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Van Gogh: loucura e genialidade

ERCY SOAR Médico psiquiatra e doutor em Ciências Humanas

Data: Outubro/Novembro 2008

Desde sua morte, e infelizmente nunca antes disso, o pintor holandês Vincent van Gogh tem sido objeto de fascínio e curiosidade. E não apenas pelos apreciadores de sua arte, mas também por estudiosos da mente humana que se dedicam a reconstruir os caminhos que o levaram ao suicídio, em 1890. Apesar de ter vivido em completo ostracismo, um século depois o mundo o veria transformado no autor das telas mais valiosas da história, e um verdadeiro ícone da cultura pop. Sinal disto é o sucesso que faz um vídeo largamente difundido na internet, em que desfilam seus quadros ao som da canção “Vincent”, que Don McLean fez em sua homenagem.

O irmão de Vincent, Theo, com quem trocou cartas durante toda a sua vida, e de quem dependia para sua sobrevivência, trabalhava numa galeria em Paris. Como forma de pagamento, Theo ofereceu ao pintor Paul Gauguin a possibilidade de dividir a casa com Vincent, em Arles, ao sul da França, onde poderia usufruir da boa luminosidade (e dar algum apoio emocional ao já perturbado irmão). É anedótico o fato de que, ao cabo de nove turbulentas semanas, Gauguin já não suportava o gênio indomável do holandês, e mudou-se às pressas, episódio que foi bem representado no filme “Sede de Viver” (Lust for life, 1956, direção de Vincente Minnelli), estrelado por Kirk Douglas e Anthony Quinn, nos respectivos papéis, e que rendeu ao primeiro uma merecida indicação ao Oscar.

Van Gogh tem sido um desafio médico, sobretudo psiquiatras, pelo fato de ter vivido a maior parte de sua vida atormentado por desequilíbrios emocionais, pela crônica incapacidade de estabelecer relacionamentos duradouros, por seu comportamento irascível, sua impulsividade e suas oscilações de humor. O episódio da automutilação, em que corta o lobo da orelha direita, é revelador do sofrimento mental que o obrigou a inúmeras internações psiquiátricas, e culminou com o tiro no peito, quando tinha apenas 37 anos de idade, embora já estivesse precocemente envelhecido.

Eu mesmo, como professor de psiquiatria, utilizo reproduções de seus quadros em minhas aulas sobre transtornos de humor, nos quais ficam bem caracterizadas as diferentes fases de seu estado de espírito. Mas não há consenso no meio científico – e estamos muito longe disto - sobre qual a verdadeira natureza de sua doença, ou doenças. Entretanto, recentemente foi lançado o livro “A doença e a arte de Vincent van Gogh” (Casa Leitura Médica, 2008), que lança luzes (e, não fosse seu conteúdo médico, talvez se pudesse dizer que são luzes amarelas e vibrantes) sobre a vida e obra desse pintor. A

autora, Elza Yacubian, é professora do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia, e chefe da Unidade de Epilepsia da Universidade Federal de São Paulo. Diga-se de passagem, os neurologistas também puxam a brasa para sua sardinha, vendo nas crises de van Gogh uma forma de epilepsia, embora este não seja o caso...

Elza Yacubian enumera e discute um enorme número de possíveis diagnósticos que ajudariam a explicar não só o gênio de Van Gogh, mas também sua obra. Existem indicações de que Vincent possa ter sofrido de epilepsia, sífilis, intoxicação por chumbo, abuso de absinto, porfiria, além de transtornos psiquiátricos, e seus bem documentados sintomas podem sugerir esquizofrenia, transtorno bipolar do humor ou transtorno de personalidade borderline, para ficarmos apenas com alguns. Particularmente, considero muito plausível o diagnóstico de transtorno bipolar, por suas frequentes oscilações de humor, que foram evoluindo para um estado que denominamos, em psiquiatria, de “misto”, no qual se misturam elementos de depressão e excitação, geralmente com expressões de irritabilidade e impulsividade. Fecha parênteses.

O mais interessante, nesse livro, é que sua autora não se limita a buscar explicações para a personalidade e para o comportamento social de Van Gogh, mas também para suas preferências artísticas. É claro que as alterações de humor refletem-se nas cores e nas pinceladas, mas Yacubian sugere que os raios e círculos luminosos ao redor das lâmpadas ou de outras fontes luminosas possam ser resultantes de seu glaucoma. Uma possível intoxicação digitálica (o digital era uma planta utilizada em vários tratamentos, inclusive de transtornos mentais) pode explicar igualmente sua predileção pelo amarelo, já que promove uma visão amarelo-esverdeado, assim como as manchas que circundadas por coronas, como em seu famoso “A noite estrelada”.

Seguramente algum leitor haverá de protestar contra o que escrevi acima, ou considerar tudo isso uma intromissão ilegítima na obra de um grande artista, e uma apreciação inoportuna de sua obra, a partir de um olhar médico. Não lhe tiro alguma razão de pensar assim. Quero afirmar que, no que me diz respeito, nada disso modifica a admiração pela obra desse genial – e genioso – pintor, e nem tampouco a apreciação de sua originalidade, construída arduamente com as tintas do sofrimento, mas também com um incessante trabalho e amor à arte.

(www.jornalfloripatotal.com.br. Acesso em 13/08/2011)

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