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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
LUCIANO ARÊAS DO NASCIMENTO
PÁTRIA ARMADA BRASIL: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DISCURSIVO
SOBRE O (DES)ARMAMENTO EM ‘O GLOBO’
NITERÓI 2020
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LUCIANO ARÊAS DO NASCIMENTO
PÁTRIA ARMADA BRASIL: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DISCURSIVO
SOBRE O (DES)ARMAMENTO EM ‘O GLOBO’
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de concentração: Teorias do Texto, do Discurso e da Tradução
Orientadora Prof.a Dr.a Bethania Sampaio Corrêa Mariani
Niterói 2020
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LUCIANO ARÊAS DO NASCIMENTO
PÁTRIA ARMADA BRASIL: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DISCURSIVO SOBRE O (DES)ARMAMENTO EM ‘O GLOBO’
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Teorias do Texto, do Discurso e da Tradução
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Bethania Sampaio Corrêa Mariani – UFF - Orientadora
________________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Sebastião Ferrari Soares - UNIOESTE
________________________________________________________________ Prof. Dr. Phellipe Marcel da Silva Esteves – UFF Suplentes:
________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Angela Corrêa Ferreira Baalbaki - UERJ
________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Silmara Cristina Dela da Silva - UFF
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Dedico este trabalho
À minha esposa Paula, à minha mãe Marinéa, à
minha sogra Marilia e à minha querida Ilma Oneida,
mulheres que compõem a minha armada protetora e
companheira de todas as horas.
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Bethania Mariani, pela abertura de portas na Análise do Discurso, pela minha aceitação como orientando de mestrado e pela condução em todo esse processo acadêmico, com muito entusiasmo, seriedade e determinação. Aos professores da banca de qualificação, Alexandre Ferrari e Phellipe Marcel, pela leitura atenta e as indicações bibliográficas. Agradeço ainda aos dois pelos exemplos de compromisso acadêmico, empatia e generosidade. Às professoras Silmara Dela-Silva e Angela Baalbaki pela disponibilidade de aceitar a suplência na defesa desta dissertação. Agradeço ainda à profa. Dela-Silva pelas aulas do curso Tópicos Avançados em Análise de Discurso, ministradas no segundo semestre de 2018. À Beatriz Caldas, pela tradução do resumo para o inglês. Aos professores Luiza Castello Branco e Raphael Trajano, pela escuta acadêmica e a disponibilidade de ajuda. A todos os colegas do LAS, Laboratório Arquivos do Sujeito da UFF, em particular, Ariana Rosa, Diane Mageste, Elisa Guimarães, Fernanda Laia, Flavio Benayon, Milene Leite, Rudá Perini, Sarah Casimiro e Wellington Santos, pelo incentivo na caminhada pela Análise do Discurso. Aos companheiros da Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, em especial, Alexandre Monteiro, Barbara Poubel, Edilene Teixeira, Gilson Lauri Junior, Luciano Monteiro, Mario Luiz Matheus, Monica Moreno, Nycolas Barros, Raquel Rezende, Shirlei Baptistone e Vívian Xavier pelos momentos de apoio mútuo e convivência. A todos os funcionários da UFF, em especial, à equipe da Secretaria de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem e ao corpo técnico da Biblioteca Central do Gragoatá (BCG), pela paciência e pronto atendimento às demandas.
À querida Tatiana Freire, pelo feliz reencontro de uma amizade da época da graduação. À minha esposa Paula, pelo amor, afeto e companheirismo diários. À minha mãe Marinéa, pelo exemplo de vida e a ajuda nos momentos difíceis. À minha sogra Marilia, pela revisão de alguns trechos desta dissertação e a amizade sincera. Ao meu pai Almir e ao meu sogro Ludgero, pela partilha terrena e a experiência de amor paternal. De onde estiverem, sirvam de inspiração à minha caminhada.
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Qualquer nova,
Qualquer notícia
Qualquer coisa
Que se mova
É um alvo
E ninguém tá salvo
Um disparo, um estouro !!!
O papa é pop, o papa é pop
O pop não poupa ninguém
O papa levou um tiro à queima roupa
O pop não poupa ninguém
Trecho de O Papa é Pop, letra: Humberto Gessinger
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RESUMO
Inscrita na área da Análise do Discurso Francesa ou Materialista, esta dissertação
resulta de um gesto de leitura (ORLANDI, 1994), ou seja, de teorização, do discurso
sobre (MARIANI, 1996) produzido pela mídia impressa acerca da questão do
(des)armamento no Brasil. No nosso caso específico, há como objetivo a
compreensão do modo como o jornal O Globo, em suas práticas discursivas,
materializa um processo de constituição de sentidos sobre o tema. Aproveitamos
para destacar que a motivação desta pesquisa parte de uma inquietação com a
cobertura midiática sobre o primeiro decreto assinado pelo atual presidente da
República, em janeiro de 2019. Esse decreto tratava exclusivamente da criação de
novas regras para a posse de armas no país. Poucos meses depois, novos decretos
presidenciais inseriram a questão do porte de armas. Um ano após a assinatura do
primeiro decreto, o confronto político-ideológico permanece acirrado. Nesse
processo de construção pela mídia do controle de uso de armas como um
acontecimento jornalístico (DELA-SILVA, 2008, 2015), entende-se como de grande
importância a compreensão do modo como se constitui, formula-se e é posto em
circulação (ORLANDI, 2004) o noticiário sobre o controle das armas de fogo à luz do
aporte teórico e dos procedimentos analíticos da Análise do Discurso. Para tanto,
acionamos conceitos basilares da teoria, tais como formações ideológicas,
formações discursivas, formações imaginárias, interdiscurso – bem como outros
mais específicos em seu tratamento do discurso jornalístico, tais como a reflexão
sobre o papel dos jornais no processo de institucionalização social de sentidos,
como proposto por Mariani (1996) e a noção de acontecimento jornalístico como
prática discursiva, tal como comparece em trabalhos de Dela-Silva (2008, 2015). Por
fim, na estruturação do corpus principal (MARIANI, 1996) de análise, buscamos a
abordagem da questão do arquivo, como desenvolvida por Pechêux (1982) e outros
teóricos da Análise do Discurso, a fim de pensar o próprio gesto de constituição do
arquivo jornalístico sobre o tema do (des)armamento.
PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso Francesa, Discurso Jornalístico, Discurso
Sobre, Acontecimento Jornalístico, Controle de armas, (Des)Armamento.
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ABSTRACT
Inscribed in the field of the French or Materialistic Discourse Analysis, this master’s
thesis results from a reading gesture (ORLANDI, 1994), that is, from the theory
construction of discourse about (MARIANI, 1996) produced by the print media on the
disarmament issue. In our specific case, the aim is to understand how the
newspaper O Globo, in its discursive practices, constructs its process of constitution
of meaning on this topic. We would also like to point out that our motivation to
research is caused by uneasiness about the journalistic coverage of the signature of
the Jair Bolsonaro’s first presidential decree in January 2019. This decree
establishes new rules on gun possession in our country. A few months later, new
Presidential decrees were issued focusing also on the carrying of guns. A year after
the signature of the first decree, the ideological and political remain alive. In this
process of construction of gun control as a journalistic event (DELA-SILVA, 2008,
2015), we understand how important it is to know better the way the events of
control of the use of firearms is constituted, formulated and broadcasted in the light of
the theoretical support and analytical procedures of French Discourse Analysis. For
this purpose, basic concepts of the theory are triggered, such as ideological
formations, discursive formations, imaginary formations, interdiscourse - as well as
more specific notions in their treatment of journalistic discourse, such as the
reflection on the role of newspapers in the process of social institutionalization of
meanings, as proposed by Mariani (1996), and the notion of journalistic event as a
discursive practice, as it appears in Dela-Silva’s papers (2008, 2015). Finally, in the
structuring of the main corpus (MARIANI, 1996) of the research, we sought to reflect
on the issue of archiving, as developed by Pechêux (1982) and other discourse
analysis theorists, in order to think properly about the discursive gesture built by the
journalistic archive on the theme of gun control.
KEYWORDS: Discouse Analysis, Discourse About, Journalistic Discourse,
Journalistc Event, Gun Control, Disarmament
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................11
1.1. Objetivos .................................................................................................................... 20
1.2. Pressupostos teóricos e dispositivo de análise ..........................................................20
2. ANÁLISE DO DISCURSO FRANCESA: UM PERCURSO INTRODUTÓRIO .................23
2.1. Questionamentos e trabalho com a linguagem...........................................................25
2.2. Análise do discurso como disciplina de entremeio......................................................34
2.3. Ideologia, sujeito e sentido: outros conceitos basilares..............................................37
3. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O ARQUIVO EM ANÁLISE DO DISCURSO, O ARQUIVO
JORNALÍSTICO E A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA....................................................43
3.1. Um pouco mais sobre o corpus..................................................................................49
4. SOBRE O DISCURSO JORNALÍSTICO..........................................................................53
4.1. Um parênteses sobre o jornalismo por seus teóricos.................................................53
4.2. A institucionalização de sentidos sobre o cotidiano....................................................55
4.3. O discurso jornalístico como um discurso sobre.........................................................60
4.4. O acontecimento discursivo e o acontecimento jornalístico........................................63
5. O CONFRONTO NO CORPUS.........................................................................................67
5.1. Modalização verbal + Indeterminação do sujeito........................................................67
5.2. Dados estatísticos.......................................................................................................69
5.3. Fala de autoridade......................................................................................................72
5.4. Didatização.................................................................................................................74
5.5. Efeito metafórico.........................................................................................................81
6. O ÚLTIMO TIRO: CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................87
REFERÊNCIAS...............................................................................................................................100
ANEXO............................................................................................................................................108
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1. INTRODUÇÃO
Esta é a lei. Mas se há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um
alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o
sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror,
no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome
de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro me assassina – porque eu
sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Clarice Lispector
Como símbolo de proteção ou medo, as armas de fogo sempre suscitaram
representações diversas no imaginário dos brasileiros.
Nos anos 50 e 60 do século passado, o alagoano Tenório Cavalcanti,
advogado e político de Duque de Caxias(RJ), portava escondida sob uma capa preta
uma MP-40, submetralhadora de fabricação alemã. Tenório denominou sua arma de
de Lurdinha e, com ela, apregoava-se como uma espécie de justiceiro da Baixada
Fluminense. Com a sua Lurdinha, ‘o deputado pistoleiro’ teve 25 crimes violentos
atribuídos a ele. Nas telas, o ator José Wilker foi responsável por dar vida ao
polêmico personagem, em produção considerada um clássico do cinema brasileiro1.
Vale destacar que esse nome feminino ressoa uma memória da Segunda
Guerra Mundial. Naquele conflito, os pracinhas brasileiros apelidaram igualmente de
Lurdinha2 as metralhadoras dos inimigos alemães. Dizem que o efeito sonoro
dessas armas lembrava a um soldado o barulho da máquina de costura da
namorada Lurdinha. Desde então, o nome passou a ser sinônimo de armas alemães
para os combatentes brasileiros.
Nas páginas dos noticiários, histórias como a do “Homem da Capa Preta”,
ecoam um misto de terror e fascínio pelas armas, marcando presença em relatos de
crimes ou na discussão da legislação pertinente sobre o controle do seu uso pela
população.
1 Lançado em 1986, com direção de Sérgio Rezende, o filme O homem da capa preta narra a vida de
Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, político de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O título da obra se deve a um dos apelidos de Tenório. 2 Conforme https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/memorias-da-segunda-guerra-o-pracinha-e-
a-lurdinha/. Consulta em 07 fev. 2020.
https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/memorias-da-segunda-guerra-o-pracinha-e-a-lurdinha/https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/memorias-da-segunda-guerra-o-pracinha-e-a-lurdinha/
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No Dicionário Online de Português3, sob o verbete armamento, define-se a
“ação de armar, preparativos de guerra; conjunto de armas”. Já para o Direito Penal,
segundo artigo do site Jusbrasil4, o conceito de arma “inclui todo instrumento
normalmente destinado ao ataque ou defesa (arma própria), ou qualquer outro meio
a ser empregado nessas circunstâncias (arma imprópria)”.
A arma própria é aquela cujo potencial ofensivo é inerente à sua natureza.
Neste grupo, encontram-se as armas de fogo (revólveres, fuzis), bem como
explosivos e armas brancas (facas de ataque, espadas). Qualquer outro
instrumento, com finalidade original diversa, mas utilizado, de forma secundária, na
prática de uma lesão é conhecido como arma imprópria. Exemplos: faca de cozinha,
estilete, barra de ferro, fogos de artifício.
Assim como no texto de Clarice Lispector, que se encontra na epígrafe desta
Introdução, o uso de armas de fogo também nos traz uma inquietação. Dessa
inquietação, vem a motivação para entender discursivamente o amor ou o horror
construídos no discurso jornalístico.
Contudo, antes de continuar, é necessário posicionar a filiação teórica desta
pesquisa. Aclaramos que este trabalho está associado à Análise do Discurso de
Linha Francesa, igualmente conhecida no Brasil como Análise do Discurso
Materialista, formulada por Michel Pêcheux e seus colaboradores na França, e
reterritorializada por Eni Orlandi e outros pesquisadores no Brasil.
Aproveitamos igualmente para apresentar a proposta deste trabalho: a análise
do processo discursivo ou discurso sobre o controle do uso de armas de fogo pela
população no Brasil, em circulação nas páginas do jornal carioca O Globo. Em linhas
gerais, o corpus principal é composto por trechos de reportagens e textos opinativos
publicados entre dezembro de 2003 e maio de 2019. Contudo, mais à frente,
detalharemos seu processo de constituição.
3 Disponível em https://www.dicio.com.br/armamento/. Consulta em 28 dez. 2019.
4 Disponível em https://ebradi.jusbrasil.com.br/artigos/441186363/o-que-e-arma-para-o-direito-penal. Consulta em 28 dez. 2019.
https://www.dicio.com.br/armamento/https://ebradi.jusbrasil.com.br/artigos/441186363/o-que-e-arma-para-o-direito-penal
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Depois de situar a filiação teórica e a proposta de trabalho, seguimos nossa
trajetória apresentando um panorama ou cenário sobre o tema da pesquisa - a
discussão sobre o controle do uso de armas de fogo no Brasil - no intuito de
contextualizar os leitores desta dissertação.
Março de 2003: A estudante Gabriela Prado Maia, de 14 anos, morre baleada
durante um assalto na estação de metrô São Francisco Xavier, no bairro da Tijuca,
no Rio de Janeiro. A comoção gerada por esse e tantos outros casos, a envolver o
uso de arma de fogo, ganhou amplo espaço na mídia e mobilizou fortemente a
sociedade brasileira.
Setembro de 2003: Caminhada na Avenida Atlântica, no bairro de
Copacabana, no Rio de Janeiro, reúne cerca de 40 mil pessoas para pressionar o
Congresso Nacional a aprovar lei em prol do desarmamento da população.
Dezembro de 2003: Como fruto da pressão de Organizações Não-
Governamentais (ONGs) e outros componentes da sociedade civil, é sancionada e
publicada, em 22 de dezembro, a Lei Federal 10.826/03, conhecida como o Estatuto
do Desarmamento.
Às vésperas do Natal, à época da publicação da lei no Diário Oficial da União,
o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva pontuava em seu discurso de anúncio
sobre o novo Estatuto:
SD1: “Expressa a vontade unânime da sociedade de cortar a espiral de violência e que nos inquieta e nos constrange perante a humanidade e a civilização. Nada
é mais urgente diante da violência do que construir a paz” – disse Lula, lembrando que o Brasil ostenta o recorde de um assassinato a cada 12 minutos.
(O Globo, 23/12/2003, Editoria O País, p.03)
Na fala de Lula reproduzida por O Globo, o uso do verbo ‘expressar’
associado ao sintagma nominal “a vontade unânime da sociedade” apaga a
dissenção ou força contrária ao desarmamento de civis, na medida em que verbaliza
como evidência uma unanimidade quanto a este posicionamento, por configurar-se
no fio discursivo como manifestação de um consenso social. Mais à frente, com a
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relativa “que nos inquieta e nos constrange perante a humanidade e a civilização”,
reforça o então presidente uma memória, um já-dito, sobre a violência no Brasil, que
circula pelo noticiário através do relato de crimes e dados estatísticos sobre o
assunto. Retoma-se uma significação da violência como uma mácula moral,
inquietante e constrangedora, produzindo como efeito de sentido uma oposição à
humanidade e à civilização (no caso, violência discursivizada como sinônimo de
selvageria e barbárie).
Por fim, com a apresentação do dado estatístico, o recorde em assassinatos
ostentado pelo Brasil em 2003 comparece como um dos argumentos de cunho
científico à sanção da Lei do Desarmamento.
Em seu caput, é descrito que esta lei dispõe sobre registro, posse e
comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas –
Sinarm - bem como define crimes e dá outras providências.
De acordo com dado do Mapa da Violência 20155, o Estatuto foi responsável
por poupar 160.036 vidas, desde sua sanção pelo então presidente Luiz Inácio Lula
da Silva.
Junho de 2004: Após regulamentação do Estatuto, dá-se início à Campanha
do Desarmamento, visando à regularização de registro ou entrega voluntária de
armas de fogo pela população, com direito a uma indenização. Prevista para durar
até dezembro daquele ano, a Campanha tinha originalmente como meta o
recolhimento de 80 mil armas. Contudo, com a crescente adesão popular, a
mobilização foi estendida até outubro de 2005, às vésperas do referendo de consulta
à população sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição, em
território nacional.
Até outubro de 2005, em sua primeira fase, a Campanha foi responsável pelo
recolhimento e destruição de 440 mil armas de fogo.
Após este período, o Ministério da Justiça tornou permanente a entrega
voluntária de armas, mas aboliu o pagamento de indenização. Ainda assim, em
5 Produzido pelo Ipea sob o comando do economista Daniel Cerqueira. Informação publicada na edição brasileira online do jornal El País em 13 de maio de 2015.
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março de 2014, a Secretaria Nacional de Segurança informou que havia recebido,
desde o início da campanha, 649.250 armas.
Outubro de 2005: Conforme previsto no §1o do art. 35 do Estatuto do
Desarmamento, organiza-se o referendo cuja finalidade era perguntar à sociedade
sobre a liberação ou a proibição do comércio de armas de fogo e munição em
território nacional. Mais uma vez atua a mídia, através de ampla cobertura e
colocando em pauta o assunto do (des)armamento no Brasil, para o debate sobre a
questão. Realizada em 23 de outubro, a consulta popular teve como resultado a
votação de 63% dos brasileiros a favor da comercialização de armas.
Abril de 2011: Armado com dois revólveres, o jovem Wellington Menezes de
Oliveira, 23 anos, mata doze alunos, com idades entre 13 e 16 anos, na Escola
Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro. A
tragédia, conhecida como Massacre ou Chacina de Realengo, reacende o debate
sobre o controle do uso de armas pela população.
Vale lembrar que mesmo sendo um jornal de cobertura nacional, O Globo é
sediado no Rio de Janeiro. Por isso, comumente em seu noticiário, observa-se que o
jornal carioca toma o Rio de Janeiro como metonímia nacional.
Abril de 2013: O jornal O Globo noticia que o Estatuto do Desarmamento era
alvo de 41 projetos de lei. Parlamentares da ‘bancada da bala’, grupo de políticos
que defendem no Congresso Nacional os interesses da indústria de armas no Brasil
e de outros ativistas do armamentismo no país, apresentaram à época 37 projetos
na Câmara e outros quatro no Senado Federal. Dentre os deputados federais
responsáveis pela proposição de projetos, encontram-se nomes como Ronaldo
Benedet (PMDB-SC), Moreira Mendes (PPS-RO), Onyx Lorenzoni (DEM-RS), João
Campos (PSDB-GO), Fernando Francischini (PEN-PR).
Junho de 2016: Segundo dados do Mapa da Violência 2016 – Homicídios por
armas de fogo no Brasil, de 2004 a 2014, o Estatuto do Desarmamento, e ações
associadas, evitaram 133 mil mortes.
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2017: Pré-candidato à Presidência, o então deputado federal Jair Bolsonaro
posta vídeo nas redes sociais, munido com um fuzil modelo T4, da indústria
brasileira de armamento Taurus, no qual declara:
Se eu chegar lá, você, brasileiro de bem, em um primeiro momento vai ter isso aqui
em casa [e apontava para um revólver]. E você, produtor rural, vai ter esse aqui
[apontando para o fuzil que propagandeava]”
(Revista Isto É, 23/01/2019, p.23)
Outubro de 2018, eleições presidenciais: No dia seguinte à confirmação
de sua vitória nas urnas, em entrevista concedida a diversos órgãos de imprensa, o
presidente eleito Jair Bolsonaro defende conceder o porte (direito de carregar arma)
e a posse (poder ter uma arma em casa) para a população, além de propor a
ampliação do conceito de excludente de ilicitude6, mecanismo previsto no Código
Penal, que estabelece a possibilidade de uma pessoa praticar uma ilicitude (ou seja,
comportamento ou ação em desrespeito à lei) sem que se considere isso uma
atividade criminosa.
15 de janeiro de 2019: Já empossado, Bolsonaro cumpre parte da promessa,
com a assinatura de seu primeiro decreto presidencial, a lei no 9.685/2019, que
flexibiliza as regras de posse de armas7 em território nacional. O decreto revoga
parcialmente a lei federal de 2003, mais restritiva quanto ao armamento de civis.
Com grande divulgação, nos mais diversos formatos midiáticos, o decreto
ganha imediata divulgação nas redes sociais, torna-se, no dia seguinte à sua
assinatura, matéria de capa dos principais jornais impressos no país, bem como
conquista destaque nos programas de rádio e nos telejornais.
Nas palavras do próprio presidente, no ato de assinatura do decreto com uma
caneta esferográfica na mão, a justificativa:
6 Disponível em: https://www.politize.com.br/excludente-de-ilicitude/. Consulta em 16 jan. 2020. 7 Direito à posse de arma – direito do seu proprietário manter a arma de fogo exclusivamente no
interior de sua residência ou domicílio, ou dependências dessas, ou ainda, em local de trabalho, desde que seja ele titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa. Disponível em: https://www.politize.com.br/posse-de-arma/. Consulta em 07 fev. 2020.
https://www.politize.com.br/excludente-de-ilicitude/https://www.politize.com.br/posse-de-arma/
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SD 2: “Como o povo decidiu por ocasião do referendo de 2005, para lhes garantir direito à defesa, vou usar essa arma”.
(O Globo, 16/01/2019, Editoria O País, p.4)
No fio discursivo dessa SD2, apresentam-se dois argumentos, com o uso de
orações subordinadas adverbiais - a primeira, causal/concessiva; a segunda, final,
que movimentam o interdiscurso/memória discursiva sobre a questão armamentista
no Brasil.
Na primeira oração subordinada, a relação de causalidade ou de concessão
vincula-se ao resultado do referendo de 2005. Como mencionado anteriormente, a
consulta realizou-se em 23 de outubro daquele ano e teve como resultado a
votação, pela maioria dos brasileiros, a favor da comercialização de armas. Aponta-
se assim no intradiscurso, como efeito de sentido, o respeito a uma vontade popular,
reforçada pelo uso da expressão “o povo decidiu”.
Na segunda oração, apresenta-se como finalidade o que é considerado um
dos maiores argumentos do grupo armamentista no País: o direito à defesa, seja da
integridade física ou da propriedade.
Ao mesmo tempo que essa fala produz como efeito de sentidos uma filiação
em favor do armamento, provoca, por outro lado, um silenciamento (ORLANDI,
2007) da filiação de sentidos daqueles que são contra a ideia, ao criar como efeito
de sentido para a ação presidencial, a resposta a uma demanda popular originada
por um direito à defesa.
Logo depois, finaliza sua sentença com um gesto que para muitos pode ser
visto como uma quebra no ritual: “vou usar essa arma”. O sintagma “essa arma”
metaforiza a utilização de uma caneta esferográfica, objeto de uso comum,
particularmente por estudantes em bancos escolares, que deriva, na fala
presidencial, para a posse de arma, cuja flexibilização é tema do decreto assinado.
Março de 2019: os jovens Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, e Luiz
Henrique de Castro, 25 anos, invadem com armas de fogo e outros artefatos a
Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, cidade da região metropolitana
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de São Paulo. Após matarem sete pessoas no estabelecimento escolar, Guilherme e
Luiz Henrique acabam tirando a própria vida para não serem presos pela polícia.
Maio de 2019: Em decreto assinado em 07 de maio de 2019, é a vez de
incluir a ampliação das regras de porte de armas8 no Brasil. Dado o embate com o
Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a
inconstitucionalidade da medida, o presidente revoga esse decreto com a publicação
de outro em 22 de maio de 2019 (Decreto nº 9797/2019).
Setembro de 2019: Em apenas 9 (nove) meses, o governo de Bolsonaro
totaliza 8 (oito) decretos referentes à flexibilização da posse e do porte de armas no
Brasil. A mídia em geral refere-se a essa legislação, proposta por Bolsonaro, pela
expresão “decretos das armas”.
Destaca-se que, sob essa denominação, a mídia textualiza o conjunto de
decretos assinados por Bolsonaro que alteram diretamente a legislação sobre o
controle de armas no Brasil. Em teoria, a criação ou a alteração de leis é função do
Congresso Nacional, ou seja, do Poder Legislativo.
O sintagma nominal, formado pelo núcleo “decretos” e pelo adjunto adnominal
“das armas”, marca historicamente uma intervenção do Executivo na legislação
brasileira, criando ainda uma relação de antítese com o “Estatuto do
Desarmamento”, aprovado e sancionado à época do governo Lula.
Dezembro de 2019: O país vendeu cinco armas por hora a cidadãos comuns
em 2019. Segundo matéria publicada na versão online do jornal O Globo, em
27/12/2019, de acordo com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação, o
número de armas registradas no Brasil subiu 24% neste ano. Entre janeiro e
novembro de 2019, contam-se 44.181 registros. Desde 2010, é o maior número de
autorizações de posse de arma no país, registrado pela Polícia Federal.
A mesma reportagem alerta que o levantamento diz respeito apenas a
registros concedidos a pessoas físicas, excluindo, por exemplo, aquisições de
8 Direito ao porte de armas – direito ao proprietários de andar armado nas ruas. Ou seja, transitar com
a arma em ambientes para além da residência ou local de trabalho do dono da arma. Disponível em: https://www.politize.com.br/porte-de-arma-no-brasil/. Consulta em 07 fev. 2020.
https://www.politize.com.br/porte-de-arma-no-brasil/
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órgãos públicos e empresas de segurança e também dos CACs (colecionadores,
atiradores e caçadores), cujo registro é feito pelo Exército.
Dado o caráter político da discussão sobre o controle do uso de armas no
Brasil, acreditamos na importância do estudo de sua discursivização pela mídia a
partir do instrumental da Análise do Discurso, sobretudo na observação do modo de
constituição, formulação e circulação (ORLANDI, 2012) midiáticas, como forma de
pensar sobre o entrelaçamento entre o histórico e o linguístico/simbólico na
produção discursiva sobre o tema.
À época da assinatura do primeiro decreto pelo atual presidente, a
repercussão midiática traz à tona o papel institucional da mídia sobre a circulação de
sentidos, como também para o papel desta em pautar temas para a discussão da
sociedade.
Como destaca Mariani (1996), o “discurso jornalístico tem como característica
atuar na institucionalização social de sentidos” e, consequentemente, “contribui na
constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado, bem
como na construção da memória do futuro” (MARIANI, 1996, p.64)
Além disso, comenta a autora, ao nomear, produzir explicações sobre aquilo
que se fala, “os jornais criam a ilusão de uma relação significativa entre causas e
consequências para os fatos ocorridos” (MARIANI, 1996, p.63), situando esses fatos
no universo de seu público-leitor e do próprio jornal impresso.
Mais à frente, ao aprofundar nossos gestos de análise, falaremos sobre o
modo como o jornal O Globo estabelece uma memória social para a questão do
(des)armamento no Brasil, constituindo uma forma de significação de seu passado e
de projeção para o seu futuro.
Por fim, antes de introduzir nossas questões norteadoras, retomamos a
proposta de pesquisa: analisar as práticas discursivas de O Globo em seu modo de
constituição, formulação e circulação (ORLANDI, 2012) de sentidos sobre o controle
do uso de armas de fogo no Brasil. Contudo, também consideramos essencial
acrescentar aqui nossa reflexão sobre o processo de significação acerca de
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questões subjacentes, tais como a violência e a segurança pública, em sua
formulação e circulação pelas páginas do jornal O Globo.
1.1. Objetivos
Conforme Orlandi (2012), entendendo a mídia como um lugar privilegiado de
constituição, formulação e circulação de sentidos, elabora-se como pergunta
principal:
Como os jornais impressos constroem em seu processo discursivo uma
cristalização de uma “memória de passado” e uma projeção de “memória de
futuro” (MARIANI, 1996) sobre o tema do (des)armamento no Brasil?
Paralelamente, motivam este trabalho os seguintes questionamentos:
a) Em relação à mídia impressa, que efeitos de sentido se manifestam no
discurso sobre o controle do uso de armas de fogo no país?
b) Que filiações de sentido / formações discursivas estão em disputa sobre a
questão? Até que ponto elas se evidenciam ou são silenciadas no
intradiscurso que se manifesta no jornal pesquisado?
c) De que forma, no processo discursivo de O Globo, se dá a constituição, a
formulação e a circulação da questão do controle do uso de armas pela
população civil brasileira?
1.2. Pressupostos teóricos e dispositivo de análise
Para compreender o funcionamento do discurso jornalístico sobre a questão
do (des)armamento no Brasil, conforme constituído, formulado e posto em circulação
em um jornal impresso de abrangência nacional, elegemos para o nosso trabalho
diário carioca O Globo. Para esta pesquisa, o jornal selecionado é visto como uma
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imprensa de referência, conforme definido nos trabalhos de Mariani (1996), Dela-
Silva (2008) e Lunkes (2014). Detalharemos esse conceito mais à frente nesta
dissertação (ver p. 52) .
Criticando posição de considerar o acontecimento jornalístico como um fato,
destaca-se que seguimos o entendimento de Dela-Silva (2008):
A perspectiva discursiva de estudos da linguagem [...] questiona o acontecimento jornalístico enquanto fato e o considera enquanto um acontecimento para o jornalismo ou um acontecimento para a grande mídia, considerados relevantes pela própria imprensa. Enquanto linguagem, o dizer jornalístico não traz consigo o fato, mas um gesto de interpretação do mesmo. A imprensa, mais que simplesmente narrar acontecimentos e servir de suporte para tais narrações, produz sentidos para os acontecimentos que elege como destaque em um momento dado.
(DELA-SILVA, 2008, p. 16)
Segundo Guimarães (2001 apud DELA-SILVA 2008, p.17), “o acontecimento
para a mídia, diz respeito a uma relação da mídia, a partir da qual ela enuncia, com
os eventos do mundo social e político” e, complementa:
O acontecimento para o jornal, aquilo que é enunciável como notícia, não se dá por si, como evidência, mas é constituído pela própria prática do discurso jornalístico. Enunciar na mídia inclui uma memória da mídia pela mídia [...] é enunciar segundo a interdiscursividade que determina as formulações da mídia, por mais que os jornalistas possam afirmar que eles se pautam pela objetividade dos acontecimentos.
(GUIMARÃES, 2001, p. 15 apud DELA-SILVA, 2008, p. 17)
Nesse sentido, como exposto por Dela-Silva e Dias (2015), o discurso
jornalístico, ao fazer o seu recorte e alçar um fato à condição de acontecimento,
realiza um duplo movimento:
No processo de constituição e formulação do discurso, a mídia constitui memória (Mariani, 2003) e, ao mesmo tempo, produz silenciamentos (Orlandi, 2002) porque, ao constituir arquivos, e consequentemente, estabilizar sentidos, estabelece o que há para ser dito em um determinado momento histórico, ao mesmo tempo em que impede que outros sentidos, igualmente possíveis, compareçam.
(DELA-SILVA e DIAS, 2015, p. 216)
A princípio, o material empírico que compõe nosso arquivo reúne textos
publicados no jornal mencionado, à época de acontecimentos relativos ao tema
escolhido:
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1) O sancionamento e publicação, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, da Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003, conhecida como Estatuto do
Desarmamento;
2) A campanha de desarmamento da população, iniciada em junho de 2004, em
todo território nacional;
3) Por fim, os decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de
2019 (Decreto 9.685/19), flexibilizando as regras de posse de armas no país,
e, em maio de 2019 (Decretos 9.785/19 e 9.797/19), incluindo regras de
ampliação do porte de armas.
Vale ressaltar que, neste gesto de análise, buscamos refletir sobre a
historicidade que constitui esse arquivo jornalístico, sobretudo suas possibilidades
de significação na questão do controle das armas de fogo no Brasil. Trata-se de
olhar os gestos de leitura que constituem os arquivos, de modo que questionemos
suas fronteiras e desnaturalizar sua leitura, ou ainda, de modo que possamos
construir um espaço polêmico das diferentes maneiras de se ler uma questão (cf.
PÊCHEUX, 1982 [2014]).
Ao encerrar este capítulo inicial, convidamos o leitor a acompanhar-nos em
um percurso pelas trilhas da Análise do Discurso Francesa ou Materialista. Na
próxima seção, em linhas gerais, apresentamos a sua base teórica, bem como
conceitos basilares à nossa jornada.
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2. ANÁLISE DO DISCURSO FRANCESA: UM PERCURSO INTRODUTÓRIO
Teorizar no (entre) caminho da teoria em Pêcheux é sustentar
a ideologia como princípio de constituição do sujeito e
fundamentar a relação da linguagem com a exterioridade.
Pensar o político na articulação do simbólico com a ideologia.
Eni Orlandi
Tendo como marco inaugural o ano de 1969, com a publicação de Michel
Pêcheux intitulada Análise Automática do Discurso (AAD) e o lançamento da
revista Langages, organizada por Jean Dubois, a escola francesa de Análise do
Discurso ou Análise do Discurso Materialista, formula uma teoria que estuda a
linguagem como condição material de constituição do sujeito e do sentido.
Dito de outro modo, da perspectiva dessa teoria, compreende-se que a
individuação dos sujeitos e a constituição dos sentidos possuem materialidade na
língua, associada a determinações histórico-sociais. Tais determinações são
decorrentes de confrontos e aproximações entre forças antagônicas, ou classes
distintas, no interior de uma formação social.
Ao compreender a linguagem como um campo de materialização do
ideológico, a teoria da Análise do Discurso questiona a naturalização dos sentidos, e
trabalha com os mecanismos que configuram as condições materiais para a
produção de sentidos, ou o efeito de evidências, para os homens em sociedade. É
uma teoria, por assim dizer, que reflete sobre o processo de identificação dos
sujeitos e, consequentemente, a constituição de seus gestos de interpretação (ou
seja, de significação), e os questiona. São estes gestos que estruturam suas
representações sobre eles mesmos, outros indivíduos e o mundo à sua volta.
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Em sua teoria, ao apresentar o discurso como objeto teórico, Michel Pêcheux
promove uma ruptura política e epistemológica, que permite um conjunto de
questionamentos e deslocamentos sobre a questão da interpretação dentro da
conjuntura científica do final dos anos 1960, articulando saberes oriundos da
linguística, do materialismo histórico e da psicanálise.
Com o seu deslocamento, Pêcheux instaura um campo de discussão sobre a
linguagem, em que o sócio-histórico e o linguístico se relacionam de modo
constitutivo e indissociável, mostrando-se pelo discurso a imbricação da
materialidade da língua, da história e da constituição do sujeito.
Desde os primórdios da Análise do Discurso Francesa, segundo Maldidier
(2003 [2017], p.22), o conceito 'discurso' não se confunde “nem com o discurso
empírico sustentado por um sujeito, nem com o texto”, distanciando-se de qualquer
concepção comunicacional de linguagem. Como afirma Pêcheux (1969) quanto ao
discurso, “não se trata de uma transmissão de informação entre A e B
(interlocutores) mas, (...) de um “efeito de sentidos” entre os pontos A e B”
(PÊCHEUX, 1969 [2014], p.81) ou, como define Orlandi (1999), “efeito de sentidos
entre locutores” (ORLANDI, 1999 [2015], p. 20)
Como detalha Orlandi (1999), o discurso é “efeito” porque entra em jogo no
funcionamento da linguagem, a “relação de sujeitos e sentidos afetados pela língua
e pela história” (ORLANDI, 1999 [2015], p.19), o que se dá no processo de
constituições dos sujeitos e produção de sentidos. Nessa relação, confrontos ou
adesões são estabelecidos entre os sujeitos.
Em seu esforço teórico, concebendo o discurso como “efeito”, a Análise do
Discurso quer compreender como os objetos simbólicos - enunciado, texto, pintura,
música etc. - produzem sentidos por/para os sujeitos. Dessa forma, volta-se para a
leitura (ou teorização) dos “gestos de interpretação constitutivos dos atos simbólicos,
tentando compreender como estes gestos funcionam, trabalhando seus limites, seus
mecanismos, como parte dos processos de significação” (ORLANDI, 1999 [2015], p.
24).
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2.1. Questionamentos e trabalho com a linguagem
No campo da Linguística, a Análise do Discurso Francesa questiona o
silenciamento da historicidade, da materialidade histórica, com o intuito de pensar
como a língua produz sentidos por/para sujeitos em uma determinada formação
social. No campo das Ciências Sociais, interroga a transparência da linguagem (no
caso, seu efeito de transparência) sobre a qual estas ciências assentam seus
conceitos e práticas.
A Análise do Discurso contesta ainda um excessivo formalismo linguístico
vigente à época de seu surgimento, que excluía a exterioridade (ou seja, o histórico-
social) como constitutivo da linguagem. Quanto às ciências sociais, trava-se um
embate com o tratamento destas à língua e ao sujeito como noções estáveis,
homogêneas e centradas.
Desse modo, em sua abordagem, a Análise do Discurso distingue-se da
linguística imanente, centrada na língua, nela e por ela mesma, como um sistema
fechado e homogêneo, pois insere em sua discussão teórica a exterioridade.
Pêcheux define a língua como “um sistema sintático intrinsecamente passível
de jogo” (PÊCHEUX, 1982 [2014], p.66), em que a falha, o deslize e a ambiguidade
são constitutivos.
Ao ser interpelado em uma posição discursiva, delimitada por uma ‘matriz de
sentidos’, o sujeito, de forma distinta ou similar à de seu interlocutor, constitui seu
gesto de interpretar ou dar significado aos objetos simbólicos de seu mundo. É essa
posição, a partir de uma filiação de sentidos, que constitui o indivíduo como sujeito e
direciona o seu modo de dizer e, consequentemente, de produzir sentido pela
língua.
Em Pêcheux (1975), definem-se como formações discursivas “aquilo que,
numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes determinam o que
pode e deve ser dito (articulado sob a forma de arenga, um sermão, um panfleto,
uma exposição, um programa etc.)”. (PÊCHEUX, 1975 (2014), p. 147).
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Sob esse conceito, fundamenta-se a não literalidade do sentido, na medida
em que sinaliza uma estrutura de filiação dos sentidos. A formação discursiva
funciona como uma “matriz”, que delimita as possibilidades de significação de um
enunciado na relação que estabelece internamente com outros elementos ou objetos
do discurso produzido.
Ainda em Pêcheux (1975) formula-se que “uma palavra, expressão ou
proposição constitui seu sentido nas relações mantidas com outras palavras,
expressões e proposições de uma mesma formação discursiva” (PÊCHEUX, 1975
(2014), p. 148). Dito de outro modo, a formação discursiva garante que cada um de
seus elementos seja dotado de sentido, por essa relação de coexistência em seu
interior.
Explica ainda o autor que, em seu funcionamento, a formação discursiva
dissimula como transparente as relações de sentido que se constituem em seu
interior, sua dependência ao interdiscurso ou saber discursivo (ver p. 28)
compartilhado com outras formações discursivas, representantes do intrincado
complexo das formações ideológicas coexistentes.
Uma formação discursiva é “constituída-margeada pelo que lhe é exterior,
logo por aquilo que aí é estritamente não formulável, já que a determina” (FUCHS e
PÊCHEUX, 1975 (2014), p. 177). Os limites da significação dos elementos dentro de
uma formação são definidos sócio-historicamente, no embate de forças (adesões ou
afastamentos) com outras formações discursivas.
Na linguagem, as formações discursivas representam as formações
ideológicas ou posições ideológicas.
Adiante, ao falar sobre o conceito de ideologia, detalharemos o que abarca o
conceito de formações ideológicas.
Ainda sobre as distinções da Análise do Discurso, comenta-se que, em face
das ciências sociais, a teoria proposta por Pêcheux rompe com a visão da língua
como mero instrumental para a explicação de textos. Questiona-se pela Análise do
Discurso o silenciamento da opacidade da língua, ou seja, da plasticidade da língua.
É essa opacidade que permite a construção histórica dos sentidos. Pelo trabalho da
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ideologia, essa construção é naturalizada como uma literalidade, constituindo efeitos
de transparência e de completude pela linguagem.
Não se trabalha o comportamento linguístico como um circuito estímulo-
resposta, tal como proposto pela corrente behaviorista de Skinner. Tampouco com o
conceito de mera transmissão de informação (mensagem), como proposto pela
teoria comunicativa de Jakobson. Pêcheux propõe um trabalho com a linguagem
pela ideologia, tendo o discurso como elo teórico.
Para Orlandi (2003 [2017]), o ponto forte da construção teórica de Pêcheux
encontra-se “no modo mesmo como se define e como funciona a ideologia,
colocando o discurso como o lugar de acesso e observação da materialidade
específica da ideologia e a materialidade da língua” (ORLANDI in MALDIDIER, 2003
[2017], p. 12).
Deste ponto, a ideologia não é mais vista como ocultação da realidade, mas
como princípio de sua constituição, a partir da linguagem. Pela ideologia,
materializada no discurso, podemos pensar a produção dos sujeitos e dos sentidos
em sua determinação histórica que se configura na língua, compreendida como base
material do discurso.
Sob o conceito de formações ideológicas, a teoria pecheutiana formula sobre
as diferentes configurações ideológicas, no interior de uma formação social.
Uma formação ideológica refere-se a “um conjunto complexo de atitudes e
representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas se relacionam
mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com as outras”.
(PÊCHEUX e FUCHS, 1975 [2014], p.163).
Desse modo, as formações ideológicas refletem as relações de classe,
estabelecidas pelo confronto de forças no interior de uma sociedade ou formação
social. Cada formação ideológica se configura como uma força, um modo como o
indivíduo pode “ser recrutado” ou posicionado como sujeito em uma formação social.
“São essas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-
histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas”
(PÊCHEUX, 1975 [2014], p. 146) para poderem significar X ou Y, bem como
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delimitam a forma como os sujeitos são interpelados a ocupar uma posição A ou B
na sociedade.
Constituem as posições dos sujeitos falantes no discurso, como manifestação
das relações de força entre classes.
No discurso, as formações ideológicas são materializadas pelas formações
discursivas. Simultaneamente, constituem a própria exterioridade das formações
discursivas, na medida em que designam “o efeito necessário de elementos
ideológicos não discursivos (representações, imagens ligadas a práticas etc.) numa
determinada formação discursiva” (PÊCHEUX e FUCHS, 1975 (2014), p. 166).
Segundo Orlandi (1999 [2015]), concebe-se a linguagem como “mediação
necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o
discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive”
(ORLANDI, 1999 [2015], p. 13).
Nas práticas discursivas, há sempre uma tensão entre o mesmo (a paráfrase,
a repetição) e o diferente (a polissemia, a ruptura). Sendo espaço de incompletude e
movimento, o discurso funciona tanto como estrutura (pautada em um sistema de
manutenção de um 'já-dito', do mesmo, da repetição), como acontecimento (ponto
de encontro entre uma atualidade e uma memória (Pêcheux, 1983 [2015], p. 16)),
que reivindica significação, representando discursivamente a possibilidade de
deslocamento, de ruptura, de (re)construção de sentidos.
Para Orlandi (1999 [2015]), o jogo entre paráfrase e polissemia “atesta o
confronto entre o simbólico e o político” (ORLANDI, 1999 [2015], p. 36). Quando os
sujeitos significam as coisas no mundo e a si mesmos em suas práticas discursivas,
põem em funcionamento relações de sentidos que exploram os limites entre o “já-
dito”, ou seja, um saber ou memória discursiva constituído socialmente, e as
possibilidades de deslize, deslocamento, ruptura para novos efeitos de sentido.
Por falar em memória, na teoria discursiva proposta por Pêcheux, quando se
trabalha com a memória, entra-se na seara do interdiscurso.
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Segundo Pêcheux (1975), o interdiscurso “é o todo complexo com dominante
das formações discursivas” (Pêcheux, 1975 [2014], p.149). É o “já-dito” em outro
lugar, a base para que os interlocutores ou sujeitos falantes atribuam sentidos ao
que enunciam. É o que oferece às formações discursivas o “algo já-lá”, que fala
antes “em outro lugar e independentemente”, sob a dominação do complexo das
formações ideológicas.
Em Orlandi (1999 [2015]) define-se como “memória discursiva”: um “saber
discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído,
o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”
(ORLANDI, 1999 [2015], p. 29).
Para que uma palavra constitua um determinado efeito de sentido em um
dizer, é necessário que já tenha sido formulado como tal em algum outro lugar, em
algum outro discurso. As relações de sentido no interior das formações discursivas
e, até mesmo, das formações discursivas entre si, estruturam-se numa grande rede
fornecida pelo interdiscurso, inscrita na materialidade da língua e da história.
Em Courtine (2009), define-se o interdiscurso como:
o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante, produzindo uma sequência discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos de que esse sujeito enunciador se apropria para deles fazer objetos de seu discurso, assim como as articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar uma coerência à sua declaração.
(COURTINE, 2009 [2014], p. 74).
Em suma, o interdiscurso reúne as possibilidades de significação de um
enunciado, em determinadas condições de produção.
Como elemento do interdiscurso, o pré-construído delimita como evidência
para o sujeito a forma como atribui efeitos de sentido a suas práticas discursivas,
definindo aquilo “o que cada um sabe” e, simultaneamente, “o que cada um pode
ver”, em uma dada situação, no interior de uma posição sujeito; ou seja, de um lugar
inscrito em uma relação de lugares dentro da formação discursiva que o determina.
O interdiscurso funciona ainda pelo esquecimento, como o “conjunto de
formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI,
1999, p.31). Como exposto anteriormente, para que as palavras façam sentido é
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preciso que elas já tenham feito sentido em outro lugar. Por terem sido esquecidas
como formulações, constituídas de uma materialidade histórica, adquirem no
silenciamento desse processo um efeito de evidência, de transparência para o
sujeito falante.
Abrindo um parêntese, as condições que propiciam as materialidades
linguística e histórica às práticas discursivas são denominadas pela Análise do
Discurso como condições de produção.
A princípio, em sua teoria, Pêcheux caracteriza especificamente as condições
de produção como “a situação e a posição dos protagonistas do discurso em uma
estrutura social dada” (PÊCHEUX, (1969) [2014], p. 149). Segundo o teórico,
corresponde ao “mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto de
discurso” (PÊCHEUX, (1969) [2014], p. 78), que define o “conjunto dos discursos
suscetíveis de serem engendrados dentro de invariantes semântico-retóricas
estáveis no conjunto e que são características do processo de produção colocado
em jogo” (idem).
É impossível, segundo Pêcheux, analisar o discurso como um texto, ou seja,
uma sequência linguística fechada sobre si mesma. Desse ponto de vista, é
“necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado
definido das condições de produção” (PÊCHEUX, 1969).
Em um exercício teórico para detalhar melhor o conceito, Orlandi (2012)
enumera como elementos das condições de produção:
a circunstância da enunciação ou da comunicação imediata (mãe, filhos em situação de lazer); o contexto sócio-histórico (regras de família, relações familiares, obediência etc.); a memória discursiva (o princípio da autoridade no conjunto das múltiplas formulações propiciadas pelo conjunto de formações discursivas) e ao seu modo de circulação (exemplo: situação de conversa de rua, ocasional).
(ORLANDI, 2012, p. 14)
Do conceito de condições de produção, abarcam-se reflexões e
questionamentos sobre as práticas discursivas acerca de sua exterioridade
constitutiva. Essa exterioridade é indissociável na compreensão do funcionamento
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dessas práticas, como formas ou processos de constituição dos sujeitos e dos
sentidos pela linguagem.
Como objeto sócio-histórico, no qual o linguístico intervém como pressuposto
(ORLANDI, 1999 [2015], p. 14), o discurso articula teoricamente a mediação entre
língua (o simbólico) e a história (o político), na constituição do sujeito e na produção
dos sentidos (ORLANDI, 1999 [2015], p.36).
Mais do que transmissão de informação, define-se discurso como ““efeito de
sentidos” entre interlocutores” (PÊCHEUX, 1969 [2014], p. 81; ORLANDI, 1999
[2015] p. 20).
Por esta linha, questiona-se a literalidade ou transparência do sentido.
Aborda-se o sentido não como uma relação unívoca entre significante e significado,
uma relação termo a termo entre pensamento, linguagem e mundo. Muito menos
constitui-se em uma essência das coisas. Nas palavras de Orlandi (1999), sentido é
“relação a” (ORLANDI, 1999, p. 23), pois o processo de significação é dividido,
dependente de relações que derivam de determinações histórico-sociais e
ideológicas.
Para a interpretação desses processos de produção de sentidos,
compreendidos como efeitos, são consideradas as condições de produção e as
posições-sujeito dos interlocutores que, sob determinadas “matrizes de sentido”,
imprimem seus gestos de interpretação de palavras, expressões e enunciados
(PÊCHEUX, 1975 [2014]).
Efeitos de sentidos porque o discurso se faz em um jogo entre língua e
história, motivado pela interpelação dos sujeitos em uma posição-sujeito. Estes
efeitos se constituem dentro de certas circunstâncias, por sujeitos afetados por
formas de significar e, consequentemente, de projetar imagens sobre si mesmos,
seus interlocutores e as coisas no mundo.
Em sua teoria, para pensar essas projeções ou representações imaginárias,
Pêcheux emprega o conceito de formações imaginárias.
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Bastante relevante no que diz respeito à análise dos efeitos da produção de
sentidos, as formações imaginárias ajudam a refletir sobre o papel do imaginário
constituído socialmente nas práticas discursivas.
Segundo a teoria de Pêcheux, em nossas práticas discursivas não lidamos
com os agentes sociais propriamente ditos, muito menos com as situações
empíricas e concretas. Lidamos, no discurso, com suas projeções ou
representações imaginárias, constituídas a partir de regras de projeção, existentes
como mecanismo no interior de qualquer formação social. Essas projeções ou
imagens estabelecem relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as
posições ocupadas pelos sujeitos dentro do que se presume de seus papéis sociais.
Tais imagens são conhecidas na Análise do Discurso como formações imaginárias.
Para Pêcheux (1969), são essas formações as responsáveis por designar “o
lugar que A e B (como interlocutores) se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem
que eles se fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro” (PÊCHEUX,1969 [2014],
p. 82).
Essas representações imaginárias ou projeções incluem ainda o referente,
que se materializa no discurso como um objeto imaginário (PÊCHEUX, 1969[2014],
p.83), constituído através da ótica do sujeito. Desse modo, não é a realidade física
propriamente dita, mas a projeção que o sujeito possui desta, desde sua posição
discursiva.
Sendo imagem no jogo de espelhos entre interlocutores, o sentido pode ser
outro.
Considerando-se a língua como espaço de falha e de equívoco, no qual os
gestos de interpretação dos sujeitos falantes ou interlocutores se configuram, um
mesmo enunciado pode materializar um sentido X ou Y, de acordo com condições
de produção distintas.
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Por isso, Pêcheux (1983 [2015]) afirma que:
todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si
mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro ... é,
pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada)
de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação”
(PÊCHEUX, 1983 [2015], p. 53).
Por essa plasticidade inerente à língua, as palavras 'arma', ‘armar’,
‘armamento’ e os discursos sobre o (des)armamento podem produzir distintos efeitos
de sentido. Os sentidos, como se afirma em Análise do Discurso, não estão nas
palavras, nem nas coisas, nem nas intenções de quem fala. ‘Arma’, ‘armar’ e
‘armamento’ significam conforme a posição daqueles que enunciam. Assim, para um
defensor do armamento, ‘arma’ pode significar, por exemplo, item de defesa da
integridade física ou patrimonial. Já para um ativista do desarmamento, ‘arma’ pode
significar crescimento de violência física e assassinatos. Para um policial civil ou
militar, um instrumento de trabalho. Isso só para exemplificar alguns dos sentidos
possíveis. Desse modo, de acordo com as condições de produção, ou seja, com o
período histórico, a situação e a posição dos sujeitos ao realizarem suas práticas
discursivas, os significantes 'arma', ‘armar’ e ‘armamento’ podem produzir efeitos de
sentido diversos, até mesmo antagônicos entre si.
Interpelado pela ideologia, o indivíduo é instado a se identificar com uma
determinada posição sujeito, sendo convocado a assumir determinada forma de
significar as coisas no mundo e sua própria presença na sociedade. Essa ideologia
materializa-se em discurso, o qual possui como base material a língua.
Em todo dizer, se faz presente a ideologia, delimitando sujeito e sentido.
Segundo Orlandi (1999), “é na língua que a ideologia se materializa”, sendo o
discurso “o lugar do trabalho da língua e da história” (ORLANDI, 1999 [2015], p.36).
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2.2. Análise do Discurso como disciplina de entremeio
Em artigo de 1975, intitulado A propósito da Análise Automática do Discurso:
atualização e perspectivas, Fuchs e Pêcheux, elaboram o quadro epistemológico da
Análise do Discurso, circunscrevendo-o na articulação das seguintes regiões do
conhecimento científico:
1. O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas
transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;
2. A linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de
enunciação ao mesmo tempo;
3. A teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos
semânticos.
(FUCHS e PÊCHEUX, 1975 in GADET E HAK, 2014, p.160)
Explicitam os autores que esse tripé conceitual da Análise do Discurso é
atravessado e articulado por uma teoria da subjetividade, de natureza psicanalítica.
Contudo, diferente de uma ciência positivista, que meramente acumula
conhecimentos, a Análise do Discurso tem como tomada de posição a crítica e o
deslocamento diante dos empréstimos de suas ciências de origem. No âmbito da
linha teórica e prática inaugurada por Pêcheux, este posicionamento é conhecido
como entremeio.
Desde seu início, a Análise do Discurso, constrói um gesto de ruptura a toda
uma conjuntura política e epistemológica da produção científica dos anos 1960 e
1970, ao fugir da mera apropriação instrumental de suas ciências de origem, a
Análise do Discurso trabalha com estas no campo da contradição, em particular, no
que concerne a relação entre linguagem e exterioridade, articulada pela ideologia.
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Como teoria de reflexão sobre a linguagem, a Análise do Discurso não se
contenta com as evidências e o lugar já-feito por outras ciências. Pêcheux aloja sua
Análise nas lacunas das disciplinas de origem, por meio de uma articulação
contraditória com essas ciências, questionando-as e dialogando com as limitações
de suas teorias e práticas científicas por elas consagradas. Desse modo, Pêcheux
busca promover a reflexão sobre essas práticas e conceitos, e os reelabora do ponto
de vista teórico-analítico.
Quer como dispositivo de análise, quer como instauração de novos gestos de
leitura (teorização), o lugar da Análise do Discurso promovida por Pêcheux é como o
de uma disciplina ou teoria de entremeio, que, além da crítica, propõe outro olhar
sobre os conceitos e práticas de outras ciências.
Em Orlandi (1996 [2001]), a partir de Pêcheux, pode-se ler que a Análise do
Discurso “trabalha no entremeio, fazendo uma ligação, mostrando que não há
separação estanque entre linguagem e sua exterioridade constitutiva” (ORLANDI,
1996[2001], p.25). A língua não é um sistema autônomo, monolítico, independente
de suas condições de produção sócio-históricas. Em qualquer língua, para que um
dizer faça sentido, é necessário levar em consideração a sua historicidade, ou seja,
as determinações históricas dos processos de constituição do sujeito e de produção
de sentidos, observáveis pelo trabalho com o discurso.
Ao contrário das teorias vigentes até então, as quais excluíam de seus
estudos as condições histórico-sociais como constituintes da compreensão da
linguagem, a Análise do Discurso assume a inscrição da língua na história,
considerando o papel da ideologia na interpelação dos indivíduos em sujeitos, bem
como no processo de produção de sentidos.
Comentando sobre o deslocamento provocado pela posição de entremeio,
Orlandi conclui que a Análise do Discurso leva:
a sua crítica até o limite de mostrar que o recorte de constituição dessas
disciplinas que constituem essa separação necessária e se constituem nela é
o recorte que nega a existência desse outro objeto, o discurso, e que coloca
como base a noção de materialidade, seja linguística seja histórica, fazendo
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aparecer uma outra noção de ideologia, possível de explicitação a partir da
noção mesma de discurso e que não separa linguagem e sociedade na
história.
(ORLANDI, 2001, p. 25)
Em suas discussões a partir do discurso como materialidade ideológica, a
Análise do Discurso aponta um esforço teórico que integra as materialidades da
língua e da história. A língua não é um sistema homogêneo e fechado em si, com
regras estanques e imutáveis, e sim, está sujeita à falha, ao equívoco, sendo
intimamente vinculada a uma exterioridade constitutiva. Essa exterioridade
materializa seus elementos de manutenção e de mudança. Por outro lado, pensa-se
ainda que há uma materialidade da história, pois o modo de produção da vida
material, em última instância, cria as condições dentro das quais se desenvolve o
conjunto da vida social e política.
Em artigo sobre a disciplinarização dos estudos de Análise do Discurso no
Brasil, Mariani e Medeiros (2013) comentam esta posição de entremeio da Análise
do Discurso:
A Análise do Discurso é uma disciplina de entremeio que está sempre retomando e reinvestigando seus fundamentos ao mesmo tempo em que sua reflexão desloca e reterritorializa conceitos vinculados aos campos teóricos com os quais dialoga: a linguística mais especificamente a teoria da enunciação tomada de um ponto de vista não subjetivo; o materialismo histórico, enquanto teoria das formações sociais e suas transformações; e, também, a psicanálise, base para se compreender o sujeito dividido, uma vez que o homem não é o senhor de sua morada, como afirma Freud.
(MARIANI e MEDEIROS, 2013, p. 23)
Além disso, conforme Orlandi (2015), o entremeio vincula-se à possibilidade
de diálogo, questionamento e ressignificação de teorias, conceitos e métodos de
análise das ciências que a fundamentam (no caso, em particular, o Materialismo
Histórico, a Linguística, a Teoria do Discurso, atravessados pela Teoria Psicanalítica
do Sujeito), valendo-se do elo, bem como das relações de contradição entre si.
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No prefácio de Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia (2017),
Orlandi destaca nesta noção de entremeio:
sobretudo, não pensar relações hierarquizadas ou instrumentalizadas ou aplicadas. Trata-se de transversalidade de disciplinas pensadas como, segundo M. Pêcheux (1969), empréstimos que se usam como metáforas, o nosso contexto científico. Nem sobredeterminação, nem instrumentalização, nem aplicação. Uma relação metafórica, ressignificação, como o que se dá quando se toma discursivamente a não transparência do sujeito, a não transparência da língua, a não transparência da história.
(ORLANDI, 2017, p.11)
Ao assumir esta posição, portanto, a Análise do Discurso fundamenta o
trabalho de investigação nas relações entre a linguagem, a história, a sociedade, a
ideologia, a produção de sentidos e a noção de sujeito.
2.3. Ideologia, sujeito e sentido: outros conceitos basilares
Ao propor uma teoria materialista dos processos discursivos, a Análise do
Discurso tenta compreender as relações ou luta de classes nos processos
discursivos, por meio da tríade Ideologia/Sujeito/Sentido, buscando romper com “os
paradigmas que sustentam o objeto como determinante da significação e com os
que afirmam ser o sujeito o senhor absoluto de seu dizer” (AMARAL, 2013 apud
AMARAL e ZOPPI FONTANA, 2017, p.44). Leva-se para o terreno de discussão da
linguagem a materialidade histórica dos processos de constituição do sujeito e do
sentido, delimitados pelas relações de força e confronto entre classes na sociedade.
Ou seja, as formas de individuação dos sujeitos e de construção de sentido(s) em
sociedade são constituídas historicamente, simbolizando as relações de forças, de
conflito, entre classes.
Dessa perspectiva, a Análise do Discurso “propõe outra leitura das formas de
significação da existência, das formas como os homens atribuem sentido à vida,
aproximando-se à concepção de história do marxismo, como história das formações
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sociais” (AMARAL, 2013 apud AMARAL e ZOPPI FONTANA, 2017, p.44), marcadas
pelas relações de dominação e luta de classes.
Em sua proposta como teoria materialista do discurso (PÊCHEUX, 1975), a
Análise do Discurso questiona a evidência de uma existência espontânea do sujeito
(como causa e origem de si mesmo) e a evidência de uma literalidade do sentido.
Um dos elementos de ruptura política e epistemológica da Análise do
Discurso, perante outras ciências, encontra-se na importância da ideologia no
estudo da linguagem, concebendo o discursivo como um dos aspectos materiais da
instância ideológica.
Para Pêcheux, a ideologia não é acúmulo de ideias. Muito menos, ocultação
de ideias. O teórico francês define a ideologia como o que interpela os indivíduos em
sujeito em um processo de assujeitamento. Este é um processo constituído pela/na
linguagem. Lembremos que a linguagem produz como efeito as evidências dos
sentidos e dos sujeitos.
Em Pêcheux (1975), detalha-se que esse assujeitamento “se realiza mediante
o complexo das formações ideológicas (e, especificamente, mediante o interdiscurso
imbricado nesse complexo), e fornece a “cada sujeito” sua “realidade”, enquanto
sistema de evidências e de significações percebidas – aceitas – experimentadas”
(PÊCHEUX, 1975 [2014], p.149). Essas formações ideológicas fornecem aos
indivíduos conjuntos de regras e práticas que lhes permitem a identificação a uma
posição como sujeito, dono de seu dizer, ao mesmo tempo que dão embasamento à
forma como os sentidos se constroem dentro de seu sistema de “evidências e
significações percebidas”.
Complementa-se ainda que, ao lado do inconsciente, a ideologia é vista como
“uma estrutura/funcionamento que dissimula sua existência no interior mesmo do
seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências 'subjetivas' […] nas quais se
constitui o sujeito” (PÊCHEUX, 1975 [2014], p. 139). Em seu funcionamento, a
ideologia apaga a sua existência, criando como natural aquilo que é da ordem de
uma construção histórico-social.
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Sob esse “tecido de evidências subjetivas”, a ideologia ou instância ideológica
funcionaria pela interpelação (ou assujeitamento) do sujeito (FUCHS e PÊCHEUX,
1975, p. 162), que se articula em um duplo esquecimento: o sujeito não é a fonte e
origem de seu dizer (esquecimento nº 1) e o sentido pode ser outro (esquecimento
nº 2).
O primeiro esquecimento é inerente à prática subjetiva ligada à linguagem.
Definido como esquecimento ideológico (ORLANDI, 1999 [2015], p.33), refere-se ao
silenciamento de como somos afetados pela ideologia, para que tenhamos a ilusão
de ser, na qualidade de sujeitos, a origem do nosso dizer, e para nos identificarmos
a uma posição como sujeitos.
Caracteriza-se por uma contradição: o sujeito não é a origem ou fonte de seu
dizer, posto que os dizeres se constituem como o formulável no interior da matriz de
sentido inerente à formação discursiva. No entanto, como afirma Fuchs e Pêcheux
(1975), “se realizam necessariamente neste sujeito” (FUCHS e PÊCHEUX, 1975
[2014], p. 169), no momento que este ocupa um lugar para que o seu dizer possa
fazer sentido.
É a ilusão constitutiva do efeito-sujeito na linguagem (FUCHS e PÊCHEUX,
1975, p. 167), tomando o dizer como próprio, natural do sujeito falante, negando-lhe
a percepção da subjetividade como algo delimitado por condições histórico-sociais.
É o esquecimento que apaga no sujeito a determinação histórica de sua posição,
inerente à formação social em que se insere. Os sentidos se materializam, no
sujeito, por sua identificação a uma formação discursiva ancorada a uma formação
ideológica, possibilitando a forma como o sujeito se posiciona e se constitui pela
linguagem.
Ao se inscrever numa formação discursiva, o indivíduo se identifica com um
primeiro e elementar efeito ou ilusão da ideologia: a evidência de que ele é um
sujeito pleno, centralizado, assim como dono e fonte do seu dizer. Desse modo, pelo
trabalho da ideologia, constitui-se como natural e transparente aquilo que é da
ordem da materialidade histórica.
O indivíduo se inscreve como sujeito ao identificar-se com uma posição,
assumindo como natural aquilo que é resultado do processo de formação histórica e
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simbólica de seu assujeitamento. Tal assujeitamento permite ao indivíduo projetar
sua situação social, de ordem empírica, em uma posição-sujeito, de ordem
discursiva.
Como formula Orlandi (1999), “os sentidos apenas se representam como
originando-se em nós”, apagando-se para o sujeito que os sentidos não são
decorrentes de sua vontade, mas “são determinados pela maneira como nos
inscrevemos na língua e na história” (ORLANDI, 1999 [2015], p. 33), na condição de
sujeito.
Por este esquecimento, recalca-se no sujeito sua identificação a uma
formação discursiva que o ‘convoca’ a assumir um determinado papel diante do
duplo processo de sua constituição como sujeito e da constituição dos sentidos.
O segundo esquecimento, denominado ‘enunciativo’ (ORLANDI, 1999 [2015],
p. 33), constitui-se na ilusão referencial, que “nos faz acreditar que há uma relação
direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo” (idem). Dito de outro modo,
refere-se à ‘evidência’ da literalidade do sentido, esquecendo-se de que o sentido é
instituído historicamente na relação do sujeito com a língua e que faz parte das
condições de produção do discurso.
Torna-se transparente, natural, a construção dos sentidos das palavras no
interior de uma formação discursiva, quando atrelada à formação ideológica, o que
faz o sujeito se inscrever em um modo de dizer e dar sentido às coisas. Ou seja, os
significados das palavras são determinados por aquilo que é possível e
historicamente definido, a partir de uma formação discursiva específica, vista como
matriz de sentidos.
Outra questão de interessa na Análise do Discurso é o seu ponto de vista
sobre o sujeito.
Contrapondo-se a outras linhas de estudo de linguagem, alicerçadas em um
sujeito psicológico, centrado, homogêneo, dono de si e total governante de seu
dizer, a Análise do Discurso formula o sujeito como um ente descentrado, difuso,
que assume uma posição sujeito, delimitada por condições histórico-sociais. Essa
posição sujeito define seu modo de dizer e significar as coisas no mundo.
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O sujeito então inscreve-se na língua e na história para constituir o sentido e a
si mesmo como sujeito. Não há como ele existir fora dessa relação, que se dá pela
interpelação ideológica e leva o indivíduo, subjetivamente, a se identificar com uma
posição sujeito, desde a qual se institui como fonte e origem de seu dizer.
Nesse trabalho da interpelação pela ideologia, o “sujeito é chamado à
existência” (PÊCHEUX, 1975 [2014], p. 141), tomando como próprio, natural, o que
é da ordem de uma identificação a um conjunto de regras, crenças,
comportamentos, bem como de formas de significar-se e dar sentido às coisas.
Como seres simbólicos, instaurados pela linguagem, somos então instados,
em todas as nossas práticas discursivas a dar sentido às coisas no mundo, ou seja,
a interpretar. Nas palavras de Orlandi (1996), “a interpretação está presente em toda
e qualquer manifestação de linguagem. Não há sentido sem interpretação”
(ORLANDI, 1996 apud ORLANDI, 2013. p. 05).
Pensando o processo de constituição dos sentidos como gesto de
interpretação, a Análise do Discurso se posiciona contra a literalidade do sentido. Ou
seja, segundo essa teoria, o sentido (ou efeito de sentido) não se encontra
encerrado em uma relação idealista entre pensamento-linguagem-mundo, mas sim a
filiações de sentido que se materializam por determinações histórico-sociais.
Como irão afirmar Fuchs e Pêcheux (1975):
o “sentido” de uma sequência só é materialmente concebível na medida em
que se concebe esta sequência pertencente necessariamente a esta ou
aquela formação discursiva ... É este fato de toda sequência pertencer
necessariamente a uma formação discursiva para que seja “dotada de
sentido” que se acha recalcado para o sujeito.
(FUCHS e PÊCHEUX, 1975 [2014], p. 167).
Como explicado anteriormente, as formações discursivas são matrizes de
sentido, representantes de formações ideológicas, delimitadoras de como as
palavras, expressões ou enunciados constituirão efeitos de sentido para o sujeito
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falante, a partir das circunstâncias imediatas e das determinações histórico-
ideológicas de produção do discurso.
Aproveitamos ainda para retomar o conceito de sentido como “relação a”
(ORLANDI, 1999 [2015], p. 23). Para uma palavra fazer sentido, é necessário que o
interlocutor se inscreva em uma posição como sujeito. Essa posição, associada a
uma formação discursiva, estabelece como naturais ou evidentes determinadas
relações de significação entre palavras, expressões e enunciados, bem como a
própria identificação do sujeito com aquilo que ele fala.
O sentido ou efeito de sentido constitui-se pelas possibilidades de significação
permitidas pela formação discursiva à qual o sujeito está vinculado. Esta formação
também sofre limitações de outras formações discursivas, e de sua relação com o
interdiscurso, ou memória discursiva, que reúne o dizível ou todas as possibilidades
de significação de uma palavra, expressão ou enunciado dentro de determinadas
condições de produção, no interior de uma formação social.
Com este percurso acerca da Análise do Discurso, buscamos destacar o
trabalho teórico e analítico articulado por Pêcheux para a compreensão da
linguagem, também considerando suas determinações histórico-sociais, igualmente
constitutivas dos sujeitos e do processo de produção de sentidos pela língua.
Mobilizamos alguns conceitos centrais à teoria, igualmente importantes no
gesto de construção das análises a serem apresentadas nesta pesquisa, e
esperamos ter delimitado, para os leitores, alguns dos pressupostos teóricos que
norteiam este trabalho.
Em continuação, nos próximos capítulos, falaremos sobre a questão do
arquivo, bem como sobre o discurso jornalístico, sob o ponto de vista da Análise do
Discurso.
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3. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O ARQUIVO EM ANÁLISE DO DISCURSO, O
ARQUIVO JORNALÍSTICO E A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA
Problematizar os arquivos é estabelecer os condicionantes históricos sociais de sua elaboração e a posição da forma-sujeito que possibilitou sua elaboração e controle.
Belmira Magalhães
Em Ler o arquivo hoje (1982 [2014]), Michel Pêcheux define em sentido amplo
o arquivo como: “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma
questão” (PÊCHEUX, 1982 [2014], p.59). Contudo, o que se constitui como
documentos pertinentes? Quem julga essa pertinência? Em que condições? O que é
possível ou permitido disponibilizar sobre um tema? O que é considerado como
questão relevante em nossa sociedade, para que seja discursivizado sob um
arquivo? Com esses questionamentos, propomos nesta seção uma reflexão sobre o
conceito de arquivo segundo a Análise do Discurso Materialista, e,
consequentemente, sobre a construção do arquivo desta pesquisa.
Pêcheux observava que os grandes debates sobre a questão do arquivo eram
estruturados frequentemente sobre temas, posições ou, às vezes, sobre métodos de
trabalho. No entanto, não se pensavam explicitamente os conflitos, as contradições,
que constituíam a leitura do próprio arquivo, em seu gesto de consolidação de uma
memória institucional sobre um tema. A partir dessa lacuna, o teórico francês propôs
um outro gesto de leitura, teorizando o próprio gesto de constituição e estruturação
do arquivo, como: “trabalho do arquivo enquanto relação do arquivo com ele-mesmo,
em uma série de conjunturas, trabalho da memória histórica em perpétuo confronto
consigo mesma” (PÊCHEUX, 1982 [2014], p. 59).
Dito de outro modo, Pêcheux questiona, em sua formulação, a organização
dos arquivos. Ou seja, que gestos de leitura sobre uma questão estão em jogo? Sob
quais condições políticas, históricas e ideológicas se constituem tais gestos? Que
sentidos são postos em evidência, sendo naturalizados como possibilidades de
significação sobre um tema, constituindo assim uma memória coletiva? Em
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contrapartida, que outros são apagados, proibidos de serem ditos, de fazerem parte
dessa memória?
Desse modo, em seu gesto de leitura ou de teorização, a Análise do Discurso
não considera o arquivo um mero conjunto de dados, e sim, adota um
posicionamento de apreciação de suas materialidades constitutivas desde seu lugar
institucional e de sua historicidade (DELA-SILVA, 2008, 2015)
Diante do arquivo, não se trabalha com um dado objetivo, como preconizado
pelas ciências positivistas, que encerram completamente as possibilidades de
significação de um tema. Em sua leitura, em sua teorização, para melhor
compreensão do arquivo, entra em jogo também a análise das contradições da
formação social em que se estabelece, as quais também delimitam sua constituição
como memória social.
Em seu funcionamento, todo arquivo promove o silenciamento de um traba
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