universidade federal de santa catarina · el marco teórico se sedimentó de fustel de coulanges,...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
CENTRO DE CINCIAS JURDICAS
Idir Canzi
A PRODUO DO ESPAO JURDICO-POLTICO DOS
MUNICPIOS NO DIREITO INTERNACIONAL: A PRXIS DO
CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA FRONTEIRA(CIF).
Tese submetida ao Programa de
Doutorado em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina para a obteno
do Grau de Doutor em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Arno Dal Ri Jnior
Florianpolis
2016
-
Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor,
atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria
da UFSC.
-
Este trabalho dedicado a todos
aqueles que acreditam na produo do
espao local e global que torna a vida
mais interessante em tempos de
grandes mudanas de paradigmas.
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AGRADECIMENTOS
Universidade Federal de Santa Catarina pela expanso do
Curso do Doutorado em Direito, via convnio firmado com a
Universidade Comunitria da Regio de Chapec (UNOCHAPEC),
Chapec-SC (Dinter 2012/2016).
Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Direito
(CPPGD) da Universidade Federal de Santa Catarina.
CAPES, avaliadora da qualidade do Programa de Ps-
Graduao em Direito.
Ao professor orientador Dr. Arno Dal Ri Jnior, referncia
profissional para a pesquisa, amizade e saber jurdico-poltico decisrio.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Direito
(PPGD) da UFSC pelas aulas ministradas, incentivos e contribuies
tericas.
Aos professores membros da banca examinadora, pelas sugestes,
crticas e incentivos.
UNOCHAPEC, instituio de ensino superior que
possibilitou o espao da minha experincia docente/profissional.
A todos os professores do Curso de Direito da UNOCHAPEC e
colegas da turma do Dinter pela trajetria de vida, trabalho, estudo,
pesquisa e vivncias.
Aos dirigentes, integrantes e funcionrios do Consrcio
Intermunicipal da Fronteira (CIF), pela indispensvel contribuio em
material e base do objeto do estudo e pesquisa.
Aos professores Arno Dal Ri Jnior, Altamir Dutra, Celso
Zarpelon, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Marcelo Markus Teixeira,
Reginaldo Pereira e Silvana Winkler pela parceria de vivncias, amizade
e trabalho, para alm da produo de um mundo de coisas boas.
Aos acadmicos da graduao em Direito da UNOCHAPEC
pela histria de vida compartilhada.
Ao amigo Victor Rojas, pelas conversas sobre utopia e realidade
da cidade educadora, perspectiva e futuro de todos ns.
Ao amigo, do bom dia da bicicleta, Sr. Lima, e aos jardineiros,
Ademir e Roseli, da Rua Servido Oliveira, Rio Vermelho
Florianpolis-SC.
Aos familiares pelo amor e carinho recebidos, em especial Iraci,
Eduarda, Daniel, Maria e Tarcsio. Famlia da alegria e do vinho
famlia Canzi, obrigado!
vida e sua produo cotidiana.
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A cidade deveria ser bem mais interessante
do que (Eduarda Andrade Canzi, 2016).
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RESUMO
A tese versa sobre a produo do espao jurdico-poltico dos
municpios no direito internacional, tomando por base a prxis dos
municpios de Dionsio Cerqueira (SC), Bernardo de Irigoyen (Provncia
de Misiones), Barraco (PR) e Bom Jesus do Sul (PR), integrantes do
Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF). O problema central de
pesquisa indaga sobre a seguinte questo: os municpios do Consrcio
Intermunicipal da Fronteira (CIF), ao produzirem o espao social,
poltico, econmico e cultural a partir da prxis do local e seu entorno,
com atividades nas relaes internacionais, se tornam ou no sujeitos
jurdicos de direito internacional? O desenvolvimento da tese estruturou-
se em trs captulos, com densidade temtica aprofundada na doutrina,
legislao e documentos de fonte primria, primeiramente com destaque
sobre a produo do espao como dimensionalidade jurdico-poltica da
cidade, seguido da abordagem da produo do espao jurdico-poltico
dos municpios no direito internacional e fechando com a anlise da
prxis dos municpios integrantes do Consrcio intermunicipal da
Fronteira (CIF). O aporte terico foi sedimentado a partir de Fustel de
Coulanges, Pietro Costa, Henri Lefebvre, Ding, Dallier e Pellet,
Dominique Carreau, Jean Touscouz, Paolo Grossi, Santi Romano, Arno
Dal Ri Junior, jurisprudncia da Corte Internacional de justia (CIJ)
remissiva deciso do caso Folke Bernadotte, legislao e fontes
primrias vinculadas a documentos e leis originrias produzidas pelos
municpios do Consrcio Intermunicipal da Fronteira. A pesquisa
utilizou-se do mtodo analtico-crtico de abordagem e de procedimento
monogrfico. A hiptese no se confirmou, pois os municpios do
Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF), ao produzirem o espao
social, poltico, econmico e cultural, a partir da prxis do local e seu
entorno, com atividades nas relaes internacionais, criam uma
juridicidade especfica, relacional e prpria dos espaos de
representao glocalizada, caracterizada por um sistema consuetudinrio
de direito internacional margem do direito oficial.
Palavras-chave: 1. Produo do espao jurdico-poltico. 2. Municpios.
3. Sujeitos de Direito Internacional.
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ABSTRACT
The thesis deals with the production of the legal and political space of
the municipalities in international law, based on the practice of Dionsio
Cerqueira (SC), Bernardo de Irigoyen (Misiones Province), Barraco
(PR) and Bom Jesus do Sul (PR), members of the Consrcio
Intermunicipal da Fronteira (CIF). The main problem of research asks
the following question: the municipalities of the Consrcio
Intermunicipal da Fronteira (CIF), to produce the social space, political,
economic and cultural from the local practice, with activities in
international relations, become or not legal subjects of international law
or deals with the production of a specific, relational and own legality of
representation spaces, not responding to national or international
definitions? The development of the thesis was structured into three
chapters, with thematic density in the doctrine, legislation and primary
source documents, first with emphasis on the production of space as a
legal-political dimensionality of the city, followed by the approach to
the production of juridical space political municipalities in international
law and closing with the analysis of praxis of the municipalities of the
Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF). The theoretical framework
was pelleted from Fustel de Coulanges, Pietro Costa, Henri Lefebvre,
Ding, Dallier and Pellet, Dominique Carreau, Jean Touscouz, Paolo
Grossi, Santi Romano, Arno Dal Ri Junior, jurisprudence of the
International Court of Justice (ICJ) remitting the decision of the case
Folke Bernadotte, legislation and primary sources related to documents
originating and laws enacted by the municipalities of the Consrcio
Intermunicipal da Fronteira. The research used the analytical-critical
method of approach and monographic procedure. The hypothesis has not
been confirmed, since the municipalities of the Consrcio
Intermunicipal da Fronteira (CIF) to produce social space, political,
economic and cultural, from the local practice, with activities in
international relations, create a specific, relational juridicity, particular
from the spaces with a glocalizaded representation, characterized by a
consuetudinary system of international law on the margins of official
law.
Keywords: 1. Production of the legal and political space. 2.
Municipalities. 3. International Law Subject.
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RESUMEN
La tesis aborda la produccin del espacio legal y poltico de los
municipios en el derecho internacional, basado en la prctica de
municipios Dionisio Cerqueira (SC), Bernardo de Irigoyen (provincia de
Misiones), Barraco (PR) y Bom Jesus do Sul (PR), los miembros del
Consrcio Intermunicipal de Fronteira (CIF). El problema central de la
investigacin pide a la siguiente pregunta: los municipios del
Consrcio Intermunicipal de Fronteira (CIF), para producir el espacio
social, poltico, econmico y cultural del lugar y sus alrededores
prctica, con actividades en las relaciones internacionales, hacer o no
sujetos jurdicos de derecho internacional, o se trata de la produccin de
una legalidad especfica, relacional y propia de los espacios de
representacin, que no responden a las etiquetas nacionales o
internacionales? El desarrollo de la tesis se estructura en tres captulos,
en profundidad la densidad temtica en la doctrina, la legislacin y las
fuentes primarias de documentos, primero con nfasis en la produccin
del espacio como una dimensin jurdico-poltico de la ciudad, seguido
de la aproximacin a la produccin del espacio jurdico-poltico de los
municipios en el derecho internacional y se cierre con el anlisis de la
praxis de los municipios del Consrcio Intermunicipal da Fronteira
(CIF). El marco terico se sediment de Fustel de Coulanges, Pietro
Costa, Henri Lefebvre, Ding, Dallier y Pellet, Dominique Carreau, Jean
Touscouz, Paolo Grossi, Santi Romano, Arno Dal Ri Junior, la
jurisprudencia de la Corte Internacional de Justicia (CIJ) remitiendo la
decisin del caso Folke Bernadotte, la legislacin y las fuentes primarias
relacionadas con los documentos originarios y las leyes promulgadas
por los municipios del Consrcio Intermunicipal da Fronteira. La
investigacin utiliz el mtodo analtico-crtica del procedimiento de
aproximacin y monogrfico. La hiptesis no fue confirmada debido los
municipios del Consrcio Intermunicipal de la Frontera (CIF),
produciren el espacio social, poltico, econmico y cultural, desde el
punto de prctica y su entorno, con actividades en las relaciones
internacionales, creando una juridicidad especfica, relacional y
particular de la representacin glocalizada del espacio, que se
caracteriza por un sistema de derecho internacional consuetudinario en
los mrgenes del derecho oficial.
Palabras-clave: 1. La Produccin del Espacio Legal y Poltico. 2. Los
Municipios. 3. Sujeto de Derecho Internacional.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Croqui Parque Turstico Ambiental de Integrao............. 164
Foto 1 Memorial de inaugurao da Escuela n 604 ........................ 178
Foto 2 No quadro da escola Argentina, palavras escritas pelo
professor brasileiro ................................................................ 179
Tabela 1 Total de Alunos estrangeiros nas escolas do municpio de
Dionsio Cerqueira ............................................................ 180
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LISTA DE SIGLAS
ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas
AFEPA Assessoria para Assuntos Federativos Parlamentares
AID Associao Internacional para o Desenvolvimento
AIEA Agncia Internacional de Energia Atmica
ALCA rea de Livre Comrcio das Amricas
AM Amazonas
ASN Sociedade de Naes
BIRD Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento
BIS Bank for International Settlements CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior
CAT Centro de Atendimento ao Turista
CDIF Comisso Permanente para o Desenvolvimento e a Integrao
da Faixa de Fronteira
CEE Comunidade Econmica Europeia
CIJ Tribunal Internacional de Justia
CNM Confederao Nacional dos Municpios
CIF Consrcio Intermunicipal da Fronteira
CF/88 Constituio Federal de 1988
CPPGD Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Direito
CPPLR Conselho Popular Para Ligas das Regies
CREAS Centro de Referncia Especializada da Assistncia Social
CRAS Centro de Referncia da Assistncia Social.
DINTER Doutorado em Direito
DIP- Direito Internacional Pblico
FAO Food and Agriculture Organization Organizao das Naes
Unidas para a Alimentao e Agricultura
FARBOM Cooperativa de Laticnios Farbom de Bom Jesus do Sul-SC
FIDA Fundo Internacional do Desenvolvimento Agrcola
FMI Fundo Monetrio Internacional
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IFPR Instituto Federal do Paran
INDEC Instituto Nacional de Desenvolvimento Econmico
INSS Instituto Nacional de Seguro Social
FMS Frum Social Mundial
GGI Gabinete de Gesto Integrada
MG Minas Gerais
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
MMM Organizao Metereolgica Mundial
-
MRE Ministrio das Relaes Exteriores
NFPR Ncleo Regional para o Desenvolvimento e Integrao da Faixa
de Fronteira do Estado do Paran
NAFTA North American Free Trade Agreement
NFSC Ncleo Estadual de Integrao da Faixa de Fronteira do Estado
de Santa Catarina
OAA Organizao para a Alimentao e Agricultura
OACI Organizao da Aviao Civil Internacional
OCDE - Organizao de Cooperao de Desenvolvimento Econmico
OEA Organizao dos Estados Americanos
OIs Organizaes Internacionais
OIT Organizao Internacional do Trabalho
OMC Organizao Mundial do Comrcio
OMCI Organizao Intergovernamental Consultiva da Navegao
Martima
OMI Organizao Martima Internacional
OMPI Organizao Mundial da Propriedade Intelectual
OMS Organizao Mundial da Sade
OMT Organizao Mundial do Turismo
ONU Organizao das Naes Unidas
ONUDI Organizao das Naes Unidas para o Desenvolvimento
Industrial
ONGs Organizaes No Governamentais
OP Oramento Participativo
OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte
PB Pernambuco
PDT Partido Democrtico Trabalhista
PEC Projeto de emenda Constituio
PIB Produto Interno Bruto
PF Polcia Federal
PM Polcia Militar
PIDIF/SC Plano de Desenvolvimento e Integrao Fronteirio do
Estado de Santa Catarina
PPGD Programa de Ps-Graduao em Direito
PR Paran
PTI Parque Tecnolgico Itaipu
RI Relaes Internacionais
RS Rio Grande do Sul
RJ Rio de Janeiro
SDN Sociedade de Naes
-
SEBRAE Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas de Santa
Catarina
SFI Sociedade Financeira Internacional
SC Santa Catarina
SDR Secretaria de Desenvolvimento Regional
SP So Paulo
SDN Sociedade das Naes
TFUE Tribunal Federal da Unio Europeia
TPI Tribunal Penal Internacional
UE Unio Europeia
UFSC Universidade Federal do Estado Santa Catarina
UIT Unio Internacional das Telecomunicaes
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia
e a Cultura
UNOCHAPEC Universidade Comunitria da Regio de Chapec
UPU Unio Postal Universal
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SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................27
2 A PRODUO DO ESPAO COMO DIMENSIONALIDADE
JURDICO-POLTICA DA CIDADE, RELACIONADA AO
MUNICPIO .....................................................................................33 2.1 ESTUDO DAS INSTITUIES NA EXPERINCIA JURDICA
DAS CIDADES GREGAS, DE ROMA E DAS CIDADES
MEDIEVAIS ...................................................................................36
2.1.1 A origem da cidade e do regime municipal na teoria de
Coulanges ....................................................................................36
2.1.2 As cidades-Estado e a fundamental contribuio vida
jurdico-poltica ..........................................................................41
2.1.2.1 Cidades-Estado gregas ..............................................................42
2.1.2.2 A cidade-Estado jurdica e a virtude cvica como ideal de
cidado em Atenas e Esparta .....................................................44
2.1.2.3 As cidades-Estado de Roma ......................................................48
2.2 A CIDADE NA IDADE MDIA ENQUANTO ENTE POLTICO
PRINCIPAL DOTADO DE IURISDICTIO E DE AUTOGOVERNO PELO EFETIVO EXERCCIO DE FATO DE SUA IURISDICTIO
DE CITT .......................................................................................50
2.3 A TEORIA DA PRODUO DO ESPAO DE HENRI
LEFEBVRE: A PRODUO DA CIDADE POLTICA, DA
CIDADE COMERCIAL E DO VALOR DE USO, DA CIDADE
INDUSTRIAL E DA URBANIZAO ENQUANTO ESPAO
SOCIALMENTE PRODUZIDO .....................................................55
2.3.1 A produo do espao ................................................................59 2.3.1.1 A cidade poltica ........................................................................62
2.3.1.2 A cidade comercial e do valor de uso ........................................65
2.3.1.3 A cidade industrial e da urbanizao .........................................72
2.4 A RECONFIGURAO DA PRODUO DO ESPAO
JURDICO-POLTICO A PARTIR DO ESTADO MODERNO ....77
3 A PRODUO DO ESPAO JURDICO-POLTICO DOS
MUNICPIOS COMO SUJEITOS DO DIREITO
INTERNACIONAL .........................................................................89
3.1 O DIREITO INTERNACIONAL APLICADO SOCIEDADE
INTERNACIONAL ........................................................................90
3.2 O CASO BERNADOTTE COMO MARCO JURDICO INICIAL
DA REVISO DO CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO
INTERNACIONAL PBLICO ......................................................93
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3.3 AS PRINCIPAIS CONTRIBUIES DAS TEORIAS DE
PAOLO GROSSI E SANTI ROMANO PARA UMA POSSVEL
REVISO DO CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO
INTERNACIONAL ........................................................................ 96
3.4 AVANOS NO DEBATE SOBRE A NATUREZA E ALCANCE
DE DIREITOS DAS COLETIVIDADES PBLICAS
TERRITORIAIS ........................................................................... 103
3.5 CONCEITO E CLASSIFICAO DE SUJEITO DE DIREITO
INTERNACIONAL DE JEAN TOUSCOZ .................................. 105
3.6 PRINCIPAIS SUJEITOS TRADICIONAIS ................................. 107
3.6.1 O Estado .................................................................................... 108
3.6.2 As organizaes internacionais ............................................... 112
3.7 AS PESSOAS COLETIVAS NO ESTATAIS SUJEITOS
EMERGENTES ............................................................................ 116
3.7.1 As organizaes internacionais no-governamentais ............ 117
3.7.2 As sociedades transnacionais .................................................. 119
3.7.3 Os governos no-centrais ......................................................... 121
3.7.3.1 Os Estados federados e comunidades no estatais nos
ordenamentos europeus ........................................................... 122
3.7.3.1.1 Os Lnder da Repblica Federativa da Alemanha ............... 124
3.7.3.1.2 As comunidades e regies da Blgica .................................. 126
3.7.3.1.3 A cooperao descentralizada e acordos pelas comunidades
territoriais da Frana ........................................................... 129
3.7.3.1.4 As iniciativas das comunas e governos infraestatais da
Itlia ..................................................................................... 133
3.7.3.1.5 Outras ordenaes Europeias ustria, Finlndia,
Luxemburgo, Portugal, Sucia, Sua .................................. 136
3.7.3.1.6 Os Municpios brasileiros .................................................... 138
3.7.3.1.6.1 A ampliao da atuao internacional dos municpios
brasileiros .......................................................................... 143
3.7.3.1.6.2 O parecer da proposta de Emenda Constitucional PEC
475/2005 da paradiplomacia ............................................. 148
3.7.3.1.7 Consideraes ao compartilhamento de competncias dos
governos no centrais, situados na dimenso subnacional dos
Estados ................................................................................. 151
4 A PRXIS DA PRODUO DO ESPAO GLOCAL PELOS
MUNICPIOS DO CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA
FRONTEIRA(CIF) COMO DIMENSIONALIDADE AO
RECONHECIMENTO OU NO DA CONDIO DE SUJEITOS
DE DIREITO INTERNACIONAL .............................................. 153
-
4.1 OS CONSRCIOS PBLICOS INTERMUNICIPAIS NA
LEGISLAO BRASILEIRA ..................................................... 155
4.2 OS NCLEOS ESTADUAIS DE SANTA CATARINA E
PARAN DE INTEGRAO DA FAIXA DE FRONTEIRA .... 158
4.3 CARACTERIZAO DO ESPAO GLOCAL DOS MUNICPIOS
INTEGRANTES DO CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA
FRONTEIRA (CIF)....................................................................... 161
4.4 MECANISMOS E INSTRUMENTOS DE ATUAO DOS
MUNICPIOS DO CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA
FRONTEIRA (CIF)....................................................................... 169
4.4.1 O Consrcio Intermunicipal da Fronteira ............................. 169
4.4.2 O protocolo entre os municpios do CIF e entes subnacionais
e estatais .................................................................................... 173
4.4.3 Aes planejadas, realizadas e em execuo no mbito de
atuao do CIF ......................................................................... 175
4.4.4 A integrao intercultural bilngue ......................................... 177 4.5 A PRODUO DE UMA JURIDICIDADE ESPECFICA,
RELACIONAL E PRPRIA DOS ESPAOS DE
REPRESENTAO GLOCALIZADA ........................................ 181
CONCLUSO ................................................................................... 187
REFERNCIAS ................................................................................ 193
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1 INTRODUO
O objetivo central da pesquisa da tese o de analisar a produo
do espao jurdico-poltico dos municpios no direito internacional,
tomando por base a prxis dos municpios de Dionsio Cerqueira (SC),
Bernardo de Irigoyen (Provncia de Misiones), Barraco (PR) e Bom
Jesus do Sul (PR), integrantes do Consrcio Intermunicipal da Fronteira
(CIF).
O estudo, objeto da tese, se justifica pelo forte despertar de
interesse na ampliao de sua abordagem por parte de professores,
estudantes e pesquisadores ante o complexo processo da globalizao, o
qual abriu novas perspectivas para a atuao dos novos sujeitos de
direito internacional. Os novos sujeitos de direito internacional,
incluindo os governos no centrais, vm gradualmente disputando e
conquistando espaos na agenda internacional com os governos centrais
e se consolidando como sujeitos emergentes da dinmica internacional.
O desenvolvimento da tese estruturou-se em trs captulos, com
densidade temtica aprofundada na doutrina, legislao e documentos de
fonte primria, primeiramente com destaque sobre a produo do espao
como dimensionalidade jurdico-poltica da cidade, seguido da
abordagem da produo do espao jurdico-poltico dos municpios no
direito internacional e fechando com a anlise da prxis dos municpios
integrantes do Consrcio intermunicipal da Fronteira (CIF).
A questo indagativa para o problema de pesquisa foi formulado
da seguinte forma: os municpios do Consrcio Intermunicipal da
Fronteira, ao produzirem o espao social, poltico, econmico e cultural,
a partir da prxis do local e seu entorno, com atividades nas relaes
internacionais, se tornam ou no sujeitos jurdicos de direito
internacional? A hiptese, resposta provisria inicial atribuda, era
afirmativa possibilidade indicada no problema de pesquisa. Entretanto,
no decorrer do desenvolvimento dos contedos da tese, delinearam-se
limitaes impostas pelo direito internacional oficial, motivadora da
apresentao de uma concluso dissonante da resposta provisria inicial,
objeto de abordagem resguardada para apresentao no final da
pesquisa.
A opo terica em priorizar a abordagem sobre a produo do
espao como dimensionalidade jurdico-poltica na constituio dos
sujeitos de direito internacional, implica tambm no mtodo no
separado da anlise. A anlise expressa o mtodo que se est a usar:
analtico-crtico de abordagem e de procedimento monogrfico. Alis, a
anlise, a partir da produo do espao, no exclui a diversidade terica
-
28
dos paradigmas na abordagem da insero e atuao dos sujeitos
emergentes, includos os governos no centrais, no Direito e Relaes
Internacionais. Entretanto, adverte-se que a produo do espao conjuga
o espao terico e o espao concreto respectivamente.
A pesquisa utilizou-se de referenciais bibliogrficos1, com
assento terico sedimentado a partir de Fustel de Coulanges, Pietro
Costa, Henri Lefebvre, Ding, Dallier e Pellet, Dominique Carreau, Jean
Touscouz, Paolo Grossi, Santi Romano, Arno Dal Ri Junior,
jurisprudncia da Corte Internacional de justia (CIJ) remissiva
deciso do caso Folke Bernadotte, legislao e fontes primrias
vinculadas a documentos e leis originrias produzidas pelos municpios
do Consrcio Intermunicipal da Fronteira.
A abordagem inicial da presente tese encontra-se delineada pela
busca da reconstituio de elementos da cidade antiga, medieval e
moderna que assumem dimensionalidades diferentes e complementares,
para repensar o compartilhamento de sentidos e formas de ordenao da
cidade no tempo presente, relacionada ao municpio, ente jurdico-
poltico e administrativo responsvel pelo autogoverno local.
Em Cidade Antiga, Fustel de Coulanges tece contribuies
indispensveis para a compreenso da experincia expressa pelo modo
de vida greco-romana, com suas crenas, costumes, religio e direito. A
origem da cidade e do regime municipal teria marcado profundamente o
modo de ordenao da cidade antiga.
O resgate da abordagem sobre as cidades-Estado gregas e de
Roma aponta para a interdependncia e autossustentabilidade das
referidas cidades. A ordenao da cidade no se encontrava sob o jugo
do Estado soberano como conhecido e ordenado pelos modernos. O
mesmo se pode dizer em referncia s cidades medievais, cuja
reflexividade da teoria de Pietro Costa remete a um mergulho
literatura historiogrfica e jurdico-poltica, na detida busca da
compreenso da riqueza de elementos e interaes sobre a ordenao da
cidade, vinculada concepo e viso de mundo expressa no contexto
medieval. Costa persiste na busca de estabelecer os contrapontos da
forma de ordenao da cidade medieval, sem que isso incorresse na
afirmao da existncia da centralidade de um poder soberano, diverso
daquele assumido com o surgimento do Estado moderno.
1 Para fins de exposio, o autor deste trabalho, sob orientao do Prof.
orientador, escolheu utilizar o sistema de referncias numrico de chamadas, em
conformidade s normas da ABNT no formato, com a inteno de facilitar ao
leitor a compreenso da obra.
-
29
Em prosseguimento, a teoria da produo do espao de Henri
Lefebvre estabelece uma ligao fundamental da dimenso da ordenao
poltica da cidade antiga, o modo equilibrado do valor de uso com o
valor de troca que alimentou e tornou interessante a vida das cidades
comerciais medievais na Europa, sem perder o assento sobre a
abordagem da cidade moderna, imersa no contexto industrial e da
urbanizao. O nascimento e expanso da indstria, que se conecta com
o modo de desenvolvimento da vida urbana, fez implodir o centro de
referncia poltico da cidade antiga e desequilibrou o modo de produo
do espao das cidades medievais, em que tudo circulava e se voltava ao
desenvolvimento local da prpria cidade e seu entorno.
Henri Lefebvre, em sua teoria dialtica tridimensional da
produo do espao, liga a prtica das atividades humanas (prtica
espacial), representao do espao e espaos de representao. O espao
sempre produzido socialmente. No existe o espao em si mesmo.
Espao e tempo so relacionais. O espao representa simultaneidade, a
ordem sincrnica da realidade social. O tempo corresponde ao processo
histrico da produo social. Espao e tempo so entendidos como
produtos da prtica social, resultado e pr-condio da produo da
sociedade (relao entre os seres humanos por meio de suas atividades
prticas). Por decorrncia, como espao e tempo so produzidos
socialmente, s podem ser compreendidos no contexto de uma
sociedade especfica (cidade poltica grega, cidade comercial medieval,
cidade industrial e da urbanizao na modernidade). Tal assertiva
implica que o espao e tempo so relacionais e histricos, no separados
da experincia vivida.
A juridicidade integra a prpria concepo de produo do espao
de Lefebvre, presente nas atividades da prtica social, representaes do
espao e espaos de representao, diretamente interconectados na
produo do espao. A normatividade ao mesmo tempo constitutiva e
resultante do ambiente produzido, da organizao, da orientao e da co-
determinao das atividades. A juridicidade integra a ordem espacial das
relaes sociais de produo e concorre para o controle das
contradies, em benefcio dos interesses predominantes na sociedade e
seu modo de produo. O direito cidade, vida urbana, diferente da
urbanizao, assume uma condio de humanismo e de democracia
renovados. O direito cidade possui relao direta com o acesso e o
valor de uso da cidade. A urbanizao no processo industrial da
sociedade capitalista privilegia o valor de troca em descaracterizao ao
urbano, reunio, convergncia, dos encontros. A produo do espao
social. O jurdico integra e emerge do social. Neste particular, em
-
30
sentido similar, concorrem tambm os referenciais tericos de Santi
Romano e Paolo Grossi de que o direito ordenamento do social.
A segunda parte do texto, referente produo jurdico-poltica
dos municpios como sujeitos do direito internacional, remete
preliminarmente ao fato de a ordenao poltico-jurdica dos Estados
nacionais ter fortalecido centralmente o Estado como sujeito de direito e
as organizaes internacionais que constituem e de que so membros.
Entretanto, as transformaes processadas ao longo do sculo XX, com
as Conferncias de Paz de Haia, a experincia das duas guerras
mundiais, a Liga das Naes e a criao da ONU, as Conferncias de
Viena, a guerra fria e a dinmica imposta pela globalizao econmica,
influram decisivamente para fazer ressurgir o debate sobre os sujeitos
emergentes da sociedade internacional contempornea, incluindo
aqueles situados na dimenso subnacional e local governos no
centrais (Estados, municpios e comunidades territoriais no estatais).
Ainda, com a devida ateno, o texto remete para a definio do prprio
direito internacional e sua vinculada aplicao sociedade internacional
contempornea, alm da definio de sujeito de direito internacional e
classificao dos referidos sujeitos em suas especificidades. O referido
captulo da tese assumiu o desafio terico edificao vinculada ao
direito internacional de uma fundamentao consistente que configura a
produo jurdico-poltica dos municpios como sujeitos jurdicos, a
partir de suas atividades emergentes e que so objeto de uma
regulamentao internacional.
No que tange classificao dos sujeitos do direito internacional,
a pesquisa adotou por base quela apresentada pelo jurista Jean
Touscoz. Para referido internacionalista, um sujeito de Direito, numa
determinada ordem jurdica, uma entidade que detm direitos e
suporta obrigaes nessa ordem jurdica. Por outro lado, a qualidade de
sujeito de Direito no depende da quantidade de direitos e de obrigaes
de que uma entidade titular. Estas duas afirmaes permitem sustentar
que no s os Estados e as Organizaes interestatais, mas tambm as
pessoas singulares e coletivas so sujeitos de direito internacional (estas
ltimas so ligadas a uma ordem jurdica nacional). Do conceito emerge
a seguinte classificao dos sujeitos de direito internacional: o Estado,
as Organizaes Internacionais e as pessoas coletivas no estatais que
abrangem as sociedades transnacionais, as Organizaes no
governamentais (ONGs) e aquelas pessoas coletivas, pessoas jurdicas
com ligao a uma ordem jurdica nacional, no regidas por um
conjunto coerente e preciso de regras jurdicas internacionais que
determine o seu estatuto internacional e regulamente a sua atividade.
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31
Portanto, incluiu-se tambm aquelas pessoas coletivas, sujeitos situados
na dimenso subnacional e local governos no centrais (Estados
federados, municpios e comunidades territoriais no estatais.
A abordagem sobre os denominados governos no centrais
remete ao estudo da doutrina internacionalista quanto sedimentao ou
no de uma resposta adequada para a imputao de direitos e obrigaes
s comunidades territoriais no estatais, considerados os elementos que
determinam a condio de reconhecimento da personalidade jurdica
internacional. Trilha em apontar o reconhecimento de direitos e a
dificuldade de reconhecimento de obrigaes, notadamente no que versa
assinatura de tratados internacionais. Tambm, aponta para o
compartilhamento de competncias entre Estado e entidades territoriais
de carter pblico no equilbrio interno dos Estados, com flexibilizao
da soberania Estatal centralizada. A insero dos municpios brasileiros,
com destaque para aqueles situados em faixa de fronteira ou que
mantm algum tipo de atividade(s) nas relaes e no direito
internacional, vincula-se ao cenrio das mudanas provocadas pela
globalizao jurdico-poltica e econmica.
A terceira parte do texto versa em especfico sobre a prxis da
produo do espao glocal pelos municpios integrantes do Consrcio
Intermunicipal da Fronteira (CIF), objetivando evidenciar a experincia
da ordenao poltico-jurdica e administrativa dos municpios de
Dionsio Cerqueira (SC), Bom Jesus do Sul e Barraco (PR), situados
em territrio brasileiro e de Bernardo de Irigoyen, Provncia de
Missiones Repblica da Argentina. O complexo que envolve o local e
seu entorno insere a produo do espao vivido pelo cidado e os
sujeitos no territrio. O local serve de referncia para o global,
transpondo a anlise de ser apenas determinado pelo global. A
experincia dos municpios integrantes do Consrcio Intermunicipal da
Fronteira (CIF), com suas aes, passam a ser referncia de uma prxis
importante de contraste em relao aos impactos do Estado moderno e
da Federao sobre os governos locais e seu entorno.
Os municpios do Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF)
constituem-se em institucionalidades jurdico-polticas e administrativas
responsveis pelo autogoverno local e seu entorno, com atuao no
Direito e Relaes Internacionais, destacadamente por suas aes e
localizao em faixa de fronteira entre a Repblica Federativa do Brasil
e a Repblica Federativa da Argentina.
A peculiaridade da prxis dos municpios integrantes do
Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF) permite responder ao
problema de pesquisa, objeto da presente tese, ou seja: a prxis dos
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32
referidos municpios possibilita ou no o reconhecimento da condio
de sujeito(s) jurdico(s) de direito internacional?
O conjunto de aes executadas, em execuo e planejadas pelos
municpios integrantes do CIF, nominadas em especfico no texto,
aponta para a prxis existente que pode ou no conferir legitimidade e
normatividade condio de sujeitos jurdicos aos referidos municpios.
O texto delineado insere abordagem legislao brasileira e da
Argentina sobre Consrcios de Municpios; poltica adotada pelo
Ncleo da Fronteira no Estado de Santa Catarina e Paran, Brasil. Na
sequncia, o desenvolvimento temtico adentra em especfico na
descrio e anlise da produo do espao glocal pelos municpios
integrantes do CIF, com seus mecanismos e instrumentos de atuao,
desafios e perspectivas em ampliar sua capacidade, habilidade,
influncia e autonomia no direito e relaes internacionais.
-
2 A PRODUO DO ESPAO COMO DIMENSIONALIDADE
JURDICO-POLTICA DA CIDADE, RELACIONADA AO
MUNICPIO
A premissa basilar deste captulo a evidenciao terico-prtica
da produo do espao, a partir da experincia jurdico-poltica,
inicialmente das cidades-Estado Gregas e de Roma, seguida do contexto
das cidades medievais e da reconfigurao do espao com o surgimento
do Estado moderno, da industrializao e urbanizao. A teoria de
contedos pauta-se destacadamente em Fustel de Coulanges, Pietro
Costa e Henri Lefebvre. Serve de base fundamentadora para analisar a
produo do espao e da experincia de atuao dos municpios
integrantes do Consrcio da Fronteira2, delineados na presente tese.
O estudo do tema que versa sobre o municpio tem privilegiado a
construo de abordagens restritivas, principalmente ao limitar a
vinculao do referido ente pblico estrutura formal da organizao
poltico-administrativa dos Estados, com dimensionalidade, via de regra,
adstrita ao direito administrativo. Os poucos escritos nacionais com
anlises mais extensivas sobre os municpios tm desafiado novos
estudos para reestabelecer o desenvolvimento de abordagens que
recuperem os aspectos construtivos de uma teoria que ligue a produo
do espao como dimensionalidade jurdico-poltica da cidade,
relacionada ao municpio, ente jurdico-poltico responsvel pelo
autogoverno local e, muitas vezes, com atuao no Direito e Relaes
Internacionais, a exemplo dos municpios de Fronteira. Fronteiras de
papel, criadas pelos polticos, e quase inexistentes nas relaes da vida
das pessoas e das cidades.
A problematizao do debate, com a glocalizao do espao, a
partir do complexo que envolve o local e seu entorno, retoma a
importncia e fora que adquire o local, feito de carne e osso, onde o
cidado mora e produz seu cotidiano, que serve de referncia para o
global, transpondo a anlise de ser apenas determinado pelo global. A
lgica da relao local-global acabou resultando no glocal. A origem do
conceito de glocal geralmente atribuindo ao socilogo ingls
2 O Consrcio da Fronteira (CIF) integrado pelos Municpios de Dionsio
Cerqueira (SC), Bom Jesus do Sul e Barraco (PR), situados em territrio
brasileiro e de Bernardo de Irigoyen, Provncina de Missiones Repblica
Federativa da Argentina.
-
34
Robertson3, primeiro terico a tratar sobre glocalizao no ocidente, o
qual props uma atualizao de paradigma, ao sugerir a troca do
conceito de globalizao por glocalizao, ao aproximar, tambm, a
perspectiva conceitual de global-local de universal e particular.
O estudo das instituies na experincia jurdica das cidades
Gregas, de Roma e medievais concorre para a evidenciao da forma de
ordenao da cidade e da vida local, servindo como referencial
importante de contraste em relao aos impactos do Estado moderno e
da Federao sobre os governos locais e seu entorno.
Destaca-se aqui a importncia, no caso de Fustel de Coulanges,
do enfoque composio das instituies da cidade antiga (famlia,
fratria, tribo e cidade). O regime municipal da cidade antiga encontra-se
entre as referncias que pode ter contribudo na gradual e progressiva
formao da base originria para a criao durante a Repblica Romana
do municpio (municipium) enquanto unidade poltico-administrativa.
Ato contnuo, o texto sobre as cidades-Estado concorre no sentido
de situar a fundamental contribuio vida jurdico-poltica na
ordenao das cidades autogovernadas na experincia das cidades-
Estados Gregas e de Roma. Trata-se de uma contribuio complementar
e ao mesmo tempo diferente do estudo de Coulanges. Complementar
porque no desconecta a anlise com as regras e cultura das
comunidades locais. Diferente porque o destaque conferido anlise
jurdico-poltica, com nfase para as cidades de Atenas, Esparta e Roma,
intrigantes no tocante ao Direito.
Pietro Costa, com sua pesquisa elaborada dentro do rigor
acadmico e cientfico, historia, problematiza e questiona os conceitos
de soberania, democracia e representao, no contexto da Idade Mdia,
situando a cidade enquanto ente poltico principal dotado de iusdictio
(jurisdio) e de autogoverno pelo efetivo exerccio de fato de sua
iurisdictio de citt. A rica experincia plural medieval, principalmente
das cidades comerciais, congrega um direito pautado no fazer cotidiano,
amparado nos costumes locais e de uma lex no desvinculada da realidade dos fatos, caracterizada pela vinculao do direito ao
autogoverno da cidade. A referida experincia medieval possibilita
entender o vnculo de continuidade gradual para a edificao do Estado
moderno, sem deixar de perceber a diferenciao existente no que tange
a centralidade do governo e poder no comando da cidade.
A teoria da produo do espao de Henri Lefebvre constitui um
3 ROBERTSON, Roland. Globalizao: teoria social e cultura global.
Petrpolis, RJ: Vozes, 1999.
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35
marco referencial estruturante para situar a cidade poltica, a cidade
comercial, a cidade industrial e da urbanizao enquanto espao
socialmente produzido. A produo jurdico-poltica no se processa de
modo separada dos aspectos da vida social, econmica e cultural. As
condies sociais contemporneas, ligadas aos processos de urbanizao
e globalizao tm provocado o ressurgimento da teoria da produo do
espao de Lefebvre, rica em uma epistemologia de fundamento que
contempla os contextos espaciais em diferentes nveis, incluindo o
jurdico-poltico. O local a realidade onde se produz o espao
cotidiano e assume uma dimensionalidade da produo material da vida
mediada pela ordenao jurdico-poltica da economia, do social e da
cultura.
A diviso da histria ocidental em trs pocas a antiga, a
medieval e a moderna, atribuda Renascena4, no afasta a divergncia
para afirmar a continuidade e maturidade dos tempos5, quanto
experincia jurdico-poltica. A reconfigurao da produo do espao a
partir do estado moderno implica uma anlise no desvinculada das
relaes de produo e reproduo imersas no contexto do surgimento
da sociedade industrial e capitalista. A centralidade do poder ante a
soberania dos Estados-Naes incide significativamente sobre a vida e
ordenao das cidades e seus municpios e/ou comunidades territoriais.
Portanto, a linha de raciocnio subsequente encontra-se articulada
de modo a explicitar e problematizar sobre o desenvolvimento pontual
dos diferentes tpicos da temtica anunciada, sem perder de vista que a
produo jurdico-poltica do espao encontra forte imbricao entre a
cidade, o municpio e o Estado em suas mltiplas dimensionalidades.
4 KUMAR, Krishan. Da sociedade ps-industrial ps-moderno: novas teorias
sobre o mundo contemporneo. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997. p. 85. 5 GROSSI, Paolo. A ordem jurdica medieval. Trad. de Denise Rossato
Agostinetti. So Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 157-247.
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36
2.1 ESTUDO DAS INSTITUIES NA EXPERINCIA JURDICA
DAS CIDADES GREGAS, DE ROMA E DAS CIDADES
MEDIEVAIS
2.1.1 A origem da cidade e do regime municipal na teoria de
Coulanges
Fustel de Coulanges6 foi um dos mais importantes historiadores
franceses do sculo XIX. Sua obra mais conhecida La Cit Antique
tude sur Le Culte. Le Droit, Les institutions de La Grce et de Rome7,
publicada em 1864 considerada um clssico da investigao histrica
sobre o panorama do funcionamento das cidades gregas e romanas
poca das gens, tribos e cidades-Estado.
A obra Cidade Antiga8, sob o encadeamento de uma lgica
cultural de abordagem, encontra-se dividida em cinco livros, versando o
primeiro sobre as antigas crenas, o segundo dedicado famlia, o
terceiro cidade, o quarto s revolues e o quinto ao desaparecimento
do regime municipal. Prioriza-se aqui uma abordagem da obra de
Coulanges com destaque para a cidade e o regime municipal.
Para Coulanges a famlia recebeu suas leis da religio e no da
cidade. O direito privado teria existido antes da cidade. A lei imperativa
era aquela originada na famlia onde o esposo possua o poder de senhor
do lar, de rei, de magistrado. As famlias se agrupavam em genos (gens
em latim) que formavam um grupo com descendncia comum e origem
pura, com seus deuses comuns:
6 Numa Denis Fustel de Coulanges nasceu em Paris em 18 de maro de 1830 e
faleceu em Massy em 12 de setembro de 1889. Clebre historiador Francs do
sculo XIX. Sua obra mais conhecida A Cidade Antiga (La Cit Antique),
publicada em 1864. Coulanges tambm o autor de LHistoire des institutions
politiques de lancienne France que influenciou vrias geraes de historiadores
inclusive March Bloch. Diretor de lcole Normale Superieure e titular da
primeira cadeira de Histria Medieval na Sorbonne. 7 COULANGES, Numa Denis Fustel de. La cit antique tude sur le culte: le
droit, les institutions de la Grce et de Rome. Paris: Libraire Hachette, 1900. 8 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto,
o direito e as instituies da Grcia e Roma. Trad. de Roberto Leal Ferreira. So
Paulo: Martin Claret, 2009.
-
37
A famlia (gens) foi inicialmente a nica forma de
sociedade. O que vimos da famlia, com a sua
religio domstica, os deuses que criara, as leis
que se impusera, o direito de primogenitura sobre
o qual se fundamentara, a unidade, o
desenvolvimento de sculo em sculo at formar a
gens, a justia, o sacerdcio, o governo interior,
tudo isso leva inexoravelmente o nosso
pensamento para uma poca primitiva, em que a
famlia era independente de todo poder superior e
a cidade nem sequer existia.9
Com o agrupamento das famlias foi necessrio conceber uma
divindade superior aos deuses domsticos que fosse comum e velasse
pela fratria como um todo.
Vrias famlias formavam a fratria; vrias fratrias,
a tribo; vrias tribos, a cidade. Famlia, fratria,
tribo, cidade so, de resto, sociedades exatamente
semelhantes entre si, nascidas umas das outras por
uma srie de federaes.10
O engrandecimento das fratrias potencializou a gerao da tribo
com seus altares aos deuses e heris e, por consequncia, um direito
mais complexo. As cidades se caracterizavam por serem reunies de
tribos que se submetiam ao deus das famlias mais fortes e numerosas. O
lar tambm passou a ser o altar de um deus maior. Assim, verifica-se a
passagem de estado de fratria ou cria (latina) para o estado de cidade.
A cidade foi o advento de associaes de tribos, guardando seus
ritos, segredos e identidades. O dia em que se fez essa aliana, a cidade
passou a existir11
. Cada pessoa, a exemplo de Atenas, era ligada a uma
famlia, a uma fratria, a uma tribo e cidade. Famlia, Fratria, tribo e
cidade eram instncias que no necessariamente se comunicavam
simultaneamente, uma vez que um homem quando criana pertence
famlia, depois fratria e assim sucessivamente, at que vinha a ser
iniciado no culto pblico, tornando-se cidado. Todavia, cada famlia
mantinha seus cultos, seu altar, seus chefes, juzes e leis prprias.
9 COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituies da Grcia e Roma, p. 123. 10
Idem, ibidem, p. 143. 11
Idem, ibidem, p. 143.
-
38
A cidade era uma confederao. Por isso foi
obrigada, pelo menos durante vrios sculos, a
respeitar a independncia religiosa e civil das
tribos, das crias e das famlias, e no teve a
princpio, o direito de intervir nos negcios
particulares de cada um desses pequenos grupos.
Assim, a cidade no uma reunio de indivduos:
uma confederao de vrios grupos que j
estavam constitudos antes dela e que ela deixa
subsistirem.12
Quanto a civitas e a urbe, Coulanges registra: A civitas e urbs no
eram palavras sinnimas entre os antigos. Civitas era a associao
religiosa e poltica das famlias e das tribos; a urbe, o lugar de reunio, o
domiclio e, sobretudo, o santurio desta sociedade13
. Quando as
famlias, as fratrias e as tribos convencionaram unir-se e terem o mesmo
culto comum, era fundada a urbe, para representar o santurio desse
culto. Desta forma, a fundao da urbe foi sempre um ato religioso, com
rituais que a assentavam a partir de uma cidade. Tudo era presidido pelo
fundador, o homem que realizava os ritos religiosos, sem o qual no se
estabeleceria a urbe. Este era considerado o pai da cidade e acabava por
ser um deus-lar para a cidade, sendo perpetuado pelo fogo e sacrifcios
anuais das vtimas cerimoniais. O comando poltico ou governo da
cidade estava sob a autoridade religiosa do rei-sacerdote, tambm seu
chefe poltico. A autoridade poltica estava legitimada pelo ser sagrado,
motivo que lhe conferia, por extenso, o poder de magistrado. O rei era
escolhido entre os pater famlias os senhores do lar que reinavam
absolutos nos tempos das famlias e que, na cidade, representavam a
aristocracia.
Os pontfices eram considerados os nicos jurisconsultos
competentes para estabelecerem a lei em razo de sua origem religiosa.
Em virtude das leis advirem dos deuses, natural que o direito fosse
exercido pelo rei-pontfice. No era suficiente habitar a urbe para estar
submetido e protegido pelas leis do pontfice, sendo necessrio ser
cidado. A lei no beneficiava o escravo e o estrangeiro, estes estavam
excludos tambm das coisas sagradas. A naturalizao em uma cidade
vinculava o pertencimento urbe terra ptria. Cada cidade, por exigncia da sua prpria religio devia ser absolutamente
12
COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituies da Grcia e Roma, p. 144. 13
Idem, ibidem, p. 150.
-
39
independente14
, motivando o isolamento comum entre cidades e
preservando a sua autonomia poltica, jurdica, governamental, religiosa
e moral. Entretanto, tal regime municipal15
sempre esteve ameaado
pela resistncia interna de clientes, escravos e oposio de outras
cidades. A confederao de cidades surgiu para conformar as novas
reivindicaes polticas, jurdicas e mediar avenas e a prpria expanso
do poder das cidades, a exemplo de Atenas, Esparta e Roma.
Cada cidade tinha no s a sua independncia poltica, mas
tambm o seu culto e o seu cdigo. A religio, o direito, o governo, tudo
era municipal. A cidade era a nica fora viva; nada acima, nada abaixo
dela; nem unidade nacional nem liberdade individual16
. O progressivo
desmonte do regime municipal se processou por diversos fatores, entre
estes Coulanges incluiu: as revolues pela retirada da autoridade
poltica dos reis, com apoio da Aristocracia e chefes de famlia;
alteraes na constituio da famlia, com a supresso da primogenitura,
desagregando as gens; pela libertao dos clientes com direito posse
de terras, sem ttulo de propriedade; pela participao da plebe17
no
regime da cidade, provocando a incluso no poder dos tiranos, chefes
que no podiam ser reis, por faltar-lhes os segredos religiosos,
inaugurando o poder do homem sobre o homem, com a misso central
de proteger a plebe contra os ricos.
A aristocracia, com dificuldades de retornar ao poder, concorria
fortemente para instalar regimes monrquicos, organizados em um
corpo semelhante aristocracia, com disseminao extensiva a toda
Grcia e Itlia, notadamente no sculo VII ao V a.C. As classes
passaram a distinguir-se basicamente pela quantidade de posses e
propriedade de bens e riqueza. No dimensionamento conferido ao novo
regime, cada cidado podia exercer temporariamente o sacerdcio, sem
privilgios de nascimento, de religio ou poltica. Roma foi exceo,
onde o patriciado manteve o poder, criando-se o tribunado da plebe18
o
14
COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituies da Grcia e Roma, p. 218. 15
Regime Municipal caracterizado pela constituio de uma religio
antiqussima que fundara primeiro a famlia, depois a cidade; que estabelecera
primeiro o direito domstico e o governo das gens, depois as leis civis e o
governo municipal. In: Idem, ibidem, p. 367. 16
Idem, ibidem, p. 218. 17
A plebe uma populao desprezada e abjeta, fora de religio, fora da lei,
fora da sociedade, fora da famlia. In: Idem, ibidem, p. 253. 18
O tratado de aliana entre patrcios e plebeus deu origem ao tribunado da
plebe, instituio completamente nova e que em nada se assemelhava ao que as
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40
plebeu tornava-se ele mesmo sagrado para que pudesse legislar sobre a
plebe. A sacralidade era transmitida de tribuno a tribuno, por doao dos
religiosos do patriciado que eram os criadores da sacralidade doravante
transmitida.
Destaca-se que o direito tornou-se pblico, passando a ser do
povo a emanao do poder de promulgar leis que o legislador antes
possua. As leis deixam de ser patrimnio das famlias sagradas. Por
consequncia, tornou-se extensivo a qualquer cidado, em tese, ser
magistrado e/ou alcanar a hierarquia social de cargos e funes
indiferente de ser euptrida(s) ou patrcio(s). As guerras forjaram as
classes superiores concesso de armas e ttulos s classes inferiores,
ampliando a participao do povo.
Na viso de Coulanges, entre outros fatores que influram para o
enfraquecimento do regime municipal, pode-se registrar a unificao das
cidades-Estado, das crticas dos sofistas e dos filsofos como Pitgoras,
Anaxgoras, Scrates, Plato, Aristteles, Zeno e os estoicistas.
Referidos crticos passaram a falar de uma nova justia, a combater as
leis da cidade e da tradio, a contrariar o regime da cidade, a defender a
emancipao do indivduo, rejeitando a religio da cidade, desdenhando
da servido do cidado ao Estado, libertando sua conscincia, incitando-
o a participar da poltica.
Coulanges precisa ser interpretado na estreita ligao de seu
tempo e busca de referncias na constituio das cidades Greco-
Romanas. Percebe-se que muitas das questes presentes na obra de
Coulanges refletem a ligao com o contexto do sculo XVIII, com
destaque para a estratificao e hierarquizao da sociedade francesa19
, a
cidades tinham conhecido antes. Entretanto, o tratado limitava-se que no futuro
a plebe, constituda como uma sociedade quase regular, teria chefes tirados do
seu prprio seio. No houve reconhecimento pelo patriciado da participao
religiosa e poltica da vida da cidade. In: COULANGES, A cidade antiga:
estudo sobre o culto, o direito e as instituies da Grcia e Roma, p. 309. 19
A situao da Frana no sculo XVIII era de extrema injustia social na poca
do Antigo Regime. Os impostos eram pagos somente pelos trabalhadores
urbanos, camponeses e a pequena burguesia comercial, para manter os luxos da
nobreza. O regime do pas era absolutista, com controle da economia, justia,
poltica e religio dos sditos. O clero estava no topo da pirmide, seguido na
hierarquia pela nobreza, formada pelo rei, sua famlia, condes, duques,
marqueses e outros nobres que viviam de banquetes e muito luxo na corte. A
base da sociedade era formada por trabalhadores, camponeses e burguesia
(terceiro estado) que desejavam melhorias na qualidade de vida e de trabalho,
condio social melhor, participao poltica e mais liberdade econmica. O
-
41
busca de novos territrios, ascenso do poder poltico da Burguesia, o
nacionalismo e tambm as reformas da Cidade (Paris). A cultura poca
de Coulanges teve o espao urbano como lugar central da representao
da nao, com participao do indivduo na construo da cidade e suas
instituies.
A obra de Coulanges reflete um estudo da histria civil do mundo
Greco-Romano, alm de deixar transparecer a todo o tempo que o
territrio antigo foi constitudo por modelos morais pelas instituies
das cidades Greco-Romana. Durkheim afirma que Fustel de Coulanges
insistiu justamente sobre o carter religioso da sociedade romana; mas,
comparado com os povos anteriores, o Estado Romano era muito menos
penetrado de religiosidade20
.
A origem da cidade e do regime municipal a partir da teoria de
Fustel de Coulanges so fundamentais para entender a composio das
instituies da cidade Greco-Romana que gradativa e progressivamente
contriburam na formao da base originria para a criao do
municipium21
durante a Repblica Romana.
2.1.2 As cidades-Estado e a fundamental contribuio vida
jurdico-poltica
Coulanges atesta que a origem da cidade foi o advento de
associaes de tribos, guardando seus ritos, segredos e identidades. A
contribuio da teoria de Coulanges foi fundamental para entender a
histria civil do mundo Greco-Romano, ainda que marcada por modelos
de ordem moral das instituies das cidades, presente nas regras e
cultura envolvidas.
A cidade era a nica fora viva, motivo fortalecedor da
continuidade do estudo sobre o autogoverno das cidades-Estados.
Martin afirma que s nas cidades autogovernadas que, os
chamado terceiro estado foi o protagonista da Revoluo Francesa, com marco
inicial a partir da queda da Bastilha (priso poltica) em 1789. 20
DURKHEIM, mile. Da diviso do trabalho social. Traduo de Eduardo
Brando. So Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 143. 21
Na Repblica Romana, os Municpios eram constitudos de agrupamentos de
famlias, reunidas em uma circunscrio territorial, que gozavam de direito de
cidadania romana, tendo em troca, a obrigao de pagar a Roma certos Tributos
e a servir a seus exrcitos. In: FERREIRA, Wolfran Junqueira. O Municpio
luz da Constituio Federal de 1988. So Paulo: Edipro, 1993. p. 12.
-
42
gregos, os romanos e talvez tambm os etruscos e os fencios22
(Cartago) puderam criar um novo princpio de governo. Ainda, que s
nestas cidades houve uma forma de governo que perdurou durante
sculos e que constituiu o mundo clssico23
. Martin denuncia que muito
pouco se sabe da cidade Estado-Cartago porque Roma fez um servio
minucioso de destruio, no s da cidade, mas dos registros que
poderiam lanar alguma luz sobre a histria e governo de Cartago24
.
Cartago a nova cidade, na lngua Fencia, teria sido fundada na Costa
do Mediterrneo, um pouco antes de Roma25
.
Por conseguinte, o estudo desta sesso prossegue sobre as cidades
Gregas e de Roma, com destaque conferido anlise das contribuies
jurdico-polticas, notadamente de Atenas, Esparta e Roma.
2.1.2.1 Cidades-Estado gregas
A civilizao helnica26
teve seu marco inicial no ano de 800
a.C., estendendo-se at o ano de 322 a.C., com a morte de Alexandre
Magno27
. Esse perodo possibilitou a verificao de caractersticas
comuns a todas as cidades-Estado28
que floresceram entre os povos
22
LEICK, Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 2003. 365 p. 23
MARTIN, Van Creveld. Ascenso e declnio do Estado. Trad. Jussara
Simes. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 31. 24
Idem, ibidem, p. 31. 25
O duelo entre Roma e Cartago retrata bem a ao de Roma contra Cartago. In:
GRIMAL, Pierre. Histria de Roma. Trad. Marias Leonor Loureiro. So Paulo:
Unesp, 2011. p. 59-76. 26
Os habitantes da Grcia intitulavam-se helenos e dividiam-se em quatro
grupos jnios, drios, aqueus, que dominaram o Peloponeso em tempos pr-
histricos e predominaram entre as tribos gregas, e elios, dos quais se pode
dizer um tanto vagamente que so os que no pertencem a nenhuma das outras
divises. Na Hlade floresceu por excelncia a civilizao jnica e no
Peloponeso a civilizao drica, representadas uma por Atenas e outra por
Esparta, sem que isso signifique que cada um desses centros absorvesse os
demais, apenas que num dado momento imps sua hegemonia. In:
VICENTINHO, Cludio. Histria geral. So Paulo: Scipione, 1997. p. 60-81. 27
OLIVEIRA, Odete Maria de. Teorias globais e suas revolues: elementos e
estrutura. Iju: Ed. Uniju, 2004. v. 1. p. 39. 28
Entre as cidades-Estados gregas de maior relevo pode-se citar Atenas,
Esparta, Tebas e Corinto. Entretanto, havia centenas de pequenas cidades-
Estado Gregas, inclusive muitas delas mantinham sua ligao com os Persas e a
sia Menor, exemplificadas na Liga de Delos. O sculo V a.C. representou o
-
43
helnicos. A caracterstica fundamental foi a cidade-Estado, ou seja, a
plis, a sociedade poltica de maior expresso29
. A plis tornou-se o
centro da vida poltica e a identidade do indivduo era levada em grande
considerao. A plis era vista para os Gregos como a nica forma de
vida associada admissvel30
.
Embora houvesse diferenas profundas entre os costumes de
Atenas e Esparta, duas das principais cidades-Estado Gregas, a
concepo de ambas como sociedade poltica era bem semelhante, o que
permite a generalizao31
.
O ideal visado pela cidade-Estado era a auto-suficincia, de tal
forma que, quando determinada cidade efetuasse conquista dominando
outros povos, no se efetuasse a expanso territorial e no se procurasse
a integrao de vencedores e vencidos numa ordem comum32
.
Ainda, Dallari destaca que na cidade-Estado grega o indivduo
possua uma posio peculiar. Havia uma elite da classe poltica com
intensa participao nas decises da cidade, a respeito dos assuntos de
carter pblico. Entretanto, nas relaes de carter privado a autonomia
de vontade individual era bastante restrita. Os assuntos do governo eram
conduzidos e decididos apenas por uma faixa restrita da populao os
cidados33
. Tal caracterstica influiu para a manuteno das cidades-
Estado, sob o controle por um pequeno nmero34
.
apogeu econmico e poltico de Atenas. Aps a vitria sobre os persas, Atenas,
por meio da Liga de Delos, se consolida como a maior potncia do Mar Egeu
sob o governo de Pricles que faz as reformas necessrias para dar a democracia
ateniense um carter de massas. In: WATSON, Adam. A evoluo da sociedade
internacional: uma anlise histrica comparativa. Trad. Ren Loncan. Braslia:
UnB, 2004. p. 72-99. 29
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19. ed.
So Paulo: Saraiva, 1995. p. 63. 30
DAL RI JNIOR; OLIVEIRA, op. cit., p. 26. Neste sentido vide tambm:
CAMASSA, G. Le instituzioni politiche greche: in storia dele idee politche
economiche e sociali. Torino: UTET, 1982. p. 03. 31
DALLARI, op. cit., p. 63. 32
Idem, ibidem, p. 63. 33
Idem, ibidem, p. 64. 34
Os escravos, estrangeiros, mulheres e crianas no participavam das decises
pblicas na plis.
-
44
2.1.2.2 A cidade-Estado jurdica35
e a virtude cvica como ideal de
cidado em Atenas e Esparta
A cidade-Estado no era para os Jnios, como para todos os
Gregos da sia Menor o fim ltimo, como em Esparta e Atenas36
. No
entanto, no se pode negar o papel dos Jnios no desenvolvimento da
histria do esprito Grego, incluindo o campo poltico. Entre outros, os
reflexos da vida da plis Jnica encontra evidncia nas narrativas da famosa guerra dos Gregos contra os Troianos em que Heitor aparece
como defensor e libertador da Ptria.
No caso de Atenas, a evoluo da vida da plis resta mais bem evidenciada com a suplantao da Monarquia dos Cdridas pela
Aristocracia constituda ao tempo de Slon37
.
Drcon (621 a.C.), vinculado Oligarquia, tornou-se referncia
entre os legisladores em Atenas pela severidade de suas leis,
conservadoras de todos os sentimentos da sua casta e instrudas no
direito religioso. As leis de Drcon reconheceram a existncia legal dos
cidados e indicaram o caminho da responsabilidade individual38
.
Slon, como novo legislador (em 594 a.C.), ligado aristocracia
e ao comrcio, influenciou a reforma de toda a estrutura da cidade-
Estado Ateniense, no que diz respeito economia, sociedade e
poltica39
.
Coulanges atesta que foi o povo que investiu Slon do direito de
fazer leis; que a lei tem como princpio o direito dos homens e como
fundamento o assentimento do maior nmero; que a Lei das Doze
Tbuas passou a considerar que a propriedade pertena no mais gens,
mas ao indivduo que pode dispor por testamento; que o Cdigo de
Slon correspondeu a uma grande revoluo social.40
A amplitude do
Cdigo de Slon para um novo estado social, pode ser exemplificada no
fato de que as leis passaram a no estabelecer distino entre euptrida,
35
A nomenclatura aqui adotada tomou por referncia O Estado Jurdico e seu
ideal de cidado inserido na Paidia. In: JAEGER, Werner Wilhem. Paidia: a
formao do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. 3. ed. So Paulo: Martins
Fontes, 1994. 36
Idem, ibidem, p. 131. 37
Idem, ibidem, p. 132. 38
CASTRO, Flvia Lages de. Histria do direito geral e do Brasil. 10. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Jurs, 2014. p. 73. 39
Idem, ibidem, p. 74. 40
COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituies da Grcia e Roma, p. 323-329.
-
45
o mero homem livre e o tetra. Tambm foram inovaes da legislao
ao tempo de Slon, o testamento e a concesso do direito a todo cidado
de processar judicialmente um crime41
.
A elevada estima pelo Direito aparece no apenas nos
testemunhos que exaltam a justia como fundamento da sociedade
humana. Aparece tanto na literatura jnica, desde os tempos primitivos
da epopeia at Herclito. A importncia fundamental estava ligada aos
progressos que o Direito implicava para a vida pblica daqueles tempos
(sculo VIII at o incio do sculo VI). A administrao abusiva da
justia pelos nobres e a consequente restrio s manifestaes do
Direito, levou o povo a exigir leis escritas42
. Nesse sentido:
As censuras de Hesodo contra os senhores venais
que na sua funo judicial atropelavam direito,
eram o antecedente necessrio para esta
reclamao universal. por ele que a palavra
direito, dike, se converte no lema da luta de
classes. A histria da codificao do direito nas
diversas cidades processa-se por vrios sculos e
sabemos muito pouco sobre ela. Mas aqui que
encontramos o princpio que a inspirava. Direito
escrito era direito igual para todos, grandes e
pequenos.43
Enquanto Themis refere-se principalmente autoridade do
direito, a sua validade, dike significa cumprimento da justia (dar a cada um o que lhe devido). Curioso que, poca, procurava-se uma
medida justa para a atribuio do direito e foi na exigncia da
igualdade, implcita no conceito de dike que se encontrou essa medida44
.
Em tal contexto que a dike constituiu-se em plataforma da vida pblica
para o homem Grego.
Progressivamente a lei escrita passou a se constituir para os
gregos como critrio infalvel do justo. Por decorrncia da fixao
escrita do nomos, do direito consuetudinrio vlido para todas as
situaes, o conceito de justia ganhou contedo palpvel. Consistia na
41
COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituies da Grcia e Roma, p. 330-331. 42
JAEGER, op. cit., p. 133-134. 43
Idem, ibidem, p. 133-134. 44
Idem, ibidem, p. 135-136.
-
46
obedincia s leis do Estado45
.
A vontade de justia que se desenvolveu na vida comunitria da
plis converteu-se numa nova fora formadora do homem e no rigoroso
dever para com a cidade-Estado:
A valentia perante o inimigo at o ponto de dar a
vida pela ptria uma exigncia imposta aos
cidados pela lei, e a sua violao acarretava
penas graves. Mas no passa de uma exigncia
entre outras. O homem justo, no sentido concreto
que desde ento esta palavra adquiriu no
pensamento grego, aquele que obedece lei e se
regula pelas disposies dela, tambm cumpre na
guerra o seu dever.46
Referido ideal foi aceito com maior intensidade pela cidade-
Estado de Esparta e elevado categoria de virtude cvica47
em geral.
O conceito de justia, tido como forma de aret48
, que engloba e
45
JAEGER, op. cit., p. 137-138. 46
Idem, ibidem, p. 138. 47
Dal Ri Jnior e Oliveira ao discorrerem em seus escritos sobre cidadania e
Nacionalidade, manifesta que no estudo das esferas-jurdicas das vrias cidades-
Estados que constituam a Ellade, em particular Atenas e Esparta, possvel
reconhecer na noo de virtude cvica, um elemento com contedo
semelhante ao da moderna cidadania. Tal virtude cvica no se originava do
reconhecimento de um status pessoal, mas de uma condio objetiva. Na
concepo dos Gregos antigos, trazia a ideia de homem livre, intimamente
comprometida com a defesa dos interesses da Cidade-Estado. Tal concepo se
fundamentava numa antiqussima tradio ateniense, pela qual eram
considerados cidados todos os homens adultos, aptos a defender os interesses
da cidade, atravs das armas. In: DAL RI JNIOR, Arno; OLIVEIRA, Odete
Maria de (org.). Cidadania e nacionalidade: evoluo histrica e fundamentos
poltico jurdicos de cidadania. Iju: Uniju, 2002. p. 28. 48
Aret entendida como virtude teve uma longa histria evolutiva na cultura
grega antes de ser incorporada na problemtica da filosofia. Os Pr-socrticos
Herclito e Demcrito fazem simples referncia a aret. Todavia, a partir da
gerao de Scrates que a aret passou a ter verdadeira ateno. A prpria
identificao Socrtica da virtude e do conhecimento foi um lugar-comum para
os seus sucessores (Aristteles), e os dilogos socrticos de Plato dirigem-se
no sentido das definies das vrias virtudes; e provavelmente uma
hipostasiao destas definies que culmina na teoria platnica das formas. Para
Plato h um eidos de aret (Menon 72c) e das vrias espcies de aretai (Parm.
130b; na Rep.442-b-d) descreve quatro virtudes cardeais desejveis do estado
-
47
satisfaz todas as exigncias do perfeito homem cidado evidencia-se
claramente nos escritos de Plato, notadamente ao versar sobre o
homem virtuoso na Repblica49
. Ainda, Plato prope um conceito de
cidade ideal em Critias; em A Repblica e as Leis, a utopia platnica
temperada com anlises muito concretas. O mesmo acontece, em
Aristteles, com os escritos polticos que estudam as constituies das
cidades gregas e particularmente Atenas50
. A tica a Nicmaco de
Aristteles e sua obra A Poltica, livro terceiro, tambm referendam as normas morais e polticas na formao do cidado e vnculo com a
cidade51
.
O pertencimento cidade pode ser assim sintetizado:
Pertencer a uma cidade tinha para os Gregos um
valor ideal igual, anlogo ao sentimento nacional
para os modernos. [...]. A Antiga cidade-estado
era para os cidados a garantia de todos os
princpios ideiais da vida. [...]. Em tempo algum a
cidade-Estado se identificou tanto com a
dignidade e o valor do homem. Aristteles
designa o homem como ser poltico e, assim,
distingue-o do animal pela sua qualidade de
cidado.52
Por conseguinte, a antiga cidade-Estado grega, com destaque para
Atenas e Esparta, esteve fortemente inclinada a promover a formao
contnua de seus dirigentes, com educao tica e poltico-jurdica,
fundamentais para sua autossuficincia e preservao da identidade dos
ideal, uma dos homens ( no estado) e as divises da alma. Para Aristteles um
meio (Meson, q.v), e ele distingue entre virtudes morais e intelectuais (eth,
Nich, II 1103-ab). A aproximao socrtica intelectualizada da virtude ainda
visvel em Aristteles, mas temperada tambm pelo reconhecimento dos
elementos volitivos. Para os esticos a essncia da virtude estava em viver em
harmonia com a natureza. In: PETERS, F. E. Termos filosficos gregos: um
lxico histrico. Trad. Beatriz Rodrigues Barbosa. 2. ed. Lisboa: Fundao
Coloutre Gulbenkian, 1974. 49
PLATO. A Repblica. Trad. Anna Amaral Del Almeida Prado. 2. ed. So
Paulo: Martins Fontes, 2014. 50
LEFEBVRE, Henri. O direito cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. So
Paulo: Centauro, 2001. 51
ARISTTELES. A Poltica. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2. ed. Bauru, SP:
Edipro, 2009. 52
JAEGER, op. cit., p. 146.
-
48
indivduos vinculados plis.
2.1.2.3 As cidades-Estado de Roma
Roma sempre manteve as caractersticas bsicas de cidade-
Estado, desde sua fundao em 754 a.C., at 565 da era crist53
.
O expansionismo territorial54
, o cristianismo e a superao da
cidade-Estado provocaram o advento de novas formas de ordenao de
sociedade poltica, inserta no contexto medieval.
Uma das caractersticas centrais das cidades-Estado de Roma foi
a base familiar de organizao. Alis, a literatura aponta que da antiga
Civitas, da qual teria resultado a unio de grupos de famlias, sempre
houve a concesso de privilgios s famlias dos patrcios, fundadora da
Cidade-Estado.
De forma semelhante ordenao das cidades-Estado gregas, nas
cidades-Estado de Roma os cidados participavam do governo.
Roma sempre procurou manter o ncleo de poder poltico que a
colocasse em situao de ascendncia em relao s demais cidades-
Estado de Roma, considerada a composio da populao da cidade,
exrcito, finanas e seus grupos sociais (patrcios, clientes, plebeus e
escravos).
Os Patrcios eram considerados os cidados romanos e donos de
grandes propriedades de terras, rebanhos e escravos. Gozavam de
direitos polticos destacados no campo da justia, administrao pblica
e exrcito, alm das funes vinculadas religio. Os clientes eram
homens livres associados aos patrcios que, em troca de seus servios
53
DALLARI, op. cit., p. 64. 54
Graas as suas conquistas no Oriente, Roma atraiu milhares de intelectuais e
mercadores gregos; tambm foram trazidos para Roma escravos gregos. Esse
influxo acelerou o processo de helenizao j iniciado quando do contato com a
experincia de Roma com as cidades gregas da Itlia meridional. Uma
consequncia fundamental da expanso foi o contato com a experincia jurdica
de outros povos, entre estes os gregos. Os juristas romanos, demonstrando as
virtudes romanas do pragmatismo e do senso comum, fizeram uma incorporao
seletiva dos elementos dos cdigos de leis e tradies dessas naes ao direito
romano. Assim, os juristas romanos de modo gradativo e emprico, elaboraram
os jus gentium com o direito natural (ius naturale) dos estoicos. Afirmaram os
juristas que o direito devia estar de acordo com os princpios racionais inerentes
natureza normas universais capazes de serem compreendidas por indivduos
racionais. In: PERRY, Marvin. Civilizao ocidental: uma histria concisa.
So Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 144.
-
49
recebiam auxlio econmico e proteo social. Os plebeus constituam o
grupo de homens e mulheres que se dedicavam ao comrcio, ao
artesanato e agricultura. Os escravos constituam a base do sistema de
trabalho e produo de Roma e eram considerados uma propriedade,
desta forma estavam subordinados e sujeitos a castigos e podiam ser
alugados ou vendidos55
.
Roma cercou-se, progressivamente, de cidades-satlites,
buscando manter sempre sua unidade e ascendncia56
. Entretanto, a
pretenso de integrao jurdica dos povos das cidades-Estados de
Roma, via extenso da civitas, primeiro aos Itlicos e aps aos sditos,
se processou apenas com a Constitutio Antoniana em 212 d.C., que concedeu a naturalizao de todos os cidados dos territrios invadidos
por Roma57
. Referido Edito teve objetivo poltico, religioso, social e
fiscal58
.
Entre as contribuies jurdico-polticas das cidades-Estado de
Roma, durante o perodo Pr-clssico (sculo VIII a.C. at sculo II
a.C.), encontram-se as normas relacionadas famlia e religio, com
especial destaque para a Lei das XII Tbuas de 450 a.C., em resposta a
uma das revoltas da plebe romana. A Lei Licnia sextia no sculo IV
a.C. que proibia a escravido por dvidas e o Tribunato da Plebe
tambm constituram marcos normativos referenciais do perodo59
.
Respectivamente ao perodo clssico (sculo II a.C. at o sculo
III d.C.), o desenvolvimento do Direito Romano concentrou-se no poder
da cidade-Estado, com destaque para as funes exercidas pelos Pretores
(responsveis diretamente pela Justia) e Jurisconsultos (estudiosos do
Direito e sistematizadores das formas dos atos processuais aos
magistrados e s partes)60
.
Referente ao perodo ps-clssico da periodizao do Direito
55
Com a expulso dos Reis, fora decidido que os Cnsules seriam escolhidos
entre os patrcios, nas famlias em que se recrutavam os senadores. As outras
categorias de cidados no tinham direitos. Todavia, devido ao tratamento
desumano aos plebeus, a discrdia instalada nas cidades-Estado de Roma,
provocou a secesso dos plebeus, via greve geral, retirando-se estes da
participao da vida das cidades. Tal fato levou os patrcios a criarem uma
magistratura unicamente plebeia chamada tribunato da plebe que teria o
poder de proteger os pobres dos ricos. In: GRIMAL, op. cit., p. 38-41. 56
Idem, ibidem, p. 39. 57
DAL RI JNIOR; OLIVEIRA, op. cit., p. 36. 58
DALLARI, op. cit., p. 64. 59
CASTRO, op. cit., p. 84-85. 60
Idem, ibidem, p. 86-90.
-
50
Romano (sculo III at o sculo VI d.C.), recebeu destaque a
codificao justianeia, chamada de Corpus iusris civilis61
, com
significativo reflexo para os cdigos modernos62
.
Em sntese, o legado jurdico-poltico deixado pelas cidades-
Estado de Roma e pelo Direito Romano foi significativo, uma vez que
inclui o costume, leis, plebiscitos, editos dos magistrados,
jurisprudncia, resolues senatoriais, constituies, entre outros.
2.2 A CIDADE NA IDADE MDIA ENQUANTO ENTE POLTICO
PRINCIPAL DOTADO DE IURISDICTIO E DE
AUTOGOVERNO PELO EFETIVO EXERCCIO DE FATO DE
SUA IURISDICTIO DE CITT
Pietro Costa, na qualidade de professor de histria do Direito e do
pensamento jurdico moderno, problematiza em torno do conceito de
soberania na idade mdia, partindo da indagao acerca da existncia ou
no de uma soberania medieval. Simultaneamente, insere a abordagem
da cidade na Idade Mdia como ente poltico principal dotado de
iurisdictio63
(jurisdio) e de autogoverno pelo efetivo exerccio de fato
61
Conjunto de livros e textos jurdicos reunidos nos meados do sculo VI por
ordem do Imperador Justiniano, em uma compilao (Digesto ou Pandectas,
legislao imperial, manual de introduo as Instituies, as Novelas, as
constituies novas promulgadas por Justiniano) a que, a partir do sculo
XVI, se d o nome de Corpus Iuris Civilis - que vai constituir a memria
medieval e moderna do direito romano. In: HESPANHA, Antnio Manuel.
Cultura jurdica europia. sntese de um milnio. Florianpolis: Boiteux, 2005.
p. 126-127. 62
Idem, ibidem, p. 86-87. 63
Iurisdictio, em sentido estrito, a funo de julgar prpria do juiz ordinrio,
mas tambm e sobretudo algo maior e mais complexo: o poder daquele,
pessoa fsica ou jurdica que ocupa uma posio de autonomia diante dos
outros investidos de poder e de superioridade diante dos sditos; e no este ou
aquele poder (numa viso espasmodicamente fragmentria que prpria de ns
modernos, mas no foi dos medievais), mas sim uma sntese de poderes que no
se teme ver condensada um nico sujeito. Nessa sntese de poderes, a funo
emergente e caracterstica a de julgar: algum prncipe por ser juiz, juiz
supremo. Se h um conceito logicamente estranho iurisdictio a criao do
Direito: dizer o direito significa pressup-lo j criado e formado; significa
explicit-lo, torn-lo manifesto, aplic-lo no significa cri-lo. In: GROSSI, A
ordem jurdica medieval, p. 162.
-
51
de sua iurisdictio de citt64
.
A abordagem de Costa no desconsidera o longo tempo de
acontecimentos e histria da Idade Mdia, com abrangncia entre o
sculo V d.C. e o sculo XV. Sua anlise se dirige com maior
abrangncia ao perodo da Chamada Idade Mdia65
Central, em que
persiste o Direito Comum (unidade entre os direitos existentes no
perodo, a saber, romano, cannico e local)66
, tecendo sempre sua
diferenciao com a ordem poltico-jurdica moderna.
Costa afirma que uma distoro da histria atestar a existncia
de uma soberania propriamente dita no perodo medieval. Na Idade
Mdia havia uma ordem poltica hierarquicamente ordenada em seus
diferentes status de sujeitos, com o fechamento de seu vrtice na
64
COSTA, Pietro. Soberania, representao, democracia: ensaios de histria
do pensamento jurdico. Trad. de Alexandre Rodrigues de Castro, Angela Couto
Machado Fonseca, rica Hartamnn, Ricardo Marcelo Fonseca, Ricardo Sontag,
Sergio Said Staut Jr., Walter Guandalini Jr. Curitiba: Juru, 2010. 65
O perodo histrico denominado Idade Mdia possui cinco caractersticas
fundamentais: um perodo histrico bastante longo, pois envolve mais ou
menos mil anos; um perodo histrico de transio entre o mundo antigo e o
moderno; um perodo marcado por formas de sociabilidade
predominantemente rurais ou agrrias; um perodo histrico sob o domnio do
poder da Igreja; um perodo histrico muito complexo, que pode ser
subdividido em vrios perodos de menor durao, que possuem pressupostos e
formas de articulao de poder prprios. In: BEDIN, Gilmar Antnio. A Idade
Mdia e o nascimento do Estado Moderno: aspectos histricos e tericos. 2. ed.
Iju: Uniju, 2014. p. 15.
A retrica ideologicamente imbuda do humanismo renascentista, ao rotular
com Idade Mdia media aetas o perodo que lhe anterior, aquele que se
estende por quase um milnio do sculo V d.C. ao sculo XV, pretendeu indicar
caracterizando-a maliciosamente como poca transitria sua no autonomia,
sua fragilidade como momento histrico. uma viso distorcida, que h tempos
a historiografia procura eliminar e o historiador do direito pode, com plena
conscincia unir sua voz para contestar semelhante distoro: a construo
medieval de uma ordem jurdica prpria est de acordo com uma intensa
originalidade decorrente de sua intensa historicidade; um conjunto harmnico
de construes tpicas, por serem adequadas e inerentes s exigncias histricas,
fundadas nos novos valores emergentes e, como tais, reflexos na sociedade nas
suas razes mais remotas. In: GROSSI, A ordem jurdica medieval, p. 10-11. 66
Hespanha ressalta a adequao da expresso direito comum medieval por
designar a unidade do direito que se constri, quer seja entendida como unidade
entre os direitos existentes no perodo, a saber, romano, cannico e local, quer
para designar a unidade da forma de construo do conhecimento jurdico. In:
HESPANHA, op. cit., p. 121.
-
52
representao do imperador que possua o seu poder legitimado pelo
poder
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