valery, paul - degas dança desenho
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15 Degas
27 Da dana
35 Rue Victor-Mass, 37
45 Degas e a Revoluo
55 Opinies
57 22 de outubro de 1905
61 Ver e traar
67 Trabalho e desconfiana
69 Cavalo, dana e fotografia
77 Do solo e do informe
83 Do nu
89 Poltica de Degas
93 Mmica
99 Digresso
101 Outra digresso
105 Degas e 0 soneto
109 Degas, louco pelo desenho.
113 Continuao do anterior
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115 Moral da histria
117 Pecado de inveja
119 Algun s "chistes" e diversas tiradas
125 Outros "chistes"
127 Reflexes sobre a paisagem e muitas outras coisas
133 Arte moderna e grande arte
135 Escoro da pintura
137 Romantismo
139 O desenho no a forma...143 Recordaes de Berthe Morisot sobre Degas
145 A linguagem das artes
151 Questes de pocas
155 Recordaes de Ernest Rouart
165 Crepsculo e fim
171 Notas biogrficas
185 Crditos das imagens
189 Sobre 0 autor
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Esta edio procurou observar as opes ortogrficas de Paul Valry.
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DEGAS
Como acontece que um leitor um pouco distrado rabisque nas
margens de uma obra e produza, ao sabor do alheamento ou dolpis, pequenos seres ou vagas ramagens, ao lado das massas
legveis, assim farei, segundo o capricho da mente, em torno
desses poucos estudos de Edgar Degas.
Acompanharei essas imagens com um pouco de texto que
seja possvel no ler, ou no ler de uma nica vez, e que tenha
com esses desenhos no mais que uma ligao frou xa e as relaes menos estreitas.
Ser, portanto, apenas um a espcie de monlogo, em que
voltaro como quiserem minhas recordaes e as diversas
ideias que formei sobre um personagem singular, grande e
severo artista, essencialmente voluntarioso , de uma inteli
gncia rara, viva , fina, inquieta; que ocultava, sob o absolutodas opinies e o rigor dos julgamentos, no sei que dvida
sobre si mesmo e que desespero de satisfazer-se, sentimentos
muito amargos e muito nobres desenvolvidos por seu conhe
cimento incomum dos mestres, sua cobia dos segredos que
lhes atribua, a presena perptua em sua mente de suas per-
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se trata de uma biografia segundo as regras; no tenho uma
opinio muito boa das biografias, o que prova apenas que no
fu i feito para escrev-las. De todo modo, a vid a de algumno passa de uma seqncia de acasos, e de respostasmais ou
menos exatas a acontecimentos casuais...
Alis, o que me importa em um homem no so os aciden-
tes,nem seu nascimento, nem seus amores, nem suas tristezas,
nem quase nada do que observvel pode me servir. No en
contro nisso a menor clareza realsobre o que lhe d seu valor eo diferencia profundamente de qualquer outro e de mim. No
estou dizendo que eu no fique muitas vezes curioso sobre
esses detalhes que no nos dizem nada de concreto; o que me
interessa no sempre o que me importa,e todo mundo faz o
mesmo. Mas deve-se tomar cuidado com o que divertido.
Muitas das caractersticas de Degas que relato aqui no sode minha lembrana. Devo-as a Ernest Rouart, que o conhe
ceu intimamente desde a infncia, cresceu na admirao e no
temor reverente daquele mestre extravagante, alimentou-se
de seus aforismos e preceitos e levou a efeito por sua injuno
imperiosa diversas experincias de pintura ou de gravura das
quais apresentarei textualmente o relato cheio de humor e preciso que ele teve a gentileza de redigir para mim.
Por fim, nenhum a esttica; nenhuma crtica,ou o menos
possvel.
Degas, generoso para poucas coisas, no era dcil para com
a crtica e as teorias.Ele dizia de bom grado e repetia no final
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Comme il arrive quun le
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da vida que as Musas nunca discutem entre si. Trabalham o
dia inteiro, bem separadas. Ao cair da noite e depois de cum
prida a tarefa, ao se encontrarem, elas danam: elas no falam.Ele era contudo grande polemista e argumentador terrvel,
particularmente excitvel sobre assuntos de poltica e de dese
nho. Jamais cedia, alterava rapidamente a voz, lanava as pa
lavras mais duras, cortava bruscamente. Alceste,1 perto dele,
pareceria um homem fraco e singelo. Mas, devido ao sangue
napolitano que nele co rria e que o fazia alcanar logo o tommais agudo, podia-se sentir que s vezes apreciava o fato de
ser intratvel e conhecido por todos como tal.
Tambm tinha momentos encantadores.
Conheci Degas na casa do senhor Henri Rouart, por volta
de 93 ou 94,2 apresentado aos de l por um de seus filhos, e logo
amigo dos trs outros.A manso da rue de Lisbonne estava repleta, desde a porta
at o quarto mais alto, de quadros apuradamente escolhidos.
At mesmo o zelador, tomado de paixo pela arte, cobrira as
paredes de sua guarita com telas s vezes boas, compradas no
leilo que freqentava com a mesma assiduidade com a qual
outros serviais vo s corridas de cavalo. Quando era felizem sua escolha, o patro lhe comprava o quadro, que passava
rapidamente da guarita para a sala de estar.
1. Personagem doMisantropo, de Molire [n. t.].
2. Em 1893 ou 1894 [n .t.].
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Eu admirava, venerava no senhor Rouart a plenitude de
uma carreira na qual quase todas as virtudes do carter e do
esprito encontravam-se combinadas. Nem a ambio, nem a
inveja, nem a vontade de aparecer o atormentavam. Am ava
apenas os verdadeiros valores, que era capaz de apreciar em
mais de um domnio. O mesmo homem que foi um dos maiores
colecionadores de sua poca, que apreciou e adquiriu prem a
turamente as obras de pintores como Millet, Corot, Daumier,
Manet e El Greco , devia sua fortuna a suas construes de
mecnica, s invenes que ele levava da teoria pura tcnica
e da tcnica ao estgio industrial. O reconhecimento e afeto
que guardo pelo senhor Rouart no devero mais se manifes
tar aqui. Direi apenas que o coloco entre os homens que mais
impresso causaram em minha mente. Suas pesquisas de
metalrgico, de mecnico e de criador de mquinas trmicas
nele se conciliavam com uma paixo ardorosa pela pintura; co
nhecia-a como um artista e at mesmo a praticava como verda
deiro pintor. Mas sua modstia fez com que sua obra pessoal,
curiosamente precisa, permanecesse quase desconhecida e o
bem exclusivo de seus filhos.
Aprecio que o mesmo homem possa conduzir diversos tra
balhos e propor para si mesmo dificuldades de variadas catego
rias. s vezes, quando algum problema desafiava suas lembran
as matemticas, o senhor Rouart recorria a colegas de outrora
que no haviam deixado, desde a Escola Politcnica, de culti
var e aprofundar a anlise. Consultava Laguerre, grande ge-
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mites, os artistas que fazem sucesso;cita Saint-Simon, Proudhon,
Racine e as sentenas bizarras de Ingres... Parece-me que ainda o
ouo. Seu anfitrio, que o adorava, escutava-o com uma indulgncia admirativa, enquanto outros convivas, jovens, velhos generais,
senhoras mudas, apreciavam de forma diferente os exerccios de
ironia, esttica ou violncia do maravilhoso criador de chistes.
Eu observava com interesse o contraste entre aqueles dois
tipos de homem de grande valor. Espanto-me s vezes com que
a literatura tenha explorado to raramente a diferena entreos intelectos, as concordncias e as discordncias que surgem,
com poder e atividade mental iguais, entre os indivduos.
Assim, conheci Degas na mesa do senhor Rouart. Tinha dele
uma ideia formada a partir de algumas obras suas que eu vira,
e de alguns ditosseus que se repetiam por a. Sempre achomuito interessante comparar uma coisa ou um homem com a
ideia que eu fazia deles antes de os ver. Se a ideia precisa, seu
confronto com o objeto em si pode nos ensinar algo.
Essas comparaes nos do certa medida de nossa faculdade
de imaginar com base em dados incompletos. Mostram-nos no
vamente tambm toda a vaidade das biografias em particular, eda histria em geral. verdade, todavia, que uma coisa ainda
mais instrutiva: a espantosa inexatido provvelda observao
imediata, a falsificao que obra de nossos olhos. Observar,
em grande parte, imaginar o que esperamos ver. H alguns
anos, uma pessoa que conheo, alis bastante popular, tendo
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ido a Berlim para fazer uma conferncia, foi descrita por mui
tos jornais que concordaram em achar que tinha olhos negros.
Seus olhos so muito claros, mas ela vem do sul da Frana;
os jornais sabiam desse fato e enxergaram em funo dele.
Eu fazia de Degas a ideia de um personagem reduzido ao r i
gor de um desenho duro, um espartano, um estoico, um jan-
senista artista. Uma espcie de brutalidade de origem inte
lectual era sua caracterstica essencial. Pouco tempo antes eu
tinha escrito Monsieur Teste,3e esse pequeno ensaio de um
retrato imaginrio, embora feito de observaes e relaes
verificveis, to precisas quanto possvel, no deixava de ter
sido mais ou menos influenciado(como se diz) por um certo
Degas que eu imaginava.A concepo de diversos monstros de
inteligncia e conscincia de si assombrava-me com alguma
frequn cia naquela poca. As coisas vagas me irritavam , e
espantava-me que em ordem nenhuma houvesse quem talvez
consentisse em levar seus pensamentos at o fim...
Em minha prefigurao de Degas, nem tudo era fantstico.
Como eu poderia ter previsto, o homem era mais complexo do
que eu esperava.
3. La Soire avec M onsieur Teste[1896] foi a primeira das inmeras peas do
ciclo Teste.Degas recusou a dedicatria do livro, que foi publicado pela pri
meira vez em Le Centaure[n.e.].
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ser deixado em silncio. No se conta em nenhuma Histria da
Literaturaque alguns segredosda arte dos versos foram trans
mitidos desde o final do sculo x v i at o fim do sculo x ix , e
que seria fcil discernir, entre os poetas desse perodo, os que
seguiram e os que ignoraram esses ensinamentos. E existe algo
mais interessante do que as opinies recprocas de que falei?
Pouco tempo antes de sua morte, Claude Monet contou-me
que, no incio de sua carreira, tendo exposto algumas telas em
um marchand da rue Laffitte, esse homem viu um dia parar na
frente de sua vitrina um personagem e sua companheira, am
bos de aspecto digno, e burgueses at quase majestade. O se
nhor, em face dos Monet, no pde se conter: entrou, fez uma
cena; no concebia que fosse possvel expor tamanhos horrores.
Reconheci-o facilmente, acrescentou o marchand quando en
controu Monet e lhe fez o relato. Quem era?, perguntou Mo
net. Daumier..., disse o marchand. Pouco tempo depois desse
episdio, as mesmas obras ainda na mesma vitrina, e estando
Monet desta vez presente, um desconhecido, por sua vez, se
detm, observa longamente, franze os olhos, empurra a porta
e entra. Que linda pintura, diz, quem fez isto?. O marchand
apresenta o autor. Ah! Senhor, que talento... etc. Monet der
rama-se em agradecimentos. Quer saber o nome de seu admira
dor. Sou Descamps, diz o outro, antes de afastar-se.
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DA DANA
Por que no falar um pouco da Dana, quando se trata do pin
tor das Bailarinas?
Gostaria de fazer uma ideia bastante ntida dela, e me ar
ranjarei como puder, diante de todos.
A Dana uma arte dos movimentos humanos, daqueles
que podem ser voluntrios.
A maior parte de nossos movimentos voluntrios tem uma
ao exterior como fim: alcanar um lugar ou um objeto, ou
modificar alguma percepo ou sensao em um ponto deter
minado. So Toms dizia muito bem: Primum in causando,
ultimum est in causato.
Atingido o objetivo, terminada a atividade, nosso movi
mento, que estava de algum modo inscritona relao de nosso
corpo com o objeto e com nossa inteno, cessa. Sua determinao continha sua exterminao; no se podia nem conceb-lo
nem execut-lo sem a presena e o concurso da ideia de um
acontecimento que fosse seu termo.
Esse tipo de movimento efetua-se sempre segundo uma lei
de economia de foras, que pode ser complicada por diversas
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condies, mas que no pode deixar de reger nosso dispndio.
No se pode nem imaginar ao exterior terminada,sem que
certo mnimo se imponha mente. Se penso em me dirig ir da
toile ao Museu, no pensaria nunca que posso tambmreali
zar meu desgnio passando pelo Panthon.
Mas h outros movimentos cuja evoluo no excitada,
nem determinada, nem possvel de ser causada e concluda por
nenhum objeto localizado. Nenhuma coisaque, alcanada, traga
a resoluo desses atos. Cessam apenas mediante alguma inter
veno alheia a sua causa, sua figura, sua espcie; e, em vez de
estarem submetidos a condies de economia, parecem, ao con
trrio, ter a prpria dissipao por objeto.
Os saltos, por exemplo, e as cambalhotas de uma criana,
ou de um co, a caminhada pela caminhada, o nado pelo nado,
so atividades que tm como fim apenas modificar nosso senti
mento de energia, criar certo estado desse sentimento.
Os atos dessa classe podem e devem multiplicar-se, at que
uma circunstncia completamente diversa de uma modifica
o exterior, que eles tiverem produzido, intervenha. Essa cir
cunstncia ser uma qualquerem relao a eles: cansao,por
exemplo, ou conveno.
Esses movimentos, que tm neles mesmos seu fim, e que
tm como fim criar um estado,nascem da necessidade de serem
realizados, ou de uma ocasio que os excite, mas esses impulsos
no determinam nenhuma direo no espao. Podem ser de
sordenados. O animal, farto da imobilidade imposta, evade-se,
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bufa, fugindo de uma sensao e no de uma coisa; extravasase
em galope e travessuras. Um homem, em quem a alegria, ou a
raiva, ou a inquietude da alma, ou a brusca efervescncia das
ideias, libera uma energia que nenhum ato preciso pode absor
ver e esgotar em sua causa, levanta-se, vai, caminha a largos
passos apressados, obedece, no espao que percorre sem ver,
ao aguilho dessa potncia superabundante...
Mas existe uma form a notvel desse dispndio de nossas
foras, que consiste em ordenar ou organizar nossos movimen
tos de dissipao.
Dissemos que, nesse gnero de movimento, o Espao era
apenas o lugar dos atos: ele no contm seu objeto. o Tempo,
agora, que desempenha o papel mais importante...
Esse Tempo o tempo orgnico tal como encontrado
no regime de todas as funes alternativas fundamentais da
vida. Cada uma delas efetua-se por meio de um ciclo de atos
musculares que se reproduz, como se a concluso ou o tr
mino de cada um deles engendrasse o impulso do seguinte.
A partir desse modelo, nossos membros podem executar uma
seqncia de figurasque se encadeiam umas s outras, e cuja
frequncia produz uma espcie de embriaguez que vai do lan-
gor ao delrio, de uma espcie de abandono hipntico a uma
espcie de furor. O estado de danaest criado. Uma anlise
mais sutil a veria sem dvida um fenmeno neuromuscular
anlogo ressonncia,que ocupa um lugar to importante na
fsica; mas que eu saiba essa anlise no foi feita...
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0 Universo da Dana e o Universo da Msica tm relaes
ntimas sentidas por todos, mas ningum apreendeu at agora
seu mecanismo, nem mostrou sua necessidade.
Nada mais misterioso do que essa percepo to simples
de enunciar: a igualdade de durao,ou de intervalos de tempo.
Como podemos estimar que rudos se sucedem em intervalos
iguais,soar batidas igualmente distantes? E o que significa at
mesmo essa igualdadeafirmada por nossos sentidos?
Ora, a Dana engendra toda uma plstica: o prazer de dan
ar irradia a seu redor o prazer de ver danar.
Dos mesmos membros compondo, decompondo e recom
pondo suas figuras, ou de movimentos respondendo-se em
intervalos iguais ou harmnicos, forma-se um ornamento da
durao,assim como da repetio de motivos no espao, ou de
suas simetrias, forma-se o ornamento da extenso.Esses dois modos, por vezes, transformam-se um no ou
tro. Veem-se, nos bals, instantes de imobilizao do conjunto,
durante os quais o agrupamento dos danarinos prope aos
olhares um cenrio fixo, mas no durvel, um sistema de cor
pos vivos repentinamente congelados em suas atitudes, que
oferece uma imagem singular de instabilidade. Os sujeitosesto como que presos em poses bastante distantes daquelas
que a mecnica e as foras humanas permitem manter... ou
imaginar outra coisa.
Da resulta esta maravilhosa impresso: que no Universo
da Dana o repouso no tem lugar; a imobilidade coisa im-
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Essa observao profunda no somente profunda: verda
deira; e no somente verdadeira, isto , fortalecida cada vez mais
com a reflexo, mas tambm verificvel, e eu a vi verificada.
A mais livre, a mais flexvel, a mais voluptuosa das danas
possveis apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes
Medusas: no eram mulheres e no danavam.
No so mulheres, mas seres de uma substncia incompa
rvel, translcida e sensvel, carnes de vidro alucinadamente
irritveis, cpulas de seda flutuante, coroas hialinas, longascorreias vivas p ercorridas por ondas rpidas, franjas e pre
gas que dobram, desdobram; ao mesmo tempo que se viram, se
deformam, desaparecem, to fluidas quanto o fluido macio
que as comprime, esposa, sustenta por todos os lados, d-lhes
lugar menor inflexo e as substitui em sua forma. L, na ple
nitude incompressvel da gua que no parece opor nenhumaresistncia, essas criaturas dispem do ideal da mobilidade, l
se distendem, l recolhem sua radiante simetria. No h solo,
no h slidos para essas bailarinas absolutas; no h palcos;
mas um meio onde possvel apoiar-se por todos os pontos que
cedem na direo em que se quiser. No h slidos, tampouco,
em seus corpos de cristal elstico, no h ossos, no h articulaes, ligaes invariveis, segmentos que se possam contar...
Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada
de movimento, do veneno de suas foras excedidas, da pre
sena ardente de olhares carregados de desejo, expressou a
oferenda imperiosa do sexo, o apelo mmico da necessidade de
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prostituio, como aquela grande Medusa, que, por espasmos
ondulatrios de sua torrente de saias engrinaldadas, que ela
arregaa repetidas vezes com uma estranha e impudica insistn
cia, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente, rejeitando
todos seus folhos vibrteis, seus vestidos de lbios recortados,
vira-se ao avesso e se expe, furiosamente aberta.
Mas imediatamente se recompe, freme e se propaga em
seu espao, e sobe como balo regio luminosa proibida onde
reinam o astro e o ar mortal.
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RUE VICTOR-MASS, 37
Degas agradava e desagradava. Ele possua e afetava o pior car
ter do mundo, com dias encantadores que ningum sabia prever.
Era divertido nesses momentos; seduzia com um misto de piada,
chiste e fam iliaridade, no qual entrava algo do aprendiz dos
atelis de outrora, e no sei que ingrediente vindo de Npoles.
Acontecia-me de bater sua porta muito ansioso com a recep
o. Ele abria com desconfiana. Reconhecia-me. Era um dia
bom. Ele me recebia em um cmodo comprido, sob o telhado,
com ampla face envidraada (com vidros pouco lavados) onde a
luz e a poeira estavam felizes. L amontoavam-se o lavatrio,
a banheira de zinco fosco, os robes sem frescor, a bailarina de
cera com tutu de gaze verdadeira, em sua gaiola de vidro, e os
cavaletes carregados de criaturas feitas a carvo, perfis, torsossegurando um pente em torno de sua espessa cabeleira esticada
pela outra mo. Ao longo da vidraa vagamente varrida pelo
sol, corria uma mesinha estreita, toda amontoada com caixas,
frascos, lpis, pedaos de pastis, pontas e coisas sem nome que
sempre podem servir...
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Ocorre-me por vezes de achar que o trabalho do artista
um tipo muito antigo de trabalho; o prprio artista uma so
brevivncia, um operrio ou arteso de uma espcie em vias
de extino, que fabrica fechado em seu quarto, usa procedi
mentos muito pessoais e muito empricos, vive na desordem e
na intimidade de suas ferramentas, v o que quer e no o que o
cerca, usa potes quebrados, sucata domstica, objetos condena
dos... Talvez essa condio esteja mudando, e vejamos opor-se
ao aspecto dessas ferram entas improvisadas e do ser singular
que se acomoda nelas o quadro do laboratrio pictrico de um
homem rigorosamente vestido de branco, com luvas de bo rra
cha, obedecendo a um horrio muito preciso, armado de apa
relhos e instrumentos estritamente especializados: cada qual
com seu lugar e uma oportunidade exata de uso?... At aqui, o
acaso ainda no foi eliminado dos atos; o mistrio, dos proce
dimentos; a embriaguez, dos horrios; mas no garanto nada.
Esse ateli sem luxo ocupava o terceiro andar da casa em que
Degas morava quando o conheci, na rue Victor-Mass. No
prim eiro andar, instalara o seuMuseu,composto por alguns
quadros que havia adquirido com seus tostes ou por meio
de troca. No segundo, seu apartamento. Havia pendurado
as obras que preferia, suas ou de outros: um Corot grande e
muito bonito, carves de Ingres, e certo estudo de ba ilarina
que toda vez despertava minha inveja. Ele no a havia exata
mente desenhado e sim verdadeiramente construdo e articu
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lado como a uma marionete: um brao e uma perna dobrados
em ponta, o corpo rgido, uma vontade implacvel no desenho,
alguns detalhes em vermelho aqui e acol. Eu pensava, ao olhar
aquela obra, em um desenho de Holbein que est em Basel,4 e
que representa uma mo.Suponham que se faa uma mo de
madeira, como aquela que se ajusta ao punho de um maneta, e
que um artista a tenha desenhado antes de estar acabada, com
os dedos j reunidos e meio dobrados, mas ainda no refinados,
de modo que as falanges sejam outros tantos dedos alongados,
com uma seo quadrada.Assim a mo de Basel. Perguntei-me
se esse curioso estudo no tivera, no pensamento de Holbein,
o significado de um exerccio contraa flexibilidade e a rotun-
didade do desenho.
Alguns pintores de nosso tempo parecem ter entendido
a necessidade de construesdesse tipo; mas confundiram oexerccio e a obra, e tomaram como fim o que deveria ser ape
nas um meio. Nada mais moderno.
Terminaruma obra consiste em fazer desaparecer tudo o
que mostra ou sugere sua fabricao. O artista deve apenas,
segundo essa condio ultrapassada, revelar-se por seu estilo,
e deve manter seu esforo at que o trabalho tenha apagado asmarcas do trabalho. Mas, como a preocupao com a pessoa
e com o instante supera pouco a pouco a preocupao com a
obra em si e com a durao, a condio de acabamento passou
4. Estudo de mos,1520 , Kunstmuseum, Basel [n . e .].
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a parecer no s intil e incmoda, como at mesmo contrria
verdade, sensibilidadee manifestao dognio.A perso
nalidade tornou-se essencial, at mesmo para o pblico. O es
boo igualou-se ao quadro. Nada mais distante dos gostos ou,
se quiserem, das manias de Degas.
Naquele apartamento do segundo andar encontrava-se
uma sala de jantar onde comi relativamente mal muitas vezes.
Degas temia a obstruo e a inflamao intestinais. A vitela
sem nenhum tempero e o macarro cozido em gua pura que
a velha Zo nos servia, muito devagar, eram de uma in sip i
dez rigorosa. Era preciso consumir depois um certo doce de
laranja de Dundee que eu no conseguia aguentar, acabei su
portando, e creio no detestar maispor causa da recordao.
Quando acontece que eu prove, hoje, esse pur penetrado de
pequenas fibras cor de cenoura, volto a me ver sentado na
frente de um homem velho horrivelmente solitrio, entregue
a pensamentos lgubres, privado, pelo estado de sua viso, do
trabalho que foi toda a sua vida. Ele me oferece um cigarro,
duro como um lpis, que rolo entre as mos para torn-lo fu-
mvel; e essa ao, todas as vezes, chama sua ateno. Zo traz
o caf, encosta sua grande ba rriga na mesa e conversa. Fala
muito bem; parece que foi professora prim ria; os enormes
culos redondos que usa do um aspecto bastante erudito ao
rosto largo, honesto e sempre srio.
Zo cuida da casa, assistida por uma moa que se chama Ar-
gentine. Uma noite, Argentine corre assustada em nossa dire
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o, gritando que sua tia est morrendo. Degas parece perder a
cabea. Eu voo at a cozinha, deito a doente no cho, dispenso-
-lhe alguns cuidadosao acaso; o mal-estar passa e assistimos
ressurreio de Zo. Degas fica encantado, cheio de reconheci
mento: ele viu um milagre. Quanto a mim, fico espantado com
a carncia das noes mais simples e das prticas mais elemen
tares em um homem to inteligente, e alis nutrido com as le-
tras clssicas.Em muitos pontos ele tinha ideias de camponesa.
A instruo que se dispensava por volta de 1850 nos col
gios devia ser to absurda, embora maisforte,quanto a que se
d hoje. Nenhum dos premiados do Concurso Geral5 teria sido
capaz de mostrar no cu as estrelas de que fala Virglio; e esses
fabricantes de versos latinos ignoram radicalmente que existe
uma msica do verso francs. Nem a limpeza, nem as menores
noes de higiene, nem a arte de se portar, nem mesmo a pro
nncia de nossa lngua apareciam nos programas desse ensino
inacreditvel, de cujas concepes o corpo, os sentidos, o cu,
as artes e a vida social eram cuidadosamente excludos...
O quarto de Degas repetia a mesma negligncia do resto,
pois tudo, naquela habitao, lembrava a ideia de um homem
que no faz mais questo de nada a no ser da vida, e porquedela se faz questo apesar de tudo e apesar de si. Havia l al
gum mvel estilo Imprio ou Lus Felipe. Uma escova de dentes
ressecada em um copo, com as cerdas meio tingidas de um cor-
5. Exame nacional de fim de curso secundrio [n .t.].
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-de-rosa morto, lembrava-me aquela que se v no ncessairede
Napoleo, no Museu Carnavalet ou em algum outro.
Uma noite em que ia trocar de camisa para jantar fora, Degas me fez entrar naquele quarto com ele. Ps-se inteiramente
nu na minha frente e vestiu-se, sem o menor pudor. Entro no
ateli. L, vestido como um pobre, de chinelos, com as calas
largas e nunca fechadas, circula Degas. Uma porta aberta deixa
ver claramente no fundo os lugares mais secretos.
Penso que esse homem foi elegante, que seus modos, quando
quer, tm a distino mais natural, que passava suas noites nos
bastidores da pera, que freqentava a pesagem de Longchamp,
que foi o observador mais sensvel da forma humana, o mais
cruel amante das linhas e das atitudes das mulheres, um co
nhecedor sofisticado das belezas dos cavalos mais finos, o desenhista mais inteligente, o mais reflexivo, o mais exigente, o
mais insistente do mundo... Ele tambm foi o homem de esp
rito, o conviva cujas palavras resumem, em um ato soberano de
abuso da justia, algumas verdades bem escolhidas e matam...
Ei-lo, velhote nervoso, quase sempre sombrio, por vezes sinis
tro e tristemente distrado, com recargas repentinas de furor
ou de esprito, impulsos ou impacincias infantis, caprichos...
s vezes, volta a si: tem iluminaes, momentos de uma de
licadeza comovente.
Mas hoje um dia bom. Ele canta para mim em italiano umacavatina de Cimarosa.
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Coisa pouco comum entre os artistas, Degas era um homem
de bom gosto.Declarava s-lo e era.
Apesar de nascido em pleno Romantismo, de lhe ter sido
preciso, perto de sua maturidade, tomar parte no movimento
naturalista, ter relaes com Duranty, Zola, Goncourt, Duret...,expor com os primeiros impressionistas, no deixava de ser
um desses connaisseursmuito agradveis, obstinada, volup
tuosamente estreitos, impiedosos para com as novidades que
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so apenas novas, alimentados por Racine e pela msica antiga,
amantes das citaes e clssicos at ferocidade, extravagn
cia, s discusses, os quais infelizmente so uma raa extinta.
Ser que ele se tornou esse personagem ao envelhecer, ele
que, apesar de seu culto por Ingres, havia admirado apaixona
damente Delacroix?
Acontece, com a idade, que o homem, insensivelmente, espe
lhe-se nos velhos que observava em sua juventude e que achava
ridculos ou insuportveis. s vezes lhes adota os modos, torna-
-se mais solene, mais corts, mais imperioso, s vezes mais ga
lante ou at assanhado , do que foi na poca de sua juventude.
Ele me faz lembrar de pessoas muito idosas, que eu via, h
muito tempo na provncia, e que no se vestiam mais como
haviam se vestido durante a maior parte de sua existncia, mas
moda dos velhos de sua juventude. Certo marqus acabou usando
coletes cor de lua e monculo quadrado.
Degas, homem de bom gosto, estava nesse ponto mais atra
sado do que muitos de sua idade, ao passo que, em funo da ver
dadeira ousadia e preciso de seu esprito, estava, por outro lado,
avanado em relao a muitos artistas, seus contemporneos. Foi
um dos primeiros a entender o que a fotografia poderia ensinar
ao pintor, e o que o pintor deveria evitar tomar emprestado dela.
Sua obra talvez tenha sofrido com a notvel quantidade e a
diversidade de seus apetites artsticos bem como com a inten
sidade de sua ateno sobre os pontos mais elevados, mas os
mais opostos, de seu trabalho.
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Todas as artes observadas por muito tempo aprofundam-se
em problemas insolveis. O olhar prolongado gera uma infi
nidade de dificuldades, e essa gerao de obstculos imaginrios, desejos incompatveis, escrpulos e arrependimentos,
proporcional, ou ento muito mais do que proporcional,
inteligncia e aos conhecimentos que se possuem. Como esco
lher entre o partido de Rafael e o dos Venezianos, sacrificar
Mozart a Wagner, Shakespeare a Racine? Esses problemas no
tm nada de trgico para o amador nem para o crtico. Para oartista so tormentos da conscincia renovados a cada obser
vao que ele faz sobre o que acabou de realizar.
Degas encontra-se preso entre os preceitos de Ingres e os
estranhos encantamentos de Delacroix, e, enquanto hesita, a
arte de sua poca decide explorar o espetculo da vida mo
derna. As composies e o grande estilo envelhecem a olhosvistos junto opinio pblica. A paisagem invade as paredes
que os Gregos, os Turcos, os Cavaleiros e os Cupidos abando
nam. Destri a noo de tema,reduz em poucos anos toda a
parte intelectual da arte a uns poucos debates sobre a matria
e a cor das sombras. O crebro torna-se pura retina, e no se
trata mais de procurar expressar com o pincel os sentimentos de alguns velhotes diante de uma bela Susana, ou a nobre
resistncia de um grande mdico a quem oferecem milhes.
Por volta da mesma poca, a erudio e a explorao do
mundo trazem novos elementos de prazer e dvida. Muitos
modos de ver inditos ou esquecidos so afirmados. O gosto
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pelos primitivos declara-se: Gregos da poca urea, Italianos,
Flamengos, Franceses... Por outro lado, as miniaturas da Pr
sia, e principalmente as estampas do Japo, vm fazer-se admi
rar e estudar pelos artistas, enquanto Goya e Theotocopoulos6
entram na moda ou voltam a ela. Por fim, a chapa sensvel
Esse o problema para Degas, que nada desconhece, apro
veita e portanto sofre com tudo.
Ele admira e inveja a segurana de Manet, cujo olho e mo
so certezas, que v infalivelmente aquilo que, no modelo, dar-
-lhe- a oportunidade de mostrar toda a sua fora, de executar
o mximo. H em Manet um poder decisivo, uma espcie de
instinto estratgico da ao pictrica. Em suas melhores telas,
ele alcana apoesia,ou seja, o pice da arte, por meio daquilo
que me permitiro chamar de... a ressonncia da execuo.
Mas como falar de pintura?
6 . Domenikos Theotocopoulos, nome do pintor El Greco [n .e .],
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DEGAS E A REVOLUO
Em 28 de julho de 1904, Degas me conta a seguinte recordao
Tinha uns quatro ou cinco anos. Sua me, certo dia, levou 1para visitar a senhora Le Bas, viva do famoso convencional,
amigo de Robespierre, que se matou com um tiro de pi;iolas
no dia 9 de termidor. O filho da senhora Le Bas, Philippe. era
um erudito eminente. Havia sido preceptor dos tios de I)ena?
A velha senhora morava na rue de Tournon. Degas lem
brava-se da cor vermelhado piso de cermica encerada quecobria o apartamento.
Terminada a visita, enquanto a senhora Degas, segura 11* l
0 filho pela mo, retirava-se, acompanhada at a porta pela ne
nhora Le Bas, viu nas paredes do corredor de entrada os relra
tos de Robespierre, Saint-Just, Couthon...
Como exclamou , a senhora ainda conserva as cabeadesses monstros...
Cale-se, Clestine, eles eram santos...
No mesmo dia 28 de julho de 1904, Degas, animado com ai
recordaes, falou-me sobre seu av, que conheceu e cujo re
trato fez em Npoles (ou Roma?) em 18...
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Esse av especulava com trigo durante a Revoluo. Um
dia, em 1793, quando estava fazendo seus negcios na Bolsa
de Gros, ento instalada no Palais-Royal, um amigo passou
s suas costas e murmurou: Caia fora!... Fuja!... Esto atrs de
voc na sua casa....
Ele no perde tempo, toma emprestados todos os assignats7
que consegue encontrar na praa, sai imediatamente de Paris,
esgota dois cavalos, chega a Bordeaux, embarca em um navio
que estava de sada. O navio chega a Marselha. Esse navio, se
gundo o relato de Degas (que evito interromper), carrega pe
dra-pomes em Marselha, 0 que me parece inverossmil... Talvez
fosse buscar enxofre na Siclia.
O senhor Degas chega por fim a Npoles, onde se estabe
lece. Era um homem to capaz e to honesto que encarregado,
dois anos depois de sua chegada, de cr iar o Grande Livro da
Dvida Pblica da Repblica Partenopeia, inveno recente
de Cambon. Desposa uma senhorita nobre de Gnova, uma
Frappa, e constitui famlia.
Degas conservara relaes familiares em Npoles para
onde ia s vezes. Numa dessas viagens, contudo, foi vtima
de um roubo no trem. Afirmava que lhe haviam dado uma in
jeo, enquanto dormia, e inoculado alguma substncia n ar
ctica poderosa, e que roubaram sua carteira aproveitando
aquele sono reforado.
7. Papel-moeda emitido na Frana durante a Revoluo de 1790[n .t .].
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(como costume em todas as perseguies polticas bem entendi
das) todas aquelas que, de perto ou de longe, lhe diziam respeito.
Aquele Mallarm , eu sabia, era da famlia do poeta, ances
tral direto ou no.
Demorei-me com prazer no pensamento delicioso de um
Mallarm preocupado em mandar cortar a cabea de um De
gas, e as relaes entre Edgar Degas e Stphane Mallarm vol
taram minha memria.
Essas relaes no eram, nem poderiam ser, muito simples.
Nada se parecia menos com o carter deliberadamente duro,e di
reto at brutalidade, de Degas do que o carter deliberadode
Mallarm. Mallarm viv ia para certo pensamento: uma obra
imaginria absoluta, meta suprema, justificativa de sua exis
tncia, fim nico e nico pretexto do universo, habitava-o. Ele
havia transformado, reconstrudo sua vida exterior, sua atitude
para com os outros e com as circunstncias, com vistas pre
servao e edificao sempre mais precisa da ideia essencial,
pura, sublime, qual remetia todos os valores. provvel que
os homens e as obras valessema seus olhos e se classificassem
segundo o sentimento mais ou menos definido que neles encon
trava daquela verdadeque havia descoberto. Ou seja, ele devia
abolir mentalmente, guilhotinar idealmente muitos seres: isso o
levava a se apresentar para todos com uma graa, uma pacincia,
uma cortesia verdadeiramente raras,a abrir sua porta a todos, a
responder nos termos mais elegantes, e sempre os mais novos em
seu estilo, a todas as cartas... Surpreendia devido a sua prodigiosa
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civilidade refinada e a seu sistema de gentilezas universais, com
os quais eu ficava ingenuamente chocado, mas com os quais ele
criara para si uma esfera de proteoimpenetrvel, em que a mara
vilha de seu orgulho permanecia perfeitamente sua, tesouro da
intimidade daquele homem com sua prpria estranheza.
Nada se parecia menos com a intransigncia definitiva de
Degas, com seus julgamentos expressos em chistes implac
veis, com as execues sumrias e sarcsticas a que jamais se
recusava, com seu amargor sempre sensvel, com suas te rr veis variaes de humor, com suas raivas, do que o estilo equi
librado, ameno, delicado, deliciosamente irnico de Mallarm.
Creio que Mallarm, de alguma forma, temia bastante
aquela personalidade to diferente da sua.
Quanto a Degas, ele falava de forma muito amvel de Mal
larm, mas principalmente do homem. A obra parecia-lhe frutode uma doce demncia que teria atacado a mente de um poeta
maravilhosamente talentoso. Esses erros de julgamento no so
raros entre artistas. facilmente concebvel que eles fossem fei
tos para no se entender. Alis, os relatos de Mallarm ofere
ciam grandes oportunidades para os zombadores e os piadistas
de toda estirpe. A opinio de Degas era totalmente conforme,nesse ponto, com a dos freqentadores do Grenier de Goncourt,9
9. Crculo literrio criado em 1885 no segundo andar da manso dos irmos
Goncourt, onde se reunia a nata da literatura da poca, dando origem Aca
demia Goncourt e ao prmio literrio de mesmo nome [n .e .].
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onde Mallarm ia de vez em quando. Aqueles escritores o
achavam encantador, e maravilhava-os que um homem de
uma inteligncia to refinada e que se expressa va com uma
pureza, uma preciso, uma arte de dizer e sugerir incompa
rveis, pudesse produzir monstros de obscuridade e de com
plicao quando escrevia, e acima de tudo resolver enfrentar
o pblico cujos favores e a clientela eles mesmos buscavam to
avidamente. Aquela pequena sociedade de grandes autores,
sedentos por tiragensimportantes e furiosamente invejosos
uns dos outros, ficaria muito espantada se algum previsse queno demoraria meio sculo para que baixasse ao extremo a auto
ridade de suas doutrinas, o renome e a venda de seus romances,
enquanto a obra pequena e absconsa,independente da moda
e do nmero, desenvolveria nas mentes mais atentas todos os
poderes da perfeio devido a suas virtudes formais to longa
e rigorosamente elaboradas.Certo dia, enquanto conversavam no Grenier, Zola disse a
Mallarm que, para ele, a m... va lia o mesmo que o diamante.
Sim, disse Mallarm, mas o diamante... mais raro.
Degas no se privava de fazer diversos ataques dos quais a
poesia de Mallarm era o objeto:
Vtima lamentvel a seu destino oferecida...
Contava, por exemplo, que, um dia, Mallarm leu um soneto
para alguns discpulos e estes, em sua admirao, quiseram
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parafrasear o poema, explicando-o cada um a seu modo: uns
viam um pr de sol, outros o triunfo da aurora; Mallarm lhes
disse: Nada disso... Trata-se da minha cmoda.
Parece que Degas chegou a contar essa histria na frente
de seu heri, que dizem ter sorrido ao ouvi-la, mas com umsorriso meio forado.
Acrescento que a prpria anedota me parece pouco veros
smil. Mallarm, que eu saiba, nunca lia seus versos na frente de
testemunhas. Na verdade, leu para mim o Lance de dados em
1897; mas foi a ss, e a extraordinria novidade da obra pareceu-
-lhe, sem dvida, justificar uma experincia direta de seu efeito.
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Por fim, houve entre Degas e Mallarm conflitos singulares
dos quais o carter indcil do primeiro era a causa invarivel.
Mallarm teve a ideia de fazer com que o Estado comprasse
um Degas. Consegue obter de seu amigo Roujon, na poca dire
tor da Escola de Belas-Artes, a deciso que desejava e voa para
a casa de Degas.
Degas, a quem a simples meno do nome Belas-Artes
lanava a extremos de furor, entra em uma crise de raiva con
fusa, vomita in jrias e antemas, vai de um lado a outro no
ateli como um leo bravo em sua jaula.
Os cavaletes pareciam um joguete entre suas mos, dizia
Mallarm.
E acrescentava, segundo o relato que me fez a senhora Er-
nest Rouart,10 que ele mesmo teria gostado de alimentar um
verdadeiro sentimento de clera, bem conduzido, regulado
com sensatez, e no aquela raiva discordante e grosseira.
Houve outras discusses entre eles.
Como essas relaes entremeadas de tempestades eram
minhas conhecidas, a descoberta que fiz casualmente do pa
pel desempenhado pelo convencional Mallarm na fuga para
Npoles do av de Degas e, por conseguinte, na gerao de
nosso pintor, divertiu-me amide.
10. A senhora Ernest Rouart Julie Manet, filha de Berthe Morisot e sobrinha
do pintor douard Manet [n .e .].
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Aquele Mallarm (Franois-Auguste), nascido em Lorraine
por volta de 1756, foi deputado pela Meurthe na Assembleia Le
gislativa, depois convencional e a favor da pena de morte para 0
rei Lus xvi. No dia 9 de nivoso do ano II, 0 Comit de Salvao
Pblica enviou-o para os departamentos da Meuse e Moselle,
em misso muito especial para a execuo das medidas de sal
vao pblica e para o estabelecimento do governo revolucio
nrio. Foi assim que ele conheceu 0 caso de Verdun, precisou
perseguir, segundo todos os rigores das leis, os causadores dedistrbios, os quais mandou para 0 tribunal revolucionrio.
Trinta e cinco cabeas caram. Foi substitudo, em Lorraine,
pelo representante Charles Delacroix, que no ningum me
nos do que 0 pai, nominal, sem dvida, de Eugne Delacroix.
Franois-Auguste Mallarm foi nomeado por Napoleo
subprefeito de Avesnes em 1814; havia usado sua fortuna paratransportar grupos de partidrios na poca da invaso. A Res
taurao baniu-o como regicida, e ele morreu em 1835.
Encontrei todos esses detalhes sobre seu papel e sobre ele,
no Ensaio sobre a Revoluo em Verdun,obra muito interes
sante de Edmond Pionnier (1905).
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OPINIES
Degas no admitia discusso quando se tratava de Ingres.
A quem lhe dissesse que o grande homem desenhava figuras de
zinco, ele replicava: Talvez!... Mas ento ele faz zincos geniais .Um dia, Henri Rouart permitiu-se criticar a frieza da
Apoteose de Homeroe observar que todos aqueles deuses j
congelados em suas nobres atitudes respiravam em uma at
mosfera glacial.
Como assim! exclamou Degas. Mas admirvel!...
Uma atmosfera de empreo preenche a tela...Ele esqueceu que o empreo um lugar onde h fogo.
Recordava sempre que tinha oportunidade os apotegmas
do Mestre de Montauban:11
O desenho no se encontra fora do trao, est dentro dele...
Deve-se perseguir o modelado como uma mosca que corre
sobre uma folha de papel.
Os msculos so meus amigos, mas esqueci seus nomes.
Degas conheceu bem Gustave Moreau, cujo retrato fizera.
11. Refere-se a Ingres, nascido em Montauban [n .e .].
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levantado em meio a muito sangue. Degas lava seu rosto. Corre
depois para buscar a senhora Ingres na rue de lIsle. Oferece-lhe o
brao e acompanha-a a p at o nmero 10 do quai Voltaire.
L, encontram Ingres, que estava descendo, ainda todo
emocionado. No dia seguinte, Degas vai buscar notcias suas.
A senhora Ingres recebe-o de form a muito graciosa e mostra-
-lhe um quadro.
Algum tempo depois, o senhor de Valpinon pede-lhe que
volte casa de Ingres em seu nome, e que pea a tela empres
tada de volta.
Ingres responde que j a devolvera para seu proprietrio.
Mas Degas, desta vez, quer falar por si. Pensa: Preciso abso
lutamente conversar com ele. Inicia timidamente a conversa
e termina declarando: Eu pinto; estou comeando, e meu pai,
que homem de bom gosto e conhecedor, acha que meu casono desesperado....
Ingres lhe diz: Faa linhas... Muitas linhas, ora de memria,
ora de observao da natureza.
Degas, outro dia, contou-me essa mesma visita com uma va
riante bastante importante.
Ele teria voltado para a casa de Ingres, conforme foi descrito acima, mas na companhia de Valpinon, e carregando
uma pasta debaixo do brao. Ingres teria folheado os estudos
contidos na pasta e a teria fechado, dizendo: bom! Meu jo
vem, nunca de observao da natureza. Sempre de memria e
segundo as gravuras dos mestres.
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Pode-se meditar sobre esses dois textos. No lembro se De-
gas os comentou na minha frente.
Degas fez uma terceira visita ao ateli de Ingres. Foi ver al
guns quadros que o mestre tinha exposto. Ingres mostrava suas
obras a um senhor (Degas dizia: a um idiota) que, ao passar na
frente de um quadro chamado Homero no banho turco,excla
mou: Ah! Este aqui, senhor, a graa e a volpia... e algo mais....
Ingres respondeu: Senhor, tenho vrios pincis.
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VER E TRAAR
H uma imensa diferena entre ver uma coisa sem o lpis na
mo e v-la desenhandoa.
Ou melhor, so duas coisas muito diferentes que vemos. At
mesmo o objeto mais fam iliar a nossos olhos torna-se comple
tamente diferente se procurarm os desenh-lo: percebemos
que o ignorvamos, que nunca o tnhamos vistorealmente.
O olho at ento servira apenas de intermedirio. Ele nos fa
zia falar, pensar: guiava nossos passos, nossos movimentoscomuns; despertava algumas vezes nossos sentimentos. At
nos arrebatava, mas sempre por efeitos, conseqncias ou res
sonncias de sua viso, substituindo-a, e portanto abolindo-a
no prprio fato de desfrutar dela.
Mas o desenho de observao de um objeto confere ao olho
certo comando alimentado por nossa vontade. Neste caso, deve--se quererpara vere essa viso deliberadatem o desenho como
fim e como meio simultaneamente.
No posso tornar precisa minha percepo de uma coisa sem
desenh-la virtualmente,e no posso desenhar essa coisa
sem uma ateno voluntria que transforme deforma notvel o
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que antes eu acreditara perceber e conhecer bem.Descubro que
no conhecia o que conhecia: o nariz de minha melhor amiga...
(H alguma analogia entre isso e o que ocorre quando queremos especificar nossopensamentocom uma expresso mais
deliberada. No mais o mesmo pensamento.)
A vontade continuada essencial ao desenho, pois o dese
nho exige a colaborao de aparelhos independentes que es
to sempre pedindo para resgatar os automatismos que lhe
so prprios. O olho quer vagar; a mo arredondar, tomar atangente. Para garantir a liberdade do desenho, pela qual po
der realizar-se a vontade do desenhista, preciso se desven-
cilhar das liberdades locais. uma questo de governo... Para
deixar a mo livre no sentido do olho, preciso suprimir sua
liberdade no sentido dos msculos;em particular, amaci-la
para traar em qualquer direo, o que ela no gosta de fazer.
Giotto traava um crculo puro com pincel, e nos dois sentidos.
A independncia dos aparelhos diversos, suas distenses e
tendncias prprias, suasfacilidades,so opostas execuo
completamente voluntria. Da resulta que o desenho, quando
tende a representar um objeto do modo mais fiel possvel, requer
o estado mais desperto:nada mais incompatvel com o sonho,
j que essa ateno deve interromper a cada instante o curso
natural dos atos, evitar as sedues da curva que se pronuncia...
Ingres dizia que o lpis deve ter sobre o papel a mesma deli
cadeza da mosca que vaga sobre uma vidraa (no so exata
mente estes os termos dele, que esqueci).
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Algumas vezes fao esse raciocnio sobre o desenho de
imitao. As formas que a viso nos entrega em estado de con
torno so produzidas pela percepo dos deslocamentos de
nossos olhos conjugados que conservam a viso ntida.Esse
movimento conservativo linha.
Ver as linhas e tra-las. Se nossos olhos comandassem me
canicamente um estilode traar, bastaria olhar um objeto, isto
, seguir com o olhar as fronteiras das regies diversamente
coloridas, para desenh-lo exata e involuntariamente. Dese
nharamos, do mesmo modo, o intervalo de dois corpos, que,para a retina, existe to nitidamente quanto um objeto.
Mas o comando da mo pelo olhar bastante indireto. Mui
tas etapas intervm: entre elas, a memria. Cada relance de
olhos para o modelo, cada linha traada pelo olho torna-se ele
mento instantneo de uma lembrana, e de uma lembrana
que a mo sobre o papel vai emprestar sua lei de movimento.H transformao de um traado visual em traado manual.
Mas essa operao suspensa na durao de persistncia da
quilo que chamei elemento instantneo de lembrana. Nosso
desenho se far por pores, por segmentos, e aqui que sur
gem nossas grandes chances de erro. Ocorrer com facilidade
que esses segmentos sucessivos no estejam na mesma escala,e que se unam de forma inexata uns aos outros.
Direi portanto, como um paradoxo, que no pior desenho
dessa espcie cada um dos segmentos est em conformidade
com o modelo, que todas as partes do retrato infiel so boas,
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sendo o tododetestvel. Direi mesmo que bastante improvvel
que cada poro possa ser inexata(supondo a ateno do artista),
pois seria preciso uma inveno continua para fazer sempre um
trao diferente daquele desenhado pelo sistema dos olhos. Mas
a soma to facilmente noconformequanto cada um de seus
elementos facilmente, e quase necessariamente, conforme...
O artista avana, recua, debrua-se, franze os olhos, comporta-
-se com todo o corpo como um acessrio de seu olho, torna-se por
inteiro rgo de mira, de pontaria, de regulagem, de focalizao.
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TRABALHO E DESCONFIANA
Todas as obras de Degas so srias.
Por mais divertido, por mais alegre que ele s vezes tenha
parecido, seu lpis, seu pastel, seu pincel nunca se abandonam.
A vontade domina. Seu trao nunca est suficientemente perto
do que ele quer. No alcana nem a eloqncia, nem a poesia da
pintura; busca apenas a verdade no estilo e o estilo na verdade.
Sua arte se compara dos moralistas: uma prosa das mais lm
pidas que encerra ou articula com intensidade uma observao nova e verdadeira.
Ainda que se dedique s danarinas, capturaas mais do que
as seduz. Defineas.
Como um escritor que, desejando alcanar a preciso ltima
de sua forma, multiplica os rascunhos, rasura, avana reco
meando inmeras vezes, e nunca admite que tenha alcanadoo estadopstumode sua obra, tal Degas: retoma indefinida
mente seu desenho, aprofunda-o, ajusta-o, envolve-o, de folha
em folha, de cpia em cpia.
Retorna s vezes a essas espcies de rascunhos; neles
adiciona cores, mistura o pastel ao carvo: as saias so ama
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relas em um, violetas no outro. Mas a linha, os atos, a prosa
encontram-se por baixo; essenciais e separveis, utilizveis
em outras combinaes, Degas da fam lia dos artistas abstra
tos que distinguem a forma da cor ou da matria.Creio que ele
deve ter receado aventurar-se na tela e entregar-se delcia
da execuo.
Era um excelente cavaleiro que desconfiava dos cavalos.
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CAVALO, DANA E FOTOGRAFIA
O cavalo anda nas pontas dos cascos. Quatro unhas o carre
gam. Nenhum animal se parece tanto com uma primeira bailarina, uma estrela do corpo de bal, quanto um puro-sangue
em perfeito equilbrio, que a mo de quem o monta parece
manter suspenso, e que avana em passos curtos em pleno
sol. Degas pintou-o com um verso; dizia dele:
Nervosamente nu em seu vestido de seda
em um soneto muito bem feito no qual divertiu-se e pro
curou concentrar todos os aspectos e funes do cavalo de
corrida : treinamento, velocidade, apostas e fraudes, beleza,
elegncia suprema.
Degas foi um dos primeiros a estudar as verdadeiras figuras do nobre animal em movimento por meio dos instantneos
do grande Muybridge. De resto, amava e apreciava a fotografia,
em uma poca em que os artistas a desdenhavam ou no ousa
vam confessar que a utilizavam. Possua algumas muito belas:
guardo com todo cuidado certa ampliaoque me deu.
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Nela se podem ver, junto a um grande espelho, Mallarm
apoiado a uma parede e, sua frente, Renoir sentado numa
poltrona. No espelho,-como um fantasma, Degas e o aparelho,
e adivinha-se a presena da senhora e da senhorita Mallarm.
Nove lmpadas de querosene, um terrvel quarto de hora de
imobilidade para os retratados, foram as condies para essa
espcie de obra-prima. Possuo aqui o mais belo retrato de Mal
larm que j vi, fora a admirvel litografia de Whistler, cuja
execuo foi outro suplcio para o modelo, suportado com toda
a boa vontade do mundo: ao longo de inmeras sesses, ele teve
de posar quase colado a um aquecedor, ardendo sem ousar
queixar-se. O resultado valeu o m artrio. Nada mais delicado,
mais espiritualmenteparecido do que esse retrato.
As fotos de Muybridge tornavam manifestos os erros que
todos os escultores e pintores cometeram quando representa
ram as diversas posies do cavalo.
Viu-se ento como o olho inventivo, ou melhor, como
a percepo elabora tudo o que nos entrega como resul
tado impessoal e certeiro da observao. Toda uma srie de
operaes misteriosas entre o estado de manchase o estado
de coisasou objetosintervm, coordena como pode dados bru
tos incoerentes, resolve contradies, introduz julgamentos
formados desde a primeira infncia, impe-nos continuida-
des, relaes, modos de transformao que agrupamos sob os
nomes de espao, tempo, matriaou movimento. Imaginava-
-se ento o animal em ao como se acreditava v-lo; e talvez,
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se examinssemos com bastante sutileza as representaes de
outrora, encontraramos a leidas falsificaes inconscientes
que permitiam desenhar momentos do voo dos pssaros oudos galopes do cavalo, como se pudssemos t-los observado
sem pressa: mas esses momentos interpolados so imaginrios.
Atribuam-se queles objetos mveis e rpidos figurasprov-
veis,e seria interessante por meio da comparao de docu
mentos procurar verificar essa espcie de criao,com a qual
o entendimento preenche as lacunas do registro pelos sentidos.No que tange ao voo dos pssaros, aproveito a oportunidade
para dizer que a fotografia instantnea corroborou as imagens
que dele haviam dado Leonardo da Vinci em seus croquis e
os japoneses em suas estampas; um talvez pela reflexo, os ou
tros talvez pela sensibilidade e pacincia na observao.
Degas encontrava no cavalo de corrida um tema raro, quesatisfazia s condies que sua natureza e sua poca impu
nham s escolhas. Onde encontrar algo puro na realidade
moderna? Ora, o realismo e o estilo, a elegncia e o rigor
viam-se combinados no ser luxuosamente puro do anim al
de raa. Alis, nada poderia seduzir mais um artista to refi
nado, to difcil e amante de preparaes longas, de seleessutis e do fino trabalho de adestramento, do que essa obra-
-prima anglo-rabe. Degas amava e conhecia o cavalo de sela
a ponto de reconhecer os mritos de artistas muito distantes
dele quando encontrava o cavalo bem estudado em sua obra.
Um dia, na casa de Durand-Ruel, ele me reteve durante muito
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tempo na frente de uma estatueta de Meissonier, um Napo-
leo eqestre em bronze, de cerca de trinta centmetros de al
tura, e detalhou para mim as belezas, ou melhor, as exatides
que reconhecia naquela pequena obra. Canelas, quartelas,
boletos, postura, garupa... Tive de escutar toda uma anlise
crtica e finalmente elogiosa. Louvou igualmente o cavalo da
Joana dArc de Paul Dubois, que se encontra em frente igreja
de Saint-Augustin. Esqueceu de fa lar da herona, cuja arm a
dura to exata.
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DO SOLO E DO INFORME
Degas um dos raros pintores que deram ao solosua importncia.
Ele tem assoalhos admirveis.
s vezes, retrata uma danarina de certa altura, e toda a
forma se projeta sobre o plano do palco, como a viso de um
caranguejo na praia. Esse partido lhe d vistas novas e combi
naes interessantes.
O solo um dos fatores essenciais da viso das coisas. De
sua natureza depende em grande parte a luz refletida. A par
tir do momento em que o pintor considera a cor no mais como
qualidade local que age por si prpria e em contraste com as
cores vizinhas, mas como efeito local de todas as emisses e re
flexos que ocorrem no espao, e que se permutam entre todos
os corpos que este contm; a partir do momento em que se
esfora em perceber essa sutil repercusso, em utiliz-la paradar sua obra certa unidade totalmente diferente da unidade da
composio, sua concepo daform ase altera. No limite, ele
chega ao impressionismo.
Degas, embora tenha conhecido muito bem e visto desen
volver-se a seu redor essa maneira de ver,nunca lhe sacrificou
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o culto do contorno em si, a que sua natureza e educao o
tinham destinado.
A paisagem, que estimulou nos artistas as interpretaes
sucessivas que engendraram o impressionismo, jamais o
seduziu. As raras que fez executou em seu ateli e totalmente
de memria. Eram para ele diverses no isentas de alguma
malcia com respeito aos fanticos pela pintura ao ar livre.
Eram curiosamente arbitrrias: mas as que serviram de fundo
para seus cavaleiros e para diversos outros temas so, ao con
trrio, realizadas com a preciso que ele apreciava.
Diz-se que fez estudos de rochedos entre quatro paredes,
usando como modelos amontoados de fragm entos de carvo,
emprestados de seu forno. Ele teria despejado o balde sobre
uma mesa e se aplicado a desenhar cuidadosamente o local as
sim criado pelo acaso que seu ato havia provocado. Nenhum
objeto de referncia no desenho permitia imaginar que aque
les blocos empilhados eram apenas pedaos de carvo do ta
manho de um punho.
Se isso for verdade, essa ideia me parece bastante vincista.
Ela me faz pensar tambm em certas reflexes a que eu me en
tregava, h muito tempo, e que talvez no estejam infinitamente
distantes daquelas que minha lembrana de Degas me sugere.
Eu pensava s vezes no informe.H coisas manchas, mas
sas, contornos, volumes - que tm, de alguma maneira, somente
uma existncia de fato: so apenas percebidas por ns, mas no
conhecidas; no podemos reduzi-las a uma lei nica, deduzir seu
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todo da anlise de uma de suas partes, reconstru-las por meio
de operaes racionais. Podemos modific-las com bastante liber
dade. Elas no tm outra propriedade seno ocupar uma regio
do espao... Dizer que so coisas informes dizer no que no tmformas,mas que suas formas no encontram em ns nada que
permita substitu-las por um ato de traado ou reconhecimento
ntido. E, de fato, as formas informes no deixam outra lembrana
seno a de uma possibilidade... Assim como uma seqncia de no
tas tocadas ao acaso no uma melodia, tampouco uma poa, uma
rocha, uma nuvem, um fragmento de litoral so formas redutveis.No quero insistir nessas consideraes: elas levam demasiado
longe. Retorno ao desenho. Suponhamos que quisssemos dese
nhar uma dessas coisas informes, mas em que se pudesse todavia
reconhecer certa solidariedade entre suas partes. Jogo sobre uma
mesa um leno que amassei. Esse objeto no se assemelha a nada.
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Digo-lhes que seria preciso conhecer tudo; mas, de prefe
rncia, saber utilizar o que se conhece.
V-se de modo completamente diverso um objeto cuja es
trutura se conhece. No se trata de mostrar msculos sob a pele,
mas de pensar um pouco no que est embaixo dela. Isso leva
a um questionrio profundo. No vejo seno vantagens nisso.
Mas eis uma observao que fao: quanto mais se afasta a
poca em que perspectiva e anatomia no eram negligenciadas,
mais a pintura se restringe ao trabalho de observao do mo
delo, menos ela inventa, compe e cria.
O abandono da anatomia e da perspectiva foi simplesmente
o abandono da ao do esprito na pintura em favor apenas do
divertimento instantneo do olho.
A pintura europeia perdeu nesse momento algo de sua von
tade de poder...
E, por conseguinte, de sua liberdade.
Quem se lanaria hoje na empreitada de um Michelangelo ou
de um Tintoretto, isto , numa inveno que brinca com os pro
blemas de execuo, que enfrenta os grupos, os escoros, os
movimentos, as arquiteturas, os atributos e naturezas-mortas,
a ao, a expresso e o cenrio, com uma temeridade e um pra
zer extraordinrios?
Duas mas numa compoteira, uma academia com trin
gulo preto nos exaurem.
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DO NU
A moda, os novos jogos, teorias diversas, curas maravilhosas,
a simplificao dos costumes que compensa a complicao damaterialidade da vida, o enfraquecimento de todos os empeci
lhos das convenes (e o diabo, sem dvida) abrandaram singu
larmente o antigo rigor do estatuto da Nudez.
Na praia com nus incontveis, talvez esteja preparando-se
uma Sociedade totalmente nova. As pessoas ainda no se tra
tam com intimidade; ainda existem certas formalidades, assimcomo ainda existem certaspartesescondidas; mas ouvir: Bom
dia, senhor, Bom dia, senhora, entre um senhor nu e uma
senhora nua comea por chocar.
H poucos anos ainda, o mdico, o pintor e o freqentador
de bordis eram os nicos mortais que conheciam o nu, cada
qual segundo sua atividade. Os amantes usavam-no em algumamedida; mas um homem que bebe no necessariamente um
verdadeiro apreciador e conhecedor de vinhos. A embriaguez
nada tem a ver com o conhecimento.
O Nu era coisa sagrada, ou seja, impura. Era permitido s es
ttuas, por vezes com algumas reservas. Pessoas srias que sen
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tiam horror por ele o admiravam no mrmore. Todos sentiam
confusamente que nem o Estado, nem a Justia, nem o Ensino,
nem os Cultos, nada de srio poder ia funcionarse a verdade fosse
toda visvel. preciso haver roupas para o juiz, o padre, o mestre,
pois sua nudez arruinaria o que deve haver de impecvel e inu
mano em um personagem que representa uma abstrao.
Em suma, o Nu tinha apenas dois significados na mente: ora
era sinnimo do Belo; e ora do Obsceno.
Mas, para os pintores de figuras, ele era o objeto mais im
portante. O que foi o amor para os contistas e os poetas, foi o Nu
para os artistas da forma; e, assim como, para os primeiros, o
amor oferecia uma diversidade infinita de formas para exercer
seus talentos, desde a representao mais livre dos seres e dos
atos at a anlise mais abstrata dos sentimentos e dos pensa
mentos; do mesmo modo, desde o corpo ideal at a nudez mais
real, os pintores encontraram no Nu o pretexto por excelncia.
Sente-se claramente que, quando Ticiano dispe uma V-
nus da mais pura carne, molemente congregada sobre a pr-
pura na plenitude de sua perfeio de deusa e coisa pintada,
pin tar foi acariciar, juntar duas volpias num ato sublime,
onde o domnio de si mesmo e de sua tcnica, o domnio da Bela
Mulher com todos os sentidos, se fundem.
O carvo de Ingres persegue a graa at a monstruosidade:
nunca as costas so macias e longas o bastante, nem o colo fle
xve l o bastante, e as coxas lisas o bastante, e todas as curvas
do corpo condutoras o bastante do olhar que as envolve e toca
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mais do que as v. A Odaliscaest mais prxima do plesiossauro,
faz sonhar com o que uma seleo bem dirigida teria feito com
uma raa de mulheres especializada h sculos no prazer, como
o cavalo ingls o na corrida.
Rembrandt sabe que a carne lama que a luz transforma
em ouro. Suporta e aceita o que v: as mulheres so o que so.
Encontra apenas obesas ou descarnadas. At mesmo as poucas
mulheres belas que pintou o so devido a no sei que emana
o de vida mais do que forma. No teme as barrigas cadas,os membros grossos, as mos vermelhas e pesadas, os rostos
muito vulgares. Mas aqueles traseiros, aquelas panas, aquelas
tetas, aquelas massas carnudas, feiosas e serviais que ele traz
da cozinha para o leito dos deuses e dos reis ele os impregna
ou os toca com um sol que s dele, mescla como ningum o
real, o mistrio, o bestial e o divino, a tcnicamais sutil e a maispoderosa, e o sentimento mais profundo, o mais solitrio que a
pintura jamais expressou.
Degas, durante toda a sua vida, procurou no Nu, observado em
todos os seus aspectos, em uma quantidade incrvel de poses, e
at em plena ao, o sistema nico das linhas que formuladeterminado momento de um corpo com a maior preciso, mas
tambm com a maior generalidade possvel. A graa ou a poesia
aparente no so seus objetos. Suas obras no cantam. pre
ciso deixar algum rastro aleatrio no trabalho para que alguns
encantos ajam, exaltem, dominem a palheta e a mo... Mas ele,
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essencialmente voluntarioso, jamais satisfeito na primeira vez,
com a mente terrivelmente armada para a crtica e alimentada
em demasia com os maiores mestres, nunca se abandona vo
lpia natural. Eu gosto desse rigor. Existem seres que no tm
a sensao de agir, de ter realizado o que quer que seja se no
o tiverem feito contra eles mesmos. Talvez seja esse o segredo
dos homens verdadeiramente virtuosos.
No Louvre, um dia, eu percorria com Degas a Grande Gale
ria. Paramos em frente a uma importante tela de Rousseau que
representa magnificamente uma alameda de carvalhos enormes.
Depois de um tempo de admirao, observei com que cons
cincia e pacincia o pintor, sem perder nada do grande efeito
da massa de folhagem, executara o detalhe infinito ou produ
zira a iluso suficiente desse detalhe a ponto de fazer pensar
em um labor infinito.
soberbo eu digo , mas deve ser tedioso fazer todas
essas folhas... Deve ser at muito chato...
Cale-se diz Degas se no fosse chato, no seria divertido.
O fato que ningum mais se divertedessa forma laboriosa,
e eu s traduzira ingenuamente a repugnncia cada vez maior
dos homens por todo trabalho de aspecto montono ou que
deve ser realizado com atos pouco diferentes e longamente
repetidos. A mquina exterminou a pacincia.
Uma obra era, para Degas, o resultado de uma quantidade
indefinida de estudos e, depois, de uma srie de operaes.Acre
dito que ele pensava que uma obra nunca pode ser considerada
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terminada, eque ele no concebia que um artista pudesse rever
um de seus quadros depois de algum tempo sem sentir a ne
cessidade de retom-lo e de pr de novo a mo. Acontecia deele retrabalhar telas h muito tempo penduradas nas paredes
da casa de seus amigos, lev-las para seu antro, de onde elas
raramente voltavam. Alguns, de cuja casa era freqentador,
chegavam a esconder o que tinham dele.
Haveria muito para se filosofar sobre essas questes. Dois
problemas, em particular, surgem neste ponto. Para determinado artista, o que representa seu trabalho? Paixo? Diverso?
Meio ou fim? Para uns, domina sua vida; para outros, confun-
de-se com ela. Dependendo dessas naturezas, uns passam facil
mente de uma obra a outra, rasgam ou vendem, e comeam algo
totalmente diferente; alguns, ao contrrio, lutam, atacam, cor
rigem e acorrentam-se; no conseguem largar o jogo, sair docrculo de seus ganhos e perdas: so jogadores que dobram sua
aposta de durao e vontade.
O outro problema surge do primeiro. O que pensa (ou pen
sava), de si, determinado artista?
Que ideia tinha sobre o que para ns sua maestria,um
Velzquez, um Poussin, um dos Doze Deuses do Olimpo dosMuseus? Meu problema insolvel. Se o tivessem apresentado
a eles e se eles o tivessem respondido, poderamos suspeitar
da resposta, mesmo a mais sincera, pois a questo vai mais
longe, ou mais alm, de toda sinceridade.A ideia que fazemos
de ns mesmos e que desempenha um papel essencial numa
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carreira fundada totalmente nas foras que sentimos ter no
se desenvolve nem se expressa claramente para a conscincia.
Varia, alis, como essas foras, que se exaltam, se extenuam,
renascem por to pouco.
Por mais insolvel que seja, esse problema parece-me real
e til de ser apresentado.
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POLTICA DE DEGAS
Degas tinha suas ideias polticas. Elas eram simples, perem p
trias, essencialmente parisienses. Achava que Rocheforttinha um bom sensomilagroso. Quando veio Drumont, pedia
para que lhe lessem seu artigo todos os dias. Tornou-se fan
tico durante o caso Dreyfus. Roa as unhas. Ao menor indcio,
adivinhava, estourava, interrom pia bruscamente: Adeus, se
nhor... e virava para sempre as costas ao adversrio. Amigos
muito antigos e muito ntimos foram dessa form a cortadosporele, sem apelao, sem recurso.
A poltica Degasera necessariamente nobre, violenta, im
possvel como ele.
Conhecera outrora Clemenceau nos bastidores da pera,
freqentada por esse personagem curiosamente egosta, ja-
cobino absoluto, aristocrata dos mais esnobes, zombador universal, sem amigos, com exceo de Monet, mas que contava
com pessoas fiis a ele, um homem duro, que gostava de ser
temido, capaz de amar um povo, de for-lo redeno, um
homem de prazer, de orgulho, de perigo. Ele adorava a Frana
e desprezava os franceses...
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Uma noite em que lhe aconteceu estar prximo de Cle-
menceau, ambos sentados no mesmo banco, nofoyerda Dana,
iniciou uma conversa... Contou-me essa conversa, ou melhor,esse monlogo, uns quinze anos depois.
Desenvolveu sua concepo elevada e pueril. Que, se es
tivesse no poder, a grandeza do cargo dominaria tudo a seus
olhos, que levaria uma vida asctica, manteria uma habitao
modesta, voltaria todas as noites, do ministrio para seu apar
tamento no quinto andar... Etc.
E Clemenceau perguntei , o que respondeu?
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Dirigiu-me um olhar... de um desprezo!...
Outra vez, novamente encontrando Clemenceau na pera,
disse-lhe que fora naquele mesmo dia Cmara: No consegui,
durante toda a sesso, falou, desviar os olhos da portinha que
h do lado. Imaginava sempre que o campons do Danbio iria
entrar por l....
Ora, senhor Degas respondeu Clemenceau , no o te
ramos deixado falar...
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MMICA
Havia em Degas uma curiosa sensibilidade para a mmica.Alis,
as bailarinas e passadeiras que retratou, ele as apreendeu ematitudes profissionais significativas, o que perm itiu que reno
vasse a viso dos corpos e que analisasse inmeras poses com
as quais os pintores jamais se haviam ocupado antes dele. Dei
xou de lado as belas mulheres languidamente recostadas, as
deleitveis Vnus e Odaliscas; no procurou mostrar sobre o
leito alguma obscena e soberana Olmpia, brutal como um fato.A carne, fosse ela dourada, fosse ela branca, ou carmim, no pa
recia incit-lo a que a pintasse. Mas trabalhou para reconstruir
o animal feminino especializado, escravo da dana, ou da goma,
ou da rua; e esses corpos, mais ou menos deformados, aos quais
pede que adotem estados muito instveis de sua estrutura arti
culada (como amarrar uma sapatilha, pressionar com as duasmos o ferro sobre a roupa), fazem pensar que todo o sistema
mecnico de um ser vivo pode se contorcercomo um rosto.
Se eu estivesse fazendo crtica de arte, creio decerto que
arriscaria uma hiptese de tripla raiz. Tentaria explicar esse
modo mmico de verem Degas pela coexistncia de trs condi
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Degas, cada vez mais solitrio e melanclico, sem saber o
que fazer de suas noites, imaginara pass-las, durante os dias
quentes, nas imperiais12 dos bondes ou dos nibus. Ele subia;
deixava-se levar at o fim da linha, e, do ponto final, ser recondu
zido de volta para perto de sua casa. Contou-me, certa vez, uma
observao que fizera no dia anterior, em sua imperial. Trata-se
de uma dessas observaes que retratam principalmente o ob
servador. Assim, ele dizia que uma mulher viera sentar-se no
longe dele; percebeu o cuidado que ela tinha em estar bem sen
tada e bem arrumada. Passou as mos sobre o vestido, alisou-o,
ajeitou-se e empertigou-se para melhor esposar a curva da ban
queta; esticou as luvas em suas mos, abotoou-as com cuidado,
passou a lngua sobre os lbios, que mordiscou um pouco, me-
xeu-se em sua roupa para sentir-se vontade e fresca nos panos
mornos. Por fim, estendeu o vu, aps ter beliscado levemente
a ponta do nariz, colocou um cacho no lugar certo com dedo ve
loz e, no sem ter verificado com uma olhadela o contedo de
sua bolsa, pareceu concluir aquela srie de operaes adotando
as feies de uma pessoa que encerrou seu trabalho, ou que, tendo
feito tudo o que se pode fazer de humano antes de iniciar algo, est
com o esprito tranqilo e entrega-se s mos de Deus.O bonde estremecia e comeava a andar. A senhora, defini
tivamente instalada, permaneceu quase cinqenta segundos
12. Compartimento aberto na parte superior ou traseira dos nibus, carrua
gens ou outros veculos pblicos [n . e .].
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em toda perfeio de seu ser. Mas ao fim desse tempo, que
deve ter-lhe parecido eterno, Degas (que com gestos imitava
perfeitam ente o que estou descrevendo a duras penas) a viuinsatisfeita: ela se ergueu, ajeitou o pescoo em seu colarinho,
enrugou um pouco as narinas, ensaiou uma careta; depois,
retomou suas retificaes de atitude e de ajuste, o vestido, as
luvas, o nariz, o vu... Todo um trabalho muito pessoal,seguido
de novo estado de equilbrio aparentemente estvel, mas que
durou apenas um momento.
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Degas, por sua vez, recomeava sua pantomima. Estava en
cantado. Mesclava-se sua satisfao certa misoginia. Falei
h pouco de animal feminino: receio ter-me expressado cor
retamente. Huysmans no escreveu que ele pintava as baila
rinas com horror? Huysmans exagerava; mas, fora algumas
pessoas muito raras, nas quais encontrava toda a graa e todo
o esprito que aquele homem refinado poderia desejar, Degas
sem dvida julgava o sexo segundo seus modelos comuns con
siderados nas atitudes de que falei. No aplicava nenhuma boa
vontade em torn-las mais belas.
No sei qual foi sua histria sentimental: nossos julgamen
tos sobre as mulheres ressentem-se muitas vezes de nossas
experincias.
preciso ser uma espcie de sbio para culpar apenas a si
mesmo quando as questes desse gnero s nos deixam des
gostos, amargor e s vezes coisa pior. Mas o carter de Degasme faz pensar que sua vida passada tinha pouca relao com
seu modo de reduzir a mulher ao que dela fazia em suas obras.
Seu olhar negro no via nada cor-de-rosa.
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DIGRESSO
No conheo arte que possa envolver mais intelignciado que
o desenho. Quer se trate de extrair do complexo da viso a des
coberta do trao,de resumir uma estrutura, de no ceder mo,de lerepronunciar dentro de siuma forma antes de escrevla;
ou ento de a inveno dominar o momento, de a ideia se fazer
obedecer, se tornar precisa e se enriquecer com o que ela se
torna no papel, sob o olhar; todos os dons da mente encontram
seu uso nesse trabalho, em que aparece com no menos fora
toda a personalidade da pessoa, quando ela a possui.
Quem no mede o intelecto e a vontade de Leonardo ou de
Rembrandt aps uma anlise de seus desenhos? Quem no
percebe que um deve ser colocado entre os maiores filsofos,
o outro, entre os moralistas e msticos mais interiores?
Creio que, se tradies ou prticas escolares no nos im
pedissem de enxergar o que e no reunissem os tipos de es
prito segundo seus modos de expresso, em vez de reuni-los
pelo que tm a expressar, uma Histria nica das Coisas do
Espritosubstituiria as histrias da Filosofia, da Arte, da Lite
ratura e das Cincias.
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Em uma histria analgica dessa espcie, Degas estaria si
tuado entre Beyle e Mrime. Nem o gosto pela msica italiana,
o horror pelas especulaes de tipo alemo, a diviso do de
sejo entre a diversidade romnticae a simplicidade clssica,
os julgamentos cortantes, radicais, exterminadores, ou as ma
nias faltam-lhe para que possa aparecer ao lado de Stendhal.
Seu desenho trata os corpos to amorosa e duramente quanto
Stendhal trata o carter e as motivaes das pessoas. Ambos
admiravam Rafael, e o belo idealtinha em ambos seu papel de
pedra de toque absoluta.
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OUTRA DIGRESSO
Paira sobre a arte moderna uma suspeita de ignorncia ou de
impotncia que as mais estranhas pesquisasestimulam maisdo que dissipam.
A inveno desapareceu. A composio fo i reduzida ao
arranjo.
mais simples apresentar de maneira bem-sucedida uma
vitrina de sedas ou um buqu do que organizar uma cena com
personagens em que uma quantidade semelhante de harmoniadeve coincidir com as formas impostas e a expresso. Talfesta
para o olhar tambmuma batalha...
Hoje, quase nada feito sem modelo. Quase tudo feito sem
estudos; ou melhor, quase tudo no passa de estudos, e, mais
ainda, estudos inutilizveis! Um bom estudo deve ser mais pro
fundo do que qualquer quadro, e permanecer na sombra do ateli. No deveria jamais estar venda, jamais em Museus.
Como chegamos a esse ponto de relaxamento?
Primeiro, a ideia de hierarquiaentre obras e entre gne
ros se esgotou. Se duas ameixas sobre um prato valem tanto
quanto uma Descida da Cruz ou uma Batalha de Arbelles, e
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podem valerinfinitamente mais; se um croqui de x vale infi-
nitamentemais do que uma imensa tela de y ou seja, se o
resultado vale mais do que o problema , esses julgamentos,
embora inevitveis, reduzem contudo pouco a pouco opeso
dos elementos de apreciao que no sejam puramente subje-
tivos.(O Academicismo no passa, no fundo, de uma conser
vao, mais ou menos consciente, dos critrios,mais ou menos
ilusrios, de julgamentos objetivos:anatomia, perspectiva, se
melhanas, viso comum das cores etc.)
Conseqncia: aumento do nmero de maus pintores, pois a
depreciao de meus famosos critrios objetivostem como pri
meiro efeito suprimir todas as dificuldades(ao menos as conven
cionais) da arte. Ningum se divertemais estudando cuidadosa
mente e com reflexes que podem levar muito longe (Leonardo),
um tecido jogado sobre uma cadeira, uma folha, uma mo... nem
buscando nesse confronto com o objeto, sem pressa e sem uti
lidade imediata, certa cincia de si mesmo, da manobra combi
nada de seu intelecto, de seu desejo, de sua viso e de sua mo
sobre uma coisa dada...e com o pblico ausente. (Este ltimo
ponto capital: deve-se tentar espantar apenas a si mesmo.)
Outra recompensa:A literatura tornou-se todo-poderosa, criadora ou destrui-
dora de reputaes. Ovalor ou a estima destinados a uma obra
de pintura depende (durante certo tempo) do talento do escritor
que a exalta ou critica.No existe coisa informe, tolice colorida,
anamorfose arbitrria que no se possa impor ateno e at
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admirao, por via descritiva ou explicativa, com base na cons
tatao (vinte vezes verificada no sculo xix ) de um retorno da
opinio pblica que eleva ao nvel de obra-prima a obra incom
preendida e ridicularizada em um primeiro momento, e que
multiplica por mil seu preo de venda inicial.
Foi assim que a infeliz Pintura viu-se presa dos mtodos
rpidos e poderosos da Poltica e da Bolsa.
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DEGAS E O SONETO
Por volta do fim do sculo xix , o soneto,pouco estimado, mal
executado pelos Romnticos, voltou moda. Foram feit
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