universidade federal do rio grande do norte ......2- a terra dos meninos pelados 87 3- vidas secas...
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ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
MMEEMMÓÓRRIIAASS DDAA PPRRIISSÃÃOO:: LLIITTEERRAATTUURRAA EE LLIIBBEERRDDAADDEE
Um estudo sobre Graciliano Ramos e Antonio Gramsci
Edlena da Silva Pinheiro
NNaattaall –– RRNN
22001122
Edlena da Silva Pinheiro
MMEEMMÓÓRRIIAASS DDAA PPRRIISSÃÃOO:: LLIITTEERRAATTUURRAA EE LLIIBBEERRDDAADDEE
Um estudo sobre Graciliano Ramos e Antonio Gramsci
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem – PPGEL – do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Doutor em Literatura Comparada, na linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros
NNaattaall –– RRNN
22001122
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Pinheiro, Edlena da Silva.
Memórias da prisão: literatura e liberdade. Um estudo sobre Graciliano Ramos e Antonio Gramsci / Edlena da Silva Pinheiro. – 2011.
162 f. -
Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Natal, 2011.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros.
1. Literatura comparada. 2. Memória coletiva. 3. Ramos, Graciliano, 1892-1953. 4. Gramsci, Antônio, 1891-1937. I. Falleiros, Marcos Falchero. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 82.091
Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem Área de Concentração em Literatura Comparada
Tese aprovada pela banca examinadora e aceita pelo Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem, como requisito de conclusão do Doutorado em Literatura
Comparada.
Defendida e aprovada em ______/ ______/_______
Banca Examinadora:
____________________________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros
Orientador – UFRN
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Giorgio De Marchis Examinador externo – Professor Associado de Literatura Portuguesa e Brasileira
Università degli Studi Roma III
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Roberto Papaterra Limongi Mariutti Examinador externo – FAPESP/ Universidade de São Paulo
_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira
Examinador interno – UFRN
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Fernandes de Medeiros Júnior Examinador interno – UFRN
_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues
Examinador externo – Suplente – UERN/Pau dos Ferros
_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Gerardo Andrés Godoy Fajardo Examinador interno – Suplente – UFRN
AGRADECIMENTOS
Começo agradecendo ao professor Marcos Falchero Falleiros,
orientador desta pesquisa. Creio que não podem existir palavras que
expressem minha gratidão e meu reconhecimento pela orientação camarada,
acreditando sempre no trabalho, mesmo quando parecia tão distante chegar
até aqui. Meu sincero e muitíssimo obrigada por tanta generosidade e
paciência infinita.
Agradeço aos professores Andrey Pereira de Oliveira e Gerardo
Andrés Godoy Fajardo, pela leitura e considerações no Exame de Qualificação
À minha família, sobretudo, meus pais, pela força. Também agradeço
aos meus sogros, pela atenção com os meus filhos.
Aos amigos: Carla Sansone, Edson Moura, Eunice Rosado, Mácio
Alves, Massimo Pinna e Mona Lisa Bezerra Teixeira, registro o meu carinho
especial pela amizade, incentivo e troca de material.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela graduação em
Letras, o mestrado e agora com a conclusão de um vínculo de mais de quinze
anos, reconhecendo a importância e o valor das Universidades públicas e
gratuitas no Brasil.
À Università degli Studi de Salerno, através do Professor Giorgio de
Marchis, a quem expresso minha estima e gratidão pela co-orientação mesmo
informal, e por ter me recebido como aluna visitante no Programa de Doutorado
em Literatura Comparada em 2008.
Ao Instituto Fundação Antonio Gramsci de Roma, pelo material doado
e a disponibilidade com que fui recebida.
A Leonardo Sorrentino, companheiro mais que presente, onde
encontro sempre serenidade, estímulo incansável, compreensão e confiança
em mim. Sem o seu apoio, seria tudo mais difícil.
Por fim, agradeço aos meus pequenos, Giuseppina e Eduardo,
justificando minhas ausências com o meu desejo de que no futuro sejam
também fisgados pelas teias de Graciliano Ramos e Antonio Gramsci.
PINHEIRO, Edlena da Silva. Memórias da prisão: literatura e liberdade. Um estudo sobre Graciliano Ramos e Antonio Gramsci. Orientador: Marcos Falcheiro Falleiros. Natal, UFRN/ PPgEL, 2012. Tese (Doutorado em Literatura Comparada).
RESUMO
A tese aproxima as Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos,
e os Cadernos do cárcere (1948) de Antonio Gramsci, visando evidenciar que
os dois estão unidos pelo mesmo ideal político da primeira metade do século
XX e representam a resistência intelectual frente à repressão. Ambos foram
vítimas do autoritarismo de poderes fascistas e registram o período de prisão
em diferentes formas memorialísticas. Esses escritores se aproximam também
por contextos nacionais muito semelhantes de discrepâncias econômicas entre
regiões; aproximam-se ainda pelo conceito de arte e pela certeza de que a
alienação da inteligência somente pode ser superada através da reconstrução
das bases nacionais por meio do conhecimento, da educação e da cultura.
Pretende-se mostrar como os conceitos de Gramsci estão presentes não
somente nas convicções políticas de Graciliano, mas em todo o seu fazer
literário de memórias da prisão e demais obras. O trabalho ainda compara as
Memórias do cárcere com dois textos memorialísticos de prisão na Itália, que
são Le mie prigioni, de Silvio Pellico, e Se questo è un uomo, de Primo Levi,
para demonstrar que a proposta de literatura gramsciana está muito mais
próxima do escritor brasileiro que a dos seus compatriotas.
Palavras-chave: GRACILIANO RAMOS, ANTONIO GRAMSCI,
MEMORIALISMO, LITERATURA DO CÁRCERE.
PINHEIRO, Edlena da Silva. Memórias da prisão: literatura e liberdade. Um estudo sobre Graciliano Ramos e Antonio Gramsci. Orientador: Marcos Falcheiro Falleiros. Natal, UFRN/ PPgEL, 2012. Tese (Doutorado em Literatura Comparada).
RIASSUNTO
La tese avvicina le Memorie dal carcere, di Graciliano Ramos e i
Quaderni dal carcere di Antonio Gramsci, in una prospettiva in cui essi erano
uniti per lo stesso ideale politico della prima metá del XX secolo e
rappresentavano la resistenza intellettuale di fronte alla repressione. Entrambi
furono vittime dell’autoritarismo dei poteri fascisti e registrarono il periodo di
prigione in differenti forme memorialistiche. Questi scrittori sono uniti anche per
il contesto nazionale molto simile per la differenza economica tra le regioni.
Condividono, inoltre, anche il concetto di arte e la certezza che l’alienzazione
dell’intelligenza può essere superata solamente attraverso la ricostruzione
delle basi nazionali per mezzo della conoscenza, dell’educazione e della
cultura. Si vuole mostrare come i concetti di Gramsci sono presenti non solo
nella convinzione politica di Graciliano, ma in tutto il suo stile letterario
memorialístico. Il lavoro, ancora, paragona le Memorie del carcere con due testi
memorialistici di prigione in Italia, che sono Le mie prigioni, di Silvio Pellico, e
Se questo è un uomo, di Primo Levi, per dimostrare che la proposta della
letteratura gramsciana è molto più vicina allo scrittore brasiliano che ai due suoi
conazionali.
Parole-chiave: GRACILIANO RAMOS, ANTONIO GRAMSCI,
MEMORIALISMO, LETTERATURA DAL CARCERE.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
I. LITERATURA E LIBERDADE 14
1. Graciliano Ramos e o fascismo tupinambá 15
1.2. Cadeia 20
1.3. As Memórias do cárcere 22
2. Antonio Gramsci e a constituição do Fascismo 25
2.1. O cárcere até a morte 29
2.2. A gênese dos Cadernos 31
2.3. Gramsci no Brasil 34
3. O nordestino e o sardo 37
II- ARTE E ENGAJAMENTO 40
1- Engajamento no século XX 41
2- O engajamento político de Gramsci 46
3- Uma literatura empenhada 51
III- ENTRE OS TEMAS DOS CADERNOS E AS MEMÓRIAS DO CÁRCERE 58
1- Os intelectuais 60
2- A hegemonia cultural 65
3- A questão meridional 68
4- Literatura nacional-popular 71
5- Literatura é sentimento 74
6- Escrever para (sobre) viver 76
IV- EXPERIÊNCIA DA PRISÃO NA OBRA DE GRACILIANO RAM OS 80
1- Angústia 82
2- A Terra dos meninos pelados 87
3- Vidas Secas 94
4- Infância 100
5- Insônia 106
6- Viagem 110
7- Viventes das Alagoas 114
8- Linhas Tortas 119
V- OUTRAS MEMÓRIAS 126
1- Graciliano e o estudo da língua italiana 128
2- Le mie prigioni 130
3- Se questo è um uomo 142
CONSIDERAÇÕES FINAIS 153
REFERÊNCIAS 157
Se o capitalismo fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas. Esforço-me por alinhavar esta prosa lenta, sairá daí um lucro, embora escasso – e este lucro fortalecerá pessoas que tentam oprimir-me. É o que me atormenta. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu um sistema. (RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere, vol. 1, p. 111).
Que o homem político faça uma pressão para que a arte do seu tempo exprima um determinado mundo cultural é atividade política e não da crítica artística; se o mundo cultural pelo qual se luta é um fato vivo e necessário, sua expansividade será irresistível, ele encontrará os seus artistas. Mas se, apesar da pressão, essa irresistibilidade não aparece e não opera, então o que se tratava de um mundo fictício e postiço, elucubração retórica de medíocres que se lamentam porque os homens de maior envergadura não estão de acordo com eles. (GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional, p.12).
12
Após a I Guerra Mundial, as dificuldades econômicas na Europa
tornaram concreto o risco das lutas sociais. A Revolução Soviética mostrou aos
trabalhadores que era possível o estabelecimento dos ideais socialistas.
Entretanto, em vários países, a tentativa das classes dominantes de se
defender desses conflitos abriu caminho para a instauração de regimes
autoritários, como a ditadura do general Franco, na Espanha; Salazar, em
Portugal, e Mussolini, na Itália. No Brasil, Getúlio Vargas comandava inspirado
nas constituições fascistas, perseguindo comunistas e qualquer tipo de
oposição ao seu regime.
Os intelectuais marxistas Antonio Gramsci (1891-1937) e Graciliano
Ramos (1892-1953) fazem parte dos que almejavam uma mudança social, que
permitisse o fim das desigualdades sociais e a exploração das classes
dominantes. Por pensarem sem o cabresto do governo fascista, ambos foram
vítimas do autoritarismo.
Graciliano foi preso em março de 1936, na onda das prisões seguintes
ao levante comunista de 1935. Percorreu vários presídios, sem nenhuma
acusação formal e sem ao menos ser ouvido. Esse período está registrado em
suas Memórias do Cárcere, nas quais testemunho e narrativa literária em
primeira pessoa se misturam.
Assim como Graciliano, na Itália muitos intelectuais foram presos,
acusados de conspiração contra o regime fascista, dentre eles Antonio
Gramsci, que esteve preso por quase onze anos (novembro de 1926 a junho
de 1935) e teve a saúde minada a ponto de sair da prisão apenas para morrer
em uma clínica.1 Nesse período, escreveu anotações sobre política, filosofia
literatura, história e arte, que mais tarde foram publicados também
postumamente em seis volumes nos Cadernos do Cárcere.
O objetivo desse trabalho é estabelecer comparações entre as
memórias de Graciliano Ramos e os relatos de Antonio Gramsci no cárcere,
com a perspectiva de examinar como, unidos pelo mesmo ideal político
1 Gramsci falece em abril de 1937, poucos meses depois de Graciliano ser libertado.
13
marxista da primeira metade do século XX, ambos representam a expressão
intelectual frente à repressão. Os dois escritores se aproximam também por
contextos nacionais muito semelhantes de diferenças econômicas entre
regiões (aquilo que na Itália é o Sul, no Brasil, é equivalente ao Nordeste);
aproximam-se também pela reverência ao texto literário e pela certeza de que
a alienação da inteligência somente pode ser superada por meio do
conhecimento, da educação e, sobretudo, da arte.
Para esta pesquisa, escolhemos trabalhar com os volumes temáticos
dos Cadernos do cárcere, especialmente aqueles mais dedicados ao estudo
literário, além de utilizar as Cartas do Cárcere, pois estas complementam
muitas discussões contidas nos Cadernos.
Relacionando o estudo literário com o estudo das relações sociais,
partimos dessas primeiras observações sobre as duas obras para fazer uma
leitura de Graciliano Ramos e Antonio Gramsci em seus contextos. No primeiro
capítulo, apresentamos a conjuntura política desses escritores e a gênese de
cada obra.
Na segunda parte, discute-se a relação entre arte e engajamento no
século XX, para traçar uma possível proposta de engajamento em Gramsci e
perceber suas convergências com o fazer literário de Graciliano Ramos.
No terceiro capítulo, destacam-se alguns temas dos Cadernos do
cárcere relacionados ao estudo literário e suas aproximações com as Memórias
do cárcere.
O quarto capítulo trata dos possíveis desdobramentos da experiência
da prisão, principalmente, na obra pós-carcerária do escritor brasileiro e como
o pensamento de Gramsci ainda permanece nessas obras.
Por fim, o último capítulo compara Memórias do cárcere com dois livros
memorialísticos da prisão da Literatura Italiana – Le mie prigioni e Se questo è
un uomo – para demonstrar que o pensamento de Gramsci coincide muito mais
com o autor brasileiro que com o corpus escolhido. Daí, então, confirmar a
importância de Gramsci não somente para os estudos políticos e sociológicos,
mas também para os estudos literários no Brasil.
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1 - Graciliano Ramos e o fascismo tupinambá
Quem dormiu no chão, deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze. (RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere, vol.1, p. 34.)
Para os gregos, Mnemosine – deusa da memória – lembrava os
homens sobre os feitos heróicos e, por isso, auxiliava os poetas líricos, que se
tornavam “mestres da verdade”, pois eram testemunhas dos tempos antigos e
das origens. Ela era como um dom para iniciados, que revelava os segredos do
passado e fonte da imortalidade para o homem.2 Nas palavras de Alfredo Bosi:
“As sociedades que se esquecem do seu passado, mesmo do seu passado
recente, vagarão e errarão estupidamente sem encontrar a porta de saída que
é a reflexão sobre o passado”.3 Rememorar é, então, contar e também trazer a
possibilidade de refletir sobre os passos do futuro.
Quando o passado é recontado pela veia da literatura, o autor pode
utilizar a história oficial ou ainda, através do rememorar, contar o que a história
oficial não quer dar conta e deixa esquecer. Em “O autor como produtor”,
Walter Benjamin4 fala do fim da autonomia do autor, pois numa sociedade de
classes, há inevitavelmente a responsabilidade dicotômica: escrever seguindo
uma tendência política e, ainda, escrever bem. Diante disso, escrever um texto
de memórias torna-se mais árduo ainda, porque os personagens e os fatos são
reais, assim, a análise sobre os fatos é repensada, já que o olhar de
testemunha não pode ser apenas unilateral e reduzido.
Além da responsabilidade dicotômica tratada por Walter Benjamin, o
escritor-testemunha tem diante de si o problema de como elaborar, através da
2 Cf. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: UNICAMP, 1994, p. 438. 3 Cultura como tradição. In: Tradição/contradição. Rio de Janeiro: Zahar, Funarte, 1987, p. 54. 4 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e política – Obras escolhidas I (Trad. Sérgio Paulo Rouanet), São Paulo: Brasiliense, 1996..
16
literatura, realidade e ficção com certa cautela e hesitação, já que também é
participante dessa história.
Roland Barthes5 explica que a língua possui uma característica fascista,
pois somos obrigados a seguir uma estrutura para poder nos comunicar. Logo,
nessa situação somos escravos, porque seguimos essa estrutura conhecida
por todos, e, ao mesmo tempo, mestres, pois não nos contentamos em apenas
repetir o discurso dos outros. Para o autor, na língua, servidão e poder se
confundem inevitavelmente e não existe liberdade senão fora da linguagem. No
entanto, a linguagem literária trapaceia com a língua e nos liberta desse
‘fascismo’ da língua, pois ao invés de nos obrigar a uma só leitura, permite as
nossas próprias reflexões. O escritor-testemunha não quer ser o descritor da
realidade nem analisar ideologias. Apesar de ser consciente de suas idéias, o
autor não precisa fazer da literatura um meio de difusão de idéias partidárias.
Em Memórias do cárcere, Graciliano Ramos inicia a obra revelando
suas dificuldades por não ter escrito imediatamente suas experiências de
prisão:
Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos — e, antes de começar, digo os motivos porque silenciei e porque me decido. Não conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo, ia-se parecendo cada vez mais difícil, quase impossível redigir esta narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia, como adiante se verá. Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira? Que diriam elas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo palavras contestáveis e obliteradas? 6
Paradoxalmente, foi exatamente a literatura que pôde proporcionar
liberdade a Graciliano Ramos no seu período de cárcere em 1936. Pouco antes
da prisão, no capítulo três de suas Memórias, escreve sobre os problemas que
enfrentava na direção da Instrução Pública de Alagoas: sofrendo ameaças,
5 BARTHES, Roland. Aula. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1978. 6 RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo: Record. 2002, vol. 1, p. 33.
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trabalhando com funcionários inertes, lutando contra o sistema corrupto e sem
reconhecimento nem mesmo da família. Cansado da burocracia enfadonha e
da formalidade, o escritor desabafa:
Naquele momento a idéia de prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de liberdade. Eximira-me do parecer do ofício, da estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas. Na verdade suponho que me revelei covarde e egoísta: várias crianças exigiam sustento, a minha obrigação era permanecer junto a elas, arranjar-lhes por qualquer meio o indispensável. [...] A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranqüilidade necessária para corrigir o livro. O meu protagonista se enleara nesta obsessão: escrever um romance além das grades úmidas e pretas (MC, vol. 1, p. 45). 7
Graciliano nesse período escrevia Angústia e refere-se ao protagonista
Luís da Silva. No entanto, a metalinguagem é representativa da sua própria
história, pois escrever seria a única saída, não como fuga ou alienação, mas
como forma de superação emocional que só é possível através da arte.
Escrever não é apenas necessidade catártica, pessoal, mas é instrumento
imprescindível para a construção de uma nova sociedade. O escritor sabe que
a literatura pode abrir o caminho para essa estrada e mesmo as dificuldades
físicas não podem impedir esse “recomeçar sempre” que a arte proporciona: “O
abscesso da mão secou e cicatrizou, a unha caiu, veio outra: findava o pretexto
com que me iludia para ficar inativo. Decidia-me a custo. Necessário retomar o
papel e escrever algumas linhas.” (MC, vol. 1, p. 239). A unha que cai, provoca
dor e sofrimento, mas depois de tratada, dá lugar a outra – é o próprio fazer
literário da testemunha na prisão. Diante das dificuldades do cárcere, apesar
de abatido, sabe que deve escrever para não se omitir da injustiça sofrida. O
escrever elaborado, reelaborado dá lugar ao texto final.
*
A Revolução de 1930 substituiu o governo oligárquico da política café-
com-leite, que alternava o poder entre lideranças de Minas Gerais e São Paulo.
7 Daqui em diante, devido ao amplo uso de Memórias do cárcere, usaremos apenas a sigla MC, citação do volume e página.
18
Assumindo o governo, Getúlio Vargas tentava cada vez mais aumentar o seu
poder pessoal, justificado como uma necessidade de reconstrução nacional. O
confronto ideológico entre a Ação Integralista Brasileira, grupo de orientação
fascista liderada por Plínio Salgado, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL),
fortemente dominada pelo Partido Comunista, liderado por Luís Carlos Prestes,
forneceu a Vargas um clima de instabilidade. Para Vargas, era necessária uma
maior repressão ao Comunismo.
A partir de 1935, a ANL, sob orientação da Internacional Comunista
cria um programa de reformas estruturais que cresce rapidamente, com o lema:
“Pão, terra e liberdade”. Graciliano analisa criticamente esse movimento, pelo
fato de que a terra, sem água, ferramentas e gado, não resolve muita coisa da
miséria no sertão:
Também me pareciam que certas palavras de ordem da Aliança Nacional Libertadora haviam sido lançadas precipitadamente. A divisão da terra, por exemplo, seria um desastre na criação do nordeste. Aí a terra vale pouco e praticamente não tem dono; a riqueza é constituída por açudes, casas, currais, gado. O espaço que um animal necessita para alimentar-se na vegetação rala de cardo e favela que veste a planície queimada é enorme. E a madeira indispensável para estabelecer limites escasseia: as raras cercas são de ordinário feitas de ramos secos ou de pedras soltas. Quase nenhuma lavoura: apenas touceiros de milho peco, um triste feijoal e aboboreiras amarelando na vazante dos rios periódicos. Se se oferecesse ao vaqueiro a divisão da terra, ele se alarmaria: o seu trabalho seria impossível. E não podemos admitir, como se tem feito, o regime feudal nesses lugares: o que por lá existe é ainda o patriarcado bíblico. (MC, vol. 1, p. 83-84).
Do outro lado, o governo de Vargas, sob a influência do fascismo e
nazismo, também cresce com o integralismo. O ano de 1936 foi marcado pela
violenta repressão aos membros da ANL, envolvidos na Intentona Comunista
de novembro de 1935, iniciada em Natal:
O levante do 3º Regimento e a revolução de Natal haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande homem, os escritores nacionais celebravam nas folhas as virtudes do óleo de rícino. (MC, vol.1, p. 51).
19
Além da “caça aos comunistas”, o país iniciava a campanha presidencial
à sucessão de Vargas. Porém, as eleições democráticas não estavam nos
planos de Getúlio, e as agitações davam a impressão de que o presidente
perdia o controle da situação. O próprio Governo ligado aos integralistas cria o
Plano Cohen, um falso plano comunista ao país, para aterrorizar a população
contra a ameaça vermelha. Vargas, invocando a Lei de Segurança Nacional,
amplia cada vez mais seu poder de intervenção em todos os níveis da
sociedade brasileira para instituir em 1937 o Estado Novo, ditadura que duraria
oito anos. Mas o populismo de Getúlio precisava governar com a aprovação do
povo, e a aparente democracia juntamente com assistencialismo que o tornou
o “pai dos pobres’’ serviram para obter a simpatia da massa.
O fascismo nacional apesar da violência direta – queima de livros e
prisão de intelectuais, não proibiu o exercício da literatura, mas, como lembra
Graciliano, tirava o desejo de escrever sob a censura:
Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato, ele não nos impediu de escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício. (MC, vol.1, p. 34).
A consciência de lutar contra a elitização e o enriquecimento das
minorias lhe davam a certeza de uma represália. Como Secretário da
Educação, tomou medidas arriscadas para o sistema vigente: suprimir o hino
de Alagoas nas escolas, criou a merenda escolar, acabou com os pistolões e
apadrinhamentos, pôs fim aos privilégios das normalistas da cidade e efetivou
as professoras rurais através de concursos públicos. (Cf. MC, vol.1, p.41). O
filho do escritor diz que nem a tia-avó escapou dos concursos para poder ser
efetivada no serviço público8.
Quando prefeito de Palmeira dos Índios, o próprio pai de Graciliano foi
multado por ter animais nas ruas. Ricardo Ramos cita a lembrança do ex-
prefeito:
8 Cf. RAMOS, Ricardo. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992. p. 46.
20
Logo que cheguei à prefeitura, proibi animais soltos na cidade. Palmeira era um pasto de bois, cavalos, porcos e cabras, uma sujeira grossa. Na primeira infração o dono pagava a multa; se reincidisse, os bichos iam a leilão. Foi aquele escarcéu. Eu agüentei firme, praça pública não é fazenda de ninguém. A maioria meteu o rabo entre as pernas, diminuiu muito a invasão, mas não terminou. Muritiba chegava todo santo dia com o maço de multas. Uma ocasião ficou-me rondando, meio sem jeito. “Que aconteceu, homem?” Ele me informou que achara umas vacas de meu pai, juntas das amigas, zanzando à toa. “E você?” Respondeu: “Não fiz nada não”. Então eu mandei: “Pois faça, lavre a multa. Prefeito não tem pai.” Dito e feito. Eu paguei a multa, peguei o recibo, de noite falei com seu Sebastião: “Olhe aqui, veja, hoje encontramos umas vacas suas fazendo footing. Se mandasse lhe entregar a multa o senhor ia ter um ataque do coração. Por isso eu mesmo paguei. O velho impou, estourou esbravejando, subiu nas tamancas. E terminou me devolvendo o dinheiro. Depois, vaca dele nunca mais visitou o centro.9
Contrário a todo tipo de favoritismo e abuso de poder, o prefeito
Graciliano não separava as relações familiares e o dever social de cada um. À
revelia do sistema corrupto, que usa o estado para negócios pessoais, sua
integridade superava sempre os interesses individuais em favor do bem
coletivo. Certamente, esse tipo de humanismo não era interessante para as
políticas populistas da época, e o “pai dos pobres’’ não poderia permitir o
desenvolvimento desse tipo de consciência política perigosa.
1.2 - Cadeia
É nesse contexto que se dá a prisão do escritor alagoano Graciliano
Ramos - como forma de repressão aos levantes comunistas, sobretudo, a
Intentona de 1935. Graciliano Ramos foi preso em 3 de março de 1936, após a
demissão do cargo de Diretor da Instrução Pública de Maceió. Meses antes
recebera diversos telefonemas anônimos com ameaças, mas não se
intimidava: “Mandei responder que me achava na repartição diariamente, das
nove ao meio dia, das duas às cinco da tarde.” (MC, vol. 1, p. 38).
9 Ibidem, p. 33-34.
21
Na realidade, existia uma rede de conspiração contra ele, pois com o
crescimento do Integralismo, certamente muitos o queriam distante. Soube
que o governador de Alagoas, Osman Loureiro, estava em dificuldade, pois
precisava afastá-lo do cargo, mas não queria demiti-lo: “Não me surpreendi.
Pelo meu cargo haviam passado em dois anos oito sujeitos. Eu conseguira
agüentar-me ali mais de três anos e isso era espantoso.” (MC, vol. 1, p. 38).
Não bastando a demissão, foi preso também. As ameaças sofridas
tornaram-se realidade, e o autor já esperava com a valise pronta a chegada
dos soldados: “Num instante decidi-me. Não me arredaria, esperaria tranqüilo
que me viessem buscar. [...] Que diabo ia fazer, perseguido, a rolar de um
canto para outro, em sustos, mudando o nome, a barba longa, a reduzir-me, a
endividar-me? (MC, vol.1, p. 44). Talvez não imaginasse que seria possível
violência gratuita dessa forma, como disse Heloísa Ramos: “No fundo era a
ilusão do pequeno-burguês. Nem ele nem eu estávamos preocupados,
achávamos que ele voltaria logo.”10
Na verdade, o escritor estava mais apreensivo pela família: “Havia uma
penca de filhos, alguns bem miúdos e restava-me na carteira um conto e
duzentos. Apenas.” (MC, vol.1, p. 43) e a finalização de Angústia, a fim de não
publicá-lo sem os ajustes importantes – “refazê-lo, suprimir repetições inúteis,
eliminar pelo menos um terço dele” (MC, vol.1, p. 42). Clara Ramos11 nos
conta que o pai era deprimido também pelo fato de que a denúncia talvez tenha
sido feita por um parente. Apesar de pensar na cunhada simpatizante do
Integralismo, a dúvida o acompanharia pelo resto da vida, pois a acusação foi
anônima.
Coincidência ou não, a prisão é efetuada pelo mesmo tenente que, no
mês anterior, havia pedido a aprovação de uma sobrinha reprovada na
admissão para o curso normal. O militar insistia para que se nomeasse uma
banca especial para novo exame, mas Graciliano negara. (Cf. MC, vol. 1, p.
47).
10 RAMOS, Heloisa apud MORAES, Dênis de. O velho Graça. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. p. 110. 11 Cf. RAMOS, Clara. Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
22
Nessa época, o autor ainda não era filiado ao Partido Comunista, logo
então, o motivo da prisão não seria pela militância, mas pela posição assumida
em benefício dos mais fracos tanto na literatura quanto na vida política. Mas
essa posição não era arquitetada, e, sim, fruto da coerência pessoal, o que
resultou na prisão sem acusação formal e sem processo. São dez meses entre
os cárceres de Maceió e Recife, do porão do navio Manaus até o Rio de
Janeiro, passando pelo Pavilhão dos Primários até a Colônia Correcional, para
finalizar na Casa de Detenção.
1.3 - As Memórias do cárcere
Apesar de pensar no livro ainda na prisão, este depoimento seria
iniciado apenas dez anos depois12. O livro foi publicado em quatro volumes,
pouco depois a morte do escritor, em 1953. Alguns críticos acreditam que se o
autor fosse vivo para o lançamento, o texto seria enxugado ao menos à
metade, embora os capítulos entregues pelo autor fossem já finalizdos,
faltando apenas o último capítulo para concluir o livro. Essas Memórias foram
escritas a conta-gotas, pois devido às dificuldades financeiras do Mestre Graça,
o amigo José Olympio faz um acordo de lhe pagar cada capítulo depositado na
editora até o lançamento final do livro.13
Graciliano falava aos amigos dessas memórias com o título de Cadeia.
Segundo Sodré14, quando estava bem disposto e não tinha quem lhe
incomodasse o escritor dizia como pensava em escrever essas memórias. Em
carta, escreve ao filho Júnio:
Findos alguns compromissos neste resto de ano, iniciarei um trabalho a respeito das prisões de 1936. É difícil e arriscado: tenciono apresentar aquela gente em cuecas, sem muitos disfarces, com os nomes verdadeiros. Necessito
12 Nelson W. Sodré lembra que o decênio de hesitação em relação ao lançamento das MC era também o período conturbado dos anos fascistas, o que inviabilizava sua publicação. Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. As Memórias do cárcere. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987. (Escritores Brasileiros), p. 283. 13 Cf. RAMOS, Clara. Elementos de biografia. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Op. cit., p. 332. 14 SODRÉ, Nelson Werneck. As Memórias do cárcere. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Op. cit.. p. 280.
23
a autorização dos personagens: não tenho o direito de utilizar gente viva num livro de memórias que encerrará talvez inconveniências. Preciso falar sério com os meus companheiros de cadeia. 15
A publicação do livro é contemporânea à campanha eleitoral que
culminaria com o suicídio de Getúlio em 1954. Foi importante também para
despertar a consciência do povo naquele momento16.
Ricardo Ramos conta ainda que o Partido Comunista pretendia controlar
os manuscritos do livro antes da publicação. Temendo um retrato
comprometedor do partido ou dos membros comunistas, a patrulha queria ter
acesso aos livros políticos (Viagem e Memórias do Cárcere) para poder
aprová-los, com possíveis mudanças ou supressões.
Memórias do cárcere sempre estivera com o editor, no seu cofre (Graciliano o escrevera ao longo de anos, entregara três capítulos mensalmente, recebera como adiantamento remuneração combinada), bem provável que andasse em vias de composição. [...] De qualquer forma, os livros estavam com a editora. Que poderia fazer? Astrojildo17 foi inflexível: o partido deve ler e decidir, era uma ordem. 18
Coerentemente, a família não cedeu às perseguições, visto que seria
uma desmesurada falta de respeito ao texto e ao escritor. A decisão esnobe
vem de Maurício Grabois19: “Deixem para lá. Daqui a dez anos, ninguém vai
saber quem foi Graciliano Ramos”20. Apesar da insistência seguida de
ameaças, o livro foi produzido normalmente e a resposta foi da própria obra,
que além se tornar best seller, é atualmente um dos maiores clássicos da
Literatura Brasileira.
A repercussão das memórias na crítica foi intensa, com artigos
sucessivos de elogios, consagrando-se pelo grandioso valor literário e como
depoimento de época. O Partido, invés, não comentava. São duas talvez as
15 RAMOS, Graciliano. Cartas. 3ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982. p. 207. 16 Cf. RAMOS, Clara. Elementos de biografia. In: Cf. GARBUGLIO, J. C. et alii.. Op. cit., p. 332. 17 Astrojildo Pereira, dirigente máximo para assuntos literários do Partido Comunista. 18 RAMOS, Ricardo. Op. cit. p. 195. 19 Um dos fundadores do PC do B 20 RAMOS, Ricardo. Op. cit. p. 196.
24
principais razões desse silêncio: a primeira, é a falta de adesão do autor ao
comunismo como se fosse uma seita e a segunda, seriam as críticas à falta de
democracia e organização dentro do partido.
O projeto das Memórias do Cárcere não era apenas como testemunho
pessoal, mas também como retrato de um período de ausência de liberdade de
toda a sociedade. Diferente de uma exposição acentuada de seus próprios
atos, o autor-narrador permeia os âmbitos do cárcere de forma lúcida,
mostrando pessoas, fatos e os próprios sentimentos da mesma forma humana
como construiu seus romances. Valentim Facioli analisa de forma plausível:
A experiência particular do escritor, determinada publicamente como documento e prova, alcança estatuto de alegoria política da luta de classes, num momento da história das relações entre oprimidos e opressores no país. É um documento bruto e brutal da barbárie e não só expressa a opressão de classe, como as contradições que atravessam muitos oprimidos na sua impotência momentânea ou na sua solidariedade forçada e inconsciente com os opressores21.
Preso, no momento mais dramático de sua via crúcis, com assassinos e
ladrões comuns, mas também com outros intelectuais, Graciliano trabalhou
com uma vasta matéria-prima para compor verdadeiros personagens. Sodré22
diz que “Cubano e Gaúcho saltam das páginas para adquirirem dimensões
humanas, denunciam-se como criaturas, apesar de terem vivido sempre entre
comparsas”. Podemos acrescentar que os homens daquela prisão se
transformaram verdadeiramente em pessoas pelo escritor. Seu texto vai além
do fato vivido e de como são percebidos os seres marginalizados na prisão –
animais insensíveis e irrecuperáveis. No entanto, sua percepção ampla, sonda-
lhes até os sentimentos.
21 FACIOLI, Valentim. Um homem bruto da terra. (Biografia intelectual). In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Op. cit., p. 100. 22 In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Op. cit., p. 289.
25
2- Gramsci e a constituição do Fascismo
Lo scandalo del contraddirmi, dell'essere con te e contro di te; con te nel cuore, in luce, contro te nelle buie viscere;
del mio paterno stato traditore - nel pensiero, in un'ombra di azione - mi so ad esso attaccato nel calore
degli istinti, dell'estetica passione; attratto da una vita proletaria a te anteriore, è per me religione
la sua allegria, non la millenaria sua lotta: la sua natura, non la sua coscienza; è la forza originaria
dell'uomo, che nell'atto s'è perduta, a darle l'ebbrezza della nostalgia, una luce poetica: ed altro più
io non so dirne, che non sia giusto ma non sincero, astratto amore, non accorante simpatia.
(PASOLINI, Pier Paolo. Le ceneri di Gramsci.)
Após a I Guerra Mundial (1911-1914), os combatentes italianos
retornaram com uma consciência de força e unidade nacional. A guerra,
apesar de seu valor negativo, possibilitou a completa integração do território,
com a reconquista do Veneto e de Trieste. Mas, além disso, permitiu a
convivência e aproximação de jovens do sul e do norte, laicos e católicos,
citadinos e camponeses. Para um país dividido, isso representava uma
diferença enorme, pois começava a criar nesses jovens um espírito
nacionalista e, ao mesmo tempo, o de se sentirem importantes para o país. O
fato de terem contribuído para a nação com a própria vida, criava o anseio de
poder contribuir também para mudanças futuras.
Aproveitando-se desse tipo de nacionalismo dos militares no pós-guerra,
Benito Mussolini (1883-1945) encontraria o terreno fértil para a formação de um
exército. De caráter nacionalista e antidemocrático, o Fascismo foi intérprete
26
da burguesia industrial e das classes privilegiadas que se sentiam ameaçadas
pelo comunismo, que crescia na Europa depois da Revolução Soviética.
Diante da impotência do governo liberal, a energia dos ex-combatentes e
o apoio da burguesia, Mussolini constrói a marcha em direção a Roma, em
outubro de 1922, tornando-se chefe do governo. Trabalhando com duas frentes
de poder, esse regime oscilava entre uma linha revolucionária, que privilegiava
a energia, o combate para uma nova humanidade fascista; a outra linha,
conservadora, criava uma severa ordem burguesa, com um Estado rígido, que
reprimia qualquer conflito social ou ameaça de crise.23 Segundo De Felice,
como os regimes totalitários, o Fascismo não era apenas uma ditadura, mas
um regime de governo que almejava a aprovação e o envolvimento do povo.24
Procurando inclusive consenso da Igreja para consolidar seu poder, restaura o
bem cultural das Igrejas destruídas com a Guerra, estabelece o uso do crucifixo
nos hospitais, estrapolando os limites do Estado laico. Mais tarde, com o
Tratado de Latrão (1929), criaria o Estado do Vaticano, dando autoridade e
soberania à Igreja.
Para o consenso das massas, o ditador trabalhava o húmus da
sociedade que era a educação, com o objetivo de formar o novo homem.
Utilizou-se, então, de vários intelectuais, dentre eles, Giovanni Gentile (1875-
1944), que foi seu Ministro da Educação. Diferente do conceito de liberdade
política do Iluminismo, centrada no indivíduo, a ideologia fascista fala de
liberdade da nação. A liberdade do indivíduo é absorvida pelo Estado em favor
da pátria. Esse tipo de liberalismo casou bem com os sentimentos instintivos
dos jovens retornados da Guerra. Com essa ideologia de valores nacionais e
populares, o Fascismo conseguiu o consenso de grande parte da sociedade.
Na Educação, a Reforma Gentile (1923) baseou-se na seleção de classe, para
distinguir instrução técnica e clássica, sendo esta última com o objetivo de
formar a classe dirigente. Incentivando a cultura, o regime totalitário contratou
intelectuais para elaboração da Enciclopédia Italiana, criou o Instituto de
23 Sobre esse contexto político cf. L´Italia fascista. In: COLARIZZI, Simona. Storia del Novecento Italiano. Cento anni de entusiasmo, de paura, di speranza. Milano: Bur Storia, 2000. p. 146-245. 24 DE FELICE, Renzo. (Org.). Il Fascismo: le interpretazioni dei contemporanei e dei storici. Milano: Mondolibri, 1998. p. 29.
27
Cultura Fascista, a Reale Accademia d´Italia, Istituto Luce para o cinema,
Carro di Tespe para o teatro, incentivava a edição de livros dos escritores
simpatizantes ao regime, enquanto nas universidades os professores foram
obrigados ao juramento de fidelidade ao Estado Fascista.25
Contrários à corrente de escritores fascistas, surgem os escritores
antifascistas, dentre os quais Benedetto Croce (1866-1952) será o de maior
destaque, pois já havia conquistado um espaço importante na cultura italiana
com sua obra l´Estetica come scienza dell´espressione e lingüística generale
(1902) e com a revista literária La critica. Seu idealismo será de grande
influência para o pensamento de Gramsci na juventude. Digo, na juventude,
porque na prisão Gramsci irá maturar tanto suas idéias sobre o marxismo
quanto sobre o pensamento de Croce, como detalharemos mais adiante.
*
Antonio Gramsci (1891-1937) nasceu em Ales, província de Cagliari, na
Sardenha. Filho de Francesco Gramsci e Giuseppina Marcias, foi o quarto de
sete filhos. Aos 18 meses, após uma tuberculose, foi acometido pelo mal de
Pott, doença que lhe deformou a coluna vertebral. O pai era diretor no
Departamento de Impostos e a mãe pertencia a uma família burguesa.
Entretanto, em 1898, a vida da família muda repentinamente quando
Francesco foi preso e condenado a cinco anos e oito meses de prisão, acusado
de peculato e extorsão, devido a um desfalque no escritório onde trabalhava. A
família, já numerosa nessa época, passa por grandes dificuldades financeiras e
praticamente toda a responsabilidade recai sobre a mãe, Giuseppina Marcias,
que mantém a família com as rendas da família e com o próprio trabalho.
Várias vezes nas cartas o autor faz referência aos grandes sacrifícios da mãe:
Às vezes penso em todas estas coisas e gosto de recordar dos fatos e as cenas da infância: encontro tantas dores e tanto sofrimento, é verdade, mas também alguma coisa de bonito e alegre. E depois estavas sempre tu, querida
25 Cf. FERRONI, Giulio. Guerre e Fascismo (1910-1945). In: Storia della Letteratura Italiana. Il Novecento. Milano: Einaudi, 2000. p. 35.
28
mamãe, e as tuas mãos sempre ocupadas para nós, para nos aliviar as penas e para tirar alguma utilidade de cada coisa.26
Sua ligação com a mãe foi sempre muito forte27, enquanto que com o pai
sempre bem áspera. Antonio aos 11 anos foi trabalhar no registro civil de
Ghilarza, juntamente com o irmão Mario. Trabalhavam dez horas por dia e
desde então já iniciava a observar e odiar as desigualdades sociais, pois não
podia continuar a estudar como os filhos dos ricos. Apesar da saúde frágil,
carregava processos mais pesados que ele.
Depois da liberdade do pai, as coisas não melhoraram, pois ele não
conseguia encontrar emprego. Mas a família decidiu que Antonio deveria
estudar, apesar das dificuldades, migrando para o Norte. Em 1911, foi para a
Universidade em Turim28, onde se inscreveu na Faculdade de Letras e
Filosofia. Passando frio e fome, conseguiu uma bolsa de estudos no ano
seguinte e se arranjava dando aulas particulares.
O empenho político de Gramsci é crescente. Em 1913 entra para o
Partido Socialista Italiano (PSI) e oito anos depois ajuda a fundar o Partido
Comunista na Itália. Escreve para o jornal Avanti!, semanário do PSI, como
crítico teatral. Colaborou com Il Grido del Popolo e com as revistas La Città
Futura e Ordine Nuovo, e ainda contribui ativamente no movimento de
ocupação das fábricas em 1920, na época do chamado Bienio Rosso. Mas a
ocupação termina com uma derrota sindical para aqueles que pensavam ser o
início da revolução proletária na Itália. O Partido Socialista Italiano, motivado
pelas conquistas do proletariado soviético, cresce com ações revolucionárias.
Para Gramsci, “A revolução comunista ou é internacional ou não é.”29 E por
essa razão somente uma organização de caráter mundial, como a Internacional
26 GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 53-54. 27 A família oculta a morte de sua mãe (30 de dezembro de 1932) quando Gramsci estava no cárcere e ele continua escrever-lhe ainda até 1934. Cf. GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1966. p. 363. 28 Turim era o grande centro industrial – cidade da FIAT, indústria automobilística italiana mais importante, símbolo do capitalismo e maior grupo de operários do país. Também do ponto de vista cultural era uma cidade importante, pois na Universidade de Turim ensinavam professores como Luigi Einaudi (grande economista que em 1948 foi o primeiro Presidente da República Italiana). 29 GRAMSCI, Antonio apud LEPRE Aurélio. O prisioneiro: a vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 41.
29
Comunista poderia guiar o processo revolucionário italiano. A falta de
estratégias da direção socialista não possibilitava a expansão dessas
conquistas e o acordo entre industriais e sindicatos sobre a desocupação
provocou a cisão do Partido na Conferência de Livorno (1921). Surge, então, o
Partido Comunista Italiano, mirando o exemplo do Partido Bolchevique Russo.
Em 1924, é eleito deputado pelo Partido, mas na sua concepção
revolucionária, a atividade parlamentar assumia uma função apenas estrutural,
pois sua atenção maior estava voltada para os conselhos operários.
Da outra parte, Mussolini, usando como pretexto um atentado terrorista
de que fora vítima dias antes, e do qual escapara ileso, suprimiu, no final de
1926 as últimas e precárias liberdades democráticas que ainda vigoravam na
Itália durante a primeira fase do seu governo. Com a “fascitização” crescente o
Estado chegava ao totalitarismo, no qual o parlamento foi suprimido, todos os
partidos não fascistas foram dissolvidos, toda a população enquadrada numa
rede de organizações fascistas de massa (sindicatos, associações juvenis,
femininas, recreativas). Mantendo sua integridade moral, Gramsci resistiu a
abandonar a Itália devido sua responsabilidade de dirigente. Para ele, o capitão
de um navio que está para naufragar não pode abandonar o navio antes dos
outros, pois somente ficando no barco até o final pode ter a certeza de que fez
tudo para evitar o naufrágio. 30
2.1 – O cárcere até a morte
Em 08 de novembro de 1926 Antonio Gramsci é preso pelo Fascismo.
Os primeiros dias são em Roma, depois o isolamento na Ilha de Ustica. Em
seguida, é transferido para Milão (1928), onde é condenado pelo Tribunal
Especial a vinte anos de reclusão, sendo transferido para Turi (província de
Bari). Da prisão, saiu apenas para uma clínica em Roma, onde morreu por
hemorragia cerebral em 1937.
30Cf. LEPRE, Aurélio. O prisioneiro. Op. cit. , p. 103.
30
Cogita-se a possibilidade de que a prisão de Gramsci foi conveniente
também para o partido. Quando Lênin morreu em 1922, o partido russo dividiu-
se em duas frentes: uma liderada por Stalin, que defendia o fortalecimento
cada vez maior do socialismo em um só país, e outra por Trotsky, defendendo
uma revolução permanente, pois somente o fim do capitalismo no mundo
poderia garantir o que a URSS havia conquistado. Preocupado com essa
divisão, Gramsci escreve uma carta, em outubro de 1926, ao Comitê Central do
Partido Comunista da União Soviética, chamando-o a não esquecer com a
disputa interna os interesses do proletariado internacional. Lembrava que “se
os bolcheviques haviam sido o elemento organizador e propulsor das forças
revolucionárias de todos os países, estavam agora destruindo a obra
construída e comprometendo a função dirigente que haviam conquistado
devido ao impulso dado por Lênin.”31 Gramsci propunha que o proletariado não
podia manter sua hegemonia e a sua ditadura se não sacrificasse interesses
imediatos por interesses gerais e permanentes de classe. Lembrava ainda, que
Trotsky, Kamenev e Zinoviev tinham sido mestres dos comunistas italianos,
apesar de não concordar plenamente com suas idéias.
Nessa carta declarava abertamente que era contrário ao autoritarismo
do governo e do partido soviético, mas opinava a favor da proposta maioritária
do partido. Entretanto, a mensagem de Gramsci não chegou ao Comitê Central
Soviético porque Palmiro Togliatti, representante do Partido Comunista Italiano
em Moscou, apresentou-a apenas a Bukharin – principal dirigente da direita do
Partido Comunista da URSS, pertencente ao grupo de Stalin. A partir de então,
Gramsci foi rotulado de Trotskysta e temia-se em Moscou que o PCI
terminasse se unindo ao grupo do opositor de Lênin. Em 1929, toda a oposição
de Stalin é liquidada, Trotsky foi expulso do Partido e do país. A atitude de
Togliatti ocasionou o fim da amizade entre ele e Gramsci, que nunca escreveu
nem mesmo um bilhete ao antigo companheiro de luta em Turim.
31 Cf. MAESTRI, Mario, CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci – vida e obra de um comunista revolucionário. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 128.
31
Tanto Maestri e Candreva quanto Giuseppe Vacca32 analisam o
episódio, ocorrido em outubro de 1927, em que Gramsci recebe uma carta no
cárcere de Turi, enviada por líderes do PCI em liberdade (Ruggero Grieco,
Angelo Tasca e Palmiro Togliatti). A carta, expedida pelo Correio normal, fora
escrita na Suíça, mas pedia ao destinatário que respondesse para um
endereço que a polícia política italiana sabia ser utilizado pelos dirigentes da
Internacional Comunista, em Moscou. Isso complicou ainda mais o processo do
prisioneiro, pois confirmava sua contínua liderança do comunismo italiano. O
juiz instrutor que avaliava a acusação entregou a Gramsci a carta e lhe disse:
“Deputado Gramsci, o senhor tem amigos que claramente desejam que o
senhor permaneça um bom tempo na prisão.”33 Em carta à Tatiana Schucht,
Gramsci refere-se à “estranha” carta, com perplexidade e desilusão. Enquanto
que, para a cunhada, tratava-se de uma atitude “criminosa”. Tanto que, após a
morte do prisioneiro, a cunhada continuou a investigar o objetivo daquela carta.
Giuseppe Vacca34 faz um longo estudo sobre o caso à luz de novas
cartas (recuperadas dos arquivos de Moscou em 2003) entre o prisioneiro e
seus principais correspondentes – Piero Sraffa e Tatiana. Segundo esse autor,
após a morte de Gramsci, a família Schucht começa a organizar os
manuscritos dos Cadernos juntamente com Sraffa, seguindo a vontade do
autor de evitar a intromissão de “quem quer que seja”. Do outro lado, o
Comintern exigia o direito de mantê-los nos arquivos do Partido. Esse impasse
prolonga-se até 1940, quando Stalin resolve, por fim, delegar a Togliatti a
organização editorial dos escritos deixados por Gramsci.
2.2 - A gênese dos Cadernos do cárcere
Desde os primeiros dias de prisão, Gramsci tentou continuar seu
32 VACCA, Giuseppe. Togliatti e Gramsci. In: Foedus – Culture, economie e territori. Padova, nº 20, 2008. p. 3-19. 33 GRAMSCI, Antonio. Cartas. ed. cit., p. 323; Cf. DEL FRA, Lino. Antonio Gramsci: i giorni del carcere (1977), [Filme-vídeo]. Produção de Lino Del Fra e Cecilia Mangini, direção de Lino Del Fra. Italia, Cooperativa Nuovi Schermi C., 1977. 130 min. p/b. son. 34 Ainda sobre o assunto Cf. ROSSI, Angelo, VACCA, Giuseppe. Gramsci tra Mussolini e Stalin. Fazi Editore: Roma, 2007.
32
combate político através do estudo. Para isso, pede livros e freqüenta as
bibliotecas dos presídios onde esteve. Não demorou muito a perceber que o
cárcere fascista é uma máquina monstruosa que esmaga e nivela as pessoas
em série:
Quando vejo agir e escuto falar homens que estão a 5, 8 e 10 anos presos, e observo as deformações psíquicas que sofreram, verdadeiramente me arrepio, e caio na dúvida quanto às previsões sobre mim mesmo. Creio que também os outros pensaram (não todos, mas alguns pelo menos) em não se deixar esmagar e ao contrário, sem nem sequer se dessem conta disso, tão lento e molecular é o processo, encontram-se hoje transformados e não o sabem, não podem julgar porque estão totalmente transformados. Por certo, eu resistirei.35
A rigorosa autodisciplina nos estudos foi uma via de saída para
conservar sua lucidez intelectual e moral, bem como de contribuir para a
sociedade com seus estudos que perdurariam até hoje. Podemos, então, dizer
que a escrita foi sua arma mais forte de resistência, bem como sua estratégia
para a liberdade de pensar. Em carta ao amigo Piero Sraffa, Gramsci explicava
que era responsável pelas conferências sobre história e literatura, que
esperava passar o tempo sem embrutecer e servindo aos amigos36.
No processo que o condenou, juntamente com outros dirigentes
comunistas em junho de 1928, o promotor fascista havia dito: “É preciso
impedir que esse cérebro funcione durante vinte anos.”37 Foi, então, com
grande dificuldade que obteve autorização para estudar e escrever na prisão38.
Gramsci foi aos poucos elaborando um plano de trabalho, índices e
sumários de assuntos que pretendia escrever. Em carta de 19 de março de
1927 à cunhada, explica o desejo de fazer algo que permanecesse para
sempre:
Estou dominado (e este será um fenômeno comum aos encarcerados, segundo
35 GRAMSCI, Antonio. Cartas. Op. cit. p.119. 36 Ibidem. p. 30. 37 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981. p. 62. 38 O Partido se encarregava de mandar livros, jornais e revistas ao prisioneiro, não deixando que nada lhe faltasse materialmente para seus estudos.
33
penso) por esta idéia: que precisaria fazer alguma coisa für ewig39 [...] Em resumo, pretenderia, segundo um plano preestabelecido, ocupar-me intensa e sistematicamente de algum tema que me absorvesse e centralizasse a minha vida interior. Pensei em quatro temas [...]: 1º uma pesquisa sobre a formação do espírito público na Itália no século passado, em outras palavras, uma pesquisa sobre os intelectuais italianos, suas origens, seus agrupamentos segundo as correntes da cultura, os seus diferentes modos de pensar [...], 2º Um estudo de lingüística comparada! Nada menos. [...] 3º Um estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre o gosto teatral italiano [...] 4º Um ensaio sobre os romanzi di appendice40 e o gosto popular na literatura.41
Mais adiante, nessa mesma carta, diz que a necessidade de escrever
era vital, mas não poderia contar-lhe tudo, pois não sabia do seu interesse em
ler essas histórias pessoais. O ideal seria utilizar a Literatura para transformá-
las em algo interessante também ao leitor:
Não retomo a narração do que vem me ocorrendo e as impressões de viagem porque não sei se lhe interessam; certamente isto tem um valor pessoal para mim, enquanto ligado a determinados estados de espírito e mesmo certos sofrimentos; para torná-lo interessante aos outros talvez fosse necessário expor em forma literária; mas eu tenho de escrever de improviso, no pouco tempo em que tenho comigo o tinteiro e a caneta42.
No cárcere, faz um plano de estudos e em 1929 inicia a escrita dos 33
Cadernos, que foram publicados em 1948. A primeira edição, (edição temática
ou Togliatti), organizou a obra em 6 volumes pelos temas: Il materialismo
storico e la filosofia de Benedeto Croce; Gli intellettuali e l´organizzazine della
cultura; Il Risorgimento; Passato e presente; Notte sul Machiavelli, sulla política
e sullo stato moderno e Letteratura e vita nazionale.
Os Cadernos compreendem várias formas de escrituras, da mais
simples – breve anotação bibliográfica de um texto lido, por exemplo, até
anotações, paráfrases, resumos e, ainda, formas mais complexas, como
ensaios, notas e apontamentos mais elaborados e extensos. Na realidade, são
diversas modalidades de prosa e de reflexões: critica literária, historiografia,
antropologia, sociologia, história, educação, política, filosofia. Isso também faz
39 Para sempre. 40 Romances publicados em folhetins. (Nota do tradutor) 41 GRAMSCI, Antonio. Cartas. Op. cit., p. 50-51. 42 Ibidem.
34
parte do espírito revolucionário do autor, pois não enquadra as ciências de
forma taxonômica, divididas e separadas, mas trabalha com todas ao mesmo
tempo, porque são partes intrincadas umas das outras, visto que são ciências
humanas.
2.3- Gramsci no Brasil
No Brasil43, a edição temática foi editada pela Civilização Brasileira a
partir de 1966. A edição de Valentino Gerratana (1975) publicou os Cadernos
seguindo a ordem de redação dos textos em quatro volumes com 3.370
páginas, com o objetivo de não fragmentar o pensamento do autor. Carlos
Nelson Coutinho explica que a repercussão tardia no Brasil foi devida ao fato
de que a intelectualidade de esquerda radicalizava a própria oposição à
ditadura militar e não acreditava surgir do PCB uma nova proposta, fazendo
com que o racionalismo histórico-dialético de Gramsci fosse visto como
conservador. O falimento das lutas armadas e o crescimento das lutas de
massas no início dos anos 70, bem como o processo de abertura política
mudam um pouco a situação e Gramsci surge menos timidamente no meio
acadêmico para mais tarde ser considerado um grande filósofo. Já na década
de 80, ocorre uma dispersão dos seus estudos: na pedagogia, sociologia,
ciência política, serviço social e também na teologia da libertação. Nesse
momento, ele passou a ser reconhecido como o maior teórico marxista da
política, sendo até hoje figura expressiva, sobretudo, na ciência política, por
fornecer uma análise dos problemas específicos da realidade brasileira de
ontem e de hoje44.
43 Lincoln Secco faz um estudo sobre a recepção das idéias de Gramsci no Brasil, no qual afirma que nos anos 20 e 30 já se fazia referência a Gramsci pelos italianos, trotskistas e antifascistas, pois, enquanto o PCB se enquadrava às diretrizes de Moscou, os trotskistas impulsionaram em São Paulo a Frente Única Antifascista e o grupo Itália Libera. Entretanto, o boom gramsciano se deu em meados dos anos 70, sendo Carlos Nelson Coutinho um dos pioneiros na tradução e edição dos textos. Cf. SECCO, Lincoln. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas idéias. São Paulo: Cortez Editora, 2002. 44 COUTINHO, Carlos. La recezione di Gramsci in Brasile. In: Gramsci nel mondo. Formia: Fondazione Istituto Gramsci, 1989.
35
Como filósofo e crítico literário, Gramsci foi apresentado, através da
publicação de Literatura e vida nacional45 (1968). Antonio Candido enumera as
modalidades mais comuns de estudos do tipo sociológico na literatura, feitos
conforme critérios mais ou menos tradicionais e oscilando entre a sociologia, a
história e a crítica de conteúdo. Segundo Candido, uma possível leitura política
de um texto literário pode ser uma simples crítica de partido ou assumir formas
mais matizadas e poderosa como a de Luckács na obra posterior a 1930,
citando também Gramsci como referência na Itália.46
Alfredo Bosi, com seus estudos de Estética em Florença, também
contribui para os estudos sobre Gramsci na década de 7047. Em História
concisa da Literatura Brasileira, fazendo referência à História da Literatura
Ocidental (1966), de Otto Maria Carpeux, diz Bosi: “em que se mantém fiel à
abordagem culturalista, mas desloca em certos casos-limite, o eixo da
interpretação do historicismo idealista para o dialético, dando o necessário
peso às motivações sociais,conforme a lição de Gramsci, Luckács, Walter
Benjamin e Adorno.” 48
Em Literatura e Resistência (2002) a presença de Gramsci será mais
expressiva, sendo citado aqui e acolá em alguns de seus ensaios sobre a
questão dos excluídos e os intelectuais.
Parece que, na Literatura, Gramsci ficou marginalizado e esquecido
tanto no Brasil quanto na Itália. Em 1967, em Cagliari, no Congresso
Internacional de Estudos Gramscianos, discutiu-se a temática Gramsci e os
problemas da literatura. O primeiro expositor, Natalino Sapegno49, questiona a
possibilidade de se falar em um interesse autônomo e específico de Gramsci
pela literatura, enquanto literatura primeiramente, e não documento para outros
fins. Para Sapegno, Gramsci nunca foi um crítico literário tradicional, pois não
45 Textos dos Cadernos e crônicas de jornais sobre crítica literária. 46 Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 21. 47 Cf. SECCO, Linconl. Op. cit., p. 51. 48 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 497. 49SAPEGNO, Natalino. Gramsci e i problemi della letteratura. In: Gramsci e la cultura contemporânea. Atti del Convegno Internazionali de studi gramsciani tenuto a Cagliari il 23-27 aprile 1967. Roma: Riuniti/ Istituto Gramsci, 1975. vol. 1, p. 265-277.
36
se dispôs a colher os valores propriamente poéticos de um texto. Aliás,
mostrou-se sempre avesso a um estudo especialista desinteressado,
prevalecendo sempre o interesse político. Daí, portanto, considerar a pesquisa
de Gramsci em histórica e sociológica, mas não exatamente literária. A
novidade nos seus estudos estaria mais à importância que os intelectuais
assumem na história, pois deu subsídios para amadurecer a crítica literária.
De outro parecer, Giuseppe Petronio50 rebate a afirmação de que
Gramsci não estabeleceu juízos estritamente estéticos para a crítica literária,
dizendo que isso precisa ser contextualizado e historicizado. Petronio diz que o
tipo de crítica literária feita por Gramsci deve ser compreendido como um
“alargamento do arco do fato literário”, pois trouxe para a análise aspectos que
foram esquecidos antes, como o teatro, a literatura popular e o romance de
folhetim. Esse alargamento contribui no sentido de trazer uma nova luz
focalizadora também dos fatos tradicionalmente literários, porque no momento
em que são trazidos elementos infra-literários ou paraliterários, o modo de ver
a alta literatura é também enriquecido.
Dentre os ensinamentos de Gramsci essenciais para o estudo literário,
Petronio elenca os seguintes:
1- Alargamento do conceito de história da atividade literária, pois
compreende um complexo de todas as obras de caráter literário em
diferentes níveis;
2- Substitui o “feixe de juízos” da crítica tradicional, que são múltiplas
considerações heterogêneas e justapostas, por uma crítica formulada
por uma “série de juízos” – retórico, cultural, político, moral e social –
que interagem e constituem um conjunto de conceitos que não se
limita a definição de beleza ou de positivo e negativo;
3- Gramsci delineia um novo tipo de crítico literário, que traz para o
estudo toda a sua bagagem de estudo e cultura, todo seu interesse
pelo homem compreender plenamente a obra literária.
50 PETRONIO, Giuseppe. Gramsci e i problemi della letteratura. In: Gramsci e la cultura contemporânea. Op. cit., vol. 1, p. 287-290.
37
Creio que bastariam esses argumentos plausíveis de Petronio para
justificar a continuidade dos estudos de Gramsci na literatura, mas há ainda
outro dado por Cesare Cases51 que conclui o debate: Gramsci ainda é
estimulante porque denuncia a omissão de alguns intelectuais socialmente por
muito tempo. Além disso, ele vislumbra a esperança em mudanças
progressivas através da intervenção dos artistas na cultura.
3 - O nordestino e o sardo
Em seu artigo “A escrita do testemunho em Memórias do cárcere”,
Alfredo Bosi52 traça um percurso de como a memória dos fatos históricos se fez
construção literária pessoal sem descartar a realidade objetiva.
O crítico explica que a testemunha está numa zona de fronteira: ora
deve lembrar-se da mimese e fazer-se entender ao leitor, ora deve expressar
os estados da alma e suas impressões. Por ser subjetivo, o testemunho
aproxima-se da narrativa literária em primeira pessoa, mas ao mesmo tempo,
quer ser verídico, e une memória individual à história. Bosi chama a atenção
para a ausência de discussão ideológica direta ao longo das memórias,
mostrando que Graciliano não se propõe a avaliar os companheiros enquanto
sujeitos de um drama político. Essa lacuna evidencia que a testemunha é mais
um observador perplexo do que um intérprete militante. “Não é a luta partidária
de cada um que o afeta, mas o seu modo próprio de estar naquelas condições
adversas, o seu jeito de sobreviver”53. Segundo Bosi:
É como se o olhar da testemunha mal conseguisse divisar os contornos de uma figura que viveria na condição mista de pessoa empírica e personagem de ficção. Homem, sim, e dos mais rijos e prestantes, mas também fantasma. Soldado alerta, atento às mazelas do país e, no entanto, sonâmbulo. Revolucionário temido e ao mesmo tempo apóstolo. Em suma, uma criatura singular. (p. 225).
51 CASES, Cesare. Gramsci e i problemi della letteratura. In: Gramsci e la cultura contemporânea. Op. cit., vol. 1, p. 291-295. 52 BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 221- 237. 53 Ibidem. p. 221.
38
O crítico ainda chama a atenção para os sentimentos recorrentes no
texto: tédio em relação à comunicação, aborrecimento, embaraço,
enfezamento, termos que fazem parte do léxico familiar de Graciliano Ramos.
Esse mal estar com a linguagem é a consciência de uma infelicidade coletiva
que não consegue ser compartilhada, e que, por isso, irrita e inferniza. Por
outro lado, a testemunha tem consciência sobre o seu processo de escrita e
sabe que o testemunho não é documento histórico e cópia fiel da realidade.
Assim, a escrita de testemunho deve dispor de uma considerável margem de
liberdade, por isso Graciliano afirma:
Posso andar para a direita e para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isso me parecer conveniente. (MC, vol. 1, p. 36).
Mais adiante, Bosi ainda analisa a diferença entre as duas vozes da
prisão (Gramsci e Graciliano) assim:
Nada há nestas [Memórias do cárcere] que lembre, por exemplo, os Cadernos do cárcere contemporâneos de Antonio Gramsci, saturados de polêmicas e juízos sobre as ideologias do tempo no seu país e no mundo. Seria fácil alegar, para o caso, a desproporção de nível cultural que estremava os dois escritores e que distinguia as respectivas esquerdas. A diferença pesa, mas não parece ser a razão maior daquela escassez de húmus ideológico observável no texto de Graciliano. Eu diria que o autor simplesmente não se propôs olhar e, menos ainda, avaliar seus companheiros enquanto sujeitos de um drama político (p. 222).
A relação feita pelo crítico distancia os dois relatos pela forma.
Certamente, enquanto Graciliano Ramos fez literatura de suas memórias,
Gramsci escreveu seu pensamento sobre, entre outros assuntos, a literatura.
Neste trabalho, o que propomos a mostrar é que, apesar de estruturas
diversas, o pensamento político de Gramsci influencia o tipo de engajamento
presente na obra de Graciliano Ramos, bem como suas idéias sobre a própria
39
literatura, pois para os dois escritores escrever era sempre um ato político.
Embora não seja panfletário, algumas informações são muito claras sobre o
autor alagoano: é averso ao capitalismo; não tem religião; sente antipatia pelo
Estado autoritário, pela polícia prepotente, pelo proprietário burguês, mas não
se propõe a fazer parte do movimento militante, nem em termos práticos ou
teóricos – “Graciliano não formula planos políticos alternativos”, como afirma
Alfredo Bosi. Realmente sua resistência está imanente em sua escrita, e
também por isso ela apresenta muitos dos ideais políticos e artísticos do
filósofo italiano.
41
1- Engajamento no século XX
Este é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra. Visito os fatos, não te encontro. Onde te ocultas, precária síntese, penhor do meu sono, luz dormindo acesa na varanda? Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo sobe ao ombro para contar-me a cidade dos homens completos. Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto. Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e duras, irritadas, enérgicas, comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir. (Carlos Drummond de Andrade) 54
A princípio, parece que o engajamento entrou em desuso atualmente,
pois com o fim da Guerra Fria, praticamente não existem mais razões para as
lutas sociais. A experiência de sobreviver aos regimes totalitários capitalistas e
socialistas deixou o mundo decepcionado com os dois modelos e o marxismo
como uma filosofia difícil de ser posta em prática. Sendo assim, o futuro estaria
definido somente pelas propostas neoliberais capitalistas e não existiria mais
modelo que se contrapusesse a esse estado de coisas e por cujas causas
fosse possível engajar-se.
Evidentemente tais premissas não têm sentido, se lembrarmos que o
homem a todo o momento se refaz e todas as mudanças sociais, positivas e
negativas, levam a um aprendizado de fazer a história movimentar-se. Também
é apressado considerar assim, pois, apesar de todo o desenvolvimento da
54 “Nosso tempo”. In: A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1994. p. 30.
42
ciência, ainda não conseguimos superar o abismo das diferenças de classe.
Enquanto nos países ricos, as crianças vivem com dignidade, usufruindo de
benesses maiores até de suas necessidades reais, nos países pobres, elas
estão morrendo de fome ainda. A queda do muro de Berlim teve seu efeito
dominó: fim do bloco soviético, dificuldades do leste europeu, emigração em
massa e outras mais. A miséria que hoje bate à porta dos países ocidentais é a
prova de que a luta por igualdade social ainda deve continuar. Por outro lado, a
crise do capitalismo, atualíssima, confirma cada vez mais a incerteza de
organização mais equilibrada em um contexto mundial.
Para Antonio Candido55 não importa o nome que se dá a essa
igualdade, mas que o mundo deve caminhar para isso. Em excelente
entrevista, afirma que o socialismo é a doutrina triunfante no século XX,
atribuindo-lhe um efeito esponja, isto é, de ser responsável pelas grandes
reivindicações e melhorias dos trabalhadores dentro do capitalismo.
Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo. Refletindo assim, talvez ainda esteja em questão falar sobre
engajamento nas artes.
*
O texto literário compreende forma e conteúdo, e sua relação com a
realidade pode ser expressa tanto pelo trabalho com a linguagem como pelo
tema que desenvolve. Para os antigos, a arte era recriação do real. Entretanto,
na sociedade moderna, com tantas problemáticas, esse conceito não abarca
completamente a idéia de arte e ela não comporta a mera representação.
Nesse sentido, parece que o artista estaria diante das seguintes alternativas:
55 CANDIDO, Antonio. O socialismo é uma doutrina triunfante. Brasil de fato, São Paulo, 12/07/2011. Entrevista concedida a Joana Tavares. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/6819
43
1 – Enfatizar a estética, ou seja, a idéia de arte pela arte, independente da
realidade, pois sendo autônoma, o mais importante são as impressões e
sentimentos do autor na criação;
2 – Ressaltar os temas, pois o escritor, sendo um ser social, não pode
desvincular-se da realidade, mas deve mostrá-la e posicionar-se diante dos
problemas sociais. Enfim, deve engajar-se para transformá-la. Mas não é tão
simples assim.
A partir da segunda metade do século XIX, o Positivismo favoreceu o
surgimento da literatura Naturalista, que buscava descrever com precisão
científica o comportamento e a psicologia humana. Nesse clima racional e
pragmático, as obras privilegiavam os aspectos históricos e sociais, deixando
em segundo plano a intuição e a criação. Em 1902, o napolitano Benedetto
Croce (1866-1952)56 escreve L´estetica come scienza dell´espressione e
lingüística generale, defendendo que a arte é um conjunto de expressão e
contemplação. Linguagem e intuição representam um só momento, não
podendo ser divididas, e que, portanto, a razão não pode anteceder à criação.
Sendo assim, ele coloca a intuição como fundamento da arte, e suas imagens
não precisam passar pelo crivo da realidade empírica. Avesso a qualquer
cientificismo na literatura, Croce critica Pirandello pelo uso da filosofia e da
psicologia em suas obras, como se fossem elementos não-artísticos.
Colocando as coisas assim, não se deveriam misturar conceitos de arte com os
conceitos da ética e da política. Entretanto, sabe-se que a interação desses
dois elementos enriquece a composição artística.
Jean Paul Sartre (1905-1980) em seu texto Que é literatura? 57,
indignado com a falta de compromisso social de determinados escritores de
sua época, convida os artistas a se engajarem, baseando-se em três principais
argumentos. O primeiro é que o escritor lida com significados e pode através
disso dirigir o leitor a uma posição em relação às injustiças sociais. Para ele, as
outras artes, como a música e a pintura, não são obrigadas a se engajarem
porque não utilizam signos completos de sentido como a palavra: “Não se
56 Ideologia, filosofia, política: da Croce a Gramsci. In: FERRONI, Giulio. Storia della Letteratura Italiana. Milano: Einaudi, 2000. p. 47-89. 57 SARTRE, Jean Paul. Que é a literatura? Rio de Janeiro: Ática, 1993.
44
pintam significados, não se transformam significados em música, sendo assim,
quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem?” (p. 12). No
entanto, sabemos que esse argumento pode ser refutado através de um
quadro de Pablo Picasso, por exemplo, que com a Guernica expressou toda
sua indignação contra as bombas atômicas. Ou ainda com algumas das óperas
de Giuseppe Verdi, que passaram a representar o Risorgimento e a Itália
unida.
O filósofo francês ainda posiciona a prosa como o “império dos signos”,
e que “a poesia não se serve das palavras, mas que as serve” (p.13), ou seja,
os poetas não utilizam as palavras como signos, mas como ferramentas de
trabalho para seleção e composição. Esse outro argumento pode cair por terra
diante de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de
Andrade, que trataram em seus poemas das problemáticas não somente
brasileiras, mas da humanidade.
Um outro argumento de Sartre para o escritor engajar-se inteiramente
em suas obras é o fato de que ele escreve para o leitor. O motivo da criação
artística é a leitura do outro e só depois disso é que o autor pode se sentir
essencial e importante no mundo. Segundo ele, em todas as outras profissões
o produto do trabalho não é para si mesmo: o sapateiro não faz sapato para si
mesmo, o farmacêutico não produz remédios que não sejam para os doentes,
assim, “só existe arte para outrem.”58 Mas se toda a obra é somente para o
leitor, onde ficariam as vivências e os sentimentos do autor? Se o escritor é
apenas instrumento, não haveria necessidade de sua elaboração intelectual,
bastaria adequar-se às exigências do mercado, e nem sempre essa requisição
do público é a mais importante.
Continuando no pensamento de Sartre, seu outro grande argumento
para o engajamento é que os autores são seres históricos e que, através da
arte, querem superar o tempo num salto para a eternidade. Assim “Escritura e
leitura são as duas faces de um mesmo fato histórico, e à liberdade à qual o
escritor nos incita não é uma pura consciência abstrata de ser livre.”59 O
pensador francês não aceita a idéia de valores eternos e que é possível
58 Ibidem., p. 37. 59 Ibidem., p.57.
45
escrever para um leitor universal. Para ele, o escritor fala para pessoas de sua
época, para os seus compatriotas e para sua classe, sendo, então um
mediador por excelência. Com isso, não pode deixar de escrever para o seu
povo, que tem seus mesmos sentimentos em determinado período da história.
Também é discutível a inexistência de valores eternos, pois se assim fosse,
nem mesmo o teatro grego nos ensinaria tanto até hoje. Ou ainda se
pensarmos na escrita intimista de Clarice Lispector, que tratou literariamente
problemas da experiência humana, independente de época ou lugar. Sem falar
em Guimarães Rosa, que extrapola o sertão para tratar do universo humano.
Con
trário ao modelo proposto por Sartre, Theodor Adorno (1903-1969), em seu
ensaio Engagement60, argumenta que o princípio social de um texto deve surgir
pela linguagem, pois de outro modo, o que se tem é tendência e propaganda.
Para esse estudioso, a literatura em si já é política e social. Portanto, ele rebate
o modelo de arte engajada destituída de elaboração formal, comprometida na
intenção do autor de dizer algo.
Adorno propõe a distinção entre engajamento e tendenciosismo: “a arte
engajada no seu sentido conciso não intenta instituir medidas, atos legislativos,
cerimônias práticas, como antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o
parágrafo do aborto, ou as casas de educação correcional, mas esforça-se por
uma atitude” (p. 54). É necessária a inovação artística no engajamento,
tornando o conteúdo plurissignificativo. Nas palavras do filósofo:
Arte não significa aguçar alternativa, e sim, através simplesmente de sua configuração, resistir à roda viva que sempre de novo está a mirar o peito dos homens. Tão logo, entretanto, as obras de arte engajadas ocasionem decisões e as transformem em seu critério de valoração, essas decisões tornam-se substituíveis. (p. 55).
Adorno defende a elaboração formal da obra de arte, enquanto
procedimento que leva à reflexão polissêmica, que também é atemporal, pois
em diversos momentos da história “continua a ser um sopro de respiro ao
60 In: ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1973. p. 51-71.
46
homem”. Com relação à dualidade obra de arte engajada e arte autônoma nos
diz:
Cada uma dessas duas alternativas nega, ao negar a outra, também a si própria: a arte engajada porque, como arte necessariamente distinta da realidade, abole essa distinção; a da arte pela arte porque, pela sua absolutização, nega também aquele relacionamento irrecorrível para com a realidade, que no processo dinâmico de sua independentização do real, entende-se como seu a priori polêmico. (p.52)
Criticando o teatro de Bertolt Brecht, Adorno diz que o ele não postula
identidade entre os indivíduos e a essência social. Restrito no ponto de vista
estético devido o amor à verdade política, esse escritor torna-se, em
determinadas situações, inverossímil por desprezar a dialética do mundo. A
mesma crítica em relação ao Grande Ditador, de Charles Chaplin, na cena em
que uma judia bate com uma caçarola na cabeça de soldados nazistas, sem
ser punida: “Em favor do engajamento político, dá-se pouco peso à realidade
política: isso reduz também o efeito político.” (p. 60). A alteração da realidade
exerce um efeito contrário daquele didático que se pretendia: “A inverdade
política mancha a configuração estética” (p. 61) e “O que mais pesa contra o
engajamento é que mesmo a intenção correta falseia quando é percebida e
mais ainda quando justo por essa razão ela se mascara.” (p. 63).
2- O engajamento político de Gramsci
Não se deve conceber a ideologia, a doutrina, como algo superficial e sobreposto mecanicamente (como uma roupa sobre a pele, ao contrário da pele, que é organicamente produzida pelo organismo biológico animal), mas historicamente como uma luta incessante. (CC, vol. 3, p. 199) 61.
Diferentemente de Sartre e Adorno, Gramsci não escreveu diretamente
sobre o engajamento na arte. Nos Cadernos, seu pensamento é muito
61 Daqui em diante, utilizo a sigla CC para os Cadernos do cárcere.
47
fragmentado, mas através de sua teoria política é possível delinear seu
pensamento sobre um engajamento na cultura.
Inicialmente, Gramsci parte do conceito de hegemonia, que talvez seja o
mais fecundo de suas considerações. Até hoje, mundialmente, ele é estudado
e apreciado pela sua teoria sobre a hegemonia. Esse conceito, de origem
leniniana, no estudioso italiano se enriquece com sua relação direta ao papel
dos intelectuais, pela importância que representam em combater um poder
dominante através da cultura, da filosofia, das ciências e das artes. Nesse
sentido, na leitura dos Cadernos é essencial compreendê-lo, pois fornece
instrumentos para entender o uso do poder e analisar os mecanismos de
submissão das massas. Ainda que não abarque detalhadamente a teoria
política do escritor, será um degrau para chegar às suas idéias sobre arte.
Primeiramente, o autor estuda a sociedade enquanto um bloco histórico,
constituído por infra-estrutura e superestrutura. Para Gramsci, não há
convergência entre os dois níveis, ou seja, ele é contrário a esse tipo de
determinismo. Segundo o autor, existe uma reciprocidade necessária entre
infra-estrutura e superestrutura, que é precisamente o processo dialético entre
economia e a cultura. Essa ligação entre os dois níveis é realizada pelos
intelectuais. Daí, sua grande importância no processo de emancipação política.
Sendo assim, o intelectual seria o tear que pode estabelecer a costura
do bloco histórico. Esse trabalho pode ser feito através da ideologia, “que é a
unidade entre concepção de mundo e a norma de conduta adequada”. Ela
transcende o conhecimento e articula-se diretamente com a práxis e a política,
assumindo o papel de força material da história. Não é somente reflexo da
relação econômica porque interfere também na organização e transmissão da
cultura. Um exemplo disso, é que as classes subordinadas participam de uma
concepção de mundo imposta pelas classes dominantes. Enquanto que a
ideologia das classes dominantes corresponde à sua própria função histórica.
Existem vários canais utilizados pelos quais uma classe influencia a
outra: a escola, a religião, o serviço militar e as mídias. Através desses canais,
a classe dominante ensina-lhes uma concepção de mundo que entra em
contradição com suas reais necessidades. Gramsci destaca nisso um
problema: onde está a filosofia real, se há ruptura entre percepção e ação?
48
Enquanto houver essa discrepância, a ação do indivíduo não pode ser
consciente e será sempre sem consistência. (Cf. CC, vol. 3, p. 190). Para
conseguir superar esse problema, é necessário construir uma concepção nova,
que estabelece unidade entre teoria e prática, entre filosofia e política. Os
dominantes têm sempre essa unidade, mas os subalternos, não, e por isso,
permanecerão estagnados se não conseguirem relacionar teoria e prática.
Gramsci propõe, então, elaborar essa nova concepção partindo do
“senso comum”, para depois elevá-lo a um “bom senso”, denominando-o de
visão crítica das coisas. (Cf. CC, vol. 3, p.194). Entretanto, como a classe
dominante pretende ter o controle das massas, não é também interessante que
o povo passe por transformações em seu modo de sentir e de agir. Daí
porque, segundo Luciano Gruppi62 o conceito de Gramsci de hegemonia é
amplo e complexo, porque vai além da reforma política e econômica, mas é
também uma reforma moral e cultural.
Carlos Nelson Coutinho também ajuda a elucidar a questão:
Para Gramsci, a tarefa da filosofia de práxis enquanto ideologia superior, coerente e orgânica, é realizar uma crítica das concepções do mundo ainda confusas e contraditórias, marcadas pelos elementos egoístico-passionais, corporativistas, individualistas; é promover uma reforma intelectual e moral que difunda entre as massas uma nova cultura superior, radicalmente laica e imanentista, que contribua para formar em torno do proletariado – convertido assim em classe hegemônica e nacional – um novo sujeito coletivo que encaminhe e promova a transformação radical da sociedade.63
Ainda caminhando para chegar a uma proposta gramsciana de
engajamento, voltamos a destacar os intelectuais nesse processo e o que eles
podem fazer para contribuir no processo de mudança social. Para Gramsci,
primeiramente, os partidos são intelectuais coletivos e
selecionam individualmente a massa atuante [militantes], e esta seleção opera simultaneamente nos campos prático e teórico, com uma relação tão mais estreita
62 Cf. GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. 63 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981, p. 65.
49
entre teoria e prática quanto mais seja a concepção vitalmente e radicalmente inovadora e antagônica aos antigos modos de pensar. 64
O partido representa o Príncipe de Maquiavel, que não é apenas um
indivíduo, mas é a expressão de uma vontade coletiva para determinado
objetivo político. Com a função educativa e organizativa, através dele, as
aspirações populares podem germinar, tornarem-se universais e reais. Na sua
militância, o autor também defendia que o trabalho de elevação intelectual das
massas deve ser constante, para desenvolver “elites de intelectuais de novo
tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela
para se tornarem seus ‘espartilhos’” (CC, vol. 1, p. 110).
À primeira vista, parece que esse engajamento de Gramsci é dogmático
e que os intelectuais estão a serviço de uma luta por consciência política, e,
conseqüentemente, na literatura, os textos deveriam ser voltados apenas para
criação de uma nova ideologia. Porém não era essa a proposta do autor, e,
talvez por isso, ele tenha sido marginalizado na crítica literária. Ele mesmo
ironizou essa proposta como simplificar o autor a “sacerdote da arte”.65 O que
se propõe, numa visão ampliada, é que deve ocorrer uma mudança na cultura
e nos valores, e não na obra de arte, porque isso seria conseqüência.
Gramsci concorda com Benedetto Croce no sentido de que uma nova
literatura somente pode acontecer com a renovação do homem. Mas ele vai
além do pensamento idealista de Croce e relaciona forma e conteúdo na
realidade concreta, dizendo que renovar o homem era refrescar o espírito, criar
novas ações, e, além disso, fazer uma mudança nas relações sociais, criar
uma cultura que seja capaz de transformar uma época. Essa nova cultura seria
responsável pela nova hegemonia.
Gramsci nos diz que os artistas não podem ser “criados” porque um
artista nasce a partir do seu modo de pensar sobre a vida. Para ele:
64 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Trad. org. e edição Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, vol.1, p. 105. 65 Cf. GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 8.
50
Deve-se falar de luta por uma nova cultura, isto é, por uma nova vida moral que não pode deixar de ser intimamente ligada a uma nova intuição da vida, que chegue a se tornar um novo modo de sentir e de ver a realidade e, conseqüentemente, um mundo intimamente relacionado com os artistas possíveis. (CC, vol. 6, p. 64).
Nenhum momento histórico-social é homogêneo e só adquire
subjetividade através dos artistas. O modo de sentir a realidade e transformá-la
em literatura é o fator determinante para distinguir um artista de verdade.
Criticar o conteúdo ideológico de uma obra não significa
necessariamente que esta não tenha valor artístico. Gramsci defende a
autonomia do texto literário em relação às considerações sobre o conteúdo
ideológico, que tem seu valor como crítica cultural e de costumes:
A beleza não basta: requer-se um determinado conteúdo intelectual e moral que seja a expressão elaborada e completa das aspirações mais profundas de um determinado público, isto é, da nação-povo numa certa fase de seu desenvolvimento histórico. A literatura deve ser, ao mesmo tempo, elemento atual de civilização e obra de arte se não for assim, preferir-se-á, à literatura de arte, uma literatura de folhetim, que, a seu modo, é um elemento atual de cultura de uma cultura certamente vivida. 66
Entretanto, insistir apenas sobre o conteúdo, pressionar até que a arte
expresse um determinado mundo cultural, temas ou conteúdos, tudo isso é
necessário para criar uma hegemonia cultural, mas é uma crítica política e não
artística. O método gramsciano busca equilíbrio entre expressão da realidade e
componente estético como reflexo de uma mudança anterior na sociedade.
Daí, então, ele levanta a polêmica:
Fulano quer expressar artificialmente um determinado conteúdo e não cria obra de arte. O fracasso artístico da obra de arte em questão (pois Fulano demonstrou ser artista em outras obras que realmente sentiu e viveu) demonstra que aquele conteúdo é, em Fulano, matéria surda e rebelde, que o entusiasmo de Fulano é fictício e exteriormente desejado, que Fulano não é
66 Ibidem, p. 90.
51
realmente, naquele caso concreto, um artista mas sim um criado que quer agradar os patrões. 67
Por conteúdo, Gramsci não compreende somente impressões e
sentimentos, mas o comportamento diante da vida que circula na obra de arte.
O conteúdo está na visão de mundo que na arte é sempre expressa de uma
forma, ligado de tal maneira, que cada mudança de forma é também uma
mudança de conteúdo e vice-versa. A forma literária é a linguagem, na qual é
expresso o conteúdo, mas ela mesma é conteúdo enquanto uso de uma
cultura, de um modo de pensar. A crítica literária deve ser uma análise
materialista do produto artístico, levando em consideração a historicidade do
conteúdo e a especificidade da forma 68.
Daí porque a estratégia de Gramsci não se limita a controlar apenas a
produção econômica, mas exercer uma direção político e cultural. Sua teoria de
revolução é processual e “molecular”, pois não propõe a guerra de movimento,
como foi o caso da Revolução Bolchevique, mas ele pretende a guerra de
posição, que tem seu início com os artistas.
Embora tendo uma cultura vastíssima, seu modelo de engajamento não
é minucioso como os de Sartre e Adorno. Tanto pela sua condição, pois no
cárcere não é o lugar mais adequado para ampliar horizontes, tanto pela tarefa
a que se propôs — que era de estudar a política cultural. Lembrando ainda, que
ele era, antes de tudo, um homem de partido, militante e revolucionário.
3 – Uma literatura empenhada
A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto.
Graciliano Ramos69
67 Ibidem, p. 11. 68 Ibidem, p. 65. 69 RAMOS, Graciliano apud MORAES, Dênis de. Op. cit. p. 264.
52
Alfredo Bosi, em Literatura e resistência, relaciona a ética e a estética.
Para ele, “a resistência é um conceito originariamente ético e não estético. O
seu sentido mais profundo apela para a força, exterior ao sujeito. Resistir é
opor a força à força alheia”70. No entanto, os valores de um autor fazem a
transferência do ético para o estético, ou seja, a resistência aparece pode
aparecer como um tema na narrativa, mas também surgir como processo
inerente à escrita. Seguindo esse raciocínio, Bosi explica que os valores não
são abstratos, mas são demonstrados nas atitudes, gestos, vozes captados
pelo autor e expressos através da linguagem. Assim, quando o romancista
molda o personagem dando tal caráter e identidade, isso já é uma busca da
verdade de expressão. O “escrever bem” (a estética) é para comunicar a
verdade (a ética). Essas escolhas do artista devem ser maiores que a do
homem político, atrelado ao cotidiano, senão o texto torna-se literatura de
propaganda, cujo único objetivo é o de apresentar uma mercadoria. Para esse
autor, quando não há adequação nessas escolhas e se exige um engajamento
do escritor, há também o risco de comprometer a visão crítica do texto por meio
de um “patrulhamento ideológico”.
Antonio Candido71 observa que, principalmente após a Independência,
muitos dos nossos escritores “se sentiram tolhidos no vôo” devido a essa
tentativa de utilizar a literatura como missão de descrever a realidade imediata,
deixando de lado a imaginação e sensibilidade próprias da obra de arte.
No caso de Graciliano Ramos, sabemos que ele é conhecido pela sua
objetividade e economia nas palavras, e isso está diretamente relacionado aos
temas abordados. Sua relação com a linguagem é também de combate: “Em
horas de perturbação era-me impossível dominar a língua” (MC, vol. 1, p. 68).
Neste trecho atento para o uso de termos de mesmo campo semântico
utilizadas pelo autor para demonstrar a situação de miséria em que o cárcere
deixa o ser humano. Havia ainda uma preocupação de não se tornar um
70 BOSI, Alfredo.Op. cit. p. 118. 71 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. v.1., 8ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. p. 26-28.
53
delator, perdendo seus valores e, para isso, a escolha desses termos
comprova que a relação forma e conteúdo é indissociável nesse autor:
O pormenor insignificante reforçaria provas, constituiria o elo necessário a uma cadeia interrompida. É desses pequeninos grãos que a polícia constrói os seus monumentos de misérias. Qual seria a minguada contribuição que exigiriam de mim? Esforçava-me por adivinhá-la e guardá-la com avareza: no interrogatório, desviar-me-ia das ciladas com ar culposo, misteriosamente, a casos diversos inofensivos. Difícil era descobrir aonde me queriam levar, que valor me atribuíam. Inadmissível achar-me ali por vingança de um energúmeno qualquer: isto seria antieconômico, disparatado, e sem dúvida o país ainda não chegara a tal grau de estupidez e malandragem (MC, vol. 1, p. 69). (grifo meu)
Já em 1935, criticava o romance Suor72 de Jorge Amado, questionando
seu panfletarismo, em que os personagens pobres utilizavam fórmulas
prescritas por militantes comunistas: “Se isso fosse verdade, os romancistas
ficariam numa grande atrapalhação. Toda a análise introspectiva
desapareceria. A obra ganharia em superfície, perderia em profundidade”.
Graciliano Ramos demonstra sempre reverência ao texto literário, isto é,
a preocupação de não reduzi-lo apenas à critica social. Na biografia O velho
Graça, Dênis de Moraes relata a resistência do escritor em relação a esse
engajamento radical defendido pelo Partido Comunista do Brasil. Em 1949,
Stalin nomeara Andrei Zdanov, governador de Leningrado, a uma espécie de
controlador da produção intelectual.
O zdanovismo esmagaria a atividade criadora, subordinando-a a cânones dogmáticos. A literatura e a arte deveriam exercer papel exclusivamente pedagógico, difundindo os esforços para a construção de um ‘mundo novo’ e de um ‘homem novo nos países socialistas. Em lugar da cultura burguesa ‘decadente e degenerada’, escritores e artistas se empenhariam em edificar a ‘cultura proletária’, a única capaz de desmistificar os valores morais da classe dominante e sustentar o caráter revolucionário da obra de arte. As inovações estéticas passariam a ser condenadas como anti-soviéticas e contra-revolucionárias. 73
72 RAMOS, Graciliano Linhas tortas. 10ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983. p. 95 73 MORAES, Dênis de. Op. cit., p. 259.
54
Enquanto alguns escritores funcionavam como ventríloquos do partido,
Graciliano não se adequaria à camisa-de-força ideológica e às exigências
impostas pela fórmula a ser seguida: “Ele nunca escamoteara seu desapreço
pela literatura panfletária. Não admitia que o escritor se sujeitasse à condição
de mero porta-voz de grupos de pressão política”74. E reforça sua posição
contrária à pressão ideológica partidária:
Eu não admito literatura de elogio. Quando uma ala política domina inteiramente, a literatura não pode viver, pelo menos até que não aja mais necessidade de coagir, o que significa liberdade outra vez. O conformismo exclui a arte, que só pode vir da insatisfação. Felizmente para nós, porém, uma satisfação completa não virá nunca.75
Para Graciliano, o escritor consciente não pode estar longe da
complexidade de sua época. O desencantamento dos seus personagens
mostra sua sensível observação dos dilemas humanos e dos problemas da
época. Ele não via no comunismo a salvação messiânica de todos os
problemas do mundo, até porque se burocratizava tudo, inclusive a arte.
Essas diferenças de idéias desgastaram o relacionamento do autor com
o partido, que questionava aspectos de suas obras e denominavam o seu
realismo de estagnado, pois não havia evoluído para um realismo socialista.
Diziam que seus romances eram cheios de subjetivismo e sem análise social,
como no caso de S. Bernardo, que não dava ênfase suficiente à exploração de
Paulo Honório e à vida miserável dos trabalhadores rurais — vistos também
como muito passivos e acomodados. Entretanto, é indiscutível que a visão
política do autor está explicita claramente em toda a sua obra de ficção. Para
ele, o caráter social é indissociável do texto:
Qualquer romance é social. Mesmo a literatura ‘torre de marfim’ é trabalho social, porque só o fato de procurar afastar os outros problemas é luta social. [...] Um escritor pode escrever para a massa e o operário nem o ler. Eu já tentei isso quando escrevi S. Bernardo, mas o povo não o leu e continuo sem saber
74 Ibidem. p. 262. 75 RAMOS, Graciliano apud MORAES, Dênis de. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 206.
55
por quê. De qualquer modo, o romance social terá que ser sentido e é preciso que o personagem seja o próprio autor. 76
Para o Partido, Memórias do cárcere perturbavam porque não eram um
manifesto de louvor e promoção às ações da ANL ou ao socialismo russo. Com
sobriedade, o autor soube ponderar cada caso e posicionar-se claramente.
Analisa a Coluna Prestes como um movimento necessário, porém sem
objetivos organizados:
Que significava aquilo? Um protesto, nada mais. Se por milagre, a coluna alcançasse vitória, seria um desastre, pois nem ela própria sabia o que desejava. Sabia é que estava tudo errado e era indispensável fazer qualquer coisa. Já não era pouco essa rebeldia sem objetivo, numa terra de conformismo e usura, onde o funcionário se agarrava ao cargo como ostra, o comerciante e o industrial roíam sem pena o consumidor esbrugado, o operário se esfalfava a toa, o camponês agüentava todas as iniqüidades, fatalista, sereno. (MC, vol. 1, p. 81-82).
Comentando as ações da ANL escreve com dúvida sobre seus objetivos
e sua consistência política:
A Aliança Nacional Libertadora surgia, tinha uma vida efêmera em comícios, vacilava, apagava-se. Estaria essa política direita? Assaltavam-me dúvidas. Muito pequeno-burguês se inflamara, julgando a vitória assegurada, depois recuara. Provavelmente dedicações enérgicas iriam esfriar, amigos ardentes se transformariam depressa em rancorosos inimigos. Seria possível uma associação, embora contingente e passageira, entre as duas classes? Isso me parecia jogo perigoso. Os interesses da propriedade, grande ou pequena, a lançariam com certeza no campo do fascismo, quando esta miséria ganhava terreno em todo o mundo (MC, vol. 1, p. 83).
Além de falar a verdade sobre a falta de elementos organizados para a
revolução no Brasil, o livro também não descreve os dirigentes do Partido como
heróis. Agildo Barata, tesoureiro do PCB, é descrito assim:
76 RAMOS, Graciliano apud MORAES, 1996. O velho Graça. ed. cit., p. 202.
56
Esquisita pessoa, Agildo. Minguado, mirrado. A voz fraca e a escassez de músculos tornavam-no impróprio ao comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto preciso, na hora exata. Economizava idéias e movimentos para utilizá-los com segurança; moreno, rosto impassível, tinha uns longes de esportista japonês: ligeiro desvio, avanço ou recuo oportuno assegurava-lhe a vitória. (MC, vol.1, p. 278).
Habituado a pesquisar, era investigativo também com as pessoas, e
advertia nas pequenas atitudes o caráter de alguém. Antônio Maciel Bonfim,
chamado de Miranda, ex-secretário geral do PCB, é descrito já nas suas
primeiras impressões como um personagem de caráter duvidoso:
A impressão que Miranda me deixou persistiu e acentuou-se no correr dos dias: inconsistência, fatuidade, pimponice. Vivia a mexer-se, a falar demais, numa satisfação ruidosa, injustificável. Sabia dizer tolices com terrível exuberância. [...] O seu primeiro discurso, fluxo desconexo, me surpreendeu e irritou. [...] Ausência de pensamentos e fatos, erros numerosos de sintaxe e de prosódia. O singular dirigente achava que para ser um bom revolucionário, lhe bastava conhecer o ABC de Bukharin. [...] Se lhe faltava a expressão, afirmava a torto e a direito, desprezando o contexto, vago e empavonado: ‘Isto é muito importante’. Isso me incomodava e aborrecia. Pois aquele animal do interior, sertanejo baiano, estava assim vazio, não tinha nada para comunicar-nos além da importância cretina? (MC, vol. 1, p. 283)
A simpatia por Rodolfo Ghioldi era muito mais pela sua resistência às
pressões dos interrogatórios que pelos seus discursos: “Rodolfo cresceu muito
aos meus olhos. A energia involutária deu-lhe maior prestígio que a inteligência
revelada nos discursos longos.” (MC, vol. 1, p. 263). A belíssima descrição do
professor Hermes Lima mostra que o valor das pessoas está muito além do
que aparentavam no vestir:
Hermes Lima foi a pessoa mais civilizada que já vi. Naquele ambiente, onde nos movíamos de cuecas, meio nus, admitindo linguagem suja e desleixo, vestia pijama — e parecia usar traje rigoroso. Amável, polido, correto, de amabilidade, polidez e correção permanentes. (MC, vol. 1, p. 301).
Graciliano observava as pessoas primeiramente como seres humanos,
sem rótulo ou idéia partidária, e era difícil para o partido aceitar isso, bem como
qualquer elogio a um membro do governo: “Capitão Lobo é homem de bem”
57
(MC, vol. 1, p. 105). E o grupo de continências a Stalin jamais aceitaria a
amizade com um trotskysta, como por exemplo, com Adolfo Barbosa.
Pressionado pelo partido para alterar o depoimento, não hesitou: “Se eu
tiver de submeter meus livros à censura, prefiro deixar de escrever”77. A
tenacidade de suas idéias sobre o engajamento e a arte diante do sectarismo
do partido faz o escritor driblar o zdanovismo e o realismo socialista,
caminhando em campo minado para escrever. Questionado sobre os romances
desse tipo, respondeu: “Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos
trancos e barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De
repente, o narrador diz: ‘O camarada, Stalin...” Isto no meio de um romance.
Tomei horror.”78
Percebe-se, então, que o engajamento presente nos textos de Graciliano
aproxima-se ao equilíbrio proposto por Gramsci nos seus ensaios sobre crítica
literária. Vemos também, que a adesão dos dois não foi uma conversão de
valores, pelo contrário, ambos mantiveram-se sempre coerentes aos ideais de
arte acima de qualquer pressão política. A independência intelectual dos dois
escritores é constante, e será também a mola de superação tanto em relação
ao estado ditador quanto em relação ao radicalismo do partido. Isso mostra
que esses dois homens não estavam limitados no dogmatismo que cristalizou o
marxismo, mas estavam comprometidos com a ética e o humanismo, no
sentido mais literal da palavra, que é de colocar os homens como elemento de
importância principal.
77 Ibidem, p. 210. 78 RAMOS, Graciliano apud MORAES, Denis de. O velho Graça. ed. cit. , p. 264.
59
É preciso ser sempre superior ao ambiente em que se vive, sem, todavia, desprezá-lo ou se achar superior. Compreender e raciocinar, e não choramingar. (GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere, p. 81).
Ricardo Ramos79 comenta que quando Memórias do cárcere foi
publicado, surgiram comparações com Dostoievski (Recordações da Casa dos
mortos) e Silvio Pellico (Le mie prigioni), mas não se falava em Gramsci. No
entanto, o próprio Graciliano recordava de suas leituras do escritor italiano,
com um grande respeito por contribuir para a sua formação política e também o
seu papel de escritor. Provavelmente essas leituras foram feitas em italiano já
na década de 40, através de material veiculado por publicações de esquerda,
pois tanto Ricardo Ramos quanto Fernando Alves Cristóvão80 informam sobre
as leituras de Graciliano Ramos de escritores italianos e sobre o seu domínio
dessa língua. O filho do escritor cogita inclusive a possibilidade da filiação do
pai ao Partido Comunista por influência do filósofo italiano. Em Retratro
fragmentado encontramos o seguinte relato:
Numa viagem de avião a Belo Horizonte, onde Graciliano participaria do II Congresso Brasileiro de Escritores, a certa altura Prestes se aproximou e curvado sobre a sua cadeira, foi direto: — Por que você não entra para o Partido Comunista? — E que é que um sujeito como eu vai fazer no partido? — Você ainda pergunta? Dessa conversa, iniciada a base de interrogações, não sei mais nada. Só sei que Graciliano entrou para o partido, logo a seguir. Correu o tempo. Um dia comentando a obra de Carpeux sobre Gramsci, larguei uma frase infeliz, aligeirada, saíra de moda o teórico italiano. Meu pai veio com quatro pedras, defendendo o autor de Os intelectuais e a organização da cultura, mencionando o muito que ele esclarecera sobre o papel do escritor. Provavelmente, já trabalhando nas Memórias do cárcere, tivesse acordadas as antigas leituras dos cadernos e cartas da prisão. Ou apenas reagisse, pois lera em italiano a maior parte de sua teoria política. (É curioso observar, quando saíram as Memórias, as referências e aproximações foram Dostoievski e Pellico, ninguém citou Gramsci). No entanto, ele falou com respeito incomum. Como se o ensaísta fosse a sua bíblia, rezasse por ela, dava a impressão de que era a própria raiz de sua opção partidária. Fiquei cismado.
79 RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. ed. cit., p.79. 80 CRISTÓVÃO, Fernando Alves. Graciliano Ramos: estrutura e valores de um modo de narrar, 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Brasília/Rio, 1977, p. 39.
60
Será que Prestes, ao aliciar Graciliano, invocara Gramsci? Se o fez, mostrou-se avisado e sensível. Muito mais do que sempre me pareceu.81
Neste capítulo, procuramos destacar conceitos relacionados à cultura,
que, formulados por Gramsci, podem ser identificados no memorialismo do
escritor alagoano, pars, assim, evidenciar como a coerência política de ambos
foi trabalhada na literatura de lembrança pessoal e passou a ser documento de
interesse coletivo.
1 - Os intelectuais
Para Gramsci todos os homens são intelectuais, pois em qualquer
trabalho físico, mesmo o mais simples e mecânico, existe um mínimo de
qualificação técnica e de atividade intelectual criadora. Embora sejam
intelectuais, nem todos desempenham essa função na sociedade. O
desenvolvimento da organização escolar possibilita a existência de vários
intelectuais na sociedade, sendo a escola a responsável por formar cada nível
de intelectualidade, com função determinada. A escola seria o instrumento para
elaborar os intelectuais em vários níveis.
Cada grupo social produz de modo orgânico os seus intelectuais que lhe
dão homogeneidade e consciência da própria função, nos campos econômico,
social e político. Ele distingue os intelectuais em orgânicos e tradicionais. Os
intelectuais orgânicos são aqueles que pertencem a uma determinada classe
social e são porta-vozes dessa classe, sendo conscientes de representá-la no
campo cultural. Por exemplo, o empresário cria o técnico da indústria, o
cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo
direito.
81 RAMOS, Ricardo. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. ed. cit., p. 79-80.
61
Os intelectuais tradicionais são aqueles que possuem prestígio
adquiridos durante muito tempo e têm grande influência na sociedade, como é
o caso do clero. Os eclesiásticos são a categoria de intelectuais mais
tradicionais, monopolizadores por longos períodos históricos de serviços
importantes: a ideologia religiosa, a escola, a assistência social e a filosofia. A
sua assimilação é importante para qualquer grupo emergente que queira se
impor como dominante.
Infelizmente, a massa de camponeses, mesmo ocupando importante
função no mundo da produção, não elabora intelectuais orgânicos próprios e
não assimila nenhuma camada de intelectuais tradicionais. Por isso, enquanto
a burguesia citadina produz os técnicos para a indústria, a burguesia rural
produz funcionários públicos e profissionais liberais, que não se identificam
com as massas camponesas e não as representam. Como foi explicado antes,
uma massa humana não se distingue ou se emancipa por si sem organizar-se
e não existe organização sem os intelectuais que relacionem teoria e prática.
Em textos pré-carcerários sobre a questão meridional82, Gramsci já
havia sinalizado esse procedimento para atingir a hegemonia: a classe operária
deveria se unir aos camponeses, pois a luta é de todo o proletariado que sofre
a exploração do capitalismo – seja ele o latifundiário ou o dono da fábrica. Se
pensarmos apenas na bipolaridade capitalismo X socialismo, na qual o autor
viveu, essa idéia é decadente. Mas se lembrarmos que o proletariado ao qual
Gramsci se refere é qualquer trabalhador assalariado, que tem no trabalho sua
alienação e não razão de sua independência, vemos que ela ainda é válida nos
dias atuais. Entretanto, o problema é que hoje até o intelectual é assalariado,
como, por exemplo, um professor de escola média ou um funcionário público.
Portanto, se ele não se identifica com o assalariado de nível intelectual inferior,
consequentemente não haverá preocupação em contribuir para sua
emancipação, será sempre um intelectual tradicional.
De qualquer forma, em 1917, em Il grido del popolo o jovem Gramsci
também já havia escrito:
82 GRAMSCI, Antonio. Alcuni temi della questione meridionale. In: Pensare L´Italia. Profilo biográfico e cura di Giuseppe Vacca. Milano, Roma: Fondazione Istituto Gramsci onlus, s.d.
62
Os burgueses podem até ser ignorantes. Mas não os proletários. Os proletários têm o dever de não ser ignorantes. A civilização socialista, sem privilégios de casta e de categoria, exige – para realizar-se plenamente - que todos os cidadãos saibam controlar o que seus mandatários decidem e fazem em cada caso concreto. Se os sábios, se os técnicos, se os que podem imprimir à produção e às trocas uma vida mais intensa e rica de possibilidades forem uma exígua minoria, não controlada, essa minoria – pela própria lógica das coisas – tornar-se-á privilegiada, imporá sua ditadura. 83
Graciliano tinha consciência de seu papel de intelectual orgânico, tanto
que já se preparava para escrever o livro. Quando é transferido da Colônia
Correcional, despede-se do Diretor com a ironia:
— Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os senhores me deram. — Pagar como? Exclamou a personagem. — Contando lá fora o que existe na Ilha Grande. — Contando? — Sim, doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel. O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo: — O senhor é jornalista? — Não senhor, faço livros. Vou fazer um sobre a Colônia Correcional. Duzentas páginas, ou mais. Os senhores me deram assunto magnífico. Uma história curiosa sem dúvida. O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras. Deu-me as costas e saiu resmungando: — A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever (MC, vol. 2, p. 150).
Mesmo quando fez parte do Estado, como funcionário da Instrução
Pública em seu Estado, não perdeu a direção de sua função de intelectual,
tendo a sensatez de recordar que o maior problema social do nosso país é a
educação. Na prisão relembra as ações absurdas de alienação do Estado —
obrigatoriedade em cantar o hino nacional nas escolas: “Ficava a estupidez:
‘Ouviram do Ipiranga as margens plácidas’. Para que meter semelhante burrice
na cabeça das crianças, Deus do céu?” (MC, vol. 1, p. 41). As crianças não
conheciam o significado da letra, e até mesmo alguns professores, devido à
falta de formação. Para Graciliano, naquele momento, era mais importante
83 GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civiização Brasileira, 2004. (vol. 1, p. 117).
63
fazer a distribuição adequada da merenda, vestir decentemente as crianças,
dividir os turnos e formar professores conscientes:
Aumentando o material, divididas as aulas em dois turnos, mais de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos, arrastando tamancos. Ao vê-las, um interventor dissera indignado: — Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias. E alguém respondera: — É o que podemos expor. Calçados e vestidos pela caixa escolar, os garotos se haviam apresentado com decência. (MC, vol. 1, p. 47).
Também abominava a administração das instituições por pessoas sem
nenhuma competência, apenas por indicação. Mais ainda, o fato de que
professores assumiam salas de aula sem nenhuma instrução específica,
simplesmente porque isso fazia parte da máquina controladora para
permanecer no poder:
Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso, dávamos um salto perigoso, descontentávamos capacidades abundantes. O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam agüentar os políticos safados e generais analfabetos? (MC, vol. 1, p. 41).
Esse cenário capitalista, de exploração dos grandes, inoperância dos
médios e conformismo dos pequenos, é comum às duas nações. Gramsci
explica que os intelectuais são os empregados do grupo dominante para o
exercício de funções subalternas da hegemonia social e do governo político, ou
seja, os mentores da ideologia agem através do prestígio social, porque o
saber é sempre do grupo dominante, para conseguirem o consenso popular.
Quando o governo é formado pela repressão do estado, os intelectuais sendo
ativos ou passivos estão preparados para compreender a conjuntura, mas a
grande massa não. Daí a grande importância do professor mais uma vez com
a filosofia da práxis: estabelecer nexo entre instrução e educação. Mas ele só
pode fazer isso se for preparado:
Por isso, pode-se dizer que, na escola, o nexo instrução-educação somente
64
pode ser representado pelo trabalho vivo do professor, na medida em que o professor é consciente entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos; e é também consciente de sua tarefa, que consistem em acelerar e disciplinar a formação da criança conforme o tipo superior em luta com o tipo inferior. (CC, vol. 2, p. 44).
O autor diferencia também os intelectuais do campo e da cidade, sendo
estes mais próximos do empresário e a indústria, enquanto que os intelectuais
do meio rural (sacerdotes, professores, advogados, médicos) são mais
tradicionais e têm um contato maior com o povo. Esse contato é positivo no
sentido em que, mesmo que o camponês não possa ser igual ao intelectual,
mas pensa e deseja que seu filho um dia tenha a autonomia intelectual desses
profissionais. Seria, por exemplo, o desejo de Fabiano, em Vidas Secas,
quando pensa sempre no futuro dos filhos, de um dia freqüentarem a escola e
conseguirem vida diversa daquela que tinham.
Nascido na Sardenha, região de extremo atraso econômico e de
mentalidade, Gramsci supera isso sem a arrogância de intelectual superior.
Escrevendo à cunhada, em 26 de março de 192784, mostra como era sensível
à preocupação que dava à mãe dele, em relação ao falatório das pessoas
sobre a prisão:
A pobrezinha tem sofrido muito por causa da minha prisão e penso que sofrerá mais ainda pelo fato de que em nossa terra é difícil compreender que se pode acabar preso sem ser ladrão, nem trapaceiro, nem assassino; ela vive em condições de apavoramento permanente desde a deflagração da guerra (três dos meus irmãos estavam na frente de batalha) e tinha e tem uma maneira de se expressar com esta frase: I miei figli li macelleranno,85 que em sardo é terrivelmente mais expressiva que em italiano: faghere a pezza. Pezza é a carne que se vende, enquanto para o homem utiliza-se o termo carre.
Nesse trecho, percebe-se inclusive seu respeito pela cultura sarda, pois
a frase dita em dialeto lhe é muito mais significativa que em italiano. Ele não se
coloca distante dessa cultura em nenhum momento. Em várias cartas à família,
utiliza expressões do sardo, principalmente quando se recorda da infância e
quando escreve aos parentes de origem.
84 GRAMSCI, Antonio. Cartas, ed. cit. p. 54. 85 Os meus filhos vão virar carne de açougue.
65
Nesse sentido, o pensamento do escritor sardo pode ser aplicado à
história de escritor nordestino, pois sua formação intelectual no interior de
Alagoas permitiu o contacto com as populações mais sofridas e perceber os
problemas reais das grandes massas. Essa proximidade permitia-o acreditar
mais na vivência do sertanejo do que no noticiário oficial: “O depoimento desse
sertanejo bronco valia mais, para mim, que as tiradas ordeiras da imprensa
livre, naturalmente interessada em conservar privilégios, fontes de chantagem,
e pouco disposta a esclarecimentos perigosos” (MC, vol. 1, p. 82).
Compreendendo inclusive os sentimentos dos camponeses pôde escrever com
experiência:
[...] É assim na minha terra, especialmente no sertão. Vivente espancado resiste: em falta de armas, utiliza unhas e dentes, abrevia o suplício e morre logo, pois, se sobreviver, estará perdido. Nunca mais o tomarão a sério. [...] Na minha terra uma vida representa escasso valor. A população cresce demais, a agricultura definha na terra magra (MC, vol. 1, p. 141-142).
2- A hegemonia cultural
Em sua Teoria do Estado Ampliado, Gramsci diz que a gênese do
Estado está na divisão da sociedade em classes, razão porque ele só existe
quando e enquanto existir essa divisão. Sua função é exatamente de manter e
reproduzir essa divisão, garantindo, assim, que os interesses comuns de uma
classe particular se imponham como interesse geral de toda a sociedade. Cada
Estado é composto por ditadura e hegemonia. Em outras palavras, existe
sempre no poder um componente de violência e outro de democracia, de
coerção e de consenso.
O teórico ainda separa a sociedade política da sociedade civil, em que a
primeira é o aparelho de coerção estatal que assegura legalmente a disciplina
dos grupos opositores. Já na sociedade civil, é onde se desenvolve a luta pela
hegemonia; ela é responsável por construir o consenso em relação ao poder
através das ideologias. A ideologia dos grupos sociais dominantes é mantida
graças à função que os intelectuais desenvolvem na sociedade civil. Quanto
66
mais socializada é a política no grupo, maior será a correlação de forças entre
as classes sociais que disputam entre si a supremacia.
O princípio de hegemonia cultural determina a necessidade de ampliar a
luta política a todos os ramos da cultura, inclusive a crítica literária. Se não
existe uma classe de intelectuais autônoma com um pensamento objetivo,
deve-se trabalhar para criar um grupo de intelectuais conscientes de seu papel
social e de posição contrária à cultura dominante para instaurar uma nova
hegemonia.
A luta cultural é imprescindível para agregar uma nova vontade coletiva
para superar o senso comum e construir nova hegemonia. Assim, a ideologia é
algo que transcende o conhecimento e se liga diretamente ao comportamento
dos homens.
Em Memórias do cárcere, o autor dá um exemplo prático do que uma
classe politizada pode fazer na luta pela hegemonia. Transcrevo parte do
capítulo 13:
Naquele dia a comida veio muito ruim, de aspecto mais desagradável que o ordinário. No caixão ao pé da grade, empilhavam-se os pratos – e o alimento se comprimia formando uma pasta onde se misturavam carne, peixe, arroz e batatas esmagadas. Entramos na fila, passo a passo nos avizinhamos dos faxinas ocupados da distribuição, recebemos a bóia enjoativa e a sobremesa: uma laranja murcha, uma banana preta, meio podre. Afastei-me, pegando a louça imunda, a sentir nos dedos grãos machucados e gordura, subi os degraus de ferro. Lá em cima iria repetir-se a dificuldade comum nas refeições. À falta de mesa ou cadeira, forrávamos a cama com jornais guardados para as tochas com que se queimavam os percevejos. Evitávamos assim, o contato da coisa repugnante com as cobertas. Mas a imprensa ali era clandestina, só tinha livre curso à noite, nos resumos badalados pela Rádio Libertadora. Minguava o papel – e, depois da queima dos insetos procedíamos como bichos, segurando a comida, num embaraço horrível (MC, vol. 1, p. 277).
Indignados por serem tratados como bichos, recebendo apenas
colheres, os presos reivindicavam mais talheres e melhor alimentação. Assim,
um por um joga seu prato de comida no pavimento inferior. Inicia uma revolta
comandada por Agildo Barata, a quem Graciliano descreve como: “Minguado,
mirrado. A voz fraca e a escassez de músculos tornavam-no impróprio ao
67
comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto
preciso, na hora exata.” (MC, vol. 1, p. 278). Seguido por Graciliano e os
demais presos, o caos se espalha. No final do capítulo, o narrador confessa:
Fui dormir imaginando castigos e aviltamentos. Nada veio. No dia seguinte a hora do almoço, a grade se descerrou como se o acontecimento da véspera não tivesse nenhuma importância; a refeição, menos ruim que as habituais, surgiu uma louça nova. As colheres velhas e ordinárias haviam desaparecido. Junto aos sacos de laranjas e bananas percebi uma grande caixa. Abriram-na. E na distribuição da comida ofereceram-nos talheres decentes (MC, vol. 1, p. 280).
Embora o exemplo refira-se a um grupo já politizado, a mudança prática
da situação somente foi possível através da consciência da força coletiva. A
descrição feita por Graciliano mostra que a energia de Agildo Barata86 –
minguado, físico pequeno - não era a mesma do Estado naquele momento
(coercitiva), mas era a força ideológica, e foi isso que possibilitou a nova
conquista.
Walter Benjamin87 afirma que o lugar do intelectual na luta de classes só
pode ser determinado em função de sua posição no processo produtivo e que o
autor não deve seguir a mera reprodução, mas transformá-la no sentido do
ideal socialista. Para o teórico, os intelectuais que buscam revolução, devem
ser, de certa forma, traidores de sua classe de origem, pois a educação e o
acesso aos meios de leitura estão sempre para uma elite, e não para o
proletariado. Assim, o escritor é também responsável nessa luta social, no
sentido de conscientizar e educar. Benjamin explica que essa luta não é entre a
inteligência e o capitalismo, mas entre o capitalismo e o proletariado.
Ainda em Memórias do cárcere, utilizando-se da linguagem dos
militares, Graciliano mostra como o Fascismo age disfarçadamente nas ações
e no discurso para manter sua hegemonia. Quando é chamado à secretaria
86 O partido brasileiro compreendeu essa descrição do líder comunista apenas como negativa, sem perceber que justamente essa “falsa fraqueza” é que faz a diferença na luta entre força e ideologia. Cf. RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. Op. cit., p.199; 87 O autor como produtor. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. (Obras escolhidas, I). São Paulo: Brasiliense, 1993.
68
para receber uma correspondência, o autor conta que primeiro oferecem uma
cadeira e depois lhe dão o envelope. “Para que sentar-me, se apenas viera ali
receber correspondência?” (MC, vol. 1, p. 103). O pedido educado escondia
uma ordem, que o narrador realiza com obediência: “Desejei agradecer e
conservar-me de pé, mas a semana de permanência naquele meio já me havia
feito compreender que tais recusas significavam indisciplina. Executei o
movimento exigido [...]”. Achando que bastava obedecer com o gesto, ele
senta-se e guarda a carta no bolso. Mas o sistema totalitário não se contenta
somente com a ação; é preciso controlar a informação e o pensamento
também. Então, o guarda lhe dá uma segunda ordem: “– Sou forçado a pedir-
lhe que abra o envelope na minha presença”. A submissão à segunda ordem
também é executada. Finalmente, com a melhor educação possível, o policial
conclui: “ – Estou satisfeito. Desculpe. É uma formalidade.” Nesse diálogo,
percebe-se que a coerção por meio do discurso é a grande arma do estado
para controlar as massas e ainda tê-las em seu favor: “Quereriam apenas dar-
me a entender que poderiam obrigar a comportar-me desta ou daquela
maneira, sentar-me ou levantar-me, romper ou deixar intacto um sobrescrito?
Não, seria um jogo tolo de gato e rato.” (MC, vol. 1, p. 104).
3- A questão meridional
Retorno à Itália e ao Mezzogiorno, para explicar muito brevemente a
gênese do problema italiano entre o Norte e o Sul. O Risorgimento (movimento
que unificou os reinos da Itália em 1861) não trouxe benefício algum para o
Sul, já que os dois lados da península se uniam depois de mais de mil anos em
condições antitéticas. As comunas do Norte haviam dado impulso à história e
uma organização econômica similar aos outros estados europeus, por outro
lado, no Sul havia a herança da política paternalista herdade pelos Bourbon e
da Espanha que não criara nada, deixando a agricultura primitiva que não
abastecia nem mesmo o mercado local. A conseqüência da centralização foi a
emigração de todo o dinheiro líquido do Sul para o Norte com o fim de
encontrar rendimentos maiores e imediatos para a indústria. O protecionismo
69
industrial aumentava o custo de vida no Sul, sem que o protecionismo agrário
ajudasse o camponês, visto que grande parte era agricultura de subsistência.
Criam-se os rótulos e preconceitos de que o sulista não tem iniciativa. A
acusação injusta é refutada por Gramsci88: “O fato é que o capital busca
sempre os investimentos mais seguros; (...) onde existe a fábrica, essa
continuará a se desenvolver com a poupança; mas onde toda forma é incerta, a
poupança suada e acumulada com dificuldade não confia e fica onde encontra
lucro tangível” (p. 63).
Ainda hoje o sul italiano é uma região muito mais agrícola e continua a
produzir profissionais para a Itália setentrional. Essa diferença, com o passar
dos anos, dividiu o país também economica e socialmente, pois, atualmente, a
Itália meridional forma intelectuais que, devido à falta de oportunidades,
acabam migrando para o norte. Se pensarmos no Brasil, vemos algumas
semelhanças, pois durante muito tempo, com o flagelo da seca e a falta de
políticas públicas voltadas para o Nordeste, foi imperioso a migração
nordestina e a maior parte do desenvolvimento econômico do país ficar
concentrado nas regiões Sudeste-Sul. Graciliano toca sutilmente a questão do
sonho nordestino de ganhar a vida no sul ironizando a si mesmo: ”Uma viagem
ao sul por conta do governo” (MC, vol. 1, p. 117).
Esse tipo de preconceito que se reproduz é lembrado por Graciliano,
quando conhece o russo Sergio Snaider. Ramos faz a seguinte comparação
em relação ao companheiro: “a delicadeza fria do russo dificilmente se
hamonizaria com os meus hábitos vulgares de sertanejo; a minha ignorância
compacta iria experimentar dura humilhação junto ao saber forte daquele
homem doutorado em Leipzig, intimo de Einstein e Hegel”. Logo a barreira se
desfaz, os dois tornam-se amigos apesar da dureza da língua: “–Vamos deixar
de egzagero, não existe egzagero, o que há é exagero, ei-za-ge-ro, e corrigia-
lhe a prosódia. Apresentando-lhe Manuel Bandeira e o julgamento do russo : “–
Oh! Vocês aqui tem disso? E noutro tom: – Ainda não conheço o Brasil.
Leviandade manifestar-me sobre ele” (MC, vol. 1, p. 228). O narrador mostra
88 GRAMSCI, Antonio. A questão meridional. Sao Paulo, Paz e Terra, 1987.
70
que se o nordestino, que já é rude em relação ao sulista, sente-se mais
distante ainda diante do europeu.
Em carta a irmã Teresina, em 26 de março de 192789, Gramsci lhe
orienta para que fale em dialeto com os filhos, sabendo que é muito mais
coerente ensinar às crianças a língua materna naturalmente. Mais uma vez,
sem pedantismo, o autor aprecia sua cultura de origem, sem complexo de
inferioridade:
Franco mi pare molto vispo e intelligente: penso che parli già correntemente. In che lingua parla? Spero che lo lascerete parlare in sardo e non gli darete dei dispiaceri a questo proposito. È stato un errore, per me, non aver lasciato che Edmea, da bambinetta, parlasse liberamente in sardo. Ciò ha nociuto alla sua formazione intellettuale e ha messo una camicia di forza alla sua fantasia. Non devi fare questo errore coi tuoi bambini. Intanto il sardo non è un dialetto, ma una lingua a sé, quantunque non abbia una grande letteratura, ed è bene che i bambini imparino piú lingue, se è possibile. Poi, l’italiano, che voi gli insegnerete, sarà una lingua povera, monca, fatta solo di quelle poche frasi e parole delle vostre conversazioni con lui, puramente infantile; egli non avrà contatto con l’ambiente generale e finirà con l’apprendere due gerghi e nessuna lingua: un gergo italiano per la conversazione ufficiale con voi e un gergo sardo, appreso a pezzi e bocconi, per parlare con gli altri bambini e con la gente che incontra per la strada o in piazza. Ti raccomando, proprio di cuore, di non commettere un tale errore e di lasciare che i tuoi bambini succhino tutto il sardismo che vogliono e si sviluppino spontaneamente nell’ambiente naturale in cui sono nati: ciò non sarà un impaccio per il loro avvenire, tutt’altro (p. 43)90.
89 GRAMSCI, Antonio. Lettere dal cárcere. Org. de Antonio Santucci. Sellerio, Palermo, 1996. (A edição organizada por Santucci possui novas cartas em relação à edição brasileira também utilizada neste trabalho). 90 Franco me parece muito esperto e inteligente: acho que já fala fluentemente. Em que língua fala? Espero que vocês o deixem falar em sardo e não lhes desagrade essa idéia. Foi um erro, para mim, não terem deixado que Edmea, desde criança, falasse livremente em sardo. Isso prejudicou a sua formação intelectual e colocou uma camisa de força na sua fantasia. Não deves cometer este erro com os teus meninos. Entanto, o sardo não é um dialeto, mas uma língua em si, embora não tenha uma grande literatura, e é bom que as crianças aprendam mais línguas, se é possível. Depois, o italiano que vocês lhes ensinarão, será uma língua pobre, mutilada, feita somente daquelas poucas palavras e frases das suas conversas com ele, puramente infantil; ele não terá contacto com o ambiente geral e acabará por aprender dois jargões e nenhuma língua: um jargão italiano pela conversa oficial com vocês e um jargão sardo, aprendido a pedaços e bocados, para falar com as outras crianças e com as pessoas que encontra na rua ou na praça. Recomendo-te mesmo, de coração, de não cometer tal erro e de deixar que os teus filhos suguem todo o sardismo que quiserem e se desenvolvam espontaneamente no ambiente natural em que nasceram: isso não será um impedimento para o futuro deles, pelo contrário.
71
Mais uma vez, a atualidade de Gramsci se faz presente, pois hoje a
maioria das crianças que frequentam regularmente a escola italian não falam
em dialeto. O boom tecnológico com o “milagre econômico italiano” e,
consequentemente, a escolarização em massa, principalmente nas décadas de
60 e 70, fizeram com que a população em geral aprendesse o italiano. A
escola, por sua vez, privilegiando sempre a língua oficial, excluiu os dialetos,
que ficaram desvalorizados socialmente.
4 – Literatura nacional-popular
Nos Cadernos do cárcere, quando escreve sobre o público e a literatura
italiana, Gramsci declara que a literatura italiana não é nacional porque
também não é popular e os italianos lêem mais os escritores estrangeiros
porque os intelectuais italianos não se ‘aproximam’ dos sentimentos do povo:
Os intelectuais não saem do povo, ainda que acidentalmente algum deles seja de origem popular; não se sentem ligados ao povo (à parte a retórica), não o conhecem e não sentem suas necessidades, suas aspirações e seus sentimentos difusos; mas são, em face do povo, algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta e não uma articulação (com funções orgânicas) do próprio povo. (CC, vol. 6, p. 43).
Ele ainda observa que os escritores mais populares não são italianos,
mas estrangeiros, como: Zola, Balzac, Victor Hugo e Tolstoi. Contrário ao que
aconteceu na Itália, a burguesia francesa soube criar uma literatura nacional-
popular que chegou realmente até o povo. Porém, no seu país, a ausência
desse tipo de literatura não permitiu uma reforma intelectual e moral. 91 No
máximo, existia um regionalismo apresentando o povo como pitoresco e
folclórico: “O que prejudicou os escritores italianos foi precisamente seu íntimo
91 Para Gramsci, o Renascimento italiano foi um movimento cultural essencialmente elitista. Diferente da Reforma protestante, que envolveu todo o povo. A Igreja não contribuiu para promover qualquer reforma popular, pelo contrário, coibiu com a Contra-Reforma.
72
‘apoliticismo’”92. A falta de organicidade entre os intelectuais e o povo, fez com
os italianos se identificassem muito mais com a literatura estrangeira e isso
significava sofrer a hegemonia intelectual e moral de outros países. Portanto,
não existia um bloco histórico nacional: os artistas formam uma casta sem
organicidade com o povo.
Nas idéias do autor, o forte Catolicismo presente na sociedade italiana
seria um dos motivos para essa desarticulação. Como a Igreja não se preocupa
em educar o povo para uma reforma social, a religião é vista pelos fiéis como
algo mítico e que um dia o bem vencerá sempre o mal. Daí, o interesse dos
leitores italianos pelo folhetim que faz “sonhar com os olhos abertos.”
Um outro fator que o escritor aponta para a inexistência de uma literatura
nacional-popular é que não existiam memorialistas e eram poucas os biografias
e as autobiografias. Não havia preocupação com a vida vivida e estaria nisso a
conseqüência da falsa de identidade cultural dos italianos, que continuam
divididos pelo dialeto e com a aparente unidade política.
Porém, o que Gramsci propõe não é um populismo na literatura e que o
autor deve escrever para agradar o público. Os textos de memórias são
importantes por falarem dos sentimentos do eu narrado, além do conterem um
possível significado estético aliado a um componente histórico. A
conseqüência foi que o povo começou a relacionar escrever com atividade
circense e fazer uma festa, isto é, fingir um estilo retumbante:
Com efeito, deveria sempre ser chamada de ‘industrial’ qualquer manifestação artística dirigida para satisfazer o gosto dos compradores individuais ricos, para ‘embelezar’ a vida deles, como se costuma dizer. Quando a arte, particularmente em suas formas coletivas, dirige-se para a criação de um gosto de massa, para a elevação deste gosto, não é ‘industrial’, mas desinteressada, ou seja, arte (CC, vol. 6, p. 251).
Assim, Gramsci é do parecer que o narrador-testemunha não está na
‘tribuna’ para exercitar um estilo excepcional, mas analisa até mesmo suas
92 GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. ed. cit., p. 64.
73
próprias convicções, como, por exemplo, quando Graciliano Ramos se
compara aos outros: “Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não
teria havido revolução no mundo. Revolucionário chinfrim” (MC, vol. 1, p. 52);
“Débil, submisso à regra, à censura e ao castigo, acomodara-me a profissões
consideradas honestas. Sem essas fracas virtudes, livre do alfabeto, nascido
noutra classe, talvez me houvesse rebelado como José93” (MC, vol. 2, p. 170).
Ou ainda por não tirar proveito da situação de prisioneiro para se
autopromover: “Diversos escritores começavam a interessar-se por mim;
exagerando padecimentos, declarando-me vítima da iniqüidade, caíam num
sentimentalismo propício a deformações. Talvez nunca me houvessem lido”
(MC, vol. 1, p. 290). Nesses casos, há sempre a possibilidade do
sensacionalismo e isso Graciliano também sabia, mas nunca se aproveitou
dessas situações, nem mesmo quando escreve sobre os presos.
Em Memórias do cárcere, Gaúcho é o criminoso orgulhoso do ofício: “—
Vossa mercê usa panos mornos comigo, parece que tem receio de me ofender.
Não precisa ter receio, não; diga tudo: eu sou ladrão” (...) “— Não senhor,
nunca tive intenção de arranjar outro ofício, que não sei nada. Só sei roubar,
muito mal sou um ladrão porco.” Ao saber da preparação de um livro, ansioso
e feliz responde: “— Sei. Vossa mercê vai me botar num livro. — Quer que
mude seu nome? — Mudar? Por quê? Eu queria que saísse o meu retrato.
(MC, vol. 2, p. 87-88).94 Tanto Graciliano quanto Gramsci mostram-se contra a
exploração da curiosidade popular, pois pretendiam organicidade entre os
artistas e o povo.
93 Prisioneiro da Colônia Correcional. José teve uma infância difícil, rebelou-se das surras dos pais não frequentando a escola, não procurando emprego para tornar-se ladrão. 94 O livro Gomorra (2006) descreve as várias formas de atuação da Camorra (máfia napoletana), desde o tráfico de drogas, armas, o problema do lixo em toda a Campânia até a falsificação chinesa das grandes marcas italianas, e seu escoamento através do porto de Nápoles. O autor conta ainda sobre a vida dos Boss (chefes da máfia) e cita os principais nomes da Camorra. A princípio a idéia de um livro denunciando a Camorra foi recebida como uma ameaça ao crime organizado, o autor Roberto Saviano94 precisou ser escoltado, mas conta que depois todos (mafiosos, familiares de Boss, inclusive jornalistas) queriam aproveitar a situação e aparecer no livro. Alguns jovens até fingiam despachar pacotes de droga para serem “filmados”. Depois da publicação do livro, em várias entrevistas, Saviano disse ter recebido propostas de mafiosos para serem citados nos próximos livros do autor. Cf. SAVIANO, Roberto. Gomorra: viaggio nell´impero econômico e nel sogno della Camorra. Milano: A. Mondadori, 2006. p. 105.
74
5- Literatura é sentimento
O cronista Graciliano Ramos, comentando a narrativa Porão, de Newton
Freitas, sobre a mesma época em que também foi preso político, deixa clara
essa necessidade de mostrar como o homem se sente frente às pressões
externas:
O autor só nos mostra a parte externa dos indivíduos. As suas personagens andam bem, falam, mexem-se. Notamos os seus movimentos e vemos onde elas pisam, mas não percebemos o interior delas. Estão atordoadas, evidentemente não podem pensar direito, mas teria sido bom que os acontecimentos se apresentassem refletidos naqueles espíritos torturados. Seria preferível que, em vez de vermos o soldado empurrando brutalmente os presos por uma escada com o cano de uma pistola, sentíssemos as reações que o soldado, a pistola e a escada provocaram na mente dos prisioneiros. 95
A visão do Mestre Graça sobre a literatura reflete o que fez com os seus
personagens na ficção e na autobiografia. João Valério, Luís da Silva, Fabiano
e Paulo Honório nos são mostrados através do que sentem e são tão humanos
quanto todos nós. A intensidade desses textos artísticos se prova por despertar
em nós os sentimentos mais cotidianos e mais profundos.
Antonio Candido96 analisa a obra de Graciliano Ramos descrevendo os
romances do autor como um resultado estético que formam um só bloco com
as suas autobiografias. Além disso, salienta que suas memórias não são
apêndices ou complementos, mas sim um caminho natural quando a ficção já
não era suficiente para que o autor se expressasse. Daí, então, a relevância de
suas autobiografias em toda a sua produção literária. Sobre Memórias do
cárcere, o crítico enfatiza a forma equilibrada de rompimento com a ficção, ao
registrar com maestria experiências do adulto.
Para Graciliano, literatura era sentimento e não saberia escrever algo
que expressasse apenas utopias. Sua precisão no dizer levava-o a rever
95 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 10ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983. (p. 98-99). 96 CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão, ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 66.
75
sempre o texto, a suprimir, buscar a palavra específica para dizer o essencial.
Mesmo com as dificuldades financeiras e a necessidade de dinheiro, não
aceitava escrever em série para vender.
Burrice imaginar que me seria possível atamancar um romance além das grades. Nem conseguia meio de consertar o que D. Jeni datilografava. Isto me afligia: defeitos por todos os cantos, prosa derramada e insípida. Entretanto eu o mandava copiar e remeter a um país estrangeiro, coisa que no meu juízo perfeito, não o faria. E já aí teríamos uma pequena amostra do que nos oferecia o absolutismo novo, sem disfarces, dentes arreganhados, brutal: o rebaixamento da produção literária. E era-me necessário dedicar-me a ela de qualquer modo, exportá-la em contrabando se o mercado interno a recusasse. Recusaria, decerto. (MC, vol. 1, p. 60-61).
Entretanto essa mesma parte, ao ver construções negras num terreno
alagado, descobre que são mocambos e se recorda da descrição no romance
Moleque Ricardo, de José Lins do Rego. A crítica rotulava José Lins de
memorialista e de não ter imaginação, quando na verdade era exatamente o
contrário: “Que entendia ele de meninos nascidos e criados na lama e na
miséria, ele, filho de proprietários? Contudo, a narração tinha verossimilhança.
Eu seria incapaz de semelhante proeza: só me abalanço a expor a coisa
observada e sentida.” (MC, vol. 1, p. 61). Escrever era fruto de sentimento,
apesar de pressionado a escrever, o texto deveria vir de dentro. Daí a linha de
fronteira das memórias – descrição do fato real, mas pleno de vivência
subjetiva do autor. Nem mesmo as grades poderiam limitar o seu fazer literário,
nem por necessidades econômicas ou até mesmo a repressão.
Na segunda parte das Memórias, seu estilo pode ser sentido através do
caso narrado sobre o soldado Alfeu. O diretor da prisão aniversariava no dia
seguinte e o soldado gostaria de fazer-lhe um discurso, representando a
polícia. Como não sabia o que dizer, pede ajuda a Graciliano. As respostas ao
soldado demonstram bem o seu modo de escrever:
— Bem. Suponhamos que eu saiba fazer isso. Imagina que posso fazer? Não adivinho seus sentimentos. Se eu escrevesse o discurso, toda a gente compreenderia logo que ele não era seu. [...]
— Use sua linguagem, tornei. Não adianta dizer frases bonitas, alheias. Mostre com simplicidade o que tem dentro” (MC, vol. 2, p. 110).
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E para terminar a conversa: “E depois não tenho motivo para ser amável
com o diretor. Você tem, é natural. Mas eu, acha que posso ser amigo dele?”
(MC, vol. 2, p. 110). O velho Graça, com sua sinceridade, arremata o diálogo
deixando claro que os dois estão em lados opostos. Não era preciso discurso
político, mas bastavam as perguntas finais para delimitar os espaços. Ele não
conseguiria escrever uma linha para o diretor do presídio, pois não saberia
escrever textos oportunistas. Sua preocupação era de se sentir prejudicado
consigo mesmo, com seus ideais, ao fazer discursos falsos de apoio ao
governo ditador que o mantinha atrás das grades por dizer o que pensava.
Essa liberdade para poder dizer “não” com muita dignidade demonstra o
quanto a palavra escrita tem importância na sociedade. Os fascistas detinham
o poder, mas não conseguiram controlar mentes como as do escritor alagoano.
Analisando a peça de teatro de Ibsen, Casa de bonecas, Gramsci vê
que o espetáculo agrada muito ao público urbano na medida em que o texto
encontra ressonância na psicologia popular, ou seja, representa soluções
dramáticas e apesar de ser um pensamento progressista, não deve ser
desenvolvido como tese, como discurso de propaganda, isto é, “o autor deve
viver no mundo real, com todas as suas exigências contraditórias e não
expressar sentimentos absorvidos apenas nos livros”. (CC, vol. 6, p. 48). E
nada poderia ser mais real e humano do que escreve Graciliano Ramos: “Fiz o
possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as suas
dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra
dos meus defeitos.” (MC, vol. 1, p. 37); “Nenhuma saudade, nenhuma dessas
meiguices românticas, enervadoras: sentia-me atordoado, como se me dessem
um murro na cabeça. Julgava-me autor de várias culpas, mas não sabia
determiná-las” (MC, vol. 1, p. 56).
6 - Escrever para (sobre)viver
Gramsci toca nessa questão, dizendo que o ócio do artista foi mal
interpretado pela sociedade que liga sempre à idéia dos mecenatos no
Renascimento. Na verdade, o não fazer nada não existia, pois mesmo Ariosto,
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literato por excelência, tinha incumbências administrativas. Essa visão é
equivocada, pois atualmente o literato é jornalista, professor e não pode
simplesmente ser mantido para gerar sua obra de arte. Entretanto, o literato
deve reivindicar o direito de estar em ócio (otium et non negotium), de viajar, de
fantasiar sem preocupações econômicas.
Claro que na situação em que se encontrava Graciliano essa
despreocupação não seria totalmente possível – havia filhos e a esposa para
manter, contas a pagar e sem poder ao menos escrever para jornais. Contudo,
ele também reflete sobre isso: “Um governador de Alagoas me dissera anos
atrás: ‘— Você escrevendo literatura de ficção morre de fome. Os romances lhe
renderão duzentos mil-réis por mês, bela perspectiva. Faça artigos sobre
economia e ganhará contos.’” (MC, vol. 1, p. 117). A angústia do escritor em
sentir-se insuficiente é permanente quando reflete sobre sua profissão, por
razões como: não haver um rendimento “seguro’’, quando não conseguia
escrever nenhuma linha e principalmente por ser sempre autocrítico no que
escrevia.
Na sua grande capacidade de observar as atitudes e sentimentos dos
presos, o narrador equipara-se àqueles homens muitas vezes. Para um
intelectual conviver com criminosos, a princípio, o ambiente da prisão é um
laboratório de estudo, pois vê ali coisas e seres nunca vistos em um mundo
totalmente diverso do seu97. A prova é que quando foi preso, o autor via ali um
ambiente tranqüilo, onde não tendo nada para fazer, poderia escrever
sossegado. O grande problema é que na sua sensibilidade, o intelectual vê que
algumas de suas ansiedades também são as dos outros homens que estão ali.
Quando nos conta sobre um preso que seria libertado no Pavilhão dos
Primários, Graciliano relembra que esse presidiário não queria ir embora e que
iria fazer de tudo para permanecer, até mesmo de matar alguém para continuar
preso. Sem compreender o porquê disso, alguém lhe explica: “— É um tipo
escrachado.” Daí então, ele consegue compreender o sentido dessa gíria dos
presos. “Depois da ligeira dúvida, o nome estranho se definiu: o ladrão estava
97 Cf. DOSTOIEVISKI, Fiodor. Recordações da casa dos mortos. São Paulo: Nova Alexandria, 1982. p. 65.
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nas fichas da polícia, tinha deixado lá o retrato e as marcas digitais, de nenhum
modo chegaria a livrar-se disso. Escrachado.” (MC, vol. 1, p. 305). O medo de
sair era porque o homem estava marcado para não ser mais ninguém lá fora. O
narrador sente-se do mesmo jeito: “A certeza da própria insuficiência é horrível.
Exclui-se a idéia de arranjar outro ofício.” Essa era também a sua preocupação,
de não saber fazer outra coisa além de escrever e de que modo isso poderia
mudar alguma coisa no mundo.
A sua equivalência em reconhecer-se igual a todo preso também
aparece quando se confronta com o estivador Desidério. Quando o Coletivo se
reuniu na Praça Vermelha, Rodolfo Ghioldi faz um discurso breve de
despedida. Cansado de discurso, Desidério, homem prático e de trabalho
braçal se cansa de tantas palavras. Transcrevo parte desse embate entre
intelectuais e a necessidade concreta do povo através da fala do estivador:
— Esse negócio de liberdade é conversa. Vamos deixar de tapeação. Lembrei-me da aspereza dele no Coletivo — “Isso não vale nada. Besteira.” A mesma raiva fria e demolidora, o mesmo horror aos intrusos no seu mundo. — Eu sei para onde vou, sim senhores. Vou para a Colônia que é o meu lugar. Estive aqui por descuido, não é possível viver muito tempo com os senhores. E rematou cheio de fel e veneno, um fulgor de ódio no olho que se ausentava de nós: — Estes braços estão cansados, estão magros de carregar farinha para o burguês comer. [...] Desidério nos julgava parasitas, os nossos trabalhos demorados e complexos não tinham para ele nenhuma significação. Arrepiei-me ante aquela antipatia agressiva, a desviar possíveis entendimentos, a excluir habilidades proveitosas. Jogava-nos a todos o labéu. Exploradores e inimigos. Na verdade, a maioria não era burguesa. Pertencíamos a essa camada fronteiriça, incongruente e vacilante, a inclinar-se para um lado, para o outro sem raízes. Isso determinava opiniões inconsistentes e movediças, fervores súbitos, dúvidas, bocejos. Naquele momento a revolução monopolizava os espíritos, e alguns desejavam com fervor religioso. Mas tarde iriam surgir numerosas apostasias e é possível que homens ásperos como Desidério tenham influído nelas. (grifo meu, MC, vol. 1, p. 321-322).
Apesar de se surpreender com a revolta e o desrespeito do estivador, o
escritor põe em xeque até mesmo a importância do seu trabalho. Por que
escrever? Qual a utilidade de tanto discurso, se na vida prática tudo continuava
igual, ou melhor, enquanto “se perdia tempo com trabalhos complexos”, o
estivador era explorado pelo ócio do teórico. Mais adiante, Graciliano
79
questiona: “Quem sabe se o estivador não tinha alguma razão?” Sua pergunta
é provocadora e inclui a importância desse aparente não-fazer nada do artista
para fazer tanto através da arte. O trabalho artístico que não produz algo
palpável é, na verdade, o fazer que pode mudar as pessoas, pode transformar
o mundo ou simplesmente não fazer nada – ser simplesmente prazer, emoção,
fruição – coisas que todo ser humano precisa para viver e não apenas
sobreviver.
81
Esquecer-nos-íamos, era como se nunca nos houvéssemos visto. Cada qual para o seu lado, tratando de negócios diferentes, alimentando esperanças diferentes. Uma proposição insensata encaixada em diálogo curto. Apenas. Conseguiria, porém, desembaraçar-me dela, misturá-la às amofinações da cadeia, aos toques de corneta e à vigília da sentinela, recuperar, depois de solto, os pequenos tédios e as pequenas alegrias, completamente livre? Não. Decerto não me libertaria de todo. Já ali começava a sentir uma nova prisão, mais séria que a outra, a confundir-me terrivelmente as idéias. Não imaginara poder testemunhar semelhante ação. Pessimismo? De forma nenhuma. Não supunha os homens bons nem maus: julgava-os sofríveis, pouco mais ou menos razoáveis, naturalmente escravos dos seus interesses. Sem dúvida: uma razão miúda, variável com as circunstâncias e o egoísmo natural: dormir, comer, amar, reproduzir-se; um pouco acima disto, avaliar quadros e livros, inspirar respeito, mandar. (MC, vol. 1, p. 110).
Alguns episódios vividos pelos personagens do Mestre Graça são
semelhantes ao narrador das memórias, sejam eles da infância ou as da
prisão. Antonio Candido inicia o conhecido ensaio Ficção e Confissão
advertindo que “Para ler Graciliano Ramos talvez convenha ao leitor aparelhar-
se do espírito de jornada, dispondo-se de uma experiência que se desdobra em
etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das
mais vividas emoções pessoais.”98 (p.13). Esses desdobramentos são vistos
em toda a obra do autor, e sabemos que muitos personagens e fatos das suas
memórias se intricam com a ficção. Contudo, seus romances manipulam as
experiências de vida sob diversas problemáticas, com outros motivos e, por
isso, são diferentes um do outro.
Mais adiante Antonio Candido afirma:
(...) as reminiscências não se justapõem à sua obra, nem constituem atividade complementar, como se dá na maior parte dos casos. Pertencem-lhe, fazem parte integrante dela, formando com os romances um só bloco, pois são essenciais para a compreensão da mesma ordem de sentimentos e idéias, dos mesmos processos literários que observamos neles. A autobiografia foi um caminho que escolheu e para o qual passou naturalmente, quando a ficção não lhe já não lhe bastava para exprimir-se. (p.66)
98 CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Op. cit., p 13.
82
Nesta parte, não nos interessa saber o que é verdade ou ficção, mas
destacar os desdobramentos da experiência do cárcere no seu fazer literário e
que aproximação pode haver com as idéias de Gramsci. Utilizamos os
seguintes textos: Angústia, Terra dos meninos pelados, Infância, Vidas Secas,
Insônia, Viagem, Viventes das Alagoas e Linhas Tortas. Com exceção de
Angústia, todos esses textos foram escritos após a o período da prisão.
1- Angústia (1936)
Para Antonio Candido é uma “autobiografia em potencial”, e que “Luís da
Silva é muito do que foi pisado em Graciliano Ramos”99. Para Roger Bastide,
“transição entre período romanesco e o período autobiográfico”.100
Hermenegildo Bastos101 diz que se Angústia fosse posterior a Memórias do
cárcere se poderia afirmar que o autor estaria reaproveitando no romance o
material das experiências vividas.
Na realidade, Angústia foi escrito antes, mas publicado na época da
prisão. Talvez muita revisão ainda deveria ser feita pelo autor, tendo em vista
seu costume de retocar sempre os textos. Aliás, uma das suas grandes
preocupações quando foi preso era como concluir o livro, e lhe faz referência
tantas vezes nas Memórias:
Na casinha de Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as últimas páginas do romance. Os consertos não me satisfaziam: indispensável copiar tudo, suprimir as repetições excessivas. Alguns capítulos não me pareciam muito ruins e isto fazia que os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte e sete dias de esforço, com razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino bem chinfrim. O delírio final se atamancara numa noite, e fervilhava de redundâncias. Enfim não era possível
99
Ficção e confissão. ed. cit. p. 62. 100 BASTIDE, Roger. Graciliano Ramos. Teresa. Revista de Literatura Brasileira. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP, nº 2, Editora 34, 2001, p. 136. 101 BASTOS, Hermenegildo. Memórias do cárcere: literatura e testemunho. Brasília: Editora UnB, 1998, p.108.
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canalizar esses derramamentos. O diabo era que no livro abundavam desconexões, talvez irremediáveis. Necessário ainda suar muito para minorar as falhas evidentes. (MC, vol. 1, p.42).
Descrente do romance, Graciliano fala no lançamento do romance
assim:
Enfim o romance encrencado veio a lume, brochura feia de capa azul. A tiragem de dois milheiros rendia-me um conto e quatrocentos e esta ninharia ainda significara para mim grande vantagem. Minha mulher apareceu com alguns volumes. Guardei um e distribui o resto na enfermaria e na Sala da Capela, mas logo me arrependi desses oferecimentos. A leitura me revelou coisas medonhas: pontuação errada, lacunas, trocas horríveis de palavras. A dactilógrafa, o linotipista e o revisor tinham feito no livro sérios estragos. Onde eu escrevera opinião pública havia polícia; remorsos em vez de rumores. Um desastre. E nem me restava a esperança de corrigir a miséria noutra edição, pois aquilo não se reeditaria. Eu próprio dissera ao editor que ele não venderia cem. (MC, vol. 2, p. 243).
É constante o descontentamento do autor com os próprios textos, o que
pode parecer uma justificativa pelo fato de não ter havido tempo de concluir o
livro como gostaria. A presença do romance nas Memórias aparece talvez
como uma tentativa de correção ou conclusão. Em “A figura da grade”, Marcos
Falleiros aborda toda a obra de Graciliano Ramos, mostrando que o conflito
entre o sujeito e o mundo está representado na figura da grade e que a
linguagem já é o primeiro cárcere nesse autor. :
A linguagem é a grade entre o sujeito e mundo, desenhando com a mancha tipográfica de seus textos a seco um contorno de prisão e proteção, em cujo fundo escuro se encontra a autoria: ir ao dicionário é uma das formas de estancar a fluidez do discurso, que carrega, na embrulhada do contexto, gato por lebre, e a intenção a-histórica da gramática quer se sustentar na lógica de um logos primordial.102
No caso de Angústia, não é a experiência da prisão que invade o texto,
102 FALLEIROS, Marcos Falchero. A figura da grade. In: Teresa, revista de literatura brasileira, nº 3, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, FFLCHA – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 237-251.
84
mas o contrário, o próprio romance é recorrente nas memórias como forma de
catarse. Preencher as lacunas que ficaram, expurgar os idéias e sentimentos
que não foram bem ditos. Recuperar o romance nas lembranças da prisão foi
também um meio de se livrar do fantasma da palavra perdida e a dúvida sobre
a recepção da leitura. Os comentários da crítica eram limitados, não atingiam a
profundidade do romance. Observando apenas a estrutura do romance, muitos
ainda não percebiam a poesia contida nesse romance:
Arriscara-me a fixar a decadência da família rural, a ruína da burguesia, a imprensa corrupta, a malandragem política e atrevera-me a estudar a loucura e o crime. Ninguém tratava disso, referiam-se a um drama sentimental e besta em cidade pequena. (MC, vol. 2, p. 244).
Retorno ao pensamento Gramsciano para explorar essa questão. Nos
Cadernos, o escritor italiano faz uma leitura crítica do Canto X do “Inferno”, na
Divina Comédia103. Nessa análise, o autor destaca a figura de Cavalcante e o
seu drama de não poder conhecer a situação do filho Guido Cavalcanti. A
crítica de Benedetto Croce problematizava a estrutura (— o que as almas
podem saber e ver sobre o mundo dos vivos?). Refutando um dos pilares da
teoria de Croce, que separava a estrutura da poesia, para Gramsci, esse canto
mostra que o drama de Cavalcante é importante tanto do ponto de vista
estético quanto do ponto de vista estrutural, porque, na realidade, a estrutura é
também poesia. A pena de Cavalcante é de poder ver o passado e o futuro,
mas não o presente, por isso pergunta pelo filho. Usando o verbo ‘’desdenhou’’
103 Dante ingressa no sexto círculo do inferno, conduzido por Virgílio, onde estão os condenados por heresia, e em particular, os epicuristas. Dante demonstra interesse em conversar com seu conterrâneo Farinata, um líder gibelino, que, ouvindo o poeta falar em florentino, dirige-se a ele, sendo logo informado de que Dante, um guelfo branco, é seu adversário político. Durante esse diálogo, ergue-se de sua tumba incandescente outro florentino, Cavalcante, cujo filho, Guido, é um poeta ateu, amigo de Dante. Surpreso por não ver Guido ao lado de Dante, Cavalcante pergunta: “Meu filho onde está? Por que não está contigo?” E o poeta responde: “Não vim por vontade minha. Esse [Virgílio] que me espera é meu guia, a quem vosso filho Guido desdenhou.” Diante dessa resposta, Cavalcante retruca: “Por que disseste que meu filho ‘desdenhou’? Ele não vive mais? Não mais a doce luz solar ofusca seus olhos?” Tardando a resposta de Dante, Cavalcante caiu de costas e não mais apareceu. Farinata, enquanto isso, não muda o semblante, não abaixa a cabeça, não dobra a coluna. Informa a Dante sobre o exílio político do poeta e a condição dos condenados: eles vêem o passado e o futuro, mas não vêem o presente. Isso explica o sofrimento de Cavalcante. Cf. DANTE, Alighieri. La Divina Comedia. Milano: A. Mondadori, 1966. p. 40-43.
85
no passado, o pai subentende que o filho está morto. “Como Dante representa
este drama? Ele o sugere ao leitor, não o representa; fornece ao leitor os
elementos para que o drama seja reconstruído e estes elementos são dados
pela estrutura.” (CC, vol. 6, p. 18).
Sobre esse assunto, Gramsci envia, através da cunhada Tatiana, carta
ao Professor Cosmo, professor de Literatura da Universidade de Turim, em 21
de setembro de 1931:
É estranho que a hermenêutica dantesca, embora minuciosa e bizantina, jamais tenha notado que Cavalcante é o verdadeiro punido entre os epicuristas das tumbas incandescentes, aquele que é punido com uma punição imediata e pessoal. [...] A lei de talião aplicada a Cavalcante e Farinata é a seguinte: por terem querido ver o futuro, eles (teoricamente) são privados de conhecimento das coisas terrenas por um tempo determinado, ou seja, eles vivem, num cone de sombra de cujo centro vêem o passado, até um certo limite. Quando Dante se aproxima dos dois, a posição de Dante e de Farinata é a seguinte: eles vêem Guido vivo no passado, mas o vêem morto no futuro. Mas naquele momento, Guido está vivo ou morto? [...] O drama direto de Cavalcante é rapidíssimo, mas de enorme intensidade. [...] Na primeira parte do episódio, o ‘desdém de Guido’ torna-se o centro de todos os fabricantes de hipótese e de contribuições, enquanto na segunda parte, a previsão de Farinata sobre o exílio de Dante absorveu a atenção.104
Nessa carta, Gramsci buscava a opinião do professor para saber se sua
análise tinha fundamento e se poderia desenvolver o assunto “para passar o
tempo”. Apesar de ter seus estudos sobre a literatura ainda pouco explorados,
essa análise minuciosa de Gramsci sobre o clássico italiano, mostra-nos sua
superação até mesmo em relação à crítica da época. Observando num
elemento aparentemente irrelevante da forma, Gramsci compreende que A
Divina Comédia era política não somente pelo conteúdo, mas também pela
estética. Sua análise literária é única e ampla, pois não dicotomiza a estrutura
da poesia, mas vê que na arte estão sempre acopladas. Da mesma forma,
mesmo quando criou Luís da Silva com suas obsessões e deu-lhe a memória
para narrar, Graciliano foi sempre político. O novelo entrelaçado de presente,
passado e sonho na mente do personagem é organizado também para isso.
104 GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Op. cit., p. 238.
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O assassinato de Julião é a representação máxima do fim da burguesia.
No trecho em que narra o crime, demonstra a efervescência dos sentimentos
mais obscuros do homenzinho de vida regrada. Para o leitor fica a impressão
de que a cena não concluirá nunca. O prolongamento desse clímax contém a
queda da vítima, mas também a construção de um novo homem, que
finalmente se rebela de forma mais concreta, numa expressão de violência, já
tão banalizada atualmente:
O corpo de Julião Tavares ora tombava para frente, ora se inclinava pra trás e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes. Tinha-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros.105
Apesar de não se conformar com o mundo, o personagem de Angústia
não tem coragem de travar um confronto direto com ele: “Quando avisto essa
cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um
rato exatamente” (p. 8). A figura do rato demonstra a sua impotência diante das
hipocrisias e futilidades que detestava, às quais não consegue se opor de
maneira concreta. É assim com a namorada que o trai, com o Julião Tavares
que lhe toma a mulher desejada, e, até mesmo, com a empregada que lhe
rouba, sem que ao menos consiga tomar uma atitude.
O prisioneiro também tem essa debilidade diante do mundo, sua
habilidade estava ‘limitada’ a escrever. Poderia ocasionar mudanças no mundo
através desse ato:
Realmente não me envolvera em nenhum barulho, limitara-me a conversas e escritas inofensivas, e imaginara fica nisso. A convicção de própria insuficiência nos leva a essas abstenções; um mínimo de honestidade nos afasta das empresas que não podemos realizar direito. Mas as circunstâncias nos agarram, nos impõem deveres terríveis. Sem nenhuma preparação, ali me achava a embrenhar-me em dificuldades, prometendo mentalmente seguir o caminho que me parecia razoável. (MC, vol.1, p. 84).
105 RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p. 182-183.
87
A fraqueza do encarcerado é acompanhada sempre da modéstia,
entretanto as atitudes comedidas são sua força diante do desajuste do mundo.
O meu companheiro Mata ia muito além: confessava-me a sua ignorância em revolução (fora preso injustamente, não se cansava de afirmar isto), considerava-me um técnico neste assunto e pedia-me que o instruísse com rapidez. Se me acontecia alegar incompetência, achava-me discreto e modesto. (MC, vol.1, p. 81).
2 – A Terra dos meninos pelados (1937)
Após sair da prisão, com poucos recursos financeiros, Graciliano Ramos
precisava escrever para jornais e conseguir sobreviver. O escritor e amigo,
José Lins do Rego, sugere que participe do concurso de literatura infantil
promovido pelo Ministério da Educação. Nesse contexto de preocupação,
surge Raimundo Pelado. Em carta de 11 de abril de 1937, sempre desconfiado,
escreveria à sua esposa, Heloísa de Medeiros Ramos:
Por falar em prêmio, o negócio do Ministério da Educação está sendo lido. [...] Certamente os meus meninos pelados se enterram. É bom. Você ficaria satisfeita se eles conseguissem o terceiro lugar. É melhor não terem coisa nenhuma. Um terceiro lugar seria um desastre. E não acredito que paguem estes prêmios. Convém não pensar nisso. (p. 197).
Obtendo o terceiro lugar no concurso, mostrava aos leitores um livro
infantil que encanta inclusive os adultos. Nesse conto infantil, o menino
Raimundo possui diferenças estéticas do padrão de beleza: é careca e tem um
olho preto e outro azul. Por causa disso, é rejeitado por todos os seus
conhecidos e ainda também suporta os apelidos dos amigos. “— Ó pelado!
Tanto gritaram que ele se acostumou, achou o apelido certo, deu para assinar
a carvão nas paredes: Dr. Pelado. Era de bom gênio e não se zangava. (p.
104)106. Sua defesa era fechar um olho de cada vez, como se quisesse fugir do
mundo. O personagem do conto infantil é visto por Clara Ramos como “uma
106 RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. In: Alexandre e outros heróis. 19ª. ed. São Paulo: Martins, 1980.
88
personalidade dupla em processo de adaptação”107, pois tanto a aparência do
personagem central como as humilhações sofridas por ele remetem ao
sofrimento do autor encarcerado, que teve a cabeça raspada na prisão.
Como não tinha com quem conversar, o menino fala sozinho e, numa
dessas fugas de fechar o olho direito e depois o esquerdo, vai parar num lugar
mágico chamado Tatipirun. No quintal de casa, onde o menino brinca à
vontade, é que ascende o mundo diferente. Em Tatipirun até as ladeiras se
abaixam para as pessoas passarem; não existem obstáculos nem violência
todos os caminhos são seguros; para dormir, basta fechar um dos olhos e o
outro fica aberto vendo tudo; a visão das coisas é sempre adiante; não existem
casas e as pessoas dormem na rua; não há noite nem chuva; ninguém adoece,
nem envelhece; os animais não mordem e os meninos não fazem brincadeira
de bandido. Quando conversa com a aranha vermelha, a representante da
indústria de tecidos, Raimundo percebe que até as roupas são formas de
cadeias:
— Boa tarde, d. Aranha. Como vai a senhora? — Assim, assim, respondeu a visitante. Perdoe a curiosidade. Por que é que você põe esses troços em cima do corpo? — Que troços? A roupa? Pois eu havia de andar nu, d. Aranha? A senhora não está vendo que é impossível? — Não é isso, filho de Deus. Esses arreios que você usa são medonhos. Tenho ali umas túnicas no galho onde moro. Muito bonitas. Escolha uma. — Raimundo chegou-se à árvore próxima e examinou desconfiado uns vestidos feitos daquele tecido que as aranhas vermelhas preparavam. Apalpou a fazenda, tentou rasgá-la, chegou-a ao rosto para ver se era transparente. Não era. — Eu nem sei se poderei vestir isto, começou hesitando. Não acredito... — Que é que você não acredita? Perguntou a proprietária da alfaiataria. — A senhora me desculpe, cochichou Raimundo. Não acredito que a gente possa vestir roupa de teia de aranha. — Que teia de aranha! Rosnou o tronco. Isso é seda e da boa. Aceite o presente da moça. — Então muito obrigado, gaguejou o pirralho. Vou experimentar. — Escolheu uma túnica azul, escondeu-se no mato e, passados minutos, tornou a mostrar-se, vestido como os habitantes de Tatipirun. Descalçou-se e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva.108.(grifo meu).
107 RAMOS, Clara. Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 164. 108 Ibidem, p. 112.
89
Trocando as roupas e sandálias apertadas por túnicas soltas e leves,
Raimundo desfruta da liberdade de viver naturalmente. Ficar descalço era ser
livre também de qualquer amarra social.109
Em carta à esposa, Giulia Schucht110, Gramsci também demonstra
interesse pela educação dos filhos de um modo mais tranqüilo e sem tanta
superproteção:
Uma das coisas que mais me interessaram na sua carta de 8/13 de agosto foi a notícia que Delio e Giuliano se empenham em pegar rãs. Há alguns dias vi citado num artigo de revista uma apreciação de lady Astor sobre o modo como na Rússia são tratados os meninos. [...] Ao que parece pelo artigo, a única crítica que lady Astor faz ao tratamento dado aos meninos é esta: que os russos mostram-se de tal modo preocupados em manter limpas as crianças, que nem sequer lhes dão tempo para se sujar.
Gramsci continua explicando o artigo da revista, em que o autor
questiona: “Mas o que é que será desses meninos quando estiverem crescidos
o suficiente para que se torne impossível obrigá-los a tomar banho?”.
Acreditando ser importante na educação das crianças o contato direto e
espontâneo com a natureza, Gramsci antecipa duas formas de violência: uma é
de não deixá-los livres para depois obrigá-los à limpeza forçada:
Parece que ele pensa que uma vez tornada impossível a coerção, os meninos não farão mais que se espojar programaticamente na lama como reação individual-liberal ao autoritarismo de que são atualmente vítimas. De qualquer modo, parece-me que Delio e Giuliano têm alguma oportunidade de se sujar caçando rãs. Gostaria de saber se se trata ou não de rãs comestíveis, o que daria à sua atividade um caráter prático e utilitário não desprezível. 111
109 Philippe Ariès explica que na Idade Média não havia distinção entre os trajes dos adultos e das crianças e que as roupas somente demonstravam a classe social das pessoas. A partir do século XVII é que surge a diferença no modo de se vestir, mas apenas para as crianças burguesas, pois as do povo continuariam a se vestir como adultos. Isso ocorreu pela mudança de visão sobre a infância. Na verdade, as crianças passaram a utilizar as roupas que caíram em desuso pelos adultos como forma de serem adornadas, ou seja, os infantes tornaram-se uma espécie de bibelô para o mundo adulto, mesmo que as vestimentas não fossem tão confortáveis e sufocassem os pequenos. (Cf. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981); Walter Benjamin também comenta sobre essa questão, pois somente no séc. XIX haverá a emancipação dos infantes no vestir, sem que sejam tratados como adultos em miniaturas. (Cf. BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades, Ed.34, 2002. p. 86). 110 Gramsci teve dois filhos com Giulia Schucht: Delio (1924) e Giuliano (1926), o segundo ele não chegou a conhecer. 111 GRAMSCI, Antonio. Cartas. ed. cit., p. 220.
90
Em Memórias do cárcere, o narrador também representa a prisão
através da vestimenta:
Ignoro onde me escondi para mudar a roupa. Na véspera, dentro da escuridão leitosa, ter-me-ia podido arranjar facilmente. Fugindo às luzes do centro, buscando as margens obscuras onde fervilham sombras vivas, teria conseguido meio de arrancar do corpo os medonhos constrangimentos de lã, insuportáveis naquela temperatura. Com o dia, a vista habituando-se na indecisa claridade que vinha das aberturas superiores e laterais, todos os recantos se devassavam. Pouco a pouco me livrei das peças incômodas, tirei a gravata, o colarinho, o paletó, enquanto prosseguiam a conversa com Miguel Bezerra, iniciada a noite, interrompida muitas vezes. (MC, vol. 1, p. 139)
Até mesmo o processo de criação do texto é um momento de
aprisionamento comparado ao vestuário. É preciso manter, elaborar e vestir as
idéias para tecer o texto. Não deixar passar a idéia, não fazer escapar a
palavra mais precisa naquele momento eram preocupações do escritor:
“Sempre compusera lentamente: sucedia-me ficar diante da folha muitas horas,
sem conseguir desvanecer a treva mental, buscando em vão agarrar algumas
idéias, limpá-las, vesti-las;” (grifo meu), (MC, vol. 1, p. 97).
Por outro lado, o narrador despreza também a formalidade que a roupa
pode representar. É notório muitas vezes o juízo aversivo às armas e ao
militarismo arrogante. Quando é levado para o 20º Batalhão, critica a aparência
impecável dos militares e a superficialidade dessa precisão com particular
sarcasmo:
Eram possivelmente integralistas aqueles viventes miúdos, de rostos inexpressivos, quase microcéfalos. Esse caso me insinuou, a respeito da disciplina militar, uma opinião, talvez falsa, que ainda hoje conservo. Nela o rigor é superficial, imagino. Indispensável estarem os sapatos cuidadosamente engraxados, os fuzis brilhantes à custa de lixa e azeite, os colarinhos mais ou menos limpos, todos os botões metidos nas casas, os espinhaços tesos. As pernas direitas devem mover-se simultaneamente, depois as pernas esquerdas, e nenhum dedo se afasta dos outros na continência. É preciso olhar vinte passos em frente, e os passos, em conformidade com a marcha, têm o mesmo número de centímetros. Certo, há outros deveres, mas desse gênero, tendentes à mecanização do recruta. Decoradas certas fórmulas, aprendidos os movimentos indispensáveis, pode o soldado esquecer obrigações, até princípios morais aprendidos na vida civil. O essencial é ter aparência impecável. (MC, vol. 1, p. 77).
91
A marcha robótica dos soldados mostra o comportamento condicionado
pela ordem. Criticando essa ordem da aparência impecável, em que os valores
estão no vestir, o narrador aprofunda a análise sobre aqueles essenciais e que
são esquecidos. Imaginando a falta do acessório, o soldado seria capaz de
pegar o do companheiro para não ser punido. Além de passar o outro para trás,
ainda fingiria falsa obediência ao superior:
Desapareceu-lhe o cinturão? Falta grave, embora ele em vão remexa os miolos para saber como a desgraçada correia sumiu. É obrigado a apresentar-se com ela na formatura. Com ela ou com outra qualquer. Nesse ponto, convém desapertar, isto é, agarrar o cinturão do vizinho, que sendo inábil, será punido, pois o maior defeito do soldado é a de ser besta. Desenvolvem-se a dissimulação, a hipocrisia, um servilismo que às vezes oculta desprezo ao superior, se este se revela incapaz de notar a fraude tacitamente lhe oferece conivência. (MC, vol. 1, p.77).
Esse mundo de simulação, tão desprezado pelo autor, é presente no
conto infantil, em que a aparência diversa de Raimundo é o seu maior
obstáculo entre os companheiros. Se trouxermos para a atualidade, sabemos
que muitas crianças estão excluídas como o menino careca, não somente
pelas diferenças físicas, mas até por motivos banais que o consumismo cria,
que pode ser a roupa da moda, o celular mais novo ou o brinquedo do
momento. Quando ainda nem se usava o termo bulliyng, o escritor já havia
sentido o que significa ser excluso de um grupo e estar às “margens
socialmente. Raimundo é perseguido e torturado pelos verbos “bulir”, “mexer”,
“mangar”, “caçoar”112 usados com freqüência pelos amigos.
O menino careca queria que os outros mudassem para se sentir igual:
todos deveriam ter pintas vermelhas no rosto. Essa transformação do mundo
era o desejo de poder ser ele mesmo, sem sofrer o julgamento dos amigos.
Embora lugar do sonho, em Tatipirun nem sempre tudo foi perfeito.
A sociedade que se transformou dessa maneira havia sido igual ao mundo real
de Raimundo. A evolução utópica de chegar a esse nível de convivência é
explicada pela laranjeira:
112 Osman Lins vê em Tatipirun uma imagem do Nordeste e a linguagem regional no conto seria responsável por essa representação. Cf. LINS, Osman. “O mundo recusado, o mundo aceito e o mundo enfrentado”. In: RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. São Paulo: Record, 1980. (Posfácio).
92
— Em Tatipirun ninguém usa espinhos, bradou a laranjeira ofendida. Como se faz semelhante pergunta a uma planta decente? — É que sou de fora, gemeu Raimundo envergonhado. Nunca andei por estas bandas. A senhora me desculpa. Na minha terra os indivíduos de sua família têm espinhos. — Aqui era assim antigamente, explicou a árvore. Agora os costumes são outros. Hoje em dia o único sujeito que ainda conserva esses instrumentos perfurantes é o espinheiro-bravo, um tipo selvagem de maus bofes. Conhece-o? (p. 106). 113
Mais uma vez a ironia de Graciliano Ramos é utilizada para mostrar que
a violência está relacionada às sociedades mais primitivas e menos
desenvolvidas. Lembrando as torturas aos presos capturados no Levante
Comunista, nos mostra o meio antigo e violento de resolver diferenças:
Falavam-me também num terceiro chefe da sedição, o mais importante, conservado em Natal por não se poder ainda locomover: seviciado em demasia, agüentara pancadas no rim e, meses depois da prisão, mijava sangue. Arrepiava-me pensando nisso. Achava ali diante de criaturas supliciadas e, conseqüentemente, envilecidas. A minha educação estúpida não admitia que um ser humano fosse batido e pudesse conservar qualquer vestígio de dignidade. [...] Mas surra — santo Deus! — era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-de-mato. (MC, vol. 1, p. 141).
Em Tatipirun não há referência a colégios, entretanto todas as pessoas
são educadas e gentis. A lição de geografia é sempre lembrada por Raimundo
como obrigação urgente. Embora pense sempre na escola, ele não vê razões
para freqüentá-la. Na dúvida entre a obrigação e a diversão, o menino lamenta:
“Esse lugar é ótimo. Mas acho que preciso voltar. Preciso estudar a minha lição
de geografia.” (p.112). Como tantos alunos, disciplinados a memorizar
conteúdos e repetir conceitos, Raimundo busca na ciência um nome bonito
para o gato. Ao menos para isso poderia ser importante, sem pensar com
autonomia sobre o porquê de estudar: “— Não tem nome não. Mas eu vou
botar um nome nele. — Bote Pirundo, sugeriu Talima. — Boto nada! Vou
procurar um nome bonito na geografia.” (p.124). Sua despedida do mundo
mágico de Tatipirun confirma seu retorno ao dever de casa, com a mesma
113 RAMOS, Graciliano. A Terra dos meninos pelados. In:Alexandre e outros heróis. São Paulo: Record, 1980, p. 106.
93
ausência de antes:
— Não posso, gemeu Raimundo. Eu queria ficar com vocês, mas preciso estudar minha lição de geografia. — É necessário? — Sei lá! Dizem que é necessário. Parece que é necessário. Enfim... não sei. (p.130). Raimundo, apesar de encontrar o lugar mágico, pensa em retornar para
a lição de geografia, que pretensamente vai lhe ensinar os lugares oficiais. O
menino careca também retoma o menino Graciliano quando descobre a
literatura, e escondia os folhetins atrás do atlas, fugindo de uma de suas
primeiras prisões – a rotina escolar arcaica.
Poderíamos também retomar o discurso de Gramsci sobre a importância
da escola em formar uma nova hegemonia. Ou ainda sua proposta de escola
unitária114, que tende a criar valores fundamentais do humanismo,
autodisciplina intelectual e a autonomia moral, necessários a um
desenvolvimento equilibrado entre a capacidade de trabalho científico e
intelectual, como também do trabalho de caráter prático-produtivo.
O estudo e o aprendizado dos métodos criativos na ciência e na vida devem começar nesta última fase da escola, não devendo ser mais um monopólio da universidade ou ser deixado ao acaso da vida prática: esta fase escolar já deve contribuir para desenvolver o elemento de responsabilidade autônoma dos indivíduos, deve ser uma escola criadora. (CC, vol. 2, p. 39)
Entretanto, creio que suas contribuições para o estudo social da
educação já foram bastante discutidas. Sendo assim, preferimos destacar
apenas suas idéias sobre a educação dos próprios filhos, de acordo com as
cartas que escrevia da prisão. Nesta carta, de 16 de junho de 1936, Gramsci,
com muito afeto e clareza, chama a atenção do filho mais velho (na época com
doze anos) para empenhar-se mais na escrita, estimulando-o a pensar e
organizar as idéias de modo mais consistente.
114 Contrária à divisão da escola em clássica (destinada às classes dominantes) e profissional (para classes instrumentais).
94
Caro Delio, Os seus bilhetinhos tornam-se sempre mais curtos e estereotipados. Creio que você tem bastante tempo para escrever mais demoradamente, e de modo mais interessante; não há nenhuma necessidade de escrever no último momento, às pressas, antes de ir brincar. Não acha? Também não creio que lhe agrade que o seu pai julgue-o pelos seus bilhetinhos como um bobão que só se interessa pela sorte do seu periquito e que manda dizer estar lendo um livro qualquer. Acho que uma das coisas mais difíceis na sua idade é ficar sentado diante de uma mesa para pôr em ordem os próprios pensamentos (ou para pensar mesmo), e para escrevê-los com certo garbo; esta aprendizagem torna-se às vezes mais difícil que a de um operário que quer adquirir uma qualificação profissional, e deve começar justamente na sua idade. Abraço-o forte. 115
Nas cartas seguintes a essa fica implícita a incompreensão da esposa.
Gramsci responde com racionalidade, justificando o quanto é importante para a
criança fazer leituras e ter orientação escolar que não induzam a uma fantasia
mítica e pseudocientífica, propondo uma formação cultural realista:
Creio que será sempre preciso levar os escolares a um caminho que permita o desenvolvimento de uma cultura sólida e realista, depurada de quaisquer elementos de ideologias antiquadas e estúpidas capaz, portanto, de permitir a formação de uma geração que saiba construir a sua vida e a vida coletiva de modo sóbrio. 116
Além disso, Gramsci trata o filho como um ser humano e não como um
bibelô, como demonstração de valor e estima :
Procurei obter estas informações dele mesmo, tratando-o como se tivesse uma personalidade formada e nisto não creio ter me enganado; creio que um menino fica mais contente por ser tratado como alguém de personalidade formada do que como um eterno brinquedo para os grandes e que isto os alegra muitíssimo por todos os pontos de vista.117
3 - Vidas secas (1938)
Após a saída de prisão, Graciliano decide permanecer no Rio de Janeiro
e sobreviver com a Literatura. Em carta à mulher, escreve:
115 GRAMSCI, Antonio. Cartas. ed. cit., p. 372. 116 Ibidem, p. 380. 117 Idem.
95
Escrevi um conto sobre a morte de uma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma de uma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás. 118
Apertado em um quarto de pensão, com a mulher e as filhas, escreve a
história de Fabiano, Sinha Vitoria, os dois filhos e a cachorra Baleia. Estudando
o interior dos personagens, apreende a alma do sertanejo e suas reações
diante do mundo. O vocabulário limitado das pessoas mostra o processo de
desumanização que a as injustiças sociais podem causar em contrapartida com
a sensibilidade da cachorra Baleia, que é tão humana ou até mais que os
outros personagens.
Tento saber o que eles têm por dentro. Quando se trata de bípedes, nem por isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior de uma cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande como sondar o espírito de um literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, com os olhos. Agora é diferente. O mundo exterior revela-se a minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho de péssimo faro. 119
O próprio Graciliano120 analisa o romance de um prisma histórico, em
que a mulata sinha Vitória e o alourado Fabiano em plena ascensão do
fascismo, com o mito de superioridade racial ariana, ela cafuza e inteligente a
dirigir o marido branco e bruto.
Para esta análise, destaco o capítulo “Cadeia”, onde Fabiano deveria
comprar mantimentos na mercearia de Seu Inácio, mas encontra um soldado
que o intima para o jogo de cartas. Obedecendo à autoridade, o sertanejo
aceita participar do jogo e perde o dinheiro que estava reservado para as
compras. No abuso de poder, o soldado amarelo incita uma briga que vai levar
Fabiano para a cadeia. Nesse trecho, são três figuras de poder e respeito para
118 RAMOS, Graciliano. Cartas. ed. cit., p. 201. 119 Ibidem. 120 RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. op. cit. p. 106.
96
Fabiano, a primeira é seu Inácio, o proprietário da bodega, que, a seu modo e
nas limitações do contexto, é privilegiado pelo poder econômico;
Por que seria que seu Inácio botava água em tudo? — perguntou mentalmente. Animou-se e interrogou o bodegueiro: — Por que é que vossemecê bota água em tudo? Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calçada, resolvido a conversar. (p. 14) 121
A outra é seu Tomás da Bolandeira, que representa os intelectuais e têm
respeito pelo seu nível cultural:
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam? (p.14) O vocabulário dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomás da bolandeira. Pobre de seu Tomás. Um homem tão direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomás era pessoa de consideração e votava. (p. 11) 122
O soldado é a figura representante do estado, a quem Fabiano obedece
resignado e conformado:
Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: — Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro? Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: — Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer Enfim, contanto, etc. E conforme. Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e andava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia. (p. 14).
Fabiano não sabe se defender com as palavras. Para ele, são
instrumentos inalcançáveis e isso o deixa sempre mais longe do mundo. Como
não sabe elaborar um discurso, acaba sempre obedecendo. Na caatinga, seu
habitat natural, sabe se defender e comunicar, mas, na cidade, a linguagem é
121 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 45. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980. 122 Ibidem.
97
um abismo entre si e todas estas figuras que lhe transmitem o dever de
obediência. Aqui, Graciliano Ramos, ex-presidiário, dá voz ao sertanejo
excluído e marginalizado. Empresta seu discurso àquele que é o mais sofrido
no moinho do capitalismo, mas para ser verossímil, ele prefere manter-se como
narrador. Nas palavras de Zenir Campos Reis:
Não nos enganemos, porém: o convívio, com tudo que ele implica, a partilha do pão, da esteira de dormir, do sofrimento comum, do destino comum, fabrica companheiros, camaradas, mas não dissolve as diferenças. Vidas Secas, narrado em terceira pessoa, respeita esse intervalo. 123
Falando sobre a prisão de Prestes nas Memórias do cárcere, analisa a
Coluna Prestes (1925-1927) e sua ineficácia diante do gigante de problemas
que é a sociedade dividida. Realmente, nessa época o jovem “Cavaleiro da
Esperança” não tinha clareza de seus objetivos, e iria maturar mais tarde sua
adesão ao comunismo:
Mas essa estranha figura de apóstolo disponível tinha os olhos muito abertos, examinava cuidadosamente a vida miserável das nossas populações rurais, ignorada pelos estadistas capengas que nos dominavam. Defendia-se com vigor, atacava de rijo; um magote de vagabundos em farrapos alvoroçava o exército, obrigado a recorrer aos batalhões patrióticos de Floro Bartolomeu, ao civismo de Lampião. Que significava aquilo? Um protesto, nada mais. Se por milagre a coluna alcançasse vitória, seria um desastre, pois nem ela própria sabia o que desejava. Sabia é que estava tudo errado e era indispensável fazer qualquer coisa. Já não era pouco essa rebeldia sem objetivo, numa terra de conformismo e usura, onde o funcionário se agarrava ao cargo como ostra, o comerciante e o industrial roíam sem pena o consumidor esbrugado, o operário se esfalfava à toa, o camponês agüentava todas as iniqüidades, fatalista, sereno. (grifo meu) (MC, vol. 1, p. 82).
A descrição do apóstolo salvador do início do parágrafo se desfaz com o
tipo de organização social vigente, de exploração e individualismo, sem luta
preparada, que comprime cada vez mais o camponês. No trecho acima,
Fabiano já estava esboçado: fatalista e sereno, obediente e submisso. A sua
desumanização não é somente causada pelo sistema, mas também pela
experiência do autor com os seres desumanizados na prisão. Sem a adesão
123 REIS, Zenir Campos. In: DUARTE, Eduardo de. (Org.). Graciliano Revisitado. Natal: UFRN/CCHLA, 1995. P. 41.
98
cega ao Partido, o narrador pessimista sabe que não existem mudanças
sociais se elas não ocorrerem dentro de próprio homem. Como bem disse
Gramsci sobre a mudança na sociedade italiana:
De resto as debilidades são evidentes: a primeira consiste na convicção de que ocorreu uma radical mudança popular-nacional; se ocorreu, isso quer dizer que já não se trata mais de fazer nada radical, mas apenas de “organizar”, educar; quando muito fala-se de “revolução permanente”, mas com significado restrito, na costumeira acepção de que toda vida é dialética. Com efeito, podem revelar-se apenas depois de uma análise exata da composição social italiana, da qual fica evidente que a grande massa dos intelectuais pertence àquela burguesia rural cuja posição econômica só pode ser mantida se as massas camponesas forem espremidas até a medula. Quando fosse necessário passar das palavras aos fatos concretos, isto significaria uma destruição radical da base econômica destes grupos intelectuais. (CC, vol. 6, p. 242).
Apesar de surgir de um meio pequeno-burguês, o narrador das
Memórias desceu ao nível dos “bichos do subterrâneo” para experimentar o
sofrimento dos mais simples e modificar-se mais ainda em relação ao
capitalismo. Tanto que seus sertanejos não são caricaturas, mas são seres
com todos as problemáticas que envolvem os homens. Ele não cria tipos, mas
mostra os sentimentos reais do retirante que sofre e é humilhado por um
soldado amarelo.
Gramsci criticava os escritores que não escreviam sobre o fenômeno da
emigração italiana, mas também por não valorizarem a representação dos
problemas sociais que levavam à emigração:
Que os literatos não se ocupem do emigrado no exterior deveria surpreender menos do que o fato de que não se ocupem dele antes que emigre, das condições que o obrigam a emigrar; ou seja, que não se ocupem das lágrimas e do sangue que já na Itália, ainda antes que no exterior a emigração em massa (CC, vol. 6, p. 128).
Graciliano conseguiu, tanto na ficção quanto no memorialismo, cumprir
bem essa tarefa de mostrar as mazelas do povo nordestino e a aflição dos
mais esquecidos:
Os nossos interesses se fixavam no nordeste, o sangue e as observações – os filhos, a terra plana, poeirenta e infecunda. Tudo pobre. Não seria mais
99
conveniente obrigarem-nos a cavar açudes ou ensinar o bê-a-bá aos meninos empalamados? Os nossos músculos renderiam pouco, os nossos cérebros entorpecidos eram como limões secos; com esforço espremeríamos da carne e dos nervos alguma coisa – e enfim teríamos a certeza de não sermos uns miseráveis parasitas imóveis. Onde estava a nossa utilidade? Para que servíamos? [...] Lá fora tínhamos funções, representamos de qualquer modo certo valor. Pelo menos julgávamos representar. Agora nos faltava o mínimo préstito, e o pior é que sabíamos isto (MC, vol. 1, p. 116).
O escritor sabia de seu papel, então, por isso, sua voz é também a de
Fabiano. A sensação de inutilidade do trecho acima é mais uma contribuição à
causa do camponês, apesar de que seu trabalho não é físico, mas intelectual.
Gramsci criticou Alessandro Manzoni (1785-1873), em I promessi sposi (1841),
pela sua caricatura dos elementos populares.
Manzoni quis fazer um romance de humildes, mas isso tem um significado mais complexo.[...] Entre Manzoni e os humildes, há distanciamento sentimental; os humildes são para Manzoni um problema de historiografia, um problema teórico que ele acredita poder resolver com o romance histórico, com o verossímil do romance histórico. Por isso, os humildes são freqüentemente apresentados como caricaturas populares, com benevolência irônica, mas irônica. E Manzoni é demasiadamente católico para pensar que a voz do povo é a voz de Deus: entre o povo e Deus, está a igreja, e Deus não se encarna no povo, mas na Igreja. A crença que Deus se encarna no povo pode ser a de Tosltoi, não a de Manzoni. (CC, vol. 6, p. 247).
Para o crítico Antonio Gramsci, a obra de Manzoni não era popular
porque o povo estava sentimentalmente afastado de seus personagens
humildes. Daí não ser uma obra popular, mas obra de devoção e admiração, o
que não significa ser uma verdadeira epopéia popular. Caso contrário é o de
Fabiano, que não apenas representa o povo, mas é pleno dos sentimentos dos
mais humildes. A experiência da prisão talvez tenha aproximado o autor mais
ainda do mundo dos miseráveis..
Na briga com o soldado amarelo, mais uma vez o cárcere nos aparece
com a prisão de Fabiano sem motivo real:
E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir. — Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?
100
Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro. — Isso não se faz, moco, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente. O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. (p. 16)124
Na sua única manifestação de oposição, o sertanejo é mandado para a cadeia:
Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipó de boi oferecia consolações: — Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita. (p. 17).
A fala de Fabiano, no seu mundo limitado, demonstra a superação –
apanhar do governo não é vergonha porque é sinal de que algo foi feitoforça,
de resistência. Creio que Fabiano dificilmente seria tão genuinamente
sertanejo se o autor não tivesse a sensibilidade de rastrear os anseios de sua
gente, se não tivesse visto além da fome, mas as problemáticas do ser humano
em condições de exploração física e dependência intelectual. Graciliano
representa não só o contraste sertão X cidade, mas também nordeste X sul-
sudeste, e ainda proletário X burguesia, indo mais além, contrastando
intelectual X povo. Sendo que ele mesmo, não é o contrário do povo, e sim
aquele que o retrata de modo orgânico.
4- Infância (1945)
Primeiro livro de memórias do autor, essa autobiografia relembra a infância
com todo o seu estilo – realista, sintético e denso, ao mesmo tempo. No
primeiro capítulo de Infância, intitulado “Nuvens”, o fio do novelo que inicia a
desenrolar é nebuloso, pois memória e sonho misturam-se na escrita.
124 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. ed. cit., p. 16.
101
A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou. (grifo meu) 125
Embora recorde fatos tão distantes no tempo, o narrador-personangem
justifica-se de forma contrária: não é porque o narrador tem boa memória, aliás
ele assume não ter grande memória.
Houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.126
Nas reminiscências do cárcere, o narrador também exibe ao leitor o
difícil processo de lembrar:
O cigarro era insuficiente. Vivia a encher-me de fumaça e arrancava a custo algumas linhas por dia, em letrinhas acavaladas, economizando papel, utilizando o espaço todo, para que o manuscrito fizesse um volume pequeno e pudesse esconder-se em momento de busca. [...]
Tentei alimentar-me, venci a tontura, a memória ressurgiu, o nevoeiro mental se adelgaçou e as figuras em redor se destacaram. (MC, vol. 1, p. 86-87).
Escrito no ano de sua filiação ao Partido Comunista, o engajamento
político do autor toma como ponto de partida a perspectiva da criança e o olhar
do homem maduro, cujos sofrimentos passados já não eram apenas os dos
primeiros anos, mas também a da sociedade excludente, do governo ditador,
da prisão. Com isso, ao mesmo tempo em que revela experiências individuais,
125 RAMOS, Graciliano. Infância. Rio, Record, 1981, p. 8. 126 Ibidem, Id.
102
também dá vazão à voz da minoria e do humilhado, reforçando assim seu
interesse pela sociedade. Mas entre a voz do preso e da criança existem
muitas semelhanças: são desconfiadas e perplexas.
Podemos identificar em toda a obra como é doloroso o aprendizado do
menino e que isso é normal também para os grandes. De acordo com Candido,
sobre os dois livros memorialísticos:
O narrador de Infância se encarrega de nos ensinar algumas das razões dessa cadeia necessária de sofrimentos. Os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os fracos, estão na base da organização do mundo. [...]
Memórias do cárcere é evidentemente outro universo. O adulto se empenha nas coisas do século, é preso, jogado dum canto para outro e desce a fundo na experiência dos homens. O resultado principal parece ter sido a compreensão de que estes são mais complicados e que é muito mais esfumada a divisão sumária entre bem e mal. 127
No capítulo “O cinturão”, o narrador registra o que chama de “seu
primeiro contato com a justiça”. O episódio trata da surra dada pelo pai que, ao
acordar, não encontra o cinturão e cria nisso um pretexto para exteriorizar sua
raiva pelo gado perdido com a seca. A lembrança dessa dor física e moral não
é exata, mas as reminiscências são as marcas da violência e da ferida causada
no menino:
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. 128
Na mesma seqüência de cadeia de agressão: o adulto repassa à criança
o tratamento violento que recebe na sociedade. Assim como no mundo os mais
fracos são sempre surrados, o menino sabe que o único meio de escapar da
surra é se alguém mais fraco tomasse sua culpa, certamente seria sua
salvação.
127 CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. ed. cit. , p. 54. 128 RAMOS, Graciliano. Infância. ed. cit., p. 30.
103
Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.129
O adulto Graciliano, após esse fato, já não podia mais ouvir alguém falar
alto, pois sentia bater forte o coração, comparando esse mal-estar a “pontas de
ferro que furam os tímpanos”. 130 E nas memórias da prisão escreve:
Habituara-me de fato, desde a infância, a presenciar violências, mas invariavelmente elas recaíam em sujeitos de classe baixa. Não se concebia que negociantes e funcionários recebessem os tratos dispensados antigamente aos escravos e agora aos patifes miúdos. E estávamos ali, encurralados naquela imundície, tipos da pequena burguesia, operários, de mistura com vagabundos e escroques. (MC, vol. 1, p. 142).
O convívio do pequeno burguês com os tipos mais variados de
criminosos cria a analogia com animais: “Somos animais bem esquisitos.” (MC,
vol.1, p.133); “[...] Procedíamos como bichos, segurando a comida.” (MC, vol.1,
277); “Na verdade éramos bichos. Regressávamos à condição humana,
impunham-nos um castigo – e percebíamos que era um embuste.” (MC, vol.1,
p. 304); “Bichos, vivíamos como bichos.” (MC, vol.2, p.67); O menino de
Infância já conhecia essa realidade e apenas confirma: “Datam desse tempo as
minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um
pequeno animal.”(p. 12); e ainda: “Teimava em declarar-me um animal.” (p. 71).
Na Colônia Correcional, Graciliano conhece o malandro José: “vadio e
ladrão; no começo da vida a repulsa da mãe e as sovas do padrasto haviam-
lhe fechado os caminhos direitos. Fugia de casa, voltava morto de fome,
agüentava surras, tornava a fugir. Nem escola nem trabalho”. (MC, vol. 2,
p.168). Em seguida, compara sua infância com a do ladrão: “Na verdade a
minha infância não devia ter sido melhor que a dele [José]. Meu pai fora um
violento padrasto, minha mãe parecia odiar-me, e a lembrança deles instigava-
129 Ibidem, p. 32. 130 Ibidem. Id.
104
me a fazer um livro a respeito da bárbara educação nordestina.” (MC, vol. 2, p.
169).
Mais adiante confessa sua inveja diante do malandro José, por sua
capacidade de rebelar-se:
Débil, submisso à regra, à censura e ao castigo, acomodara-me às profissões consideradas honestas. Sem essas fracas virtudes, livre de alfabeto, nascido noutra classe, talvez me houvesse rebelado como José. Não me conformava com tal espécie de rebeldia. Contudo, apesar de nos dedicarmos a ofícios inconciliáveis, a autoridade não nos diferençava. (MC, vol. 2, p. 170).
Esse adulto que já se formou num meio agreste, para completar desce
ao inferno da cadeia, então, só pode ter como conseqüência a permanente
desconfiança em relação ao mundo. Os pais eram torturadores, a escola foi a
primeira prisão, como bem disse em Infância. A surpresa em relação a
qualquer gesto de solidariedade aparece em Memórias do Cárcere muitas
vezes: no empréstimo oferecido pelo Capitão Lobo131, na cama que lhe
oferecem para repousar132, na insistência de Cubano que ele se alimente
adequadamente133, a simpatia de Nise da Silveira134. Essa dúvida no ser
humano não significa que tudo está perdido, mas expressa o quanto foi
esmagado desde o berço. Habituado à injustiça, o menino que apanha pelo
motivo fútil é o homem que vai duvidar até de um simples elogio.
No capítulo “Venta-Romba”, de Infância, Graciliano conta o caso de um
mendigo que é preso por entrar na casa da família. O narrador-personagem
une a ingenuidade do menino ao olhar crítico do adulto para traduzir o sentido
do discurso da mãe:
— Vá-se embora, meu senhor, disse a patroa.
À distância, esse tratamento de meu senhor a uma criatura em farrapos soa mal. Era assim que minha mãe se expressava dirigindo-se a qualquer desconhecido. Trouxera o hábito da fazenda, e isto às vezes não revelava polidez. Em tons vários, meu senhor traduzia respeito, desdém ou enfado. Agora, com estridência e aspereza, indicava zanga, e a frase significava, pouco mais ou menos:
131 Cf. MC, vol.1, p. 90 -93. 132 Cf. MC, vol.2, p. 171. 133 Cf. MC, vol.2, p. 139. 134 Cf. MC, vol.2, p. 228.
105
— Vá-se embora, vagabundo.135
O abuso de poder, tanto do pai quanto da mãe, em denunciar o pedinte
é mostrado pela criança com sentimentos de insuficiência por não poder
interferir, mas também pela rebeldia contida.
Eu experimentava desgosto, repugnância, um vago remorso. Não arriscara uma palavra de misericórdia. Nada obteria com a intervenção certamente prejudicial, mas devia ter afrontado as conseqüências dela. Testemunhara uma iniqüidade e achava-me cúmplice. Covardia. Mais tarde, quando os castigos cessaram, tornei-me em casa insolente e grosseiro — e julgo que a prisão de Venta-Romba influiu nisto. Deve ter contribuído também para a desconfiança que a autoridade me inspira.136
Nessa desorganização social, em que as pessoas não conseguem
convívio harmonioso porque até a miséria faz mal, o escritor nos mostra a
burguesia que se ofende em ter de dividir o mundo com pessoas marginais. O
pedantismo do pai, apenas nomeado juiz substituto naquela época, quer varrer
a pobreza, depositando Venta-Romba na prisão. A idéia de jogar a sujeira para
baixo do tapete repete-se ainda hoje, quando os presídios estão lotados,
contudo a raiz do problema se esparrama fora, que é a sociedade dividida pelo
sistema injusto. No caso de Venta-Romba, ele é que ofende por ser pobre. A
surra que leva “como se fosse um Judas em sábado de Aleluia” é só um
pormenor diante do aborrecimento que traz à família. Diante disso, o menino —
único sensibilizado com o sofrimento do rapaz — sente-se ainda cúmplice por
não ter feito nada, por ter nascido do outro lado e por saber que não pode
confiar nem mesmo nas autoridades para que essa situação mude no presente
e no futuro.
Nas memórias da infância, o autor nos fala de outra prisão vivida
anteriormente – a escola.
A escola era horrível — e eu não podia negá-la, como negara o inferno. Considerei a resolução de meus pais uma injustiça. Procurei na consciência,
135 RAMOS, Graciliano. Infância. ed. cit., p. 229. 136Ibidem, p. 235.
106
desesperado, ato que determinasse a prisão, o exílio entre paredes escuras. (p.113). O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler. (p.120)
Tanto na escola quanto com os pais a relação era perturbada. As
poucas vivências positivas eram com as pessoas mais humildes que convivia,
daí porque Graciliano se aproxima do intelectual orgânico de Gramsci. A
escolha de fazer memórias de sua infância já é em si uma aproximação do
intelectual ao povo do mundo que ele viveu. No sentido proposto por Gramsci
(Cf. CC, vol. 6, p. 263), o alagoano é popular, pois fala de sua gente sem
caricatura ou figura pitoresca, mas como elemento constitutivo de si mesmo.
Trata-se, pois, de uma posição avessa ao populismo, que trata os mais simples
como elemento inferior e caricato. Gramsci diz claramente que o literato deve
ter perspectivas necessariamente menos precisas e definidas do que o político,
que deve ser menos sectário, mas de modo contraditório. O político pensa
sempre em um devir, em fazer com que os homens se movam para alcançar
um objetivo proposto. Já o artista representa necessariamente o que é, em
certo momento (de pessoal, de não conformista) de modo realista. Por isso, o
político não será nunca satisfeito com o artista, o julgará sempre atrasado no
tempo.
5- Insônia (1947)
Composto por treze contos, este livro retoma o cárcere de forma
particular no exercício da linguagem. Usando o fluxo da consciência muitas
vezes, o narrador mistura sonho, devaneio e realidade. No conto que dá título
ao livro, a insônia é uma perseguidora do narrador-personagem. Ela o mantém
acordado e num jogo com o tempo, o texto se desenvolve na mente como um
pêndulo do relógio que vai e vem entre sono e vigília. O passar das horas
107
agonia o insone, bem como o jogo de luz e sombra na sua visão embaçada
entre o sonho e realidade. A noite que não termina é interrompida até pelo
silêncio e, dentre tantos pensamentos, está a espera do dia seguinte: “Amanhã
comportar-me-ei direito, amarrarei uma gravata ao pescoço, percorrerei as ruas
como bicho doméstico, um cidadão comum, arrastado para aqui, para acolá,
dizendo frases convenientes. Feliz, completamente feliz.”137
A insônia e outros distúrbios do sono são comuns aos presidiários. Tanto
Graciliano quanto Gramsci falam das dificuldades de repouso na prisão. O
escritor italiano conta que as constantes rondas noturnas interrompiam-lhe o
sono todos os dias, causando-lhe uma insônia crônica, que foi um dos fatores
de degeneração de sua saúde nos últimos anos do cárcere..
Transformando essa agonia dos insones em conto, Graciliano joga com
o tempo e os sentimentos no fluxo da consciência para tanto. Esse recurso vai
adiante também com outros contos do livro, como “Um ladrão” e “O relógio do
hospital”. No conto “Um ladrão”, temos a explícita referência do autor ao
criminoso conhecido na Colônia Correcional – Gaúcho. Na prisão, “As histórias
de Gaúcho afugentavam-me o sono, ser-me-ia agradável escutá-lo muitas
horas.” (MC, vol. 2, p. 118). Como as narrativas de Sherazade, separadas
apenas pelas noites e o cansaço físico que exigia o sono, Gaúcho aprisionava-
os também pelo contar de seus furtos, mas na prisão elas tem ruptura:
“Infelizmente quebravam-se: vinha o momento de recolher, éramos forçados a
calar-nos e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.” (MC, vol. 2, p.
118).
O ladrão do conto entra numa casa para furtá-la, tramando sempre
mentalmente estratégias ensinadas pelo mestre Gaúcho. Sua desgraça é
encontrar uma moça bonita que dormia descoberta, pois na vontade de beijá-
la, o ladrão põe tudo a perder no seu intento. Nelly Novaes Coelho diz que foi o
próprio inconsciente que precipitou sua tragédia. Se não tivesse olhado para a
moça linda que dormia, não cairia na prisão, como anunciou desde o início do
conto: “Se não batessem nos móveis e não dirigissem a luz para os olhos das
137 RAMOS, Graciliano. Insônia. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982, p. 17.
108
pessoas adormecidas, não cairiam na prisão, onde ganham modos necessários
ao ofício.” 138
A prisão é o lugar de aprendizado do ladrão, mas não para correção e
sim para aprimorar a arte de roubar. O mestre Gaúcho, referência nessa arte
por tanta experiência de roubo e de prisão, é recorrente no conto através dos
seus conselhos:
Convém saber mexer-se rapidamente e sem rumor, como um gato: o corpo não pesa, ondula, parece querer voar, mal se firma nas pernas, que adquirem elasticidade de borracha. (p.19); Gaúcho tinha nervos de ferro. Tirar anéis de uma pessoa adormecida! Que homem! Anos de prática, diversas entradas na Casa de Detenção. (p. 29); Homem de merecimento. E, apesar de tudo, mais de vinte entradas na Casa de Detenção, viagens à Colônia Correcional, fugas arriscadas. (p. 33).
O ladrão aprendiz embaralha-se entre o medo e o nervosismo do delito,
juntamente com os pensamentos que o confundem. :
Durante minutos, lembrou-se da escola do subúrbio e viu-se menino, triste, enfezado. A professora interrogava-o pouco, indiferente. O vizinho mal-encarado, que o espetava com pontas de alfinetes, mais tarde vira soldado. A menina de tranças era linda, falava apertando as pálpebras, escondendo os olhos verdes. (p. 24).
Esse carrossel de imagens que sobem e descem, girando na mente do
ladrão no conto, retoma também episódios da prisão — como a técnica
ensinada por Gaúcho em abrir uma porta empurrando a chave e recolhendo
com o jornal. A tentativa frustrada do ladrão iniciante é mais uma derrota criada
pelo autor: “E Gaúcho, o amigo que o iniciara, havia sido franco, era bom que
ele escolhesse ocupação menos arriscada. Mas o rapaz tinha cabeça dura:
animado por ter ou quatro experiências felizes, estava ali, rondando o portão,
como um técnico.” 139
Embora seja consciente desse tempo que ser perde com a memória, ele
assume: “Desgostou-se por estar vacilando, perdendo tempo com
138 In: BRAYNER, Sonia. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 65. 139 RAMOS, Graciliano. Insônia. ed. cit., p. 20.
109
miudezas.”140 Esse tempo perdido nada mais é que o próprio fazer do autor em
escrever suas memórias – tentar lembrar, unir seqüência, sentimentos,
exatamente seu processo de recordação da cadeia.
Rolando Morel Pinto fala sobre o cuidado de Graciliano de fugir do estilo
extravagante, da frase de grande efeito, preferindo a concisão da frase ao
extremo. O uso preponderante de orações simples, períodos coordenados
assindéticos a que o crítico distingue como Veni-vidi-vici, segundo Helmut
Hatzfeld, o estilo de notas ou de diário e as frases nominais. Esse tipo de
construção está relacionado ao rasgo psicológico de quem precisa dizer muito
em pouco tempo. O crítico afirma que esse estilo aprimora-se em Vidas Secas,
“em que as palavras estão matematicamente contadas para que nada pareça
supérfluo ou luxuoso dentro da moldura agreste em que se encaixam aqueles
infelizes.” 141 O estilo de notas ou diário caracteriza, então, a prosa do autor
depois da experiência da prisão, pois nesse tipo de construção aproxima-se à
linguagem oral e à reprodução espontânea das reações humanas. Além da
experiência jornalística do autor, conta também a condição precária, tendo de
escrever escondido em pedaços de papel. O estilo telegráfico de Graciliano
aparece nos contos de Insônia, quando faz pausa para se explicar, como quem
toma notas na prisão. As impressões desconexas em frases nominais dão a
sensação de vida real, através da simultaneidade de ações.
Essas mesmas impressões aparecem no conto “O relógio do hospital”,
no qual as badaladas do relógio cortam o pensamento do paciente. O som
repetido do relógio soa como tortura ao personagem e o pensamento
escorrega de um objeto para outro. Nas idéias diluídas confirmamos o estilo de
notas do ex-encarcerado:
Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas. (p. 49).
140 Ibidem, p. 27. 141 PINTO, Rolando Morel. Estruturas frásicas. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Graciliano Ramos, Op. cit., p. 254.
110
Outro conto de Insônia que retoma suas memórias é “A prisão de J.
Carmo Gomes”. Nesse conto, a personagem D. Aurora Gomes, filha do Major
Carmo Gomes, vive o conflito de perder a casa deixada pelo pai. O
crescimento do exército vermelho cria na mulher repulsa aos comunistas e
medo de perder a casa, se estes chegassem ao poder. D. Aurora tem a
concepção totalitária do fascismo e sobre o levante comunista de 1935 reflete:
Seria bom que as cadeias se enchessem e abarrotassem, até não haver cá fora nenhuma semente ruim. E como as sementes ruins eram as que germinavam longe da plantação verde, D. Aurora achava natural o despovoamento do país. (p. 93). As idéias morais de D. Aurora se alteravam profundamente. Eram bons os indivíduos que se achavam perto dela, eram maus os que passavam de largo. (p. 94). O irmão da protagonista, José, é comunista e, por isso, “manchava os
cabelos brancos dos avós.” Nesse personagem o próprio autor nos aparece,
pois José dividia-se em duas partes: “uma, encolhida e caseira, merecia
desprezo; a outra, que se manifestava nas folhas, tornava-se perigosa.” O
trabalho arriscado do intelectual em promover mudanças de pensamento é a
grande bomba-relógio a ser desativada por D. Aurora. Nas advertências da
professora vesga D. Aurora intimida-se: “— Os comunistas. Se essa cambada
subisse, a senhora iria trabalhar numa fábrica e calçar tamancos”; “Abra os
olhos”. Além disso, existe a vergonha de ter um parente comunista: “Teu
irmão...”. Nessa confusão, a personagem conclui que deve “salvar” o irmão, e
como a queima às bruxas na Idade Média, denuncia José para cumprir a
profecia do Major, seu pai: “Tu acabas na cadeia, José.” Nesse fato
autobiográfico, mais uma vez Graciliano transforma em literatura a sua
provável acusação por parte de parentes.
6- Viagem (1954)
Essa obra póstuma relata a viagem do escritor alagoano à
Tchecoslováquia e a URSS, para as comemorações do primeiro de maio em
111
1952. O registro quase diário desse período é iniciado com a canhestra
afirmação de quem poderia sofrer impedimentos políticos para sua realização:
Em abril de 1952 embreenhei-me numa aventura singular: fui a Moscou e a outros lugares medonhos situados além da cortina de ferro exposta com vigor pela civilização cristã e ocidental. Nunca imaginei que tal coisa pudesse acontecer a um homem sedentário, resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento era indispensável. Absurda semelhante viagem – e quando me trataram dela, quase me zanguei. Faltavam-me recursos para realizá-la; a experiência me afirmava que não me deixariam sair do Brasil; (p.14).142
Convencido pela família a viajar e com as passagens custeadas pelo
Partido143, Graciliano embarca para Moscou. Entretanto, o narrador não é um
porta-voz deslumbrado com as conquistas comunistas. Seu olhar de quem já
suportou as agruras da prisão continua desconfiado e curioso em conhecer
aquele outro mundo idealizado. Por ser questionador e também sincero nas
suas observações, recebe o adjetivo de “espinhoso” pelo Presidente da União
de Escritores Georgianos. (Cf. p. 169)
É claro que diante dos avanços da sociedade soviética existem as
comparações com a realidade brasileira, porém, não podemos esquecer que
isso é normal a qualquer viajante. Além disso, nessa época, os crimes da era
Stalinista ainda não haviam sido revelados por Krushev e para todo comunista
existia a curiosidade de ver de perto o socialismo posto em prática pelos
soviéticos.144
No início, o viajante já antecipa algumas das coisas mais inesquecíveis
que observou: “a disponibilidade do traseunte em ajudar, a criança gulosa de
beijos no jardim de infância, o camponês curioso do Brasil, e a polícia que tenta
corrigir o cidadão invés de levá-lo diretamente para a cadeia”. (p. 14).
Descrevendo-se sempre como um viajante meio desajeitado, “a andar para um
lado e para outro como uma barata doida” (p. 15), lamenta-se da burocracia
142 RAMOS, Graciliano. Viagem. São Paulo: Record, 1983. 143 Dênis Moraes fala que o Partido não mandou as passagens de volta para Graciliano e que Sinval Pereira organizou uma coleta de dinheiro com alguns militantes para comprá-las. Não se sabe se foi por falta de organização ou porque o viajante não havia atendido às expectativas de Moscou. Nem Graciliano nem Heloísa souberam desse fato. Cf.MORAES, Dênis. O velho Graça. Op. Cit., p. 289. 144 Cf. MORAES, Dênis de. O velho Graça. Op. cit., p. 283.
112
que exigia tantos documentos, revista de bagagens e incomodava-se também
com os discursos prolongados. Seu objetivo era sempre de observar de perto a
realidade socialista. Quando questionado sobre sua participação em alguma
associação, responde:
– Coisa nenhuma, declarei atarantado. Minha mulher lembrou que eu era Presidente da Associação Brasileira dos Escritores – e este exíguo título produziu bom efeito. Tinha-me esquecido inteiramente dele, e não me passava a idéia de que servisse para alguma coisa. (p. 19).
Indiferente às honrarias, era mais preocupada em compreender e ser
compreendido diante do idioma diverso. O narrador propõe liberar-se do peso
da bagagem, espalhando suas recordações. Esvaziando as malas através da
escrita, os momentos rápidos poderiam de alguma forma continuarem
vivos.(Cf. p.15)
Em seu relato, Graciliano deixa clara sua escolha de andar sempre a pé
pelas cidades para conhecer as coisas devagar, observando os detalhes que
lhe fossem possíveis alcançar em relação à paisagem. Atento às pessoas,
utiliza adjetivos precisos para cada delegação. Os anfitriões lhe pareciam
excessivamente amáveis, tanto que em várias situações ele demora em
acreditar que existisse tanta gentileza. Os italianos se destacam pela
expansividade dos gestos e da fala: “a grulhada expansiva dos italianos” (p.16),
“a delegação italiana fazia um barulho dos diabos” (p. 23). Os indianos pelas
roupas exóticas (p.16), os chineses, geralmente conhecidos pelo
comportamento discreto e silencioso, surpreendem-no com atitudes vivazes e
alegres. (Cf. p. 48, p. 52).
A ordem rigorosa do país o faz refletir sobre sua própria educação.
Quando acende o cigarro no metrô e é advertido pelo guia sobre a ação
proibida, sente-se como um criminoso: “Atirei o desgraçado corpo de delito
abaixo da plataforma.” (p. 40). Mais adiante, o viajante observa que uma
mulher cuidadosamente descascava uma pêra para o filho e juntava as cascas
e sementes em um lenço, conservando tudo dentro da bolsa. Para completar a
sua sentença, admite envergonhado: “Era o que eu devia ter feito pouco antes,
113
se me houvessem dado a educação necessária. Cometida a infração, resignar-
me-ia a esconder o infeliz cigarro numa caixa de fósforos.” (p. 43).
Dentre as comparações da terra estrangeira com o Brasil, o narrador
utiliza sua própria escrita para evidenciar as distâncias. Questionado sobre
quais dos seus livros poderiam ser traduzidos para o russo, estranha a
pergunta e o contexto em que foi feita — diante da eufórica manifestação na
Praça Vermelha. Sua resposta evasiva ao guia, esconde o pensamento sobre
as duas realidades diversas:
— Nem sei, Kaluguin. Talvez nenhum. Vocês é que devem examinar isso. Tinha-me vindo o pensamento de que os meus romances nenhum interesse despertariam àqueles homens: são narrativas de um mundo morto, as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava-me da minha gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa idéia, que iria assaltar-me com freqüência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-me em relatar cadáveres. (p. 57).
A resposta hesitante evolui para uma confirmação – nenhum dos seus
livros teria relação com aquela gente alegre e feliz. Seus viventes infelizes
faziam parte de um cenário triste e difícil, mostravam claramente a miséria no
Brasil. Além disso, seus livros não se enquadravam no realismo socialista, pois
o autor não seguia manifestações nem levantava estandartes.
Visitando o jardim de infância, o autor se surpreende com a observação
minuciosa, descrevendo as crianças com secura e, ao mesmo tempo, afeição:
“E, arrumados naquelas batas alvas, obrigatórias, fomos ver os setanta
pirralhos que ali se educam” (p. 117). Nesse momento, uma menina cochicha
para a professora. Graciliano, atencioso ao comportamento das crianças, pede
à professora que lhe traduza a fala da menina.
A ótima senhora atendeu-me: —Ela quer dançar com a boneca. Espantei-me. Quer? Então, neste país onde se arrasou o individualismo, as ninharias de cinco anos têm o direito de querer ? Têm. (p.117).
Seu sarcasmo completa a descrição para debochar dos estereótipos
sobre o comunismo. Chamando-os de “pirralhos” e “ninharias” parece que o
114
autor não gosta de crianças e está menosprezando-as. Na verdade, ele
inverte sentidos propositalmente para finalizar a visita, expressando seu
carinho pelos pequenos assim: “Ao deixar os artistas mirins, veio-me a idéia
infeliz de beijar um deles: oito ou dez me cercaram, exigindo beijos, cuspiram-
me o rosto com muitos carinhos.” (p. 117). Seu tom paternal com o menino que
lhe pergunta se existia jardim de infância no Brasil mostra também a lembrança
do ensino precário brasileiro: “— Há, meu filho. Mas é diferente.” (p.117).
Graciliano explica, assim, essa experiência anunciada já no início do livro —
que foi uma das lembranças mais inesquecíveis de sua vida.
Outra comparação é quanto à qualidade de vida dos trabalhadores.
Visitando a casa de repouso dos trabalhadores, espanta-lhe o funcionamento
adequado dos serviços básicos e ainda o fato de que os operários tinham
direito a férias em uma casa de vilegiatura. Observando também os gestos e
olhares daqueles operários, vê que não existia a desconfiança e distância
abissal entre eles e as pessoas com maior nível de instrução. Tanto que nesse
momento, ele recorda da sua vida de prisioneiro:
Certo crítico, anos atrás, me insinuara utilizar num romance os camponeses do Nordeste. Apesar de sertanejo, achava-me incapaz de fazer isso, e antes de viver com esses homens na cadeia, dormindo nas esteiras podres e dividindo fraternalmente os percevejos, não me arriscara a aceitar o conselho. Aqui se atenuaram as diferenças, afinal desapareceram; os indivíduos que jogam xadrez são aparentemente iguais a nós, não têm motivo para julgar-nos inimigos. (p.134-135).
Nessa descrição positiva do regime soviético, o autor reflete também
sobre a mesma noção de intelectualidade proposta por Gramsci – de que todos
os homens são intelectuais, apenas em níveis diferentes: “Um ofício não é
superior a outro – e os homens tendem a uniformizar-se.” (p.135).
7- Viventes das Alagoas (1962)
Viventes das Alagoas é outra obra póstuma composta
predominantemente pelas crônicas publicadas na Revista Cultura e Política, do
115
Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura de Getúlio Vargas no
período conhecido como Estado Novo. Parece incoerente que um homem que
foi preso pelo governo ditador depois trabalhasse para esse mesmo governo.
Porém, não se pode simplificar o fato dessa forma, pois o escritor precisava se
manter — com a esposa e filhos, não era muito fácil viver apenas da literatura
no Brasil, ainda mais sendo ex-preso político. Apesar disso, ele nunca levantou
a bandeira do Estado Novo ou cantou loas à Era Vargas em seus textos. Em
carta à esposa, escreve sobre isso:
Zélins acha excelente a nossa desorganização, que faz com que o sujeito esteja na Colônia hoje e fale com ministros amanhã; eu acho ruim a mencionada desorganização, que pode mandar para a Colônia o sujeito que falou com o ministro.145
Na verdade, o que se vê em Viventes das Alagoas é um escritor
habituado a conviver com sua gente e conhecedor dos seus costumes. As
crônicas tratam, dentre outros assuntos, do jogo do bicho, das festas
populares, do repente, do cangaço e da educação arranjada no interior do país.
Para essa análise, destaco a crônica “Transação de Cigano”, cuja
referência principal para o início da exposição do assunto é o conhecido ladrão
na Colônia Correcional. Segundo a filosofia de Gaúcho, no mundo existem
malandros e otários, e que na ordem natural da vida os malandros existem
para lograr os otários. Daí, que o cronista compara a resignação do sertanejo
em aceitar as diferenças de classes como fatalidade: “— Quem é do chão não
se trepa. Quem nasceu para vintém não chega a tostão.” 146
Em seguida, o autor exemplifica a frase de Gaúcho para mostrar os tipos
que facilmente ludibriam o matuto. Os ladrões de animais são a primeira
categoria e que vendem longe o animal roubado.
Nas memórias da prisão, Gaúcho contou o fato do roubo de um paletó e
que depois se encontrara justamente com o dono do casaco. O senhor lhe
145 RAMOS, Graciliano. Cartas. Op. cit., p. 178. 146 RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983, p. 100.
116
pergunta curioso onde havia comprado o paletó, pois haviam-lhe roubado
objeto igual naqueles dias. Gaúcho mais uma vez dá uma lição de
malandragem, dizendo que um sujeito que rouba deve expor longe o material
adquirido.
Na crônica, essa lição de Gaúcho aparece para mostrar como os
trapaceiros se perdem no grande sertão, sem que sejam apreendidos pela
polícia. O sertanejo aprende a se defender sozinho desses tipos (o autor inclui
nesses tipos os ciganos e os trocadores) para não ficar como otário. Mas a sua
tirada final nessa crônica é com a história do cigano que troca um burro por
uma égua com o senhor de engenho. Depois do negócio feito, na primeira
passagem pelo riacho o animal perde todo o pelo, mostrando apenas sarna;
em seguida, perde o rabo e por fim nem caminha mais. O chefe dos ciganos
resolve voltar à fazenda para desfazer o negócio.
Vendo-os, o Coronel gritou do alpendre da casa-grande: — Que é lá isso? Arrependimento? O que se fez está feito. Negócio é negócio. — Sem dúvida, ganjão, respondeu o cigano descobrindo-se, curvando-se em profunda reverência. Quem falou em arrependimento? Negócio é negócio. Eu resolvi largar esta vida. E venho entregar o bando a vossa senhoria.147
O embuste do fazendeiro serve para mostrar que o proprietário pode ser
também o grande malandro na sociedade. O povo cria preconceitos em relação
a determinados grupos sociais e, em contra-partida, venera a grandeza dos
ricos, numa resignação fatalista. Daí, porque o cenário de discrepância é
sempre maior, pois os detentores do poder são os gatunos mais espertos no
final. Graciliano aproxima-se a Gramsci com sua questão meridional. Mudando
apenas de país, a realidade é muito símile, pois no Mezzogiorno ainda
prevalece a idéia de que a Itália funciona apenas de Roma para cima e que
todos os corruptos estão apenas no Sul.
Nas crônicas sobre o cangaço: “O Fator Econômico no Cangaço”,
“Lampião”, “Virgulino”, “Cabeças”, “Corisco”, “Dois cangaços” Graciliano fala do
fenômeno típico do Nordeste. Esse tipo de banditismo surge justamente no
147RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas, op. cit., p. 103.
117
meio árido e agressivo, onde a necessidade de viver transforma o indivíduo: “A
vida humana, exposta à seca, à fome, à cobra e a tropa volante, tem valor
reduzido e por isso o júri absolve regularmente o assassino.”148 O cronista
explica que os proprietários não podem castigar os cangaceiros porque eles
são fortes e temidos, então é melhor estabelecer alianças.
Na evolução do cangaço, notamos, pois, três fases: a princípio mandavam os grandes, os condottieri que se entendiam bem com os proprietários e às vezes se punham a serviço deles; depois a massa anônima de capangada cresceu e livremente escolheu mandões entre os seus membros; afinal vemos indivíduos que vêm de cima rebaixarem-se, misturarem-se à multidão criminosa e dela emergirem de repente, dirigindo os companheiros, como Corisco.149
Nessas três fases, a rebeldia do cangaceiro é admirável por parte do
autor, porque, assim, manifesta a insatisfação de modo concreto perante o
flagelo da seca e a inoperância das autoridades em deixar o nordestino morrer
à míngua. Mas esse desagrado não é somente em relação à seca do Nordeste,
é em todas as esferas de domínio e submissão que sofremos. Ele mesmo se
inclui nessa apatia do cidadão comum de não rebelar-se diante dos abusos. Na
crônica “Lampião”, é muito claro seu pensamento nessa guerra de posição:
Como somos diferentes dele! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós. Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e depois ficamos em posição de sentido. Sabemos regularmente: temos o francês para os romances, umas palavras inglesas para o cinema, outras coisas emprestadas. Apesar de tudo, muitas vezes sentimos vergonha da nossa decadência. Efetivamente valemos pouco. O que nos consola é a idéia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados. E já agora nos trazem, em momentos de otimismo, a esperança de que não nos conservaremos sempre inúteis. Afinal somos da mesma raça. Ou das mesmas raças. É possível, pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião. Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola. 150
148 Ibidem, p. 129. 149 Ibidem, p. 132. 150 Ibidem, p. 137.
118
O cronista possui discurso apropriado para defender os pobres-diabos,
visto que sua prisão o levou a dividir os dias com essa gente. Seu convite à
rebeldia contra as injustiças no país serve para demonstrar que esse fenômeno
social acontece no Nordeste, não porque ali o sertanejo é débil e fraco, mas
porque não existe colheita regular, salário decente e a garantia de
sobrevivência com dignidade, pelo menos.
Em “Dois cangaços”, Graciliano fala dos dois aspectos originários do
cangaço: o social e o econômico, e diferencia também o movimento do início
do século com aquele do momento. Os cangaceiros atuais eram oriundos das
camadas mais pobres, enquanto que no início, eles uniam-se ao proprietário. A
distância econômica entre o bandido e o proprietário fez com o primeiro
caminhasse por conta própria, fazendo justiça com as próprias mãos para si e
seu grupo. Surgiram, assim, os chefes, como Lampião. “Foi a miséria que
engrossou as suas fileiras, a miséria causada pelo aumento de população
numa terra pobre e cansada”.151 O aspecto social é que o aparecimento
desses bandos criou verdadeiros heróis para os necessitados de vingança. “A
verdade, porém, é que ele molesta, não apenas o adversário, mas o meio
social em que este vive, as instituições que o amparam.”152 Sem apologia ao
cangaço, pois mostra as atrocidades deixadas por ele no sertão, o autor sabe
da origem do problema: rotina na agricultura, indústria precária, exploração do
trabalhador rural, falta de administração dos recursos sociais que fazem da
seca uma cadeia de engrenagem problemática no Brasil.
8- Linhas Tortas (1962)
Esse livro traz crônicas publicadas em jornais entre 1915 e 1952. A
maioria está relacionada à crítica literária, ao processo de escrita, a diferenças
regionais. Estruturalmente está dividido em duas partes, e para este momento,
151 Ibidem, p. 154. 152 Ibidem, p. 153.
119
detenho-me na segunda parte, em que estão os textos de 1935 em diante,
mais especificamente aos datados após 1936, ano de sua prisão.
Na crônica “A marcha para o campo”, mais uma vez Graciliano,
enquanto cronista do Nordeste, critica o discurso do então Presidente Vargas
sobre a marcha para o campo. O superpovoamento das cidades chamava o
povo a ocupar o oeste, tentando equilibrar demograficamente o país. Muito
lucidamente, ele adverte:
É necessário desobstruir a cidade, o que será feito se der ao camponês uma existência razoável que o prenda à roça, se se oferecer ao imigrante o trabalho remunerador que a nossa agricultura atrasada ainda não lhe proporciona. Mas convém não imaginarmos que essas coisas se possam conseguir de repente, que por um golpe de vara de condão se desloquem multidões para o campo em busca de uma nova Canãa.153 Sabendo que o governo mostrava as próprias deficiências em relação ao
problema, o autor destila ironia na sua crônica sobre o esquecimento da
população sertaneja:
O governo promete a instalação da grande siderurgia, o que determinará, sem dúvida, uma transformação radical nos nossos costumes. Sentir-nos-emos pouco a pouco fortes, cortaremos as amarras que nos prendem ao velho continente. Quando fabricarmos os trilhos das nossas estradas e construirmos as locomotivas que hão de rodar sobre eles, poderemos pisar com força, aprumar o espinhaço e exibir a arrogância tranqüila de certos visitantes que aqui portam ares de proprietários. Parece que o homem da roça experimenta uma certa vergonha da sua origem, vergonha provavelmente causada pela pobreza que ali reina. É essa humilhante sensação de inferioridade que o faz despregar-se facilmente do seu torrão e desejar esquecê-lo depressa. Transplantado para a cidade, talvez ele não volte, prefira continuar a percorrer as avenidas e a esperar um milagre que lhe endireite as finanças, ainda quando uma revolução econômica se opera no país.154
O sentimento de inferioridade do sertanejo ecoa para outro sentimento
de inferioridade que é do brasileiro em relação ao estrangeiro. Comparando os
dois, de uma maneira geral, Graciliano chega à conclusão de Gramsci sobre o
problema do Mezzogiorno na Itália:
153 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas, ed. cit. p. 129. 154 Ibidem, p. 130.
120
Há uma horrível maneira de contar certas histórias desagradáveis responsabilizando a gente miúda por falhas de que ele não pode ter culpa. Se o sertanejo é pobre, é porque tem preguiça de plantar; se emigra, é porque nasceu com vocação para vagabundo. Esse meio cômodo de afastar dificuldades caluniando o matuto é uma brincadeira cruel, pelo menos tão inútil e mentirosa como as loas que outros lhe cantam, celebrando-lhe imoderadamente a coragem, a inteligência, enfim um razoável catálogo de virtudes possíveis, virtudes que se estiram junto ao inventário de numerosas vantagens da terra, cachoeiras, minas, o comprimento dos rios e a extensão das matas.155
Contrário a essa publicidade ilusória de marcha para o campo como
quem promete doces à criança, Graciliano coloca-se como o intelectual que
possui organicidade com seu povo, o mesmo proposto por Gramsci. No final
dessa crônica, o autor assegura que a cidade não tem nada a oferecer ao
sertanejo, se este encontra condições favoráveis a viver dignamente em sua
própria terra.
Em “Porão” (1937), o cronista declara-se contrário ao romance tipo
reportagem, que conta objetivamente as ações dos personagens, mas não nos
faz entender como se sentem. Criticando a hegemonia da literatura estrangeira
sobre a nossa literatura por tanto tempo, ele ironiza com astúcia o autoritarismo
da polícia e do governo. Embora a ficção estivesse mudando com o romance
da década de 30, o Brasil podia ainda utilizar-se dos recursos oferecidos pelas
forças de ordem – repressão, brutalidade e violência.
Andamos muito tempo fora da realidade, copiando coisas de outras terras. Felizmente nestes últimos anos, começamos a abrir os olhos, mas certos aspectos da vida ficariam ignorados se a polícia não nos oferecesse inesperadamente o material mais precioso que poderíamos ambicionar. (p. 98)
A memória da prisão é imediatamente retomada aqui no sentido de que
para escrever sobre sentimentos é consequência de uma vivência:
Seria ótimo que todos os romancistas do Brasil tivessem passado uns meses na Colônia Correcional de Dois Rios, houvessem conhecido as figuras admiráveis de Cubano e Gaúcho. Podem tomar isto como perversidade. Não é. Eu acharia bom que meus melhores amigos demorassem um pouco naquela barracão medonho. É verdade que eles sofreriam bastante, mas talvez isso
155 Ibidem, p. 132.
121
minorasse outras dores complicadas que eles inventam. Existe ali uma razoável amostra de inferno — e, em contato com ela, o ficcionista ganharia.156
Em “Os donos da literatura”, ele fala do problema dos escritores
comerciais, que se apropriam das editoras como os proprietários de usina, de
fábrica. O típico escritor em série é criado apenas para o comércio — o
contrário do Mestre Graça, que tentava cada vez mais sobreviver dos seus
textos. Talvez isso seja considerado idealismo em nosso país, mas ser literato
é profissão muito séria, adverte ao leitor. Para isso, foi necessário continuar
longe da mulher e dos filhos no Rio de Janeiro. Aqui não se trata de busca por
objetivo, mas de viver por um objetivo, que é escrever. Mais uma vez, é
possível ir à Sardenha e ver que Gramsci fez a mesma coisa: deixou a Ilha
para poder estudar em Turim, depois abriu mão da família pela causa
partidária. Em seus mais de 1500 artigos de jornais para a luta proletária, o
filósofo italiano deixou a mulher e os filhos viverem em Moscou para a
segurança deles, mas também por querer construir a revolução na Itália. Esse
fato pode ser considerado irrelevante, mas, se pensarmos na importância que
cada um deu à escrita e seu processo emancipador, pode-se compreender
porque foram presos também. As críticas de Gramsci aos romances policiais
de sua época, explorando o sensacionalismo, mostram sua aversão às edições
em série.157
Na crônica “Jornais”, Graciliano fala que a arma dos escritores está
totalmente na escrita. Simulando a discussão, sem resultado, entre dois
escritores sobre o parecer de cada um sobre certo livro, o cronista resolve a
contenda com um simples “Até logo”.
Quem imagina que um escritor é capaz de rebentar caras, meter-se em espalhafatos, nunca viu de perto um desses homens. São as criaturas mais pacatas do mundo. O sujeito que se habitua a compor livros compõe livros – e não passa daí. Diante do papel é tudo — pinta o sete, mata, esfola. Tirem-lhe a pena e o tinteiro — desarmam-no. (p. 102)158
156 Ibidem, p. 98. 157 Cf. GRAMSCI, A. Literatura e vida nacional. Op. cit. 158 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas, Op. cit.
122
Assim como fazia nas reuniões do Coletivo na prisão, com seu caráter
discreto, estando longe das polêmicas sem fim. Seu embaraço com os
discursos orais era inversamente proporcional à sua disposição natural para a
escrita. O caráter contido contribuiu como um elemento dosador para sua obra,
pois a partir dele filtrava o dizer essencial: “Realmente não me abria: era-me
impossível qualquer revelação, pois me faltavam segredos. E em geral as
conversas me chateavam. Se tentava explicar-me, envolvia-me num cipoal de
equívocos.” (MC, vol. 2, p. 219).
O Graciliano-cronista, com sua verve implacável, também não deixa
passar o sensacionalismo dos jornais explorando a violência como produto de
mercado: “Entretanto o jornal pinta um sarapatel brabo, sangue pingando, a
livraria transformada em frege, romancistas de mangas arregaçadas, usando
gestos e linguagem de carregadores e malandros.” (p. 103).159
Em “Bahia de todos os santos”, Graciliano comenta o romance Jubiabá,
de Jorge Amado, e suas traduções na França. O crítico compara-o ainda em
relação a outros livros brasileiros traduzidos, como os de Graça Aranha e Paulo
Setúbal. No romance de Setúbal criara-se uma polêmica em torno da
personagem Marquesa de Santos. Graciliano alfineta tanto a idéia
estereotipada do Brasil na Europa quanto o leitor brasileiro incapaz, que se
deixava levar pelos arquétipos literários europeus e desprezava a literatura
nacional:
Se essa pobre figura histórica nos humilha, que dirão em Paris vendo os pretos e os farrapos que há nos livros do Sr. Jorge Amado? Naturalmente dirão que vivemos numa terra de percevejos e moleques.
Jubiabá é, pois, uma espécie de contrabando literário — e está ai o maior elogio que podemos fazer-lhe; tem de impor-se por suas virtudes. Infelizmente foi publicado pela N.R.F. e custa vinte e oito francos, que, traduzidos no Brasil, significam aí uns vinte e dois mil-réis. Seria melhor ter saído numa dessas brochuras de capa amarela que se vendem a três francos e meio. Melhor para o público europeu, é claro. Entre nós o livro ganha por estar em língua estrangeira e ser caro. Pessoas finas que desprezaram o volume da José Olímpio ilustrado por Santa Rosa vão achar excelente mercadoria importada. O
159 Ibidem.
123
que será muito bom: o romance de Jorge Amado conquistará mais alguns leitores indígenas.160
A temática da hegemonia estrangeira sobre a nossa também aparece
em “Romances”. Nela o autor vai avante satirizando esses “leitores indígenas”,
falando da necessidade de uma produção de romances para exportação.
“Precisamos arranjar uma literatura para exportação. Nunca tivemos isso, e é
uma desgraça. Pensam lá fora que somos uns bárbaros, que só temos
percevejos e moleques.”161 O ápice dessa ironia contra a nossa imagem
exótica de país tropical é em “Jibóias”. Nessa crônica, o autor diz que
conheceu uma senhora francesa que elogiava nosso país, nossa gente e os
nossos bichos, dando-lhes uma amabilidade exagerada, características muito
francesas para o seu gosto. Extremamente sarcástico, o autor diz ter lido em
algum jornal a seguinte descrição do Brasil:
“As jibóias aqui são animais domésticos e têm grande utilidade — vigiam as casas, comem os ratos, brincam com as crianças, enfim substituem perfeitamente os cães, os gatos e as amas-secas. À noite, quando o cidadão vai deitar-se, encontra às vezes no meio das cobertas uma rodilha enorme. Está acostumado: empurra-a com os pés, enrosca-se junto dela, cobre-se, pega no sono e tem bons sonhos. Nunca nenhuma dessas serpentes camaradas fez mal a ninguém.” Francamente, é demais. A intenção da moça foi boa: com certeza ela pretendeu ser-nos agradável, se bem que não tenhamos o direito de receber para nós os elogios feitos às jibóias.162
Antonio Candido163 faz referência sobre essa imagem pitoresca do Brasil
na literatura transitória entre Arcadismo e Romantismo (final do séc. XVIII).
Nesse período, os escritores de uma pátria livre rejeitam os modelos greco-
romanos para germinar um nativismo popular e ingênuo com sentimentos de
brasileirismo e aspiração de futuro melhor à pátria. Para Candido, nesse
momento, apesar do modo pitoresco e ingênuo como é pintada a aquarela
160 Ibidem, p. 118. 161 Ibidem, p. 145. 162 Ibidem, p. 170. 163 Cf. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, vol. 1, p. 181-212.
124
brasileira, já é um começo de definição por novos anseios e de um país como
unidade consciente, independente da província.
Ora, se Gramsci observava que na Itália, apesar de tanta história e
tradição, a literatura ainda sofria a hegemonia de outras literaturas, não seria
diferente com a nossa, nos nossos quinhentos e poucos anos de nação.
Graciliano vai além da crítica para ridicularizar esse deslumbre com tudo que é
estrangeiro:
Evidentemente, apesar do otimismo, reinante, não temos livros exportáveis. Mas poderíamos vender alguns para fora e depois comprá-los de novo, exatamente como fazemos com certos produtos, que saem daqui e voltam melhorados, empacotados e recomendados por uma gente qualquer, que julgamos superiores. Os romances brasileiros custam uma ninharia e envelhecem nas prateleiras dos editores. Os romances franceses estão pela hora da morte e são procurados com avidez. O governo, se se ocupasse com isso, mandaria passar algumas novelas indígenas para o francês. Talvez elas não fossem vendidas lá fora. Não faria mal. Viria para aqui a tiragem toda. Vendo-as em línguas de branco, o público arregalaria o olho, convencer-se-ia de que estava diante de mercadoria boa e cairia no logro: daria vinte mil réis por uma brochura que aqui se vende por seis.164
Ainda é uma questão a ser refletida atualmente, sobre quais são os
livros que estamos importando, qual é a literatura brasileira que chega a outros
países e se é verdadeiramente a nossa literatura ou se é produto de mercado.
Também é importante pensar se ainda sofremos a hegemonia da literatura de
outros países ou estamos caminhando para uma autonomia nacional.
Se o autor critica essa submissão perante outras culturas, em “O fator
econômico no romance brasileiro”, ele também nos dá uma saída. Nesse texto,
Graciliano fala da falta de completeza do elemento humano no romance
nacional, e que isso, muitas vezes está na mentalidade dos escritores de
acharem que existem temas a serem tratados e outros não. O cronista propõe
que os personagens não devem ser fotografias ou reportagens, mas também
não podem ser construções maniqueístas:
164 Ibidem. p. 146.
125
Queremos a fusão dessas idealizações loucas. Somos criaturas medíocres, nem deuses nem diabos. [...] Leitores comuns e perfeitamente equilibrados, buscamos na arte figuras vivas, imagens de sonho; tipos que se comportem como toda gente, não nos mostrem ações e idéias que brigam com as nossas.165
A proposta equilibrada do escritor é contra a imitação de outras
literaturas que nada têm a ver conosco. Daí ele arremata: “Para sermos
completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, estudá-
las de baixo para cima.” (p. 258). Nessa configuração de romance, o autor traz
à baila a experiência do cárcere como elemento de seus textos, em que
tentava descobrir inclusive os impulsos dos personagens: “Romanceando por
exemplo o crime e a loucura, está visto que ele deve visitar seus heróis na
cadeia e no hospício, mas, se quiser realizar obra completa, precisa conhecê-
los antes de chegar ai.” (p. 258).
Sendo assim, escrever seria dizer uma verdade, não a verdade que
todos já vêem, mas os reais sentimentos e o que eles podem suscitar em cada
leitura. Talvez por isso, consideram-no objetivo, realista ou seco. No entanto,
ele mesmo argumenta: “Mas a obrigação do romancista não é condenar nem
perdoar a malvadez: é analisá-la, explicá-la. Sem ódios, sem idéias
preconcebidas, que não somos moralistas”.166 Ainda sobre essa verdade que o
artista não pode deixar de dizer, na crônica “Norte e Sul”, podemos
compreender claramente sua opinião, a de quem já viveu atrás das grades e
passou por tanto caminho imundo:
Os inimigos da vida torcem o nariz e fecham os olhos diante da narrativa crua, da expressão áspera. Querem que se fabrique nos romances um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimentos atrapalhados que o leitor comum não entende. Põem essas almas longe da terra, soltas no espaço. Um espiritismo literário excelente como tapeação. Não admitem as dores ordinárias, que sentimos por as encontrarmos em toda a parte, em nós e fora de nós. A miséria é incomoda. Não toquemos em monturos. 167
165 Ibidem, p. 257. 166 Ibidem, p. 259. 167 Ibidem. p. 136.
127
Em entrevista a Scriptoria II, Roberto Schwarz168 fala sobre a literatura
comparada, explicando que não se pode estabelecer comparações sem
critérios, contextos adequados e pertinentes. Entretanto, quando guiadas por
contextualizações precisas, algumas vezes, tais comparações são
imprescindíveis mesmo entre línguas diferentes. Para isso, é importante
argúcia para avaliar as influências externas e o dinamismo interno ao contexto
até se chegar à novidade no estudo.
Na literatura russa, como alguns críticos já compararam ao texto de
Graciliano, mesmo sob controvérsias, temos a obra de Dostoievski,
Recordações da Casa dos Mortos (1862), em que o autor relata seu período de
prisão na Sibéria, devido o seu envolvimento na conspiração do revolucionário
Mikhael Petrachévski, que pretendia assassinar Nicolau I. Assim, Dostoievski
foi preso e condenado à morte. No último momento, quando já estava no
patíbulo, a pena foi comutada por trabalhos forçados na Sibéria. Nesse livro,
porém, o autor assume claramente a posição de personagem, sendo, então,
mais caracterizado como romance autobiográfico.
No Brasil, alguns escritores também escreveram sobre suas
experiências no cárcere como vítimas da ditadura, por exemplo, O que é isso,
companheiro?(1979), de Fernando Gabeira, que narra sua experiência com a
guerrilha durante a ditadura militar, além de relatar as idéias, a linguagem e o
modo de vida da geração de jovens na década de 60. Sobre essa mesma
época, Caetano Veloso escreveu Verdade Tropical (1997), uma autobiografia
que descreve sua formação musical, narra períodos importantes de sua vida
pessoal, a prisão em 1968 e o exílio em Londres, refletindo sobre temas
relacionados às décadas de 60 e 70, como as drogas e a liberação sexual.
Entretanto, são narrativas historicamente posteriores e não são relatos apenas
do cárcere em relação à ditadura, como o memorialismo de Graciliano Ramos.
Na Itália, relativamente a narrativas de experiência com a prisão, temos
Silvio Pellico, com Le mie prigioni e os relatos do cárcere em Milão pela sua
participação na Carboneria. Também há a trilogia do campo de concentração
168 In: FALLEIROS, Marcos Falchero. Scriptoria II: ensaios de literatura. Natal: EDUFRN, 2000.
128
com os livros de Primo Levi, Se questo è un uomo (1947), La Tregua (1963), I
sommersi e i salvati (1986), com seus relatos no campo de concentração
nazista. É importante também a experiência de confinamento na Lucania
(Basilicata), do médico Carlo Levi em Cristo si è fermato a Eboli (1945), no qual
o autor denuncia a condição desumana da população camponesa do Sul.
Neste capítulo, destacamos apenas dois desses livros, o primeiro, de
Pellico, porque provavelmente foi uma das leituras de Graciliano ainda em
italiano. E Se questo è un uomo, de Levi, por ser o mais representativo sobre
essa temática no período fasci-nazista. Entretanto, apesar de depoimentos
importantes, os dois autores não apresentam uma reflexão sobre a criação
literária na mesma densidade proposta por Gramsci e que se encontra nos
textos do autor brasileiro, por isso, destacamos alguns pontos de confluência
entre essas obras.
1- Graciliano e os estudos da língua italiana
Tradutor de A peste, de Albert Camus, (1951) e Memórias de um negro,
Booker Taliaferro Washington (1940), o alagoano assume, modestamente,
dominar apenas dois idiomas – inglês e francês169, mas já em Infância temos
registro do seu entusiasmo pelos dicionários e o estudo de idiomas170. Na
carta ao amigo J. Pinto de Mota Lima Filho, de 07 de fevereiro d 1913,
Graciliano conta que estudava italiano e francês.171 Em Palmeiras dos Índios,
foi professor de francês no Colégio Sagrado Coração e através do contato com
o padre João Guimarães Lessa, aproxima-se também da língua latina e do
italiano. Valdemar de Souza Lima172 conta que nos almoços do “Clube dos 13’’,
Graciliano andou recitando produções de bardos italianos.,
169 RAMOS, Graciliano. Viagem. Rio, São Paulo, Record, 1983. p.14 170 RAMOS, Graciliano. Infância. ed. cit., p. 126. 171 RAMOS, Graciliano. Cartas. ed. cit., p. 19. 172 LIMA, Valdemar de Souza. Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. p. 118.
129
O filho do autor, Ricardo Ramos – quando fazia a faculdade de Direito,
conta sobre o conhecimento do pai de escritores italianos de criminologia como
Cesare Lombroso, Cesare Beccaria e Raffaele Garofalo.
As leituras do meu pai sempre me surpreenderam. Uma noite, estava na faculdade e lia O homicida, de Ferri. Ele chegou e me perguntou o que era, mostrei, falou do livro mencionando trechos, destacando um ou outro aspecto, seguiu a conversa com Beccaria, Lombroso e Garofalo. Bem à vontade em criminologia, no humanitarismo italiano. Eu já o tinha visto assim com a história ou a sociologia, mas aquilo era demais. Riu do meu espanto: “Você acha que eu teria feito o Luís da Silva sem estudar isso?173
Também em alguns textos do próprio Graciliano nota-se sua
familiaridade com a língua italiana. Na crônica Professores improvisados174, o
escritor critica o ensino alinhavado no sertão por educadores sem formação
suficiente e aproveita para demonstrar o contato com o italiano através da sua
peculiar auto-ironia. Nessa crônica, o autor dá o exemplo de um senhor que
dispunha de amplo vocabulário e ensinava gramática. Seu método consistia em
abrir o livro, percorrer o índice do alto para baixo e explicar coisas que ninguém
entendia e terminava a lição: “— Isso não tem importância. Vamos para diante.
Tragam-me o adjetivo amanhã”. A aula repetia-se no outro dia sempre do
mesmo jeito: “— Adjetivo é isso que vocês sabem. Não interessa. Para frente!
Decorem o pronome.” Mais adiante, sem julgar o método do professor e a
necessidade de sobrevivência de cada um, Graciliano conta um outro exemplo,
utilizando a si mesmo para ironizar a situação precária do ensino:
Não pretendo consertar nada. O que Deus Nosso Senhor fez, ou alguém por ele, deve estar certo. Limito-me a expor um fato. E para que me acreditem, confesso, com vergonha, que sou suspeito.
Por motivo de ordem econômica, resolvi um dia, a exemplo de toda gente, ministrar aos outros alguns conhecimentos proveitosos a mim. Não me arrisquei a preparar oleiros ou sapateiros pois ninguém tomaria a sério sapato ou panela que eu fizesse. Procurei matéria exótica, de verificação difícil. Imaginando, sem grande esforço, que na Itália existia uma língua, pedi catálogos ao Garnier e dispus-me resolutamente a estropiar o italiano com a
173 RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. Op. cit, p. 111. 174 RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. ed. cit. p. 138.
130
ajuda de Deus. Anunciei: “Italiano rápido e barato a cinco mil-réis por cabeça, mensalmente. Aproveitem. Lições em todos os dias úteis e inúteis. Tempo é dinheiro, como diz o gringo.
Isto deve ser fácil, pensei. É só arrumar no fim das palavras ONE ou INE. De estrangeiro cá na terra ninguém entende. E se aparecer por aí um carcamano, adoeço e perco a fala.
Pois, senhores, não me dei mal. Matricularam-se cerca de trinta idiotas: comecei a trabalhar com energia e confiança. Ainda estaria trabalhando, se dois alunos, finda a primeira quinzena, não entrassem em concorrência comigo, deslealmente, fundando escolas que italianizaram toda a localidade. (p. 140).
2- Le mie prigioni (1832)
Era mio unico pensiero il morire cristianamente e col debito coraggio. (Silvio Pellico)
A literatura italiana no período do Risorgimento é essencialmente
romântica, prevalecendo o sentimento em relação ao aspecto formal do texto.
A elaboração do artista mistura-se com o sentimento do momento político.
Pensava-se em uma literatura que falasse do povo, de suas aspirações e que
servisse também para educá-lo, daí o uso de uma linguagem acessível a todos.
Esse romantismo se liga ao desejo de dar a própria existência um valor
heróico, de dar-lhe um ideal com um espírito de combate. Escrever era uma
missão, e nesse espírito heróico entrava também a aceitação da doutrina
católica e do subjetivismo, em oposição ao racionalismo e ao Iluminismo.
Obras como a novela histórica de Alessandro Manzoni, I promessi sposi (1827)
revelam que o escritor é também empenhado em contribuir para a unificação
do país tanto tempo dividido.
Le mie prigioni, de Silvio Pellico, foi um dos livros mais lidos na Europa
na época de sua publicação. O autor foi preso em 13 de outubro de 1820 no
Convento Santa Margherita, em Milão, para ser interrogado sobre a sociedade
secreta Carboneria, que havia fundado com Pietro Maroncelli. Essa sociedade
tinha ideais de liberdade contra a dominação austríaca na Lombardia e devido
a uma correspondência entre os dois, deu-se início à investigação de seu
comprometimento com os “carbonarios”. Nesse livro de memórias, Silvio Pellico
131
conta não somente os fatos da prisão, mas suas impressões, sentimentos e
idéias sobre a religião, a família, a filosofia, política (este tema tratado de forma
indireta). No texto autobiográfico de Pellico predomina o tom melancólico
juntamente com um elemento de força política que é o Risorgimento. Até hoje
seu livro é representativo desse período175, pois além de nutrir-se da
melancolia do narrador, existe ainda a denúncia do cárcere de Spielberg176. O
sucesso do livro é considerado uma vitória contra a dominação austríaca.
No segundo capítulo o autor fala da fragilidade ao estar longe da família
e do sentimento de culpa por não haver demonstrado tanto amor quando
estava perto dos parentes: “Niun figliuolo era stato più di me colmato di benefizi
dal padre e dalla madre! Oh! Come al rivedre i venerati vecchi io m’era
comosso...” (p.33) 177.
O tema do remorso por não ter demonstrado amor à família como
deveria é recorrente no livro e declarações sobre a fé são apresentadas
também como confissões ou aprendizagens, buscando autodisciplina e
equilíbrio interior na prisão. Totalmente inverso, o materialismo realista de
Gracilliano diz: “Nenhuma saudade, nenhuma dessas meiguices românticas,
enervadoras. Sentia-me atordoado, como dessem um murro na cabeça” (MC,
vol. 1, p. 56).
Silvio Pellico (1789-1854) nasceu em Saluzzo, mas o pai era negociante
e se transferiu para Turim em 1799. A crise nos negócios do pai fez com que
Pellico fosse morar com um parente em Lyon para poder estudar. O escritor já
havia aprendido com o pai a paixão pelos estudos e os livros, mas no período
que vive em Lyon tem contato com as idéias iluministas e racionalistas. “Una
mente agitata non ragiona più: avvolta fra un turbine irresistibile d'idee
esagerate, si forma una logica sciocca, furibonda, maligna: è in uno stato
175 Cf. Portale del Risorgimento italiano, Ministero dell'Istruzione dell'Università e della Ricerca e nell'ambito delle celebrazioni per il 150° anniversario dell'Unità d'Italia. Acesso em 12-10-2011. Disponível em: http://www.150anni.it/webi/index.php?s=22&wid=132 176 Presídio na República Tcheca para os crimininosos mais perigosos como também prisioneiros políticos contra o Império Austríaco. 177 “Nenhum filho recebeu mais do que eu as benesses do pai e da mãe. Oh! Como me comovia pensar nos meus venerados velhos”.
132
assolutamente antifilosofico, anticristiano.” (p.15)178 Apesar de sua formação
cristã, sua fé entra em crise. Em suas memórias da prisão, no primeiro dia, ao
se dar conta da importância da liberdade confessa: “Quello fu il primo
momento, che la religione trionfò del mio cuore; ed all’amor filiale debbo questo
benefizio.” (p.35)179 Ao receber a sentença, tenta se conformar como um
religioso. Concordando bem com que diz Gramsci: “É facílimo para o povo, ao
qual não se exige mais do que ‘crer’ genericamente e obedecer às práticas do
culto; nenhuma luta efetiva e eficaz contra a superstição, contra os desvios
intelectuais e morais.” (CC, vol. 6, p. 84). No trecho que recebe a sentença
confessa porque gostaria de crer:
L'inquisitore mi lesse la sentenza: “Condannato a morte”. Poi lesse il rescritto imperiale: “La pena è commutata in quindici anni di carcere duro, da scontarsi nella fortezza di Spielberg”. Risposi: “Sia fatta là volontà di Dio!”. E mia intenzione era veramente di ricevere da cristiano questo orrendo colpo, e non mostrare né nutrire risentimento contro chicchessia. (p. 45)180
No capítulo 5, Pellico dedica-se à leitura da Bíblia, mas a sua leitura, ao
contrário do que se espera, confirma mais as idéias iluministas. Entretanto,
percebem-se reminiscências da influência católica em vários trechos do livro.
Siffatta lettura non mi diede mai la minima disposizione alla bacchettoneria, cioè a quella divozione malintesa che rende pusillanime o fanatico. Bensì m'insegnava ad amar Dio e gli uomini, a bramare sempre più il regno della giustizia, ad abborrire l'iniquità, perdonando agl'iniqui. Il Cristianesimo, invece di disfare in me ciò che la filosofia potea avervi fatto di buono, lo confermava, lo avvalorava di ragioni più alte, più potenti. (p. 6-7) 181
178 Uma mente agitada não raciocina mais: às vezes entre um turbilhão de idéias exageradas se forma uma lógica boba, sem sentido, maligna: é um estado absolutamente anti-filosófico, anticristão. 179 Aquele foi o primeiro momento que a religião venceu do meu coração; e ao amor filial devo esse benefício. 180 O Inquisitor leu para mim a sentença: “Condenado à morte”. Depois leu a reescrita imperial: “ A pena é comutada em quinze anos de cárcere duro, a ser paga no Presídio de Spielberg. Respondi: “Seja feita a vontade de Deus!” Minha intenção era realmente de receber como cristão esse horrível golpe, e não mostrar nem nutrir ressentimento contra quem quer que seja. 181 Essa leitura nunca me deu a mínima disposição para a subserviência, isto é, aquela devoção nociva que torna o fanático pusilânime. Se bem que me ensinava a amar a Deus e aos homens, a pedir sempre pelo reino da justiça, abolir a inqüidade perdoando aos pecadores. O Cristianismo invés de desfazer em mim o que a filosofia tinha feito de bom, confirmava e valorizava com razões mais fortes, mais potentes.
133
Apesar dessa aparente racionalidade, o autor nos conta de um fato
curioso: a amizade com um menino surdo-mudo de cinco ou seis anos. Era
filho de criminosos, e estava com outras crianças em situação semelhante, sob
a responsabilidade da Polícia, numa sala em frente ao quarto de Pellico.
Quando as crianças saiam para tomar um pouco de ar, o menino ia sempre à
janela de Silvio, que lhe guardava sempre um pedaço de pão. A alegria do
menino era expressa dividindo o pão com as outras crianças e sua gratidão era
com um sorriso expressivo até com o olhar: “e poi veniva a mangiare la sua
porzioncella presso la mia finestra, esprimendo la sua gratitudine col sorriso de'
suoi begli occhi” (p. 7).182 Conta Pellico que a única vez que o menino entrou
na sua cela, a primeira atitude foi de abraçar suas pernas num agradecimento
puro e espontâneo. O autor revela que gostaria de salvá-lo daquela situação e
educá-lo, mas ao mesmo tempo demonstra alívio de saber que o menino ainda
não compreende o que é a prisão e vê nisso certo conforto:
Cosa strana! Vivere in luoghi simili sembra il colmo dell'infortunio, eppure quel fanciullo avea certamente tanta felicità quanta possa averne a quell'età il figlio d'un principe. Io facea questa riflessione, ed imparava che puossi rendere l'umore indipendente dal luogo. Governiamo l'immaginativa, e staremo bene quasi dappertutto. Un giorno è presto passato, e quando la sera uno si mette a letto senza fame e senza acuti dolori, che importa se quel letto è piuttosto fra mura che si chiamino prigione, o fra mura che si chiamino casa o palazzo? Ottimo ragionamento! Ma come si fa a governare l'immaginativa? Io mi vi provava, e bem pareami talvolta di riuscirvi a meraviglia: ma altre volte la tirannia trionfava, ed io indispettito stupiva della mia debolezza (p. 8).183
Na verdade, o racionalismo de Pellico será sempre vencido pela sua
conversão. Giulio Ferroni184 concorda que o autor não demonstra a intenção de
denunciar a repressão austríaca, mas seu testemunho priorizava a aceitação
182 Depois vinha comer seu pedacinho perto da minha janela, expressando sua gratidão com o sorriso dos seus belos olhos. 183 Coisa estranha! Viver em um lugar como esse parece o cúmulo do azar, mas certamente aquele menino tinha tanta felicidade quanto se pode ter na sua idade o filho de um príncipe. Eu fazia essa reflexão e aprendia que o humor pode ser independente do lugar onde estamos. Um dia passa rápido e basta que à noite a pessoa se deite sem fome e sem nenhuma dor, que importa se aquela cama está entre as grades que podem ser chamadas de prisão, ou entre os muros que se chamam casa ou prédio? Ótimo raciocínio! Mas como se faz para governar a imaginação? Eu tentava, e às vezes conseguia essa maravilha; mas outras vezes a tirania triunfava e eu, despeitado, admirava-me da minha fraqueza. 184 FERRONI, Giulio. Storia della Letteratura Italiana. Dall´Ottocento ao Novecento. Milano: Einaudi, 1991. p. 130-131.
134
cristã da própria sorte. Seu sofrimento é o de uma vítima como tantas outras
em um mundo dominado pelo mal, pela falta de Deus. Na opinião desse crítico:
Pellico esclude dalle proprie memorie qualsiasi motivazione política facendone una sorta di libro religioso di salvezza e di riscatto spirituale. [...]
L´originale valore del libro sta próprio nell´intensità con cui, sotto il segno della rassegnazione, si delinea l´incontro dell´intelletuale borghese con un´umili religiosità popolare, situata come al di là della storia. 185
Memórias do cárcere conta um fato parecido ao menino da prisão de
Pellico, com a história de Paulo Turco. Esse presidiário era pintor, e por seu
bom comportamento fez alguns serviços externos. Em um desses períodos,
uma preta velha havia-lhe pedido esmolas e o homem lhe deu todo o dinheiro
recebido. No dia seguinte, a mulher veio novamente pedir esmolas trazendo as
duas filhas, que se tornaram a família de Paulo. Graciliano maravilha-se com a
generosidade que surge de assassino e como cultivava esses sentimentos
positivos num ambiente tão miserável:
O que mais me surpreendia no caso de Paulo Turco era ele obter recursos para realizar gastos, anos a fio, num ambiente diverso, onde as nossas migalhas de pecúnia se desvalorizam. Ignoramos o que somos, até onde podemos ir. Cercados, confinados, precisamos ver qualquer coisa além das grades. A imaginação vai longe; coisas externas crescem, desenvolvem-se: um barraco erguido na favela toma cores vivas, e duas mulatinhas pestanejam em cima de livros, na véspera de exame, à luz do querosene; na cozinha de tábua e lata uma negra velha cochila. Vive para resguardar essas três insignificâncias, entrega-se a elas inteiramente, fabricando gaiolas, um homem duro, mãos tintas de sangue, dedos hábeis de manejo de instrumentos ilegais. (MC, vol. 2, p. 242).
Apesar de admirar a atitude de Paulo Turco, o autor permanece com a
desconfiança sobre a realidade. Nem mesmo a imagem das meninas
estudando é uma confirmação de que haverá nova possibilidade realmente
para elas. Diferente de Pellico, que consegue pensar no lado positivo de ser
185 Pellico exclui das próprias memórias qualquer razão política, fazendo do livro uma espécie de livro religioso de salvação e de redenção espiritual. [...] O verdadeiro valor do livro está mesmo na intensidade com que, sob o sinal do conformismo, se delineia o encontro do intelectual burguês com uma humilde religiosidade popular, situada como além da história.
135
criança por não compreender ainda a dureza da vida, Graciliano não consegue
sequer nos dar essa ilusão, nem mesmo com a imaginação: “Afinal a virtude
me escapava. Quem me provava que os indivíduos surpresos faziam falta num
mundo cheio de excrescências? Talvez não fizessem.” (MC, vol. 2, p. 242).
Em Le mie prigioni, Silvio Pellico fala sobre a paixão por uma moça,
que se chamava Maddalena. Embora faça referência como um grande amor, o
autor se convence de que foi perda de tempo e esse sentimento era criancice.
O nome talvez seja alusivo ao personagem bíblico, e muitas referências
dialogam com elementos religiosos:
L'innocenza è veneranda, ma quanto lo è pure il pentimento! Il migliore degli uomini, l'uomo-Dio, sdegnava egli di porre il suo pietoso sguardo sulle peccatrici, di rispettare la loro confusione, d'aggregarle fra le anime ch'ei più onorava? Perché disprezziamo noi tanto la Donna caduta nell'ignominia? Ragionando così, fui cento volte tentato di alzar la voce e fare una dichiarazione d'amor fraterno a Maddalena. Una volta avea già cominciato la prima sillaba vocativa: “Mad!...”. Cosa strana! il cuore mi batteva, come ad un ragazzo di quindici anni innamorato; e sì ch'io n'avea trentuno, che non è più l'età dei palpiti infantili. Non potei andar avanti. Ricominciai: “Mad!... Mad!...”. E fu inutile. Mi trovai ridicolo, e gridai dalla rabbia: “Matto! e non Mad!”. Così finì il mio romanzo con quella poveretta. Se non che le fui debitore di dolcissimi sentimenti per parecchie settimane. (p.51-52)186 Pellico passa dez anos na prisão e esse período é também um período
de reflexão e retorno à fé. Seu testemunho se faz necessário para aliviá-lo da
amargura, entretanto é a religião o seu maior refúgio.
Ah! delle mie passate sciagure e della contentezza presente, come di tutto il bene e il male che mi sarà ancora serbato, sia benedetta la Provvidenza, della
186 A inocência é respeitável, mas o arrependimento também! O melhor dos homens, o homem-Deus, desdenhava de pôr o seu piedoso olhar sobre as pecadoras, de respeitar as suas confusões, de agregar-lhes entre as almas que ele mais honrava? Pensando assim, fui mil vezes tentado a levantar a voz e fazer uma declaração de amor fraterno a Madalena. Uma vez tinha já começado a primeira sílaba vocativa “Mad!...”. Coisa estranha! O meu coração batia como de um rapaz de quinze anos apaixonado; e eu já tinha trinta e um, que não é mais idade de palpitações infantis. Não podia continuar. Recomecei: “Mad!... Mad!...” E foi inútil. Achei-me ridículo e gritei de raiva: “Maluco! E não Mad!” Assim terminei o meu romance com aquela pobrezinha. Se é que não lhe fiquei devendo os docíssimos sentimentos por muitas semanas.
136
quale gli uomini e le cose, si voglia o non si voglia, sono mirabili stromenti ch'ella sa adoprare a fini degni di sé.
Depois Pellico conta de sua afeição pela moça que lhe levava o café
todos os dias. Zanze passa, então a ser sua “namorada”, mas na verdade a
moça via naquele homem um ser digno de admiração, um conselheiro e lhe
fazia confidências afetivas. Aceitando a condição de “amante” de Zanze, o
narrador assume que a moça funcionava como uma janela para o mundo lá
fora. Graciliano também nos fala da importância das esposas naquele
momento da prisão, que funcionavam como agentes de ligação, trazendo
notícias, levando relatórios, cartas e recados (Cf. MC, vol. 1, p. 286). Em
Gramsci, essa ligação com o mundo exterior somente foi possível através da
cunhada, Tatiana Schucht, que, morando em Roma, era a principal visita e
destinatária de suas cartas.
Um outro tema abordado com a personagem Zanze é sobre a questão
da identidade do narrador personagem. A moça via em Pellico uma figura de
respeito, por ser um intelectual e por ser mais velho. Chega a vê-lo como um
pai, para decepção do rapaz:
Mi diceva: “Signore, ella è tanto buona, ch'io la guardo come potrebbe una figlia guardare suo padre”. “Voi mi fate un brutto complimento;” rispondeva io, respingendo la sua mano “ho appena trentadue anni, e già mi guardate come vostro padre.” “Via, signore, dirò: come fratello.” (p. 84).187
O envelhecimento que a prisão apressa é sentido por Graciliano,
sobretudo nos seus dias na Colônia Correcional – presídio para onde
mandavam os piores marginais. O narrador conta que deveriam carregar tijolos.
Cansado, senta-se para descansar, quando alguém atribui essa fraqueza à
idade. Curioso, pergunta qual a idade poderiam atribuir-lhe e permanece
surpreso com os sessenta e cinco anos que lhe foram dados. Novamente mais
187 Dizia-me: “O senhor é tão bom, que eu o vejo como uma filha olha para o pai.” “A senhora me faz um grande elogio.” Eu respondi, afastando a sua mão: “Tenho apenas trinta e dois anos e a senhora já me vê como seu pai.” “Esqueça, senhor, direi: como um irmão.”
137
pessimista que Pellico, o escritor brasileiro vê nesse fato o quanto o cárcere os
envelhecia188. A frase com os “sessenta e cinco anos” se repete por mais duas
vezes no resto do capítulo, mostrando sua perplexidade. O sentir-se velho aqui
vai além da idade, mas reforça a perda dos dias de sua vida que a prisão lhe
tomou; mostra o embrutecimento que o sistema opressor causa nas pessoas:
“Uma ruína imprestável, nem servia para carregar tijolos” (MC, vol. 2, p. 68).
Mais adiante no capítulo 14 desse mesmo volume, ele relembra novamente o
fato. “Essas palavras me perseguiam” (MC, vol. 2, p. 74). A memória em
Graciliano retoma alguns fatos para “costurar” outras idéias. Em vários trechos
do livro, observamos essa forma de fio condutor.
Outro ponto que podemos comparar é em relação à apresentação do
narrador no texto. Em Memórias do Cárcere, o narrador deixa claro que não
gosta de usar a primeira pessoa “Desgosta-me usar a primeira pessoa. (MC,
vol. 1, p. 37). Nem mesmo seu nome aparece nos dois volumes da obra. Até o
número dado por Cubano para identificação dos presos se confunde na
memória: “3.535 ou 3.335, não me lembro direito” (MC, vol. 2, p. 70). Já no
texto de Pellico, várias vezes o narrador é reconhecido como Silvio Pellico, ou
como carbonário ou como o autor de Francesca da Rimini e L´Eufemio di
Messina. 189 Esse subjetivismo de Pellico nada mais é que sua militância
explícita, enquanto que no autor brasileiro, há sempre antipatia ao rótulo e a
títulos de adesão.
Algumas histórias de solidariedade e amizade também são lembradas
por Silvio; uma delas é do amigo carcereiro Schiller, que insiste para que ele se
alimente; dá-lhe literalmente a roupa do corpo, oferecendo-lhe camisas limpas
quando o narrador estava encharcado de suor; e até lhe dá dicas, como por
exemplo a de tirar a corrente dos pés a noite190. A amizade desse carcereiro é
crucial para a sua sobrevivência na prisão: “Onesto vecchio,” dissi “voi vedete
in che stato sono; è poco verisimile ch'io esca vivo di qui: non potrò mai
188 Graciliano tinha 43 anos quando foi preso. 189 Cf. Le mie prigioni. ed. cit., p. 26. 190 Cf. Le mie prigioni. ed. cit., p. 58.
138
ricompensarvi di nulla.” (p. 53).191
Não é difícil lembrar do texto de Graciliano sobre sua amizade com
Cubano. Cúmplice dos guardas, esse presidiário era responsável em ajudar a
fazer a chamada dos presos, tendo poderes sob os demais. Com o seu grito
atordoava o presídio: “— Formatura geral!”. Colaborando com os guardas,
Cubano chamava um a um pelo número. Esse ritual repetia-se várias vezes ao
dia, como uma espécie de tortura. A simpatia e o respeito por Graciliano
fizeram-no ser dispensado das formaturas. Entretanto, percebendo o
abatimento físico do escritor, Cubano insiste:
— Seu Fulano entre em forma. — Voltei-me: — Obrigado, não quero almoçar. — O negro estava diante de mim, decidido, sem nenhum vestígio de amabilidades ordinárias: — Não estou perguntando se o senhor quer, estou mandando. Entre na fila. — Tolice, Cubano. Respondi com mau modo. [...] — Perdoe-me. Eu não posso deixar o senhor morrer de fome. Vai à força. E agarrou-se comigo, em luta desigual, absurda. (MC, vol. 2, p.139)
Diversamente da gratidão dramática do cristão convertido, aqui o
agradecimento é duro e difícil. A aspereza do sertanejo desconfia da existência
de generosidade naquele lugar. “À enorme cólera juntou-se uma gratidão
insensata.” É quase incompreensível esse tipo de agradecimento, num
ambiente que brutaliza os homens por completo: “Tinha um coração humano,
sem dúvida, mas adquirira hábitos de animal”. O embate físico é descrito assim
pelo escritor: “Gente singular, meio esquisito: até para revelar sentimentos
generosos, era indispensável a brutalidade” (MC, vol. 2, p. 140). Apesar de
toda a desgraça, Graciliano vê no próprio homem a possibilidade de mudanças,
se é que ela existe. São os próprios homens que criam suas misérias, portanto,
não adianta buscar no místico ou na religião a fuga para suas mazelas. Creio
que esse discurso é o mesmo de Gramsci, quando fala da filosofia da práxis,
na qual o intelectual deve sair da casta e compreender sua gente. Entendendo
191 “Honesto velho”, disse, “o senhor vê em que estado estou; é pouco provável que eu saia vivo daqui: não poderei nunca recompensá-lo de nada.”
139
o ser humano é possível ser intelectual orgânico, que não significa somente
utilizar nos livros os sentimentos populares, mas ser capaz de gerar no povo
consciência e conhecimento de si mesmo.
Um outro amigo importante de Silvio Pellico era Piero Maroncelli, com
quem fazia parte da Carboneria. Antes da chegada de Maroncelli à prisão,
Pellico pensava no amigo: “Quella vista m'incantava. Oh quanto sarei stato
lieto, se avessi potuto dividerla com Maroncelli! (p. 54). 192 Depois, os dois
amigos se encontram no cárcere, mas Maroncelli já sofre com a saúde abatida.
Na prisão, seu estado piora e com um tumor na perna, deve fazer uma cirurgia
para amputá-la. Transcrevo parte desse episódio para demonstrar a sincera e
forte amizade entre esses dois carbonários
La mia compagnia gli fu conceduta. L'abate Wrba, nostro confessore (succeduto a Paulowich), venne ad amministrare i sacramenti all'infelice. Adempiuto questo atto di religione, aspettavamo i chirurgi, e non comparivano. Maroncelli si mise ancora a cantare un inno. I chirurgi vennero alfine: erano due. Uno, quello ordinario della casa, cioè il nostro barbiere, ed egli, quando occorrevano operazioni, aveva il diritto di farle di sua mano e non volea cederne l'onore ad altri. L'altro era un giovane chirurgo, allievo della scuola di Vienna, e già godente fama di molta abilità. Questi, mandato dal governatore per assistere all'operazione e dirigerla, avrebbe voluto farla egli stesso, ma gli convenne contentarsi di vegliare all'esecuzione. Il malato fu seduto sulla sponda del letto colle gambe giù: io lo tenea fra le mie braccia. Aldi sopra del ginocchio, dove la coscia cominciava ad esser sana, fu stretto un legaccio, segno del giro che dovea fare il coltello. Il vecchio chirurgo tagliò tutto intorno, la profondità d'un dito; poi tirò in su la pelle tagliata, e continuò il taglio sui muscoli scorticati. Il sangue fluiva a torrenti dalle arterie, ma queste vennero tosto legate con filo di seta. Per ultimo, si segò l'osso. Maroncelli non mise un grido. Quando vide che gli portavano via la gamba tagliata, le diede un'occhiata di compassione, poi, voltosi al chirurgo operatore, gli disse: “Ella m'ha liberato d'un nemico, e non ho modo di rimunerarnela.” V'era in un bicchiere sopra la finestra una rosa. “Ti prego di portarmi quella rosa” mi disse. Gliela portai. Ed ei l'offerse al vecchio chirurgo, dicendogli: “Non ho altro a presentarle in testimonianza della mia gratitudine.” Quegli prese la rosa, e pianse. (p.194-195)193
192 Aquela visão me encantava. Oh quanto seria feliz, se pudesse dividi-la com Maroncelli! 193 A minha companhia foi permitida. O abade Wrba, nosso confessor (substituindo Paulowich), veio administrar os sacramentos ao infeliz. Cumprindo esse ato religioso, esperávamos os cirurgiões que não chegavam. Maroncelli ainda se meteu a cantar um hino. Ao terminar, chegaram os cirurgiões: eram dois. Um, aquele já conhecido de casa, isto é, o nosso barbeiro, este quando fazia operações, tinha o
140
O sofrimento e dor do amigo, o seu agradecimento ao médico e a
fidelidade do narrador em estar sempre próximo ao companheiro tornam o
texto emocionante. Pellico comove, mas Graciliano nos surpreende. Em
Memórias do cárcere, quando comenta sobre o Capitão Lobo, que oferece
dinheiro para ajudá-lo com as despesas familiares, o alagoano escreve:
Realmente a desgraça nos ensina muito: sem ela, eu continuaria a julgar a humanidade incapaz de verdadeira nobreza. Eu passara a vida a considerar todos os bichos egoístas – e ali me surgia uma sensibilidade curiosa, diferente das outras, pelo menos uma aplicação do egoísmo, vista na fábula, mas nunca percebida na realidade. Para descobri-la não era muito agüentar algumas semanas na cadeia (MC, vol. 1, p. 113).
Sua perplexidade nos aparenta frieza, ingratidão ou pessimismo, o que
muitos lhe atribuíram. Entretanto, é um elemento de perturbação – nem todo
mundo é mal, nem todos são corruptos. Ainda é possível resistir, até mesmo a
cadeia.
A crítica mordaz em Memórias do cárcere não suaviza nem mesmo o
estado degradante de saúde do próprio autor. Quando o médico sugere uma
reabertura da sua operação de psoíte, a resposta é rápida e perspicaz. “Abri a
roupa, mostrei o pé da barriga. O homem palpou-me a cicatriz doída: –
Realmente. Se quiser, nós podemos operar isso. – Aqui, doutor? Gaguejei num
sobressalto, metendo os pés pelas mãos. Obrigado. Não estou com desejo de
direito de fazê-las com suas mãos apenas e não cedia honras aos outros. O outro era um jovem cirurgião, aluno da escola de Viena, e já tinha fama de ter muita habilidade. Este, mandado pelo governador para assistir a operação e coordená-la, teria feito ele mesmo, mas lhe convinha contentar-se de observar a execução. O doente foi sentado na ponta da cama, com as pernas para baixo: eu o tinha entre os meus braços. Acima do joelho, onde a coxa começava e ser sadia foi amarrado um garrote, sinal do percurso que deveria fazer a faca. O velho cirurgião cortou tudo em torno, a profundidade de um dedo; depois puxou a pele cortada, e continuou a cortar sobre os músculos. O sangue jorrava a torrentes das artérias, mas foram estancadas com um retalho de seda. Por último serrou-se o osso. Maroncelli não deu um grito. Quando viu que levava embora a perna cortada, deu uma olhada de compaixão, depois voltou-se para o cirurgião que operou e disse: “O senhor me liberou de um inimigo e não tenho como pagá-lo.” Havia um copo na janela com uma rosa dentro. “Por favor, dá-me aquela rosa”, me disse. Levei-a e ele ofereceu-a ao cirurgião, dizendo-lhe: “Não tenho outra coisa para presenteá-lo como prova da minha gratidão.” O médico recebeu a rosa e chorou.
141
suicidar-me.” (MC, vol. 2, p. 84). Com a saúde minada, o narrador de
Graciliano não quer piedade, pelo contrário, ele debocha de si mesmo. Distante
da testemunha que se auto promove, esse narrador consegue extrair riso a
partir da própria desgraça. Relembro trecho memorável da carta de Gramsci ao
irmão Carlo, para aproximá-lo dessa testemunha que não quer ser mártir, mas
tem sempre consciência de ser humano:
Minha posição moral é ótima: aqui, julgam que eu seja um satanás, ali, pensam que eu seja quase um santo. Eu não quero fazer nem o papel de mártir, nem o de herói. Creio ser simplesmente um homem médio, que tem suas convicções profundas e que não as troca por nada no mundo. 194
Nos dois textos memorialísticos, a confissão é também uma forma de
buscar o equilíbrio diante da tristeza da prisão. Rememorando estes
sentimentos, surpreende, choca o leitor, mas também demonstra a fragilidade
humana diante da falta da liberdade.
Em Le mie prigioni, a fé cristã é o elemento propulsor da escrita e o
conforto do narrador. Apesar de sua retórica cristã discutível, o livro tem seu
destaque na História italiana. Para Aldo Mola195, o livro foi um símbolo da Itália
a caminho do reconhecimento como nação e em busca de liberdade civil e
política. Sobre a refutação austríaca em relação os maus tratos na prisão de
Spielberg, o crítico explica que a repercussão do livro em toda a Europa serviu
para confirmar o manifesto de quem apenas queria viver segundo as próprias
tradições e intervir nos problemas da sociedade. Nesse sentido, não se pode
esquecer sua relevância na Literatura Italiana.
A ausência de fé nas Memórias do cárcere substitui a esperança
redentora da religião, mas em suas páginas sugere no próprio homem a tarefa
de reorganizar a sociedade de forma mais justa.
194 GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere, ed. cit, p.81. 195 Cf MOLA, Aldo. Le mie prigioni. Memorie di Silvio Pellico da Saluzzo, Foggia: Bastoni Editrice Italiana, 2004, p. 27-28.
142
3 - Se questo è um uomo (1947)
A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. (Theodor Adorno)
Primo Levi (1919-1987) nasceu em Turim, era de uma família rica, em
que os livros foram sempre presentes, estudou no Liceo Clássico, diplomando-
se em 1937. Formou-se em Química pela Universidade de Turim em 1941,
antes que as leis fascistas impedissem os judeus de cursarem universidades.
Com a doença do pai, a família passa por dificuldades e Levi começa a
trabalhar logo após a graduação. No ano seguinte entra para o Partido
d´Azione, de ideais antifascistas e liberal-socialista, unindo-se também a um
grupo de partigiani de Vale d´Aosta. Foi preso no dia 13 de dezembro de 1943
pela Milícia Fascista e em fevereiro de 1944 é deportado para o campo de
concentraçao nazista de Auschwitz, na Polônia, onde permaneceu até janeiro
de 1945. Em Auschwitz, trabalha como químico no laboratório da fábrica de
borracha sintética anexa ao campo. Como faltava mão-obra e também porque
falava alemão, esse trabalho lhe permitiu sobreviver.
Quando o exército russo invade o campo de concentração, transfere os
prisioneiros, mas deixa os doentes à própria sorte. Levi, que estava com
escarlatina, salva-se pela segunda vez, mas somente depois de uma odisséia
em toda a Europa consegue retornar à Itália — essa aventura ele conta no livro
La Tregua (1963). Sobre essa mesma temática escreveu também I sommersi e
i salvati (1986), mas seu primeiro livro é também o mais conhecido, Se questo
é un uomo (1947), no qual conta o período que passou em Auschwitz.
Segundo o autor, o livro não foi escrito em ordem cronológica, mas com
a urgência do que precisava ser dito. No prefácio, Levi avisa que não foi escrito
para fazer novas denúncias, mas poderia fornecer documentos para um estudo
de certos aspectos da alma humana; que é consciente dos defeitos estruturais
do livro e pede desculpas por eles. Para o autor, o livro tinha a finalidade de
liberação interior, escrever sobre o Larger foi uma necessidade vital, como
143
dormir, comer e beber. Nada era fruto da imaginação, portanto o objetivo do
livro era mais documentar e expurgar a experiência terrível.
Apesar de não se considerar judeu praticante, a abertura do livro se dá
com um poema196, no qual o autor não pede compaixão, mas consciência e
vigilância moral. Primo Levi prende o leitor, convidando-o a se colocar no seu
lugar desde o início, e com o uso do vós relembra os apelos dantescos:
Voi che vivete sicuri Nelle vostre tiepide case Voi che trovate tornando a sera Il cibo caldo e visi amici: Considerate se questo è un uomo Che lavora nel fango Che non conosce pace Che lotta per mezzo pane
Che muore pe un si o per un no. [...] (p. 2)197
Quando relata a organização das famílias para partirem no trem rumo a
Auschwitz, nos sensibiliza: “Non fareste anche voi altrettanto? Se dovessero
uccidervi domani col vostro bambino, voi non gli dareste oggi da mangiare?” (p.
8). 198 O uso da conjunção se é recorrente, condicionando o leitor a colocar-se
ao seu lado na visita daquele inferno.
Como observou Gramsci199 sobre a história literária italiana, nos textos
autobiográficos predominam a simplicidade e a sobriedade, contra a hipocrisia
estilística. Realmente, sem muita retórica, o relato desse químico é um dever
moral de não silenciar. Sua urgência no dizer, porém, também demonstra sua
familiaridade com a literatura. Levi era de família burguesa, seus estudos
literários do Liceu Clássico fazem-se presente na sua escrita, que invoca Dante
196 Mario Barenghi também associa o poema ao modelo das orações judias “Shemá”, que em hebraico significa “ouve”. Cf BARENGHI, Mario. A memória da ofensa. Recordar, narrar, compreender. Trad. Maurício Santana Dias. In: NOVOS ESTUDOS CEBRAP, 73, novembro 2005. p. 175-191.
197 Vocês que vivem seguros/ nas suas casas quentes/ que tornando de noite encontram /a comida quente e os rostos dos amigos: Consideram isso um homem/ que trabalha na lama/ que não conhece paz/ que luta pela metade de um pão/ que morre por um sim ou por um não. 198 Vocês não fariam igualmente? Se devessem morrer amanhã com seu filho, não lhe dariam hoje de comer? 199 CC, vol. 6, p. 252.
144
e Virgílio. Depois do sucesso de Se questo é un uomo200, sobretudo entre os
jovens, foi tradutor de O Processo de Kafka, e de Levis-Strauss (La via delle
maschere e Lo sguardo da lontano), passa a escrever para jornais
periodicamente, sendo convidado para muitas entrevistas, principalmente em
escolas.
Barenghi201 situa o livro na tradição memorialística italiana como o mais
importante relato do século XX, pois se antes os relatos do eu transitavam pela
excepcionalidade da vida do autor-narrador, em Levi, ele passou a ser vítima e
objeto da história. Essa análise do crítico delineia bem a representação do livro,
que é o de mostrar uma sobrevivência e não a história de uma vida.
O que torna a experiência pessoal digna de ser narrada — ou melhor,o que torna a sua narração indispensável — é um destino não desejado, não procurado e em grande medida inesperado. O que está em jogo, como sempre ocorre nas fases cruciais da tradição autobiográfica, é a definição de uma identidade. No entanto, em vez da descoberta ou da conquista de uma identidade individual, agora se fala de uma identidade negada (tanto ao indivíduo quanto a um povo em seu conjunto); ou, mais precisamente, da imposição feroz de uma não-identidade, que prenuncia o extermínio físico. Longe de pressupor um enriquecimento ou uma regeneração, o trabalho autobiográfico se funda numa experiência de extremo depauperamento, sofrida até o limite da demolição (um termo que Levi usa em sentido quase técnico). Impregnado também pelas características da literatura neorrealista e dos
sentimentos do pós-guerra, Primo Levi apresenta o espírito de resistência e a
voz da coletividade. Em linguagem enxuta e cinematográfica, o narrador-
personagem protagoniza uma minoria esmagada, mas na sua prioritária
denúncia, não mostra como se sente enquanto ser humano que tem também
sentimentos negativos, que o poderiam julgá-lo também como mau. Quando
200 A primeira edição do livro foi editada com uma tiragem de 2.500 cópias por uma pequena editora, De Silva, depois que algumas grandes editoras rejeitaram a proposta. A obra teve uma recepção entusiasmante , principalmente com o depoimento de Italo Calvino, que definiu o livro como a mais bela experiência do campo de concentração. Somente em 1958, Se questo è un uomo foi reeditado pela editora Einaudi, na coleção «Saggi», com algumas modificações, dentre elas, um capítulo novo – “Iniziazione”. Após essa edição, o livro foi traduzindo em várias linguas e hoje é considerado uma das obras mais importantes sobre o extermínio judaico. Cf. Centro Internazionali di Studi Primo Levi. Disponível em: http://www.primolevi.it/Web/Italiano/Contenuti/Opera/110_Edizioni_italiane/Se_questo_%C3%A8_un_uomo 201 BARENGHI, Marcos. A memória da ofensa. op. cit.
145
fala das divisões para a câmara de gás, Levi se lembra de um senhor que
agradecia por não ter sido escolhido.
Adesso ciascuno sta grattando attentamente col cucchiaio il fondo della gamella per ricavarne le ultime briciole di zuppa, e ne nasce un tramestio metallico sonoro il quale vuol dire che la giornata è finita. A poco a poco prevale il silenzio, e allora, dalla mia cuccetta che è al terzo piano, si vede e si sente che il vecchio Kuhn prega, ad alta voce, col berretto in testa e dondolando il busto con violenza. Kuhn ringrazia Dio perché non è stato scelto. Kuhn è un insensato. Non vede, nella cuccetta accanto, Beppo il greco che ha vent’anni, e dopodomani andrà in gas, e lo sa, e se ne sta sdraiato e guarda fisso la lampadina senza dire niente e senza pensare più niente? Non sa Kuhn che la prossima volta sarà la sua volta? Non capisce Kuhn che è accaduto oggi un abominio che nessuna preghiera propiziatoria, nessun perdono, nessuna espiazione dei colpevoli, nulla insomma che sia in potere dell’uomo di fare, potrà risanare mai più? Se io fossi Dio, sputerei a terra la preghiera di Kuhn.202
Na sua última frase, coloca-se no lugar de Deus para julgar o velho que
agradecia por se salvar. Diferentemente, Graciliano Ramos, presidiário, mostra-
se nos mais diversos ângulos, sem receio de expor até mesmo seus
preconceitos. Quando fala de negros, ele usa exatamente essa palavra, sem
medo de ser taxado de racista. Quando compra a cama a Cubano, apesar das
reclamações de outros presos com a saúde debilitada, ele se assume um
proprietário e mostra o lado humano de ser egoísta às vezes para sobreviver,
principalmente na cadeia. Seu realismo é tão verdadeiro que, quando fala do
homossexualismo na prisão, ele se despe da falsa aceitação, para assumir que
tinha nojo dessa prática, e até discute se não foi a própria formação rude que
lhe levou a pensar assim. Levi é bem mais comedido, não há rancor na sua
voz, mas também não há perdão. A informação por si é bastante como
denúncia.
202 Agora todo mundo está raspando com a colher o fundo da gamela para aproveitar as últimas partículas de sopa, e surge uma barulheira metálica indicando que o dia acabou. Pouco a pouco faz-se silêncio. Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn rezando em voz alta, com o boné na mão, balançando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido. Kuhn é um Insensato. Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem vinte anos e depois de amanhã vai para o gás e sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem falar nada, sem pensar em nada? Não sabe Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação que nenhuma oração propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer, chegará nunca a reparar? Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn.
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Em entrevista203, Primo Levi fala que a memória é um dever moral para
não apagar a ofensa e que cada um deve lutar para permanecer um homem e
não perder a dignidade. Na sua objetividade, relata com a lucidez de quem não
consegue e nem quer esquecer, nesse sentido, a literatura foi sua fuga para
liberdade. Seu valor está muito mais na sua missão educativa de relembrar —
não deixar a humanidade cancelar a Shoah204.
Embora algumas de suas lembranças sejam seletivas: “Molte cose
furono allora fra noi dette e fatte; ma di queste è bene che non resti memoria205”
(p. 14), o narrador deseja esquecer tantos absurdos. Os capítulos curtos do
livro sintetizam como em notas de diário a escrita do essencial. Não existem
divagações no seu contar, pois seu realismo é sempre vigilante e acordado,
“L’alba ci colse come un tradimento; come se il nuovo sole si associasse agli
uomini nella deliberazione di distruggerci.”206 (p.15). O passar do tempo é uma
outra arma contra as vítimas, pois o dia seguinte é sempre de lança apontada
para quem vai morrer ou quem vai sobreviver: “Quello che accadde degli altri,
delle donne, dei bambini, dei vecchi, noi non potemmo stabilire allora né dopo:
la notte li inghiottì, puramente e semplicemente. Oggi però sappiamo207. (p.29).
No capítulo “I sommersi e i salvati”, o autor coloca como um ensaio científico
que a vida está lançada à sorte dos que conseguirão se salvar ou dos que vão
morrer. Aliás, a palavra sorte é muito utilizada, tanto com ironia como no seu
sentido literal. O escritor inicia o prefácio com ela: “Per mia fortuna, sono stato
deportato ad Auschwitz solo nel 1944208.” O fato de ser químico também era
uma fortuna, pois assim pôde trabalhar na fábrica e escapar do trabalho mais
pesado. Para ele, foi a sorte que lhe salvou da morte.
203 LEVI, Primo. Entrevista concedida a Lucia Borgia. In: Rifarsi una vita. Rai 2, 1984. Programa de TV. 204 A comunidade hebraica prefere utilizar o termo shoah, ao invés de holocausto. Enquanto o primeiro significa extermínio, o segundo representa sacrifício de uma vítima para receber perdão ou livrar-se de uma culpa. 205 Falamos de muitas coisas naquelas horas; fizemos muitas coisas; mas é melhor que não permaneçam na memória 206 O nascer do dia foi como uma traição; como se o novo sol se associasse com os homens na tarefa de nos destruir. 207Aquilo que acontece aos outros, as mulheres, as crianças, os velhos, nós não pudemos saber naquele momento nem depois: a noite os engoliu, puramente e simplesmente. Hoje, porém, sabemos. 208 Para minha sorte, fui deportado para Auschwitz só em 1944.
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Levi fala da sua partida com a certeza de quem se dirigia para a morte:
“Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente.”
(p.13). O cárcere não era somente isolamento social, mas a perda de toda e
qualquer certeza sobre o futuro. A perplexidade com a violência do nazismo é
seu modo de superar as agressões, pois a única certeza da condição humana
é a de não ser infinita: “Qui ricevemmo i primi colpi: e la cosa fu così nuova e
insensata che non provammo dolore, nel corpo né nell’anima. Soltanto uno
stupore profondo: come si può percuotere um uomo senza collera?” 209
Na chegada, Levi relembra a chegada de Dante ao Inferno. A voz de
Caronte que recebe as almas no rio Aqueronte repete-se:
“Guai a voi, anime prave” ci domanda cortesemente ad uno ad uno, in tedesco e in lingua franca, se abbiamo danaro od orologi da cedergli: tanto dopo non ci servono più.
Non è un comando, non è regolamento questo: si vede bene che è una piccola iniziativa privata del nostro caronte.210
A frase encontrada na porta de entrada é extremamente sarcástica,
revelando o nível do deboche psicótico da política de Hitler, e persegue o
narrador para sempre em sonho: “(il suo ricordo ancora mi percuote nei sogni):
ARBEIT MACHT FREI, il lavoro rende liberi.”
A experiência de Levi é evidentemente muito mais traumática, tanto que
praticamente quase toda a sua obra depois desse livro foi autobiográfica e com
a temática do massacre aos judeus. A incisão os fatos na memória não foi a
tentativa do autor em recuperar algum tipo de equilíbrio, pois parece que seu
contar é a despedida da vida, como se ele já tivesse morrido no campo.211 No
capítulo que fala da identificação dos presos, ele lembra dessa incisão na pele:
“Häftling: ho imparato che io sono uno Häftling. Il mio nome è 174 517; siamo
209 Aqui recebemos os primeiros golpes: e isso foi assim novo e insensato que não sentimos dor, nem no corpo nem na alma. Apenas um profundo assombro: como é que pode-se bater num homem sem raiva? (p.20) 210 “Ai de vós, almas danadas” Perguntou gentilmente, um a um, em alemão e em língua franca, se tínhamos relógios ou dinheiro para dar-lhe; de qualquer modo, não nos serviriam mais. Isso não era uma ordem nem um regulamento, mas uma pequena iniciativa pessoal do nosso Caronte. (p.32) 211 Primo Levi suicidou-se em 1987, ano seguinte ao lançamento de I sommersi e i salvati.
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stati battezzati, porteremo finché vivremo il marchio tatuato sul braccio sinistro”.
(p. 43).212
O tema da dignidade humana é recorrente e Primo Levi parece estar
sempre juntando os farrapos da miséria para escrever e sobreviver: “Pochi
sono gli uomini che sanno andare a morte com dignità, e spesso non quelli che
ti aspetteresti.”213 (p. 25). Sobreviver para testemunhar, testemunhar para
sobreviver – esse é o círculo de andamento da narração no livro. Obedecer as
regras não por submissão, mas com a convicção de recuperar-se como ser
humano:
Il Lager è una gran macchina per ridurci a bestie, noi bestie non dobbiamo diventare; che anche in questo luogo si può sopravvivere, e perciò si deve voler sopravvivere, per raccontare, per portare testimonianza; e che per vivere è importante sforzarci di salvare almeno lo scheletro, l’impalcatura, la forma della civiltà. Che siamo schiavi, privi di ogni diritto, esposti a ogni offesa, votati a morte quasi certa, ma che una facoltà ci è rimasta, e dobbiamo difenderla con ogni vigore perché è l’ultima: la facoltà di negare il nostro consenso. Dobbiamo quindi, certamente, lavarci la faccia senza sapone, nell’acqua sporca, e asciugarci nella giacca. Dobbiamo dare il Nero alle scarpe, non perché così prescrive il regolamento, ma per dignità e per proprietà. Dobbiamo camminare diritti, senza strascicare gli zoccoli, non già in omaggio alla disciplina prussiana, ma per restare vivi, per non cominciare a morire. (p. 70).214
Para ele, aqueles homens haviam perdido a sensibilidade, com exceção
de Lorenzo, seu amigo, tanto as vítimas quanto os opressores haviam perdido
a condição de ser humano:
212 Häftling:aprendi que sou um häftling. Meu nome é 174.517; fomos batizados, levaremos enquanto vivermos a marca tatuada no braço esquerdo. 213 São pouco os homens que sabem caminhar para morte com dignidade, e frequentemente são aqueles que você menos espera.
214 O campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esfoçar-nos por salvar ao menos o esqueleto, a estrutura, a fôrma da civilidade. Somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a cada ofensa, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso sentimento. Devemos, portanto, lavarmos o rosto, certamente sem sabão, na água suja, e enxugando-nos com o casaco. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim prescrive o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos caminhar eretos, sem arrastar os tamancos, não em homenagem à disciplina prussiana, mas para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer.
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I personaggi di queste pagine non sono uomini. La loro umanità è sepolta, o essi stessi l’hanno sepolta, sotto l’offesa subita o inflitta altrui. Le SS malvage e stolide, i Kapos, i politici, i criminali, i prominenti grandi e piccoli, fino agli Häftlinge indifferenziati e schiavi, tutti i gradini della insana gerarchia voluta dai tedeschi, sono paradossalmente accomunati in una unitaria desolazione interna. Ma Lorenzo era un uomo; la sua umanità era pura e incontaminata, egli era al di fuori di questo mondo di negazione. Grazie a Lorenzo mi è accaduto di non dimenticare di essere io stesso un uomo.215 O pedreiro Lorenzo216 é a centelha de esperança no ser humano. Esse
personagem várias vezes levava parte da sopa dos trabalhadores externos
para Levi, arriscando a própria vida. A grande generosidade de Lorenzo é
demonstrada através de gestos pequenos, mas que no campo tomavam
dimensões imensas. Lorenzo Perrone deu-lhe também uma camiseta cheia de
remendos, além de conseguir enviar para Levi um cartão à Itália. (Cf. LEVI,
1989, p. 201, 204, 236). Lorenzo também é exemplo de dignidade para Levi
porque desempenha da melhor maneira possível o seu trabalho, como forma
de manter a própria integridade diante da ofensa.
No prefácio de La Tregua217, o escritor explica que a piedade e a
indignação que o texto pode causar devem ser deixadas de lado, pois é mais
importante ser crítico na leitura do nazismo. O seu testemunho, e talvez
nenhum outro, não pode permitir o verdadeiro conhecimento do que foram os
campos de concentração. Nas condições desumanas em que as pessoas
foram subjugadas, um observador não poderia ter uma visão geral de todo
aquele universo. Havia a diversidade das línguas, não se sabia nem mesmo
onde estava, as transferências em massa, tudo com o objetivo de aniquilar o
ser humano. Se a prisão comum faz perder a identidade, os campos de
concentração conseguiram tirar inclusive a dignidade. Cercados pela morte, o
215 Os personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade foi sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, sob a ofensa padecida ou infligida a outros. Os SS maus e brutos, os Kapos, os políticos, os criminosos, os proeminentes grandes e pequenos, até os häftlinge indiscriminados e escravos, todos os graus da hierarquia insensata criada pelos alemães estão, paradoxalmente, juntos numa única desolação interna. Mas Lorenzo, não. Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura, incontaminada, ele estava fora desse mundo de negação. Graças a Lourenço, não me esqueci de que eu também era um homem. 216 Levi retoma esse personagem no conto “Il ritorno di Lorenzo”. In: Lilít e altri racconti. Torino: Einaudi, 1981, p. 68-77. 217 LEVI, Primo. La Tregua. Milano: Einaudi, 1986.
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amigo que estava ao lado, no dia seguinte já poderia não estar mais. Enfim,
numa teia de ameaças, não era possível construir representações porque a
visão do autor era imediata, voltada apenas para o lugar onde pisava e para
aquele instante. Todos esses fatores condicionavam os testemunhos dos
“afortunados” que conseguiram se salvar. Por isso o autor nos avisa: os que se
salvaram, como ele, não conseguiram contar profundamente, mas talvez os
privilegiados que conseguiriam fazê-lo melhor não voltaram para contar toda
aquele horror.
Na confusão de tantas línguas faladas no campo, Levi mostra que em
nenhum delas é possível explicar essa ofensa, mas somente com o registro
literário é que ele próprio conseguiu essa liberação :
Allora per la prima volta ci siamo accorti che la nostra lingua manca di parole per esprimere questa offesa, la demolizione di un uomo. In un attimo, con intuizione quasi profetica, la realtà ci si è rivelata: siamo arrivati al fondo. Più giù di così non si può andare: condizione umana più misera non c’è, e non è pensabile. Nulla più è nostro: ci hanno tolto gli abiti, le scarpe, anche i capelli; se parleremo, non ci ascolteranno, e se ci ascoltassero, non ci capirebbero. Ci toglieranno anche il nome: e se vorremo conservarlo, dovremo trovare in noi la forza di farlo, di fare sì che dietro al nome, qualcosa ancora di noi, di noi quali eravamo, rimanga (p. 41-42).218
Pellico liga-se a fé para superar a opressão; e Levi, apesar da formação
cristã, perdeu totalmente a esperança depois de Auschwitz:
Oggi io penso che, se non altro per il fatto che un Auschwitz è esistito, nessuno dovrebbe ai nostri giorni parlare di Provvidenza: ma è certo che in quell’ora il ricordo dei salvamenti biblici nelle avversità estreme passò come un vento per tutti gli animi. (p. 251).219
218 Então, pela primeira vez, nos damos conta de que na nossa língua faltam palavras para expressar essa ofensa, a demolição de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais baixo do que isso nao é possível: condição humana mais miserável não existe, e não é imaginável. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão,e se nos escutassem, não nos compreenderiam. Tiraram-nos também o nome: e se quisermos conservá-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, daquilo que éramos permaneça. 219 Hoje eu acho que, se não fosse o fato que existiu um Auschwitz, ninguém deveria falar de Divina Providência nos nossos dias: mas é claro que naquela hora a lembrança das salvações bíblicas passou como um vento pelo espírito de todas as almas.
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Graciliano não espera nenhuma salvação divina e, como Gramsci, não
acredita na Providência. Aliás, ele até ridiculariza a ofensa da Igreja em mandar
o Padre Mangaratiba para salvar suas almas no presídio. Sua descrição é
ferina e ao mesmo tempo sutil:
Sem dúvida nos julgava animais perigosos enjaulados. Entrava na jaula, mas sentia-se defendido, livre das nossas garras, e esfregava as mãos, satisfeito. Indisfarçável aquele ar de triunfo e segurança. Ficou alguns minutos em silêncio, o sorriso a espalhar-se em todo o rosto, em seguida iniciou a catequese num discurso mastigado, cheio de erros pavorosos. Nunca ouvi tanta besteira. Logo no princípio engasgou-se e recorreu atarantado a uma poesia do Conde Afonso Celso: “Seria enorme crime não amar aqui a Deus”. Atrapalhou-se muitas vezes, e sempre que isto acontecia largava a citação maluca; se havia no mundo lugar onde o amor de Deus estava naturalmente excluído, era aquele. Felizmente o orador não me via a cara, atrás de um repórter volumoso bastante para esconder-me, e fazia em voz baixa comentários ao sermão e à literatura do conde. (MC, vol. 2, p. 130-131).
Depois dessa primeira catequese do Padre, Graciliano conta que em
ocasião seguinte, a presença da religião mascarava os carcereiros em fingida
brandura e essa falsidade poderia criar revolta se a lengalenga do padre não
fosse tão ridícula e divertida. No próximo discurso, o padre:
Avançava, recuava, dava por paus e por pedras, como se tivesse o desígnio de nos afastar do céu, a meter sempre no aranzel a cunha poética: — “Seria enorme crime não amar aqui a Deus”. Encolhia-me para não ser visto e alargava-me em elogios graves sussurrados na orelha do vizinho da frente. Larguei um disparate cabeludo, o moço perdeu os estribos e pôs-se a rir. (MC, vol. 2, p. 131).
A piada sobre o ramerrão do discurso do padre faz o pregador
interromper a oratória e sinalizar que o rapaz deveria apresentar-se em
secretaria. Graciliano comove-se arrependido do que disse: “Estremeci. Por
minha causa o pobre ia ficar às escuras, receber um pires de feijão por dia,
sem conseguir estirar-se no cubículo molhado de um metro e pouco.” (MC, vol.
2, p. 132). Sentindo-se responsável pela punição do rapaz, o narrador expõe
sua culpa contraposta aos valores éticos:
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Achava-me na obrigação de responsabilizar-me, dizer aos homens de beiço rachado que a culpa era minha: sem as pilhérias bestas, não teria havido o riso. Ao mesmo tempo uma idéia cautelosa insinuava-se, malandra: a honradez excessiva não serviria para nada; o mais certo era meterem os dois na cela; querendo salvar o companheiro, ia prejudicá-lo, tomar-lhe o espaço reduzido. (MC, vol. 2, p. 132).
Sabendo que não aliviaria a pena do rapaz, o narrador confidencia ao
leitor sua culpa e a inutilidade de assumi-la perante as autoridades, pois aquilo
só teria uma conseqüência: o seu confinamento também no cubículo solitário.
Graciliano, então, compara seu estado físico à robustez do moço, que seria
capaz de suportar aquele castigo por alguns dias, mas para ele seria uma
sentença suicida. Muito transparente, o memorialista se despe da falsa
moralidade para mostrar que a honestidade naquela situação era inviável.
É estranho um indivíduo perceber que não tem meio de ser digno. Mas relutava em convencer-me disto, não via a exigência de comportamentos diversos em condições diversas. Com efeito, lá dentro os melindres de consciência embotoam-se, alteram-se os valores morais – e o nosso dever principal é existir. (MC, vol. 2, p.132).
Em Memórias do cárcere a dignidade e os valores éticos são mostrados
pelo próprio ato do escritor em assumir-se humano e passível de tomar
decisões nem sempre adequadas ao que se considera comumente correto.
Diferente do malandro, que se esconde por esperteza, o narrador confessa sua
culpa ao leitor, fazendo-o testemunha desse ato. Daí, então, a grande diferença
do seu fazer literário em relação aos apelos diretos de Levi, que envolve o leitor
como testemunha, mas também o amaldiçoa se ele não se comove com toda
aquela desventura.
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Odeio os indiferentes. Creio, como Friedrich Hebbel, que “viver é tomar partido”. Não podem existir os que são apenas homens, os estranhos à cidade. Quem vive verdadeiramente não pode deixar de ser cidadão, e de tomar partido. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Por isso, odeio os indiferentes.
A indiferença é o peso morto da história. É a âncora que paralisa o inovador, a matéria inerte onde se afogam frequentemente os mais esplêndidos entusiasmos, o pântano que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, já que traga em suas areias movediças os que combatem e os dizima, os desencoraja e, muitas vezes, os faz desistir do empreendimento heróico.
A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. (GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. vol. 1, p. 84)
Com esta pesquisa tentamos mostrar como Antonio Grasmci aproxima-
se a Graciliano Ramos por dois grandes caminhos: a experiência da prisão
como efeito por enfrentarem um mundo injusto e a crença na importância da
literatura como meio de esclarecer os homens.
A experiência do cárcere foi um divisor de águas na produção literária do
escritor brasileiro. Se antes já possuia idéias marxistas, através desse
momento empírico, seu realismo ganha uma têmpera específica. Se antes, ele
já contemplava as injustiças sociais de um lado da sociedade — enquanto
comerciante da Loja Sincera, prefeito, escritor e diretor da Instrução Pública, na
prisão ele desce ao inferno para conhecer as misérias ainda mais escondidas.
No seu relato memorialístico, verdadeiramente mostrou aqueles homens de
cuecas, e não teve medo de despir-se de todas as máscaras sociais para se
mostrar cada vez mais humano. A sua coerência política levou-o à prisão. Seu
equilíbrio foi a base para caminhar no campo minado do Realismo Socialista,
evitando receitas e equívocos, e nem mesmo como funcionário do governo foi
porta-voz do Estado Novo.
Estudioso da alma humana, ultrapassou os costumes do Nordeste para
mostrar que a exploração do homem pelo homem é a miséria da sociedade sob
qualquer condição que se apresente. Clara Ramos relembra as atitudes do pai,
contrárias ao patriarcalismo nordestino comum de sua época:
155
Para as filhas dirigem-se sua ternura, seus cuidados de formação intelectual. Com elas conversa sobre tudo o que no momento o interesse. Se as encontra nos chamados afazeres domésticos, tricotando, por exemplo, aflige-se: – Por que não vai estudar? Por mais que se esforce, as máquinas hoje tecem melhor que você. Se a tecelã em questão declara-se eruditíssima estudante, já passada em todas as matérias, sem necessidade de estudo complementar, o pai sugere rápido: – Então leia um romance. 220
Antonio Gramsci, em 1932, escreve à mãe preocupado com a educação
da sobrinha, Edmea,221 que crescia com poucas ambições na Sardenha, sem
perspectiva de um futuro em relação aos estudos:
O que me parece essencial no seu caso e que deve servir a todos vocês é quanto à conduta que seguirão face à mesma [Edmea] é a necessidade de fazê-la sentir que depende dela e de sua vontade saber ou não empregar esse tempo para estudar por sua conta, além dos programas da escola, para estar capacitada, caso mudem as condições, a dar um salto à frente e retomar uma carreira escolar mais brilhante. Tudo está em que ela tenha boa vontade e ambição, no sentido nobre da palavra. De resto o mundo não desabará se ela terminar sua vida em Ghilarza fazendo meias por não ter desejado tentar fazer algo melhor e mais brilhante. Não sei se ela está inscrita na juventude italiana. Penso que sim, conquanto não tenham nunca me escrito, e imagino que se tratando desses assuntos de parada ela tenha ambição. Deste modo, seguirá a sorte das outras jovens italianas, a de se tornarem boas mães de família, como se diz, dado que encontrem imbecis que as esposem, o que não é seguro, porque os imbecis querem galinhas como mulheres, mas galinhas com contornos de terra ao sol e economias na caixa.222
Revolucionário à frente do seu tempo, também pensava na condição da
mulher sem precisar de bandeira feminista. Sua crítica forte ao atraso com que
era subjugada a mulher refere-se a qualquer classe subalterna porque percebia
que uma autonomia só poderia ser advinda como conseqüência de uma
revolução no pensamento e na cultura. Preso pelo fascismo, é a maior
representação de resistência pela escrita. A condenação de vinte anos ao invés
de paralisar sua luta política, foi a mola propulsora para não silenciar sua
220 RAMOS, Clara. Elementos de biografia. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Graciliano Ramos. Op. cit. p. 319. 221 Filha do irmão mais velho, Gennaro, também militante e exilado na França. 222 GRAMSCI, Antonio. Cartas. Op. cit., p. 265.
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mente. Nos seus estudos, avançou na política, sociologia, filosofia como
também na crítica literária de sua época. Sua ênfase à ação dos intelectuais na
vida cultural foi crucial para novas propostas concretas de mudanças sociais.
Sem banalizar a arte ao panfleto publicitário, soube reverenciar a criação
literária, que na sua essência já é política e pode emancipar os mais humildes
e transformar o mundo. Atento ao abismo que ainda hoje divide a Itália entre o
sul, agrícola e arcaico, e o norte, industrial e desenvolvido, propôs a união das
classes subalternas para uma verdadeira mudança nacional, maior até que o
Risorgimento. Essa proposta ainda é válida e atual, na medida em que os
assalariados se multiplicam e o contadino ainda continua explorado.
Valorizando sempre a cultura de origem, superou o localismo para defender
uma causa maior, que é a superação da hegemonia das classes dominantes
sobre os menos favorecidos. Propondo sempre a moderação das idéias e
atitudes contra o sectarismo, também é incompreendido dentro do partido que
ele mesmo ajudou a construir, sendo ainda, depois, rotulado e marginalizado.
Como bem disse Aristóteles, a virtude está no meio. Esses dois homens
buscaram equalizar o trabalho intelectual e a luta social. Avessos à exploração
capitalista e aos equívocos stalinistas que inviabilizaram o comunismo, ambos
são ícones da resistência às ditaduras das duas partes no século XX.
Certamente suas lutas não foram em vão, e, por isso, eles não podem ser
esquecidos.
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I – De Graciliano Ramos
Caetés (1933). 9ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
S. Bernardo (1934). 11ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1977.
Angústia (1936). 18ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
Vidas secas (1938). 31ª. ed. Rio de Janeiro: Martins, 1973.
Infância (1945). São Paulo: Record, 1995. (Mestres da Literatura Contemporânea)
Insônia (1947). 18ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982.
Memórias do cárcere (1953). 39ª. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2002. 2 vols.
Viagem (1954). 12ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983.
Viventes das Alagoas (1962). 12ª. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983.
Alexandre e outros heróis (1962). 19ª. ed. São Paulo: Martins, 1980. (Inclui Histórias de Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena história da República)
Linhas tortas (1962). 10ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983.
Cartas. Graciliano Ramos (1980). 3ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982.
II – De Antonio Gramsci
Cadernos do cárcere. 3a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 6 v.
Cartas do cárcere. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Literatura e vida nacional. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Lettere dal cárcere. Org. de Antonio Santucci. Palermo: Sellerio, 1996.
Os intelectuais e a organização da cultura. 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 2 v.
Pensare l´Italia. Milano: Fondazione Istituto Gramsci, 2002.
159
III - Sobre Graciliano Ramos
BASTOS, Hermenegildo. Memórias do cárcere: literatura e testemunho. Brasília: Editora UnB, 1998.
BRAYNER, Sônia. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. (Fortuna crítica, 2)
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
CRISTÓVÃO, Fernando Alves. Graciliano Ramos: estrutura e valores de um modo de narrar. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Brasília/Rio, 1977.
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____. A verdade entre Marx e Brecht. In: FALLEIROS, Marcos Falchero. Scriptoria II: ensaios de literatura. Natal: EDUFRN, 2000. p. 185-202.
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MORAES, Dênis de. O velho Graça. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
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TERESA. Revista de Literatura Brasileira. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP, nº 2, Editora 34, 2001.
160
IV- Sobre Antonio Gramsci
CASES, Cesare. Gramsci e i problemi della letteratura. In: Gramsci e la cultura contemporânea. Atti del Convegno Internazionali de studi gramsciani tenuto a Cagliari il 23-27 aprile 1967. Roma: Riuniti/ Istituto Gramsci, 1975. p. 291-295.
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