto, é que o autor definirá a qualificação, considerando que a mesma se faz
como um elemento constitutivo do trabalho e do desenvolvimento humano (Tartuce, 2002,
p.77).
A obra de Naville se encaminha para uma perspectiva menos empírica, sendo sua
análise pautada em dados estatísticos e sua relação com múltiplos elementos em torno da
automação e qualificação, bem como pesquisas já realizadas na área. Tartuce (2002, p. 128)
afirma que esse autor se volta aos estudos de psicologia e orientação profissional e a partir
disso, passa a analisar a relação dos indivíduos com o trabalho. “Para PN, há uma “aptidão
geral para o trabalho”, que, sob o efeito da divisão do trabalho, é transformada em aptidão
particular. Isso significa que as aptidões são construídas e moldadas pelas necessidades de
uma sociedade e pela sua maneira de satisfazer essas necessidades” (Tartuce, 2002, p. 130).
Posteriormente, o autor deixa de lado o termo aptidão para um correspondente de adaptação,
considerando que a relação com o trabalho não se trata de uma perspectiva inata, mas
socialmente construída.
Conforme vai afastando-se dos estudos de psicologia e adentrado na sociologia,
Naville passa a dedicar-se à análise do trabalho. Em “¿Hacia el automatismo social?”, o autor
analisa dados sobre os problemas da automação e discute a extensão do automatismo. Em
linhas gerais, sua defesa é de uma perspectiva relativista da automação e também da
qualificação. Apresenta um estudo sobre os níveis de automação e relata detalhadamente cada
etapa desse processo. Nesse sentido, conclui que um nível será sempre o desenvolvimento de
outro e que quanto mais avançam-se os níveis de automação do processo de trabalho, menos
exige-se de qualificação do trabalhador que vigia a máquina. No entanto, destaca-se também
que um grupo de trabalhadores deve ser altamente qualificado para que haja o
desenvolvimento da automação.
Segundo Naville, portanto, é necessário olhar para a automação sob a perspectiva
das problemáticas dos trabalhadores. É nesse sentido, que também destaca questões do
controle ideológico – pela mídia, social – pelo Estado, e do trabalho – pela automação.
Aponta, assim, para a crise da identidade no trabalho, estabelecendo a relação entre
automação e desumanização, considerando a subordinação do humano à máquina. Também
nesse sentido o autor debate a qualificação, que para ele é fundamental para a sociologia do
trabalho, mas, segundo ele, carecia de método de análise. Assim, sua questão principal era: o
que é um operário qualificado?
Para tanto, ele recorre às análises já realizadas nesse campo, debate as terminologias
utilizadas para tal e retoma os debates sobre a hierarquização de conhecimentos e saberes,
bem como a superioridade do trabalho intelectual sobre o manual, historicamente
estabelecida. Assim, a hierarquia da qualificação do trabalho é definida pela hierarquia social
de funções vinculada à racionalização, sendo que a qualificação ganha destaque na sociedade
moderna à medida em que desenvolve a influência da técnica – racionalização, sobre a vida
social.
Naville analisa a qualificação não apenas do prisma da técnica e do conteúdo do
trabalho, mas como sendo um processo e um produto social que decorre de um lado, das
relações e das negociações tensas entre o capital e trabalho, e por outro, de fatores
socioculturais que influenciam o julgamento e a classificação que a sociedade faz sobre os
indivíduos. Em sua perspectiva relativista, a qualificação é o resultado de um processo de
formação autônomo, ou seja, independente da formação espontânea no trabalho. Para ele a
qualificação dependeria de elementos presentes no ambiente social do trabalhador e seria
relativa. Suas formas dependeriam também do estado das forças produtivas e das estruturas
sócio-econômicas nas quais os trabalhadores estivessem inseridos, tais como o tempo de
escolarização, o salário, as operações de classificação e a hierarquia do trabalho.
Apesar da divergência em torno de onde se localiza a qualificação, se no posto de
trabalho ou no trabalhador, Naville e Friedmann concordavam que "a qualificação constrói as
grades hierárquicas e salariais, constituindo-se em um elemento de negociação salarial e de
localização do trabalhador na empresa" (TOMASI, 2000).
É notória a importância da contribuição dos estudos de Sociologia do Trabalho tanto
de Friedman quanto de Naville, especialmente no que se refere à gênese do amplo movimento
de transformações ocasionado pela automação no interior do modelo taylorista fordista, mais
especificamente no âmbito industrial, entre as décadas de 1940 e 1960, bem como, a questão
da “qualificação do trabalho”, elemento de estudo presente nas pesquisas dos referidos
autores. Consequentemente, ambos destacaram em suas produções teóricas o crescente papel
desempenhado pelas estratégias de gerenciamento de mão de obra e dos grupos de trabalho no
interior do processo produtivo industrial, indicando um movimento em direção a polivalência
e flexibilização do trabalho, que se tornou uma realidade no interior do sistema produtivo
toyotista a partir das últimas décadas do século passado.
4 O PROGRAMA NACIONAL DE ACESSO AO ENSINO TÉCNICO E EMPREGO
(PRONATEC)
A formação profissional é vista por muitos como um caminho certo para a garantia
do emprego. Temos como exemplo emblemático o ex-presidente Lula, torneiro mecânico
formado em uma escola do Senai, que em muitos de seus discursos exaltava a importância da
formação profissional recebida para sua atuação como metalúrgico, veio reforçar essa ideia.
Na ocasião do lançamento do Pronatec, o jornal O Globo estampou em suas páginas a
seguinte manchete: “Contra o apagão da mão de obra”, dizia o título a respeito da promessa
salvadora do Programa recém-lançado: ampliar e facilitar o acesso a educação profissional no
país a jovens do ensino médio e trabalhadores sem formação. No entanto, pesquisadores
entrevistados pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), ao
analisarem o documento de criação do Pronatec, sinalizaram com preocupação que a política
proposta pelo governo reforçava a ideia de formação profissional para o emprego, ao custo de,
muitas vezes, não garantir de fato uma educação de mais qualidade e completa às populações
mais vulneráveis.
Ao justificar a importância do Pronatec a presidente Dilma Rousseff ressaltou que
“[...]o mundo hoje, ele está entrando num outro momento, é a chamada economia do
conhecimento. Quanto mais estudo, melhor para o país.” Com a possibilidade de formação
profissional, o Brasil está travando uma luta contra a desigualdade, porque “[...] de fato, vai
acabar completamente a miséria neste país, com a pobreza, por dois caminhos: educação e
emprego.” (DILMA ROUSSEFF, 2013).
Segundo a presidente a formação profissional possibilitada pelo Pronatec “[...]
produzirá uma das maiores revoluções do nosso país” a presidente Dilma comemora que o
“acesso a oportunidade” será importante tanto para “as nossas indústrias, nossas empresas”
como para “o espirito de empreendedorismo em nosso país” já que somos um país com
“vocação para a criatividade” e se somarmos “[...]criatividade com ciência, se a gente somar
criatividade com tecnologia e inovação, nós teremos um país com uma capacidade
competitiva enome.” (DILMA ROUSSEF, 2012, s/p)
A justificativa da presidente Dilma ainda comtempla a importância de profissionais
qualificados para o momento que vive a economia brasileira, “[...] próximos do pleno
emprego” e enfrentando uma “[...] grande demanda de mão de obra qualificada, tudo porque:
O sistema de capacitação profissional brasileiro já não corresponde às necessidades
do país e às dimensões de nossa economia. Ele é fruto de um outro período do
desenvolvimento econômico do nosso país. Por isso, ele se tornou um desafio. Um
desafio à nossa capacidade de crescimento e, por isso mesmo, tem de ser enfrentado
de maneira direta e articulada (DILMA ROUSSEFF, 2011, s/p)
Instituído pela Lei 12.513, de 26 de outubro de 2011, o Pronatec de acordo com o seu
artigo 1º, se propõe a “ampliar a oferta de educação profissional e tecnológica, por meio de
programas, projetos e ações de assistência técnica e financeira” (BRASIL, 2011, p.1). A
referida lei determina em seu parágrafo único do art. 1º um conjunto de objetivos, dentre eles:
1) Expandir/democratizar a “oferta de cursos de educação profissional técnica de nível
médio”; 2) Melhorar a “qualidade do ensino médio público” articulando-o com a educação
profissional; 3) Estimular a “expansão da rede física de atendimento da educação profissional
e tecnológica”; 4) Ampliar as “oportunidades educacionais dos trabalhadores” via “formação
e qualificação profissional”.
Quanto ao público-alvo, de acordo com o artigo 2º, o Pronatec busca atingir
prioritariamente os seguintes sujeitos: a) Os “estudantes” (do ensino médio, da EJA, os que
cursaram o ensino médio em escolas públicas ou na condição de bolsista de instituições
privadas de ensino); b) Os “beneficiários dos programas federais de transferência de renda”;
c) Os “trabalhadores” em geral, incluindo “agricultores familiares, silvicultores, aquicultores,
extrativistas e pescadores” (BRASIL, 2011, p). O Pronatec também contempla a participação
de povos indígenas, comunidades quilombolas e adolescentes e jovens em cumprimento de
medidas socioeducativas.
Os cursos são ofertados de forma gratuita por instituições da Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica e das redes estaduais, distritais e municipais
de educação profissional e tecnológica. Também são ofertantes as instituições do Sistema S,
como o SENAI e SENAC. A Partir de 2013, as instituições privadas, devidamente habilitadas
pelo Ministério da Educação, também passaram a ser ofertantes dos cursos do Programa.
Segundo dados do Ministério da Educação, de 2011 a 2014, por meio do Pronatec, foram
realizadas mais de 8 milhões de matrículas, entre cursos técnicos e de formação inicial e
continuada (MEC, 2014). Para viabilizar o funcionamento do programa o MEC firmou
parceria com 25 instituições totalizando atualmente 37 programas de qualificação.
O Pronatec é desenvolvido por meio das seguintes ações: ampliação de vagas e
expansão da rede federal de educação profissional e tecnológica; fomento à ampliação de
vagas e à expansão das redes estaduais de educação profissional; incentivo à ampliação de
vagas e à expansão da rede física de atendimento dos serviços nacionais de aprendizagem; IV
– oferta de bolsa-formação, nas modalidades: a) Bolsa-Formação Estudante; e b) Bolsa-
Formação Trabalhador; financiamento da educação profissional e tecnológica; VI – fomento
à expansão da oferta de educação profissional técnica de nível médio na modalidade de
educação a distância; apoio técnico voltado à execução das ações desenvolvidas no âmbito do
Programa; estímulo à expansão de oferta de vagas para as pessoas com deficiência, inclusive
com a articulação dos Institutos Públicos Federais, Estaduais e Municipais de Educação; e
articulação com o Sistema Nacional de Emprego.
O Pronatec foi anunciado como um Programa que se propôs a contribuir com ações
de combate a pobreza, por meio da qualificação profissional, no entanto, há que se observar
uma tendência de vinculação do Pronatec com a concepção de empregabilidade, sobretudo
pelo discurso de qualificação profissional, inserção no mercado de trabalho e redução da
pobreza, sob a tutela do neodesenvolmentismo.
Observa-se que a denominação do Pronatec refere-se ao acesso ao ensino técnico e
emprego. No entanto, dentre os seus objetivos enunciados (art.1º) e tampouco nas ações
elencadas não consta nenhuma referência objetiva à produção/geração de emprego. Portanto,
parece conceber que o emprego (ou a empregabilidade) é (seria) consequência direta da
educação/formação. Tal concepção linear-mecânica aproxima-se da perspectiva da teoria do
capital humano.
5 O CONCEITO DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL NO PRONATEC
Para dar conta do objetivo geral deste trabalho que é apreender o sentido e
significado da concepção de qualificação profissional idealizada no Pronatec, procuramos
analisar os discursos presidenciais e governamentais que justificaram a criação do Pronatec e
realizamos pesquisa nos documentos oficiais (Leis, Decretos, Portarias, Resoluções,
Pareceres, Relatórios e textos informativos) que fundamentam a proposta e estrutura de
funcionamento do Programa.
Segundo o IPEA (2014, p. 34) o Pronatec faz parte de uma estratégia de
desenvolvimento “[...] que busca integrar a qualificação profissional de trabalhadores com a
elevação de escolaridade, constituindo-se em um instrumento de fomento ao desenvolvimento
profissional, de inclusão social e produtiva e de promoção da cidadania”. É notório nos
discursos oficiais a questão da eliminação das desigualdades via qualificação profissional,
uma vez que o Pronatec foi propalado a vinculação entre qualificação, inserção no mercado de
trabalho, redução da pobreza e crescimento econômico do país, explicito no lema “com o
caminho de oportunidades, cada brasileiro que cresce faz o Brasil maior”.
No entanto, a realidade vista é quase 70% das vagas ofertadas no Pronatec são de
cursos de formação inicial ou continuada (FIC) com carga horária mínima de 160 horas,
cursos que não tem nenhum vinculo com a questão da elevação da escolaridade do
trabalhador. Segundo dados do MEC, dos 8,05 milhões de matrículas efetuadas pelo Pronatec,
70% são de cursos de formação inicial e continuada e apenas 30% são de cursos técnicos.
Nos cursos FIC a preocupação é a oferta de cursos apenas de formação profissional,
desvinculando-se da elevação da escolaridade, o que firma „[...] uma tendência em consolidar
um modelo de formação hierarquizado, no qual, dependendo das condições materiais
financeiras, o trabalhador obtenha uma qualificação profissional desprovida da formação
geral” (VIRIATO; FAVORETTO, 2012, p.24)
Em 2014 a 3ª edição do Guia Pronatec de Cursos FIC foi atualizada, sendo excluídos
23 cursos e incluídos 25 novos cursos ao guia, totalizando 644 cursos, distribuídos em 13
eixos tecnológicos. Nesta nova organização foi levada em consideração, segundo BRASIL
(MEC, 2014) a relação entre os cursos e crescimento da demanda profissional – quais
ocupações estavam em alta e em queda, sendo priorizadas aquelas ocupações com menor
estoque e que apresentaram maior crescimento da demanda profissional, com o intuito de
equalizar a oferta e a demanda de vagas por cursos de qualificação profissional.
Fazendo uma pesquisa rápida no Guia Pronatec de cursos FIC é possível observar
uma predominância de cursos voltados à prestação de serviços, seja na área alimentícia, área
de saúde, segurança, turismo entre tantos outros, assim como a fragmentação da formação
ofertada. De acordo com dados do MEC, o curso mais demandado, com mais de 222 mil
matrículas, foi o de auxiliar administrativo, que possui uma carga horária mínima de 160
horas. Ainda segundo o MEC (MDS, 2015) até o final de 2014, foram realizadas mais de 8
milhões de matrículas, sendo 2,3 milhões em cursos técnicos e 5,8 milhões em cursos de
Formação Inicial e Continuada (FIC). O Ministério reconhece a necessidade de se ampliar a
oferta de cursos técnicos. Mas o fato é que, hoje, eles praticamente não estão presentes nos
cursos demandados pelos ministérios parceiros.
Vejamos dois exemplos de cursos ofertados no Guia PRONATEC de 2014:
Auxiliar de Impressão Digital
Auxilia na operação de impressoras digitais, incluindo etapas de preparação de equipamento, impressão
e manutenção preventiva, de acordo com as normas e procedimentos técnicos de qualidade, segurança,
higiene e saúde.
Carga Horária: 160 Escolaridade Mínima: Ensino Fundamental II Incompleto
Agente de Operações em Comissaria
Atua no transporte, distribuição e abastecimento de refeições nas aeronaves de voos comerciais,
observando normas de segurança da aviação e de higiene e manipulação dos alimentos.
Carga Horária: 180 Escolaridade Mínima: Ensino Fundamental Completo
Fonte: Guia PRONATEC de cursos FIC 3ª ed. (BRASIL, 2014)
É possível notar a predominância de cursos de 160, 200, 240 horas, seguindo a lógica
de priorizar a aquisição de conhecimento ou desenvolvimento de competências voltadas
essencialmente para o “saber executar”, portanto, isso significa “que além de diminuir os
conhecimentos, é preciso apresentá-los de forma operacional, ou seja, que tenham um sentido
imediato, isto é, que sejam úteis e práticos” (MAUÉS, 2009, p. 301).
A Formação Inicial e Continuada (FIC) é um processo de ensino que envolve uma
intencionalidade educativo-profissionalizante, ou seja, sua intenção é a formação inicial ou
continuada de trabalhadores, a qual consiste no desenvolvimento de cursos de capacitação e
qualificação para o mundo do trabalho, integrados ou não a projetos e programas destinados à
formação de jovens e adultos.
A oferta dos cursos de Formação Inicial e Continuada tem como base legal a Lei nº
11.741, de 2008: Art. 39. A educação profissional e tecnológica, no cumprimento dos
objetivos da educação nacional, integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e
às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia. § 2º A educação profissional e
tecnológica abrangerá os seguintes: I – de formação inicial e continuada ou qualificação
profissional.
Durante a cerimonia de lançamento do Pronatec 2, em 18 de junho de 2014, a
presidente Dilma lançou o novo desafio do Programa que é oferecer mais 12 milhões de vagas
em 220 cursos profissionalizantes e 646 de qualificação, a partir de 2015, reafirmando a
lógica do Programa como voltada pata atender o setor produtivo:
Acredito que o Brasil deu um grande passo. Precisamos olhar e focar na questão da
produtividade da economia. E ela é Pronatec, é inovação de alta complexidade e
investimento em infraestrutura. O Brasil precisa desse salto. O Pronatec é esse lugar
especial onde se une social e econômico. Porque cada vez mais nosso país terá que
será integrado por técnicos, cientistas e pesquisadores. Mas temos que ter técnicos
capazes de agregar valor ao produto e renda a família. (DILMA, 2014).
Na mesma ocasião o Ministro da Educação, Henrique Paim lembrou que a
determinação do Pronatec nesta segunda etapa é priorizar a formação empreendedora, por
conta disso, ele afirmou que o governo se articulou com o Sebrae e outras instituições para
trabalhar conteúdos específicos e ofertar cursos para questão de micro e pequenas empresas e
para o microempreendedor individual.
Compactuando com a preocupação com a qualidade de formação profissional
valemo-nos da caracterização feita na Carta de Natal no II Colóquio Nacional A produção do
conhecimento em Educação Profissional (Natal, 2013, s/p); o Pronatec:
[...]caracteriza como um arranjo, um remendo, uma ação de governo
demasiadamente menor do que os estudantes adolescentes, jovens e adultos
trabalhadores merecem, do que as condições econômicas atuais do país permitem,
do que as nossas escolas historicamente qualificadas como os CEFETs e IFs podem
oferecer à sociedade e do que os seus professores são pedagogicamente e
educacionalmente capazes de produzir.”
Vejamos a avaliação do ex-secretário de Educação Profissional e Tecnológica do
Ministério da Educação (Setec/MEC), Marco Antonio de Oliveira, no qual defende o modelo
de qualificação profissional do Pronatec: "Estamos criando uma massa de mão de obra que
seja capaz de acompanhar esse novo ciclo de desenvolvimento que o país está requerendo". A
principal preocupação, portanto, não é inserir as pessoas no mercado de trabalho a partir da
formação profissional, mas aumentar a qualificação dos trabalhadores para atender a essas
demandas. Desse modo, a escolha pelos cursos FIC, de um lado pelos trabalhadores e de outro
como prioridade governamental, possibilita a “qualificação” e consequentemente a
certificação com maior rapidez, além de legitimar a falácia da articulação entre qualificação e
inserção no mercado de trabalho. Note-se, por outro lado, que a interpretação de
“desenvolvimento” prende-se unicamente a “crescimento econômico”, o que pode atender aos
interesses do capital, mas não necessariamente ao desenvolvimento social (direitos sociais e
melhores condições de vida da população).
Num documento elaborado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação (CNTE) com o título de "Os riscos do Pronatec para a educação técnica
profissional” a entidade denuncia que as entidades educacionais e de representantes de
trabalhadores foram excluídas do debate oficial na esfera de governo e na Câmara dos
Deputado e que a estrutura do Pronatec ameaça o conceito e os pressupostos da educação
técnica:
É óbvio que a qualificação profissional (mesmo operacional), no afã da atualização,
da inserção e da promoção do(a) trabalhador(a) no mundo do trabalho, acaba por
atraí-lo a essa modalidade. Mas trata-se de benefício passageiro, sem raízes, e com
oportunidades restritas. Diante dessas perspectivas, não convém ampliá-la, além do
necessário, para atender, pontualmente, à demanda reprimida e necessária à
manutenção do atual processo de crescimento econômico do país. (CNTE, 2011)
Por outro lado, moldar os rumos da educação profissional apenas em resposta das
demandas de mercado corresponde a formas de “reducionismo” tanto no que se refere às
expectativas de formação para a cidadania, como para o acesso dos trabalhadores ao
conhecimento. Por conseguinte, a “educação passa a ser considerada apenas como
instrumento de hegemonização, para uma racionalidade técnica e mercadológica”,
promovendo assim, “um consenso que tenha no mercado a sua principal referência, como
uma regulação social. Nessa concepção a educação, a escola é equiparada à empresa, e, de
acordo com esta lógica, deve formar consumidores em vez de cidadãos” (MAUÉS, 2009, p.
303).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As obras de Georges Friedmann e Pierre Naville representam uma importante análise
sob a perspectiva da sociologia do trabalho da automação do processo de produção e a
qualificação de trabalhadores nesse contexto. Suas obras convergem no sentido de entender a
relação entre desenvolvimento das forças produtivas e as consequências para os trabalhadores,
bem como no esforço de classificar os níveis de automação e de qualificação. Divergem, no
entanto, sob o ponto de vista metodológico. Enquanto Friedmann realiza um trabalho
empírico, entrevistando e observando o cotidiano dos trabalhadores, Naville ocupa-se a
análise de dados estatísticos e de um contexto socioeconômico para interpretá-los.
Friedmann destaca a racionalização dos processos produtivos como expressão do
controle dos trabalhadores. Sendo assim, a automação representa, no chão de fábrica, um
aperfeiçoamento da cisão entre pensar e fazer. No entanto, o autor apresenta certo otimismo,
mesmo com ressalvas, ao fato de que o desenvolvimento técnico exige categorias específicas
de trabalhadores super qualificados e, assim, aponta para o que ele chama de “novo
artesanato”. Em suas conclusões, o autor defende uma tripla valorização dos trabalhos:
intelectual, moral e social.
Já Naville analisa a automação sob uma perspectiva mais social que técnica – que foi
o que fez Friedmann. Nesse sentido, Naville preocupa-se em olhar para a relação colocada nas
estruturas sociais, entre capital e trabalho. Demonstra em sua obra, a partir dos dados
estatísticos analisados, que há mais investimentos em máquinas que em salários, desvelando
que a intenção não é tornar o trabalho menos exaustivo para o operário, mas sim torná-lo mais
produtivo a partir da inserção da automação. O autor também fará sua classificação dos níveis
de automação, concluindo que não é possível definir um nível geral, mas entendê-lo
relativamente às condições anteriores e os setores da produção, em suas especificidades.
Assim também a qualificação é relativa aos tipos de ferramenta, tarefa ou aprendizagem.
Diante disso, podemos entender que apesar dos pontos de divergência, especialmente
colocados na forma de analisar a problemática, tanto Friedmann como Naville estão
preocupados em compreender o desenvolvimento das forças produtivas, a partir da
automação, e suas implicações para a força de trabalho, especialmente no que diz respeito à
qualificação. Ao analisar a força de trabalho no capitalismo, Marx afirma:
A fim de modificar a natureza humana, de modo que alcance habilidade e destreza
em determinada espécie de trabalho e se torne força de trabalho desenvolvida e
específica, é mister educação ou treino que custa uma soma maior ou menor de
valores em mercadorias. Esta soma varia de acordo com o nível de qualificação da
força de trabalho. Os custos de aprendizagem, ínfimos para a força de trabalho
comum, entram, portanto, no total dos valores despendidos para sua produção.
(MARX, 2006, p.202)
Nessa discussão, Marx apresenta os elementos que compõem o valor e, insere a
análise de como o tempo de trabalho socialmente necessário, que o determina, também está
associado ao tempo de aprendizagem do trabalho. A obra de Marx, que desvela todo o
funcionamento do modo de produção capitalista, demonstra, no entanto, que tal qual as
máquinas, às quais são agregados os desenvolvimentos científico-tecnológicos, a força de
trabalho também tem suas características definidas relativamente ao tempo e espaço que
ocupa. Mas, Marx destaca que apesar do processo de trabalho ser dependente das relações
entre meios de produção e força de trabalho, somente a força de trabalho é capaz de criar
valor, ou seja, de permitir a geração e acúmulo de capital.
Sendo assim, o otimismo oriundo do desenvolvimento técnico-científico da
produção, expresso pela automação, como possibilidade de livrar tempo do trabalhador e,
portanto, encaminhar-se para a superação da exploração do trabalho precisa ser melhor
analisado. Se é verdade que a automação exime o trabalhador de atividades mais pesadas e
perigosas, percebe-se na análise dos sociólogos franceses que essa automação só é
implementada se servir aos interesses de custos e produtividade do capital. Mesmo porque,
não há interesse em um modo de produção que depende da força de trabalho para acumular
riqueza, de eliminar essa força de trabalho do processo de produção.
Outro elemento desse debate, especialmente defendido por Naville, é o da
compreensão da qualificação como uma questão relativa ao desenvolvimento técnico-
científico, mas, principalmente, ao atendimento das necessidades postas pela divisão técnica
do trabalho, amplamente debatida por Friedmann. Nesse sentido, a discussão sobre
qualificação não deve deter-se a uma conceituação, mas dedicar-se ao entendimento dos
elementos relacionados à mesma. O mesmo processo produtivo que exige uma gama de
trabalhadores altamente qualificados, no sentido de produzir e realizar a manutenção das
máquinas, há a necessidade de trabalhadores dos quais não se exige qualquer qualificação,
considerando que operam como vigias da máquina.
Na tentativa de classificar, tanto os níveis de automação quanto o que é um trabalho
qualificado, Friedmann e Naville apresentam um importante debate situado historicamente,
que nos permite entender a transição da hegemonia taylorista-fordista para a acumulação
flexível, as mudanças no mundo do trabalho a partir da automação e as consequências dessas
mudanças para a classe trabalhadora. Não podemos desconsiderar os inúmeros limites postos
na obra de ambos, como as evidências de determinismo tecnológico por exemplo. No entanto,
tais autores somam aos constantes esforços de entender a lógica mutante do capital, e os
limites e possibilidades que se apresentam aos trabalhadores.
Importante destacar que pelo modo como vêm sendo desenvolvidas as ações do
Pronatec, que prioriza a oferta de cursos de curta duração, que visa “qualificar”, mas não tem
compromisso de elevar o grau de escolaridade do trabalhador, ou seja acaba por fornecer uma
formação “precarizada” para postos de trabalho “precarizados”, ao invés de garantir um
diploma de técnico de nível médio. Essa situação se contrapõe a um planejamento de médio e
longo prazo, onde se preparam técnicos e tecnólogos com formação integral, capazes de
desenvolver um pensamento crítico e reflexivo.
Na modalidade FIC a tendência é a oferta de cursos apenas de formação profissional,
desvinculando-se da elevação da escolaridade, o que firma „[...] uma tendência em consolidar
um modelo de formação hierarquizado, no qual, dependendo das condições materiais
financeiras, o trabalhador obtenha uma qualificação profissional desprovida da formação
geral” (VIRIATO; FAVORETTO, 2012, p.24).
Corbari (2013, p. 132) detectou em sua pesquisa sobre o Pronatec que o mesmo:
[...] está embasado numa pedagogia da supremacia do capital ao apresentar, como
possibilidade educacional, a parceira entre o público e privado, reforçando a
concepção de empregabilidade, pois seus representantes defendem ardorosamente a
formação para o atendimento imediato aos interesses do mercado de trabalho,
direcionada à prática produtiva, subordinada aos interesses do capital, presumindo a
profissionalização que separa trabalhador e meios de produção prevalecendo a
concepção de trabalho em seu sentido econômico e alienado, estando longe de
tornar-se uma formação que, realmente, atenda aos anseios dos trabalhadores.
Então podemos concluir que o conceito de qualificação presente no Pronatec
apresenta perspectivas de formação direcionada à prática produtiva, submetida aos interesses
do capital, com a formação pela lógica da empregabilidade e das competências, reforçando a
opção pelas parcerias público-privadas, aproximando-se do viés neoliberal das políticas
destinadas à educação. Além de presumir uma profissionalização que separa o trabalhador dos
seus meios de produção e consequentemente a prevalência da concepção de trabalho em seu
sentido econômico e alienado.
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