universidade estadual do maranhÃo marcelo silva … · universidade estadual do maranhÃo centro...
Post on 22-Jan-2020
7 Views
Preview:
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA
MARCELO SILVA NUNES
CONFLITOS NAS TERRAS DO CALVÁRIO: um estudo sobre a luta pela posse da terra em
Boa Vista, Rosário – MA (1988-2004)
São Luís
2007
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA
MARCELO SILVA NUNES
CONFLITOS NAS TERRAS DO CALVÁRIO: um estudo sobre a luta pela posse da terra em
Boa Vista, Rosário – MA (1988-2004)
Monografia apresentada ao Curso de História da
Universidade Estadual do Maranhão para
obtenção do grau de Licenciado em História.
Orientador: Prof.º Dr. Josenildo de Jesus Pereira
São Luís
2007
2
MARCELO SILVA NUNES
CONFLITOS NAS TERRAS DO CALVÁRIO: um estudo sobre a luta pela posse da terra em
Boa Vista, Rosário – MA (1988-2004)
Monografia apresentada ao Curso de História da
Universidade Estadual do Maranhão para
obtenção do grau de Licenciado em História.
Orientador: Prof.º Dr. Josenildo de Jesus Pereira
Aprovada em: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
________________________________________ Prof.º Dr. Josenildo de Jesus Pereira
Orientador
________________________________________ Prof.ª Ms.ª Marcea Milena Galdez Ferrera
1º Examinador
________________________________________ Prof.º Dr. José Henrique de Paula Borralho
2º Examinador
4
AGRADECIMENTOS
A Deus pela força que me deu durante toda a minha vida acadêmica, abrindo os meus
olhos para além do que podiam ver. Louvado seja o nome do Senhor!
Aos meus pais, por terem me proporcionado o melhor que eu poderia receber: amor,
atenção, carinho e cuidado. Aos meus irmãos que mesmo sem darem uma palavra,
demonstravam todo o apoio ao meu trabalho.
Aos meus amigos de Caxias que sempre torceram por mim, Laécio, Neta e Jose. Aos
companheiros de curso, Rafael, Jorge, Tatiane, Elivaldo, ao meu grande amigo Jonas que
acompanhou o meu desenvolvimento até a conclusão deste curso. Aos meus quase dois
irmãos, Leandro e Fortaleza, por me suportarem nas horas de longa prosa sobre os caminhos
que nossas vidas estão seguindo.
Aos professores do Curso de História, pela grande disposição em oferecer uma
graduação de qualidade. Em especial agradeço ao professor Alan por ter sido um pai desde os
meus primeiros passos nesta universidade, aconselhando e estimulando a fazer sempre o
melhor. À professora Marivânia por ter me dado a oportunidade de fazer a pesquisa de campo
que mudaria a minha vida. Ao professor Henrique Borralho pelo exemplo de independência
no magistério. Ao professor Fábio pelos conselhos no estágio.
Ao pesquisador Deusdédit Leite pelas entrevistas concedidas e relatórios de suas
viagens à Rosário.
Ao professor Josenildo pela orientação deste trabalho, pelas puxadas de orelha e pelos
conselhos.
A todos que direta ou indiretamente contribuíram de alguma forma para a realização
deste trabalho, deixo os meus sinceros agradecimentos.
5
“Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem
campo a campo, até que não haja mais lugar, e
ficam como únicos moradores no meio da
terra!”
Isaías 5, 8
6
RESUMO
Os remanescentes de comunidades quilombolas vêm ganhando destaque na questão
agrária, desde a promulgação de uma lei em 1988 que lhes garante a propriedade da terra. A
lei, porém, é ambígua quanto aos critérios definidos para identificação e reconhecimentos dos
sujeitos de direito. Como resultado, outros grupos de posseiros procuraram legalizar por meio
da referida lei, a posse da terra que vêm ocupando, determinando entre os sujeitos envolvidos
os critérios para a elaboração da nova identidade. Para este trabalho monográfico, definiu-se
estudar os conflitos ocorridos na comunidade Boa Vista, no período de 1988 a 2004,
envolvendo de um lado extrativistas; e do outro, um multifacetado grupo de posseiros que
encontrou no compartilhamento das experiências de violências, agressões e abusos sofridos
um novo sentimento de coletividade e de pertencimento àquela terra, representado na
construção de uma nova identidade. A organização da resistência tem como liderança os
moradores vinculados à religião pentecostal, cuja ação despertará a contenda com outros
grupos religiosos locais. A variedade de situações vividas pelos moradores da comunidade,
impulsionou o uso das fontes orais como embasamento para esta pesquisa.
PALAVRAS-CHAVES: Conflitos, Identidade, Experiência, Resistência.
7
ABSTRACT
The quilombolas communities remaining have been overcoming prominence in the
agrary questions, since the promulgation of a law in 1988 that secures to their the land’s
property. However, the law is ambiguous in relation to the defined criterion to right subjects
identification and recognitions. As the result, other gruops of possessives searched to legalize,
by this law, the land’s possession that have been occupying, determining among the involved
subjets the criterions to the development of the new identity. To this monographic work, it
was defined to study the conflicts those wre happend at Boa Vista community, since 1988 at
2004 period, envolving the people who extract the nature resources by one side, ande in the
other side, a many faces possessive groups os people that found a new feeling os collectivity
and of pertaining to that land, represented in the building of a new identity, throught the
violence, aggression and suffered abuses experiments of share. The resistence organization
has as leadership the dweller linked to pentecostal religion, whose action will arwake the
contention with another local religious groups. The diversity of situations lived by the
community dwellers was an incentive to the use of spoken sources as basement to this
research.
Keywords: Conflicts, Identity, Experience, Resistence
8
LISTA DE SIGLAS
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
ACONERUQ – Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
FCP – Fundação Cultual Palmares
CCN – Centro de Cultura Negra
CUT – Central Única dos Trabalhadores
INCRA – Instituto de Colonização e Reforma Agrária
ITERMA – Instituto de Colonização e Terras do Maranhão
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
ONG – Organização não-governamental
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 10
2. OS PRETO SOMO NÓS: a construção da identidade quilombola 15
2.1 Identidade e Quilombo em discussão 17
2.2 Comunidade Boa Vista: elementos de uma identidade 27
3. A ORGANIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA 36
3.1 Roça, grilagem e resistência 38
3.2 A Associação 43
3.3 Os conflitos internos 47
4. PENTECOSTAIS EM AÇÃO 56
4.1 É necessário conscientizar primeiro 60
4.2 A desmobilização coletiva 65
CONCLUSÃO 71
REFERÊNCIAS 74
APÊNDICE 78
10
1. INTRODUÇÃO
Os conflitos agrários envolvendo as comunidades de remanescentes de quilombo se
tornaram mais freqüentes no Brasil, após a década de 1950, em função da implantação de
grandes empresas extrativistas, hidrelétricas, madeireiras e o avanço da fronteira agro-
pecuarista. Como resultado as populações que viviam nas áreas afetadas fugiam para outras
localidades, principalmente para os centros urbanos, ou resistiam por meio das mobilizações
coletivas.
A dinâmica conflituosa passou a envolver cada vez mais camponeses à medida que as
Associações e Sindicatos de Trabalhadores Rurais proliferavam pelo país, tornando-se as
formas mais importantes de organização e luta política dos camponeses (MARTINS, 2000;
NUNES, 2007). Na década de 1980, uma parcela da população rural começou a chamar a
atenção de políticos e pesquisadores por causa da especificidade do grupo ameaçado de
expropriação: os remanescentes de comunidades quilombolas que desde a criação da Lei de
Terras (1850), vêm sendo expulsos de suas áreas historicamente ocupadas, acabam por se
interiorizar nas matas do oeste brasileiro.
O que vai ocorrer, a partir dos anos 80, é a grande quantidade de conflitos fundiários
envolvendo essas comunidades, principalmente por causa da grilagem. Na tentativa de
solucionar a questão, representantes do movimento negro no Brasil começaram a pressionar o
Congresso Nacional para aprovar leis que pudessem beneficiar os remanescentes quilombolas.
No ano de 1988, centenário da Abolição, os deputados federais aprovaram o artigo 68, para
ser aplicado em caráter provisório, que garante “aos remanescentes de comunidades
quilombolas que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
No entanto, os debates que antecederam a votação da lei não chegaram à conclusão
acerca dos critérios que definiriam quem poderia ser chamado de remanescente. Alguns
órgãos federais – Fundação Cultural Palmares e Incra - foram criados para discutir a questão
ao longo dos anos, apresentando resultados temporários de pouca expressão.
Em 1996, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) definiu os remanescentes
quilombolas como grupo étnico, atribuindo como elementos de identificação a organização
interna que promove a criação dos laços de afetividade e solidariedade entre os sujeitos
sociais, cuja territorialidade é marcada pelo uso comum da terra. O novo conceito abrange a
11
dinâmica das transformações no cenário fundiário que afetaram o modo de vida dessas
populações, mais tarde os cientistas sociais passaram a denominá-las de comunidades negras
rurais ou povoados negros, termos equivalentes às comunidades de remanescentes
quilombolas.
De posse desse discurso, várias organizações vinculadas ao movimento negro
passaram a mobilizar populações “negras” pelo interior do país, na esperança de assegurar-
lhes a posse de terras que estejam ocupando. Um exemplo foi o que ocorreu na comunidade
Boa Vista, localizada no município de Rosário-Ma.
Neste trabalho foram analisadas as transformações sócio-culturais ocorridas nessa
comunidade, como implicações dos conflitos com empresas extrativistas que invadiram a área
nos anos 1980. A discussão é feita em três momentos, focando a construção de uma nova
identidade, a identidade quilombola; a organização da resistência empreendia por alguns
moradores, e por fim, os conflitos envolvendo os grupos religiosos que vivem no local.
Boa Vista é uma área habitada, em maioria, por várias famílias de posseiros que se
instalaram na região, a partir dos anos 70. De acordo com Luna (1984, p, 13) “ocupantes de
terras devolutas que não possui o título de propriedade”. Uma outra parte da população era
constituída pelos remanescentes de ex-escravos que trabalharam numa fazenda de cana de
açúcar, cujo proprietário era uma família de sobrenome Baima. Sem informações que
pudessem auxiliar no estudo sobre a história do lugar, seguiu-se os relatos orais narrados por
alguns moradores. Estes afirmam que os escravos receberam aquelas terras como doação feita
pela referida família antes dela partir para a França, no final do século XIX.
Conta-se ainda que até o início dos anos 1970 os remanescentes de escravos que
viviam na área desenvolveram uma agricultura de subsistência e uma forma de organização
das relações internas que garantia a manutenção dos laços de identidade. Quando começam a
chegar as primeiras famílias de agricultores vindo do interior do Estado - expulsas de suas
terras por fazendeiros, são feitos acordos aonde os “chegantes” usufruiriam da terra mediante
o pagamento do foro com parte da produção agrícola de cada família.
Os contatos amistosos entre remanescentes e migrantes garantiram a sobrevivência dos
grupos por um bom tempo. Mas com a chegada da Pedreira Anhanguera as primeiras
dificuldades começaram a aparecer. Apresentando documentos cartoriais de compra daquelas
terras, representantes da empresa extrativista começaram a negociar a saída das famílias da
área. Após serem deslocadas para um novo local, os grupos de moradores teriam que
12
enfrentar uma outra ameaça de expulsão. Vários empresários nordestinos implantaram olarias
na região, para a fabricação de telhas e tijolos a serem vendidos nos municípios próximos a
Rosário. As tensões entre os posseiros e os extrativistas irão acarretar em várias mudanças nas
estruturas física, social e cultural de Boa Vista.
Apesar da amplitude de temas que poderiam ser abordados com o caso desta
comunidade, foram sistematizados apenas três capítulos para esta pesquisa. No primeiro,
apresentou-se um breve panorama acerca dos debates em torno da ressemantização dos
termos quilombo e remanescentes quilombolas, as novas denominações atribuídas a essas
populações e o processo de construção da identidade quilombola empreendido por um grupo
de moradores de Boa Vista, visando a regularização de suas ocupações.
Ao fazer uma discussão acerca das populações negras rurais, foi importante mostrar
como os laços de solidariedade existentes entre os membros, assim como as regras definidas
para inclusão e exclusão de sujeitos, foram responsáveis pela manutenção da unidade do
grupo. Para os que vivem nas chamadas “terras de preto” – marcadas por um anti-capitalismo
– a territorialidade se constitui um forte fator de identidade. “Ela envolve as relações com os
recursos naturais e contribui pra que os aspectos culturais se consolidem” (PVN, 2003, p, 16).
Contudo, o artigo 68 definiu que os sujeitos devem “estar ocupando as suas terras” para
receberem os títulos; sendo assim, colocou-se a questão: a identidade coletiva, ou quilombola,
só pode ser construída a partir da fixação em um território? Pois os estudos analisados
indicaram a grande mobilidade espacial de grupos negros que desde as primeiras alforrias não
garantiram o acesso a terra.
Apesar da grande mobilidade agrária, os grupos de posseiros negros conseguiram
manter algumas de suas tradições, repassando-as através das gerações. A mudança no modo
de vida destes grupos muitas das vezes se dava, quando estes entravam em contato com outros
sujeitos: um grande proprietário que lhes oferecia a terra para o cultivo mediante o pagamento
do arrendamento; ou homens livres sem-terra e marginalizados que procuravam abrigos
nessas comunidades.
No segundo capítulo o foco é a organização da resistência realizada por um grupo de
moradores ligados à Casa de Oração que está sob a tutela da Assembléia de Deus de Rosário.
Os membros são comumente chamados de evangélicos ou, para os cientistas da religião,
pentecostais. A ação deste grupo teve como fator preponderante a ameaça de derrubada do
templo por um dos donos das olarias. O dirigente e um membro da congregação indignaram-
13
se com aquela situação e começaram a mobilizar outros fiéis a resistirem às investidas dos
grileiros. Como resultado, o grupo de moradores que tomou consciência dos fatos lançou-se à
construção da Associação de Pequenos Agricultores Rurais de Boa Vista.
Inseridos na luta pela terra, alguns moradores que compartilhavam da mesma situação
de opressão, pobreza e ameaças, forjaram uma nova identidade social expressas nas práticas
políticas e culturais implementadas durante os conflitos. Esse é o momento em que se forja a
classe1, como um fenômeno histórico composto por uma multidão de experiências em relação
umas com as outras e, num constante fazer-se, e não uma categoria analítica ou estrutural.
Apesar do interesse comum em defender a ocupação da terra, a mobilização da
comunidade não garantiu a unidade do grupo. As lideranças entraram em discordância quanto
à forma de resistir ao avanço dos grileiros, ocasionando na cisão dos associados. Estes
conflitos internos abrangeram também a esfera religiosa colocando pentecostais, católicos e
praticantes de culto-afro numa disputa pela sobrevivência das práticas religiosas durante a
mobilização para a resistência.
O processo de conscientização dos moradores para defesa do acesso à terra, é
promovido, no primeiro momento pelos pentecostais. Essa ação é analisada no terceiro
capítulo focando as implicações internas e externas para este grupo religioso. Vários fatores,
como a ameaça de derrubada do templo, os conflitos com os praticantes do culto-afro
resultantes da tentativa de evangelizá-los, irão contribuir para algumas das transformações no
cenário religioso da comunidade de Boa Vista.
A mudança na visão social de mundo do grupo envolvido na defesa das terras,
definida por Lowy (2002, p, 13) como “todos aqueles conjuntos estruturados de valores,
representações, idéias e orientações cognitivas”, representou o abandono de algumas das
práticas culturais exercidas por alguns moradores. Ou seja, não significa que a luta pela posse
da terra seja uma luta pela reprodução de um sistema tradicional, pelo reavivamento de
condições passadas, como é difundido por alguns antropólogos. É uma luta contra a
expropriação, e muitas das vezes, por condições de sobrevivência num sistema de mercado.
O que se terá é uma luta promovida por um grupo que agrega múltiplas identidades,
mas que no compartilhamento de experiências puderam organizar uma forma de resistência
1 A classe “surge quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a ‘identidade’ de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus.”. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 10.
14
que comportasse os interesses envolvidos na disputa. O desenrolar da questão contou ainda
com a participação de representantes do movimento negro, cujo discurso pela afirmação
étnica fora de suma importância para a construção da identidade quilombola entre os
associados de Boa Vista.
O discurso elaborado pelos agentes envolvidos no processo de reconhecimento da
territorialidade étnica da comunidade em questão, nos levou a adotar a história oral como
metodologia para esta pesquisa. As experiências individuais representadas nos relatos orais
consistiram na narração de uma vida marcada por conflitos, violências e humilhações. Para
definição de história oral, buscamos em Delgado (2005, p. 15) a seguinte compreensão:
É um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e
documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas,
testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas
dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais.
Além disso, podemos verificar em cada entrevista a forma como a experiência do
conflito pela posse da terra é lembrada na memória individual. Através do contato direto com
o sujeito histórico podemos observar suas impressões acerca da realidade do espaço ocupado,
suas temporalidades e concepções de coletividade, etnia e religiosidade. Com base nos
depoimentos, voltamos nossa atenção para a definição de memória. Segundo Nora (1993, p.
18), a memória emerge de um grupo que ela une, no entanto,
a atomização de uma memória geral em memória privada dá à lei da
lembrança um intenso poder de coerção interior. Ela obriga cada um a se
relembrar e a reencontrar o pertencimento, o princípio e segredo da
identidade. Esse pertencimento, em troca, o engaja inteiramente.
Podemos usar este pensamento para discutir de que maneira as experiências vividas
por cada indivíduo são aglomeradas na forma de uma memória coletiva, logo de uma
identidade étnica. Conforme os estudos de Lang (apud. BOM MEIHY, 1996, p.35)
escolhemos como fontes para nossa pesquisa os relatos orais, por estes “serem uma narração
mais restrita, mais direcionada por uma determinada temática.” Assim focamos a experiência
dos conflitos – agrários sociais e religiosos - experimentados por cada entrevistado.
15
2. “OS PRETO SOMO NÓS”: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE QUILOMBOLA
A comunidade Boa Vista fica localizada numa área a 4 km do centro da cidade de
Rosário-MA. De acordo com informações colhidas no Dicionário Histórico e Geográfico da
Província do Maranhão, aquele lugar recebeu o nome de Itapecuru Grande, após a construção
do Forte Vera Cruz (ou do Calvário) em 1620, pelo capitão-mor Bento Maciel Parente, tendo
a função “de repelir os ataques de gentios (índios) que embaraçava as plantações” 2, na
Ribeira do Itapecuru.
Em 1802, o cabido3 representado pelo Arcedíago Antônio Coelho Zuzarte e o Mestre-
Escola João de Bastos e Oliveira, dirigiram-se à Câmara da capital solicitando o
desmembramento da freguesia de Rosário, pois esta fazia parte do distrito de Itapecuru. A
extensão de toda a freguesia de Rosário compreendia 196 fazendas, 226 sítios, 333
agricultores, 27 negociantes, 52 artistas, além de indivíduos brancos e forros de um e outro
sexo, tinha 10. 179 escravos, com ao todo 12. 174 almas. Após a divisão couberam à
freguesia de Rosário 9 léguas de terreno com 157 fazendas e 6. 725 almas. Em 1866, a
população de Rosário era de 16. 126 pessoas, distribuídas da seguinte forma: 12. 610 livres e
3. 516 escravos. 4
A região que hoje é chamada de Baixada maranhense é marcada pela baixa densidade
populacional, fora utilizada para a instalação de muitos engenhos de açúcar, requisitando para
isso a exploração de extensas faixas de terras para o cultivo da cana. A desagregação da
grande propriedade, trouxe a oportunidade para grupos de homens livres pobres e escravos
libertos de obterem, a partir da negociação com o latifundiário, pequenos lotes desta área para
o cultivo de gêneros alimentícios que ajudavam na subsistência e abasteciam o comércio
local.
Com o fim do regime escravista, muitas famílias de grandes fazendeiros acabaram
endividadas tendo que recorrer ao arrendamento de parte de suas terras e à venda de seus
cativos para garantir a própria subsistência. De acordo com as informações encontradas no
processo de demarcação das terras encaminhado pelo líder da comunidade Boa Vista em
2002, ao Incra-MA, havia uma família de sobrenome Baima que possuía uma fazenda de
2 Cf. MARQUES, César Augusto. Dicionário Historiográfico-Geográfico da Província do Maranhão. Rio de Janeiro. Fon-Fon e Seleta, 1970. p, 284 3 Corporação dos cônegos de uma catedral. 4 Id., ibid., 1970, p. 286
16
algodão com o nome de Boa Vista naquelas terras próximas ao Forte do Calvário dentro do
povoado chamado Cachoeira. Antes de deixarem a região, os Baima teriam doado parte de
suas terras aos poucos escravos que ainda trabalhavam na fazenda, após a Abolição, sem ter
registrado esta ação em cartório. Os novos moradores passaram então a chamar aquelas terras
de Boa Vista dos Pretos e a desenvolver a agricultura familiar, ou roça, como forma de
subsistência.
Foto 1: Família de posseiros que vieram de outras regiões para Boa Vista.
Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Outubro, 2005.
Os poucos remanescentes dos escravos libertos que vivem atualmente na área, contam
que a família Baima, de origem francesa, era muito boa para com os empregados e escravos.
Esses moradores também destacam as inúmeras festas ocorridas na comunidade onde se
dançava o Pelá: “havia naquela época muitos pretos de excelentes vozes que faziam a cantoria
ser ouvida até em Rosário” 5.
Sobre a recente situação da comunidade, são apresentadas algumas informações pelo
líder comunitário, que atende pela alcunha de Caipira, em um dos anexos do processo
encaminhado ao Incra:
Esta área até pouco tempo era conhecida como Boa Vista dos Pretos. Hoje
em sua totalidade é ocupada por grileiro, donos de cerâmicas, imigrantes
5 Algumas informações acerca da história da comunidade de Boa Vista foram obtidas por meio de relatórios produzidos após as visitas realizadas pelo arqueólogo Deusdédit Carneiro Leite Filho à região, nos anos de 1990 e 2007.
17
dos estados do Ceará, Pernambuco e da Paraíba, que além de explorar mão
de obra, expulsaram os antigos moradores da área, levantando cerca e
proibindo os pequenos agricultores de cultivarem a sua subsistência, ou
agricultura familiar. (Histórico de Boa de Vista feito pelos membros da
Associação de Moradores, out. 2005)
Esse relato apresenta importantes características para compreensão da comunidade
Boa Vista. Primeiro, são apontados os “invasores”- donos de cerâmicas - que, na versão dos
moradores, intitularam-se donos daquelas terras mediante a apresentação do documento de
compra registrado no cartório da cidade e, autenticado no ITERMA, em São Luís; isso teria
dado origem aos conflitos na região, durante os anos 1980. Em segundo lugar, faz-se
referência ao tempo de ocupação da terra, ao citar os “antigos moradores da área”, denotando
a presença de dois momentos de ocupação da área: primeiro, os antigos moradores –
remanescentes das famílias de escravos libertos; e em seguida, os mais recentes – que vieram
de outras localidades, a partir da segunda metade do século XIX. Em terceiro lugar é citada
como forma de garantir a subsistência dos moradores, a agricultura familiar. De posse dessas
informações, foi possível elaborar esta pesquisa que traz nesta primeira parte alguns
comentários acerca da história das comunidades quilombolas, assim como o processo de
construção desta identidade por um grupo de moradores da comunidade Boa Vista, a partir de
2003.
Para iniciar esta discussão, sabe-se a princípio que no decorrer dos séculos, as
comunidades que surgiram a partir dos antigos quilombos passaram por uma série de
transformações, sobretudo, na maneira em que o grupo se percebia, ou seja, a identidade que
fora construída ao longo do tempo. Como conseqüência, a partir da década de 1970,
historiadores e antropólogos realizaram uma discussão à procura de uma terminologia que
superasse a versão cristalizada no século XIX acerca dos remanescentes de quilombo, a fim
de incorporar as mudanças ocorridas no interior dessas comunidades.
2. 1 Identidade e quilombo em discussão
Compreendendo-se a construção da identidade quilombola pelo grupo de moradores
que organizaram a resistência em Boa Vista, por meio da Associação de Pequenos
18
Agricultores Rurais, como parte do processo de luta pela terra, foi necessário encontrar uma
definição acerca do termo identidade que pudesse dar conta da situação em questão.
Por causa de sua polissemia, este vocábulo tem sido discutido e definido sob vários
enfoques científicos, possibilitando a sua aplicação nos mais diversos contextos. É
interessante observar que na atual conjuntura mundial, têm-se discutido os efeitos da
globalização e mundialização da economia, aonde as chamadas identidades nacionais vêm
perdendo espaço para as transformações culturais provocadas pela aproximação das culturas
através dos meios de comunicação e formação de grandes blocos econômicos: como é o caso
da internet e da União Européia. Nesse contexto levanta-se uma questão: como definir
políticas públicas para as minorias étnicas num mundo em constante resignificação
identidária? Em cima dessa problemática procurou-se uma definição para o termo identidade
que apontasse alguns fatores que levam à sua construção pela ditas minorias étnicas. Por isso,
tomou-se emprestado a interpretação de Brandão (1986, p. 42), que compreende a identidade
como o produto do contraste e da diferença, assim:
as identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto
com o outro; a poder ou não construir por conta própria o seu mundo de
símbolos e, no seu interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o
grupo, a minoria, a raça, o povo. Identidades são, mais do que isto, não
apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o próprio
reconhecimento social da diferença.
Brandão apresenta dois elementos essenciais para a elaboração da identidade: o
confronto com o outro e o reconhecimento social da diferença. Quanto ao primeiro, observou-
se na análise dos conflitos fundiários ocorridos na comunidade Boa Vista que o grupo que
empreende a resistência aos invasores não é homogêneo na sua composição social; logo, na
luta pela defesa das terras ocupadas, os segmentos sociais (indivíduo, família, grupos
religiosos, entre outros) passam a compartilhar dos mesmos interesses numa situação
conflituosa, sem abrir mão dos traços que lhes são característicos. Para ficar mais claro, o
historiador britânico E. P. Thompson explica que “é no processo de lutas sociais que se forja
a identidade social” 6, ou seja, num contexto envolvendo as disputas de interesses entre
grupos antagônicos, aquele que está na condição de explorado, ou submetido, tem em si 6 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, 1987, p. 10.
19
mesmo gerado um sentimento de pertença como resultado de experiências comuns (herdadas
ou partilhadas) entre os membros desse grupo.
O segundo elemento enfatiza as relações estabelecidas entre o grupo que reivindica a
identidade, com os outros grupos dentro e fora do espaço social. Neste caso o grupo
mobilizado luta para que a identidade étnica que foi elaborada seja reconhecida pelos demais
grupos que residem na comunidade e na sociedade em geral. A base para a organização desta
coletividade será o discurso feito pelas lideranças do lugar que tentam promover a
disseminação da auto-afirmação étnica como meio de fortalecer os laços que mantém a
coletividade viva diante das pressões e ameaças dos grileiros. Para isso, entram nesse trabalho
de conscientização e mobilização dos moradores na luta pela defesa da terra ocupada,
organizações não-governamentais, partidos políticos e movimentos sociais que apresentam a
comunidade os instrumentos legais para se chegar à posse efetiva da terra.
Assim, outros casos de luta pela terra envolvendo essas populações deram às lutas
camponesas no Brasil um caráter étnico à medida que isso aceleraria o processo de
regularização fundiária desta parcela da sociedade. A criação de leis e decretos para amenizar
o problema dos conflitos agrários, trouxe não só mudanças na terminologia aplicada aos
sujeitos do direito – os remanescentes das comunidades quilombolas -, como também nos
critérios usados para definir a identidade destes grupos.
O artigo 68 dos ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), da
Constituição de 1988, que garante: “aos remanescentes das comunidades de quilombo que
estejam ocupando suas terras é reconhecida à propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-
lhes os títulos respectivos”, é fruto das pressões políticas promovidas pelos movimentos
sociais no final da década de 1980, quando se comemorava o centenário da abolição. A
Câmara dos Deputados, pressionada pelos movimentos sociais e temerosa da acusação de
racismo, fez com o artigo fosse aprovado, sem maiores debates.
O texto da referida lei não definia com precisão quem seria beneficiado, logo várias
interpretações foram sendo feitas pelo corpo da Câmara, acarretando em problemas quanto à
aplicação do referido artigo. A solução foi investir na criação de órgãos de alcance nacional
que pudessem realizar pesquisas acerca dos quilombos e remanescentes quilombolas.
Ainda que nunca tenha tido a força e disseminação que passa a ter depois dos anos 70,
o quilombo sempre foi um tema que instigou o imaginário político. A sua primeira definição
se dá no corpo das legislações colonial e imperial, de uma forma explicitamente indefinida,
20
que buscava abarcar sob um mesmo instrumento repressivo, o maior número de situações,
bastando para a sua caracterização, a reunião de cinco (colonial) ou três (imperial) escravos
fugidos, formassem eles ranchos permanentes (colonial) ou não (imperial). 7 A concepção de
uma coletividade isolada, autônoma, vivendo da agricultura de subsistência e do roubo, que
existira somente até a final do século XIX, induz grupos políticos e juristas a declararem a
inexistência de comunidades com tal modo de vida, no contexto atual.
Foi o caso da comunidade do Rio das Rãs, onde as argumentações levantadas pelos
grileiros e empresários interessados em obter a posse da terra para a realização dos seus
empreendimentos econômicos, ainda sustentam a idéia dos quilombolas viverem em locais
isolados, distantes da “civilização”, e que, portanto, não poderiam perpetuar-se até os dias de
hoje. Em carta dirigida ao Ministro da Justiça, em 1º de abril de 1993, o ex-deputado
Élquisson Soares, advogado de Carlos Newton Vasconcelos Bonfim, fazendeiro que desde
1981 alega ter comprado a Fazenda Rio das Rãs, afirma que “tomando o termo ‘quilombo’ na
sua acepção histórica e semântica: quilombo - núcleo de escravos fugidos; esconderijo de
escravos no mato; habitação clandestina onde se acoitavam os negros fugitivos, Rio das Rãs
não pode ser considerada quilombo.” Em outra peça de defesa do mesmo fazendeiro, os
advogados, dirigindo-se à Justiça Federal, citam o jurista José Cretella Júnior que diz,
textualmente:
Esta última regra [Art. 68] é utópica. Quando caíram os quilombos, os
lugares foram queimados e arrasados, presos os homiziados, e reconduzidos
às senzalas de onde haviam fugido, situados a léguas de distância dos
centros de maior concentração, as cidades. Não houve continuidade de
ocupação das terras. (CRETELLA, Apud. SILVA, 2000, p, 18).
A construção de uma imagem do quilombo como núcleo de escravos fugidos, foi
construída pela historiografia brasileira por meio da reprodução de informações adquiridas na
documentação oficial, nos tempos da colonização e da monarquia. Veja então, algumas
formas como os quilombos foram interpretados ao longo do processo histórico, para em
seguida compreender como ocorreu a ressemantização deste termo, pelos cientistas sociais,
movimentos a favor da causa negra e autoridades do poder público.
7 Cf. ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. “Quilombos: sematologia face a novas identidades”. Em Frechal – terra de preto, quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís: SMDDH/CCN – PVN, 1996
21
Esta discussão acerca da historiografia dos quilombos no Brasil tem duas
problemáticas: a relação do escravo liberto com a terra; e a sua afinidade com os demais
membros do grupo, observando as práticas, representações e a organização da coletividade.
Segundo o Conselho Ultramarino, em 2 de dezembro de 1740, quilombo é definido
como: “Toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda
que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões nele.” Este tipo de descrição
perpetuou-se pela historiografia oficial, destacando alguns elementos que foram analisados
por Almeida (2006) da seguinte forma: 1. fuga; 2. uma quantidade mínima de fugidos; 3. o
isolamento geográfico em locais de difícil acesso e mais próximos de uma “natureza
selvagem” que da chamada civilização; 4. moradia habitual, referida no termo rancho; 5.
autoconsumo e capacidade de reprodução simbolizada na imagem do pilão de arroz. Os
aspectos em destaque são os que mais se repetem nas interpretações acerca dos quilombos.
Em geral existiu, paralelamente à formação do aparato de perseguição aos fugitivos, uma rede
de informações que ía desde as senzalas até muitos comerciantes locais. Estes últimos tinham
grandes interesses na manutenção desses grupos porque lucravam com as trocas de produtos
agrícolas por mercadorias que não eram produzidos no interior do quilombo.
A estabilidade da produção agrícola aparece nas legislações e documentações oficiais
como o principal recurso para a sobrevivência dos quilombos. Veja algumas destas
considerações.
Em 21 de fevereiro de 1765, dom Luís Diogo da Silva, governador de Minas Gerais,
recorreu ao Regimento de 1722, determinando que, “para se constituir ou se reputarem negros
quilombolas, seja preciso, não só acharem-se em rancho para cima de 4, mas ver neles pilões
e modos que indiquem conservarem-se no mesmo rancho” 8. Logo o despacho de 1765
impunha, portanto, para o reconhecimento da existência de um quilombo, a necessidade de
fixação geográfica dos quilombolas – ranchos – e exigia a presença de pilão, ou seja,
elemento que comprova a estabilidade produtiva dos quilombolas. O pilão era um instrumento
que servia, entre outras funções, para transformar o arroz colhido em alimento. Este elemento
representou no contexto da época, o símbolo do autoconsumo e da capacidade de reprodução,
contribuiu também para explicar tanto as daquele grupo com os comerciantes atuantes nos
mercados rurais quanto sua contradição com a grande plantação monocultura.
8 Cód. 59 SCAPM. Apud: FIABANI. Alberto. Mato, Palhoça e Pilão: o quilombo da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 270
22
Ainda em 1757, os oficiais da Câmara de São Salvador dos Campos dos Goitacás, situado
no Norte do atuais Estado do Rio de Janeiro, entendiam por quilombo os trabalhadores
cativos que “estivessem arranchados e fortificados com ânimo a defender-se [para] que não
sejam apanhados”. Os ranchos eram aqueles em que ficam “por se repararem do tempo”.
Estipula-se também que se achado “de 6 escravos para cima que estejam juntos, se entenderá
também [por] quilombo” (FIABANI, 2005, p, 271). Nesse caso, além de anotar a estabilidade
(arranchamento), a definição enfatiza fortemente o aspecto militar do quilombo – “fortificado
com ânimo a defender-se”. Registrando, como veremos características dos quilombos não
apenas dessa região e época. Por outro lado, o elemento qualitativo – reunião de “6 escravos
[fugidos] para cima” definia um quilombo, por sobre o caráter qualitativo da reunião.
Por sua vez, o artigo 12, da Lei nº. 236, votada em 20 de agosto de 1847, pela Assembléia
Provincial do Maranhão, defina por quilombo ao “escravo aquilombado, logo que esteja no
interior dos matos, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião de 2 ou mais
com casa ou rancho” (PVN, 2003. p. 31). A definição maranhense de quilombo desqualifica a
distância de localização e reduz ao mínimo – 2 – o número de cativos fugidos. Portanto, dois
trabalhadores escravizados, vagando pelas florestas maranhenses, a poucos metros de uma
fazenda, poderiam ser apreendidos como quilombolas.
Veja que a documentação citada antecede o ano de 1850, quando ocorre a promulgação da
Lei de Terras no Brasil, alterando as formas de adquirir os lotes de terras. Este fato colocaria
em choque as concepções do camponês e do Estado acerca da propriedade, pois para o
primeiro, a legitimidade da posse da terra estava baseada no trabalho; já para o segundo, esta
era garantida a partir da compra. Até então os grupos de escravos alforriados e os que fugiam
das fazendas para os quilombos, tinham como modelo de organização econômica a agricultura
familiar com a geração de excedentes, descrita por Mário Maestri como:
doméstica de subsistência baseada na força de trabalho autolibertada do
escravismo e na existência de terras devolutas, o caráter livre da produção e
na necessidade de relações com a formação escravista para elevar a
produtividade do trabalho social foram, a nosso entender, as determinações
fundamentais dos quilombolas agrícolas. (MAESTRI, Apud: FIABANI,
2005, p. 160).
23
Neste momento tem-se a transição de boa parte do contingente de trabalhadores
escravos para o campesinato livre. De acordo com Andrade (1989, p, 16), este termo
“compreende apenas aqueles que não foram ainda expropriados dos meios de produção.” Esse
conceito coloca o uso e a ocupação da terra e dos demais recursos naturais disponibilizados no
território como a base para a organização da produção econômica e das relações sociais
estabelecidas pela coletividade. Sabe-se que a livre produção agrícola pelo trabalhador
escravizado inicia-se quando este ainda tem sua vontade submetida à do seu senhor. Este
último para não perder a mão de obra escrava, negociava um pequeno lote de terra cujo
ocupante o usaria para formar roçado próprio, de modo a suplementar a ração deficiente. De
acordo com Queiroz (1993, p. 14), “nas regiões canavieiras da Bahia muitos senhores
permitiam ao negro escravizado trabalhar por conta própria aos domingos e dias santos,
simplesmente para prover a própria subsistência”.
Sobre a comercialização dos excedentes agrícolas, os quilombolas já vinham
mantendo relações “ora conflituosas, ora amistosas, com diferentes membros da sociedade
envolvente” 9, como é o caso de alguns comerciantes que habitavam próximos aos
quilombos; junto com estes outros sujeitos sociais - escravos libertos, livres pobres e alguns
senhores de engenho – possibilitavam aos quilombolas a obtenção de algumas vantagens nas
trocas comerciais, além de uma ampla rede de contatos que permitiam a defesa do território
contra as incursões oficiais.
Ter uma base econômica que permitia a sobrevivência de um grande grupo significou,
desde o seu início, uma organização sociopolítica com posições e estrutura de poder bem
definidas, até porque “o inimigo externo”, caracterizado pelas invasões freqüentes, vinha
impondo, ao longo da história, a necessidade de uma defesa competente da área ocupada. A
complexa rede de relações que passaram a ser estabelecidas entre os quilombolas e os homens
livres, foi denominada por Flávio Gomes como campo negro. Uma rede que podia envolver,
em determinadas regiões escravistas brasileiras, inúmeros movimentos sociais e práticas
sócio-econômicas em torno de interesses diversos. “O campo negro, construído lentamente,
acabou por se tornar palco de lutas e solidariedade entre os diversos personagens que
vivenciaram os mundos da escravidão” 10.
A importância em destacar o envolvimento dos quilombolas com os demais sujeitos
sociais, é de poder rever a idéia de que essas comunidades estariam isoladas no meio do mato, 9 REIS, João José. GOMES, Flávio. Liberdade por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 332 10 Op. cit. p. 282
24
longe dos grandes centros, e a salvo das investidas das tropas governamentais. Pesquisas
recentes como a de Gomes (2000), ao mesmo tempo em que ajuda a romper com o mito do
isolamento, traz uma outra questão: as relações estabelecidas com outros grupos sociais,
permitindo a entrada de alguns destes elementos no quilombo, afetara de alguma forma a
manutenção da identidade étnica? Até então, o quilombo teria abrigado outros elementos
além de africanos e afro-descendentes e que a presença de elementos livres nos quilombos
não basta para descaracterizá-los, ela é suficiente para mostrá-los enquanto um abrigo para
outros elementos marginalizados e perseguidos no âmbito da sociedade escravista.
Com a transformação processual da mão-de-obra escrava em trabalhadores livres,
estes sujeitos procuraram se estabelecer em um lugar onde pudessem garantir a sobrevivência
de suas famílias. Aqueles que não conseguiam manter a estabilidade da posse da terra, após a
década de 1950 – quando ocorre a criação das Ligas Camponesas no Brasil -, a historiografia
brasileira convencionou chamá-los de posseiros. Termo que na visão de Luna (1984) pode ser
explicado como:
o lavrador que trabalha na terra sem possuir nenhum título legal, nenhum
documento reconhecido legalmente e registrado em cartório que o define
como proprietário, é classificado como ocupante da terra, nos censos
oficiais, ou como posseiros, na linguagem comum. (...) O posseiro é
lavrador pobre, que vende no mercado os excedentes agrícolas do trabalho
familiar, depois de ter reservado uma parte da sua produção para o sustento
da sua família. (LUNA, 1984, p. 13-14)
De acordo com a Lei de Terras (1850), a concessão de sesmaria – grandes lotes de
terra - tinha precedência legal sobre direitos de posseiros; isso significou a constituição de um
grande número de “agregados” que perderam a posse de suas propriedades agrícolas, em
virtude destas terem sido vendidas como sesmaria. Caso o novo proprietário concordasse com
a permanência destes trabalhadores rurais, estes estariam submetidos ao regime de “troca de
favores”, que, de acordo com Martins, as relações estabelecidas entre senhor e agregado:
ultrapassam o trabalho e as relações de trabalho, já que a concepção de
favor, como prestação pessoal, mas recíproca, envolve não apenas a
produção material, mas a própria lealdade das partes. (..) Envolvia, por isso,
25
desde as relações materiais, a concessão de terras em troca de parte dos
gêneros alimentícios produzidos, até a recíproca lealdade, até a trama
religiosa e do compadrio, pelo qual o agregado colocava seu filho sob tutela
e proteção do fazendeiro-padrinho, tecendo uma teia de relações sagradas
de prestação e lealdade recíprocas. Podemos ver então que o campesinato
era multifacetado, pois os grupos sociais que usufruíam da terra, o faziam
de várias formas. (MARTINS, 1981, p. 36-37)
Vemos, pois, que a maior parte dos trabalhadores que tiveram acesso às terras,
conseguiram mediante algum tipo de acordo estabelecido com um grande proprietário. A
concepção de posse da terra defendida pelo posseiro tem como substrato uma terra que se
define e se constitui a partir da morada e cultivo. A morada (casa-domicílio-família) é a base
da organização do trabalho e da produção, e efetiva através dela, o direito à terra.
Nesse sentido, a terra de cultivo e morada se opõe às relações de mercado enquanto
estrutura básica, oferecendo resistência à lógica capitalista da acumulação. Tal aspecto não
significa que, enquanto unidade de produção/consumo, esteja alheia às trocas mercantis, mas
que as desenvolve a partir das necessidades e perspectivas do grupo doméstico.
Mediante essa negação do valor de mercado, mostra a existência de uma racionalidade
que se estabelece a partir de uma sociabilidade, de um direito, de uma moral, que negam
princípios capitalistas de produtividade e de rentabilidade que valorizam o capital. Ao
contrário, o cálculo econômico no sentido de um empreendimento familiar busca a
valorização do trabalho como categoria estrutural das relações de produção.
Decorrentes disso, os termos que definem uma agricultura camponesa precisam ser
discutidos não a partir de uma economia de mercado, como normalmente é feito, mas
buscando-se sua definição a partir de características específicas no interior dessas unidades,
algo que se situa mais na esfera da autonomia da produção do que na dependência da
circulação. De acordo com Oliveira (2001, p. 4), as concepções acerca do trabalho e posse da
terra caracterizam o direito costumeiro, cujas práticas sociais permitiram a apropriação de
matas, águas e terras, mostrando uma legitimidade que é expressa numa jurisprudência
camponesa, na qual podemos identificar dois eixos sempre presentes que orientam tais
práticas: os laços de descendência e os laços de territorialidade, constituindo-se sob a forma
de terras de uso comum.
Segundo Almeida (1996, p, 183), as terras de uso comum seriam caracterizadas como:
26
situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e
individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos
produtores diretos ou por um dos seus membros. Tal controle se dá através
de normas específicas instituídas para além do código legal vigente e
acatadas, de maneira consensual, [pelos] vários grupos familiares, que
compõem uma unidade social. Nesses casos, são “os laços solidários e de
ajuda mútua [que] informam um conjunto de regras firmadas sobre uma
base física considerada comum, essencial e inalienável”.
Essa territorialidade, marcada pelo uso comum, é submetida a uma série de variações
locais que ganham denominações específicas, segundo as diferentes formas de auto-
representação e auto-nominação dos segmentos camponeses, tais como Terras de Santo,
Terras de Índios, Terras de Parentes, Terras de Irmandade, Terras de Herança e, finalmente,
Terras de Preto, esta última categoria, segundo o mesmo autor “compreende aqueles domínios
doados, entregues, ocupados ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, às famílias de
ex-escravos a partir da desagregação de grandes propriedades monocultoras”.
Assim o campesinato emergente durante o regime escravocrata no Brasil assumiu
"múltiplas faces", ou melhor, "múltiplas identidades", pois como disse Martins (1981) os
grupos sociais que usufruíam da terra o faziam de várias formas, o que também determinava a
organização social da comunidade. Observa-se então que na transição da condição de escravo
para a de camponês livre, a posse da terra é a base para a sustentação deste indivíduo, com
uma ressalva: segundo Schmitt (2006, p.14), "o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de
forma alguma o acesso dos ex-cativos a ela no momento posterior a abolição”. Dessa forma,
inúmeros conflitos ocorreram pelo Brasil tornado-se mais intensos ao longo do século XX,
principalmente por causa dos impactos causados pelos grandes projetos empreendidos pelos
governos, como a construção de hidrelétricas e mineradoras; além disso, o avanço da fronteira
agrícola e a extração de madeira foram outros fatores que ameaçavam a estabilidade da
ocupação da terra pelas populações rurais.
A luta pela posse da terra no Brasil levou os camponeses, a partir da década de 1950 a
organizarem-se em pequenos grupos que mais tarde seriam movimentos sociais de amplas
dimensões nas regiões mais violentas. È o caso das Ligas Camponesas no Nordestes, em
27
especial no Maranhão e no Pará; e do Movimento Negro, principalmente na Bahia. Visando a
manutenção da posse da terra calcada na noção de direito costumeiro, os camponeses exigiam
a proteção contra a invasão das chamadas terras devolutas por empresários e grileiros,
iniciando uma luta pela Reforma Agrária que chega até nossos dias sem ter alcançado
resultados expressivos, mas acumulado diversas mortes de trabalhadores rurais envolvidos em
conflitos fundiários.
Com a aprovação do artigo 68, os grupos de remanescentes quilombolas deram início
a um resgate de sua identidade étnica construída com base na ancestralidade e no tempo de
ocupação do território, bem como as práticas e representações simbólicas tradicionalmente
implementadas pela comunidade. Nesse momento, uma avalanche de processos pedindo a
regularização e titulações das terras causaram diversas polêmicas em torno do conceito de
quilombo entre políticos, juristas, representantes dos movimentos sociais e cientistas sociais,
criando-se a necessidade de redefini-lo ou dar-lhe um novo sentido.
O exemplo da comunidade Boa Vista, não é atípico. As transformações que ocorreram
desde a chegada de alguns empresários do setor extrativista à região, alteraram sobremaneira
o modo de vida local, principalmente no que se refere às representações da identidade dos
moradores. Tudo isso se refletiu numa nova reconfiguração da comunidade, gerando
condições para a construção não só de uma, mas de múltiplas identidades. A partir daí, os
conflitos travados dentro da área não envolverá apenas dois grupos homogêneos, mas também
outros grupos sociais que lutam tanto pelos seus espaços territoriais, quanto pela afirmação
dos referenciais identitários.
2.2 Comunidade Boa Vista: elementos de uma identidade
A população da comunidade de Boa Vista, conta hoje com pequenos agricultores de
origens regionais distintas, mas que compartilham do mesmo espaço. A principal
característica do lugar é o conflito com os donos de uma pedreira e alguns ceramistas que
entraram na região, nos anos 1980, mediante a compra de lotes das terras devolutas e, os mais
recentes, fizeram uso da “grilagem”. Este termo é sinônimo da ação de empresários e grandes
latifundiários que fazem uso da violência e falsificação de documentos para expropriar
agricultores de terras devolutas.
28
Nos primeiros anos em que a Pedreira Anhanguera S. A. se fixou nas terras próximas
ao Forte do Calvário, o contato com as mais de vinte famílias que viviam na área, fora
pacífico. Nesse tempo que a “terra era liberta”, os moradores organizavam sua produção em
torno da agricultura familiar, com a divisão da terra em roças, sendo a quantidade de linhas
cedida de acordo com o tamanho da família. Durante esse tempo, conviviam dois grupos de
pessoas: os que tinham laços de parentesco com as famílias de escravos libertos que
receberam aquelas terras por doação; e outros que vieram de várias regiões do Estado.
Os últimos remanescentes dos escravos descendiam de duas famílias: a do seu Geraldo
Nunes e a de Diomedes; O outro grupo composto por migrantes, era em maioria ligado ao Sr.
Sebastião Alves da Silva, autor do seguinte relato:
Moro aqui há 40 anos, aqui está um sofrimento para os moradores: aqui era
a fazenda dos brancos; do garapé de São Brás até a cachoeira tem agora 9
cerâmicas. Essa terra está no brasão que é do Estado. Só têm duas cerâmicas
registradas, e as crianças e os trabalhadores tirando tijolo quente do forno.
Essa firma Anhanguera (Redimix) botaram todo mundo pra cá sem direito a
nada; entraram em 1982, tirando pedra para o Porto do Itaqui, lá no garapé
do Fama onde eu morava. Todas as duas, a pedreira e as cerâmicas, elas não
têm terra da Boa Vista. O Forte está por fora da área, tinha o paredão da
Fazenda Boa Vista, tinha igreja e sino, meteram máquina levaram o sino, se
procurar ainda tem resto dos alicerces. 11
O relato de seu Sebastião traz informações a respeito dos primeiros contatos com os
extrativistas, sobretudo das implicações da presença destes para a comunidade. Após quatro
anos de convivência, os moradores foram deslocados das terras do garapé do Fama, para uma
área a 4 km do centro de Rosário. Nesse tempo, os donos da Pedreira construíram uma escola
de ensino básico para as crianças da comunidade e também para os adultos. Segundo os
moradores, quando saiu a decisão da justiça concedendo aquelas terras para os empresários, a
escola foi derrubada e muitas famílias foram expulsas da área, sendo a grande maioria
remanescente dos escravos libertos.
A partir desse momento as famílias de posseiros vão se organizar na nova área
mediante a demarcação da terra realizada pelos funcionários da Pedreira. Como alguns
11 Entrevista gravada durante a visita da equipe do DPH-MA à comunidade Boa Vista, em agosto de 2007.
29
moradores prestaram serviços para a empresa, esta se responsabilizou por indenizá-los
auxiliando na construção de suas novas casas. Durante os primeiros anos no novo local, as
famílias podiam contar com uma ampla área para o cultivo de gêneros agrícolas, dividida
conforme as regras estabelecidas e obedecidas de forma consensual pela comunidade.
Apesar disso, houve a diminuição da área explorada por esses moradores cujos relatos
apontam para um tempo de liberdade, quando a terra não tinha dono. Nesse tempo as famílias
poderiam cultivar suas roças em qualquer lugar, assim como retirar o babaçu para ser trocado
no comércio local por mercadorias. A palha para cobrir as casas, a madeira e outros recursos
naturais estavam limitados pelas cercas que definiam os limites da propriedade da Pedreira.
Ainda conforme os relatos destes moradores, a empresa nunca apresentou o
documento que mostra os reais limites das terras compradas. Isso os levou a acreditar que
toda a área pertencia à Anhanguera S.A., deixando a população sob a tensão de ser expulsa a
qualquer momento. Um outro efeito do deslocamento territorial dessas famílias vai ser a
organização dos grupos religiosos. De um lado, os praticantes de culto-afro que vão demarcar
dois terreiros para a realização de seus rituais, e de outro, os católicos que se dirigiam à Igreja
Matriz de Nossa Senhora do Rosário, para participarem dos festejos e missas.
Com o passar do tempo a Pedreira deu início a um processo de expansão, que pôs fim
a área de cultivo das famílias que havia se aglomerado em um núcleo de povoamento. Este
fator foi determinante para a saída de muitos remanescentes de escravos da comunidade,
deixando apenas as famílias de agricultores que chegaram ao final do século XX.
Durante os anos 1980, empresas extrativistas entraram ilegalmente na área para
explorar a argila usada na produção de tijolos e telhas. Dez anos depois, eram nove cerâmicas
atuando dentro da comunidade; houve uma grande oferta de empregos que atraiu pessoas de
Rosário e outras de município próximos, muitas delas resolveram se fixar na área obtendo um
lote de terra para a construção de suas casas. Nesse tempo, foram contratadas mulheres,
crianças e homens de todas as idades que exploraram violentamente as margens do rio
Itapecuru, devastando a vegetação e causando erosões absurdas no solo que antes era usado
para o cultivo de gêneros alimentícios.
No ano de 2002, grande parte da população de Boa Vista já era composta por
agricultores que haviam chegado à área há pelo menos 15 anos, e pelas famílias vinculadas ao
seu Sebastião, ocupante há 40 aos, agora o imigrante mais antigo da área. Os remanescentes
de escravos somavam apenas cinco famílias que viviam dispersas pela região.
30
Naquele mesmo ano, houvera uma série de atritos entre os ceramistas e os pequenos
agricultores, em virtude dos primeiros ampliarem as dimensões de suas propriedades sem o
consentimento ou qualquer acordo prévio com os moradores. De acordo com o relato de seu
Caipira, um dos ceramistas empregou cerca de 10 homens armados para vigiarem as cercas da
propriedade, em caso de invasão por algum morador. Discussões, ameaças e violências
praticadas pelos “vigias” das empresas, tornaram-se cada vez mais constantes em Boa Vista.
Quando um dos ceramistas, de naturalidade pernambucana, decidiu derrubar a Igreja
Evangélica edificada por um grupo de moradores pentecostais, houve resistência de alguns
deles que resolveram organizar uma comissão para discutir os problemas da comunidade,
principalmente os conflitos territoriais. No mês de junho (2002), a comissão formada contava
com representantes de praticamente 40 famílias que habitavam em Boa Vista naquela época.
Um detalhe interessante é o grande contingente de evangélicos membros da Igreja local que
saíram em defesa das terras onde a instituição fora construída.
Em 16 de junho de 2002, os moradores reunidos em assembléia fundaram a
Associação dos Pequenos Agricultores Rurais de Boa Vista. No primeiro ano de
funcionamento não houve relatos de conflitos com os ceramistas nem com a Pedreira,
caracterizando um período de relativa paz. Nesse tempo, o líder da Associação, seu Raimundo
(Caipira) foi em busca de contatos com o poder público local na tentativa de obter benefícios
e melhorias para as famílias de Boa Vista.
A partir de setembro de 2003, o contato estabelecido com uma ONG – organização
não-governamental – levou seu Caipira a tomar conhecimento acerca do artigo 68 da
Constituição de 1988, e a iniciar o processo de levantamento de informações sobre a história
da comunidade, bem como a identificação dos elementos que pudessem inseri-la na condição
de comunidade negra rural.
As histórias narradas pelos últimos remanescentes de escravos que vivem em Boa
Vista, auxiliaram na produção de um texto feito por seu Caipira que conta como a
comunidade se tornou terra de remanescentes de quilombo. Após uma série de visitas à
Aconeruq – Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, em São Luís – o líder
comunitário conseguiu que representantes desta ong realizassem palestras na Associação de
Boa Vista, conscientizando os associados sobre a importância da auto-afirmação étnica para o
fortalecimento do grupo na luta pela posse da terra.
31
A partir daí as lideranças começam a disseminar entre os moradores a concepção da
identidade quilombola existente entre todos aqueles que ocupam as terras de Boa Vista. A
história de que as terras haviam sido doadas para os escravos da fazenda Boa Vista, pela
família Baima, é repassada a cada morador e nas reuniões ocorridas na Casa de Oração e na
Associação, que desde aquela data recebeu o acréscimo de Quilombola.
O mais interessante nessa atitude foi perceber que o resultado da mobilização a favor
da construção de uma identidade étnica, expressou-se num aglomerado de sujeitos e grupos
sociais que apresentavam características culturais diversas. Pentecostais, católicos,
agricultores e remanescentes das famílias de ex-escravos, juntos em torno de um mesmo ideal,
garantir o direito a terra por meio de uma associação de interesses comuns, impressos na
unidade do grupo mobilizado, que defende o reconhecimento de uma identidade comum a
todos os membros.
Diante desse quadro elaborou-se a seguinte questão para esta pesquisa: quais os
critérios usados para a definição dos sujeitos de direito apontados no artigo 68? Como foi
dito, o termo remanescentes de comunidade quilombola passara por diversas interpretações,
pois a realidade dessas populações está longe do que imaginava o legislador, preso ainda a
uma visão cristalizada pela historiografia acerca dos quilombos.
O “artigo 68” não apenas reconheceu o direito que as “comunidades remanescentes de
quilombos” têm às terras que ocupam como criou tal categoria política e sociológica, por
meio da reunião de dois termos aparentemente evidentes – quilombos e remanescentes
quilombolas (ARRUTI, 2002; NUNES, 2007). Ou seja, mesmo se tratando de um novo
cenário de reconhecimento, certas demandas de caracterização dessas comunidades são feitas
ou traduzidas com base em estereótipos ou enquadramentos que pouco ou nada correspondem
às suas realidades. Nessa direção, faz sentido supor que, muito embora a expressão
"remanescentes das comunidades dos quilombos" tenha sido cunhada como categoria jurídica
geradora de direitos, esse reconhecimento não suprime a possibilidade de problematizá-la no
quadro das dificuldades decorrentes do próprio processo de sua interpretação.
Vale ressaltar que as pesquisas realizadas pelos técnicos dos órgãos federais nas
comunidades, para a formulação dos laudos antropológicos, deram cada vez mais impulso
para necessidade de ressemantização do sujeito citado na lei. Depois de algumas propostas
apresentadas pela Fundação Cultural Palmares, o Grupo de Trabalho sobre Comunidades
32
Negras Rurais da ABA – Associação Brasileira de Antropologia elaborou uma versão
“científica” para a definição dos remanescentes de quilombo.
Em meio a uma série de negativas (não se referem a resíduos, não são
isolados, não têm sempre origem em movimentos de rebeldia, não se
definem pelo número de membros, não fazem uma apropriação
individual da terra...) essa “ressemantização” definia os
remanescentes de quilombos como “grupos que desenvolveram
práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de
vida característicos num determinado lugar”, cuja identidade se
define por “uma referência histórica comum, construída a partir de
vivências e valores partilhados”. (ARRUTI, 2002, p. 19)
Nesse sentido, eles constituiriam “grupos étnicos”, isto é, “um tipo organizacional que
confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou
exclusão” segundo a definição de Fredrick Barth (1969), mas cuja territorialidade seria
substancialmente caracterizada pelo “uso comum”, pela “sazonalidade das atividades
agrícolas, extrativistas e outras” e por uma ocupação do espaço que teria “por base [os] laços
de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade”. (ABA,
1994)
Assim, parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em que os
indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que
se relacionam a lugares dentro de um território maior. Nesse espaço, a organização da
coletividade servirá de base para a construção das relações intra e intergrupais, cujo fim é a
identidade étnica. Assim, ao contrário da visão histórica que os legisladores do artigo 68
tinham dos remanescentes de quilombo, a definição elaborada pela ABA coloca essas
populações num patamar específico dentro do campesinato brasileiro. Nesse contexto o
conceito de grupo étnico de Frederick Barth (1969), ajuda a pensar as comunidades negras
rurais a partir dos próprios referenciais concebidos por seus membros, como a organização
interna para a defesa das terras ocupadas, a partir da retomada da identidade quilombola. Ou
seja, na passagem do racial ao étnico, os signos de distinção teriam seus sinais invertidos,
deixando de representar estigmas, para assumir um sentido de solidariedade e identificação.
33
Nesse sentido, um grupo racial tornar-se-ia um grupo étnico a partir do momento em que,
aceitando a distinção que lhe é imposta pela maioria, passa a utilizar-se politicamente dela na
formação de agrupamentos autônomos ou com interesses e reivindicações comuns.
Esse processo ocorre na Comunidade Boa Vista, também identificada por seus
moradores como "terras de preto", ou "território negro", que enfatiza a sua condição de
coletividades camponesa, definida pelo compartilhamento de um território e de uma
identidade. De acordo com Almeida (1989), após a Abolição, as comunidades rurais formadas
nos quilombos resolveram ocultar esta denominação, por causa do caráter nocivo que ainda
representava à sociedade. Dessa forma, as famílias que ocupavam esses territórios elaboraram
uma terminologia que mistificava a posse legítima do lugar, com base na ocupação e no uso
comum da terra; assim surgiram as terras de preto.
Essa denominação perpetuou-se entre os remanescentes das famílias quilombolas para
indicar que aquele território lhes pertencia desde o fim da escravidão, sendo hereditariamente
repassado de acordo com as normas do direito costumeiro. Assim, a ressemantização do
quilombo começa pelo seu avesso, como uma ressemantização daquela autodenominação
relativa às modalidades de uso comum, que passa a ser vista como narrativa mítica,
legitimadora da territorialidade (terras de preto) e do grupo que, de qualquer forma, foi criado
pelo sistema colonialista e escravocrata. Por isso, a elevação do rótulo quilombo, hoje, estaria
relacionada não ao que o grupo de fato foi no passado, mas à sua capacidade de mobilização
para negar um estigma e reivindicar cidadania.
O processo de ressemantização começa pela auto-atribuição feita pelos grupos
engajados no reconhecimento de suas identidades. Para isso, o papel desempenhado pelos
movimentos sociais, ongs, instituições religiosas e órgãos do governo federal é
conscientização das comunidades negras rurais acerca dos benefícios a que têm direito, de
acordo com o Artigo 68. No Maranhão, ongs com o Centro de Cultura Negra e Aconeruq
realizam trabalhos de mapeamento, ação e apoio no reconhecimento jurídico-formal das
comunidades remanescentes de quilombo.
Em Boa Vista, as visitas dos técnicos da Aconeruq, bem como as palestras realizadas
por seu Caipira, foram de suma importância para a auto-afirmação étnica dos moradores.
Observe a fala de dois moradores que participaram das reuniões e palestras realizadas na
Associação:
34
Eu sei que aqui é uma área histórica de remanescentes de quilombos, e foi
descoberto agora, depois que nós fundamos a Associação de Pequenos
Agricultores. Foi uma coisa que surgiu, assim que descobrimos que esta
terra tinha direitos. Depois de documentada a Associação, descobrimos que
essa terra é de quem mora nela. (Nilton de Assis Moreira, dirigente da
Igreja Evangélica local, entrevista, outubro,2002).
Nós temos histórias dos escravos, mas não tínhamos idéia de que a terra
podia ser nossa. Agora que o Caipira fundou a Associação, já trouxe o
papel, já leu, nós sabemos agora de quem é as terras, e quem doou para os
escravos. (Maria Bomtempo, agricultora, entrevista, 2002)
Nos dois relatos percebe-se o papel ativo do presidente da Associação na disseminação
– por meio do discurso – dos benefícios que podem ser adquiridos com a valorização da
etnicidade. Essa atitude, ao mesmo tempo em que buscava a unidade da comunidade, gerou
conflitos com alguns membros que não aceitavam serem chamados de quilombolas,
justamente por não terem qualquer laço de ancestralidade com estes grupos pelo estigma que
o termo trazia consigo. Dessa forma, foi necessário o uso de uma pedagogia interna de contato
pessoal com cada família, independente do credo religioso.
Por fim, as discussões acerca da ressemantização do termo remanescentes de
quilombos definiram como critérios a serem usados pelo Estado para o reconhecimento dessas
comunidades, a existência de uma identidade social e étnica por eles compartilhada, bem
como a antiguidade da ocupação de suas terras e, ainda, suas práticas de resistência na
manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar.
Essa análise foi ainda reforçada com a promulgação do Decreto n.º4. 887, de 20 de
novembro de 2003, que fortaleceu o ato de auto-afirmação étnica pelos sujeitos como o
principal elemento para o seu reconhecimento:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins
deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida.
35
Com esta última definição pode-se chegar a algumas considerações acerca do processo
de luta pela terra na comunidade Boa Vista. Em primeiro lugar, as definições dadas ao termo
remanescentes de quilombo pelos pesquisadores da ABA, e recentemente pelo governo
federal como resultado dos estudos realizados pela Fundação Cultural Palmares, enfatizam o
tempo de ocupação da terra, expresso na elaboração de uma territorialidade específica – terras
de preto -, e a ancestralidade negra como traços de uma relação entre as comunidades negras
rurais e o passado histórico. Partindo desses critérios, buscou-se durante as visitas à
comunidade Boa Vista elementos que confirmassem a auto-atribuição de remanescentes feita
por alguns moradores. No entanto, após as primeiras entrevistas pode-se constatar que aquelas
famílias que viviam espremidas entre as cercas dos ceramistas e donos da Pedreira, não
possuíam qualquer vínculo com o passado histórico daquele lugar.
Os poucos remanescentes dos escravos libertos que receberam as terras das mãos da
família Baima, até o final desta pesquisa, não passavam de cinco famílias. Estes praticamente
não se envolveram de fato na luta contra os invasores, por causa das expropriações e
violências sofridas por outras pessoas. Além disso, a desestruturação do modo de vida da
comunidade baseado na agricultura familiar, em função da redução forçada da área de cultivo,
forçou os moradores a dependerem da extração ilegal de madeira do mangue, da pesca e dos
programas sociais do governo federal..
A construção de uma identidade quilombola idealizada no discurso de seu Caipira
encontrou muitos adeptos. Contudo, a falta de resultados expressivos e aumento das tensões
com os ceramistas, desencadearam uma série de conflitos internos, enfraquecendo a
Associação. Recentemente, no mês de setembro de 2007, uma equipe de antropólogos do
Incra realizou diversas entrevistas com os moradores mais antigos de Boa Vista, comparando-
as com as informações deste estudo ainda em curso, foi possível concluir que a comunidade
Boa Vista não apresenta elementos de uma identidade étnica, que possa caracterizá-la como
remanescente de quilombo.
A seguir, far-se-á uma discussão acerca dos conflitos internos ocorridos entre os
diferentes grupos que convivem na comunidade, os quais desenvolveram estratégias distintas
para defenderem as terras que ocupam e manterem vivas suas práticas culturais e religiosas.
36
3. A ORGANIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA
Neste capítulo discute-se a respeito dos elementos que fizeram parte do processo de
resistência organizado e conduzido pelos moradores de Boa Vista, por meio da Associação.
Destacou-se que a gênese social de um grupo – o de remanescentes de quilombo – acontecera
frente às disputas de terras que envolveram posseiros e extrativistas. A partir do artigo 68 das
ADCT, da Constituição de 1988 e do decreto 4.887/2003, os moradores de Boa Vista
formalizaram a unidade do grupo por meio do conceito de identidade quilombola visando os
benefícios assegurados pela lei, como a titulação das terras ocupadas pelos mesmos.
Para realizar esta análise, procurou-se ver de que a forma as lutas camponesas vieram
se aprimorando ao longo da história destes conflitos no Brasil. Viu-se que a partir dos anos
1950, as ligas camponesas e os sindicatos rurais se tornaram as principais formas de
organização e luta política desta parcela da sociedade. A adoção dessas práticas elevou os
números de conflitos pela posse da terra à medida que o Estado se mostrava irredutível à
concentração fundiária. “Exemplos de conflitos agrários que acabaram em massacres de
trabalhadores rurais foram os ocorridos em Eldorado dos Carajás (PA) e na região do Bico do
Papagaio (sudoeste do Maranhão)” (FERRAZ, 2000, p. 36).
Durante o período compreendido entre 1950 e 1975, houve um aumento significativo
no número de posseiros. Esses, sobretudo na década de 70, deslocaram-se das regiões
litorâneas do Nordeste e Sudeste para a região amazônica e o Centro-Oeste. Em decorrência
desse processo de migração, praticamente, em todos os Estados do país eclodiram conflitos e
lutas pela terra envolvendo camponeses, de um lado, e grandes empresários, grileiros e
latifundiários de outro lado. “No Maranhão ocorreram mais de 128 conflitos envolvendo em
alguns deles, mais de mil pessoas, em 1979” (MARTINS, 1986, p. 98). É nesse momento que
iniciam os primeiros confrontos entre povos indígenas e grupos econômicos, fazendeiros
interessados em desalojá-los de suas terras.
No Maranhão, pode-se citar como um dos grandes projetos implantados que trouxe
conseqüências desastrosas para as comunidades rurais, o caso da implantação do CLA –
Centro de Lançamento de Alcântara. Este provocou a desestruturação econômica de dezenas
de comunidades de remanescentes quilombolas em função da expansão da base. Os grandes
projetos implantados pelos governos federal e estadual causaram mudanças significativas nas
relações sociais no campo. Isso porque a grilagem foi se tornando a principal via de acesso
37
dos empresários a terra com o apoio ou a omissão do poder público, pois se utilizam da
violência para desapropriar os posseiros, ora determinando seus ranchos e suas plantações; ora
prendendo os que resistem em cárceres privados onde, em geral, são torturados; ora
eliminando-os fisicamente.
Segundo Regina Luna (1984, p. 46), a grilagem envolve um processo bastante
complexo de apossamento ilegítimo de terras e tem sido observada em várias situações, pois
“as terras são objetos de grilagem cartorial, falsificação de títulos e documentos em cartórios,
dificultando a reconstituição da cadeia dominial e permitindo a ação dos grileiros com maior
facilidade”.
Para enfrentar as expropriações, os posseiros passaram a se organizar em Associações
de Agricultores ou se filiarem a algum Sindicato de Trabalhadores Rurais na tentativa de
obter algum apoio jurídico. Com o passar dos anos foi havendo um crescimento de ações nos
tribunais da justiça comum e trabalhista movidas por lavradores, pelos movimentos sindicais
que resultaram em contratos coletivos de trabalho envolvendo diferentes frações do
campesinato brasileiro, tais como pequenos sitiantes, posseiros e parceiros. Estes são indícios
de um forte ímpeto na luta por uma autêntica cidadania que vem adquirindo substância,
sobretudo com a luta pela terra.
A micro-região da baixada maranhense, até o início da década de 1980 apresentava
uma razoável concentração fundiária onde 11,07% dos estabelecimentos estavam nas mãos de
proprietários, que representavam 84, 2% da área total ocupada. Com relação à pequena
produção, os posseiros possuíam 47, 7% dos estabelecimentos e 8, 74% da área total. À
primeira vista, este quadro tende a chamar a atenção porque a região da Baixada é uma área
de ocupação antiga do Maranhão, onde, portanto, o posseiro deveria ter uma participação
pequena. Ocorre que esta região, por ser alvo de periódicas enchentes e se ocupar de uma
pecuária extensiva, não havia experimentado, ainda, o processo de cercamentos definitivo das
propriedades, fato este que deu uma boa margem para conservação da categoria do posseiro.
A partir do final da década de 1980, uma série de transformações na estrutura
econômica do país influenciaria na organização do campesinato para defender as terras
devolutas. No período da chamada redemocratização do Brasil (1985), o debate em torno da
Reforma Agrária é retomado. Neste momento surge o MST – Movimento dos Sem Terra – e
vários sindicatos de trabalhadores rurais foram criados com o objetivo de forçar o governo a
desapropriar as terras consideradas improdutivas. Em contrapartida, os latifundiários
38
organizaram a UDR – União Democrática Ruralista – com um grande número de
representantes no Congresso Nacional e em governos estaduais. A atuação da bancada
ruralista tem impedido que a reforma agrária seja concretizada no Brasil, porque significaria
prejuízos para os membros da UDR.
Após a promulgação da Constituição de 1988, foi elaborado o 1º Plano Nacional de
Reforma Agrária que previa a desapropriação de 43.090 milhões de hectares de terra e o
assentamento de 1,4 milhões de famílias em cinco anos. Mas, no final do governo Sarney
(1989), apenas 10% das metas do plano haviam sido atingidas. O Programa da Terra lançado
no governo Collor, em 1992, previa o assentamento de 400 mil famílias de trabalhadores
rurais sem-terra até 1994. No entanto, o presidente do Incra, Oswaldo Russo, revelou, porém,
que Collor conseguiu assentar apenas 22.591 famílias. Assim, vários projetos de reforma na
estrutura fundiária foram colocados em pauta, mas sem obter os resultados esperados.12 Como
reação à inépcia do governo, a eclosão de conflitos agrários pelo país, levou o poder executivo
a acelerar o processo de desapropriação de terras improdutivas, sem, entretanto conseguir uma
solução definitiva para o problema.
3. 1 Roça, conflitos e resistência
Nesta seção se discute a respeito de mudanças ocorridas no modo de vida da
comunidade Boa Vista, bem como da gênese da organização da resistência tendo se como
referências as experiências relatadas pelos moradores envolvidos no conflito direto com os
extrativistas. Os relatos contemplam um período anterior ao definido para a pesquisa (1988), e
avançam até o momento em a resistência é desmobilizada no ano de 2004.
Como fora discutido, a identidade quilombola construída pelo grupo de moradores de
Boa Vista engajados na defesa do templo religioso e de suas “propriedades”, faz parte de uma
conjuntura que envolve várias identidades que se transformam conforme o contexto e sua
percepção pelos sujeitos envolvidos. A preocupação que se teve na crítica das fontes orais foi
de entender que as histórias relatadas são representações dos acontecimentos passados, que
trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às identidades e aspirações
12 Sobre a Reforma Agrária, Cf. MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
39
atuais. Assim, se pode dizer que nossa identidade molda nossas reminiscências; que se
acredita ser no momento o que queremos ser a partir do que se julgou ter sido.
Partindo da noção de temporalidades - “uma relação entre múltiplos tempos presente
no ato de rememorar pelo sujeito” (DELGADO, 2005, p. 12) - compreende-se que o
entrevistado aponta acontecimentos que funcionam como referenciais temporais para marcar
uma época de sua vida. Um exemplo é o momento da chegada da Pedreira Anhanguera que
deu fim a um período em que a “terra não tinha dono”, aonde o era trabalho livre e usufruto
coletivo dos recursos naturais era garantido pelas regras do direito costumeiro. Depois que
houve a expulsão das famílias das terras do Calvário, o sentimento era de medo e apreensão
quanto à ocupação, expresso na seguinte fala: “Todo mundo é amedrontado, todo mundo tem
medo da Redimix” 13.
Foto 2: Olarias instaladas em Boa Vista. Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Outubro, 2005
De acordo com os relatos, vivia-se melhor próximo ao Forte, pois cada família tinha
roça de onde tiravam o sustento, trabalhavam com a extração de babaçu, lenha e plantação de
banana que era comercializada com os barqueiros que atracavam em um pequeno porto que
ficava ao pé do Forte. Essa forma de organização da exploração da terra – a roça - é parte de
um tipo de produção agrícola baseada no trabalho familiar, isto é, “uma unidade econômica
que se circunscreve num território regido por normas consuetudinárias de trabalho e
13 Entrevista dada por seu Pedro Saraiva, agricultor, 53 anos. Outubro de 2005.
40
convivência social, reconhecidas e respeitadas pelos moradores da área e pelos vizinhos”
(PVN, 2002, p, 37).
As famílias que habitavam nas terras próximas ao Forte do Calvário tinham um modo
de vida baseado na coletividade camponesa reforçada pelos laços de parentesco e de
solidariedade. A ancestralidade da ocupação do território pelos remanescentes de ex-escravos
e as práticas culturais que denotavam a presença de religião afro, são os elementos que
marcam a fala dos moradores de Boa Vista e de comunidades adjacentes quando se referem
àquelas terras como terras de preto. A boa convivência com os agricultores que chegaram à
comunidade permitiu uma flexibilidade entre as manifestações religiosas: católica e afro.
De acordo com seu Geraldo, agricultor de 57 anos, sempre houve na Boa Vista muitas
festas aonde o povo participava do Tambor de Mina, Dança do Côco e Dança do Lelê. Nesse
tempo – antes do aumento das tensões com os extrativistas -, as pessoas eram mais unidas,
pois todo o mundo ajudava na preparação das festividades, na arrumação dos terreiros e da
capela de São Benedito, que hoje não existe mais.
Para os mais velhos moradores de Boa Vista, o tempo em que a terra não tinha dono,
sempre será citado para se remeter a um período de prosperidade na produção agrícola. Os
bons relacionamentos regulados pelo direito costumeiro, criavam as condições para a
realização das festividades em homenagem aos santos católicos e aos orixás. Dessa forma, a
vida no passado é vista como mais tranqüila, e o presente marcado por ações externas que lhes
obriga a lutar intensiva e arduamente pela sobrevivência.
Após a chegada da Pedreira Anhanguera o modo de vida dos boavistanos
desestruturou-se ainda mais, quando as primeiras olarias começaram a ser instaladas na área
para onde as famílias haviam sido remanejadas. Nos anos 1990, muitas famílias de
remanescentes foram expulsas por conta da grilagem, restando apenas alguns membros que
resistiam às ameaças de expropriação e violência. Uma importante mudança ocorrera nas
relações de solidariedade estabelecidas entre os posseiros. Com a saída de muitas famílias da
área e o beneficiamento de alguns moradores que tiveram suas terras demarcadas pela
Anhanguera, houve muitas discussões acerca da organização da ocupação das novas terras.
Sem acordo, os moradores começaram a cercar lotes de terras em tamanhos desproporcionais
causando divergências e insuflando uma atitude individualista quanto à propriedade da terra.
Dessa forma, a coletividade cedeu lugar ao individualismo aonde cada família seria
responsável pelo cultivo e a defesa de seu lote de terra. A reciprocidade que preservava o
41
modo de vida camponês, como os graus de confiança interpessoal se alteraram. Os mutirões
foram abandonados em vista da luta que para cada um se impõe no dia-a-dia.
De acordo com as entrevistas realizadas, no biênio 2005/2006, com os moradores do
povoado, quando chegaram os primeiros imigrantes vindos de Pernambuco, Ceará, Paraíba,
para a procura de terras devolutas para construir empresas extrativistas, a insegurança gerada
pela presença dos empresários e a incerteza sobre quem realmente era dono daquelas terras,
colocou as famílias numa posição ainda mais isoladas entre si. Segundo estes há mais de vinte
anos que os extrativistas vêm amedrontando a comunidade usando empregados armados para
proteger a área invadida por eles praticando todo tipo de violência.
O senhor Benedito Severino César (Benedito Pernambucano), dono de uma das nove
olarias que atuam em Boa Vista, Olaria Maranata, foi o primeiro a conseguir o título de
proprietário de uma parte das terras do povoado. Este empresário teria firmado acordo com
funcionários do cartório da cidade de Rosário e do Instituto de Terras do Maranhão
(ITERMA) para que obtivesse a garantia de que não havia ninguém residindo na área, a qual
foi comprada sob a forma de propina. O Pernambucano também se aproximara de uma
parcela dos ocupantes daquelas terras oferecendo proteção e recursos para a lavoura dos
pequenos agricultores, em troca de apoio à instalação da Olaria Maranata.
Ao que tudo indica os conflitos com os extrativistas ocorrem em vários momentos: o
primeiro se dá quando gerentes da Pedreira resolvem aumentar a área de extração sobre o
espaço usado por algumas famílias para o cultivo. Como resultado, estes moradores passaram
a transpor as cercas da empresa com objetivo de continuar a coleta do babaçu e da lenha. Não
houve confrontos diretos, a Pedreira enviou alguns representantes para conversar com as
famílias acerca dos limites da propriedade que em caso de transgressão poderia levar a prisão
dos invasores.
O acordo feito com a Pedreira envolvia a promessa de que as famílias receberiam
novas terras para o cultivo, casas de alvenaria e até uma escola. Nos primeiros cinco anos de
convivência com os donos da empresa, não houve reclamações por parte das famílias de
remanescentes de quilombo, já que alguns membros receberam casas de tijolos e puderam
trabalhar nas olarias, até mesmo a escola chegou a ser construída. Contudo, esse período de
boas relações foi suficiente para a empresa extrativista conseguir o título de propriedade das
terras próximas ao Forte do Calvário iniciando a partir daí as expropriações.
42
Num segundo momento, as olarias começaram a expulsar as famílias cometendo atos
de violência como a queima de casas, destruição de plantações e ameaças de morte. Os
moradores reagiram derrubando as cercas de algumas dessas empresas que os impedia de
chegar até o rio Itapecuru e ter acesso às poucas roças, o que gerou um grave confronto entre
funcionários das olarias e os agricultores, sendo necessária a intervenção da polícia civil. Os
relatos dos moradores de Boa Vista têm o tom de denúncia contra os crimes praticados pelos
extrativistas, não só contra a vida humana, mas também contra o meio ambiente. Em
entrevista cedida no mês de outubro de 2005, o agricultor Raimundo Rocha contou que até o
ano de 2003, “o gerente da pedreira Anhanguera teria colocado 10 pistoleiros fortemente
armados, totalmente preparados com rádio de comunicação, prontos para invadir as terras
ocupadas pelos boavistanos”.
Os casos de agressões físicas são inúmeros. Seu Raimundo também contou que no dia
13 de setembro de 2003 foi duramente agredido quando retornava de Rosário para Boa Vista:
“me derrubaram da bicicleta, me empurraram, me ameaçaram de morte, que íam me matar e
eu tenho sofrido muito com essas agressões”. Por diversas vezes seu Raimundo procurou a
polícia local para prestar queixa contra seus agressores, mas estes dificilmente apareciam na
delegacia quando eram intimados a prestar esclarecimentos.
O descaso do poder público diante das denúncias de intimidação e violências
praticadas pelos funcionários das olarias, levou os moradores a não procurar o apoio das
autoridades locais. Além do mais, a situação de abandono em que a comunidade se
encontrava desassistida pela prefeitura, aumentou ainda mais a revolta dos moradores. Até o
ano de 2004 nenhum dos jagunços que agrediu seu Raimundo havia sido preso.
Com a criação da Associação de Pequenos Agricultores Rurais, os moradores
obtiveram diversos benefícios por meio do cadastro das famílias em programas do governo
federal, como Bolsa-família, PETI, e Luz no Campo. Contudo, os serviços públicos que
deveriam ser oferecidos pela prefeitura de Rosário como saneamento básico, asfaltamento de
ruas, abastecimento de água, escola, posto de atendimento de médico, etc, nunca chegaram à
área.
O que mais intrigou ao observar esse quadro foi ouvir, em entrevista realizada com o
secretário de Assistência Social de Rosário, em março de 2004, que Boa Vista é a única
comunidade rural que recebe poucos benefícios, em virtude das lideranças do povoado se
recusar a cooperar com o poder local. Porém, seu Caipira negou a acusação e se defendeu
43
dizendo que a razão para a prefeitura não atuar na comunidade se deve ao fato da maioria das
olarias do município funcionar nesta área, além da própria pedreira Anhanguera ligada à
Redimix. Segundo o agricultor, o poder público beneficiou-se na venda das terras de Boa
Vista para os extrativistas; porém não nos foi possível averiguar esta acusação.
Um outro aspecto do trabalho do Secretário rosariense é ação da secretaria nas
comunidades rurais identificadas como áreas de remanescentes quilombolas. Segundo ele, o
trabalho de identificação de comunidades de remanescentes de quilombo no município, bem
como a conscientização das raízes históricas e identidade étnica dos moradores é feita pelo
próprio secretário através de palestras dadas dentro das Associações que foram criadas em
parceria com a referida Secretária. Até mesmo a entrada no pedido do processo de
reconhecimento das comunidades de remanescentes de quilombo, junto ao Ministério da
Cultura e à Fundação Palmares é dado pelo secretario. Também nos foi afirmado que em Boa
Vista nunca ocorreram casos de agressões, expropriações ou disputas de terras; e sim, que
algumas pessoas tem se aproveitado dos poderes delegados pela Associação para se auto-
beneficiarem com a cobrança das taxas dos associados.
Apesar de toda a discussão entre o poder público local e as lideranças de Boa Vista, é
importante destacar que as marcas dos conflitos internos e externos à comunidade se tornaram
mais claras – para os moradores do povoado – a partir da fundação da Associação de
Pequenos Agricultores Rurais Quilombolas de Boa Vista em 2002.
3. 2 A Associação
Com a fundação da Associação, o grupo de moradores mobilizados por seu Caipira e
Nilton, puderam ter um centro onde as estratégias para a resistência foram traçadas
coletivamente. Neste momento, as experiências vividas e compartilhadas por esta população
são as bases para a unidade grupal. Para as lideranças o campo de atuação da instituição seria
obter melhorias para a comunidade, bem como representar o corpo de associados nos
conflitos com os extrativistas.
Exemplos como o de Boa Vista ocorrem no campesinato brasileiro no momento em
que o acesso a terra está ameaçado. Fenelon (2004, p. 275) faz uma explicação acerca do
processo de construção das Associações de Trabalhadores Rurais, aonde os sujeitos
envolvidos assumem uma nova atitude na luta pela terra.
44
Foi na experiência partilhada no interior destas organizações de moradores
que foram ampliando a sua consciência, passando a dirigir suas ações tendo
como referência não somente suas famílias ou “os outros mais
necessitados”, mas os problemas e as dificuldades vividas no cotidiano das
comunidades.
Partindo deste pressuposto, observou-se no comportamento dos associados em Boa
Vista uma preocupação que ia além da esfera individual. Se antes da chegada das primeiras
empresas os laços de solidariedade entre os moradores eram profícuos para a unidade entre as
famílias, com a Associação estes laços foram restabelecidos mesmo de maneira restrita a um
determinado grupo.
Foto 3: Prédio da Associação em Boa Vista Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Outubro, 2005
No trabalho de mobilização dos moradores o destaque vai para seu Caipira -
constantemente citado nas entrevistas como o principal agente deste processo. Além disso, os
entrevistados apontam para o agricultor como o responsável pelo “descobrimento das raízes
étnicas” dos moradores. Um bom exemplo é o de dona Maria Bomtempo, agricultora que se
mudou da comunidade Boa Vista para Rosário há alguns anos, mas continua associada.
Conforme o relato, soube que era remanescente dos escravos que trabalharam na fazenda da
família Baima, quando seu Caipira trouxe o histórico elaborado por ele com a ajuda dos
depoimentos dos mais velhos habitantes da área. Assim, tanto ela quanto os demais
45
moradores que ouviram esse discurso ficaram sabendo dos direitos que lhes são assegurados
por lei, caso a terra ocupada seja reconhecida pelos órgãos públicos como propriedade
pertencente aos remanescentes quilombolas.
Outro morador que participou da mobilização foi o dirigente da Casa de Oração de
Boa Vista, Nilton de Assis Moreira. Segundo ele, “a terra é fruto que Deus deixou para o
povo que pertence á ela. Aqui é uma área histórica de remanescentes de quilombo e foi
descoberta agora, depois que nós fundamos a Associação de Pequenos Agricultores”. Acerca
da religiosidade e dos grupos religiosos tratar-se-á mais adiante. Contudo se pode dizer que a
igreja local teve um papel fundamental na arregimentação de forças a favor da defesa da
ocupação da terra; pois, mesmo em meio a um cenário marcado por vários conflitos, algumas
famílias conseguiam viver em comunhão seguindo os dogmas da religião protestante. Esse
espírito de coletividade foi a base para a formação da Associação, tanto que seu Nilton hoje é
o vice-presidente dessa instituição.
Como liderança comunitária o dirigente atribuí “a Associação uma importância muito
significativa, pois é através dela que nós vamos conseguir os benefícios e os projetos para cá;
porque tudo que vem do governo federal é via Associação”. É possível perceber que os
interesses que levaram à criação da Associação de Boa Vista, vão além do pleito pela posse da
terra. O individualismo era notado quando os associados reivindicavam benefícios que
pudessem melhorar a situação de suas famílias. Projetos sociais como construção de casas
populares, o auxílio financeiro dado aos moradores cadastrados no programas do governo
federal, são exemplos de que cada família vinculada à instituição procurava sobreviver
independente do resto da comunidade.
Dessa forma, há de perceber que não se deve confundir o pleito por titulação das terras
ocupadas ou que perderam em condições arbitrárias e violentas, com os critérios de
constituição e formação histórica da coletividade. Pois é possível perceber a falta de vínculos
de uma parcela considerável de agricultores com a história da comunidade e com a luta pela
resistência no lugar. Pois, a maior parte da população de lugar é composta por pessoas que
vieram do centro de Rosário ou de outros municípios, atrás de trabalho nas olarias e nas terras
que ainda não tinham sido ocupadas. No entanto, a Associação juntamente com o discurso
“conscientizador” propagado pelas lideranças acerca dos direitos reservados aos posseiros que
se auto-afirmam quilombolas, são elementos fundamentais para a agregação do pluridentitário
grupo boavistano.
46
Para compreender essa relação entre consciência e experiência tomou-se emprestado o
pensamento de E. P. Thompson.
A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações
de produção em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente.
A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em
termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e
formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o
mesmo não ocorre com a consciência de classe. (THOMPSON, 1987, p,10)
As condições em que estão vivendo os sujeitos serão fundamentais para definir o tipo
de experiências que estes terão nas esferas sociais, econômicas, políticas e culturais. Numa
situação conflituosa ou de exploração envolvendo mais de um grupo social, as experiências
acumuladas pelos sujeitos irão aparecer, em termos culturais, sob a forma de um sistema de
idéias, valores, instituições e tradições próprias de um determinado grupo social. Estas
manifestações são as expressões da consciência de classe. Em outras palavras, para Thompson
a cultura vinculada à noção de experiência social faz com que as pessoas não experimentem a
sua própria história apenas como idéias, mas, também como sentimentos lidando com eles
como normas, obrigações familiares e de parentesco e reciprocidades; valores (ou através de
formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas.
Um outro argumento que subsidia a idéia de comunhão de interesses em meio a um
grupo pluriétnico é dado pelo Projeto Vida de Negro, cujas pesquisas têm apontado para as
implicações das formas de organização e participação do campesinato na elaboração de
estratégias de enfretamento que tendem a somar esforços na busca da valorização do grupo,
da atuação coletiva. Nesse contexto, tem sido visível a articulação na construção e
fortalecimento de grupos locais. Apesar deste tipo de mobilização acontecer em comunidades
de remanescentes quilombolas que não sofreram alterações significativas em seus modos de
vida e culturas, esse argumento também se aplica a realidade do povoado em questão.
A experiência do processo de grilagem compartilhada pelos moradores não foi
suficiente para construir uma coletividade com laços de solidariedade fortes e recíprocos.
Outros elementos como a crença religiosa comum a um grupo e os laços de parentesco entre
alguns moradores foram fundamentais na mobilização dos sujeitos para organizarem a
resistência a partir da fundação da Associação de Pequenos Agricultores Rurais. A abertura
47
para outros indivíduos foi dada paulatinamente, e vista com desconfiança por alguns membros
da diretoria da instituição.
Antes da chegada dos representantes das organizações não-governamentais que vão
auxiliar na instrução dos associados quanto à elaboração da identidade étnica quilombola, a
Associação viveu um período de instabilidade com a saída de alguns membros e o aumento
das tensões com os grileiros.
3. 3 Os conflitos internos
A composição social da população boavistana é caracterizada pela diversidade cultural
de seus habitantes. Desde a convivência nas terras do Forte do Calvário, as famílias de
posseiros distinguiam-se conforme a crença religiosa; classificação esta definida pelos
pentecostais que foram entrevistados. Como a produção agrícola e as atividades extrativistas
eram reguladas pelas normas do direito costumeiro, o modo de vida era praticamente o
mesmo para todos os habitantes. O deslocamento para a nova área desestruturou essa forma
de organização, contudo não alterou a relação entre os grupos religiosos. Apesar do esforço
individual em assegurar a sobrevivência em meio às pressões dos grileiros, a comunidade
manteve as tradições dos festejos e dos rituais afro.
O fato que desequilibrou essas relações foi a chegada de outros agricultores que
vieram de regiões próximas a Rosário, com o objetivo de conseguir trabalho nas olarias ou na
Pedreira Anhanguera. Muitos destes “chegantes” compartilham da religião evangélica de
vertente pentecostal que é caracterizada pelo anticatolicismo e o combate às religiões de
matriz africana com umbanda, candomblé e outras similares.
A partir do ano 2000, conforme relatou seu Caipira, os boavistanos viveram um
intenso período de tensões entre os grupos religiosos que só terminaria com a desmobilização
dos associados em 2004. Sabe-se que desde o início do funcionamento das olarias na
comunidade, os moradores passaram mais de 10 sem oferecer qualquer tipo de resistência ao
avanço destas empresas. O medo de ser expulso ou até mesmo morto, cerceava qualquer
tentativa de reagir à onda de violência e destruição propagada por esses extrativistas. As
famílias que não haviam sido expulsas sobreviviam a partir de pequenas plantações, da pesca
e da coleta ilegal de mangue para fabricarem o carvão que depois seria vendido para as
próprias olarias.
48
Esse clima de opressão veio a ser questionado no ano de 2002, quando seu Caipira e o
dirigente da Casa de Oração pentecostal decidiram mobilizar os fiéis contra a ameaça de
derrubada do templo. Com a fundação da Associação naquele mesmo ano, os moradores
dividiram-se em dois grupos: os associados e os não-associados. Estes últimos eram
compunham a grande maioria da população da área. Durante o primeiro ano da Associação, as
lideranças tiveram a difícil tarefa de aumentar o número de membros, para isso, seu Caipira
recorria ao contato pessoal com cada família. Neste momento, as diferenças religiosas vieram
à tona. O preconceito mútuo entre os credos frustrou por um longo período as expectativas do
presidente da Associação. Contudo, uma mudança no Estatuto daquela instituição imposta por
Seu Caipira, permitiu que pessoas que já haviam saído da comunidade e outras interessadas
em obter um lote de terra depois da regularização e titulação da área pudessem se associar.
A atitude de seu Caipira desagradou alguns membros da Associação que prontamente
se afastaram. Como estes eram ligados por laços de parentesco ao seu Sebastião – ex-1º
Secretário – acabaram constituindo um grupo independente para resistir aos grileiros por meio
de acordos e concessões.
Desde o ano de 2002 até o final de 2003, os moradores a favor de uma luta direta
contra os grileiros estavam unificados em torno da Associação presidida por seu Caipira. Com
a formação do grupo independente sob a liderança de seu Sebastião, o presidente da
Associação passou a ser acusado de se favorecer utilizando o dinheiro das taxas cobradas
junto aos associados para despesas pessoais.
Seu Sebastião ao romper com a entidade foi acompanhado por toda a sua parentela –
num total de 12 famílias. Ambos as lideranças se acusam de facilitação aos donos das olarias
para que estes obtivessem terras dentro da área para a extração da argila. Caipira conta que
mesmo antes de fundar a Associação, “não houve nenhuma resistência por parte de alguns
moradores que facilitaram para as empresas invadirem a área e se proclamarem donos”. O
agricultor acusa o seu Sebastião de favorecer os grileiros ao depor a favor destes, em troca de
uma quantia de vinte reais, quando uma Igreja construída em homenagem a São Benedito,
pelos escravos da região no século XIX, foi demolida pelas escavadeiras usadas para a
retirada de argila.
Conforme os relatos dos moradores, alguns funcionários da Pedreira vieram até a
Associação para se filiarem e obter pequenos lotes de terras para o cultivo de gêneros
agrícolas. Ao se firmarem na comunidade, os funcionários construíam suas casas com argila e
49
as cobriam com palha de babaçu, logo depois iniciavam o plantio. Com a chegada do tempo
da colheita, estes sujeitos vendiam as terras para as olarias que imediatamente instalavam suas
máquinas para extração da matéria-prima. Seu Sebastião diz que a razão para esta destruição
era a falta de cuidados da Associação na hora de escolher os seus sócios.
Mais tarde foi possível perceber que os conflitos internos ocorriam também na esfera
religiosa. Os membros da Casa de Oração iniciaram uma campanha de evangelização na
tentativa de conquistar mais fiéis entre os moradores de Boa Vista; isto acarretou na
conversão de alguns praticantes de religião afro diminuindo o contingente de membros, o que
resultou no fechamento de seus terreiros. As tensões entre pentecostais e os membros do
culto-afro serão abordados mais a fundo no próximo capítulo.
Além das dificuldades enfrentadas com a saída do grupo de associados por seu
Sebastião, a Associação de Pequenos Agricultores Rurais Quilombolas de Boa Vista ainda
sofria com a impossibilidade de reunir seus mais de 40 sócios, em 2003. Entre os motivos
para esta situação há destaque para o medo causado pelas ameaças e violências praticadas
pelos pistoleiros e o desânimo de alguns membros que não acreditam na conquista do direito
sobre a terra. Os poucos que ainda permanecem na Associação têm interesse apenas na ajuda
financeira oferecida pelo governo federal às famílias cadastradas no PETI (Progama de
Erradicação do Trabalho Infantil).
Apesar das contendas entre os grupos de posseiros, cabe destacar o empenho das
lideranças em manter a resistência contra o avanço dos extrativistas sobre as terras da
comunidade. E com a entrada dos representantes das ongs que trabalham com a causa
quilombola no Maranhão, haverá a convergência dos grupos no tocante ao uso do discurso da
auto-afirmação étnica, isto é, buscar a regularização das terras por meio do reconhecimento da
“identidade quilombola”. A luta coletiva pela posse da terra assumiu um caráter étnico aonde
cada liderança se lança sobre uma parcela da população local – aproveitando as famílias
interligadas por laços de parentesco – para conscientizar acerca desta estratégia.
No processo (na maioria, se não na totalidade das vezes, conflituoso) de nomeação de
um grupo como "remanescente", produzem-se uma série de mudanças que atingem aquelas
comunidades, tanto na sua relação com os que as rodeiam, sejam as populações vizinhas, os
poderes locais ou os aparelhos de Estado; quanto nas relações entre seus próprios atores, com
acomodações, disputas e muitas vezes a própria criação de chefias e formas de ordenamento
político com a alteração dos significados atribuídos às festas e rituais, com a reelaboração da
50
memória e com a alteração do status dos guardadores da memória que passam a desempenhar
um papel sem precedentes na vida do grupo (TRINDADE, 2004; NUNES, 2007).
No tocante à memória dos grupos, um ponto a destacar é a relação entre as histórias da
ocupação de algumas famílias de agricultores que chegaram mais recentemente à
comunidade, e os poucos remanescentes de ex-escravos que ainda vivem na terra. Como a
iniciativa para o “resgate” das raízes negras partiu daqueles primeiros, os mais velhos
moradores tiveram apenas a função simbólica de representarem a verdade acerca da história
de Boa Vista. Isso mostra que a relação dos chegantes com a terra em disputa, durante o
período de ocupação, não trazia as marcas de uma ancestralidade comum entre os grupos. Os
“pretos da Boa Vista” – denominados assim pelos atuais moradores - preferem não se
envolver com a luta pela posse da terra, em virtude de muitos dos seus parentes terem sido
expulsos do lugar e pelo fechamento dos seus locais de culto. Ainda assim, as histórias
narradas por eles são de suma importância para compreender a história de Boa Vista com o
seu passado escravocrata e o presente conflituoso.
Além das informações concedidas pelos remanescentes, as lideranças locais buscaram
informações em todos os meios disponíveis para comprovar que as terras ocupadas foram e
são terras de preto. Quanto a isso seu Sebastião saiu na frente em função de residir na
comunidade há quarenta anos. Hoje com 74, este morador diz ser detentor de uma grande
parcela das terras de Boa Vista, pois as cultivava antes da chegada das olarias e dos atuais
moradores. Sebastião chegou a trabalhar para a empresa Pedreira Anhanguera até o momento
em sofreu um acidente no joelho esquerdo tentando levantar um carro de mão carregado de
tijolos. Depois de dispensado sem receber nenhuma remuneração, o indignado ex-operário
derrubou uma das cercas colocadas pela referida empresa que reagiu acionando a polícia de
Rosário. O morador não chegou a ser detido, pelo contrário, o senhor Thomaz de Melo Cruz
(proprietário da Pedreira) resolveu lhe fazer um acordo para que não derrubasse as cercas de
arame farpado. De acordo com o próprio Sebastião, a empresa pagou a construção de uma
casa e liberou uma quantia de dois mil reais divididos em dez parcelas mensais de duzentos
reais para as despesas pessoais. Apesar dos benefícios, o morador nunca foi ressarcido por ter
sido demitido da referida empresa em função do acidente que sofrera. Outro problema
enfrentado por Sebastião foi a desapropriação de seus familiares por um outro grileiro, o
senhor Benedito Severino César, o Pernambucano.
51
Os conflitos entre os posseiros foram se tornando mais intensos à proporção que a
comunidade mostrava sinais de resistência. O cenário é desolador. Como foi dito Boa Vista
não dispões de serviços de água encanada e de saneamento básico. As formas de obter água
são através do único poço artesiano do lugar onde constantemente encontram cobras, sapos e
animais mortos; e dos açudes que se formam nos buracos deixados pelas escavadeiras de
propriedade das olarias. A energia elétrica ajuda a manter os poucos eletrodomésticos
usufruídos pelas famílias, sobretudo, geladeira e televisão.
As laterais da estrada que cortam a área em disputa nos proporcionam uma visão do
resultado do processo de segregação ocorrida em Boa Vista. Na margem direita, para quem
entra na comunidade, vimos que as olarias ocupam mais de 80% da área, colocando cercas e
até mesmo muros de tijolos para impedir o acesso dos trabalhadores rurais ao rio Itapecuru e
as terras que antes eram cultivadas por eles. À margem esquerda, a população se espreme em
um pequeno lote de terra degradado pela extração de argila e, constantemente, poluído pelos
dejetos e lixo plástico. Enquanto de um lado o domínio da área é exercido em grande parte
por seu Benedito, o Pernambucano; de outro, são as cercas da Redimix que empurram os
moradores cada vez mais para fora da comunidade.
Segundo Sebastião, as terras circunvizinhas ao Forte do Calvário pertencem às Forças
Armadas da Marinha e uma outra parte – denominada de Fama – fora vendida a um
empregado da Redimix conhecido com Geraldo, hoje falecido. Estas terras foram cultivadas
por seu Geraldo desde que as recebera de seu pai. Nascido e criado nas redondezas do Forte,
este morador era detentor de um amplo bananal cuja produção era vendida para Rosário e
municípios próximos. O transporte muitas das vezes era feito de barco, devido à proximidade
com o rio Itapecuru, estabelecendo naquele lugar um ponto de compra e venda de
mercadorias. De acordo com os mais velhos, havia um pequeno porto na região que na década
de 1960 serviu para troca de diversos gêneros alimentícios por sal e algodão.
Os moradores contam que as famílias de Geraldo e Sebastião dividiam as terras do
Fama, sendo que a maior parte ficava com o primeiro. Com a chegada da Redimix, Geraldo
fez um acordo para vender as terras para o representante da empresa, porém sem comunicar
Sebastião, o qual nada recebeu e acabou sendo expropriado de suas terras. Um detalhe
interessante é que ambos trabalharam na Pedreira Anhanguera e foram demitidos pelo mesmo
motivo: acidente de trabalho. Geraldo sem emprego e sem terra para plantar investiu o
52
dinheiro ganho na venda das terras do Fama em outra plantação de banana numa área além
dos limites que o separava da área de exploração da Redimix.
Apesar de ter residido em outra área, Geraldo acabou sendo surpreendido pelo
expansionismo da empresa que destruiu o bananal e colocou sua casa em risco. Este morador
recorreu à justiça para defender suas terras que segundo ele pertenciam aos seus ancestrais
beneficiados com a doação feita pela família Baima que vivera naquela região desde o século
XIX. Acabou ganhando a causa, mas morreu por razões até hoje desconhecidas. Sua esposa,
Dona Maria Bomtempo, diz que Geraldo vinha sofrendo com as ameaças de alguns
funcionários da empresa que requeria as terras, e que logo após a morte do morador, sua casa
foi invadida e a documentação do processo fora roubada. Mais tarde a Pedreira aumentou sua
área de exploração e repassou aos moradores à idéia de que a empresa era a verdadeira dona
daquelas terras.
Após um longo tempo, os moradores de Boa Vista só tomariam consciência da
grilagem praticada pelos extrativistas, no momento em que seu Caipira começou a mobilizar a
comunidade e buscar informações sobre a área nos órgãos que tratam da questão fundiária no
Estado. A desconstrução da idéia de que os grileiros têm direito legal sobre as terras da
comunidade, também é feita pelas lideranças e reforçada pela Aconeruq.
Na memória de uma pequena parcela de moradores, as lembranças de um tempo de
abundância e liberdade contrastam com a atual condição da coletividade. Um detalhe é que
apesar de maioria da população não ter nascido na comunidade, todos conhecem a história do
lugar. Alguns por terem ouvido falar; e outros, tomando conhecimento na convivência com os
mais velhos.
Tal como ocorre na comunidade Boa Vista, encontra-se na literatura usada neste
trabalho monográfico algumas explicações acerca do envolvimento de comunidades negras
rurais em conflitos agrários. Embora a demarcação e titulação coletiva de terras sejam
reivindicadas pelo grupo, por meio das associações, isso não encerra a noção de propriedade
que o grupo tem. Dessa forma, surgem conflitos produzidos por problemas fundiários como a
venda de terras, a negociação com os grileiros. As comunidades experimentam uma espécie
de persuasão coletiva de seus membros mostrando-lhes a importância de se auto-definirem
quilombolas. Nesse momento, a universidade, acadêmicos, assessorias e o movimento negro
entram em cena conduzindo uma discussão de cunho histórico e conceitual. Entretanto, surge
53
um outro problema ao qual se chama atenção: a intervenção de órgãos do Estado na definição
de quem é ou não quilombola e quem têm direito a terra. (TRINDADE, 2004; NUNES, 2007)
Segundo Castro (2001, p, 4), no processo de luta pela posse da terra, “tensões internas
surgem nos movimentos e exigem de seus membros reflexões que, ao serem feitas, geram
uma pedagogia interna para a consecução de seus objetivos e criação de seus quadros.” Com
base nesse destaque se analisa a participação de órgãos públicos e ongs ligadas ao movimento
negro, no Maranhão, no que se refere à conscientização dos direitos assegurados às
comunidades negras rurais.
No caso de Boa Vista, os associados receberam o apoio da Aconeruq para a
mobilização dos moradores para o resgate da identidade negra na comunidade. O discurso
difundindo por esta entidade colocou em choque as visões dos posseiros em relação às suas
origens étnicas, principalmente por causa da maioria dos ouvintes serem membros da religião
pentecostal que rejeita os referenciais que dão suporte à identidade quilombola. Veja o que diz
seu Caipira quanto à participação dessa ong
A Aconeruq têm nos dado total apoio para o reconhecimento da área como
quilombola; já me levaram até para Brasília. Foi realizada na comunidade
uma oficina para a preparação das pessoas no que diz respeito ao
significado de comunidade quilombola. (entrevista, outubro, 2005)
A Aconeruq, como instituição defensora dos direitos da população remanescente
quilombola, atua em todo Estado do Maranhão promovendo a luta por políticas públicas,
organizando associações, cooperativas, gerando desenvolvimento sustentável a partir das
potencialidades de cada comunidade visitada. O seu Caipira a procurou após uma Conferência
sobre meio ambiente que ocorrera no Sesc Olho D’água, em São Luís. Desde esse momento,
diversas visitas foram realizadas pelos técnicos da instituição que fizeram um levantamento
acerca do histórico da área e entrevistas com os moradores. Após esse trabalho as informações
forma encaminhadas ao Incra para análise; em seguida, este órgão deu início ao processo de
demarcação dos limites da área onde esta a comunidade. Com a participação das referidas
instituições, alguns moradores passaram a se envolver mais com a luta pela posse da terra. As
palestras realizadas pelo representante da Aconeruq foram de vital importância para a
revitalização da identidade étnica dos moradores que viram na auto-afirmação a possibilidade
de defenderem suas terras.
54
Outro efeito da participação da Aconeruq foi o fortalecimento da figura de seu
Caipira, o qual passou a ser o porta-voz da comunidade no diálogo com as esferas do poder
público. A sua participação em eventos, seminários, simpósios e conferências garantiram-lhe
os contatos com representantes de outras instituições.
O MST e a CUT também auxiliaram seu Caipira na sustentação do projeto político de
criar a Associação de Pequenos Agricultores Rurais, mesmo que em menor expressão, se
comparado à participação da Aconeruq. Com base nas entrevistas realizadas com o líder
comunitário, as contribuições das duas organizações se resumem ao apoio financeiro para
suprir os gastos de viagens a São Luís e Brasília; e na elaboração de documentos, cartas e
disponibilidade de acesso a telefones para contatar antropólogos e advogados das instituições.
Talvez a importância maior que todas essas entidades tiveram na vida da comunidade foi,
justamente, a conscientização das famílias vinculadas à Associação quanto à questão
quilombola. Apesar da cisão entre as lideranças, a idéia da auto-afirmação permaneceu entre
os grupos.
Agora, sobre o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, os posseiros de Boa
Vista classificam a postura desta entidade face aos conflitos agrários, como inerte, omissa e
subjugada aos interesses da prefeitura local. Seu Caipira contou que o Sindicato sempre foi
negligente aos apelos dos moradores agredidos pelos funcionários das olarias, às
expropriações sofridas e a destruição de suas terras. Alega também que o atendente da
referida instituição não lhe repassava as ligações dos órgãos de São Luís e Brasília.
As maiores reclamações dos moradores de Boa Vista, em relação ao Sindicato, se
referem ao não pagamento das aposentadorias dos contribuintes. Seu Sebastião diz que
contribuiu para o Sindicato por quase 20 anos e não consegue se aposentar pela instituição. A
mãe de seu Caipira, de 82 anos, sofre com a omissão da entidade para avaliar o processo de
aposentadoria.
Além da falta de apoio dos órgãos locais, a Associação ainda sofreu com as acusações
do secretário de Assistência Social, o qual apontou que em seu trabalho de catalogação e
envio de processo para reconhecimento de áreas rurais como terras de comunidades
quilombolas, Boa Vista não se enquadra nos critérios estabelecidos pela Secretaria por ter
menos de cinco famílias consideradas remanescentes de escravos. Atualmente, as
comunidades que tiveram seu processo de reconhecimento encaminhado por esta Secretaria
55
receberam os títulos de propriedade das terras ocupadas e uma placa colocada pelo poder
local indicando o nome da comunidade e o título de terras de quilombolas.
De 2004 até hoje, a falta de entendimento entre os grileiros e ocupantes têm se
refletido no aumento do número de expropriações e na extensão das cercas. A violência
também aumentou. Denúncias de espancamentos são constantes. Em março de 2007, o seu
Caipira teve sua casa incendiada por três empregados da Olaria Maranata, sendo dois deles
presos. O morador se encontra, na cidade de Marabá-Pará. O vice-presidente da Associação e
dirigente da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, Nilton de Assis, arrumou um emprego no
município de Periz de Cima e só aparece na comunidade aos domingos.
A Associação hoje não funciona. Os moradores sentem-se amedrontados e não
participam das reuniões mensais. Seu Sebastião é a única liderança que ainda resiste contra
qualquer ameaça de expulsão. Contudo, enquanto não há decisão por parte do Incra, a
comunidade de Boa Vista vê-se abandonada. De todos os grupos sociais que antes
conflitavam, os evangélicos crescem em número e se mantém unidos na defesa das terras
onde está a Igreja. Talvez a comunhão entre eles seja uma esperança para reacender o animo
dos moradores na resistência contra o avanço do processo de grilagem. Veremos o papel
exercido por aquele grupo no próximo capítulo.
56
4. PENTECOSTAIS EM AÇÃO
Para este momento da discussão resolveu-se por focar as implicações sociais e
culturais provocadas pela ação dos pentecostais - membros da Casa de Oração - na
mobilização da comunidade contra os extrativistas que invadiram a área. Somada a essa
estratégia de resistência, os sujeitos empreenderam outras ações para lutar contra a
expropriação. Destaque para a derrubada de cercas que limitavam a área de onde se retirava o
babaçu, a lenha e a palha usada na cobertura das casas; além das denúncias de abusos e
violências cometidas pelos funcionários das empresas extrativistas que invadiram a terra. Em
meio a todo este processo, a ação dos pentecostais foi de grande relevância para o
fortalecimento da resistência coletiva na comunidade Boa Vista. Este grupo religioso deu
início à mobilização dos moradores contra os grileiros resultando na formação da Associação
de Pequenos Agricultores Rurais. As implicações decorrentes desta ação trouxeram alterações
não só na forma de encarar os invasores, mas também, nas relações intra e intergrupais.
Foto 4: Prédio da Casa de Oração em Boa Vista.
Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Março, 2004
Caracterizado pela liturgia simples, o Pentecostalismo tem como princípios básicos o
batismo do Espírito Santo e o cumprimento de dois sacramentos: o Batismo e o Casamento. O
foco da discussão está no que se pode chamar de ideologia formada a partir dos ensinamentos
religiosos que influenciou o despertar dos posseiros para a ação política. Para tanto, tomou-se
emprestado a definição de religião dada por Maduro (1980, p. 41) que a compreende como:
57
uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo social referentes a
algumas forças tidas pelos crentes como anteriores e superiores a seu
ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa
dependência e diante das quais se consideram obrigados a um certo
comportamento em sociedade com seus semelhantes.
Os crentes a quem Maduro se refere, é o grupo de pessoas que compartilham não só
crenças e ritos, mas também práticas sociais comuns dentro de um contexto particular em que
opera a religião. Assim, não é a boa vontade dos membros – ou dos líderes religiosos – que
define o desenvolvimento e o resultado de sua ação religiosa, mas a estrutura da sociedade em
que eles atuam que o faz definindo quais pontos de sua ação é viável. Em síntese, vale dizer
que é a estrutura social que condiciona os resultados mais prováveis de sua ação.
Em meios aos conflitos fundiários, a tomada de consciência pelos trabalhadores se
manifesta, em primeiro lugar, na forma como é organizada a luta pela permanência na terra,
aproximando os sujeitos que possuem interesses comuns e criando, ao mesmo tempo, as
condições para o surgimento da classe dos trabalhadores rurais (posseiros). Em 2002 foram
inauguradas a Associação de Pequenos Agricultores Rurais de Boa Vista e a Casa de Oração
vinculada à Assembléia de Deus de Rosário. As mudanças ocorridas a partir daí
caracterizaram “a tomada de consciência” da situação de carestia e opressão sentida pelos
moradores que se resolveram fazer parte da Associação. O compartilhamento, entre alguns
moradores, dessas experiências levou-os a articular um processo de luta política forjado pela
identidade de suas praticas de fé religiosa e sua consciência política de seus interesses sócio-
econômicos sintetizados na posse da terra. Assim, a experiência partilhada no interior dessas
organizações ampliou a consciência desses e de outros moradores levando-os a dirigir suas
ações tendo como referência não somente suas famílias ou os outros mais necessitados, mas
os problemas e as dificuldades vividas no cotidiano das comunidades.
De acordo com Thompson a classe é um fenômeno histórico composto por uma
multidão de experiências em relação umas com as outras e, num constante fazer-se, e não uma
categoria analítica e estrutural. Por sua vez, a consciência de classe é a forma como essas
experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores,
idéias e formas institucionais. Tal processo se verificou na comunidade de Boa Vista, pois, o
compartilhamento de experiências vivenciadas pelos moradores, bem como a iniciativa das
58
lideranças para aglutiná-los deu sustentabilidade física e política aos moradores no
enfrentamento com os grileiros. Desse modo, se pode considerar uma situação na qual o
camponês se instituiu enquanto um sujeito político em decorrência da construção de uma
identidade, de forma consciente, por meio da pratica de fé religiosa, a qual, nessas
circunstâncias, assumiu contornos mais profundos dada a sua dimensão política.
Dado a sua transitoriedade se pode compreender, também, esse acontecimento como
uma classe provável de acordo com Bordieu (2001; NUNES, 2007) considerando que os
moradores da comunidade Boa Vista por ocuparem posições comuns e estarem sujeitos a
condições semelhantes agiram, também, em prol de seus interesses assumindo e tomando de
atitudes semelhantes enquanto foi necessário. Contudo, importa não esquecer, ainda segundo
Bordieu que não se deve analisar a consciência de classe como uma espécie de cogito
revolucionário da consciência coletiva de uma entidade personificada.
Nos capítulos anteriores falou-se acerca da elaboração de uma identidade por um
grupo de posseiros ameaçados de serem expulsos das terras que vinham ocupando há alguns
anos. Quando as famílias habitavam nas terras do Forte do Calvário, os grupos religiosos
dividiam-se em católicos e de culto-afro. Nas paróquias, se homenageava São Benedito,
durante o mês de agosto. No mês de outubro, as pessoas iam, em pequenas embarcações ou a
pé, para o festejo de Nossa Senhora do Rosário organizado pela Igreja da Matriz.
Para os praticantes de culto-afro, os rituais eram realizados na própria comunidade a
céu aberto, em terreiros que ficavam dentro das terras de uma moradora, a qual não se pôde
identificar. Não havia conflitos entre esses grupos, pois as pessoas transitavam de um para o
outro, em função de não haver a presença de um templo católico no local. Assim, os católicos
buscavam nos terreiros a solução imediata para os problemas como doenças, más colheitas e
brigas familiares. Após terem sido deslocados das terras do calvário, os moradores
mantiveram suas práticas religiosas intocadas. Na área onde passaram a viver foram
demarcados dois terreiros para a realização do culto-afro.
Conforme o relato de um morador, a comunidade sempre foi unida, principalmente na
organização dos festejos para homenagear os santos e realização de rituais, danças e festas
dentro dos terreiros. Nunca houve casos de contendas entre os moradores até o ano de 2002,
quando um morador de Rosário, conhecido como Zé Maria, construiu a Casa de Oração para
os moradores convertidos ao pentecostalismo. A partir daí, campanhas de evangelização
promovidas pela Igreja Sede Assembléia de Deus de Rosário, na comunidade Boa Vista,
59
resultou em muitas conversões de famílias que praticavam o culto-afro e freqüentavam a
Igreja Católica.
Nesse contexto, as pressões das empresas extrativistas para expulsar alguns moradores
visando à apropriação da área se intensificaram. Muitos deles eram descendentes das
primeiras famílias que receberam aquelas terras após a falência da Fazenda Boa Vista. Em
conseqüência, houve a saída de vários moradores da comunidade – sobretudo dos
remanescentes de ex-escravos – implicando também na redução dos praticantes de culto-afro,
pois alguns passaram a fazer parte do grupo dos pentecostais.
As tensões agora, entrariam na esfera religiosa colocando em debate o grupo dos
pentecostais e os demais moradores de Boa Vista que viam na evangelização uma ameaça às
suas tradições. Com a construção da Casa de Oração, os pentecostais passaram a realizar seus
cultos contando com a participação dos recém-convertidos que quase não íam à Igreja Sede,
em virtude da grande distância entre esta e a comunidade. Diversos casos de contendas entre
os grupos religiosos são relatados pelos moradores. Um exemplo foi a conversão do
proprietário de um dos maiores bares que existia no local, e que mais tarde se tornaria o
dirigente da Casa de Oração. Com o fechamento do bar, Nilton de Assis Moreira teve sua casa
apedrejada várias vezes. A sua vida foi ameaçada por alguns moradores, mas permaneceu na
nova fé.
Durante o primeiro ano de funcionamento da Casa de Oração, os pentecostais
aumentaram a pressão sobre os praticantes do culto-afro. Campanhas de orações, vigílias e
cultos ao ar livre foram realizados para conclamar a comunidade a abandonar as velhas
práticas e se entregar à doutrina pentecostal. No final do ano de 2003, os dois terreiros foram
fechados por não haver praticantes suficientes. Um outro bar que ficava em frente à Casa de
Oração, também acabou fechando as portas. Este é o período em que os pentecostais
tornaram-se o maior grupo religioso da comunidade Boa Vista. Mesmo antes da fundação da
pequena igreja, eles se reuniam em outra, feita de pau a pique, coberta de palha com uma
quantidade considerável de membros – cerca de 20.
Em março de 2002, após a Casa de Oração ser inaugurada ocorreu o fato que colocaria
os pentecostais na linha de frente contra os grileiros. A experiência é relatada por Seu
Raimundo (Caipira), que era pentecostal na época. Segundo ele, o dono da olaria Maranata –
seu Benedito (Pernambucano) – teria alegado ser o dono da área em que foi construída a
instituição religiosa e as casas dos moradores que ficavam nos arredores. Essas edificações
60
seriam derrubadas para que o terreno fosse usado para extração de argila e a construção de um
novo galpão para a fabricação de telhas e tijolos. Para Caipira essa situação foi motivo de
revolta entre os pentecostais.
Nesse momento eu chamei o irmão Nilton, que hoje é o vice-presidente
atual da Associação, e disse pra ele que a solução para nós era fundar uma
Associação, para podermos ter mais uma força para lutarmos contra essas
pessoas que estavam se revoltando contra nós. (entrevista, setembro de
2005).
A partir daí as famílias dos pentecostais se reuniam sob a liderança provisória de seu
Caipira e de Nilton para defenderem não só a terra onde estão construídas a igreja e algumas
casas, mas também reivindicar melhorias nas condições de vida da comunidade. Segundo
Caipira, o percentual de evangélicos sempre foi maior entre os associados, principalmente,
pelo fato deles terem iniciado o movimento contra a ação dos grileiros. Até mesmo na eleição
para os cargos administrativos da Associação, o grupo religioso fora contemplado com a
ocupação da grande maioria destes.
4. 1 É necessário conscientizar primeiro
O maior desafio enfrentado pelas lideranças das comunidades rurais – negras ou não –
interessadas em obter a posse da terra por meio do artigo 68 é conscientizar os moradores a
respeito da importância da mobilização coletiva em torno de uma estratégia comum a todos.
As lideranças estimulam a união dos moradores para fortalecer o movimento contra a
expropriação de suas terras. Importa lembrar que a partir da tomada de consciência espera-se
que ocorra uma ruptura das relações estabelecidas no interior do grupo (ou de vários grupos)
levando-os a assumir posturas diferentes e construir outra lógica determinada pela
necessidade de sobrevivência. No que se refere à experiência de luta da comunidade Boa
Vista, o grupo religioso dos pentecostais teve que transpor a esfera das divergências religiosas
para arregimentar a comunidade sob outra forma de resistência, pois as divergências os
fragilizava em face de um inexorável enfrentamento com os grileiros de suas terras.
Antes, as famílias de Boa Vista se dividiam em sócios da Associação de Pequenos
Agricultores Rurais e os não sócios. Para os primeiros, a mudança de atitude diante dos
61
conflitos trouxe a incorporação de novos comportamentos como forma de resistência ao
criarem novas condutas sob uma nova linguagem, rituais e práticas inovadoras, a partir dos
quais um outro referencial utópico foi elaborado para se protegerem no presente e se
inserirem no futuro, ou seja, a noção de que eles eram remanescentes de quilombos.
Vale sublinhar que essa configuração da comunidade colocou em discussão a própria
maneira como os pentecostais se percebiam, uma vez que a conversão à nova fé representava
a negação de práticas de culto-afro. A auto-afirmação da identidade quilombola resgataria, em
termos simbólicos, o que foi menosprezado pelos novos membros. Nestes termos, o que se
tem configurado é uma situação complexa e paradoxal cuja inteligibilidade só é possível ao se
compreender o sentido, para eles, da terra no momento em que foi feito o pedido do
reconhecimento da terra como remanescente de quilombo. Os critérios estabelecidos de
classificação do território foram a história da terra e o fato de durante um longo período ela ter
sido ocupada por famílias descendentes dos ex-escravos. Portanto, significa que não se estava
negando a identidade quilombola construída pelos associados, mas sim as práticas religiosas
que denotavam o estigma do “negro escravizado” e que não condiziam com a nova realidade
do grupo.
Dessa forma, as lideranças tiveram como trabalho a difícil missão de conciliar os
interesses dos diferentes grupos religiosos dentro da Associação; afinal, era necessário
conseguir o apoio dos últimos remanescentes quilombolas que ainda habitavam a região para
justificar a ancestralidade da ocupação da terra. O resultado da ação das lideranças foi o
crescimento do número de associados pertencentes às várias crenças religiosas. Após um ano
de funcionamento, a Associação contava com noventa e três sócios agregando, também, ex-
moradores que viviam nos bairros periféricos da cidade de Rosário. Na pauta das reuniões
eram discutidas as condições estruturais da comunidade, bem como a carência de recursos
para as famílias que não tinham mais onde plantar. Para tentar amenizar esse quadro, a
diretoria da Associação, por meio de Programas Sociais do governo federal conseguiu
cadastrar as famílias associadas no PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e
Bolsa Família, além de obter energia elétrica pelo Programa Luz no Campo. Todas essas
conquistas aumentaram as esperanças da comunidade em conseguir a regularização das suas
terras.
62
O seu Caipira relata que à medida que outros benefícios eram trazidos para a
comunidade, via Associação, o número de filiados crescia, embora sob a desconfiança de
alguns moradores que temiam represálias dos extrativistas diante daquela mobilização.
A relação dos pentecostais com os demais grupos religiosos, em um primeiro
momento, fora pacífica, em função do trabalho destes na Associação ter dado resultados
positivos. Além do mais, os grileiros ficaram temerosos após uma visita de fiscais do Ibama –
solicitada pela Associação - que avaliou as condições do solo aonde a argila era extraída.
Tudo isso caracterizou um período de relativa paz na comunidade.
É importante destacar que a ação dos pentecostais constitui um caso isolado na história
das Igrejas Assembléia de Deus no Brasil. Sabe-se que nos últimos anos, cada vez as igrejas
evangélicas vêem buscando um espaço no cenário político nacional organizando comissões
para trabalharem em campanhas eleitorais de membros destas instituições. A presença da
Assembléia de Deus em conflitos agrários não é comum. Os pentecostais vinculados a esta
instituição têm intensificado a participação no processo de reforma agrária. Pastores passaram
a apoiar as ações dos sem-terra e, com isso, conseguiram aumentar o rebanho de fiéis. Entre
as atividades desenvolvidas está a cobrança de ações ao governo, o cadastro de famílias em
programas sociais e, em alguns casos, incentivo às ocupações.
Nesse cenário dos conflitos fundiários, a Assembléia de Deus, tida como conservadora
até os anos 90 mudou suas estratégias de evangelização atuando fortemente nos
assentamentos do MST e da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura
(CONTAG), havendo pelo menos um templo em cada área.
Em Boa Vista a autonomia exercida pela Casa de Oração possibilita uma organização
interna das práticas religiosas conforme o público que se pretende atingir. O cargo de
dirigente é reservado para a pessoa indicada pelo pastor da Igreja Sede. As demais funções
como obreiros, diáconos, evangelistas, cantores são ocupadas por membros da própria
congregação. Este é um aspecto importante das igrejas pentecostais, cujo corpo burocrático
nem sempre é composto por pessoas com instrução voltada para a função religiosa. Aqui,
essas funções são desempenhadas por posseiros, operários, aposentados que vivem em
comunidades rurais ou periféricas.
A Casa de Oração, usufruindo de liberdade para criar e desenvolver suas práticas
religiosas procurou, a todo instante, continuar com a evangelização dos moradores da
comunidade. Apesar dos grupos religiosos estarem com alguns membros vinculados a
63
Associação, os pentecostais continuavam a conclamar os últimos remanescentes do culto-afro
à conversão para o pentecostalismo, pois os mesmos, mesmo sem um local definido para a
realização dos rituais, permaneciam firmes diante do avanço cristão. Um caso interessante
relatado pela D. Maria Ribamar, esposa do dirigente da Casa de Oração, trata de um momento
em que a senhora responsável pelos trabalhos nos terreiros fora acometido por enfermidade
que a deixara de cama por muitos dias. Sem condição de ser transportada para um hospital em
Rosário e agonizando em seu leito ela mandou chamar as mulheres da Igreja Pentecostal para
“orar por ela”. Após chegar à casa da enferma, a dirigente acompanhada por um grupo de
mulheres iniciou uma longa oração pela cura daquela senhora que, ao final, sentiu-se melhor
declarando ter cessado as dores. No entanto, ao saírem da casa as mulheres ouviram do
marido daquela senhora - “isso não muda o que a gente pensa de vocês”. Tal fala expressa,
bem, a relação tensa que existia entre esses grupos religiosos.
Ao longo da realização desta pesquisa não se conseguiu informações que possibilitasse
qualificar o perfil do culto-afro praticado em Boa Vista, pois como é sabido, de modo geral,
as religiões de matriz africana recebem diferentes denominações de acordo com a região onde
se localizam no Brasil: Tambor de Mina no Maranhão, Xangô em Pernambuco, Candomblé
na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Os entrevistados não esclareceram a denominação dada
ao seu grupo religioso. Então, para efeito de classificação resolveu-se, aqui, chamá-los de
praticantes de culto-afro.
Os pentecostais que antes de se converterem eram participantes de culto-afro, também,
sabem pouco a respeito dessas experiências religiosas. Os relatos, quase sempre, se remetem
ao tempo em que a terra não tinha dono, ou seja, durante a ocupação das terras do calvário. Lá
os cultos eram livres e cheios de rituais, onde os membros sacrificavam animais, bebiam o
sangue desses, dançavam ao som dos atabaques sob o transe causado pela incorporação das
entidades. Muitas dessas experiências não foram gravadas a pedido dos próprios entrevistados
que viam no ato de rememorar esses momentos, um constrangimento e uma atitude de
fraqueza perante a nova fé. De qualquer forma, o que se percebe é um desconhecimento de
seus significados e uma desqualificação dos mesmos por considerá-los da perspectiva da nova
fé como algo desprovido de valor.
Diante desse quadro, se percebeu que os pentecostais ao saírem para a mobilização
visando o fortalecimento da Associação, estabeleciam relações ora conflituosas, ora pacíficas
com os demais grupos religiosos. A aversão destes últimos se dava por causa das
64
transformações ocorridas no universo religioso da comunidade a partir da ação dos
pentecostais. Somado a isso estão vários casos de desrespeito sofrido por praticantes de culto-
afro que resistiam à conversão e por pessoas que visitaram a Casa de Oração sendo o alvo de
comentários maldosos acerca de suas condutas individuais ao recusarem o convite para se
tornar membro daquela religião. Para os evangélicos, aqueles que praticam os cultos às
imagens de santos e outros rituais como acender velas para pessoas que faleceram são
exemplos de desobediência aos ensinamentos bíblicos, por isso eram condenadas por Deus.
Esse comportamento é comum para os adeptos da doutrina pentecostal. Esta se
caracteriza por um forte anticatolicismo enfatizando a ação do Espírito Santo, a crença na
volta iminente de Cristo e a salvação paradisíaca, pelo comportamento radical de sectarismo e
o ascetismo de rejeição ao mundo exterior. Mas, na convivência com os outros grupos
religiosos - mesmo alguns membros destes resistindo ao discurso evangélico - as condições
em que se encontrava a comunidade Boa Vista e a ameaça de derrubada da Casa de Oração
favoreceram a mobilização iniciada pelas lideranças pentecostais. O compartilhamento das
precárias condições de existência e a busca pela melhora de vida, o alento e a esperança diante
de uma situação tão desesperadora levou muitas daquelas pessoas pobres, sofridas e menos
escolarizadas - distantes de um catolicismo oficial, alheios a sindicatos, desconfiados de
partidos e abandonados à própria sorte pelos poderes públicos, a optarem voluntária e
preferencialmente pelas igrejas pentecostais. Nelas encontraram receptividade, apoio
terapêutico espiritual e, em alguns casos, solidariedade material.
Partindo dessa realidade, os membros da Casa de Oração promoveram uma comunhão
fortalecida pelos rituais praticados nos cultos e celebrações religiosas, pois segundo Durkeim
(apud. Guibernau, 1997, p, 84).
As verdadeiras crenças religiosas são sempre comuns a um grupo específico
que professa manter-se fiel a elas relacionadas. Estes (os rituais) não
recebidos de maneira meramente individual por todos os membros do
grupo: são o que dá ao grupo a sua unidade. Os indivíduos que compõe o
grupo sentem-se unidos uns aos outros pelo simples fato de terem uma fé
comum.
Vale lembrar que esse não era o fator determinante do processo de construção da
“nova identidade” de Boa Vista. A crença religiosa foi a responsável pelo fortalecimento dos
65
laços de solidariedade que deram impulso e ampliou o número de membros das instituições da
comunidade. No contexto do enfrentamento, o discurso religioso pentecostal sofreu algumas
adaptações em seu conteúdo. Antes o alvo das pregações era a salvação, o arrependimento
seguido da conversão, a volta de Cristo. Na dinâmica do conflito, essas questões continuaram
sendo tratadas, mas levando-se em consideração o cenário vívido pelos moradores de Boa
Vista. Dessa forma, o discurso oficial, bem como suas interpretações e definições derivadas
da mensagem fundadora do pentecostalismo seguiram as orientações que o processo de
resistência exigia.
Até a configuração da luta pela terra, o referencial religioso era visto como base
norteadora da história cotidiana desse grupo. Ou seja, para os pentecostais, os problemas da
vida eram resolvidos a partir de uma intervenção divina concreta dada ao seu engajamento
numa relação de reciprocidade como o sagrado, consubstanciada na fidelidade ao culto e aos
mandamentos da Igreja. No entanto, a possibilidade de sua expulsão da terra os fez ver, a
despeito de sua vontade, que a história em sua vivência efetiva não era como imaginavam ser.
Ainda assim, o envolvimento dos pentecostais com a luta pela terra colocou a religião como
instrumento ativo nas situações de conflito encorajando e tranqüilizando os camponeses na
medida em que se sentiam respeitando os princípios religiosos. Nessa perspectiva, a
aproximação dos grupos religiosos conduzida pelos pentecostais ocasionou o aumento de
membros deste último e a formação da Associação de Pequenos Agricultores Rurais.
O ponto de partida para a mobilização política dos moradores foi a ameaça de
derrubada feita pelo seu Benedito (Pernambucano) da Casa de Oração e moradias adjacentes.
Em face dessa ameaça, os líderes pentecostais – o seu Caipira e Nílton – organizaram os
moradores para a resistência consolidando a Associação. A partir daí ocorreu uma série de
atos de violências praticadas pelos funcionários das olarias contra os moradores, sobretudo, os
pentecostais associados causando, assim, a diminuição de membros das duas instituições. Para
completar esse quadro desalentador; um dos donos das olarias se converteu ao
pentecostalismo provocando o afastamento em massa dos fiéis da Casa de Oração.
4. 2 A desmobilização coletiva
Como é sabido, a resistência à expropriação dos posseiros da terra fez com que os
mesmos mudassem a sua noção de identidade. Nesse processo, o pentecostalismo, os novos
66
discursos das lideranças locais, as reuniões da Associação, se pode dizer que foram os fios de
sua tessitura. À proporção que os moradores eram levados a tomar consciência da auto-
afirmação quilombola, como estratégia definida para se reivindicar a posse da terra, o
referencial religioso, em si mesmo, foi sendo resignificado em função da conjuntura e das
demandas que se impunham em relação à sobrevivência da comunidade. Tratou-se, enfim, de
um fenômeno, o qual se pode chamar de transição cultural de classe, pois o conjunto de
saberes e práticas adquiridas ao longo de experiências em situações de interação foi
transformado pela práxis coletiva implicando em mudanças na maneira como a classe se
percebia e agia.
Em Boa Vista, a ação dos pentecostais na mobilização da comunidade na luta pela
posse da terra, resultou na edificação da Associação. Com a eleição de Raimundo (Seu
Caipira) para presidente e de Nílton para vice, a instituição representativa deu início há uma
série de ações visando a melhoria de condições de vida das famílias locais. Durante seu
primeiro ano houve uma trégua com os grileiros garantindo-se o fortalecimento do grupo dos
associados.
A partir do segundo semestre de 2003, as agressões começaram a ocorrer.
Funcionários das olarias foram vistos destruindo roças, matando animais, invadindo casas e
agredindo fisicamente homens e mulheres na área. O fato para as agressões se deve quando o
Sr. Benedito (Pernambucano) resolveu passar uma cerca em frente à sede da Associação
alegando ser o dono daquela área. De posse de documentos que, segundo ele, garantiam-lhe a
propriedade daquelas terras, o empresário deu ordem aos moradores que não arrancassem a
cerca ameaçando-os com funcionários armados.
O seu Caipira relatou que nesse tempo os associados reuniram-se no meio da rua e
decidiram arrancar a cerca do grileiro. A ação resultou em brigas e discussões com os
funcionários das olarias sendo necessária a intervenção da polícia local. Ao final, a cerca foi
retirada e a Associação permaneceu firme. Contudo, as retaliações continuaram aumentando o
clima de tensão na comunidade.
O pacifismo cristão ensinado nas pregações dos cultos pentecostais foi substituído por
outro apontando soluções práticas para o conflito fundiário em decorrência da mudança na
visão social de mundo de alguns pentecostais, os quais mais tarde se afastariam da religião
para se dedicarem à luta pela terra. No instante em que a transformação religiosa teve uma
incidência positiva sobre a mudança de consciência política e às práticas coletivas do grupo
67
ameaçado, a religião pode ser considerada como um elemento propulsor da politização dos
posseiros. Contudo, o desenrolar dos acontecimentos que implicaram em situações de conflito
forçou um deslocamento do referencial religioso enquanto a base discursiva para a explicação
dos fenômenos da natureza e dos acontecimentos da vida social. No contexto da luta, as
significações religiosas foram vinculadas à busca coletiva de libertação, em múltiplas
dimensões. Assim, o exercício religioso passou a ser visto como uma opção consciente, livre
e, por conseguinte, passível de questionamento.
Os relatos de pentecostais que se afastaram da religião apontam para uma
interpretação destituída de referenciais religiosos acerca dos conflitos fundiários. A luta pela
terra assumia um caráter político. O sentimento de revolta compartilhado por Seu Raimundo e
Seu Sebastião - líderes dos grupos que resistem à expropriação - fez com que a conduta cristã
pautada pelos princípios bíblicos fosse substituída pela ação política, militante, na qual era
necessário configurar práticas de resistência que garantissem a sobrevivência das famílias,
mesmo que isso fosse de encontro à ética cristã. Além das lideranças outros moradores
afastaram-se da doutrina pentecostal. Entre eles estavam membros da Diretoria da Associação
e outros que apenas freqüentavam a Casa de Oração. Dos primeiros ouviu-se que a principal
razão para o abandono da religião foi a pressão dos grileiros sobre os mesmos. Eles foram
ameaçados e agredidos fisicamente. Por isso, se decidiram sair da comunidade e da Casa de
Oração com medo de maiores represálias.
Conforme o Sr. Pedro Saraiva, ele sofreu agressões físicas por parte dos empregados
das olarias; a casa foi invadida e a sua família duramente ameaçada. Segundo ele o dono de
uma cerâmica ofereceu-lhe uma pequena quantia pelo lote de terra que estava ocupando, mas,
prontamente recusada pelo agricultor que além de pentecostal era o segundo secretário da
Associação. Um dia ao se dirigir à delegada de Rosário para denunciar os abusos e agressões
cometidas pelos grileiros, seu Pedro foi repreendido por não apresentar provas materiais.
Indignado o agricultor tentou apresentar as marcas da agressão sofrida e acabou preso. Após
três dias de detenção, o agricultor resolveu sair com a família da comunidade, desligou-se da
Associação e foi morar em um bairro da periferia de Rosário.
Casos como esses foram freqüentes durante o mandato de seu Caipira mostrando que a
resistência na terra não poderia ser feita apenas com base na fé religiosa. Era preciso que os
posseiros tivessem outros instrumentos para lutar contra a violência dos extrativistas. Foi
neste contexto, que seu Caipira passou a solicitar a visita de representantes de Ongs que
68
trabalhavam com comunidades negras rurais, no Estado, para ajudar os moradores na luta pela
regularização de suas terras. A Aconeruq foi a primeira a se dispor em ajudar a comunidade
ministrando palestras acerca do movimento negro; a importância da identidade quilombola e
os benefícios assegurados no artigo 68. A partir daí, os associados apresentariam uma outra
postura em relação aos conflitos fundiários. Ao invés de uma resistência ofensiva, direta,
física, o grupo optou pela entrada no processo de regularização das terras, como
remanescentes de quilombo. Este processo seria colocado em substituição a um outro iniciado
e 2002 por seu Caipira visando apenas a desapropriação da área, tida como reserva
extrativista.
A consciência política dos associados foi, a partir daí, formada por elementos
destacados no discurso da Aconeruq, bem como no prosseguimento dessa prática por seu
Caipira. Agora, não eram somente posseiros, pentecostais, mas remanescentes de quilombo,
cidadãos de direito. Em resumo, o deslocamento do referencial religioso foi um processo que
ocorreu sob múltiplas formas, em função da reconfiguração da ação dos pentecostais, do
discurso empreendido pelas ongs e pelas lideranças locais a favor da construção de uma nova
identidade: a identidade quilombola. O contexto para estas mudanças é marcado pelo aumento
das tensões entre grileiros e posseiros.
Analisando as transformações culturais com base nos relatos de ex-pentecostais que
deixaram a Casa de Oração, mas continuam a viver na comunidade, se destaca um fato
interessante - a conversão do Sr. Benedito (Pernambucano) ao pentecostalismo. Este fato
causou um impacto nos membros daquela congregação que viam com desconfiança a atitude
do grileiro. Conforme relata seu Caetano, desde que a igreja era feita de palha, o
Pernambucano tentou derruba-la duas vezes. Numa dessas, a mobilização dos fiéis para
defender a instituição resultou na formação da Associação. As ações de violência praticada
pelos empregados e, até mesmo, pelos filhos do empresário despertaram medo e revolta nos
moradores de Boa Vista. Os conflitos que ocorriam ao longo dos anos só aumentavam a
aversão à presença das olarias.
No tempo que seu Benedito se tornou pentecostal, as pressões para expulsar os
posseiros haviam diminuído. Ele começou a freqüentar a Igreja sede da Assembléia de Deus
em Rosário junto com suas três filhas. Para D. Maria Ribamar – esposa de seu Nilton –
durante um tempo o Pernambucano esteve de caso com uma das meninas da comunidade com
a qual mantivera relações sexuais ilícitas. Este fato o afastou da Igreja levando o Pastor da
69
Congregação sede a vir lhe visitar semanalmente para aplicação de disciplina e
aconselhamento cristão. Além disso, o grileiro deveria passar a freqüentar a Casa de Oração
para evitar maiores constrangimentos.
Desde então alguns membros deixaram de ir aos cultos e participar das atividades
promovidas pela instituição. Dos que se afastaram, nem todos tinham vínculos com a
Associação. Muitos deles viam na conversão do empresário uma forma dele se aproximar da
comunidade para depois tentar desmobilizá-la. Isso acarretou em relações conflituosas entre
os pentecostais que permaneceram na igreja e o restante da comunidade que passou a chamá-
los de traidores. Com a saída de vários membros, a Casa de Oração foi ficando sem os
recursos obtidos com as doações voluntárias dos fiéis.
Diante das dificuldades financeiras da Casa de Oração, Pernambucano passou a fazer
doações mensais volumosas que pudesse custear a manutenção do lugar. Com a saída do
dirigente, a sua esposa assumiu o cargo. D. Maria Ribamar começou a desenvolver uma série
de atividades (cultos ao ar livre, ensaios de corais, peças teatrais, celebrações) em parceria
com as congregações vizinhas objetivando a conquista de novos membros. De posse dos
recursos doados pelo empresário fiel, a dirigente conseguiu atrair uma grande quantidade de
jovens mulheres para a congregação. Até as filhas do seu Benedito passaram a se congregar
em Boa Vista.
Com exceção dos pentecostais da Casa de Oração, a comunidade até hoje reage à
presença dos donos de olarias e da Pedreira Anhanguera naquelas terras. Contudo, a luta
esfriou depois que seu Caipira teve sua casa incendiada por funcionários de uma das
cerâmicas resultando no seu afastamento da região. O vice-presidente, Nilton de Assis
Moreira, conseguiu um emprego em outro município, abandonou o cargo de dirigente e só
aparece na comunidade a cada quinze dias. Sem direção a Associação está desativada e boa
parte dos sócios saiu da comunidade à procura de novas terras para o cultivo, e outros, para
bairros da periferia da capital São Luís.
A Casa de Oração passou por modificações em sua estrutura graças aos donativos dos
novos membros. Mesmo sem um dirigente nomeado pela Igreja sede, a instituição desenvolve
suas atividades sob o comando de D. Maria Ribamar, apoiada por algumas senhoras e por
filhas de seu Benedito.
Compreendeu-se então que a ação dos pentecostais trouxe mudanças não só no
comportamento dos fiéis, mas, sobretudo nas relações entre estes e os demais grupos da
70
comunidade. Consequentemente, o enfraquecimento daquele grupo religioso deveu-se –
dentre outros fatores – à sua própria atitude de mobilização dos posseiros para a luta pela
posse da terra, transformando gradualmente a visão social de mundo dos sujeitos engajados
no processo de resistência, colocando paralela à fé religiosa, uma consciência política.
71
5. CONCLUSÃO
A análise do processo de luta pela posse da terra em Boa Vista, objetivou apresentar
algumas considerações acerca do processo de construção da identidade étnica, bem como os
conflitos internos decorridos durante o período que fora definido para este estudo. Essas
questões surgiram quando se efetuava a pesquisa de campo, colhendo os depoimentos dos
sujeitos afetados pelas transformações sócio-culturais, no momento em que se dava o avanço
das empresas extrativistas na área.
A identidade quilombola reivindicada por um grupo de posseiros, que na maioria são
recém-chegados à comunidade, foi o foco da discussão no primeiro capítulo. As entrevistas
realizadas com os indivíduos que faziam parte do referido grupo, denotaram em quase todas,
um conhecimento forjado pelos interesses das lideranças acerca do artigo 68, como os
“remanescentes de comunidades quilombolas que estejam ocupando suas terras”. Nesse
ponto, a maneira como trabalharam as lideranças locais com difusão deste discurso fez toda
diferença no resultado da mobilização dos moradores. Para estes, o fato de estarem habitando
em terras que foram ocupadas por ex-escravos era suficiente para garantir a titulação das
terras; isso é expresso na frase citada por seu Sebastião ao narrar os acontecimentos que
determinaram a saída das famílias de remanescentes que ainda habitavam em Boa Vista.
Segundo o agricultor, “como os antigos preto da Boa Vista foram expulsos da comunidade,
agora os ‘preto somo nós’ que continuamos lutando”.
A concepção que os posseiros têm da terra, é que aquele a faz produzir pode ser
considerado como o seu proprietário. O direito se legitima pelo trabalho sobre a terra bruta. O
sinal de ferro é a marca do machado que derrubou a mata, desbravou e amansou a terra,
incorporando nela o trabalho duro de quem primeiro nela trabalhou. O tempo de ocupação da
terra para os posseiros define tanto a propriedade, quanto o trabalho empreendido. Esta noção
entrou em choque com a versão capitalista de propriedade privada da terra, adquirida por
meio da compra com registro em cartório.
Os posseiros crêem no poder do acordo verbal, por este ser um instrumento
comumente usado na jurisprudência camponesa na regulamentação das relações sociais.
Contrapõem-se, então, um direito gerado pelo dinheiro e um direito gerado pelo trabalho. No
ponto de vista do primeiro, a ocupação livre da terra pelo trabalhador livre e pobre, que não
possui um documento de propriedade, é um crime, uma violação do direito de propriedade.
72
Do ponto de vista do segundo, a sobreposição dos direitos de propriedade aos direitos do
trabalhador é um roubo, um crime contra a condição humana.
Como a luta passou a se dar no campo jurídico, o trabalhador rural recorre aos
instrumentos legais que lhe parecesse acessível. Com a indefinição acerca dos termos do
artigo 68, a identificação das comunidades de remanescentes quilombolas apresenta lacunas
que dão acesso para populações rurais buscarem a auto-afirmação étnica, na tentativa de
garantirem sua subsistência a partir da terra que estão ocupando.
Dessa forma, deixou-se em aberto uma questão: apesar da comunidade Boa Vista ser
hoje ocupada por agricultores vindo de outras áreas, isso não apaga o seu passado histórico;
além disso, o tempo que estes sujeitos ocuparam este território permitiu-lhe construir um novo
modo de vida compartilhado pelos grupos locais. Dessa forma, observando os problemas
gerados pela falta de uma reforma agrária no Brasil, será que esta forma de titulação das terras
pode ser aplicada também para estes camponeses, sabendo que o campesinato livre é parte do
processo histórico de constituição da nossa sociedade? Que critérios podem ser estabelecidos
para esta parcela social?
Todo o trabalho de organização da resistência em Boa Vista, envolvendo os conflitos
com os extrativistas, a construção da Associação de Pequenos Agricultores Rurais, e o
abandono do poder público local, demonstra a capacidade que os camponeses têm de
mobilizar uma ação elaborada contra a ameaça de expropriação. Isso fica claro, quando seu
Caipira chega na comunidade e toma consciência da situação de exploração e violência em
vivem os moradores; desde então, a ação movida pelo agricultor visou a unidade das famílias
para o fortalecimento dos habitantes diante dos conflitos.
A pedagogia do contato pessoal, os contatos com os advogados, promotores,
ambientalistas e organizações não-governamentais defensores da causa camponesa, foram
algumas das estratégias adotadas pelo líder comunitário para aglomerar os moradores de Boa
Vista em torno de uma proposta de luta contra o avanço dos grileiros na área.
O resultado foi a reunião de 93 pessoas que em 2002 fizeram parte da Associação
recém – inaugurada. As conquistas de benefícios para as famílias associadas, melhorias na
comunidade como luz elétrica e a construção de um poço artesiano, atraía cada vez mais
membros para a entidade. Contudo, quando o assunto era luta pela terra grande parte dos
sócios não participavam. O medo de serem expulsos e até mesmo mortos pelos pistoleiros das
73
olarias, eram algumas das razões para a omissão nos debates sobre a situação fundiária da
comunidade.
Apesar das ameaças a Associação funcionaria por mais três anos. O processo de
regularização das terras encaminhado ao Incra e o contato com advogados na capital São Luís,
proporcionou uma certa esperança de que o sonho da terra própria estaria próximo. Porém,
quando veio a notícia de que o processo havia sido roubado, a frustração foi geral entre os
associados. Contudo, a luta permaneceu ainda que de forma dispersa – sem representantes. A
saída dos líderes da Associação a tornou inativa, mas o grupo liderado por seu Sebastião ainda
aguarda a decisão da justiça sobre a regularização de suas ocupações.
É inegável a capacidade de liderança exercida por seu Caipira. Mesmo sendo semi-
analfabeto, chegou a ir para Brasília à procura de auxílio na Fundação Cultural Palmares e
órgãos de defesa do meio ambiente. Tudo isso que ocorrera, é fruto das experiências vividas
pelos moradores de Boa Vista, os quais passaram mais de 15 anos em tensão com os
extrativistas, mas que encontraram no esforço e no entusiasmo de seu Caipira a esperança de
dias melhores.
Outro detalhe apontado no texto, foi a ação dos pentecostais. Destacou-se como os
laços de solidariedade e a comunhão entre os membros da Casa de Oração foram
fundamentais nas mudanças no modo de vida da comunidade. A desestruturação das relações
pacíficas entre os grupos religiosos, ao mesmo tempo que pôs fim ao culto-afro e causou a
revolta de alguns católicos, resultou no aumento do número de pentecostais que mais tarde
comporiam a diretoria da Associação criada por eles. A conversão de um dos donos das
olarias da região ao pentecostalismo foi outro acontecimento que trouxe um novo rompimento
dentro deste grupo, já enfraquecido depois da cisão entre os membros da Associação.
Ainda assim, a iniciativa dos pentecostais na organização da resistência foi também o
principal fator para as distorções do discurso da identidade quilombola, pois esta carregava o
estigma das práticas da religião afro, rechaçada pelo pentecostalismo. Exemplos como esse,
levaram a pensar acerca das implicações da relação entre religião e luta de classes. Como essa
questão não foi trabalhada no texto, fica então em aberto para outras pesquisas.
74
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. 1996. “Quilombos: sematologia face a novas
identidades”. Em Frechal – terra de preto, quilombo reconhecido como reserva
extrativista. São Luís: SMDDH/CCN -PVN.
_____________________________. Os quilombolas e a base de lançamentos de foguetes
de Alcântara: laudo antropológico. Brasília: MMA, 2006.
AMARAL FILHO, Jair do. A economia política do babaçu: um estudo da organização da
extrato-indústria do babaçu no Maranhão e suas tendências. São Luís: SIOGE, 1990
ANDRADE, Manuel. Ligas camponesas no Nordeste. São Paulo: Ática, 1989.
ANDRADE, Maristela Paula de. Terras de índio, Terras de uso comum e resistência
camponesa. Tese de Doutorado. FFLCH/USP, 1990
ARRUTI, José Mauricio P A. Para uma sociologia do artigo 68. Disponível em:
www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&file=index&pa=showpage&ped=1818.
Acessado em: 08/10/2007
BOM MEIHY, José Carlos Sebe (org.). (Re) Introduzindo a história oral no Brasil. São
Paulo: Xamã, 1996
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 5º ed. Rio de Janeiro.
Bertrand Brasil, 2002.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência
cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CARRIL, L. de F.B. Trabalho e excedente econômico: remanescentes de quilombos no
Brasil. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de
Barcelona, vol. 6, nº. 119 (39), 2002. [ISSN: 1138-9788] http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-
39.htm. Acessado em 07/08/2005.
CONCEIÇÃO, Manuel da. Essa terra é nossa: depoimento sobre a vida e a luta de
camponeses no Estado do Maranhão. Entrevista e edição de Ana Maria Galano. Petrópolis:
Vozes, 1980.
FARIA, Regina Helena Martins de. A transformação do trabalho nos trópicos: propostas e
realizações. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2001.
FERRAZ, Siney. O movimento camponês no Bico do Papagaio: Sete Barracas em busca
de um elo. 2ª ed. Imperatriz: Ética Editora, 2000.
75
FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína. (orgs). Usos e abusos da História Oral.
Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
FIABANI, Alberto. Mato, palhoça e pilão: o quilombo da escravidão às comunidades
remanescentes (1532-2004). São Paulo: Expressão Popular, 2005.
FORMAN, Shepard. Camponeses: suas participação no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
GAIOSO, Raimundo José de Sousa. Compêndio Histórico-Politíco dos Princípos da
Lavoura do Maranhão. Rio de Janeiro. Fon-Fon e Seleta, 1970.
GRYNZSPAN, Mario. Lutas políticas, gênese de atores e reconfiguração do espaço.
Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº12, p. 113-132.
GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: O Estado nacional e o nacionalismo no século
XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Revista da Associação Brasileira de História Oral.
São Paulo. v. 6, nº. 6, p. 9-26, jun. 2003.
HOBSBAWN, Eric J. Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
LIMA FILHO, João Egídio. Formação Histórica do Povoado de São João do Rosário.
Trabalho de Conclusão (Graduação em História). São Luís. UEMA, 1998
LUNA, Regina Celi Miranda Reis. A Terra era Liberta: um estudo da luta dos posseiros
pela terra no vale do Pindaré-Maranhão. São Luís: UFMA, 1984.
MARQUES, César Augusto. Dicionário Historiográfico-Geográfico da Província do
Maranhão. Rio de Janeiro. Fon-Fon e Seleta, 1970.
MARTINS, José de Sousa. Os camponeses e a política no Brasil. 3 ª edição. Petrópolis:
Vozes, 1986
______________________ . A Reforma Agrária e os Limites da Democracia na “Nova
República”. São Paulo: Editora Hucitec, 1986.
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da
luta pela terra. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e Memória: a cultura popular revisitada.
3. ed. São Paulo. Contexto, 2004
MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1998.
MADURO, Otto. Religião e Luta de Classes. Rio de Janeiro: Vozes, 1980.
76
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun
Khoury. Revista de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da
PUC-SP. São Paulo, 1993.
OLIVEIRA, Bernadete Castro. Tempo de travessia, tempo de recriação: os camponeses na
caminhada. Revista de Estudos Avançados. Vol. 15, nº. 43, São Paulo: Sep/Dec, 2001.
Disponível em <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex&pid=S0103-0142001000300019.
Acessado em 08/08/2005.
PROJETO VIDA DE NEGRO: Uma propositura de direitos e ações junto às comunidades
negras rurais quilombolas ou terras de preto no Maranhão. São Luís: CCN\SMDH, 2003.
PROJETO VIDA DE NEGRO. Vida de Negro no Maranhão: uma experiência de luta,
organização e resistência nos territórios quilombolas. Coleção Negro Cosme. Vol. 4. São
Luís: SMDH/CCN-MA/PVN, 2005.
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra no Brasil. São Paulo: Ática, 1993.
REIS, João José. GOMES, Flávio. Liberdade por um fio. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
RIBEIRO, Maria Benedita Silva. Frechal: Identidade e Resistência. Trabalho de Conclusão
(Graduação em História). São Luís. UEMA, 2002
RODRIGUES, Irasélia Soares. Jamary dos Pretos: remanescentes de quilombo. Trabalho
de Conclusão (Graduação em História). São Luís. UEMA, 2002
SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. Revista Afro-Ásia nº.
23, 2000. Disponível em: www.lpr.uerj.net/olped/documentos/ppcor/0210.pdf.
SOUSA, Maria de Fátima Costa. Santo Antônio dos Pretos: uma comunidade em busca de
sua identidade histórica. Trabalho de Conclusão (Graduação em História). São Luís.
UEMA, 1997
SCHMITT, Alessandra. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território
nas definições teóricas. Revista Ambiente e Sociedade, Ano V. nº. 10, p. 4-12. 1º semestre
de 2002. Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414753x2002000100008&script=sci_arttex. Acessado em:
07/08/2005.
THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Trad. Denise Bottman.
Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1987.
_____________________ A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
77
TRINDADE, Joseline Simone Barreto. Nós, quilombola? A construção da identidade
quilombola a partir dos levantamentos de comunidades negras rurais no Estado do
Pará. Texto apresentado no Fórum de Pesquisa "Levantar Quilombos: pressupostos, métodos,
conceitos e efeitos sociais das experiências de mapeamento de comunidades negras rurais no
Brasil", no âmbito da 24ª Reunião Brasileira de Antropologia (Olinda-PE, junho de 2004).
Disponível em www.koinonia.org.br/oq. Acessado em 05/05/2005
ENTREVISTAS
Caetano Silva: Agricultor, aproximadamente 60 anos, ex-funcionário da Pedreira
Anhanguera, recebeu um lote de terra como indenização por ter sido demitido. Neste se
encontra a Casa de Oração.
Geraldo Almeida: Agricultor, 48 anos, remanescente de quilombo. Morador da Boa Vista.
Maria Ribamar: Dona de casa, 26 anos, esposa do ex-dirigente da Casa de Oração de Boa
Vista.
Luís Pretinho: Secretário de Assistência Social de Rosário, desde 2005.
Maria Bomtempo: Agricultora e dona de casa, aproximadamente 40 anos, viúva, moradora
de Boa Vista.
Nilton de Assis Moreira: Pescador, 28 anos, dirigente da Casa de Oração no período de 2002
a 2004.
Pedro Saraiva: Agricultor, aproximadamente 50 anos. Ex-membro da diretoria da
Associação de Boa Vista.
Raimundo Silva da Rocha (Caipira): Agricultor, 54 anos, presidente da Associação de
Pequenos Agricultores Rurais Quilombolas de Boa Vista, no período de 2002 a 2006.
Encontra-se refugiado no Pará.
Sebastião Almeida: Agricultor, 76 anos, morador mais antigo da Boa Vista. Seus
descendentes chegam a somar 15 famílias. Líder do grupo independente que resiste aos
grileiros.
79
APÊNDICE A – MODELO DE QUESTIONÁRIO USADO NA PRIMEIRA VISITA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA PESQUISADOR: MARCELO SILVA NUNES
QUESTIONÁRIO 1. QUANTAS PESSOAS TÊM NA FAMÍLIA: _________ 2. QUANTOS MENORES DE 18 ANOS: ___________ 3. QUANTOS IDOSOS: _________ 4. NOME E IDADE DOS MORADORES: ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________
5. A QUE GRUPO RELIGIOSO PERTENCEM OS FAMILIARES: ( ) CULTO-AFRO ( ) CATÓLICOS ( ) EVANGÉLICOS 6. HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ MORA NA COMUNIDADE: __________ 7. COMO É A SUA RELAÇÃO COM OS OUTROS GRUPOS RELIGIOSOS: BOA _________________ CULTOS AFRO RUIM _________________ CATÓLICOS ÓTIMA _________________ EVANGÉLICOS 8. QUE TIPO DE TRABALHO VOCÊ TEM. ( ) PESCA ( ) ROÇA ( ) EXTRAÇÃO DE MANGUE ( ) OUTROS
top related