universidade do estado do rio grande do norte …...a partir daí eu tinha minha madrinha maria nova...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN
Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque. Maia – CAMEAM
Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL
Doutorado Acadêmico em Letras
Área de concentração: Estudos do discurso e do texto
MEMÓRIA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NAS HISTÓRIAS DE VIDA DAS
REZADEIRAS NEGRAS DO QUATI
Tese de Doutorado
CIRO LEANDRO COSTA DA FONSÊCA
PAU DOS FERROS/RN
2019
CIRO LEANDRO COSTA DA FONSÊCA
MEMORIA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NAS HISTÓRIAS DE VIDA DAS
REZADEIRAS NEGRAS DO QUATI
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras – PPGL, da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte, Campus
Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque
Maia, para a obtenção do título de Doutor em
Letras.
Orientador: Prof. Dr. Sebastião Marques
Cardoso
Pau dos Ferros/RN
2019
Pedra Luz Turmalina Preta
Minha madrinha de cor negra, voz doce, semblante de guerreira, com seu rosário no
pescoço e turbante na cabeça. Em tom solene dirigia-me uma saudação carinhosa:
- Essa menina!
- Neguinha, como vai sua mãe?
E eu, bênção minha madrinha!
- Deus te cubra de fortuna.
Era tudo o que eu queria. Essa saudação enchia-me de esperanças. Sempre entendi
que fortuna era felicidade, alegria, saúde.
Por muitos anos fui protegida por minha madrinha de bênçãos e orações, seus
presentes sempre eram de sua cor, guardava espigas de milho de palhas quase preta bem
arroxeadas e lembrava-me:
- É para lhe dar sorte! Cor preta é proteção! Afastas quebrantos. Eu comia cada caroço com
tranqüilidade e firmeza para cumprir o ritual da promessa feita. Sempre guardava uma franga
para me presentear no meu aniversário, também de cor preta, pé rosco e dizia:
-Você não deve comer galinhas.
Jamais esquecerei uma infância sob bênçãos tão eficazes, mas o tempo passou,
madrinha Maria Nova foi envelhecendo, trabalhando na roça, fazendo suas romarias Juazeiro
(do Padim Ciço) e ao Canindé (de São Francisco das Chagas). E eu saí da Lagoa do Mato para
estudar. Houve uma ausência em nossas vidas, mas nunca separação definitiva.
Nossos encontros eram livres, mas descontraídos, na sua primeira doença, um nódulo
no queixo, vi a força da fé em seu semblante e em suas atitudes ao se submeter a uma cirurgia
que sarou rapidamente e a fez voltar as atividades agrícolas. Às vezes eu passava em frente à
sua casa e ela estava na roça, mesmo sob um forte sol do meio-dia e ia gritando:
- Já vou neguinha...
De repente aconteceu sua despedida terrena, não pude ir ao velório nem ao
sepultamento. Hoje quando passo em frente a sua casa rogo por sua bênção e a vejo como
uma Pedra Luz Turmalina Preta que tanta falta me faz, mas que está presente na paisagem da
Lagoa do Mato, comunidade onde nasci.
Eu, como primeira neta da família HERMÓGENES, recebi como padrinhos de
batismo meus avós paternos, foi a escolha dos meus pais. Aos seis anos descobri que poderia
ter uma madrinha e um padrinho de fogueira. E numa manhã de 24 de junho, fizemos nosso
juramento diante das cinzas da fogueira de São João, sob uma neblina santa:
- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha madrinha que São João
mandou!
- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha afilhada que São João mandou!
A partir daí eu tinha minha madrinha Maria Nova e o meu padrinho João Camaleão
que era genro dela. E eu toda orgulhosa dessa intimidade de afilhada, frequentava sua casa e
levava minhas amigas e irmãos quando estavam com dor de dente ou machucavam-se para a
madrinha benzer. E ficávamos deslumbrados quando ela riscava no chão com uma faca em
volta do pé machucado, (desenho da silhueta do pé) e depois fazia três cruzes com a faca
dizendo:
- Carne triada, osso rendido. E jogava a infecção para o vento levar. Mais interessante ainda
era quando íamos cortar ínguas (pequena glândula na virilha, corpo ficava febril), ela dizia:
- Um, dois, três ínguas cortei...
Rezava sempre com uma faca cortando desenhos de cruzes no solo e jogando ao
vento o mal, as vezes dobrava folhas de ervas que não sei o nome. E aquele rosário no
pescoço fascinava a todo nós, era uma relíquia. Todos os negros e negras usavam e ficavam
nervosos se alguém ousasse mexer em seus rosários, ficavam furiosos.
Madrinha gostava de andar apoiada em uma vara verde (espécie de cajado), parecia
nos meus devaneios revolucionários, nossa Antônia Conselheira, era valente, falava alto,
brincava, cantava, dançava e eu não sei o porquê da sua casa ser um pouco afastada das outras
famílias, desde que a conheci sempre vivia sozinha, isolada, sem marido, cuidando das filhas,
usava marrom de promessa, gostava de uma biritinha, mas só para animar.
Após a sua morte descobri a dança de São Gonçalo e entendi um pouco mais sobre
sua devoção ao rosário (Nossa Senhora do Rosário). Bendito rosário que nos fascinava na
infância e nos causa arrepios na memória
Solange Batista da Silva (2016, p. 66-67).
Dedicatória
Louvai o Senhor, rezador maior, tese minha irmã, com vossas palavras, sentidos e rezas, com vossa forma e capa, com as vozes das rezadeiras negras, dos narradores anônimos das comunidades afrodescendentes, com os ensinamentos dos mestres que a conduziram, com o auxílio dos amigos e colegas, com as mãos de todos que vos fizeram existir, louvai o Senhor presente em todas as culturas, com a riqueza de ritos formas de agradecimento de todos os povos que compõe o nosso Brasil. Ciro Leandro Da imitação do “Cântico das criaturas” de São Francisco de Assis e da dedicatória do livro Bagagem da poetisa Adélia Prado. Teu capelo será um chapéu rústico de palha de sertanejo, do devoto do Padre Cícero, do romeiro, o sol do sertão nordestino, a chuva predita pelos profetas populares, pelas rezadeiras, a voz-memória dos mestres e mestras da cultura popular. Teu anel de doutor será a sabedoria de vida aprendida destes, maior que o conhecimento acadêmico, feito do ramo protetor das rezadeiras. Tua beca será a força e a resistência dos sertanejos, dos negros que lutaram contra a escravidão, dos profetas que a cada chuva se refazem e renovam sua capacidade de vencer a dor e a morte. Não terás outros símbolos doutorais senão a resistência e a esperança do povo simples do sertão nordestino. Ciro Leandro, inspirado no poema de ordenação episcopal de Dom Pedro Casádaliga, bispo prelado de São Félix do Araguaia, uma vida dedicada às causas populares e a defesa dos povos indígenas. À memória da beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, a Beata do Padre Cícero, que por ser afrodescendente numa sociedade marcada pelo racismo determinista do final do século XIX e início do século XX sofreu as piores humilhações pelas quais pode passar um ser humano. Pelo seu reconhecimento como mestra de cultura popular negra e justiça à sua importância para a religiosidade e a cultura popular afro-brasileira do Nordeste.
Agradecimentos
Às muitas mãos que me conduziram até aqui.
À minha mãe pela vida e aos familiares que torceram por mim.
Aos mestres da cultura popular que foram colaboradores em toda a minha trajetória
de pesquisa, especialmente as rezadeiras Naldi, Lurdes e Cosma, cujas vozes-memórias são a
face desta pesquisa. A elas que dividiram comigo o seu tempo e a sua memória de vida, toda a
minha gratidão.
Aos mestres do Programa de Pós-Graduação em Letras que edificaram a base deste
trabalho com seus conhecimentos, os professores doutores Chales Ponte, Constatin Xypas,
Aparecida Costa, Manoel Freire, Gilton Sampaio, e todos que mesmo não tendo cursado suas
disciplinas, são incansáveis na luta pela qualidade do programa.
Ao meu orientador Prof. Dr. Sebastião Marques Cardoso que aceitou percorrer
comigo o longo caminho que atravessou o Atlântico negro até a comunidade do Quati, na
travessia da voz sagrada herdada dos antigos griots e perpetuada pelas rezadeiras e narradores
da cultura popular afro-brasileira.
Aos examinadores da qualificação professores Lílian Rodrigues e Roniê Rodrigues
pelas valiosas contribuições ao aprimoramento deste trabalho, e as membros da banca de
defesa os professores-doutores, Roniê, Lilian, Manoel Freire. Rosilda Alves, João Batista e
Savio Roberto pelas significativas contribuições e arguições.
Aos colegas de turma: Deda, Bevenuta, Érica, Mírian, Eliana, Elane, Jurema, Pedro,
pelo apoio e convívio.
À Elen por ter sido amiga e companheira de trabalhos, revisões, publicações, leituras,
pesquisas e desafios.
À Ana Luíza e Mateus André pelas encomendas envidas ao PPGL.
À Edneide por ter me acompanhado nas discussões pelas veredas da cultura popular
e na leitura de partes do trabalho.
A Rosamilton que se dispôs a fazer o abstract desta tese.
Aos colegas do Educandário Raízes do Saber pelo apoio no início do curso.
Á professora Solange Batista por ter sido a primeira guia das veredas afro-brasileiras
do Quati e da Lagoa do Mato, cicerone e oráculo desses caminhos míticos.
Aos amigos Jorge Cruz, George Cruz e Filipe Cavalcanti pela ajuda com as
filmagens durante a pesquisa de campo.
A todos os que fazem o Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus de Pau dos Ferros, pela luta
incansável na busca da qualidade acadêmica.
À Capes pelo apoio financeiro da bolsa para a execução desta pesquisa.
As histórias de vida estão povoadas de coisas perdidas que se daria tudo para encontrar: elas
sustentam nossa identidade, perdê-las é perder um pedaço da alma.
(Bosi, 2003, p. 27)
Conto: Pinóquio em Auschwitz
Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
Conceição Evaristo
(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).
FONSÊCA, C. L. C.da. Memória e identidade afro-brasileira nas histórias de vida das
rezadeiras negras do Quati. .167 f. Tese (Doutorado Acadêmico em Letras) - Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2019.
RESUMO
Esse trabalho busca compreender a relação entre as histórias de vida das rezadeiras negras da
comunidade do Quati, Naldi, Lurdes e Cosma, no município de Luís Gomes no estado do Rio
Grande do Norte (Brasil) com a elaboração de uma identidade cultural afro-brasileira. Para
esse estudo, baseamo-nos nos estudos pós-coloniais, nos estudos sobre a memória, a
identidade e as culturas populares. Quanto à pesquisa de campo, esta foi norteada pelos
pressupostos da história oral na esteria das reflexões de Portelli e foi utilizada mais
especificamente a técnica da história de vida que respeita os contextos de vida das
entrevistadas e lhes oportuniza a liberdade de narrar a partir das suas escolhas conforme
Queiroz. A memória das rezadeiras está elaborada a partir de uma histórica hibridização das
culturas portuguesa, indígena e africana que se miscigenaram culturalmente ao longo da
história do Brasil. Como uma cultura rizomática na compreensão de Deleuze e Guattari e na
leitura de Glissant, ela é tecida na conexão de muitas linhas de raízes de diversas culturas.
Numa atitude de resistência aos modelos dominadores impostos desde a colonização pelo
branco católico, as rezadeiras elaboram e reelaboram suas práticas e manifestações culturais,
que constroem suas identidades revestidas e pertencimento ao povo afrodescendente. Também
o seu ofício tem o sentido enquanto prática social no reconhecimento do seu grupo, o que
elabora coletivamente a sua identidade de rezadeira e de transmissora e praticante da cultura
popular afro-brasileira. Dessa forma, compreendemos que as histórias de vida das rezadeiras
negras do Quati participantes deste trabalho são narrativas não apenas pessoais, mas da
história, da memória coletiva e da identidade do seu grupo social.
Palavras-Chaves: Rezadeiras negras; Comunidade Quati/Lagoa do Mato; Histórias de vida;
Cultura popular; Identidade afro-brasileira.
FONSÊCA, C. L. C.da. Afro-Brazilian identity and memory in the life stories of black
women for praying of Quati. 167 p. Thesis (Doutorado Acadêmico em Letras) -
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2019.
ABSTRACT
This work aims to comprehend the relationship between the life stories of black woman for
praying of Quati community, Naldi, Lurdes and Cosma in Luis Gomes in Rio Grande do
Norte (Brazil) with the elaboration of an Afro-Brazilian cultural identity. For this research, we
base in the studies postcolonial, as well as, in the studies about memory, identity and popular
cultures. In relation to field research, it was directed by the assumptions of oral history in
reflection by Portelli, as well as, it was used the life history techniques that respects the
contexts of respondent’s lives and gives them the freedom to narrate from chooses according
to Queiroz. The memory of the woman for praying is elaborated from of a historical
hybridization of Portuguese, indigenous and African cultures that have been culturally mixed
race throughout the history of Brazil. As a rhizomatic culture in the understanding by Deleuze
and Guattari and in the reading by Glissant, it is woven in the connection of many rows of
roots of diverse cultures. In an attitude of resistance to dominant models imposed since
colonization by white Catholics, the woman for praying elaborate and rework their cultural
practices and manifestations, which build their identities and belonging to the afro-descendant
people. In addition, her mission has the meaning as a social practice in the recognition of her
group, which collectively elaborate her identity of woman for praying and of transmitter and
practitioner of Afro-Brazilian popular culture. Therefore, we understand that the life stories of
black woman for praying of Quati community that participated of this work are not only
personal narratives, but of the history, of the collective memory and of the identity of her
social group.
Keywords: Black woman for playing, Quati community/Lagoa do Mato, Life stories, Popular
culture, Afro-Brazilian identity.
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 11
2 CULTURA AFRO-BRASILEIRA, MEMÓRIA E IDENTIDADE ................................ 16
2.1 A cultura afro-brasileira: o despertar de um interesse ................................................... 16
2.2 A função social das rezadeiras na memória e identidade de um povo. ......................... 23
3 A PESQUISA DE CAMPO ................................................................................................. 45
3.1 A comunidade afro-brasileira do Quati .......................................................................... 45
3.2 A pesquisa de campo: vidas e histórias em vozes e letras .............................................. 59
3.3 Os caminhos da pesquisa: construindo histórias de vida ................................................ 71
4 VOZES NEGRAS DA MEMÓRIA: NARRATIVA E IDENTIDADE DAS
REZADEIRAS ........................................................................................................................ 76
4.1 O dom de ser rezadeira ................................................................................................... 76
4.2 As rezadeiras................................................................................................................... 88
4.3 Dona Naldi: entre rezas e memórias ............................................................................... 89
4.4 Dona Lurdes: um dom em que a pessoas acreditaram.................................................. 120
4.5 Dona Cosma: um serviço herdado e aprendido de suas ancestrais. ............................. 143
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 163
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 169
ANEXO 1 - Convenções utilizadas para a transcrição: ......................................................... 176
ANEXO 2 - Transcrição das entrevistas realizadas ............................................................... 177
FOTOS ................................................................................................................................... 194
11
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Atávica
Minha mãe me dava o peito e eu escutava,
o ouvido colado à fonte dos seus suspiros:
"Ô meu Deus, meu Jesus, misericórdia."
Comia leite e culpa de estar alegre quando fico.
Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço,
cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos,
as tristezas maravilhosas.
Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes
que dão gosto, meu Jesus misericórdia.
Por prazer da tristeza eu vivo alegre.
(ADÉLIA PRADO, 2006, p 45)
A comunidade de Quati está localizada no município de Luís Gomes, no Alto Oeste
do Estado do Rio Grande do Norte, distante cerca de cinco quilômetros da zona urbana. Seus
moradores são predominantemente remanescentes dos povos negros. O folclorista potiguar
Luís da Câmara Cascudo, ao estudar os nomes das terras potiguares, vilas, municípios e sítios
históricos apresenta a seguinte referência sobre esse lugar: “Quati: - Lugar em Luís Gomes.
De qua-ti, o que riscado ou lanhado, o que tem riscos pelo corpo (TS). Procionídeo com
muitas variedades, Na sua solitária” (CASCUDO, 2002, p. 118, grifos do autor). Dividida
geograficamente em duas por uma estrada carroçal que a corta, do lado direito é chamada de
Lagoa do Mato e do esquerdo de Quati com referência a saída da cidade de Luís Gomes para
a comunidade. O grupo social que constitui a população é predominantemente negro e ao
longo da sua história encontra nas práticas culturais uma forma de rememorar os seus
antepassados e reavivar a história da comunidade.
Quando as pessoas se referem a esse grupo social formado pelos povos negros, não
fazem essa separação geográfica e territorial, unem as diversas famílias de descendência negra
numa só denominação, os negros do Quati, independente de que lado ou localização tenham
nascido, o que nos mostra a complexidade da questão da identidade, não como um lugar de
nascimento, mas como uma cultura com a qual um grupo se identifica. Assim, se identificar
ou se sentir pertencente aos negros do Quati não se restringe a uma questão de raça ou de
ascendência familiar, mas de cultura. A população também é formada por brancos que
convivem com as práticas da cultura negra, frequentam as rezadeiras e fazem parte de
atividades como bandas de música afro-brasileira, como assim se denominavam, o grupo
“Afro-Serrano” por estarem localizados numa serra e conviverem num sentido de
pertencimento a essa cultura. Percebemos então que brancos e negros convivem nessa
comunidade como uma só nação, traço que manifesta resistência ao preconceito externo
12
contra esses povos, historicamente vindo da população urbana da sede do município e das
pessoas dos grandes centros e de maior poder aquisitivo.
O objetivo do nosso trabalho é compreender a elaboração de uma identidade afro-
brasileira das rezadeiras junto a sua comunidade, ao grupo social em que se inscrevem,
considerando a relação entre as suas rezas, as suas histórias de vida, e a memória social do
grupo. Memória esta que, ao longo da história, sofreu tentativas de silenciamento e neste
trabalho buscamos a sua compreensão pela voz de quem se faz representante do grupo,
narrador de sua memória e cultura constitutivas da identidade.
Possuir escravos era uma demonstração de poder para a as famílias brancas e donas
de fazendas. No seu livro de memórias, Chiquita Nunes Torquato (2012), ao relembrar o
passado de seus ancestrais em Luís Gomes, como seu avô o intendente João Filipe de
Andrade Nunes, comenta de forma sutil a presença dos ex-escravos na casa grande mesmo
após a abolição, como se fosse uma relação de amizade, compadrio e de bondade dos
senhores brancos em acolhê-los e não abandoná-los. O certo é que em troca das mínimas
condições de sobrevivência os negros continuavam a fazer as mesmas tarefas pesadas de
antes.
Numa sociedade historicamente dominada pelo homem branco, a cultura dos povos
negros ou afrodescendentes encontra obstáculos para a sua manutenção. Vista na maioria das
vezes de forma exótica, como uma cultura diferente da cultura de uma elite branca e como
uma sobrevivência do passado no presente a ser preservada para subordinação a uma elite
com uma postura e visão etnocêntrica, as rezas dos povos negros predominantemente foram
relegadas ao preconceito e ao silêncio. Assim pensamos seguindo a esteira de uma identidade
cultural proveniente deste caldo étnico em que o negro consegue conviver sem abdicar da sua
cultura e da sua história. Como sujeito de uma cultura própria, o negro realiza a transmissão
memorial da sua história por meio de bens simbólicos que não apenas a guarda, mas a reaviva
e dinamiza dentro de uma dinâmica e circularidade em que os seus rituais se deslocam e se
atualizam aos contextos sociais contemporâneos. Dentre esses rituais transmitidos pelos seus
ancestrais estão as rezas, as práticas culturais exercidas por mulheres negras geralmente
idosas e que negociam a sua identidade com o seu grupo social em que inscrevem a sua
história e a dos seus antepassados. Esse papel exercido no seio do grupo constituído
principalmente de remanescentes dos povos negros escravizados no passado elabora uma
função social de resistência. Estas não só reproduzem a história dos ancestrais por meio das
práticas e objetos culturais, como também reelaboram essas práticas que contribuem de forma
significativa para reforçar os laços de parentesco étnico e de identidade.
13
Apesar dos traços da religiosidade popular das rezadeiras do Quati se apresentarem
também como católicos, herança deixada pelos colonizadores portugueses brancos que
predomina em seu meio social, muitas vezes como se este fosse a sua face principal para
evitar preconceitos e perseguições, este fato não as impede de exercer no seu grupo a função
social herdada da religiosidade de seus antepassados e nem as pessoas da religião
predominante deixam de procurá-las e visitá-las, de fazer seus pedidos de orações. Essas
práticas durante a colonização foram consideradas como bruxaria, feitiçaria e como uma
religião diabólica por não estarem inscritas no discurso centralizador católico. Pessoas da
comunidade de Quati, das comunidades vizinhas e da cidade procuram suas rezas sem deixar
sua vivência do catolicismo, numa relação de diálogo e sincretismo tão característica em um
país multicultural como o Brasil. Assim, as rezadeiras exercem sua função como resistência
de sua identidade e da identidade étnica e cultural do seu povo (RESENDE; SOUZA, 2005).
Esse sincretismo tão marcante na cultura brasileira é visível de maneira significativa no Quati,
que permite às rezadeiras e ao seu grupo se revestirem também de uma identidade católica,
mas sem perder de vista os vínculos e laços com a religiosidade africana. O hibridismo
cultural e religioso se dá na fusão que ocorre entre a religião do colonizador e as práticas,
crenças e rituais dos colonizados. Nesse cruzamento se encontram as rezas e as narrativas de
vida das rezadeiras. As rezas são saberes populares trazidos por seus ancestrais e que se
constituem como características afro-brasileiras da comunidade que conferem ao Quati uma
identidade própria, diferente das outras comunidades rurais do lugar.
A memória e o exercício das rezas conferem às rezadeiras e ao povo do lugar uma
identidade cultural afro-brasileira, como também essa prática e sua transmissão se constituiu
como uma forma de resistência aos traumas históricos pelos quais passaram os seus
antepassados diante da dominação e da descaracterização de sua cultura. A partir dessa
resistência essas rezas se reelaboram e se ressignificaram numa “reapropriação dos padrões da
dominação” (OLIVEIRA, 2003, p. 31). É nesse ponto híbrido e complexo que buscamos
reconhecer a elaboração de suas identidades enquanto agentes da cultura popular do seu povo
e sujeitos que se reconhecem membros não somente étnicos do grupo social do Quati, mas
agentes culturais representativos dos afrodescendentes que contribuíram para a formação da
nossa cultura brasileira.
A função social das rezadeiras persiste desde os tempos da colonização, quando
realizada nas senzalas na maior parte das vezes entre os próprios negros sem a participação
dos brancos e também às escondidas por medo dos senhores e da perseguição da Igreja
Católica. Essas mulheres moradoras do Quati são remanescentes dos antigos escravos e
14
mantêm reavivadas as tradições dos antepassados e as mais velhas são as principais
responsáveis não só pelo exercício das práticas culturais, no caso as rezas, as orações e os
benzimentos, mas pela transmissão memorial desta tradição e da história do seu povo através
da oralidade.
Os velhos desde as tribos primitivas foram considerados os guardiões da cultura e a
sabedoria do seu povo, o responsável pela transmissão das tradições e pela continuação por
meio do ensinamento às novas gerações. Por meio da memória dos velhos do grupo, no caso
representada pelas rezadeiras, a criança como também os adultos recebem do passado o
legado cultural dos seus ancestrais, têm acesso por meio da oralidade aos acontecimentos da
história do seu povo que não se encontram na história escrita e cujo conhecimento se torna
possível por meio dessa socialização inserida nas suas raízes, nas histórias vividas dos
narradores. Somente nessa interação ultrapassam uma capacidade abstrata para lidar com os
dados do passado e passam a ter o sentido de memória, conforme Ecléa Bosi (1997). Dessa
forma, as crianças da comunidade ao frequentar as casas das rezadeiras sozinhas ou
acompanhadas dos seus pais não só têm acesso à prática cultural das rezas, mas um contato
maior com o passado do seu povo, as histórias e as tradições, pois também ouvem histórias,
conselhos e ensinamentos.
As rezas se constituem como práticas que trazem o passado para a comunidade não
de forma estática, preservada como um artefato folclórico e sobrevivente de forma deslocada,
mas é uma atividade inscrita no cotidiano, como uma das tarefas da rotina diária dessas
mulheres e das pessoas que a procuram para rezar. Quando os jovens e as crianças participam
das rezas, constroem de forma positiva a sua identidade negra e se integram a esse universo
reafirmando a sua cultura. Dessa forma, as rezadeiras são agentes significativos da cultura da
comunidade cuja elaboração da identidade interage com sua voz-memória.
A pesquisa de campo que originou o corpus deste trabalho foi norteada pelos
referenciais da história oral, sua ética e respeito às rezadeiras entrevistadas enquanto sujeitos
históricos que possuem a complexidade de sua trajetória de vida firmada em acontecimentos
que marcaram as suas histórias. E na apreensão destas utilizamos mais especificamente a
técnica da história de vida conforme foi apresentada por Queiroz (1991) com sua perpectiva
de caráter antroplógico que permitiu ás rezadeiras a liberdade de narrar e silenciar a partir das
suas escolhas.
Para isso, este trabalho se divide em capítulo 1, com as considerações iniciais, três
capítulos de contextualização da pesquisa, metodologia e análise, e o último com as
considerações finais. No capítulo 2, intitulado Cultura afro-brasileira, memória e identidade,
15
rememoraremos o despertar do nosso interesse pela cultura dos povos afrodescendentes da
comunidade do Quati, a influência e a importância do trabalho escolar sobre a cultura popular
e a relação destas experiências com a elaboração deste trabalho. O surgimento da nossa ênfase
sobre as rezadeiras, principalmente as rezadeiras negras desta comunidade, e a escolha das
colaboradoras dessa pesquisa estão ancorados em sua relação com a identidade cultural e a
memória coletiva da comunidade onde sua função social se inscreve.
No capítulo 3, A pesquisa de campo, discutimos o percurso teórico-metodológico do
trabalho, a importância da história oral e da técnica da história de vida para apreensão da
literatura e da cultura orais das rezadeiras, além do relato das entrevistas e dos pontos
significativos da pesquisa de campo, suas dificuldades e a importância da história de vida no
trabalho com a memória.
No capítulo 4, Vozes negras da memória: narrativa e identidade das rezadeiras,
traçamos a análise do corpus através das categorias escolhidas para este trabalho que são:
memória, identidade afro-brasileira, rezas e história de vida, buscando apreender como se
constituem as relações entre a função social da rezadeira no seu grupo, a memória dos seus
ancestrais e o laço identitário tecido por meio das suas manifestações culturais e dos bens
simbólicos de que são agentes e as suas histórias de vida. Assim, compreendemos que as suas
rezas e benzimentos envolvidos na sua voz-memória popular estão inseridos na história da
comunidade, nas práticas cotidianas, na interação com o grupo social com o qual convivem e
de que forma as suas histórias de vida se inscrevem na identidade cultural e na memória do
seu povo.
Investigar as manifestações da cultura afro-brasileira a partir da voz de seus agentes é
compreender não apenas como ocorreu o processo de hibridização entre a cultura africana
trazida dos ancestrais escravizados em terras brasileiras e a cultura germinada aqui com a
mistura com o catolicismo branco e a cultura indígena, mas o papel social das rezadeiras no
cerne do seu grupo social. Assim, as rezas inscritas nas histórias de vida e a função social das
rezadeiras negras nos conduzem a essa reflexão sobre a elaboração de uma cultura afro-
brasileira resultado desse diálogo e de como as características ancestrais se reelaboraram a
partir de novos contextos.
16
2 CULTURA AFRO-BRASILEIRA, MEMÓRIA E IDENTIDADE
Maricota era preta e magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta
de cada trancinha. Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de responder. Ele tem
feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado. Estava sabendo também que quando ela
ia encontrar o trapezista, soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como
um sol negro. Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo com
asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as asas dos outros anjos
eram de papel crepom.
— Corta mais cana, pedi e ela levantou-se enfurecida: Pensa que sou sua escrava, pensa? A
escravidão já acabou!, ficou resmungando enquanto começou a procurar em redor, estava sempre
procurando alguma coisa e eu saía atrás procurando também, a diferença é que ela sabia o que
estava procurando, uma manga madura? Jabuticaba? Eu já tinha perguntado ao meu pai o que era
isso, escravidão. Mas ele soprou a fumaça para o céu (dessa vez fumava um cigarro de palha) e
começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros presos em correntes e que
ficavam chamando por Deus. Deus, eu repeti quando ele parou de recitar. Fiz que sim com a cabeça e
fui saindo, Agora já sei.
(Lygia Fagundes Telles, 2000, p.9)
2.1 A cultura afro-brasileira: o despertar de um interesse
A cultura afro-brasileira adentrou os espaços escolares por meio da proposição de
uma lei. Essa construção ocorreu a partir da orientação dada pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana, constituídas em 2004. Como também os Parâmetros Curriculares
Nacionais, de 1997, e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, sugeriram que o legado
cultural afro-brasileiro fosse trazido às salas de aula bem como a história desses povos em seu
continente de origem. Como avanço maior, tivemos a promulgação da lei 10.639/03, que
altera as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". A relação histórica
e cultural entre o Brasil e os Países do Continente Africano constrói uma identidade pela
importância desse laço histórico, cujo intercâmbio é enriquecedor para todos. Para o
movimento negro organizado, essas mudanças são o resultado da reivindicação das pessoas
que lutaram pelo reconhecimento da sua história e da sua cultura.
Apesar desse avanço gradativo da inserção do ensino de história e cultura africana e
afro-brasileira, o meu contato com universo narrativo do Quati ocorreu na escola
anteriormente a lei de 2004, experiência relatada no artigo “O ensino da literatura afro-
brasileira: relatos de experiência” (SILVA; FONSÊCA, 2017) em que narramos a atuação de
uma professora em suas aulas de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira em que inseriu a
cultura popular dos agentes populares do Quati em comparação com a literatura escrita.
17
Essa cultura é predominantemente vista como exótica, folclórica, principalmente por
parte de quem não é negro, ficando muitas vezes limitada a sua abordagem as datas
comemorativas como o dia 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, e o dia 20 de
novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Não que trabalhar a cultura afro-brasileira
não seja necessário, mas a sua compreensão deve ir além desses momentos. Assim, a visão de
que se trata de uma sobrevivência do passado num presente cada vez mais desfocado é
geradora da visão estereotipada. Porém, foi na sala de aula que a cultura afro-brasileira me
chegou, sem a necessidade da imposição da lei, por uma atitude de respeito e reconhecimento
da importância dessa cultura por parte de uma professora, cujo reconhecimento dos legados
africano e afro-brasileiro serve de exemplo aos outros professores e se fosse difundido na
educação não haveria a necessidade da lei. A prática da professora Solange Batista da Silva
quebrou a compreensão inadequada de que a cultura ligada à África e ao negro seja revestida
de negatividade.
Nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio com a professora Solange nos foi
apresentada uma cultura tão próxima geograficamente da cidade de Luís Gomes onde vivia
como distante em termos de conhecimento e de aproximação. Em suas aulas narrava as
histórias do povo do Quati, um povo negro marcado por uma cultura singular, própria, em que
narradores transmitiam pela oralidade a sua história, o legado dos seus antepassados negros e
onde falar ou perguntar sobre a escravidão era um assunto proibido e doloroso. Membros da
comunidade, como a senhora Mexica, sempre que perguntada sobre a escravidão se aborrecia
e mudava de assunto, como afirmava a professora Solange que nasceu e cresceu na mesma
comunidade, na Lagoa do Mato, e apesar disso não encontrava abertura para esses
questionamentos.
O poeta popular Joaquim Alves de Fontes, conhecido como Joaquim de Benvinda,
em entrevista a nós alunos do Ensino Médio contava que a memória de sofrimentos da época
da escravidão, de marcas físicas de castigos e capturas eram o motivo deste silêncio. Assim
compreendemos quando Paul Gilroy, em sua obra O Atlântico Negro (2001), reflete que, na
dinâmica das culturas e das identidades negras do Atlântico, estas não se dissociam da
experiência da escravidão como marco das suas histórias. Porém, a professora insistiu em
trabalhar a cultura do povo do Quati, em trazê-la à sala de aula e nas aulas de Literatura
Brasileira encontrava a oportunidade para relacionar a literatura erudita com a popular, em
que se inscreviam os agentes do Quati como rezadeiras e contadores de histórias. Narrava do
seu orgulho em ter como madrinha de fogueira a senhora Maria Nova, citada na epígrafe
18
inicial deste trabalho, uma das vozes mais significativas daquela comunidade e de ter crescido
em meio às rezas, devoções, brincadeiras, farinhadas, convivendo com os povos
afrodescendentes e aprendendo com a sua cultura.
A presença negra na formação da população do município de Luis Gomes é marcante
desde a sua fundação quando o tenente-coronel Luís Gomes de Medeiros vindo de Caicó
encontrou a serra onde se localiza o município e deixou as terras aos cuidados do escravo
Jacó, fato presente na tradição oral e na bibliografia sobre a origem do município
(CARVALHO, 2010). Mesmo a presença negra sendo fundadora do município, pouco desta
cultura passava por um processo de reconhecimento por parte da escola e de pesquisadores.
No viés mais histórico e documental desse passado, há no Centro de Cultura Popular
“Escravo Jacó”, no acervo do professor Luciano Pinheiro de Almeida, cartas de alforria do
município, relatos sobre escravos do município, como do escravo Biró do sítio Monte Alegre
que foi torturado e enterrado vivo pelo seu dono Brequenfeld ao ser acusado de se relacionar
com a sua dona, a senhora Mariana, informações acompanhadas de uma pequena descrição da
presença negra no sítio Lagoa do Mato com a hipótese de que esta comunidade juntamente
com o Quati tenha sido um Quilombo, fato nunca comprovado por meio de uma pesquisa
antropológica. Esse pequeno acervo não é o suficiente para reavivar a história e a memória
dos povos negros do município, suas histórias de vida, sua cultura, apenas ilustram a ausência
de um trabalho mais aprofundado sobre essas comunidades e apresentam os símbolos do
poder colonizador, da escravidão, das torturas pelo olhar ainda da hegemonia branca, ao invés
de um acervo representativo da identidade dos indivíduos, de seu próprio reconhecimento
identitário.
Além dessas experiências escolares, a leitura de obras memorialistas sobre o
município de Luís Gomes e a região me despertou para as dificuldades em abordar a cultura
afro-brasileira dos povos negros do Quati, pois o olhar hegemônico das elites brancas
prevalece na visão que se construiu sobre esses povos, na história vista de cima.
Os negros foram historicamente discriminados pelas elites brancas. No município de
Luís Gomes, no Rio Grande do Norte, os negros, denominados “negros do Quati”,
constituem-se como o povo que sofreu uma espécie de segregação racial e social. Esse fato da
história dos negros também está representado simbolicamente em algumas produções
literárias. Mesmo após a abolição, muitos negros continuaram trabalhando para os
descendentes dos antigos donos dos seus antepassados, num regime de exploração não muito
diferente da escravidão, tendo a sua cultura e religiosidade desrespeitadas. Como podemos
ver, há uma situação semelhante na obra “Menino de Engenho” (2009), de José Lins do Rêgo,
19
na naturalidade com que o narrador apresenta o fato de que as “negras do meu avô”
continuaram no engenho trabalhando de graça e em troca ganhando de comer e de vestir.
As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no
engenho, não deixaram a rua como elas chamavam a senzala. E ali foram
morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa, Galdina
e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas
trabalhavam com a mesma alegria da escravidão (REGO, 2009, p. 49).
Esta cordialidade foi descrita por Sérgio Buarque de Holanda, na obra “Raízes do
Brasil” (1995), e tanto na literatura de José Lins como na produção dos escritores
memorialistas do município de Luís Gomes comentadas neste trabalho, podemos perceber
ironicamente certo carinho do senhor pelo escravo que lhe serve bem, com a mesma alegria
da escravidão.
Na literatura historiográfica e memorialista da região do Alto Oeste potiguar e do
município de Luís Gomes, os negros foram citados e apresentados como serviçais, pessoas da
cozinha, que exerciam somente os trabalhos braçais e pesados da Casa-Grande dos seus
senhores, e que mesmo após a abolição, continuaram a servir aos brancos como seus patrões e
donos das terras onde moravam e trabalhavam, como relata Chiquita Nunes Torquato (2012) e
seu livro de memórias.
O jornalista Gaudêncio Torquato, ao abordar os descendentes dos povos negros do
Quati e do município, que trabalhavam para sua família, apresenta-os identificados apenas
como empregados, e reconhecidos pelo que produziam, não por sua história de vida e por sua
cultura e memória, numa relação de dominação e de superioridade de classes e de etnias,
como podemos ler a seguir:
Doca, estampa negra de cozinheira e mulher faceira, fazendo os quitutes
caseiros, abraçava-nos, comovida, sempre que recebia ganhava uns troco.
Era cheia de agrados, principalmente tapioca quentinha, que nos dava com
muito gosto. Alzira, que de auxiliar se tornou a chefe da cozinha, fiel e
atenciosa, se preocupava mais com a educação de minha irmã Sara. Imagem
forte é a de Marola, cabelos fartos, divididos em duas bandas, sempre
arrumados, que serviam de base para aguentar imensas trouxas de roupa,
tanto a suja, que levava para lavar, como a limpa, que trazia para engomar.
Por uns tempos, dona Chiquita, por conta de uma longa viagem, teve de
ouvir na volta a criança, Débora, referir-se a Marola como “mãe”.
A “veia” Tomásia, cara da mãe-África, que adorava pitar um cachimbinho:
sua filha, Chica, engomadeira, mãe de uma grande prole que tanto ajudou a
nossa casa, como os serviços do meu pai nas terras do São João, perto da
bolandeira (casa de farinha) onde moravam. A velha Bernardina, Bebi, mãe
de Marola, Augusta e Maria, cabelos ranos e desgrenhados, sempre sentada
20
no chão ou num banco baixinho, melhor maneira para descansar o corpanzil.
Trabalhou com meu pai desde 1916, desde o início da sua vida em Luís
Gomes, ficando conosco até morrer. Era ela quem supria nossa farta mesa
com as melhores linguiças da região.
Eram pessoas afeitas às tarefas da nossa casa, acostumadas ao jeitão do
velho e aos cuidados de dona Chiquita. Estavam sempre por ali nos servindo,
atendendo aos nossos pedidos, fazendo troças e brincadeiras, cercando-nos
de amizade, carinho, solidariedade e, também, cumplicidade (um petisco
escondido, um quitute a mais) (TORQUATO, G. 2008, p. 85-86).
Neste sentido, a identidade dessas mulheres citadas, para o autor, restringe-se as suas
atividades domésticas, a culinária que produziam e que integrava a mesa farta dos patrões, e
não a sua cultura, memória e histórias de vida. A relação de poder entre patrões e empregadas
negras é abordada de forma sutil, como se fosse permeada de “carinho e amizade”, e não de
dominação, em que uma cultura se sobrepõe à outra. Dessa forma, está subjacente que estas
mulheres negras exerciam um trabalho mal remunerado, embora o jornalista e memorialista
queira apresentar uma ideia de naturalidade nessa exploração, como se esta relação de poder
devesse continuar, mesmo após a abolição da escravatura, numa ideologia ainda de senhor
para escravo.
Clóvis Moura (2000) quando escreve o termo cordialidade étnica, aborda a nossa
postura e o nosso comportamento com o negro, estes revestidos de fraternidade e de
democracia. Nessa crítica, o autor reflete que o negro é louvado pelo seu trabalho e sacrifício,
pela sua contribuição à pátria, mas sua escolha, por exemplo, como símbolo nacional ser tão
afastada dos padrões estéticos predominantes é contraditória. Para o autor, a postura
predominante no Brasil era de que o negro é igual desde que esteja em seu devido lugar, no
seu lugar invisível. Ele cita e comenta um fato ocorrido em 1941, quando um general escreveu
ao Ministro da Educação, em questão Gustavo Capanema, sobre a presença de artistas negros
em cassinos brasileiros e que, diante de turistas eram tratados como “símbolo nacional”, como
uma espécie de tipo nacional e padrão brasileiro diante de turistas estrangeiros. Nessa
encenação, até mesmo uma branca se metamorfoseou em negra, o que o general considerou
absurdo, ao contrário de se relembrar a dignidade das mães pretas e dos trabalhadores
escravos enquanto contribuidores em terras brasileiras, conforme o general reflete em sua
carta. Segundo Moura, esse “racismo invisível brasileiro” (2000, p. 25) se encontra em todos
os lugares e manifestações, subjacente e disfarçado de normal nas atitudes coletivas dos
brasileiros. Assim:
21
O negro é para estar na cozinha, no campo trabalhando, nas favelas, nas
penitenciárias, nos lugares feitos para escondê-lo da nossa realidade. Mas, a
presença do negro como agente histórico e social da nossa realidade
machuca e incomoda não apenas a elite branca, mas muito não-branco que
interiorizou esta postura racista da nossa sociedade (MOURA, 2000, p. 25).
É esse o lugar “invisível” denunciado por Moura ao escolher esse adjetivo e que o
negro ocupa no relato de memórias de Gaudêncio Torquato, a cozinha, onde sua presença
enquanto agente histórico não tem espaço. No livro de memórias da mãe do jornalista, ela
relembra o período pós-abolição, pensando na mesma esteira desse autor citado
anteriormente, numa relação de poder em que o negro liberto continuava a servir na casa do
seu antigo senhor e dono. Subjaz a ideia de bondade dos senhores, como se fosse uma
caridade permitir essa permanência, e não uma atitude para usufruir dos serviços dos ex-
escravos:
O tenente fixou inicialmente as suas moradas em Luís Gomes e no Sítio
Monte Alegre, que era para ele, um lazer, com muitas fruteiras, muita cana
de açúcar, engenhos para fabricação de rapaduras e bolandeiras para
fabricação de farinha e goma. Ele lutava com muita gente, tinha vários
escravos. Eu me lembro muito bem de uma escrava, que permaneceu na
Casa Grande. Após a morte do meu avô, ela que se chamava Ursulina, me
levava muito nos seus braços (TORQUATO, C. N., 2012, p. 19).
Sabemos que a cultura negra, ao longo do tempo foi vista, e em muitos aspectos
ainda o é, como uma cultura inferior à do branco, sua religiosidade considerada demoníaca
por não fazer parte do discurso de centro da Igreja Católica. Podemos perceber o sincretismo
e a associação dos orixás dos negros aos santos católicos como uma hibridização necessária à
sobrevivência e à aceitação da religiosidade negra. Historicamente, há um esforço para apagar
as raízes africanas da cultura brasileira, abordando o negro a partir de um olhar e de uma
perspectiva europeia, branca e dominante, e conforme citamos o pensamento do jornalista
Gaudêncio Torquato, enquanto representativo da postura social diante do negro, esse é
colocado como um personagem social folclórico, alheio a sua realidade e condição étnico-
racial, e ao problema histórico que carrega. Esse fato nos mostra que a visão do negro
apresentada por autores brancos, como o jornalista em questão, é baseada em estereótipos,
resultado de uma “branquitude hegemônica”, como afirma Duarte (2012, p. 9). Pensando na
esteira do professor citado, é pertinente um olhar sobre a cultura negra a partir da sua
memória, da sua condição ética e social, o que pode contribuir para se tratar a cultura negra
22
em sua plenitude. Dessa forma não se trata de enxergá-la numa postura panfletária, nem
reduzindo-a a uma cultura de excluídos que necessita ser resgatada por compaixão.
O jornalista Franklin Jorge, em sua obra O Livro dos Afiguraves (2015), reúne
memórias literárias que resultaram de uma longa pesquisa etnográfica e de entrevistas em que
buscou incluir uma diversidade de vozes. Nas memórias de Dona Chiquita Torquato, presente
no livro de Franklin Jorge, a sua voz enquanto narradora restringe mais uma vez a identidade
da negra Bernardina a uma mera empregada, como as negras do avô do menino de engenho
Carlinhos na obra Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo. O ponto de vista de dona
Chiquita em O Livro dos Afiguraves confirma o tom senhorial presente também no seu
próprio livro de memórias e no livro de memórias escrito por seu filho Gaudêncio Torquato,
já citados e discutidos anteriormente neste capítulo. Vejamos:
A casa vivia cheia. Durante as festas da padroeira almoçavam, em nossa
casa, uma média de 120 pessoas, todos os dias. Havia uma pessoa só para
lavar a louça e às vezes não dava conta do serviço. Tínhamos uma
empregada, a negra Bernardina, só para preparar as carnes consumidas em
casa (JORGE, 2015, p. 140).
Em sua obra, o jornalista dá voz a vários personagens populares negros, pessoas
reais, que, ao serem entrevistados, se tornaram personagens literários, no sentido de
representativos simbólicos de sua sociedade. O autor, ao ouvir e dar voz aos membros das
comunidades afro-brasileiras, realiza, ao contrário dos outros livros memorialistas já citados
neste trabalho, o que segundo Rodrigues (2008, p. 35), os estudos da literatura popular
buscam compreender “um tecido narrativo, resultado de um viver, que garante ao indivíduo
uma identidade”. O jornalista Franklin Jorge também ouviu a senhora Joana D’Arc Lopes,
conhecida como Joanita, que assumia sua identidade afro-brasileira e afirmou na entrevista
transformada em memórias pelo jornalista: “Sou uma negra que não gosta de adular ninguém.
Já o homem que adula não merece confiança” (JORGE, 2015, p. 41). Em outra passagem de
sua voz-memória, no início da entrevista transformada em crônica pelo autor, a entrevistada
afirmou “Não gosto de fuxico nem de conversar besteira, apresenta-se num rompante. Toda
conversa minha é curta. Não faço floreios nem rapapés” (JORGE, 2015, p. 41). O autor e
entrevistador dos “afiguraves”, isto é, de pessoas marcantes na história e na cultura do
município de Luís Gomes, lhes dá voz, pois Joanita como era conhecida popularmente,
mulher negra e de identidade marcada pela resistência ao preconceito social e racial se
apresenta em ruptura com a submissão histórica dos povos afrodescendentes. Não adular
ninguém é não servir a hegemonia branca, por isso sua resistência na entrevista.
23
O autor também relata a cultura dos negros moradores da Rua do Cachimbo Eterno,
na cidade de Luís Gomes, afastada do centro habitado pelos brancos. Esses negros tinham nos
versos de improviso do maracatu a sua cultura de resistência, em que glosavam os
acontecimentos históricos e sociais e criticavam as elites brancas, por exemplo. O autor
buscou esses personagens negros reais para apresentá-los por meio de suas próprias vozes,
como se reconheciam e como suas histórias de vida trazem as marcas do apartheid social que
sofreram.
Assim, a literatura de memória da região escrita por autores brancos, com exceção da
obra de Franklin Jorge que dá voz aos negros, apresenta a cultura afro-brasileira marcada pelo
viés folclórico, como se fosse normal os anos de servidão, o tratamento de uma cultura
simplificada apenas como braço, força de trabalho no campo e na cozinha mesmo muitos anos
depois da abolição. Compreender a cultura afro-brasileira iluminando o seu reconhecimento
através das vozes de seus agentes mais representativos é contribuir com o reconhecimento dos
povos negros como formadores da identidade nacional e suas manifestações, numa construção
que é tecida por suas histórias de vida.
2.2 A função social das rezadeiras na memória e identidade de um povo
Ao tratarmos das questões de memória e de identidade a partir das relações tecidas
entre os sujeitos e agentes da cultura popular afro-brasileira, mais especificamente as
rezadeiras das comunidades negras, o nosso trabalho busca uma compreensão dessa cultura
negra e da construção de uma identidade afro-brasileira. Assim a nossa perspectiva quer
envolver as rezadeiras do Quati e os outros moradores e membros do seu grupo social em um
reconhecimento das suas raízes, por meio da oportunidade de rememorar suas histórias de
vida e a memória do grupo. Nas histórias de vida das rezadeiras negras, na memória
transmitida por essas agentes pelo veio da oralidade, essas manifestações nos mostram a
dinâmica da cultura e do sentido de pertencimento que se reelaboram em diferentes
temporalidades e contextos.
Apesar da modernidade em que vivemos com a relativização das relações humanas,
em que muitos refletem o fim das manifestações da cultura popular, principalmente as que
pertencem ao campo da oralidade, de uma realidade dominada pela escrita e pelo eletrônico e
virtual e dos avanços da medicina moderna, por exemplo, os ritos, benzimentos e rezas
continuam a ser procurados pelos membros do grupo social do qual faz parte a rezadeira. Essa
prática popular rememora o saber ancestral dos griots, o guardião reconhecido pelo seu grupo
24
e responsável pela transmissão memorial. As rezas, revestidas de uma atmosfera humana e
sagrada, são procuradas pelas pessoas ao final do dia de trabalho pesado ou num momento de
aflição e necessidade, se inscrevem nas práticas cotidianas de trabalho, de descanso, de
solidariedade. Assim, podemos perceber que a modernidade dialoga com as práticas
populares. Essa ressignificação das tradições ancestrais é o que ocorre com os rituais das rezas
herdados dos antepassados africanos e dos negros já nascidos no Brasil, que sobrevivem não
só em pequenos municípios do interior do Brasil, como o que será pesquisado neste trabalho,
mas também em grandes centros como Salvador, na Bahia. Isso nos é explicado por Ayala &
Ayala em seu livro Cultura popular no Brasil quando argumentam que os novos contextos
sociais não necessariamente extinguem as práticas culturais populares, mas as transformam.
Em suas palavras:
As práticas culturais populares, na verdade, se modificam, juntamente com o
contexto social em que estão inseridas, sem que isso implique
necessariamente sua extinção. Apesar disso, muitos estudiosos, até hoje,
continuam acreditando em seu iminente desaparecimento (AYALA &
AYALA, 1987, p. 20)
Numa cultura ocidentalizada como a nossa, com uma visão dominante sobre as
manifestações populares afro-brasileiras, que apesar de ser inscrita como uma cultura
brasileira e integrante da identidade nacional, estas são vistas como primitivas, exóticas, uma
sobrevivência de um passado distante e remoto num presente moderno e avançado. Porém, a
lógica social que rege as culturas populares se faz pela necessidade, seja esta de conforto
material ou espiritual. Como as manifestações da cultura e da literatura orais populares não
podem ser dissociadas dos contextos em que estão inscritos e fazem sentido, as rezas e
benzimentos das rezadeiras não são produtos isolados de suas histórias de vida, mas
pertencem ao agente que o pratica e à comunidade que o recebe.
Nessa dialética, ao abordar as diferentes temporalidades da literatura oral popular,
Ayala (2002) ressalta que os bens culturais estão inseridos em seus contextos de produção e
que estes se revestem do viés comunitário do tempo, ou seja, um cotidiano simbólico que
atribui sentido às visões de mundo presentes em momentos de trabalho, de festas e de
devoção. Nesse convívio aparentemente harmonioso, a herança cultural e religiosa trazida da
África sofreu perseguições e silenciamentos. Porém essa convivência não foi e nem é
harmoniosa, pois os sujeitos colonizados foram no passado coagidos pela ordem
(GLISSANT, 2014) e o catolicismo foi uma forma de silenciá-los. Embora exista uma
interação entre tradição e modernidade, entre os saberes ancestrais e as mídias, sabemos que
25
essa troca se fez numa relação de dominação da cultura do colonizador e de resistência do
colonizado. As tecnologias chegam e influenciam as práticas das rezadeiras e de outros
agentes das culturas populares. Pude presenciar uma das minhas rezadeiras colaboradoras
assistir as novenas do Divino Pai Eterno pela Rede Vida de Televisão. Assim os bens de
consumo midiáticos podem influenciar sua religiosidade, pois estão a serviço das práticas
oficiais cristãs, como é o caso das redes católicas, isto é, no contato com a tecnologia essas
tradições se reelaboram.
Assim refletimos sobre o processo de globalização em que “Com o papel que a
informação e a comunicação alcançaram em todos os aspectos da vida social, o cotidiano de
todas as pessoas se enriquece de novas dimensões” (SANTOS, M., 2006a, p. 217). Para o
geógrafo citado a informação midiática alcança as pessoas em todos os aspectos do seu
cotidiano, como no caso a religiosidade das rezadeiras. Essa é a compreensão das relações
entre o espaço geográfico e a globalização pensada para o Milton Santos. A cultura midiática
se torna um dos elementos que exerce influência sobre a cultura popular, e pode lhe
acrescentar novas dimensões e novas informações que contribuam para a reelaboração das
manifestações vivenciadas no seio do grupo, muitas vezes numa tentativa da mídia de se
sobrepor a essa cultura com o acréscimo de novos pontos de vista.
Esses fatos nos mostram como a atuação das rezadeiras apresenta marcas de
resistência e de contestação à cultura dominante. Maria Ignez Novais Ayala também ressalta
que “Há muito tempo é difícil, eu diria impossível, descobrir alguém no Brasil que participe
exclusivamente de uma única cultura, seja ela popular, cabocla, indígena, por mais
aparentemente isolada que esteja” (2002, p.1). Assim, o isolamento das rezadeiras é apenas
aparente, elas conseguem dialogar também com a cultura midiática embora nem sempre isso
ocorra sem prejuízo para a sua cultura.
As rezas estabelecem uma significativa interação entre as diferentes gerações do
grupo através da transmissão memorial de uma sabedoria ancestral que dá coesão à
comunidade. Seguindo a esteira do pensamento de Zumthor (2001, p.139), a função social das
rezadeiras se assemelha a dos poetas porque por meio das suas manifestações orais em que “A
voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia
sobreviver”. Essa coesão e sobrevivência, principalmente de uma cultura diaspórica e
historicamente escravizada encontra nas vozes das rezadeiras uma âncora, um porto seguro
que permite a transmissão das manifestações culturais e bens simbólicos próprios da
identidade cultural negra. Como parte integrante da literatura oral do Quati, as rezas se
26
misturam às narrativas de vida das rezadeiras, e no momento social propício à essa
manifestação cultural, as rezadeiras transmitem a sua vivência, as suas experiências. Vejamos:
No caso da literatura oral, dá-se conselho, narra-se experiência de vida,
contam-se casos exemplares, utilizam-se adivinhas para estimular a
inteligência, atenção e rapidez das crianças, valendo-se do imaginário, de
recursos mnemônicos e outras sabedorias tidas como necessárias para bem
educar e estabelecer formas de comunicação com pessoas de gerações
diferentes (AYALA, 2002, p.1).
No contexto em que as produções da cultura popular são representações simbólico-
sociais da vida de seus produtores ou agentes, o nosso trabalho se inscreve na compreensão de
que a identidade das rezadeiras do Quati se constrói na sua representação através dos rituais
das rezas, orações e benzimentos, da memória e da história do grupo e como estas estão
subjacentes em suas histórias de vida. Observamos também o espaço social onde se situam os
rituais negros. Nesse sentido tentamos perceber como as narrativas de vida das rezaderias se
integram ao espaço social da comunidade em que atuam.
A atuação das rezadeiras negras não se restringe apenas ao caráter local e regional
dos rituais e da cultura negra dos povos do Quati, mas está envolvida numa compreensão
identitária mais ampla, de uma identidade construída entre a cultura negra herdada dos
africanos e a cultura brasileira tão híbrida e tecida com a contribuição de muitos povos e
culturas diversas, numa perspectiva de interpretar o viés afro-brasileiro do grupo, sua relação
com a história e as memórias dos antepassados negros num viés intercultural.
Assim, percebemos um diálogo entre a modernidade e a cultura popular, não sendo
necessário que uma exista em consequência da invalidação da outra, embora a cultura
dominada busque formas de resistência nesse diálogo marcadamente desigual. Nesse sentido,
as rezas se inscrevem nas práticas cotidianas dos grupos minoritários e na ritualização das
atividades diárias de trabalho e de folguedo, obedecendo a um tempo marcadamente
simbólico em que há o momento certo para determinadas tarefas e o momento de parar para
rezar. Como próximo ao anoitecer quando as rezadeiras deixam seus afazeres domésticos e da
roça para atender as pessoas que as procuram. Estas pessoas também param as suas atividades
para receber as rezas e benzimentos. As rezas dão sentido às tarefas diárias e marcam também
o calendário simbólico do ano, os dias da semana em que se praticam determinadas rezas e
rituais, o respeito ao período quaresmal, ao mês de maio e aos dias de santos, o que nos
mostra a histórica dominação do colonizador sobre a religiosidade herdada dos antepassados.
O Calendário Litúrgico da Igreja Católica Romana se transplantou culturalmente sobre os
27
traços africanos pela presença da herança portuguesa. As práticas herdadas precisaram ser
ressignificadas de acordo com os atuais contextos e a atual história e vivência do grupo.
Por meio das narrativas de vida e das rezas dessas agentes da cultura popular afro-
brasileira, as presentes e futuras gerações podem e poderão conhecer as suas memórias, a
história e a cultura dos seus antepassados, como reflete Bosi: “Que interesse terão tais
elementos para a geração atual? Encontrarei uma linguagem que comova as pessoas de hoje,
para as quais seu nome pouco significa? As lutas pela memória, eis algo que todos temos
conhecimento de causa” (2007, p. 411). A cultura e a história dos povos afro-brasileiros
muitas vezes é tratada como exótica, desconhecida, assim como a dos povos indígenas, como
se não fizesse parte da cultura brasileira, atitude que contradiz o pensamento de Sílvio
Romero ao desenvolver ainda no século XIX o conceito de mestiçagem moral, ampliando
para uma mestiçagem cultural e literária (grifo meu). Para o crítico:
São as gerações crioulas que, deixadas de parte as nostalgias dos
progenitores, esqueceram-se delas para amar este país e trabalhar na
formação de uma pátria nova.
Esta pátria nova não é a oca do índio perdida no deserto, a palhoça do negro
esquecida nos areais da África, ou o casal do português que ficou pelas
encostas do Alentejo... A nova Pátria é o Brasil. (ROMERO apud
CANDIDO, 1978, p. 54, grifos do autor).
Dessa forma, Sílvio Romero (1978), embora esteja situado cronologicamente na
mesma época em que foi escrito “O Cortiço”, já pensava a literatura brasileira como a fusão
de três povos, português, indígena e negro, enfatizando a significativa contribuição das
gerações crioulas que deixaram de amar a sua pátria voluntaria ou involuntariamente para
amar e trabalhar na formação de um novo país.
Embora pensador de sua época e contexto histórico, situado nas teorias racistas do
século XIX e influenciado pelo determinismo, positivismo, eugenismo e realismo-
naturalismo, Romero contribui nos estudos críticos da literatura brasileira por reconhecer o
espaço dos povos negros na construção da identidade brasileira. O critico, apesar das
limitações do seu contexto vistas pelo olhar de hoje, transgrediu o mestiçagem física e moral
do brasileiro, sua mistura de sangue e de almas, considerado como negativo nessa fase, e
avançou para a compreensão de uma mestiçagem cultural e identitária. Em sua linha de
pensamento “Para Sílvio, o mais importante na diferenciação nacional é esta diferenciação
racial, com a criação do mestiço” (COUTINHO, 1974, p. 352). A categoria empírica do
mestiço no pensamento de Romero foi a metonímia da identidade nacional brasileira que não
28
excluía a contribuição de nenhum dos povos formadoras da nação e, dessa forma, trouxe à
tona o viés africano da cultura e da literatura como elemento primordial da tradição e do
sentimento brasileiro.
Seguindo o pensamento de Sílvio Romero não podemos tratar a cultura afro-
brasileira como desprovida de valor, como distante e primitiva quando as vozes da memória
não só transmitem, mas reelaboram as narrativas ancestrais, as histórias de vida desde as
antigas até os membros das atuais gerações, o que reveste essa memória de resistência e lhe
confere uma dimensão identitária. A cultura hegemônica dos povos colonizadores inscrita na
tradição ocidental europeia dialoga com a tradição ancestral dos povos afrodescendentes, e
suas manifestações transitam a partir dos contextos reais que propiciam sentido para um
espaço mais amplo, uma identidade nacional. A forma como foi e é tratada a cultura e a
memória dos povos afrodescendentes pelos brancos objetivou e objetiva construir uma
superioridade não só da sua raça sobre a outra, mas principalmente de uma cultura
colonizadora sobre a outra colonizada. Assim a cultura dos negros tende a branquear ou
desaparecer, seguindo a esteira de Fanon (2008), construindo uma resistência que lhe permite
voltar a sua identidade para o outro de forma que seja mais aceita, menos reprimida. A
manifestação da voz por meio das narrativas, das rezas e rituais de benzimentos transita entre
a história e as tradições ancestrais e a visão da tradição ocidental europeia sobre esses bens
simbólicos, pois durante muito tempo a cultura afro-brasileira foi predominantemente vista
pelo olhar senhorial, distante do reconhecimento que os negros elaboram de si próprios e que
nessa dialética muitas vezes se revestiram de máscaras brancas, no termo proposto por Fanon
(2008) para não desaparecer.
Ao refletir sobre as lutas pela memória, Bosi (2007) relembra a colega de curso Iara
Iavelberg morta durante a ditadura militar, cuja memória é significativa não só para a geração
que a conheceu, mas para as próximas gerações que serão receptoras dessa transmissão
memorial e que terão interesse em conhecê-la. Assim a autora nos direciona para refletir
também sobre a memória dos antepassados negros cujos nomes podem despertar o interesse
das novas gerações. Os povos ancestrais e sua contribuição precisam ser relembrados, junto
com sua história, cultura e ensinamentos e que devido à ausência de trabalhos voltados a essa
cultura correm o risco de serem esquecidos, apagando assim traços de uma identidade de
relevância histórica não só para o Quati, mas para a região. Seguindo o mesmo pensamento, a
mesma autora nos apresenta uma justificativa para essa socialização com a memória e a
cultura dos antepassados em que as novas gerações podem sentir-se pertencentes a um grupo
e ancorado em um passado historicamente relevante. Dessa forma, a criança por meio da
29
memória do grupo tem a oportunidade de se sentir pertencente a uma história, de fazer parte
de uma socialização com os valores ancestrais, e não um contato superficial com o passado
que lhe daria apenas uma visão abstrata do grupo e de sua história conforme Bosi (2007). A
psicóloga social reflete que, sem o contato dos mais novos com os dados do passado histórico
do seu grupo social, sem a transmissão pelos mais velhos da memória dos acontecimentos que
marcam a história do grupo, não se constitui uma significativa socialização com os mais
velhos da comunidade, que são os transmissores memoriais dos fatos por meio da oralidade.
As marcas da identidade dos povos afrodescendentes necessitam de um maior
aprofundamento sobre a presença negra na região do Alto Oeste do Rio Grande do Norte onde
se localiza o município de Luís Gomes, visto que inexistem estudos sobre esses povos e sua
cultura e memória numa perspectiva de novas temáticas de estudo e de novos métodos que
vão além da busca por fontes documentais escritas, como cartas de alforria, já que o nosso
trabalho tem como fonte a história oral das rezadeiras, mais especificamente dentro dessa
técnica a história de vida. Esta técnica de entrevista pode iluminar suas trajetórias de vida
inseridas dentro da história do seu povo, proporcionando um maior reconhecimento de suas
identidades e de diálogo com outras culturas numa ação que propicia também certo combate à
discriminação racial e cultural, numa perspectiva que traz à tona pessoas e suas histórias de
vida antes não ouvidas nem estudadas como integrantes da história e da cultura regional e
pertencentes a uma identidade nacional. As histórias de vida das rezadeiras, mulheres negras
que constroem suas trajetórias inscritas em um duro cotidiano de trabalho, e que foram
escolhidas dentre os membros do seu grupo para guardar e transmitir a sabedoria popular e os
segredos espirituais aos seus descendentes e as novas gerações da comunidade nos
oportunizam um conhecimento mais amplo sobre a cultura afro-brasileira. Pode-se surgir uma
nova visão sobre a diversidade étnico-racial da população regional e quebrar um silêncio
histórico sobre suas histórias e experiências.
A função social de guardiãs e transmissores da memória do seu povo é exercida pelas
rezadeiras do Quati e reconhecida pelos membros do seu grupo social, que as reconhecem
como representantes de sua identidade cultural. Além das rezas e dos rituais de benzimentos,
ao narrar suas lições de vida, seus conselhos e ensinamentos, as rezadeiras elaboram uma
literatura oral a partir da memória coletiva, das vozes ancestrais que lhes foram transmitidas e
tecem um laço com diferentes gerações do grupo, repassando aos mais jovens a história das
suas origens. Como reflete Maria Ignez Novais Ayala:
30
No caso da literatura oral, dá-se conselho, narra-se experiência de vida,
contam-se casos exemplares, utilizam-se adivinhas para estimular a
inteligência, atenção e rapidez das crianças, valendo-se do imaginário, de
recursos mnemônicos e outras sabedorias tidas como necessárias para bem
educar e estabelecer formas de comunicação com pessoas de gerações
diferentes. (AYALA, 2002, p.1).
Como refletimos, a autoridade das rezadeiras vem da sua experiência de vida que não
se dissocia da memória ancestral nem da sua vivência cotidiana no seio do grupo. Essa
autoridade se relaciona com a do narrador de Benjamin (1993), o camponês sedentário que
conhece profundamente o grupo do qual faz parte. Elas não se constituem apenas como
testemunhos vivos de um passado distante, de uma cultura considerada que, para muitos, se
encontra perdida no tempo, mas suas vozes não se restringem apenas à religiosidade do grupo.
Através do domínio da tradição e da memória apreendida dos antepassados e da sua função
social na comunidade é que as rezadeiras se tornam agentes importantes na elaboração da
identidade. Embora as rezas sejam resultantes de uma diáspora cultural e religiosa negra,
herdadas de um passado distante, é o significado de suas práticas no presente que contribui
para o sentido de pertencimento dos membros do seu grupo. A identidade africana ancestral é
vivenciada por meio da memória e o rememorar da tradição. O enraizamento no passado
reelaborado no presente é também resultado da violência física e simbólica sofrida com a
diáspora e a escravidão, com o dilaceramento de suas culturas. Daí a preocupação com a
memória e as tradições negras presentes em seus bens simbólicos e culturais.
Como o tráfico negreiro e a diáspora foram fundantes para a constituição da
identidade cultural dos negros do Ocidente marcada por traumas históricos, segundo Gilroy
(2001), a construção de uma identidade diaspórica se constitui como um processo complexo
de desenraizamento e enraizamento posterior.
Diáspora (do grego diasporein: semear) significa a dispersão de pessoas [...].
A diáspora constitui um trauma coletivo de um povo que voluntária ou
involuntariamente foi banido da sua terra e, vivendo num lugar estranho,
sente-se desenraizado de sua cultura e de seu lar (BONNICI, 2005, p. 24).
Devido a esse desenraizamento histórico que se constitui como uma espécie de
trauma original, conforme os autores citados anteriormente, nos interessam mais o
deslocamento, o desenraizamento causado pela diáspora e as principalmente novas criações
culturais surgidas a partir dessas experiências do que a questão das origens. Nessa construção
política da identidade do negro no Ocidente se inscrevem as manifestações culturais afro-
brasileiras, que não se tratam de bens originais no sentido de estáticos, de se encontrarem
31
conforme eram vivenciadas na África. A diversidade de vivências dos povos negros chegados
em terras estranhas, escravizados, distantes de suas tradições, de familiares e antepassados,
deu origem a novas criações culturais que, de forma híbrida, reúnem traços africanos,
indígenas e europeus. Nesse sentido, o desejo de reavivar as tradições vem do trauma da
diáspora e da escravidão, embora essas tradições ancestrais se encontrem reelaboradas a partir
do contexto das novas terras. De forma alegórica, podemos comparar as manifestações
culturais afro-brasileiras, dos negros distantes de sua terra natal, com os salmos cantados
pelos hebreus em momentos de escravidão no Egito e de exílio quando distantes da terra natal
ou no caminho de volta à Terra Prometida. Suas vozes rememoravam a memória do seu povo
e mesmo distante lhe davam um sentido de pertencimento, como as vozes dos narradores e
das rezadeiras que são carregadas de pertencimento, repletas de matrizes e raízes culturais de
seus antepassados.
Assim as narrativas orais, as rezas e rituais afro-brasileiros sofreram um processo
complexo de hibridização ao longo dos séculos em que as culturas ancestrais tanto receberam
traços do catolicismo europeu, da cultura indígena e da matriz africana. Nesse processo os
povos subjulgados, os negros e índios sofreram prejuízos e rupturas com relação a essa
mistura, o que, para Glissant (2005), se constituiu como um despojamento e silenciamento das
marcas constitutivas de suas vidas. Dentre essas marcas se encontram a língua e a religião. É
dessa fonte que bebem os saberes de nossas rezadeiras negras, dessa matéria-prima fundida
num caldeirão múltiplo de culturas e de identidades. Aqui o nosso interesse pelas origens não
busca uma pureza, mas a compreensão de que:
Nossas sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas
origens não são únicas, mas diversas. Aqueles aos quais originalmente a
terra pertencia, em geral, pareceram há muito tempo – dizimados pelo
trabalho pesado e a doença. A terra não pode ser ‘sagrada’, pois foi ‘violada’
– não vazia, mas esvaziada. Todos que estão aqui pertenciam originalmente
a outro lugar. Longe de constituir uma continuidade com os nossos passados,
nossa relação com essa história está marcada pelas rupturas mais aterradoras,
violentas e abruptas. (HALL, 2009, p. 30).
Para o autor, é essa diversidade na composição e na formação das sociedades que lhe
confere complexidade. São muitos povos que as formam não apenas no sentido étnico, mas
principalmente em termos de pertencimento a um povo, a uma nação. Não se pode
reconstituir na inteireza a nação deixada para trás no Atlântico, buscar as origens de forma
pura, reencontrar laços sanguíneos exatos. Muitos desses laços foram desfeitos com a
travessia do mar, outros na chegada à terra, com a venda de escravos a donos diferentes, o que
32
resultou numa doença psicológica chamada popularmente de banzo que provocou a morte de
muitos negros, decorrente da saudade da terra natal e dos parentes nunca mais vistos e
encontrados. Nesse sentido, não pode haver uma continuidade intacta do passado porque
houve prejuízos e rompimentos depois de tantos deslocamentos e a função social da memória
oferece um suporte ao sentimento de pertencimento, contribui para a construção de uma
identidade coletiva depois de tantas rupturas.
Assim as narrativas das rezadeiras do Quati, enquanto manifestação cultural híbrida,
resultado do diálogo e da influência do europeu, do indígena e do africano, apresenta para o
grupo social de afrodescendentes o reavivar da sua identidade ancestral reelaborada ao longo
da história. É a violação da identidade, a eliminação simbólica de um povo que antes
constituía uma nação, tinha um sentido de unidade e coesão, que reveste de significado as
tradições, os ritos e as narrativas, um retorno simbólico a terra sagrada de seus antepassados e
as suas histórias de vida já aportados em solo brasileiro. Expulsos, arrancados de suas terras, a
memória ancestral reelaborada pelas rezadeiras confere um sentido à reconstrução das
histórias de vida após os traumas da diáspora e da escravização dos negros. Não se trata de
uma questão de gênero, raça ou classe social, mas de uma coesão que ultrapassa essas
categorias e que conforme Hall “[...] as culturas sempre se recusaram a ser perfeitamente
encurraladas dentro das fronteiras nacionais. Elas transgridem os limites políticos” (HALL,
2009, p. 35). Assim, nessa comparação não podemos encurralar a cultura afro-brasileira
dentro de limites étnicos, raciais ou políticos, conforme critica Bhabha (2010) ao questionar a
metáfora progressista da coesão social moderna de muitos como um, em que muitos
pensadores das teorias do holismo cultural e da comunidade veem totalidades sociais,
experiências coletivas unitárias seja de classe, gênero ou raça.
Quando tratarmos neste trabalho de hibridismo, estaremos seguindo a esteira do
pensamento de Bhaba (2010) que valoriza o hibridismo enquanto elemento constitutivo dos
discursos pós-coloniais e de suas representações. Este conceito se faz compreender ao longo
deste estudo na visão das narrativas de vida das rezadeiras negras enquanto produto de uma
longa e histórica tradução cultural e se encontra melhor definido na página 159 deste trabalho.
São justamente as trocas entre diferentes culturas, sem a busca de uma pureza, seja
étnica ou cultural que é o ponto significativo da identidade afro-brasileira e que lhe confere
riqueza e complexidade na elaboração identitária. São múltiplas rotas que formam a cultura
afro-brasileira. Em terras africanas, a diversidade de povos, línguas e culturas já constituía
raízes significativas. Muitos grupos diferentes se juntaram na colonização, após se perderem
33
no tráfico e na comercialização e a partir desse ponto se concentra a história dos povos negros
no Ocidente. Assim:
Nossos povos têm suas raízes nos – ou mais precisamente, podem traçar suas
rotas a partir dos – quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia;
foram forçados a se juntar no quarto canto, na ‘cena primária’ do Novo
Mundo. Suas ‘rotas’ são tudo ‘menos puras’. A grande maioria deles é de
descendência ‘africana’ – mas como teria dito Shakespeare ‘norte pelo
noroeste’. Sabemos que o termo ‘África’ é, em todo caso, uma construção
moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas
cujo principal ponto de origem comum situava-se no tráfico de escravos
(HALL, 2009, p. 30).
Em diálogo com outros teóricos do pensamento pós-colonial, compreensão esta que
norteia este trabalho, a cultura afro-brasileira herdada dos negros e miscigenada culturalmente
com a cultura do branco europeu e do índio nativo tem o seu legado nessa diversidade o seu
valor singular. Para um pesquisador isento de preconceitos, este conseguirá enxergar nesse
mosaico de elementos culturais que já existia antes da travessia do Atlântico em terras
africanas e aqui no Brasil se tornou muito mais diversos, pois, “No entanto, nada é mais
impressionante, para alguém isento de preconcepções, do que a extraordinária diversidade dos
povos da África e suas culturas [...]”. (APPIAH, 1997, p. 48).
O olhar pós-colonial pretendido sobre as histórias de vida das rezadeiras negras do
Quati segue a esteira da segunda acepção apresentada por Boaventura dos Santos Sousa
(2003) que visa uma compreensão inserida nos estudos literários e culturais dos processos de
contrução das identidades e da elaboração de sistemas de representação. Nesse processo se
inscrevem as manifestações da cultura popular afrobrasileira representadas neste trabalho
pelas narrativas de vida das rezadeiras. Elas se posicionam como narrativas surgidas do ponto
de vista dos sujeitos colonizados como resposta à narrativa dos colonizadores. O nosso
trabalho se ancora no entendimento de que:
O pós-colonialismo deve ser entendido em duas acepções principais. A
primeira é a de um peródo histórico, aquele que se sucede à independência
das colônias, e a segunda é a de um conjunto de práticas e discursos que
desconstroem a narrativa colonial escrita pelo colonizador do ponto de vista
do colonizado. Na primeira acepção o pós-colonialismo traduz-se num
conjunto de análises econônicas, sociológicas e políticas sobre a construção
dos novos Estados, sua base social, sua institucionalidade e sua inserção no
sistema mundial, as rupturas e continuidades com o sistema colonial, as
relações com a ex-potência colonial e a questão do neocolonialismo, as
alianças regionais etc. Na segunda acepção, insere-se nos estudos culturais,
linguísticos e literários e usa privilegiadamente a exegese textual e as
34
práticas performativas para analisar os sistemas de representação e os
processos identitários. Nessa acepção o pós-colonialismo contém uma
crítica, implícita ou explícita, aos silêncios das análises pós-coloniais na
primeira acepção. Por me centrar neste texto nos sistemas de representação e
processos identitários, reporto-me ao pós-colonialismo na segunda acepção,
ainda que as análises próprias à primeira seam traziadas a cotejo (SANTOS,
B., 2003, p. 26).
Embora a compreensão de pós-colonialismo do citado autor trate da desconstrução
das narrativas coloniais escritas pelos colonizadores, para essa desconstrução é necessário nos
reportarmos a elas e às representações que historicamente foram construídas sobre os
colonizados. Dessa forma, traçamos ao longo deste trabalho um percurso também histórico
das culturas e da religiosidade afro-brasileiros com o intuito de melhor compreendermos
como as histórias de vida das rezadeiras se constituem enquanto narrativa pós-colonial e
representação identitária de resistência do colonizados.
Confirmando a diversidade africana abordada por Appiah (1997) enquanto
constitutiva da formação brasileira, não se pode num país miscigenado como o nosso Brasil
buscar uma cultura tradicionalmente comum, única, com vocabulário, língua, religião e outros
traços culturais, como também é impossível pensarmos numa raça comum. Não há espaço
para o unanimismo enquanto viés de compreensão, enquanto pressuposto de estudo da cultura
africana. Vejamos:
Não importa o que os africanos compartilhem, não temos uma cultura
tradicional comum, línguas comuns ou um vocabulário religioso e conceitual
comum [...], nem sequer pertencemos a uma raça comum; e, já que é assim,
o unanimismo não tem direito ao que é, a meu ver, seu pressuposto
fundamental (APPIAH, 1997, p. 50).
Retomando Stuart Hall (2009), as fronteiras rígidas impostas pelos Estados-nação
dentro das quais se espera que as culturas cresçam embora muito bem impostas segundo esse
autor, no caso do Brasil não impediu que florescessem as mais variadas formas de cultura e de
religiosidade. A religião herdada dos colonizadores se misturou às religiões africanas,
influenciou e foi influenciada numa hibridização que enriqueceu a cultura nacional. Embora
proibidos de cultuar os seus orixás e divindades trazidos da terra natal, a sua associação aos
santos católicos não impediu que se formasse uma cultura afro-brasileira representativa de
uma identidade não racial nem étnica, mas cultural e com uma identidade de resistência.
Como também se insere nessa perspectiva de transgressão das fronteiras rígidas do Estado, e
como forma de resistência a escravidão, a atuação das Irmandades de Nossa Senhora do
35
Rosário dos Pretos que cuidavam dos negros doentes, enterravam os mortos e compravam
alforrias dos que ainda eram escravizados, buscando a construção de laços, apesar da
escravidão e do desenraizamento que sofreram com a diáspora. Assim a:
[...]Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (as
irmandades são sociedades da religião católica destinadas à prática de culto
aos santos, com funções de assistência social e de lazer, de diferentes classes
sociais, inclusive os negros escravizados e seus descendentes nascidos; as
irmandades de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos africanos e seus
descendentes, tiveram importante papel na socialização dos mesmos no
Brasil, especialmente no que diz respeito às alforrias por compra) [...];
(Coleção O Brasil Somos Todos Nós, 2011.p. 41).
Nesses limites em que se espera que as culturas transgridam e floresçam (HALL,
2009) se encontra a devoção a Nossa Senhora Aparecida e a sua trajetória histórica para se
tornar a padroeira do Brasil. Narra a tradição que uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição, padroeira de Portugal, devoção de origem portuguesa cultuada pelos brancos
colonizadores foi encontrado no leito do rio Paraíba do Sul em São Paulo por três pescadores.
A devoção à Virgem da Conceição era uma manifestação dos brancos, já que os negros
cultuavam Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Esse fato de segregação religiosa
está presente também na história da cidade de Pau dos Ferros:
Um acontecimento da nossa região que ilustra essa fase é o fato de os negros
de Pau dos Ferros, impedidos de frequentar a Matriz de Nossa Senhora da
Conceição, tiveram que construir uma igreja para realizar seus cultos e de
escolher um santo negro, no caso São Benedito. A capela é um símbolo
dessa resistência a opressão branca herdada da colonização e da capacidade
do povo afro-brasileiro de reelaborar sua cultura de forma a manter vivos os
seus laços ancestrais e identitários (FONSÊCA, 2016, s. p.).
Nessa linha de subversão e florescimento de novas culturas, estão o surgimento de
uma padroeira negra para o Brasil, Nossa Senhora Aparecida, oficializada nas primeiras
décadas do século XX, a beatificação do Padre Francisco de Paula Victor em 2015, o primeiro
beato negro ex-escravo brasileiro e a beatificação de Nhá Chica em 2013. Segundo Maria do
Carmo Nicoliello Pinho no informativo Nhá Chica de agosto de 2016, ao citar o professor
Antônio Gaio, a Beata Francisca de Paula de Jesus, Nhá Chica, primeira negra a ser
beatificada no Brasil, filha livre de uma escrava liberta, que cultuava Nossa Senhora da
Conceição, devoção à padroeira de Portugal herdada dos brancos e difundida ao longo da
colonização, e não Nossa Senhora do Rosário cultuada pelos negros, contrariando o viés
36
oficial da religião católica, do catolicismo colonial herdado do europeu. Numa leitura atenta
dessa cultura diásporica, percebemos que “Portanto, é importante ver essa perspectiva
diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para
a nação” (HALL, 2009, p. 36).
Para uma reelaboração identitária após os traumas da diáspora e da escravidão, a
construção de novas histórias de vida é complexa, principalmente numa terra cuja nação
apresenta modelos pertencentes a três matrizes culturais, como a nação brasileira que tem
origens que ultrapassam o viés étnico, e se desdobram numa perspectiva cultural e
memorialista de uma identidade que é uma mistura das matrizes indígena, portuguesa e
africana. Essas características geram uma cultura afrodescendente que, além da matriz
africana trazida com a diáspora, apresenta traços portugueses e indígenas. Daí a complexa e
difícil compreensão de uma cultura híbrida e a prudência em levantar determinadas questões
durante as entrevistas.
Em diferentes ocasiões, fosse, em pesquisa, em conversas informais ou mesmo em
rituais de benzimentos dos quais costumo participar, pude perceber, principalmente no caso
de dona Naldi, que o viés africano de suas manifestações não é revelado a todos os que
recebem as suas rezas. É um assunto considerado difícil devido à memória do terror racial e
da tentativa de eliminação dessa matriz por parte do colonizador branco, como refletiu Gilroy
(2001) que essa memória dolorosa é inseparável da construção da identidade dos negros no
Ocidente. Assim toda a história de vida de uma agente negra da cultura popular afro-brasileira
está marcada por uma dolorosa memória ancestral que infelizmente, no contexto atual, ainda
passa por preconceitos gerados desde a colonização, período em que os seus cultos eram
perseguidos e tiveram que se aclimatar ao catolicismo.
Os rituais das rezas nos mostram que a cultura afro-brasileira não se trata de um
folclore, de uma mera lembrança do passado que ainda chama a atenção no presente, mas de
laço atual que não só religa os saberes ancestrais como envolve os membros atuais do grupo
social em que se insere a rezadeira. A casa da rezadeira se torna um espaço de interação com
os membros do grupo, um espaço comunitário em que se constrói um cotidiano social, pois o
seu dom, a sua função é colocada a serviço dos seus, havendo a narração de experiências na
definição de Benjamin (1993), o conselho, a resposta para um problema. Geralmente as
rezadeiras são procuradas ao final do dia, próximo do anoitecer, momento comunitário
propício a narração, como se encerrasse um dia de trabalho com a ligação do homem com o
sagrado e o simbólico. Nesse contexto social, manifesta-se a literatura oral e os rituais das
rezas, Maria Ignez Novais Ayala (1997, p.161) explica que:
37
É aí que ela tem sua possibilidade de existir. Precisa de um tempo em que as
pessoas se encontrem, conversem, troquem experiências, mesmo que seja
num rápido intervalo para lanche, para café ou para descanso das tarefas do
dia, à noitinha, quando se conta com um momento de folga, depois do
trabalho e das novelas da tevê. Não importa que hoje se disponha de pouco
tempo. O fundamental é que ocorra de modo constante e com certa
regularidade, para que se construa uma experiência, de base comunitária, que
a seu momento poderá, socializada, propiciar outras experiências
individuais. Caso contrário, essa literatura deixa de ser vivida de maneira
socializada para continuar latente, presente na memória e na solidão de quem
já a experimenta em situações anteriores mais intensas de convívio social e
de solidariedade.
Como as rezas e o seu contexto ritual e social são baseados na experiência
comunitária, nos relatos de vida, as rezaderias constroem um laço com a comunidade em que
deixam claro a sua função de agente da cultura popular, falam das pessoas que as procuram,
que frequentam as suas casas e acreditam em suas rezas, legitimando assim sua identidade
com base na aceitação social. É a partir dessas relações que se reconhecem como rezadeiras e
reconhecem os membros do seu grupo social como participantes dessa identidade tecida a
muitas mãos. Dessa forma:
Essa representação do sujeito pode ser percebida nos relatos orais e histórias
de vida dos artistas populares. É notório, nas narrativas, o interesse em
deixar a marca de sua atuação na comunidade, do seu papel na cultura da
cidade e da influência que exerceram no grupo que os rodeava, constroem
para si uma maneira de ver e representar sua existência. Para pensar a
relação memória/cultura popular não é importante saber se os relatos contêm
a legitimidade dos fatos, se há uma reinterpretação dos acontecimentos, ou
se a eles foram agregados valores de acordo com o interesse dos narradores.
O que importa é o modo pelo qual eles são expostos e o que marca sua
significância para a vida desses indivíduos. Herdeiros de suas tradições,
esses sujeitos demonstram consciência de seu significado no campo cultural
e, por isso, concretizam na sua narrativa o desejo de serem reconhecidos
pelo seu grupo (RODRIGUES, 2008, p.40).
A rezadeira dona Naldi destaca em seu relato de vida a função da sua avó dona
Tomásia no seu meio social. Essa cultura popular afro-brasileira exercida memorialmente
pelas rezadeiras como suporte de uma identidade pessoal ancorada na memória e na
identidade cultural de sua gente se inscreve na vida cotidiana, em atitude de solidariedade.
Nesse complexo jogo de identidades conflitantes, em que a identidade do colonizador branco
historicamente quis se declarar superior a dos povos negros desenraizados pelo tráfico e
massacrados pela escravização, em que a elaboração das identidades passa pelos modos de
38
produção do poder, essa relação passa também pela resistência. Os processos identitários
ocorreram e ocorrem nessa complexa zona de contrato, de negociações culturais entre os
portugueses, os nativos do Brasil e os povos chegados da África através do tráfico negreiro.
O jogo de espelhos entre as identidades, nas relações de diferença em que não
podemos cristalizar oposições binárias, quem possui o poder para determinar as diferenças
também o tem para declarar sua superioridade diante das outras diferenças em que se espelha.
Nessa diferenciação desigual, as identidades subalternas podem ter a capacidade de resistir e
devem ser incentivadas a essa atitude diante de quem lhe declarou inferior. Nessa arena onde
ocorre a luta pela negação total do outro e pela disputa com a identidade subalterna do outro,
compreendemos o multiculturalismo como forma de dominação política e anulação da cultura
do outro. Nesse jogo de reflexos entre “Próspero e Caliban” (SANTOS, B. S., 2003), os
portugueses foram vistos ao longo da sua história por outros povos Europeus pelo viés do
mesmo etnocentrismo com que viram e trataram os índios nativos e os negros trazidos da
África.
A subjugação do outro forçada sobre as identidades subalternas que busca o
alheamento das suas raízes é constitutiva das identidades indígenas e negras no Brasil. Nessa
construção as culturas afro-brasileiras e ameríndias tiveram que aceitar uma lógica
emprestada e vinda de fora que lhes era estranha. Os seus rituais e crenças se revestiram de
outras dimensões, de uma dinâmica exterior que trabalhava para que a sua não mais
encontrasse um lugar. Nesse sentido:
O Outro é, sob esse aspecto, o que se mexe além duma fronteira, num “fora”
indefinido e indefinível, num exterior sem horizonte que é, na verdade, num
exterior sem horizonte que é, na verdade, um interior continuamente
recalcado, constantemente projetado para aquele externo que vira em
distância tranquilizadora o que se dá, pelo contrário, como inquitetante
proximidade. E mais profundamente, o que gera o Outro é mesmo essa
fronteira, é esse limite que separa um dentro concluso dum fora
inconcludente: borda trabalhada e instável, margem dilacerada e sempre
recomposta ao longo da história, e todavia linha sagrada e inelutável,
destinada a dividir o próprio do impróprio, a norma do desvio. Noções
relativas, repare-se, mutáveis e dependentes uma da outra, mas que servem,
contudo, para delimitar o âmbito dum modelo cultural (e ético, e religioso, e
antropológico...) exclusivo (FINAZZI-AGRO, 1991, p. 53)
.
A visão do autor com relação ao outro esclarece o lugar que lhe foi reservado ao
longo da história. A fronteira geradora do outro, o limite segregador embora bastante
trabalhado é instável, margem dilacerada que pode mudar e transitar entre o próprio e o
impróprio, estes que, apesar das tentativas de uma separação estável se misturaram. Em meio
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a essa complexidade, o outro se encontra inconcluso. De fora da fronteira ideal traçada pelos
padrões europeus, estes que relegaram ao algures toda a diversidade de povos, culturas e
pensamentos que, ao longo dos séculos, não se enquadrava em seus modelos e compunha ao
mesmo tempo uma feira de maravilhas e de horrores. Segundo o mesmo autor:
Do outro lado dessa fronteira ideal, a cultura europeia acumulou de fato,
durante séculos, tudo o que de imcompreensível, de excessivo, de ambíguo,
de irredutível ao Sentido, em suma, ela ia encontrando ou descobrindo no
seu caminho. O “algures” tornou-se, assim, uma espécie de fantásico,
ilimitado e emaranhado, bric-à-brac em que encontrou lugar um monte de
coisas heterogêneas. O louco, o judeu, a mulher, o negro, o que se supunha,
enfim, ligado ao instinto e às leis misteriosas do corpo, tudo isso entrou no
imenso domínio da Alteridade que acabou, assim, por se transformar numa
grande feira da Diversidade, povoada, com efeito, por objects féeriques e
montada além das muralhas, fora da cidadela, na anônima e desmedida
periferia do Idêntico. Feira das maravilhas e dos horrores, espaço
irreprimível da festa, do riso, do corpo, mas também vórtice ou abismo,
“lugar de trevas”, objeto de medo e de desejo, de repulsa e de atração
(FINAZZI-AGRO, 1991, p. 53 grifo do autor).
Nesse sentido, as práticas culturais e as crenças inscritas no universo do outro, como
a religiosidade do negro presente nas histórias de vida das rezadeiras e de muitos outros
agentes das culturas populares afro-brasileiras como os brincantes chamados de Negros do
Rosário, foram tratados historicamente como diabólicas e separadas dos ideais europeus,
antagonismo presente desde os relatos da “descoberta” do Brasil comprendido na metáfora do
Próspero e do Caliban (SANTOS, B. S., 2003) como dois processos distintos a partir dos
quais a identidade dominante se reproduz sobre a subalterna. Segundo Finazzi-Agro (1991)
também se insere nesse contexto o paganismo indígena e assim todo pluralismo cultural
estava subjugado pela marca diabólica da muliplicidade, esta que é constitutiva das
identidades das rezadeiras.
Essa dinâmica cultural nos mostra que não há espaços para os binarismos do
colonialismo hegemônico, oposições hierárquicas, pois pensar o Próspero português em suas
fraquezas é compreender que a identidade cultural é formada numa disputa cada vez mais
voraz de poder numa pluralidade de culturas e identidades que marcam o espaço da história
do colonialismo português. Na cultura das rezadeiras negras, a diversidade cultural não é um
emaranhado complicado de se compreender, mas o fertilizante na construção dos seus bens
simbólicos e culturais que contribui para a ressignificação dos traços das três culturas
formadoras, a africana, ameríndia e europeia. No olhar de Glissant, o neobarroco, diferente da
antiga estética barroca, se concentra no caldeirão que se tornou a cultura das Américas. A
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padroeira da América Latina é Nossa Senhora de Guadalupe, uma devoção católica europeia
aclimatada ao contexto da história ameríndia, pois a Virgem se apresenta como indígena. No
Brasil, temos o mesmo com a elaboração da devoção à Virgem Negra Nossa Senhora
Aparecida. Nesse sentido, o barroco que atravessou o Atlântico se revestiu de sincretismo, de
mestiçagem cultural. Assim “Quando o barroco atravessou os oceanos e chegou à América
Latina, os anjos e as virgens tornaram-se negros, Jesus Cristo tornou-se um índio e tudo isso
rompeu o processo de legitimidade” (GLISSANT, 2005, p. 111, apud, LIMA, T. M. de A.,
2007, p. 205). Nas narrativas de vida das rezadeiras negras do Quati e em seus rituais,
devoções e manifestações culturais encontramos as características da herança que lhe
conferem o viés neobarroco conforme foi pensado por Glissant.
No tocante à cultura afro-brasileira vivenciada pelas rezadeiras negras, na metáfora
de “Próspero e Caliban” pensada por Boaventura dos Santos Sousa (2003) o jogo de espelhos
com a cultura do colonizador se constituiu como uma influência mútua, pois tanto as agentes
populares foram influenciadas desde o catolicismo colonial como também o catolicismo
recebeu traços da cultura africana e da história do negro no Brasil, como é o caso da devoção
a Nossa Senhora Aparecida, uma Virgem Negra que se tornou símbolo desde o catolicismo
colonial da luta contra a escravidão; da devoção da Beata Nhá Chica, negra e filha de escrava,
a Nossa Senhora da Conceição, uma devoção dos brancos, quando o comum a sua época seria
a devoção a Nossa Senhora do Rosário, protetora dos negros, segundo Maria do Carmo
Nicollielo Pinho ao citar Prof. Antônio Gaio (PINHO, 2016); e das Irmandades de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, herança do catolicismo português que, apesar de ser
uma maneira de disciplinar os negros libertos ou cativos nas regras católicas, branqueando-os
no sentido dado por Fanon (2008) também se tornou uma organização de resistência.
Percebemos que a linha que separa o colonizador do colonizado, o dominante do dominado é
muito tênue.
O antagonismo dessas identidades conflitantes é produzido pela dominação geradora
das desigualdades. Nesse complexo contexto, as combinações se tornam conflitantes, e as
identidades subalternas encontram meios de resistir, atitude constitutiva desse tipo de
identidade. Constrói-se um jogo de poder entre superioridade e inferioridade em que
acontecem trocas entre os dois posicionamentos. Nessa compreensão:
A identidade é originariamente um modo de dominação assente num modo
de produção de poder que designo por “diferenciação desigual”. As
identidades subalternas são sempre derivadas e correspondem a situações em
que o poder de declarar a diferença se combina com o poder para resistir ao
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poder que a declara inferior. Na identidade subalterna a declaração da
diferença é sempre uma tentativa de apropriar uma diferença declarada
inferior de modo a reduzir ou eliminar sua inferioridade. Sem resistência não
há identidade subalterna, há apenas subalternidade (SANTOS, B., 2003, p.
30).
Nessa encruzilhada de identidades, há uma dinâmica de afirmações e negações, de
disputas entre a identidade dominante e a subalterna nuna tentativa de anulação desta última.
Assim a identidade subalterna consegue se inserir no fator político e social denominado
multiculturalismo e por meio dele entar na disputa com a identidade dominante, esta que
segundo o autor também só se torna fato político a partir dessa disputa. O colonizador em um
dado momento histórico foi também colonizado, dominado. Nesse sentido, o colonizador e o
colonizado, o “Próspero e o Caliban” tecem suas identidades ambivalentes elaborando o que
Boaventura dos Santos Sousa (2003) define como interidentidade, uma construção em
fronterias tênues, um limiaridade que elabora o que o autor chama de identidade originária.
Em sua compreensão:
A identidade dominante reproduz-se assim por dois processos distintos: pela
negação total do outro e pela disputa com a identidade subalterna do outro.
Quase sempre o primeiro conduz ao segundo. A identidade dominante e
mesmo matricial da modernização ocidental – Próspero/Caliban,
civilizado/selvagem – reproduziu-se inicialmente pelo primeiro processo e
depois pelo segundo. Em diferentes jogos de espelhos, os dois processos
continuam a vigorar. Do ponto de vista do diferente superior, porém, a
identidade dominante só se transforma em fato político na medida em que
entra em disputa com identidades subalternas. É esse o fato político que hoje
designamos por “multiculturalismo”. Em qualquer dos seus modos de
reprodução a identidade dominante é ambivalente, pois mesmo a negação
total do outro só é possível mediante a produção ativa da inexistência do
outro. Essa produção implica sempre o desejo do outro na forma de uma
ausência abissal, de uma carência insaciável. Tal ambivalência está bem
patente na representação da América no início da expansão europeia. A
maioria dos relatos da descoberta do novo continente e das narrativas de
viagens reflete uma peculiar fusão de imagens idílicas, utópicas e
paradisíacas com as de práticas cruéis e canibalísticas dos nativos. De um
lado, a natureza luxuriante e benevolente; do outro, a antropofagia repulsiva
(SANTOS, B., 2003, p. 30).
Como a identidade se origina num jogo de dominação e resistência, num processo de
diferenciação desigual em que uma busca subjugar a outra, é preciso que a identidade
declarada como inferior, no caso a afro-brasileira, se combine com o poder de quem assim a
declarou para não perder sua identidade. Não podemos demarcar uma linha abissal entre a
cultura do Velho Mundo, a dos nativos indígenas que habitavam o Novo Mundo e as culturas
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trazidas pelos povos diaspóricos. Assim se constrói o “multiculturalismo”, numa fundação
política da identidade, expressão essa tão comum nos estudos da cultura e que no sentido dado
por Boaventura de Sousa Santos se reveste da disputa entre a identidade dominante e a
subalterna. Nesse sentido, a cultura afro-brasileira, embora historicamente posicionada como
uma identidade subalterna foi elaborada por meio da resistência, não havendo dessa forma
subalternidade, pois a cultura dos negros não se construiu por acaso nem tão pouco de forma
totalmente submissa. Ela foi pensada para que não se apagassem as raízes ancestrais, a
memória da pátria deixada à força pelo tráfico negreiro e em solo brasileiro pelas tentativas
colonizadoras de se eliminar as marcas da identidade pela escravidão e pela conversão forçada
ao catolicismo. Por isso o sincretismo e a associação dos orixás aos santos e as práticas
católicas.
As histórias de vida das rezadeiras negras e de muitos agentes da cultura afro-
brasileiras, seja ela popular ou erudita, oral ou escrita, são resultado da transmissão das raízes
ancestrais constantemente reelaboradas pelos contextos de vida, pelas novas experiências
vividas socialmente no grupo. Como a identidade africana foi trazida sob os traumas
históricos da diáspora e do deslocamento e chegada ao Brasil sob a condição desumana da
escravidão, a luta contra a eliminação da identidade ancestral encontrou nas manifestações
orais e nas narrativas de vida a possibilidade de existir, de rememorar os antepassados e
reelaborar em solo brasileiro a identidade que atravessou o Atlântico e se hibridizou com a
cultura do colonizador e também dos nativos indígenas sem perder seus traços mais
peculiares. Como as rezadeiras negras têm no seu grupo uma função social que se assemelha a
dos griots, de transmissão da cultura da sua tribo, das tradições orais rememorando a história
e reacendendo o sentimento de identidade.
Bosi traz à tona Sartre quando afirma que a velhice é um irrealizável, isto é, “uma
situação composta de aspectos percebidos pelo outro e, como tal reificados (um être-pour-
autruí), que transcendem nossa consciência” (BOSI, 2007, p. 79, grifo da autora). Essa
compreensão também é aplicada à identidade negra, pois tanto a velhice quanto a negritude
nunca poderão ser assumidas enquanto exterioridade de forma existencial, isto é, tal como o
são para o outro, que está de fora da pessoa negra e do velho. Assim a velhice “É um
irrealizável como a negritude: como pode o negro realizar em sua consciência o que os outros
veem nele?” (BOSI, 2007, p. 79). Nessa comparação, fatores naturais como são a cor da pele
e a velhice são vistos com preconceito pelo olhar externo, pela visão do outro que não tem a
compreensão plena de quem vive na pele os conflitos de sua identidade, como também o
negro e o velho não assimilarão em suas consciências a identidade que lhes é imposta de fora.
43
A identidade das rezadeiras enquanto agentes da cultura popular, das raízes
ancestrais do seu povo, é construída do âmbito individual para o social, coletivo, pois é no
reconhecimento dos membros do seu grupo social que se concentra com seu papel. Essa
construção tem como base a aceitação dos outros, como referência, os seus critérios de
aceitabilidade. No caso das rezaderias, a sua função de rememorar o passado do grupo,
reelaborando-o a partir da sua vivência, do seu cotidiano, em que exercem também a função
de narradoras, conselheiras, transmissoras da cultura oral afro-brasileira, dá sentido de
existência a sua prática, que não é uma função do passado, mas uma manifestação que se
atualizou e se tornou híbrida para uma melhor aceitação, fundindo-se com o catolicismo
branco e alguns rituais indígenas. Nessa negociação com os membros da sua comunidade, é o
reconhecimento de sua autoridade que legitima o seu papel e inscreve sua identidade pessoal
na coletividade. Dessa forma:
Se assimilamos aqui a identidade social à imagem de si, para si e para os
outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao
indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o Outro.
Ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de
negociação, de transformação em função dos outros. A construção da
identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em
referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale
dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não
são fenômenos que devam ser compreendidas como essências de uma pessoa
ou de um grupo (POLLACK, 1992, p.5).
No exercício da função de narradoras do seu grupo, é na memória do passado
reelaborada de acordo com o contexto do presente que as rezadeiras encontram sentido em
sua atuação na comunidade. Jovens, elas se dedicaram também aos trabalhos braçais e
domésticos, como dona Tomásia que era cozinheira na casa do senhor Gaudêncio Torquato,
mas, ao longo da vida e da convivência como dona Naldi, nos momentos mais íntimos exercia
a função de lembrar, de rememorar a sabedoria popular aprendida com os seus antepassados,
não deixando apenas para a velhice avançada o momento de ensinar a sua neta o ofício de
uma vida inteira. Quando as atividades cotidianas lhe permitiam, as rezas e orações iam sendo
ensinadas gradativamente à neta Naldi, como forma de perpetuar a memória ancestral e
transmitir a cultura da sua gente. Em sua história de vida, o cotidiano de trabalho deu a
narrativa e a memória um caráter artesanal, como metaforizou Walter Benamin (1993) ao
associar esse caráter às narrativas das experiências de vida, tecidas ao longo do convívio, nas
horas de trabalho, de folguedo, de descanso e de religiosidade. Justamente nas horas de
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descanso é que a memória de dona Tomásia aflorava e sua função de transmissora da
memória e da identidade cultural do seu povo afrodescendente se revestia de sentido, de
significado. Nessa divisão simbólica do tempo social:
Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da
sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo, neste
momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de
lembrar. (BOSI, 2006, p.63)
Rememorar é retomar o chão da memória onde se ancora a identidade, dando-lhe
firmeza. Os marcos do tempo biográfico, como define Ecleá Bosi (2007) sobre os pontos
significativos das histórias de vida, são localizados na memória de acordo com a sua
importância, como o papel das narrativas, dos ensinamentos e experiências transmitidos pelos
antepassados, como o legado recebido pela rezadeira Naldi de sua avó dona Tomásia, a
descoberta do seu dom, o reconhecimento da sua função pelos membros do seu grupo social,
fato que legitima a sua autoridade e dá sentido ao seu papel de agente da cultura popular afro-
brasileira. É esse o laço que confere à rezaderia negra o seu lugar social na comunidade, de
transmissora da memória ancestral, de continuadora de uma prática que é característica do seu
povo afrodescendente e que apesar da influência católica soube resistir sem perder as suas
marcas identitárias. Tem razão Montenegro (1994, p. 19) ao afirmar que: “A memória
coletiva de um grupo representa determinados fatos, acontecimentos, situações; no entanto,
reelabora-os constantemente. Tanto o grupo como o indivíduo operam por transformações”.
Diversas transformações históricas e sociais influenciaram a atuação das rezadeiras
negras, numa riqueza simbólica e cultural que reúne traços característicos dos três principais
povos formadores da nação brasileira, o português, o indígena nativo e o negro africano. Sob
o signo dos três povos formadores da identidade brasileira, a memória das rezadeiras negras
representa a história do seu povo presente e antepassado, numa constituição identitária que, ao
longo dos acontecimentos, como o tráfico, a escravidão, a colonização, a abolição, o racismo
histórico sofrido, a imposição do catolicismo, todos esses fatos foram reelaborados pela
memória coletiva dos afrodescendentes que têm nas rezadeiras uma voz que reaviva a
identidade coletiva e se inscreve no cotidiano da sua gente, numa narrativa simbólica que por
meio das rezas rememora a história dos ancestrais e contribui para o reconhecimento da
identidade cultural pelos membros do grupo como também pelas outras culturas.
45
3 A PESQUISA DE CAMPO
Se nunca deixou Natal por outra cidade, Cascudo no entanto, foi um viajante infatigável. Percorreu a
África e a Ásia muitas vezes, em busca de raízes da cultura brasileira. Seu “provincianismo
incurável” o levou a recusar proposta de grandes cargos, vagas em academias, cadeiras em
universidades famosas.
Não poder mais viajar não significa muito para quem “navegou demais” e aproveitou bem as
viagens. “Fui ao Índico, à Europa, oito vezes à África. Sempre em função de estudos, pesquisas.
Estudei a alimentação, a música, a dança, os mitos, a tradição, o idioma. Vivi a vida africana. Não
como branco civilizado, mas como negro honorário. Chegava num aldeamento negro e tinha uma
cadeira e um tapete. Era para o visitante.Eu cumprimentava e sentava. Resultado: domínio absoluto.
“Um brasileiro feliz. É o que sou”, confessa. “Compreendi minha vida e vivo aminha vida. Não vivi a
vida dos outros. Estudei o que amava. Pesquisei e discuti sobre os assuntos que queria escrever.
(OSAIR VASCONCELOS, 2008, p. 39)
3.1 A comunidade afro-brasileira do Quati
O sítio Quati se encontra citado dentre os topônimos do Estado do Rio Grande do
Norte pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo em sua obra Nomes da Terra (1968). Essa
toponímia potiguar registra e descreve os lugares cujos nomes próprios concentram as nossas
histórias, memórias e identidade cultural. Como um lugar do município de Luís Gomes citado
no estudo de antropologia cultural e etnografia de Cascudo, historicamente o Quati é
localizado no lado esquerdo da estrada carroçal, e a Lagoa do Mato, localizada no lado direito
com referência à saída da cidade. Também a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte, ao apresentar os fatos históricos da formação do município de Luis
Gomes e suas características geográficas, cita entre as suas lagoas, a “‘Do Matto’, com 300
metros de cumprido por 250 de largo” (LIMA, N., 1990, p. 223). O nome da lagoa deu
origem ao nome do sítio Lagoa do Mato. São conhecidas como comunidades rurais
predominantemente afrodescendentes. Na cidade, seus habitantes ficaram conhecidos como os
“negros do Quati”, não havendo nenhuma divisão entre quem habita o Quati ou da Lagoa do
Mato.
Segundo a professora Maria Socorro de Figueirêdo, em mesa-redonda ocorrida no
dia 7 de novembro de 2016 no I Simpósio de Nacional de Literaturas de Língua Portuguesa
(SINALLIP), ocorrido no Campus Avançado “Professora Maria Elisa de Albuquerque Maia”,
da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte em Pau dos Ferros, que teve como tema
Figurações afro-brasileiras na cultura e na literatura, os negros do Quati eram conhecidos
como “Negros do Pote” e antigamente casavam-se entre si. Essa denominação certamente
vem da fabricação de louça, potes de barro fabricados pelos mesmos para serem vendidos na
comunidade e nas feiras, arte afro-brasileira conhecida também como louça de Santa Maria
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segundo a professora, e produzida pelos negros, fato descrito por Jorge quando em seu livro
descreve que na histórica feira-livre da cidade de Luís Gomes, na obra chamada de Bom Jesus
“Em torno do Mercado os loiceiros, vendedores da linda cerâmica Santa Maria, flandeiros
com a suas produções de bacias, lamparinas, panelas caçarolas, ralos” (2015, p. 32). Outra
forte característica dos membros da comunidade é o fato das mulheres andarem com vasos de
barro ou latas na cabeça com um equilíbrio peculiar e não derrubarem. Iam a pé até a cidade
de Luís Gomes ou andavam pela própria comunidade carregando água ou mantimentos, como
o fazia a senhora Maria Egídia, conhecida como Maria Gida, artesã do barro, louceira, como é
chamada no sertão a artesã que fabrica peças de barro e as vende, “loiceira” na variação
linguística local, segundo depoimento da professora Solange Batista. Durante os anos que
convivo com as pessoas do Quati, cheguei a ver na estrada uma senhora carregando uma
“trouxa na cabeça” num equilíbrio que só vi na região nas mulheres do Quati que realizam
essa proeza, embora algumas já sejam idosas.
Diversos narradores e poetas populares, como o senhor Joaquim Alves de Fontes,
conhecido como Joaquim de Benvinda, contam a memória deste povo, de seus habitantes
cujos nomes são metonímias da história: Pedro Ventura, Maria Nova, Mexica, Mãe Nila, que
dá nome a uma associação cultural, e Mãe Faba. Inicialmente, o nosso interesse na
comunidade era confirmar a possibilidade de seus habitantes serem remanescentes de um
quilombo e realizar o tombamento. Porém, a cultura da comunidade vai além dessa
perspectiva e suas manifestações, como reflete Maria Ignez Novais Ayala (1997, p.160) ao
comentar o pensamento de Xidieh e afirmar que este em suas reflexões “sempre alerta para a
complexidade oculta numa aparência singela”. Foi essa simplicidade aparente e silenciada que
nos chamou a atenção, pois os membros da comunidade de Quati não se limitavam a meros
possíveis descendentes de escravos. Embora ainda exista a suposição de um antigo quilombo,
sem uma devida comprovação antropológica, a memória deste povo tece uma gama de
manifestações populares ricas pela sua hibridização e diálogo com a cultura colonizadora sem
deixar de resistir. O próprio nome de sua banda de música, “Afro-Serrano” denota a
consciência de uma identidade afro-brasileira. As rezadeiras e seus traços de religiosidade
ancestral continuam a ser a marca característica do lugar e de sua gente.
Devido aos traços característicos físicos e culturais do povo do Quati, as pessoas da
cidade como também pesquisadores continuam atribuindo sua origem a um possível antigo
quilombo. São pessoas acessíveis desde que não se toque indevidamente no assunto da
escravidão, pois esta se revela uma ferida histórica presente nas memórias e nas experiências
de vida dos povos afrodescendentes. Muitos negros são casados com brancos, não havendo
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impedimento para essas uniões. Alguns membros da comunidade mantêm o costume de vir à
cidade à pé, até mesmo os mais velhos, embora a presença de motos e carrros já seja
constante. Há uma capela em honra a Nossa Senhora do Carmo, fundada há algumas décadas
pela religiosa carmelita Irmã Mírian Trajano, da Congregação das Irmãs Missionárias
Carmelitas, e a senhora Juliana Fernandes moradora da comunidade de Lagoa do Mato
juntamente com membros da comunidade que realiza todos os anos a sua festa de 6 a 16 de
agosto, como também se celebram as novenas e celebrações próprias do mês de maio com
encerramento na capela. Embora estes sejam traços da religião do colonizador, a cultura afro-
brasileira tem na resistência a sua marca. Por exemplo, no ano de 2012 no encerramento do
mês de maio dedicado à Nossa Senhora, a coroação da imagem, costume na religiosidade
popular nordestina, foi substituída pela coroação da senhora negra Maria Martins Ventura,
conhecida como Aiá, numa atitude de entronização simbólica da identidade coletiva e como
forma de subversão ao catolicismo historicamente imposto.
Embora com um acesso, de certa forma, difícil, as pessoas da cidade vão sempre à
comunidade como também os membros da comunidade vão quase diariamente à cidade. Há
um intercâmbio cultural e econômico. As panelas de barro vendidas na feira dominical da
cidade por dona Rita Laurintino representavam o artesanato do lugar transmitido
memorialmente por vozes e mãos ancestrais. As rezadeiras são conhecidas na comunidade e
pelas pessoas da cidade como era Maria da Conceição Ventura, conhecida como Maria Nova
falecida em 2010, que rezava em carne “triada”, era uma excelente narradora sedentária,
pensando na esteira de Walter Benjamin (1993), pois sempre viveu na Lagoa do Mato e
conhecia cada pessoa, era chamada para dar banho em crianças recém-nascidas por medo das
mães inexperientes de “quebrar o espinhaço da criança”, conforme ouvi o seu relato na última
visita que lhe fiz em 2010. Madrinha de fogueira de muitas crianças, o que revela o seu
reconhecimento no grupo. As colaboradoras deste trabalho, as rezadeiras Ana Naldi da Silva,
Maria de Lurdes Martins da Silva e dona Cosma Maria da Silva foram escolhidas não apenas
por serem descendentes das famílias do Quati e afrodescendentes, mas pela sua representação
na comunidade. Dona Lurdes e dona Cosma residem na parte pertencente à Lagoa do Mato.
Dona Naldi viveu em outros sítios, como o São João da Serra pertencente a Gaudêncio
Torquato, pai do jornalista citado neste trabalho, e na cidade. Hoje reside em Pau dos Ferros
devido à seca e à falta de empregos em Luís Gomes. Porém, não apenas o fato de ser
descendente dos negros do Quati/Lagoa do Mato, mas de sua voz-memória ser marcada pela
autoridade ancestral. Quando vem de Pau dos Ferros a Luís Gomes, visita o Quati dispondo as
suas rezas ao seu povo e a população da cidade e de outros sítios, conforme lhe foi ensinado
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que o dom recebido e a função para a qual foi eleita no grupo deve ser exercida em favor dos
seus e de qualquer pessoa que lhe procurar.
Dona Lurdes e dona Cosma rezam nas pessoas da comunidade e em toda pessoa que
as procuram, seja do seu grupo social, de comunidades próximas ou da cidade. É o seu dever
e não podem negar auxílio a quem lhes solicita. Cada uma tem a sua função, os problemas
para os quais têm a reza. Das rezadeiras mais antigas, o povo do Quati tem a memória e a
gratidão pela função que desempenharam, como pela falecida há muito tempo a senhora
Joaquina Catingueira, por dona Joana Barba conhecida também como Joana Baiba, senhoras
negras que dedicaram uma vida à função que lhes foi confiada. Das parteiras, a comunidade
rememora o ofício de dona Leonila, conhecida como Mãe Nila, e de Mãe Fába, matriarcas
não só de suas famílias, mas de todo o grupo.
O meu interesse inicial pelo Quati teve início nas aulas de Literatura Brasileira
durante o Ensino Médio no Colégio Comercial Luís Gomes entre os anos de 2000 a 2002 com
a professora Solange Batista. Como proposta de trabalho, ela nos pediu que entrevistássemos
pessoas antigas da cidade e das comunidades rurais. Em entrevista ao poeta popular Joaquim
de Benvinda, este narrou a história dos negros do Quati, de Pedro Ventura e da dificuldade em
conversar com eles sobre o passado da escravidão. Havia histórias de pessoas, de
antepassados, que possivelmente tinham marcas no corpo e falar deste assunto era doloroso,
as feridas históricas ainda estavam muito vivas nas histórias de vida desse povo. Nas aulas de
Literatura, a professora Solange sempre retomava a história dos negros do Quati,
principalmente quando a escola literária trabalhada permitia o diálogo, como a poesia
romântica de Castro Alves, que tratava da dor dos negros escravizados. Essa experiência foi a
base para um futuro trabalho acadêmico concretizado por meio desta tese que me permitiu
revisitar a cultura e os seus agentes cujo primeiro contato se deu ainda na educação básica.
As moagens no Quati, no engenho dos Hermógenes, família da professora Solange,
eram uma situação social propícia à narração e à cultura dos negros era sempre rememorada
por trabalhadores, alunos e visitantes. Como também o período em que participamos de um
projeto intitulado Viagem Nestlé pela literatura do qual não me afastei, embora no terceiro
ano do ensino médio, minha professora de Língua Portuguesa fosse outra e Literatura
Brasileira tenha sido retirada da grade curricular. No diálogo possível entre a literatura erudita
e a popular, a história oficial escrita e a oralidade proporcionada pelo repensar da Nova
História:
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Apesar de o currículo escolar privilegiar o cânone da literatura, a professora
conseguia relacionar a literatura erudita com a popular, e nessa se inscrevia a
literatura e a cultura dos povos do Quati. Em leituras como a da obra “Fogo
Morto”, de José Lins do Rego, em que a presença do negro é bastante
acentuada pelo autor, a professora Solange apresentava os principais
personagens do grupo social do Quati, como a Velha Totonha, narradora
criada por José Lins do Rego como metonímia dos negros contadores de
histórias que viviam nas fazendas, trabalhavam nos engenhos, e das negras
que eram amas de leite e transmitiam a sua cultura em forma de narrativas às
crianças que cuidavam. Os personagens negros do Quati, personagens reais
que transformavam suas experiências de vida em narrativas, eram parteiras,
rezadeiras, agricultores, artesãos que conheciam sua cultura ancestral e a
transmitiam, pela oralidade, ao seu povo. Como a comunidade é formada por
descendentes de negros e de brancos, criados em convívio, como no caso da
professora Solange Batista que era afilhada de fogueira da senhora Maria da
Conceição Ventura, conhecida popularmente como Maria Nova, com quem
conviveu e bebeu na fonte a cultura popular afro-brasileira, conhecendo os
rituais de rezas e benzimentos próprios dos povos negros, que faziam de
dona Maria Nova uma agente da cultura do seu povo (SILVA; FONSECA,
2017, p. 245-246).
A oralidade característica das manifestações culturais dos povos afrodescendentes, o
veio narrativo próprio dos povos negros para a transmissão memorial da cultura ancestral
estava presente nas aulas de literatura brasileira. Dona Maria Nova era a Velha Totonha das
comunidades de Quati e Lagoa do Mato e sua voz foi transplantada da sua comunidade para a
sala de aula que também se tornou sua comunidade de ouvintes através dos relatos e
experiências repassados pela professora Solange Batista. Após o trabalho em sala de aula, os
alunos conheceram a comunidade e sua narradora. Fomos até a Velha Totonha e seu
“engenho” narrativo conhecer as muitas histórias do seu povo. Nessa proposta de trabalho
com a literatura:
Assim, a professora conseguia incluir a literatura e a cultura afro-brasileira
na sala de aula, pois dona Maria Nova, sempre de rosário no pescoço, como
herança colonial das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos, tornava-se tão interessante aos olhos dos alunos, quanto a Velha
Totonha de José Lins. Suas histórias encantavam as aulas, que se
diferenciaram por ocorrerem em campo, em vistas à residência de dona
Maria, em entrevistas feitas pela professora e pelos alunos durante o projeto
Viagem Nestlè pela Literatura, ocorrido entre os anos de 2000 a 2002. Um
tema evitado durante as entrevistas, principalmente pela convivência da
professora com membros da comunidade, era a escravidão, pois essa página
da história se constitui como um trauma na memória coletiva, trauma que
não se dissocia da cultura negra, conforme Paul Gilroy (2002) em sua obra
‘O Atlântico Negro’. Essa experiência pedagógica oportunizou que os alunos
do município de Luís Gomes conhecessem a cultura afro-brasileira local,
desconhecida até então nas escolas, e que os alunos provenientes dessa
comunidade pudessem reconhecer a importância de sua cultura, elaborando
dessa forma um sentimento de pertencimento a uma cultura historicamente
50
eliminada das escolas e da sociedade em geral. Nessa metodologia de
associar a literatura erudita à popular, o currículo nacional aos temas locais,
inovando os conteúdos das aulas para fora dos muros da escola, numa
pesquisa etnográfica por meio da história oral, a professora Solange Batista
não se restringiu às datas comemorativas em que os povos afrodescendentes
eram lembrados de forma vaga e superficial, mas como grupo não apenas
étnico, mas cultural (SILVA; FONSECA, 2017, p. 246-247).
Ressaltamos a contribuição da professora e de sua perspectiva de ensino para o
surgimento futuro deste trabalho, pois a interação com a literatura e a cultura sejam elas orais
ou escritas, eruditas ou populares, tem uma importante função na elaboração de uma
identidade cultural, desde a local até a nacional. Principalmente, quando estas literaturas e
cultura foram elaboradas pelos povos afrodescendentes em resistência ao silêncio e ao
massacre que lhes foi imposto ao longo da história. Muito da literatura considerada erudita,
como a do escritor José Lins do Rêgo, apresenta a contribuição dos narradores negros, como a
Velha Totonha, na obra Invenção e Memória, de Lygia Fagundes Telles (2000) no conto “Que
se chama solidão” em que a escritora narra a participação em sua história de vida da sua
pajem Maricota, negra que embalou a menina com suas histórias. Trazer à tona estas
influências na escola é reavivar a importância do negro na formação da cultura e da identidade
brasileira. Nesse sentido:
Embora os negros africanos tenham sido escravizados, sofrido maus-tratos e
submetidos a condições desumanas, jamais deixaram de propagar sua arte,
cultura, dança, e durante um longo período, contribuíram de modo
significativo para a construção da identidade brasileira. Desse modo, o da
cultura afro-brasileira e as discussões sobre os aspectos históricos e literários
afro-brasileiros em sala de aula contribuem para uma conscientização acerca
das relações étnicas e raciais. Assim torna-se fundamental que professores
trabalhem a história, a cultura afro-brasileira e indígena no âmbito
educacional, para que se discuta a importância e a influência desses povos
para a formação cultural brasileira, e se desconstrua o ponto de vista
negativo do negro no Brasil (SILVA; FONSECA, 2017, p. 237).
Também nas pesquisas de campo para a Lagoa de Pedra, para a feira de Cultura
Metamorfose Sertaneja, no final do ano de 2007, do Colégio Municipal Padre Osvaldo,
quando eu já estava graduado em Letras e continuava professor temporário de Língua
Portuguesa, além de aluno do Curso de Especialização em Literatura e Estudos Culturais,
durante a passagem pela estrada que divide o Quati e a Lagoa do Mato, a professora Solange
Batista que nasceu e foi criada na Lagoa do Mato, sempre mostrava as casas das pessoas
antigas e representativas da comunidade, retomando vozes ancestrais, histórias, do lugar.
51
No projeto pedagógico em comemoração ao centenário de nascimento do escritor
João Guimarães Rosa intitulado “Caravana da Leitura percorre sertões e veredas da
Linguagem”, no início de 2007, junto com a professora Solange e demais professores de
Língua Portuguesa como eu, Sílvia Pinheiro e Ana Maria Limão tivemos contato com muitas
lendas e narrativas coletadas pelos alunos e assim muitas histórias sobre os povos negros do
Quati e da Lagoa do Mato. Dentre os narradores ouvidos pelo nosso grupo nesse projeto,
estavam dona Lucília Fonseca, parteira, dona Raimunda de Juliana e “Outro contador é
Joaquim Alves de Fontes, conhecido como Joaquim de Benvinda, que além de contar
histórias, é poeta, apesar de pouco ler e escrever, compõe cantos para aboiar” (FONSECA;
CARVALHO; RODRIGUES; RODRIGUES, 2011, p. 26). Este narrador transmite a memória
dos povos negros do Quati e da Lagoa do Mato por ter nascido e se criado nessas
comunidades e convivido por muito tempo com suas histórias e experiências de vida. Na
perspectiva da feira de cultura, o olhar sobre as rezadeiras do Quati se tornou um rico cabedal
para um futuro trabalho de pesquisa, pois:
As pesquisas realizadas na preparação do evento mostraram que a tecnologia
moderna chega ao sertão, mas as práticas populares continuam a existir e
fazer parte de muitas pessoas do município. Por exemplo, as mesmas pessoas
que procuram os médicos, também procuram as rezadeiras e benzedeiras em
casos de doenças, bem como as parteiras em caso de gravidez. A televisão,
moderna contadora de histórias, que conta e mostra ao mesmo tempo,
Investigações pedagógicas: reflexões sobre experiências educativas convive
com as histórias narradas na zona rural e também na zona urbana como
forma de passatempo e de ensinamento de valores, nas calçadas ou alpendres
das casas dos contadores”. (FONSECA, et. al. ,2011, p. 21-22).
Na dinâmica da história, conhecemos no final de 2007, a pesquisa Memória,
narrativa e identidade regional: um estudo sobre os contadores de histórias do Alto Oeste
Potiguar, coordenada pela professora Lílian de Oliveira Rodrigues, e que também se
constituiu como um passo decisivo no despertar desse trabalho. Mais tarde no decorrer de
2008, com uma parceria da pesquisa do grupo da professora Lílian Rodrigues com os
professores de língua portuguesa do Colégio Municipal Padre Osvaldo, nos unimos para
coletar estórias a partir das histórias de vida dos contadores, entre estas as narrativas dos
contadores sobre os povos do Quati, que nos foram repassadas pela professora Solange nos
nossos debates, embora não tenha dado tempo realizar a pesquisa na comunidade.
A partir do ano de 2012, por razões particulares, passei a frequentar a casa de dona
Naldir na cidade de Luís Gomes e de dona Lurdes na comunidade de Lagoa do Mato. Ao
receber os ritos de benzimentos, percebi a riqueza da oralidade subjacente a rezas e orações
52
que não se limitavam à repetição de gestos e palavras. Havia uma complexa situação social
que justificava sua função inscrita na coletividade, baseada numa rede de trocas simbólicas e
sociais. O poder simbólico que lhes é atribuído provém da tradição e da memória.
Inicialmente, mesmo antes deste projeto de pesquisa surgir, dona Lurdes e dona Naldi já eram
minhas rezadeiras e eu já conhecia empiricamente os sujeitos deste trabalho. Geralmente
frequentava suas casas, na cidade, a de dona Naldi e, no sítio Lagoa do Mato, a de dona
Lurdes, às segundas-feiras, quartas e sextas, dias propícios aos ritos. Quando dona Naldi
viajava, era dona Lurdes que eu procurava para as rezas. Na maioria das vezes, suas casas
estavam cheias de pessoas, adultas e crianças à procura das rezas. Percebi que, apesar da
distância dos séculos da diáspora africana até os dias atuais, a religiosidade ancestral se
mantém cada vez mais viva, não numa perspectiva folclórica, de manutenção do passado num
presente apenas por apreciação exótica, como muitas danças e festas. O papel social das
rezadeiras seja nas cidades ou nas comunidades rurais é uma retribuição pelo dom que
receberam e pela tradição que lhes foi confiada. Segundo Gutemberg Costa (2009, p. 246)
“Elas não cobram pelo seu trabalho. Ninguém vá a uma rezadeira pensando que elas vão
cobrar pelos seus serviços. Não se fala em dinheiro”.
Costa ressalta a gratuidade do exercício da função das rezadeiras. Que ninguém
pague pelos seus rituais, assim como jamais ouvimos falar de um narrador popular legitimado
por seu grupo que cobrasse pelas suas narrativas, a não ser os que já folclorizados realizam
apresentações culturais A função de rezadeira, enquanto guardiã e transmissora da memória
do grupo se baseia na reciprocidade, na lógica social do dividir que rege as culturas populares.
E a retribuição do dom divino conforme acreditam terem recebido e dos ensinamentos que
lhes foram transmitidos pelos antepassados que motivam o compromisso das rezadeiras, como
exerceu sua função de cuidar dos mortos dona Maria José segundo Rodrigues (2006).
Vejamos:
Nas culturas populares, pude observar que essas trocas se constituem
baseadas na reciprocidade. Sendo assim, é possível tecer relações entre a
atitude de prestar, de forma beneficente, seu esforço de encaminhar os
mortos e a instituição de um dom, que é uma dádiva divina. Dessa forma,
como a função de curar com os benzimentos, cuidar dos mortos também
seria assumir um compromisso de exercer essa prática em favor dos seus e
daqueles que dela necessitam (RODRIGUES, 2006, p.252).
A função de rezadeira é intrínseca a de narradora. Rodrigues também esclarece em
seu trabalho as diferentes identidades da artista popular e a complexidade do seu papel social,
53
pois Dona Militana é o nome de registro civil e artístico da romanceira, enquanto na
comunidade ela era conhecida como Dona Maria José. No estudo de Costa (2009), a agente
da cultura popular é apresentada com o nome de Militana, enfatizando que as duas atividades
de rezadeira e romanceira não se separam, pois as rezas se inscrevem nas narrativas. Segundo
Costa:
Dona Militana que é conhecida como romanceira, canta/conta o seu
romance, e é também uma rezadeira, embora não seja tão conhecida como
tal, pois a sua fama maior é mesmo a de romanceira. Percebemos ainda que
essas duas atividades, estão de certo modo entrelaçadas, uma vez que o
romanceiro tem suas origens na Idade Média, época em que nos traz motivos
de ordem religiosa. A religiosidade popular, as superstições, as crendices,
quem não as tem? (COSTA, 2009, p.246):
Dona Militana enquanto exímia conhecedora da cultura popular do seu povo reuniu
em sua atuação as funções de romanceira e de rezadeira, pois as narrativas, seus conselhos e
lições de vida, estão presentes nas atividades das rezas como veremos nos relatos de vida das
colaboradoras deste trabalho. A narrativa, seja em forma de romance, relato de vida, contos
orais populares, histórias da vida dos santos, traz as marcas da religiosidade e do universo
cotidiano do narrador, principalmente se este for um rezador ou uma rezadeira. Para o autor, a
religiosidade popular é constitutiva da identidade da artista. Como pudemos testemunhar no
convívio com as rezadeiras, o momento das rezas é sempre acompanhado de narrativas, de
lições de vida e conselhos, não se restringem às rezas e orações. A memória do grupo, a
transmissão das experiências é o contexto em que as rezas se inserem. Elas não se constituem
como um objeto isolado, uma manifestação à parte da dinâmica social. Como os descendentes
da África historicamente sofreram a marginalização da sua cultura, suas histórias de vida
foram, ao longo do tempo, silenciadas, numa tentativa de eliminação simbólica de suas
identidades. Seus sofrimentos e traumas gerados pelo contexto colonial da escravidão não se
destacam na história oficial, é na tradição oral que são transmitidos e encontram espaço de
resistência.
Conforme Fanon (2008), o conflito de muitas culturas negras no contexto pós-
colonial é branquear ou desaparecer. Esse desaparecimento passa pela violência do
silenciamento de suas histórias de vida, da omissão da contribuição dos povos
afrodescendentes para a cultura e a história do Brasil. Branquear no contexto das rezadeiras
do Quati foi todo o processo de cristianização dos negros, de imposição do catolicismo
português hoje vigente nas comunidades. Porém como forma de subversão à religião
54
colonizadora, as rezas e ritos, envolvidos numa atmosfera de literatura oral e de memória,
contribuem para o reconhecimento do viés africano de suas identidades como uma maneira de
atualizar o passado ancestral com a vivência do presente. Apesar de posicionada como uma
cultura subalterna e marginalizada diante da branquitude hegemônica, conforme Duarte
(2012), que, da mesma forma que o negro apresentado pelo olhar de autores brancos se
representa como estereótipo, também a sua religiosidade revestida de traços africanos e
elaborada de maneira que os discursos de centro do branco hegemônico e católico não
prevaleça, é marginalizada e considerada muitas vezes como diabólica.
Nesse sentido, o papel social das rezadeiras negras numa comunidade
afrodescendente atua não somente no serviço que desempenham em ajudar os doentes, curar
mal-olhados, mas principalmente na elaboração da memória cultural do seu povo, num jogo
de trocas simbólicas em que elaboram também as suas identidades. Segundo Sebastião
Marques Cardoso (2014, p.90), “Em sujeitos colonizados ou colonizadores, reside, na base
constitutiva da identidade, um desejo de ocupar o lugar do Outro, de modo que essa
identidade é inicialmente construída com base nessa ‘relação’ conflituosa com o sujeito
externo.” Hibrididizar é caminhar na direção do outro. Assim, pensando ainda na esteira de
Fanon (2008) em que a identidade negra caminha em direção ao outro, ao elemento de fora da
sua cultura, as rezadeiras não desejam ocupar o lugar desse outro, mas ao construírem uma
cultura híbrida no sentido dado por Canclini (1997), misturando elementos católicos com
elementos africanos ancestrais, inserindo traços que formam o viés afro-brasileiro, constroem
uma identidade complexa com representações voltadas para o branco e para o negro. Essas
duas dimensões da identidade, conforme Cardoso (2014), uma voltada para o branco e outra
para o negro, é o núcleo complexo desse jogo em que se situa a identidade dessas mulheres
negras e de condição humilde numa sociedade ainda marcada pelos preconceitos racial e
cultural. Católicas, essas mulheres não se declaram membros de religiões de matrizes
africanas vivenciadas por grande parte dos afrodescendentes do Brasil, como a umbanda e o
candomblé, e a religião católica foi historicamente uma imposição para branquear a
religiosidade ancestral e eliminar a religião que atravessou o Atlântico.
Assim, pensarmos as relações entre a globalização e a “construção de um outro
mundo, mediante uma globalização mais humana” (SANTOS, M., 2006, p. 10) é
compreendermos como os contextos históricos dos povos afrodescendentes no Brasil
propiciaram o surgimento de novas manifestações culturais em novos espaços, construindo
uma nova história para esses povos cuja característica principal é a misturas de culturas.
Assim:
55
Considerando o que atualmente se verifica no plano empírico, podemos, em
primeiro lugar, reconhecer um certo número de fatos novos indicativos da
emergência de uma nova história. O primeiro desses fenômenos é a enorme
mistura de povos, raças, culturas, gostos, em todos os continentes (SANTOS,
M., 2006, p. 10).
É nesse fenômeno primordial na construção de uma nova história, dessa mistura
intercontinental de culturas que se inscreve a função social das rezadeiras, principalmente
porque a maneira como agem e os traços religiosos e culturais que apresentam são singulares
por serem oriundos e próprias da história do Brasil.
A atuação das rezadeiras evidencia a cultura do negro, dá voz a sua identidade. Nesse
contexto, a comunidade afro-brasileira do Quati possui uma riqueza cultural que rompe o
silêncio hegemônico a que foram submetidos os afrodescendentes. Formada por
características que unem a África ao Brasil, com traços historicamente tecidos para compor a
afro-brasilidade, as manifestações culturais nos mostram a importância dos povos negros na
resistência de suas identidades. Sua memória transmitida oralmente pelas rezadeiras reaviva
uma cultura que, da diáspora africana até os dias atuais, não apenas resgata o passado, mas se
ressignifica e subverte a cultura branca hegemônica, elaborando a face de um povo que se
representa em diálogo com os traços colonizadores sem perder de vista seus traços mais
significativos.
Na compreensão da memória das rezadeiras do Quati e do seu diálogo com o
catolicismo, religião oficial do colonizador, o signo sincretismo é entendido como uma fusão
dos elementos e manifestações de duas religiões com adaptações de uma a outra. No caso dos
rituais das rezadeiras, estes se inscrevem melhor no conceito de culturas híbridas abordado
por García Canclini (1997), pois estas manifestações culturais não atravessaram o Atlântico
negro nem os séculos de forma estática, como também não foram assimiladas de forma
passiva. Daí a capacidade dos agentes das culturas populares, transmissores e narradores de
uma memória ancestral que se atualiza constantemente, de uma cultura que se branqueia,
compreendendo na esteira de Fanon (2008) para não desaparecer, como ocorreu com o
sincretismo da religiosidade africana com a católica portuguesa, para que a cultura trazida da
África pudesse sobreviver e tivesse a possiblidade de ser transmitida e rememorada. O
sincretismo se constituiu como uma negociação cara com o branqueamento da cultura
africana, com prezuízos para as raízes ancestrais, mas foi uma estratégia de sobrevivência que
permitiu o não apagamento do legado africano e a continuação dos seus ofícios ligados aos
elementos mágicos e ao culto dos orixás em solo brasileiro, ressignificados como pais e mães
56
de santo, rezadores e rezadeiras. Apesar da dominação colonizadora, o sincretismo tem o seu
caráter de resistência para a preservação dos traços culturais da identidade africana e sua
reelaboração como identidade afro-brasileira.
Na obra Culturas Híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade, Garcia
Canclini reflete sobre o pensamento predominante de que as culturas populares permanecem
paradas no tempo, como se os contextos históricos e sociais não se modificassem e com isso
as culturas neles inseridas. Por exemplo, as rezadeiras do Quati não recebem incentivo
governamental para continuarem a atuar em suas comunidades, como ocorre com
determinados grupos parafolclóricos que se apresentam em festivais e não atuam em
contextos reais. Tampouco se apresentam em festas da comunidade. Sua função social não se
trata de uma tradição puramente resgatada e, para o antropólogo, “O problema não se reduz,
então, a conservar e resgatar tradições supostamente inalteradas. Trata-se de perguntar como
estão se transformando, como interagem com as forças da modernidade” (CANCLINI, 1997,
p. 218).
Nesse sentido, os povos negros chegados ao Brasil conviveram com os rituais
católicos e seus símbolos como terços, crucifixos, santos de devoções. A sua cultura de buscar
curas e soluções de problemas por meio dos elementos mágicos e da utilização de plantas é
uma herança diaspórica, trazida do negro malê originado da Nigéria e que se identificavam
como mandigueiros, cuja cultura e religiosidade deram origem ao candomblé e a umbanda,
formas de religiosidade afro-brasileiras que, no passado colonial, se revestiram de um
catolicimo popular que oportunizou o seu culto. Assim:
Dos negros malés, chegado na corrente negreira, vindos da Nigéria,
assimilamos o conceito do mágico e do demônio como causadores de
doenças. Mandingueiros, segundo sua autodenominação, sabiam o segredo
das plantas afrodisíacas e de sentido mágico protecional. Mais que a magia,
desenvolveram em terras brasileiras os candomblés e macumbas que,
deturpado no tempo e no espaço, transformaram-se em verdadeira religião
miscigenada com os princípios espíritas do kardecismo.
Os portugueses, simbolizando o velho continente europeu com todas as
influências do norte-africano e da bota itálica, trouxeram para o Brasil, ainda
jovem uma medicina incipiente e mal-acabada. Os médicos da Corte do
Infante Dom João VI eram, sem dúvida, os melhores. Entretanto, os médicos
destacados para as províncias, e até os que iniciaram as práticas nas maiores
cidades, no século XVI, não passavam de cristão novos, batizados à força do
medo da fogueira inquisitorial e que alinhavam os preceitos mais
rudimentares das práticas hipocráticas ao precário conhecimento da
medicina popular que não haviam aprendido (ARAÚJO, 2003, p.21-22).
57
A Igreja Católica e a Coroa fizeram uso da religião para colonizar negros e índios.
Apesar do catolicismo imposto, os curandeiros negros hibridizaram as suas crenças e rituais,
não ocorrendo uma anulação da herança dos seus ancestrais nem uma justaposição dos ritos,
uma união perfeita, mas uma subversão por meio de uma reelaboração da cultura de diáspora
aos novos contextos brasileiros. A permissão do colonizador a esse sincretismo inicial fazia
parte de uma tentativa de dominação e, desde que prevalecesse o culto católico, os negros
podiam trazer as marcas de sua cultura diaspórica. Daí a associação de divindades africanas
com os santos católicos, como por exemplo de São Jorge a Ogum, o orixá guerreiro, de
Iemanjá a Virgem Maria, de Oxalá ao Nosso Senhor do Bonfim. É comum na casa das
rezadeiras encontrarmos uma mesa com imagens desses santos que foram sincretizados com o
catolicismo como forma de cultuar, de forma aceitável, os orixás e divindades de seus
antepassados sem afrontar a cultura dominante, como também as irmandades negras de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos formavam grupos em que lutavam não apenas pela
sobrevivência e pela compra das alforrias, mas para não ter a sua identidade ancestral
eliminada.
A cultura e a religiosidade afro-brasileiras, como também produção da oralidade
originada dessa cultura se reelaboram a partir de uma reapropriação da cultura dominante,
principalmente do catolicismo europeu, essa reapropriação não ocorreu de forma inocente,
passiva. Ela foi intencionalmente elaborada para conviver com os dramas históricos do
tráfico, do desenraizamento de sua cultura ancestral e de sua terra natal. Baseada em Certeau,
Oliveira ressalta a criatividade dos fracos para subverter a dominação e parecer que estavam
assimilando sem resistência a cultura do dominador, elaborando dessa forma uma identidade
subalterna que se constrói sem uma atitude de resistência conforme Santos (2003).
As rezas inscritas em narrativas de vida de suas agentes culturais são uma atitude
responsiva, uma resposta aos múltiplos contatos que fermentam o caldeirão cultural da
memória coletiva da comunidade. Não se trata de uma assimilação passiva dos elementos de
outras culturas, mas de uma fusão que lhes conferiu uma melhor aceitação sem deixar de
manifestar a africanidade de sua cultura. Nesse sentido, Glissant (1997) ao desenvolver o seu
conceito de crioulização e sua leitura de uma identidade rizomática a partir do pensamento de
Deleuze e Guattari de que não há uma raiz principal, mas hastes e filamentos que parecem
raízes (DELEUZE; GUATTARI, 2004) e que se unem por intersecção. Compreendemos que
se construiu uma teia rizomática nas relações entre as culturas africana, indígena e europeia.
A teia rizomática é tecida pela mistura de culturas presente na memória e nas práticas
culturais dos universos das rezadeiras e que constitui, segundo Glissant (2005, p.16, apud.
58
LIMA, T. M. de A., 2007, p. 44). “Um lugar que difrata e leva à efervescência da
diversidade” Assim, nessa efervescência, as rezas e narrativas das rezadeiras do Quati
constroem uma cultura compósita em que a raiz africana saiu em busca de outras linhas de
fuga, numa dinâmica rizomática.
A comunidade do Quati na esteira de Glissant é uma sociedade compósita em que
não se compreende uma raiz majoritária, e sim a poética das relações entre as muitas raízes, a
dinâmica dos contatos ao longo da história e como estes ocorrem nos dias de hoje. Sua
identidade cultural está sob o signo composto afro-brasileiro e dessa forma é compósita, pois
é formada por uma identidade como um rizoma, isto é, não uma raiz única e majoritária e sim
uma raiz em busca de outras raízes, de outras identidades (GLISSANT, 2005). Não há uma
raiz fixa, mas uma raiz em movimento de fuga em direção de outras. Segundo o autor a
crioulização ocorreu de forma desigual e é necessário um despertar valorativo da herança
africana para que ocorra uma intervaloração dos elementos heterogêneos que concorrem com
a cultura africana. No processo pensado por Glissant (2002) de uma crioulização desigual,
apesar da perseguição e do preconceito históricos, as narrativas de vida das rezadeiras
reforçam o valor da herança africana. Embora as rezas se constituam como uma cultura
híbrida se destaca a cultura africana como ponto de resistência que buscamos iluminar neste
trabalho por ela ter sido a mais perseguida e silenciada ao longo da nossa história. Por isso,
esse nosso olhar para as rezas e as narrativas de vida a partir de sua afro-brasilidade. Esse
entrelaçamento de culturas nos apresenta o diálogo histórico entrem as diversas raízes
culturais. Embora muitas pessoas tratem as manifestações e os rituais religiosos afro-
brasileiros com a denominação de religiões de matriz africana, o nosso olhar é de que foi
tecida uma teia de diferentes filamentos seguindo um “Princípio de conexão e
heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve
sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.15).
É no centro das contradições entre a cultura europeia, branca, colonizadora que se
construiu e se constrói na atualidade a identidade híbrida brasileira, singular e única não no
sentido de homogênea, mas por sua riqueza de culturas e contrastes ser uma marca
significativa da nossa identidade nacional e a diferenciar das identidades de outros povos e
nações. Assim:
As igrejas de “Nossa Senhora do Rosário dos Pretos” espalhadas pelo país
evidenciam nossa reapropriação dos padrões da dominação, nosso São Jorge
ou nosso São Benedito, carinhosamente homenageados em algumas de
nossas cidades são produtos dos usos criativos que os “fracos” (CERTEAU,
59
op. Cit.) fazem das regras que, aparentemente, seguem. É assim que essa
mesma europeidade se encontra com aqueles que, não tendo sido
“preservados”, insistem em estar aqui. No seio da contradição entre a riqueza
branca e Europeia e os seus outros é que existem muitos Rios de Janeiros,
muitos brasis que, sendo plurais, mantêm uma identidade única e singular
(OLIVEIRA, 2003, p.31).
Os rituais das rezas não são meramente reproduzidos, mas se reelaboram de acordo
com as histórias de vida da cada agente, de cada rezadeira. Cada experiência de vida tem as
suas marcas identitárias, cada uma delas tem o seu contexto de atuação e como foi eleita pelos
membros do seu grupo social para o exercício da cultura. As rezas se modificam assim como
as histórias de vida de seus agentes sociais, não podemos desconsiderar os processos e ver os
objetos como reproduzidos de um passado ancestral e intacto. Dessa forma, na esteira da
hibridização e da socialização pensadas por Canclini (1997, p.211) “Essa fascinação pelos
produtos, o descaso pelos processos e agentes sociais que os geram, pelos usos que os
modificam, leva a valorizar nos objetos mais sua repetição que sua transformação”. Dessa
forma, as rezas enquanto manifestações e objetos culturais não se constituem como uma mera
repetição, mas como uma reelaboração a partir das singularidades de cada história de vida de
suas agentes. Os usos das rezas não são estáticos, a dinâmica das relações sociais e as marcas
biográficas de cada rezadeira nos esclarecem que não se trata de uma preservação do objeto
cultural, mas da elaboração de uma identidade complexa reveladora de outros nuances da
identidade nacional, de muitos brasis e áfricas subjacentes na construção criativa dessa
identidade.
3.2 A pesquisa de campo: vidas e histórias em vozes e letras
Inicialmente, a pesquisa parte de uma revisão bibliográfica da área com o objetivo de
nos situar nos parâmetros teórico-metodológicos que norteiam os estudos culturais e das
identidades, e de teorias que tratam da memória e da narrativa e história de vida para a
compreensão do universo das rezadeiras. Porém, a história de vida se constitui além do
método que norteou este trabalho. Ela é a base da compreensão buscada sobre o papel das
rezadeiras em que suas manifestações culturais estão inscritas no seu cotidiano, na sua
dinâmica de vida. Nesse entendimento, a cultura popular se funde com a vida de seus
agentes, isto é, a rezadeira é a pessoa, com toda a complexidade que envolve o seu dia a dia, e
não uma identidade à parte. São as histórias de vida das rezadeiras que dão o sentido às suas
rezas e narrativas.
60
Dessa forma, nos reportamos a autores que estudam a cultura popular e a memória
como Maria Ignez Novais Ayala (1988, 1997, 2002), Cascudo (2002); Bosi (2007); Costa
(2009); Xidieh (1996); Rodrigues (2006 – 2009); e sobre as rezadeiras como: Costa (2009);
Resende e Sousa (2005) (2004), e sobre identidade como Hall (2005), entre outros.
A partir das teorias necessárias para a nossa pesquisa, realizamos a
instrumentalização técnico-metodológica e a coleta de dados. Essa etapa da pesquisa se
caracterizou, essencialmente, por entrevistas com as colaboradoras do nosso estudo.
Buscamos conhecer o universo sócio-cultural em que estão inseridas, suas condições
materiais de vida, os ambientes em que é reconhecido como contador, e os fatos marcantes da
sua história de vida. Salientamos que fizemos a gravação em vídeo das entrevistas realizadas
para uma melhor apreensão do diálogo, em que ficarão preservados gestos, olhares, toda uma
linguagem não verbal que nos aporta ao universo de vida das nossas colaboradoras e que a
escrita não é capaz de registrar e repassar completamente.
A escolha da gravação em vídeo se justifica pela intenção de registrar o máximo
possível os detalhes importantes na análise da narrativa, como os gestos e os movimentos
expressos no momento em que o narrador fala sobre sua vida, o que a gravação apenas em
áudio não proporciona, buscando depois no processo de transcrição traduzir essa linguagem
não verbal para a linguagem verbal, aproximando-a do momento da narrativa para que o leitor
da linguagem escrita possa se aproximar da experiência vivenciada pelo pesquisador.
Segundo Maria José da Silva (2005, p.73) “O emissor do discurso oral, o contador de história,
além de usar o poder de sua retórica para prender a atenção do seu público-ouvinte, ainda
recorre ao olhar e a gesticulação; braços, mãos, corpo, tornam-se elementos integrantes desse
discurso no momento da performance (grifo da autora) ” . Esses componentes da performance
também são importantes na narração da história de vida e devem ser observadas pelo
pesquisador, embora nem sempre seja possível traduzi-lo em sua inteireza para a linguagem
escrita.
Após a coleta dos dados, fizemos as transcrições das entrevistas. Nessa etapa do
nosso trabalho, a transcrição foi realizada pelo próprio pesquisador, que conhece cada detalhe
das entrevistas, podendo relembrar e reviver cada momento das entrevistas. Isso é o mais
adequado nas palavras de Queiroz, porque
Ouvir e transcrever a entrevista constitui, para ele, um exercício de memória
em que a cena é revivida: uma pausa do informante, uma tremura de voz,
uma tonalidade diferente, uma risada, a utilização de determinada palavra
em certo momento, reavivam a recordação do estado de espírito que então
61
detectou em seu interlocutor, revelam aspectos da entrevista que não haviam
sido lembrados quando efetuou o registro do dia no caderno de campo, ou
mesmo dão a conhecer detalhes que, no momento da entrevista, lhe
escaparam(QUEIROZ, 1991, p.87).
Outro fato importante a ser considerado foi a utilização do diário de campo em que
registrei as situações em que as entrevistas foram realizadas, sendo descrita no dia em que
ocorreram como requer o gênero diário, que foi indispensável tanto na transcrição como para
a compreensão das narrativas de vida e do contexto em que aconteceram as entrevistas.
Com relação ao ambiente e momento social das entrevistas, salientamos que estas
não se restringiram apenas ao dia da gravação. Conforme já descrevemos, foram anos de
convívio com as rezadeiras do Quati para que estas se sentissem tranquilas a relatarem suas
histórias de vida a partir de um núcleo tão complexo que é a cultura afro-brasileira, suas rezas
e função social herdada dos antepassados do grupo social, de familiares que eram referência
na cultura e na memória da comunidade. Esse contexto tornou propício a liberdade de
perguntar e de narrar, não ignorando as diferenças entre os universos do pesquisador e das
colaboradoras, mas ancorados na identificação construída ao longo da convivência e do
respeito às práticas e manifestações culturais populares. Nesse sentido, Portelli explica que:
Devemos, não obstante, fazer um esforço para criar um ambiente em que as
pessoas tenham condições de estabelecer os próprios limites e de tomar as
próprias decisões a esse respeito. Não o conseguiremos ignorando as
diferenças que nos tornam desiguais, nem paternalística (e desonestamente)
simulando uma igualdade que inexiste. Em vez disso, devemos deitar por
terra a diferença, encará-la menos como uma distorção de comunicação de
que como a própria base desta e situar a conversa no contexto da luta e do
trabalho, com o intuito de criar igualdade. Temos um interesse não apenas
ético, mas também profissional nesse processo (PORTELLI, 1997, p.20).
Embora eu já fosse um frequentador assíduo da comunidade ou até mesmo da casa
das rezadeiras, busquei basear meu trabalho no respeito a esse universo, atitude rara e
estranha para o grupo tantas vezes abordado a falar apenas da escravidão e se tinham
conhecimento de atrocidades e maus-tratos cometidos contra seus ancestrais. Porém, as
manifestações culturais e as histórias de vida dos afrodescendentes não se limitam à memória
da escravidão. A preocupação excessiva com o passado escravista originou uma compreensão
inadequada da cultura dos povos do Quati e gerou preocupação por parte de alguns
pesquisadores e gestores culturais em fazer uso dela apenas para tombamento e confirmação
de uma comunidade como quilombola. Também não consegui nem objetivava um
distanciamento durante a pesquisa em um universo que já se tornou parte do meu cotidiano
62
pessoal e de pesquisador. Seria prejudicial a pesquisa naquele momento manter ou forçar um
distanciamento que não existe nas relações cotidianas. Como também não me envolvi com a
paixão que tenho pelo universo da pesquisa para que a empolgação não prejudicasse o
diálogo, busquei o equilíbrio entre a empatia e a objetividade, sem forçar uma impossível
neutralidade. Busquei tecer o dialogismo e a interação necessários a uma pesquisa ancorada
na história oral e mais especificamente na história de vida (PORTELLI, 1997).
Como a nossa pesquisava envolveu três colaboradoras e o seu norte era uma temática
complexa como o papel social das rezadeiras em meio ao seu grupo enquanto agentes da
cultura popular afro-brasileira, a elaboração de uma identidade na relação com os outros
membros da comunidade, foi realizada uma entrevista com cada uma. Porém, o fato de ter
sido apenas um encontro com cada colaboradora entrevistada não comprometeu a qualidade
das entrevistas pelo contato prévio que eu já possuía com elas e suas práticas culturais e
mesmo sendo apenas uma entrevista, esta não se constitui como depoimento e sim como
história de vida pela liberdade de narrar e a disposição de falar sobre suas vidas. Nesse
sentido, tem razão Montenegro (1994, p. 151) ao afirmar que “O fato de um pesquisador ter
um perfil da história de vida do entrevistado aumenta, de forma significativa, a compreensão
da própria memória do depoente”.
Apesar da gravação da entrevista com cada colaboradora ter ocorrido em um
encontro, prevaleceu como técnica de pesquisa a história de vida pela liberdade de narrar, a
proximidade gradativamente construída entre o pesquisador e as rezadeiras em anos de
convivência e a prática de intervir o mínimo possível nas falas das entrevistadas e o respeito
aos seus silêncios e escolhas sobre o que relatar de suas histórias de vida. Assim segundo
Queiroz:
A diferença entre história de vida e depoimento está na forma específica de
agir do pesquisador ao utilizar cada uma dessas técnicas, durante o diálogo
com o informante. Ao colher um depoimento, o colóquio é dirigido
diretamente pelo pesquisador; pode fazê-lo com a maior ou menos sutileza,
mas na verdade tem nas mãos o fio da meada e conduz a entrevista. Da
‘vida’ de seu informante só lhe interessam os acontecimentos que venham
inserir-se diretamente no trabalho, e a escolha é unicamente efetuada por
este critério. Se o narrador se afasta em digressões, o pesquisador as corta
para trazê-lo de novo ao seu assunto. Conhecendo o problema, busca obter
do narrador o essencial, fugindo do que lhe parece supérfluo e desnecessário.
(QUEIROZ, 1991, p.7):
Nesse sentido, embora a gravação das entrevistas tenha ocorrido em um único dia, a
pesquisa com as rezaderias foi ancorada na história de vida, pois além da liberdade de narrar
63
havia o critério da confiança entre o pesquisador e as colaboradoras entrevistadas neste
trabalho. Daí surgiram muitos outros assuntos além da temática das rezas nas falas das
rezadeiras e que, pelo viés da história de vida, têm igual importância para a compreensão de
suas memórias individuais e coletivas. Até porque já trazido à luz neste trabalho a interação e
a socialização do pesquisador com as rezadeiras não se limitou aos dias das entrevistas, houve
e há uma convivência com essas mulheres e suas práticas culturais e religiosas que ultrapassa
a pesquisa e se insere numa relação de amizade, respeito e crenças comuns. Suas narrativas de
vida não foram ouvidas apenas na pesquisa. Foram ouvidas gradativamente até que percebi o
sentido que estas manifestações da cultura popular afro-brasileira apresentavam para a
comunidade e decidi ir além da relação cotidiana com as rezadeiras com o desenvolvimento
de uma pesquisa mais sistemática. O desenrolar deste trabalho confirmou o pensamento de
Rodrigues (2006) quando afirma que, em uma pesquisa no campo da oralidade e da cultura
popular, a história de vida é compreendida por meio da disposição e do interesse em ouvir que
se propõe a narrar e partilhar suas experiências com outras pessoas, membros de outros
grupos diferentes do entrevistado, como no caso do pesquisador.
As comunidades de Quati e Lagoa do Mato são detentoras do patrimônio cultural
afro-brasileiro, universo que só podemos compreender no convívio com suas práticas
cotidianas. Tanto durante a nossa troca de experiências entre eu e os membros da comunidade
ao longo dos últimos anos, como no decorrer desta pesquisa, percebemos que o povo
afrodescendente das comunidades não perdeu a sua identidade por mais que historicamente os
povos negros tenham sofrido os massacres da diáspora e da escravização. Ela se tornou uma
identidade compósita no entendimento de Glissant (2005). Para Barros (2008, p. 337) “Povo
sem história é povo sem consciência, morador sem cidade, árvore sem raiz, cidade sem face,
gerações sem identidade”. No caso das comunidades em estudo, há uma multiplicidade de
raízes culturais na formação da sua história e identidade que constitui a riqueza da sua face.
Com a tranmissão memorial da cultura dos antepassados, o povo do Quati não se inscreve nos
povo sem história e sem face descrito pela pensadora ao se referir a devastação do patrimônio
histórico sertanejo impulsionado pela modernidade e pelo capitalismo na cidade de Juazeiro
do Norte, terra do Padre Cícero. O Quati não perdeu sua história e é significativa a
contribuição de suas rezadeiras motivadas pela fé e devoções recebidas dos ancestrais e
reelaborada em suas histórias particulares de vida influenciadas pela socialização com a sua
gente. As narrativas e as rezas constroem o espaço simbólico onde as vozes ancestrais podem
reviver.
64
O silêncio vivido durante a época da escravidão não mais abafa as vozes da memória
e o Quati se constitui como um sítio histórico da cultura afro-brasileira da região onde o
universo das rezadeiras negras reaviva um passado de resistência, revestido de uma atmosfera
encantada só alcançável pelo poder de suas vozes. Suas narrativas de vida inseparáveis das
rezas, orações e rituais de benzimentos, do conselho e das lições de vida cuja autoridade
conferida pela experiência se inscrevem no viés africano de sua cultura e história. Sua função
social no grupo foi herdada do griots, narradores africanos, e hoje recordam a riqueza da
mestiçagem cultural em que suas vidas se inscrevem. Suas casas procuradas e constantemente
visitadas pelos membros do seu grupo e pessoas da cidade como santuários vivos de uma
cultura e religiosidade que não apenas sobreviveu à colonização e ao preconceito, mas que
cotidianamente se renova e se ressignifica de acordo com as necessidades do grupo, sejam
estas de natureza prática com a medicina caseira ou simbólica como as narrativas e rezas,
ambas correspondem à necessidade de manter vivo e forte o laço identitário que une o grupo.
Esse universo não teria sido compreendido se a pesquisa se restringisse apenas às
entrevistas e não fossem anos de convivência com as rezadeiras. Por isso, nas pesquisas com
culturas populares e dentro delas com o universo específico da oralidade, a paciência é o
norte. A cultura é indissociável do cotidiano e é na lida diária que se reveste de sentido. Foi
preciso tempo e paciência para o estudo das narrativas de vida das rezadeiras e assim deve ser
em toda pesquisa nas culturas populares. Tem razão Xidieh ao afirmar que
A paciência é um dos melhores passos do método de pesquisa de campo e
que o grupo todo dentro do seu contexto sócio-cultural é o que realmente
importa, concedendo-se, evidentemente, certa importância àqueles
informantes por eleição, porém não absoluta importância. (XIDIEH, 1993, p.
24)
Como portadoras e transmissoras das tradições, do patrimônio imaterial dos negros
do Quati e Lagoa do Mato, as rezadeiras trazem em seus relatos e narrativas de vida a
memória dos ancestrais, a riqueza cultural muitas vezes perseguida. Por isso a cultura dos
negros é revestida das marcas dolorosas da escravidão e do preconceito racial, religioso e
cultural. Nas recordações das colaboradoras entrevistadas, suas rezas encontram sentido
enquanto prática social de resistência da memória afrodescendente. O histórico silêncio dos
membros da comunidade do Quati se deve, além dos traumas históricos da escravidão e do
racismo, à visão orientalista na esteira do pensamento de Said (2007) de que foi e é objeto a
história e a cultura destes povos afrodescendentes. O orientalismo de Said descreve e analisa a
postura eurocêntrica sobre diversos aspectos das culturas orientais, como a herança africana
65
presente e constitutiva dos elementos culturais afro-brasileiros, de vê-la por um viés exótico
que contribui com a elaboração de estereótipos, legitimando assim uma dominação sobre
esses povos. O núcleo temático da escravidão é um dos pontos tratados sob o viés
eurocêntrico e do exotismo como se fosse somente essa a contribuição dos povos negros.
Quando a pesquisa com afrodescendentes foca apenas no passado escravagista, remexendo
em feridas históricas, a resposta será a recusa e o silenciamento por parte dos sujeitos. Sua
cultura não se restringe à memória da escravidão. Concordamos com o pensamento de
Canclini (1997, p. 211) quando afirma que “Essa fascinação pelos produtos, o descaso pelos
processos e agentes que os geram, pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetos
mais sua repetição que sua transformação”. O descaso com os agentes e os processos sociais
que permeiam suas histórias de vida é o que gera o silêncio enquanto fuga e meio de se evitar
ainda mais sofrimento.
Embora a identidade cultural dos negros seja marcada e indissociável do trauma
histórico da escravidão, para fazer uso das palavras de Gilroy (2001), ela não se restringe as
lembranças deste passado. Sua cultura e história estão além desta fase e sob os signos da
resistência e da hibridização atravessaram os séculos. Sobre isso:
O silêncio dos moradores do Quati parece se firmar como modo de
reelaboração da identidade dessa comunidade. Ao reconstruir sua história,
esses moradores escolhem contar-se de um modo diferente daquele
legitimado pela História oficial. Dito de modo diferente, não lhes interessa
falar sobre a escravidão, condição miserável à que foram subjugados seus
antepassados. Esses sujeitos querem falar de si próprios, de suas lutas, de sua
coragem e de sua resistência aos preconceitos sofridos. Relembrar o passado
é, para esses sujeitos, silenciar uma identidade marcada pela opressão, pela
dominação do branco e reconstruir uma história de coragem, de força, de
trabalho (CARVALHO, 2010, p. 104-105).
Se o eixo central da pesquisa com as rezadeiras negras do Quati fosse a memória da
escravidão, por mais que a técnica da história de vida evite ser invasiva, ainda sim seria um
assunto delicado e difícil de se tratar. O modo de construírem a sua história, a sua identidade é
falar do seu papel na comunidade, de como encontraram e construíram espaços para dar
continuidade às práticas memoriais da cultura que lhes foram transmitidas. Falar das rezas, do
reconhecimento que recebem dos membros do seu grupo social, do processo de aprendizado
durante a transmissão memorial da função de rezadeira é a sua maneira particular de inscrever
a sua história pessoal por meio da memória e do poder de voz. Assim “a memória emana a
coerência de uma escritura e de uma inscrição do homem e de sua história pessoal e coletiva”
(ZUMTHOR, 1993, p.140). É o poder do seu discurso oral, da sua voz e memória que tece os
66
laços com grupo e na história de um povo marcado pela opressão e dominação falar de sua
função na comunidade é o que lhes interessa e não falar do julgo a que foram submetidos os
seus antepassados. Suas lutas para continuar as tradições ancestrais no universo das culturas
populares, nas comunidades pobres do sertão nordestino, o serviço que prestam aos seus e a
quem as procura por acreditar em suas rezas é o que lhes confere a identidade com o grupo.
Assim “Ao falar de sua atuação na comunidade, do seu papel na cultura da cidade e da
influência que exerceram no grupo que os rodeava, constroem para si uma maneira de ver e
representar sua existência” (RODRIGUES, 2008, p. 40).
Falar das rezas, de quem as ensinou e confiou sua sabedoria popular para mais tarde
ocuparem o seu lugar é uma forma das rezaderias reconstruírem as suas histórias pessoais de
vida a partir do seu contexto social e por sua inserção numa memória coletiva. Embora as
rezas façam parte do seu cotidiano mais comum, ainda houve momentos delicados no
decorrer das entrevistas. Como quando perguntei a dona Naldi sobre orixás e ela se recusou a
falar sobre o assunto, fato sobre o qual discorro no terceiro capítulo deste trabalho. Falar de
sua atuação enquanto rezadeiras nas comunidades onde vivem é confirmar o pensamento de
Ecléa Bosi (2007, p.481) de que “A memória do trabalho é o sentido, é a justificação de toda
uma biografia”. O seu ofício de rezadeira ancora a sua identidade, reunindo luta, força,
coragem e resistência pessoal e cultural, individual e coletiva. É o seu papel no seio do grupo
que lhe confere autoridade e reforça o laço não só de parentesco, mas de um pertencimento
maior.
Na pesquisa de campo que resultou na escritura da obra Memória e Sociedade:
lembranças de velhos, Ecléa Bosi entrevistou dona Risoleta, uma descendente de mãe liberta
após a Lei do Ventre Livre e de pai filho de português com negra e vendido como escravo
pelo próprio pai, mas tratado como“mocamo de luxo”, isto é, nas palavras de Risoleta, citadas
por Bosi, um escravo que não apanhava e era melhor tratado por saber buscar coisas no
correio da cidade, servir de companhia para os moços da casa e tomar conta dos camaradas na
colheita do café. Foi liberto apenas quando veio a abolição. Iniciou seu relato de vida dizendo:
“Dou graças a Deus todos os dias, já está acabando esse ano santo e agradeço por estar
recordando e burilano meu espírito” ((BOSI, 2007, p. 363). Para dona Risoleta, a entrevista
foi uma oportunidade de recordar sua vida e a de seus antepassados. Mas foi a liberdade de
narrar proporcionada pela pesquisadora que lhe fez falar de sua identidade enquanto rezadeira,
pois após ficar cega e idosa, passou a ocupar o seu tempo em atender as pessoas com orações.
Falou de sua devoção a São Benedito, santo negro, italiano e filho de escravos, que lhe fazia
companhia nas horas duras de trabalho na cozinha enviando pessoas para ajudá-la: “Nessa
67
vida tão dura a imagem fiel é a de são Benedito que intervém para mais uma vez para tirá-la
de mais um aperto – na cozinha, enviando-lhe uma porção de mãos para ajudá-la a fazer o
almoço mais depressa, no quarto evitando que perdesse a hora” (BOSI, 2007, p. 477). Falou
das promessas feitas a Santa Teresinha pela filha criança quando quebrou a perna, da devoção
a outro santo negro, africano, que foi escravizado Santo Antônio de Catigeró, do menino cego
que começou a enxergar graças aos seus pedidos, do menino do dedo doente que curou com
unção de azeite (BOSI, 2007). Embora não relate conhecimento sobre as histórias dos santos
negros, estes surgem no relato como fortes signos de sua identidade afrodescendente. Se o
foco da entrevista tivesse sido a memória da escravidão, a narrativa de vida não teria fluido
com tanta força. Da escravidão dona Risoleta falou sem precisar que fosse perguntado e
escolheu o que falar e o que não falar. Como as rezadeiras entrevistadas nesse trabalho, dona
Risoleta falou de si, de seu trabalho, reconstruindo uma vida de trabalho e a sua maneira de
representar o papel no grupo social.
As narrativas das rezadeiras tem na relação construída no grupo através do seu
ofício, a pedra angular de suas histórias de vida em torno da qual se firmam suas memórias e
as memórias do seu povo. A função de rezadeira e, por conseguinte, de narradora justifica
suas biografias. Assim: “A fusão do trabalho com a própria substância da vida se dá também
na memória dos entrevistados” (BOSI, 2007, p. 475). Não podemos comprender as rezas sem
a substância de suas histórias de vida e da relação social com os membros do seu grupo.
O uso da história de vida como técnica de pesquisa e como categoria empírica de
análise e compreensão das narrativas, pois será a partir da história de vida das rezadeiras que
traçaremos nossas reflexões sobre a memória e a identidade das entrevistadas, o que nos
reforça o laço existente entre as práticas culturais e o contexto de vida dos agentes da cultura.
A memória é intrínseca a sua vivência e experiências, ao convívio com a memória e com o
cotidiano do seu grupo. É no exercício da função de narradora e rezadeira que se tece a
memória e o sentimento comum. Somente a história de vida proporcionaria essa visão
dialógica capaz de abranger a dinâmica das culturas populares e da participação de seus
agentes e produtores na elaboração das memórias e das identidades culturais. Vejamos que
Assim, a característica dialógica do método me possibilitaria conhecer a
colaboradora da pesquisa por meio do relato individual de sua história.
Ouvindo a experiência de D. Maria José, pelo relato específico da história
oral chamada de história de vida, essa “ciência do indivíduo” me
possibilitaria manter a perspectiva critica almejada pelo trabalho,
conservando o propósito de privilegiar a fala da colaboradora para juntar as
peças que compõe o grande mosaico de sua memória revelando como as
68
práticas culturais desse sujeito se vinculam a sua vida (RODRIGUES, 2006,
p. 64).
A história de vida enquanto ciência do indivíduo nos permitiu conhecer por meio dos
relatos individuais das rezadeiras os outros indivíduos que compõem as suas histórias e
integram o mosaico da história do seu povo. Suas falas juntam as peças da memória e unidas
neste trabalho dão forma e contornos às suas práticas culturais. Um ponto forte na elaboração
de suas identidades é a gratuidade do seu ofício, colocado à disposição dos seus e de todos
que as procuram, o que lhes confere legitimidade e respeito diante da comunidade, concepção
de serviço e atividade cultural à disposição do outro marcante nas falas de grande parte dos
agentes das culturas populares, como os repentistas que faziam apresentações gratuitas e
compreendidos pelo pensamento de Ayala ao comentar os relatos do poeta repentista Valença
concluiu que “Para ele a arte era uma dádiva divina que não devia ser utilizada como fonte de
recursos” (AYALA, 1988, p.101). Também para as rezadeiras o seu ofício não deve ser usado
como fonte de recursos econômicos.
O exercício do dom é uma forma de criar e fortalecer os laços com os membros do
grupo social, laços estes que ultrapassam o grupo local e integram todas as pessoas que
procuram as rezas, os conselhos e lições de vida, as narrativas e histórias, pois o exercício do
dom das rezas não se limita a esta prática. Estende-se ao conselho, às narrativas, às lições de
vida e são um patrimônio à disposição de todos que desejem usufruir dessa herança cultural.
Por meio da história de vida de dona Maria José pesquisada por Rodrigues (2006)
podemos traçar uma comparação de sua atuação na comunidade com os trabalhos das nossas
rezadeiras do Quati nas trocas simbólicas e sociais que regem a dinâmica das relações entre os
agentes das culturas populares e os membros do seu grupo. O significado e o sentido de
existência do trabalho das rezadeiras, de sua atuação e inserção no seio do grupo se revestem
de importância histórica, de uma atmosfera sagrada e simbólica para a comunidade e para a
história dos povos afrodescendentes no Brasil. As narrativas de vida das rezadeiras do Quati
são uma maneira de contar a história dos povos afro-brasileiros pelo olhar de quem vive essa
história, de quem descende de ancestrais afrodescendentes e se constituem como
protagonistas da história. Não mais uma história contada pelo viés oficial do branco, mas pela
voz que surge de dentro da própria comunidade negra.
As rezas não são uma forma de negociar com a sobrevivência cultural,
principalmente com a sociedade dominada pela branquitude hegemônica. São uma
manifestação de resistência que foi influenciada pelo catolicismo e que também influenciou a
69
cultura do branco, pois as rezadeiras são procuradas por pessoas independente de sua cor.
Como uma tradição cultural de matriz africana, ameríndia e portuguesa, a negociação social
mediada pela cultura se relaciona ao cotidiano da comunidade, da vida comum dos seus
membros, como uma herança ancestral que tem como marca social o sentido de continuidade,
de transmissão memorial de uma identidade duramente construída ao longo da história e
permeada pelas histórias de vida.
As narrativas de vida e as rezas que nelas se inscrevem são manifestações culturais
do campo da oralidade que constituídas como uma maneira de resistência dos povos negros
merece o devido reconhecimento e que um dia ocupe o seu lugar como patrimônio imaterial
brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A comunidade de Quati
tem consciência da importância dessas manifestações. A pertinência do nosso trabalho se faz
pelo registro, estudo e divulgação desses bens simbólicos numa perspectiva mais interacional,
sociológica, que não os coloca como artefato folclórico que sobreviveu de um passado
distante e remoto ou que é relembrado de forma encenada. A nossa pesquisa desperta a visão
para a importância das rezarias na dinâmica cultural e social da comunidade como oferece
subsídios para que os professores da comunidade possam também trabalhar a identidade local
com os alunos oriundos do Quati e Lagoa do Mato através das nossas leituras, mas
principalmente nas vozes das próprias entrevistadas transcritas nesta pesquisa como uma
retribuição à cultura que nos foi ofertada pelos agentes do lugar. Nesse sentido:
O ato de usar a escrita como apoio da memória oral é procedimento que
permite a seguinte avaliação: aqueles que participam do universo da cultura
popular têm consciência de que a escrita é um poderoso instrumento e que
pode servir para guardar o oral do esquecimento. Pode parecer paradoxal
mas, neste caso, a escrita é posta a serviço da oralidade (AYALA, 2003, p.
117).
As vozes das rezadeiras, sua atuação enquanto agentes da cultura do seu povo, depois
de permitida a escuta pelo pesquisador e do uso da história de vida como norte desta relação
nos acorda para a complexa responsabilidade como o trabalho e como o material produzidos,
fotos, mídias em DVD com a gravação das entrevistas, que devem se constituir como um
acervo não só do pesquisador, mas da comunidade do Quati, dos seus professores, estudantes,
moradores, de outras rezadeiras e agentes populares que se inserem nessa identidade cultural.
Esta é uma retribuição social do nosso trabalho que contribui para o reconhecimento da
cultura entre os membros, para que as rezadeiras se reconheçam como sujeitos atuantes na
70
vida do grupo e sejam reconhecidas de forma mais significativa pelos seus e por membros de
outras comunidades. Seguindo a esteira de Portelli (1997) a pesquisa contribuiu com:
O verdadeiro serviço que, acredito eu, prestamos a elas, a movimentos e a
indivíduos consiste em fazer com que sua voz seja ouvida, em levá-la para
fora, em pôr fim à sua sensação de isolamento e importância, em conseguir
que seu discurso chegue a outras pessoas e comunidades. (PORTELLI, 1997,
p.31, Grifos do autor)
As entrevistas com as rezadeiras devem compor um acervo para o conhecimento das
atuais e futuras gerações dos moradores do Quati sobre o passado de sua gente, sua cultura
ancestral e como essa cultura se transforma ao longo da história. Assim as vozes da memória
das rezadeiras que foram entrevistadas, das rezaderias antigas que lhes repassaram essa
prática e seus ensinamentos não se perderão no tempo e a escuta e leitura de suas falas
permitirá um aprofundamento no conhecimento das raízes da cultura dos antepassados, de
como as rezadeiras as reelaboram e como a essa representação pode influenciar no combate
ao preconceito racial, cultural e religioso, permitindo que o sentido dessas práticas seja
inserido cada vez mais na riqueza da memória coletiva e preenchendo os vazios deixados pela
ausência de um trabalho voltado a essa cultura. Sobre a pesquisa com narrativas, Ecléa Bosi
numa entrevista concedida para a revista Na Ponta do Lápis, conclui que:
Depoimentos que você colhe não devem ser simplesmente arquivados. Todo
depoimento existe para transformar a cidade em que ele floresceu. Escutar
uma narrativa desencadeia em você, ouvinte, compromisso com o narrador,
com a própria cidade em que a narrativa floresceu. Você é responsável. Por
exemplo, eu entrevisto pessoas muito idosas e sensíveis às transformações
urbanas. Isso desencadeia um compromisso com o plano diretor da cidade.
Em uma pesquisa que fiz verifiquei que a maioria dos idosos acidentados na
seção de ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo não era caso de
médico, mas de advogado, por causa das calçadas da cidade, das casas
populares mal construídas (BOSI, 2009, p.24).
A coleta dos dados da pesquisa, das histórias de vida das rezadeiras desencadeia uma
responsabilidade com os narradores e com a comunidade onde foram colhidas as falas, pois o
trabalho está a serviço da comunidade, de futuros outros projetos e trabalhos para que os
planejamentos de educação e de políticas culturais incluam em suas prioridades a cultura dos
povos do Quati, tirando-os da invisibilidade histórica a que foram submetidos os povos
afrodescendentes. Como também a relação entre o entrevistador e os colaboradores das
71
pesquisas não deve se encerrar com a conclusão do trabalho, pois eles dispuseram suas
histórias, suas vidas e são co-autores dos trabalhos. Assim:
O estudioso da memória deve ser uma pessoa preparada; não basta que
conheça metodologia de pesquisa. Ele precisa compreender o depoimento
como um trabalho do idoso, ele não pode registrar sem que o idoso tenha
conhecimento da narrativa. Por mais simples que seja, o idoso tem o direito
de reler aquilo que falou e ver se está de acordo. É uma questão ética. Entre
todos os conselhos de método que dou, o mais importante é a
responsabilidade pelo outro. Para a pessoa idosa, o depoimento sobre a sua
vida é um ato de amizade. O escutador tem que responder a esse ato de
amizade com outro ato de amizade. Ele se torna responsável eticamente pela
narrativa: é um pesquisador diferente dos outros porque também se torna
responsável pelo narrador e não pode abandoná-lo, tem de visitá-lo.
Recebemos do entrevistado uma coisa preciosíssima: ele nos dá alento, seu
tempo de vida (BOSI, 2009, p.25).
Dessa forma, o estudioso das histórias de vida e histórias de descendentes de povos
marcados pelo sofrimento histórico como o preconceito racial, a escravidão e a diáspora não
encerra sua pesquisa com o término do trabalho. Eticamente deve voltar à comunidade, visitar
seus colaboradores e contribuir para que o seu trabalho dê respostas à comunidade onde
floresceu.
3.3. Os caminhos da pesquisa: construindo histórias de vida
A história de vida enquanto técnica de pesquisa é a mais adequada à compreensão do
humano enquanto sujeito participante da construção deste trabalho, permitndo aos
entrevistados que falem de si e conduzam suas escolhas. Diferentemente de depoimentos pré-
estabelecidos pelo entrevistador, esta técnica permitir ao sujeito se reconhecer por meio das
escolhas sobre o que narrar e o que silenciar, elaborando assim sua representação e
identidade.
No campo da pesquisa em cultura popular, oralidade, religiosidade os caminhos são
escorregadios e os limites tênues entre os objetivos do pesquisador e a experiência de vida dos
nossos sujeitos, entrevistados de forma que não se invadem o que essas pessoas têm de mais
caro: suas histórias de vida, que aceitam gradativamente dividir conosco.
Com o aporte metodológico da história oral, iniciei o processo de entrevistas, fase
mais delicada da pesquisa, avisei por celular que visitaria a rezadeira Ana Naldi da Silva para
fazer a entrevista. Anteriormente, devido a nossa intimidade, pois sou frequentador de sua
casa desde a minha adolescência, já havia lhe explicado o propósito da entrevista e ela aceitou
72
tranquilamente. Segundo Montenegro (1994), esse deve ser o primeiro passo do contato com
os colaboradores:
O início de toda entrevista deve ser marcada por uma conversa de
esclarecimento com o entrevistado para que este compreenda por que, para
que e para quem ele está registrando suas memórias. Após a concordância do
entrevistado em participar do trabalho, deve-se preencher uma ficha com o
nome completo, data e local de nascimento, endereço atual e data em que a
entrevista está sendo realizada (MONTENEGRO, 1994, p. 149, Grifos do
autor).
Chegamos a sua casa na cidade de Pau dos Ferros às dezenove horas no dia 09 de
novembro de 2015. Como era preciso gravar a entrevista, o que foi previamente acordado
com a colaboradora, convidei meu amigo Filipe Abrantes Cavalcanti, natural do município de
Luís Gomes, pessoa que é conhecida por dona Naldi desde que nasceu, pois era seu vizinho
na antiga rua em que morava em Luís Gomes e Naldi se sentia à vontade diante dele. Felipe
filmaria a entrevista enquanto eu fazia as perguntas.
Após conversa inicial por volta da dezenove horas e trinta minutos, iniciamos a
entrevista e por meio da técnica da história de vida, que deixa a pessoa entrevistada mais livre
para a sua narrativa. Porém a filmadora que eu havia levado deu problema e tivemos que
reiniciar a entrevista, retomando os assuntos já iniciados. Devido ao conhecimento com os
membros da sua família, pedi a sua nora Cristina que emprestasse o celular para a realização
da gravação. Dias depois, Filipe, que reside em Pau dos Ferros e é amigo da família da
colaboradora, passou na residência de dona Naldi e pegou a gravação, mais tarde passada para
um DVD. A conversa fluiu naturalmente devido ao clima de intimidade que existe entre mim
e a colaboradora Naldi, porém com a ética necessária aos estudos da história oral e da história
de vida recuei em alguns momentos da entrevista, como no ponto em que gostaria de saber
sobre o viés mais africano de sua manifestação cultural, conforme veremos mais adiante nas
análises deste trabalho e nas transcrições da entrevista.
A segunda entrevista deste trabalho aconteceu no sítio Lagoa do Mato, no município
de Luís Gomes, na residência da rezadeira Maria de Lurdes Martins da Silva. Também sou
frequentador de sua casa desde 2012, quando lá estive à procura de suas rezas e desde então
passei a ser um dos tantos membros da sua comunidade que reconhecem as suas rezas e os
seus ensinamentos de narradora. Conforme havia avisado e combinado dias antes cheguei à
tarde do dia 29 de fevereiro de 2016 em sua residência acompanhado do meu amigo Francisco
George da Cruz, morador do sítio Quati que é conhecido de dona Lurdes desde a infância,
73
pois a mesma foi rezadeira da sua família, o que não lhe causaria constrangimento e que foi
pedido permissão dias antes quando combinamos o encontro. Conforme combinamos George
realizaria a filmagem enquanto eu conversaria com dona Lurdes, testamos inicialmente a
minha outra filmadora, mas a qualidade do vídeo e do áudio não estava satisfatória. Então
fizemos a gravação em vídeo do celular de George. Como na entrevista com Naldi, a conversa
ocorreu de forma espontânea. Esse fato explicado por Rodrigues (2006, p.64), como requisito
fundamental do pesquisador como deve ser “a disposição de ouvir e o interesse e o respeito
pelos pontos de vista daqueles que propõem partilhar suas experiências com um grupo que
extrapola seu meio social e familiar”. Embora eu seja receptor há anos das rezas de dona
Naldi e de dona Lurdes, não faço parte do seu meio social como os afrodescendentes de suas
comunidades, que cresceram com ambas e conviveram com o seu cotidiano mais comum.
A entrevista com a rezadeira Cosma Maria da Silva ocorreu na tarde de 28 de março
de 2016 na sua casa no sítio Lagoa do Mato, localizada próxima da estrada que divide a
comunidade do Quati e Lagoa do Mato, conforme acertado anteriormente. Apesar de dona
Cosma não ser, como se fala na comunidade, “minha rezadeira”, ou seja, de eu não frequentar
a sua casa à procura dos ritos e benzimentos como o faço nas casas de dona Naldi e de dona
Lurdes, a entrevista se deu de forma tranquila por eu ser frequentador da comunidade há
alguns anos. Meu amigo e morador da comunidade do Quati, José Jorge da Cruz, realizou a
filmagem em seu celular depois me repassando a gravação em DVD. Pelo fato de a
colaboradora saber que valorizo e frequento rezadeiras da comunidade, ela se sentiu à vontade
para falar de sua atuação enquanto agente da cultura popular do seu povo, do papel social de
suas rezas, que apresentam peculiaridades com relação as rezas das outras duas colaboradoras
deste trabalho. Também a presença de Jorge, conhecido da rezadeira não causou nenhum
constrangimento durante a entrevista.
Como a pesquisa no campo de uma cultura que, além de popular, é também oral e
afro-brasileira, nesse sentido três terrenos escorregadios que, ao longo da história, foram
excluídos da cultura oficial, dos estudos acadêmicos, vista como um artefato folclórico, fruto
de uma sobrevivência do passado no presente, como exótica, a cautela propiciada pela história
de vida se fez cada vez mais necessária. Também muitas pesquisas aconteceram de forma
invasiva, sem a devida cautela com os traumas e feridas históricas dos afrodescendentes,
como a escravidão e os maus-tratos desse período, como as pesquisas escolares analisadas pro
Carvalho (2010) em que o foco dos entrevistadores era a escravidão do passado e não a
identidade reelaborada pelos entrevistados afrodescendentes. Dessa forma, a melhor maneira
de se estudar a história de vida das rezadeiras do Quati foi o convívio natural com a sua
74
tradição, com as suas manifestações culturais, pois quando comecei a frequentar as rezadeiras
ainda não pensava em fazer este trabalho. Foram anos de convivência com os ritos por
questões pessoais minhas e a partir daí surgiu a empatia com as rezadeiras, não foi uma
aproximação apenas para a pesquisa. Minha relação com elas se assemelha na religiosidade
afro-brasileira à relação entre os filhos e as mães-de-santo, de aproximação e de confiança,
conselho e transmissão de experiências. A partir dessa vivência é que se desenvolveu a
pesquisa de campo, em anos de interação com o universo das rezadeiras. Sem essa
aproximação, as entrevistas não teriam sido possíveis. Assim tem razão Xidieh (1967, p.24)
ao afirmar que “a paciência é um dos melhores passos do método de pesquisa de campo e que
o grupo todo dentro do seu contexto sócio-cultural é o que realmente importa, concedendo-se,
evidentemente importância àqueles informantes por eleição, não absoluta importância”. A
importância da voz-memória das rezadeiras do Quati seguindo a esteira do sociólogo é que
essa voz representa a identidade coletiva. Embora sejam eleitos representantes do grupo para
serem entrevistados, o seu contexto de vida se inscreve no seu meio social, no contexto
coletivo sem o qual as rezas não teriam sentido e significado e é necessária a paciência para
que o pesquisador possa perceber esses nuances da cultura. Há outras rezadeiras na
comunidade, como dona Tiquinha, irmã de Lurdes, mas nesse caso seria uma pesquisa
invasiva pelo fato de eu não ter a mesma aproximação e dela ser uma pessoa mais fechada na
comunidade. Outras rezadeiras como a senhora Chica Braba, de origem afrodescendente, e,
para muitos que conhecem sua origem afro-ameríndia, moradora da comunidade desde que
casou com um senhor da Lagoa do Mato, passou a exercer o ofício de rezadeira, quando
morava na cidade não exercia nem era conhecida por esse papel. Porém, estas menos
reconhecidas na comunidade do que as colaboradoras deste trabalho e devido ao meu pouco
contato com elas não foram escolhidas para serem entrevistadas.
Mesmo com os anos de convívio com as rezadeiras, o respeito e o cuidado durante as
entrevistas são imprescindíveis, como, por exemplo, quando indaguei dona Naldi sobre o viés
africano dos seus rituais e ela silenciou. Apesar da entrevistada saber que eu tinha
conhecimento dessa vertente do seu ofício, Naldi se recusou a falar sobre esse assunto e eu
não mais insisti, até porque não são todas as pessoas que procuram a suas rezas a quem ela
revela essa prática mais africana de sua atuação. Esta mesma, para os mais íntimos,
permanece predominantemente subjacente ao seu catolicismo. Daí a importância da liberdade
de narrar dos entrevistados proporcionado pela técnica da história de vida.
Como o nosso trabalho conta com a participação de três colaboradoras entrevistadas
e o cerne da nossa investigação, as narrativas de vida e a elaboração da identidade afro-
75
brasileira, cada entrevista foi realizada num dia. Nesse sentido, tivemos na construção do
diálogo a liberdade de narrar, da técnica da história de vida.
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4 VOZES NEGRAS DA MEMÓRIA: NARRATIVA E IDENTIDADE DAS
REZADEIRAS
No Cachimbo Eterno moravam os mais pobres. A maioria das casas era de
taipa com teto coberto de palha de coqueiros. Tinha esse nome porque as
pessoas que habitavam essa rua cultivavam o hábito de fumar cachimbos,
sentados ou acocorados diante de suas casas. Era a rua dos negros
fumadores de cachimbo. Daí para rua do Cachimbo foi um pulo. Lá viviam
as rezadeiras, as parteiras, as cozinheiras. Não havia móveis nessas casas
muito pobres. As famílias comiam sobre esteiras ou sentavam no chão. Mas
era a rua do povo alegre.
(FRANKLIN JORGE, 2015, p. 29)
4.1 O dom de ser rezadeira
Uma categoria significativa para a compreensão das identidades das rezadeiras
negras do Quati é a sua vivência do que é tratado como um dom nas culturas populares, do
que é considerado como uma dádiva divina, de sua descoberta eleição entre os membros do
grupo para o seu exercício na comunidade. Sua vivência está ancorada num contrato social
com os membros do seu grupo. Nas culturas populares, a lógica social é regida pelo fato de
que quem é agraciado com um dom deve dispô-lo a serviço dos seus e de quem procurá-lo em
busca de ajuda. O dom e o seu exercício na comunidade são o alicerce da função das
rezadeiras, dentro de uma lógica social que os considera “em teoria voluntários, na verdade
obrigatoriamente dados e retribuídos” (MAUSS, 2003, p. 187). Assim a reza enquanto
prática do dom se torna uma obrigação social, uma retribuição social para quem reconhece o
dom que recebeu e foi eleito entre os membros do grupo social como digno dessa função.
Costa (2009) enfatiza a doação gratuita do dom das rezadeiras e que apesar da sua pobreza
material, elas não utilizam de suas práticas para melhorar suas condições financeiras. As
rezadeiras “São mulheres de pouquíssimos recursos finaceiros, pobres. 90% delas são
humildes. Cheguei à casa de muitas delas em hora de almoço e não vi nem a panela, nem o
carvão, como se diz, acesos” (COSTA, 2009, p. 245). O não usufruto da função para fins
financeiros é relatado por dona Naldi que foi ensinada por sua avó dona Tomásia a nunca
cobrar de ninguém pelas rezas.
Naldi: Até hoje, Ciro eu digo a tu, ói tem dia que eu tô necessitando muito duma coisa aqui em casa eu
num falo pra ninguém. De madrugada, quatro horas da manhã eu me acordo e rezo. E converso com
Deus o que tá faltando, que tá necessitando, Ciro ói aparece uma pessoa que eu num tô nem
imaginando; “Naldi eu tenho dez reais pra tu” “Naldi eu tenho vinte aqui reais pra tu” “Naldi eu tenho
aqui uma garrafa de feijão pra tu”. E aparece
77
Ciro: Deus sempre mostra.
Naldi: Deus sempre mostra. (Transcrição 1 - 09.11.2015).
Nesta fala da rezadeira, podemos perceber que apesar de não cobrar a ninguém pelos
seus serviços, essa atitude é recompensada pelo doador do seu dom, Deus, que a recompensa
pelo silêncio das suas dificuldades, sem que isso seja desculpa para cobrar por suas práticas, e
não lhe deixa faltar o que precisa de mais urgente, respondendo às suas orações. É esse o
sentimento presente na história de vida da agente popular ao abordar sobre o dom. O relato de
Naldi confirma o fato testemunhado por Costa no seu convívio com o cotidiano das
rezadeiras. O dom origina um viés contratual com o grupo, constituindo um fenômeno social
que se institui nos campos da cultura popular e da religiosidade. A atuação das rezadeiras se
inscreve na “própria divisão social do trabalho” (MAUSS, 2003, p. 187). Apesar dos seus
afazeres domésticos, dos trabalhos para fins econômicos, o seu cotidiano é dedicado à missão
que lhe foi confiada. A transmissão do dom estabelece um viés contratual com a comunidade,
um fato social que tem a sua lógica própria e constitui um fenômeno complexo. O dom se
constrói a partir de um mercado simbólico desde as sociedades arcaicas que nos precederam,
segundo Mauss (2003), antes mesmo do surgimento da moeda, ele era utilizado como uma
espécie de moeda nas trocas sociais.
Tanto quem recebeu o dom o retribui exercendo-o como quem é ajudado por este
exercício deve retribuir de alguma forma, seja materialmente ou com sentimento de gratidão e
reconhecimento. Neste viés contratual, a rezadeira e outros agentes que regem sua vida a
partir do dom que receberam não podem deixar de fazer o que lhes foi solicitado. Por
exemplo, no relato de vida de Naldi, ela ressalta que quando esquece de cumprir a sua
obrigação de rezar por um pessoa, não consegue dormir por não ter cumprido a sua obrigação
durante aquele dia. Vejamos:
Naldi: Daí pra cá, desse tempo pra cá só encontrei felicidade na minha vida. Durmo bem, agora só
existe uma coisa Ciro, se eu disser “Ciro vou lá na tua casa rezar em você” se eu num for eu não
durmo direito. Éé quando vô durmir é sonhanu rezano em você, aparece as pessoa pra mim, umas
pessoa éé tem uma mulher que aparece sempre pra mim. ... É uma jove, sempre eu vejo Ciro essa jovi,
ela vem quando chega diz assim pra mim eu dusmino, eu dusmino eu ecuto: “Naldi eu cheguei”, aí eu
rá sei que, é porque eu fiquei deveno oração aquela pessoa e eu num fiz. Mas tirante dissaí. tô muito
bem. E sou muito feliz quando chega uma pessoa na minha casa pra eu rezar. Sou muito feliz Ciro.
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
O relato da entrevistada enfatiza sua compreensão de que rezar por quem lhe pede se
trata de uma obrigação derivada do dom enquanto dádiva divina e das orações e função que
78
lhe foi confiada por seus antepassados, no caso sua avó Tomásia, pois ela enquanto rezadeira
é representante da instituição religiosa do seu povo confiada pelos ancestrais e eleita entre os
seus para a dignidade da sua função social, como um contrato social que uniu ao longo da
história as pessoas de um mesmo clã, tribo ou família e que se constituíam não apenas como
indivíduos, mas como coletividades que mutuamente se obrigavam, trocavam e contratavam
(MAUSS, 2003). Na esteira de Mauss, a rezadeira é uma pessoal moral por estar presente ao
contrato e nesse sentido exerce uma liderança no grupo em torno da qual circula o que ele
chama de economia natural, isto é, uma teia social de relações de doações, trocas e
retribuições que rege a vida no grupo comunitário baseada nos ensinamentos dos ancestrais
coletivos ou individuais do grupo.
O exercício do dom obedece ao tempo comunitário (AYALA, 1997) como também a
uma relação afetiva e de identificação para que haja uma retribuição entre o doador do
presente e o seu destinatário. Mauss (2003, p. 188, grifos do autor) questiona “Qual é a regra
de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz que o presente
recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa dada que faz que o
donatário a retribua? Essa é a questão sobre a qual o antropólogo citado se debruça nas
sociedades antigas. Nas comunidades cujo mercado social circunda as práticas das rezadeiras,
tanto quem recebeu o dom tem a obrigação de dispô-lo a serviço dos membros do seu grupo
como quem recebe as rezas e os benzimentos de retribuir com a consideração e o
agradecimento. No relato de dona Naldi, podemos perceber a confiança de quem exerce o
dom de que o bem será retribuído e a rezadeira não será desamparada em suas necessidades.
Vejamos:
Naldi: É aprendi muita coisa com minha avó, experiência de, assim, de quando eu não tivesse nada na
minha casa, assim, de alimento pra mim nem pra meus filhos, eu não falasse, não relatasse pra
ninguém, nem se lastimasse. Eu falasse pra Deus e pedisse a Deus que no outro dia aparecia. Aí Ciro
eu ficava assim em dúvida, “Mãe Véa como é que a senhora diz que eu não diga pra ninguém, só diga
pra Deus, e como é que vai chegar na minha casa?” ela disse “ói minha fia, ele mostra um meio de
uma uma pessoa aparecer e lhe ajudar.” Pois num é mermo, Ciro! Tu acredita que é desse jeito?
Ciro: E até hoje a senhora faz?
Naldi: Até hoje, Ciro eu digo a tu, ói tem dia que eu tô necessitando muito duma coisa aqui em casa eu
num falo pra ninguém. De madrugada, quatro horas da manhã eu me acordo e rezo. E converso com
Deus o que tá faltando, que tá necessitando, Ciro ói aparece uma pessoa que eu num tô nem
imaginando; “Naldi eu tenho dez reais pra tu” “Naldi eu tenho vinte aqui reais pra tu” “Naldi eu tenho
aqui uma garrafa de feijão pra tu”. E aparece.
Ciro: Deus sempre mostra.
Naldi: Deus sempre mostra.
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
79
Apesar de abordar essa natureza das transações humanas nas sociedades antigas e
arcaicas, o mercado institucional e social constituído pelo dom ainda é regido pelas mesmas
obrigações de dar, receber e retribuir. A rezadeira Naldi recebe da divindade as benesses por
não utilizar o seu dom para fins econômicos. A dinâmica do dom constrói um contrato social
de doação e de retribuição, pois em seu relato de vida, Naldi enfatizou o pedido de sua avó
dona Tomásia “E uma coisa eu te digo, isso ela dizia minha fia não se negue sua oração pra
ninguém e nem cobre de ninguém nada, porque aí foi um dom que Deus lhe deu. Quando
Deus andou no mundo foi rezando e curando viu? Nunca cobrou nada de ninguém”. Essa
negociação constitui uma característica significativa da atuação das rezadeiras que se estende
tanto nas necessidades materiais, caso uma pessoa que foi atendida deseje retribuir com
alguma ajuda, como dinheiro ou alimentos de acordo com as suas condições econômicas.
Porém, o mais importante nessa relação é a gratidão enquanto sentimento, a consideração
esperada pela rezadeira por parte das pessoas em quem reza.
Nessa relação de retribuição de dádivas em que tanto a rezadeira agradece por ter
sido agraciada com o dom exercendo-o junto aos seus e a quem lhe solicitar ajuda como
também as pessoas ajudadas retribuem as bênçãos da rezadeira tanto com presentes materiais
como com os bens simbólicos do afeto, gratidão, amizade e consideração pela pessoa da
rezadeira, pois a ajuda material é recompensada pela divindade devido à dedicação da
rezadeira e lhe chega pelas mãos das pessoas atendidas. Nessa economia social da relação
tecida entre a rezadeira e os atendidos, percebemos: “A seguir, dois elementos essenciais do
potlatch propriamente dito são nitidamente atestados: o da honra, do prestígio, do mana que a
riqueza lhe confere, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de perder esse
mana, essa autoridade, esse talismã e essa fonte de riqueza que é a própria autoridade”
(MAUSS, 2003, p. 195, grifos do autor). A rezadeira Naldi pensa na esteira das obervações de
Mauss, pois pelo ensinamento que lhe foi transmitido pela avó Tomásia ela não pode cobrar
pela reza nem muitos menos negar a quem a procura. Em seu relato Naldi ressalta que sua avó
nunca cobrou e lhe transmitiu a mesma concepção de dádiva, de jamais cobrar por sua reza. A
cobrança financeira por suas rezas seria interpretada como uma ingratidão para com a
divindade que lhe escolheu para portadora do dom e com a escolha de sua avó para ser a
continuadora da sua função de rezadeira no grupo. Para Mauss, ela fugiria da obrigação
absoluta de retribuir a dádiva recebida e perderia sua autoridade, fonte da riqueza em nossa
compreensão simbólica, pois se trata do lugar de prestígio ocupado no seio da comunidade.
80
Outro exemplo significativo desse contrato social nas comunidades do Quati e da
Lagoa do Mato foi a escolha de uma rezadeira da comunidade da Lagoa do Mato para ser
madrinha de fogueira da professora Solange Batista quando criança:
Por muitos anos fui protegida por minha madrinha de bênçãos e orações,
seus presentes sempre eram de sua cor, guardava espigas de milho de palhas
quase preta bem arroxeadas e lembrava-me:
- É para lhe dar sorte! Cor preta é proteção! Afastas quebrantos. Eu comia
cada caroço com tranqüilidade e firmeza para cumprir o ritual da promessa
feita. Sempre guardava uma franga para me presentear no meu aniversário,
também de cor preta, pé rosco e dizia:
-Você não deve comer galinhas (BATISTA, 2016, p. 66).
A relação entre a menina Solange e sua madrinha Maria Nova se constitui como um
contrato real na compreensão de Mauss (2003), composto de regras e mecanismos espirituais
que ditam essa relação de consideração, afeto e confiança em que “é evidente o que obriga a
retribuir o presente recebido” (MAUSS, 2003, p. 193). Na observação do antropólogo, nessas
relações ocorrem trocas de dádivas que despertam a obrigação de serem retribuídas, como
prestações sociais a serem pagas ao longo do convívio. Essas retribuições se constituem como
um sistema de dádivas contratuais que acompanha os momentos da vida, pois “esse sistema
de oferendas contratuais em Samoa estende-se muito além do casamento, acompanhando os
seguintes acontecimentos: nascimento de filho, circuncisão, doença, puberdade da moça, ritos
funerários, comércio” (MAUSS, 2003, p. 194). No caso do contrato estabelecido entre a
pequena Solange e sua madrinha, a rezadeira Maria Nova, o tempo simbólico no contexto
comunitário foi a noite de São João onde nas comunidades rurais do sertão nordestino, dia
ritual de experiências de inverno, de adivinhações, profecias, de comemoração dos santos
herdada dos portugueses. Assim:
A data coincide com o solstício de verão, quando os camponeses aguardam a
colheita: em toda a Europa se acendiam fogueiras, se dançava, se davam
saltos sobre as chamas.
O bom devoto pula a fogueira e não se queima (BOSI, 2003, p. 63).
Segundo a autora, essa tradição praticada pelos jesuítas causou muita admiração aos
índios. No Nordeste brasileiro, a noite de São João foi ressignificada e passou a ser um
momento social para criar laços de identidade como madrinha e afilhada, padrinho e afilhado
e relações de amizade e compadrio. Assim como nas sociedades estudadas por Mauss em que
presentes e oferendas marcam fases da vida e momentos simbólicos nas sociedades polinésias,
81
na relação entre a afilhada de fogueira e sua madrinha rezadeira se constrói uma troca que
ultrapassa os presentes materiais, embora estes também fizessem parte do contrato social,
como as galinhas presenteadas no aniversário da afilhada e as espigas de milho de cor escura
que Maria Nova guardava para a afilhada comer como ritual de proteção, como um talismã e
um presente ofertado a quem goza de sua mais íntima amizade e consideração. A afilhada
passou a receber as bênçãos da sua madrinha de fogueira, uma proteção especial com ritos
que não eram ofertados a qualquer pessoa que procurasse o seu ofício de rezadeira:
Eu, como primeira neta da família HERMÓGENES, recebi como padrinhos
de batismo meus avós paternos, foi a escolha dos meus pais. Aos seis anos
descobri que poderia ter uma madrinha e um padrinho de fogueira. E numa
manhã de 24 de junho, fizemos nosso juramento diante das cinzas da
fogueira de São João, sob uma neblina santa:
- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha madrinha que
São João mandou!
- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha afilhada que
São João mandou!
A partir daí eu tinha minha madrinha Maria Nova e o meu padrinho João
Camaleão que era genro dela. E eu toda orgulhosa dessa intimidade de
afilhada, frequentava sua casa e levava minhas amigas e irmãos quando
estavam com dor de dente ou machucavam-se para a madrinha benzer. E
ficávamos deslumbrados quando ela riscava no chão com uma faca em volta
do pé machucado, (desenho da silhueta do pé) e depois fazia três cruzes com
a faca dizendo:
- Carne triada, osso rendido. E jogava a infecção para o vento levar. Mais
interessante ainda era quando íamos cortar ínguas (pequena glândula na
virilha, corpo ficava febril), ela dizia:
- Um, dois, três ínguas cortei...
Rezava sempre com uma faca cortando desenhos de cruzes no solo e
jogando ao vento o mal, às vezes dobrava folhas de ervas que não sei o
nome. E aquele rosário no pescoço fascinava a todos nós, era uma relíquia.
Todos os negros e negras usavam e ficavam nervosos se alguém ousasse
mexer em seus rosários, ficavam furiosos (BATISTA, 2016, p. 67).
A afilhada desfruta de um prestígio particular da rezadeira e essa proteção especial
que lhe é conferida provém da autoridade da agente popular, sua bênção é fonte de dádivas
gerada a partir da dádiva que recebeu para ser rezadeira e repassada quando a madrinha
responde ao pedido de bênção:
Minha madrinha de cor negra, voz doce, semblante de guerreira, com seu
rosário no pescoço e turbante na cabeça. Em tom solene dirigia-me uma
saudação carinhosa:
- Essa menina!
- Neguinha, como vai sua mãe?
E eu, bênção minha marinha!
- Deus te cubra de fortuna.
82
Era tudo o que eu queria. Essa saudação enchia-me de esperanças. Sempre
entendi que fortuna era felicidade, alegria, saúde... (BATISTA, 2016, p. 66).
A relação entre madrinha e afilhada gerou entre a menina Solange e a senhora Maria
Nova uma dívida divina, um contrato revestido do caráter sagrado que uniu as duas histórias
de vida numa ligação que foi contantemente mantida e renovada, uma dívida que não
terminaria de ser paga e deveria ser presente por toda a vida. Nesse sentido a consideração e a
gratidão da afilhada para com a madrinha originada no batismo simbólico da fogueira de São
João se assemelham ao contrato social e sagrado dos afilhados do Padre Cícero Romão
Batista a quem os seus afilhados devem respeito e devoção pelas bênçãos recebidas. Essa
filiação enquanto lógica social, conforme Figueiredo (2002) ao citar o entendimento de
Lanna, não se limita a uma economia pura, isto é, de utilidade prática e econômica, mas para
Figueiredo constitui um princípio de comportamentos e atitudes, de gestos, hábitos, falas, de
veneração ao padrinho e obediência aos ritos em sua devoção como preceitos inscritos em seu
cotidiano, como o respeito ao dia da morte do Padre Cícero no dia 20 de cada mês, a adoção
do nome de Cícero para os filhos, entre outros costumes. Assim:
Podemos estar diante do que Lanna chamou de dívida-divina (Lanna 1995).
Gerada pelo batismo, esta dádiva sagrada contraída pelo afilhado ao
padrinho, só poderia ser retribuída por dádivas também sagradas, por parte
do afilhado. No caso em estudo vamos encontrar entre muitos agricultores,
principalmente naqueles mais velhos, através de suas falas, o sentimento de
estarem sempre em dívida (“o que meu padrinho fez por mim eu nunca vou
pagar” – José Olegário) e o compromisso explícito da manutenção
permanente das contra-oferendas sagradas (“meus velhos pais diziam sempre
que nós devemos oferecer a meu padrinho nossas alegrias e nossas dores. A
colheita boa e a ruim” ... Cícero José) (FIGUEIREDO, 2002, p. 67, grifos
do autor).
O contrato de retribuição do afilhado com o padrinho se transformou em culto de
devoção mesmo após a morte do padrinho, o Padre Cícero Romão, como uma manutenção do
pagamento da dádiva compreendida como dívida divina para o citado autor, como uma forma
de continuar a receber a sua proteção espiritual e manter o contrato uma vez firmado em torno
da dádiva. Nessa compreensão:
O culto da retribuição se confunde, na ótica dos romeiros-agricultores, com o
culto da devoção. A devoção mais do que nunca é um sentimento de ligação.
É esta ligação das comunidades com a presença protetora do padrinho que
nos ajuda a entender o significado da dívida-divina nesta formação
campesina, ao mesmo tempo em que dá pistas para a compreensão da
83
construção do mundus camponês na Chapada do Araripe (FIGUEIREDO,
2002, p. 67, grifos do autor).
Para os afilhados do Padre Cícero, a devoção continua como pagamento da dívida
divina do afilhado com o padrinho. O princípio dessa reciprocidade entre ambos elabora a
dívida por toda a vida. Assim como o fazem os afilhados do Padre Cícero, o sentimento de
ligação entre Solange e sua madrinha Maria Nova, mesmo após a morte da rezadeira continua
pela gratidão a proteção que lhe foi oferecida quando vivia e hoje por meio da memória que
tece daquela que tanto lhe abençoou, também compreendido como uma espécie de culto de
devoção, continua o seu compromisso de retribuição da dádiva e permanente pagamento da
dívida sagrada.
Na esteira do poder mágico e religioso dos dons e dádivas, Mauss nos faz
compreender que dispor do dom é uma espécie de pagamento de tributo pelo agraciamento do
seu portador. Colocá-lo a serviço dos membros do grupo em que a dádiva floresceu e foi
aperfeiçoada é a natureza da troca social. A rezadeira dona Lurdes também se inscreve junto a
sua prima dona Cosma nessa teia social de obrigações e retribuições, numa transação humana
em que “tudo se mistura numa trama inextricável de ritos, de prestações jurídicas e
econômicas [...]” (MAUSS, 2003, p. 192). Com o reconhecimento de uma pessoa de que é
portadora de um dom e com o ensinamento buscado após essa tomada de consciência, ou pela
transmissão memorial da sabedoria dos mais velhos que nela reconhecem esse dom e a
necessidade do seu aperfeiçoamento para o futuro exercício, para esse estudioso o viés
voluntário dessa atuação vai se tornando obrigatório e interessado nas prestações sociais. Esse
interesse que não se restringe ao fator econômico, concentra-se no lugar social que será
ocupado pela rezadeira na vida do seu grupo.
Dona Lurdes, após alguns anos distante do seu lugar de origem, voltou decidida a
dispor do seu dom a serviço da sua comunidade do Quati e da Lagoa do Mato, o que ocorreu
após o despertar da dádiva no encontro com um baiano, um sujeito que lhe transmitiu os
saberes de um rezador mais velho, ensinando-lhe um remédio e como rezar em criança,
atividade que logo começou ao retornar para o sítio Lagoa do Mato. Desde jovem foi ensinada
a rezar por sua tia, Neném, mãe da rezadeira dona Cosma, mas foi o ensinamento do baiano
que lhe avivou o dom. Na natureza dessas negociações humanas, esse mercado simbólico e de
identidades é um fenômeno constitutivamente humano alicerçado em histórias de vidas. O
dom dos agentes populares é “uma das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas
sociedades [...]” (MAUSS, 2003, p.188-189) e a base de sustentação de muitas outras rochas,
84
a pedra fundamental desse construto social. A recepção de dona Lurdes em sua comunidade e
a fé das pessoas do lugar em sua nova atividade é uma moeda nessa troca simbólica e dentre
os seus trabalhos cotidianos o exercício do dom por meio das rezas originou em sua história
de vida um novo lugar na divisão social do trabalho na região do Quati e da Lagoa do Mato.
Vejamos:
Ciro: E ... a senhora começou a rezar nas pessoas aqui, começou a ser conhecida como rezadeira,
muita gente procura a senhora?
Lurdes: É é eu num sei se é a fé dele, acho que é a fé dele que né? Eu faço o que eu posso.
Ciro: Então tem, tem quase trinta anos que a senhora é rezadeira aqui?
Lurdes: Vinte e seis.
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
O reconhecimento das pessoas faz a economia da dádiva funcionar na comunidade.
Consciente do seu papel, a rezadeira afirmou fazer o que pode, ou seja, reconhece o seu
esforço para colocar-se a serviço da dádiva em favor de quem precisa. Lurdes passou a ocupar
o espaço deixado pelas rezadeiras mais antigas a quem tanto admirava e o seu desejo de
também ser uma rezadeira é uma troca, um pagamento simbólico pela atuação dessas
mulheres em seu meio, servindo aos moradores das comunidades próximas por toda uma
vida. O interesse individual de Lurdes passou a ser um bem coletivo que se transformou num
serviço. A fé dos membros do seu grupo em suas rezas deu origem ao contrato com a
coletividade. Na relação com a trama inextricável de ritos, como descreve Mauss, observar as
rezadeiras mais velhas gerou em Lurdes o desejo e a obrigação de retribuir a dádiva do
serviço delas e se tornar uma sucessora no grupo, assim “Se o presente recebido, trocado,
obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda
conserva algo dele” (MAUSS, 2003, p. 198). Nessa esteira, a reza ensinada por Neném de
Faba à sua sobrinha Lurdes e a observância dos ritos das outras rezadeiras da comunidade
surgiu em Lurdes à identificação com o ofício e a vontade de ajudar as pessoas, o que nos
mostra como a dádiva dinamiza as relações na sociedade e que não existe inércia em se
tratando do exercício da dádiva, pois ela obriga a sua continuidade como centro das relações e
apesar do desaparecimento físico dos antepassados, das rezadeiras mais velhas, há
continuação por parte de quem recebeu os bens espirituais como uma prestação a ser paga. Ao
cumprir sua parte nessa negociação, a rezadeira se reveste de prestígio e de autoridade diante
dos membros da comunidade. Ao se tornar transmissora distribuidora dos bens espirituais e
das benesses herdadas e aprendidas com os ancestrais, voltar a sua terra para exercer o dom
constituiu uma troca pelos ensinamentos e pelo reconhecimento da sua atividade, uma
85
retribuição tanto à origem espiritual da dádiva atribuída a Deus como pela fé depositada pelas
pessoas em sua atuação. Dessa forma, na lógica social que rege as relações tecidas nas
comunidades do Quati e da Lagoa do Mato em torno das dádivas recebidas e retribuídas:
Compreende-se logicamente, nesse sistema de ideias, que seja preciso
retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância;
pois, aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual,
de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não
simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem da
pessoa, não apenas moralmente, mas fisica e espiritualmente, essa essência,
esse alimento, esses bens móveis ou imóveis, essas mulheres ou esses
descendentes, esses ritos ou essas comunhões, têm poder mágico e religiosos
sobre nós. Enfim, a coisa dada não é inerte. Animada, geralmente
individualizada, ela tende a retornar ao que Hertz chamava seu “lar de
origem”, ou a produzir, para o clã e o solo do qual surgiu, um equivalente
que a substitua (MAUSS, 2003, p. 200).
O dom no entendimento do autor é parte significativa da natureza de uma sociedade
e da essência espiritual de uma pessoa. As pessoas da comunidade que aceitaram dona Lurdes
como uma nova rezadeira reconheceram essa essência e o seu dom, que não poderia ser
conservado de forma inerte, mas uma vez reconhecido pelo portador, recebida à transmissão
memorial dos ensinamentos, a dádiva deve se tornar serviço. Nas sociedades estudas por
Mauss, a omissão da dádiva era considerada perigosa e mortal. No universo das rezadeiras
seria uma ingratidão com a divindade que concedeu a dádiva e com a sabedoria ancestral
ensinada pelos mais velhos e experientes para os membros do grupo que foram eleitos para a
continuidade do ofício, como também com as pessoas que passaram a reconhecer o papel da
rezadeira apresentando fé e reconhecimento em suas orações e benzimentos. Assim na
atmosfera social de dona Lurdes retornou ao seu lar de origem, como denomina Hertz na
citação de Mauss, para o clã e o solo que fertilizou a dádiva, onde o seu dom surgiu, para
retribuir ocupando o lugar que lhe é legítimo de sucessora das rezadeiras que faleceram ou
não rezam mais devido à velhice avançada.
A fé e o reconhecimento dos membros da comunidade do Quati e da Lagoa do Mato
nas rezas é uma face importante na identidade das rezadeiras, conforme também se apresenta
no relato de vida de dona Cosma, rezadeira que atende problemas físicos como carne triada e
desmentidura, isto é, torções nos músculos ou ossos, problemas tidos na comunidade como
sua especialidade, diferentemente de sua prima Lurdes que reza tanto em problemas físicos
como em males espirituais. Este fato foi frisado durante a entrevista da rezadeira Lurdes:
86
Ciro: Cosma que é prima da senhora também é né rezadeira?
Lurdes: Corma reza de triadura,
Ciro: Como é que chama?
Lurdes: Carne triada.
Ciro: Carne triada né?
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
Como Lurdes é rezadeira procurada em diversas situações, Cosma reforça que é
bastante procurada, que é difícil o povo ir para Lurdes. Embora afirme que essa procura
acontece de vez em quando, na sua narrativa de vida faz questão de marcar o reconhecimento
dos membros da comunidade pelo seu papel e a valorização da sua especialidade enquanto
rezadeira. Inclusive afirmou em sua fala que é mais procurada que a rezadeira Lurdes. Isso
reforça que as pessoas da comunidade tem fé em suas rezas. Vejamos:
Ciro: E hoje vem gente procurar a senhora aqui né?
Cosma: Aquii? Ahahaha (risos) de veizinquando chega gente aqui de veizinquando de veizinquando,
quair todo mundo por aqui Lurde reza ali (aponta ligeiramente com o dedo) mar é difíci o povo ir lá pa
Lurde, só vem pra cá pa mim rezar, só vem pra cá.
(Transcrição 3 - 28.03.2016).
Essa fé e essa procura elabora uma troca em que a dádiva está no centro dessas
relações. O dom sentido e reconhecido por Cosma ao ver sua tia Bia rezando gerou o desejo
de aprender o ofício. A dádiva da reza da sua tia teve continuidade no desejo da jovem
sobrinha ao revelar o seu desejo de se tornar também uma rezadeira e ao pedir que lhe
ensinasse as rezas como mostra de que a dádiva não é inerte e sim dinâmica e ao ser aceita a
pessoa que a transmite lhe entrega parte da sua vida, da sua essência e da sua alma conforme
Mauss. Sua tia, a rezadeira Bia, fazia essa entrega tanto para os membros das comunidades de
Quati e da Lagoa do Mato ao exercer o seu dom em favor destes como de maneira especial
sua essência constituída pela dádiva foi repassada para Cosma, como também o fez dona
Tomásia a sua neta Naldi e o baiano a Loudes. Cosma relatou que rezou nas pessoas desde os
quinze anos, fase da sua história de vida compreendida como um rito de iniciação e de
passagem, assim como as outras rezadeiras desta pesquisa que passaram por momentos de
preparação para o exercício do dom.
Outro ponto importante destacado em seu relato de vida é a obrigatoriedade do
serviço para quem foi agraciado pela dádiva. Essa concepção é tão forte nas culturas
populares e no universo humano das rezadeiras, segundo dona Cosma, reza não se paga nem
se pode dizer obrigado em agradecimento pela reza.
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Ciro: As pessoas reconhecem, procuram?
Cosma: Ééé. Eu me sinto bem quando chega uma pessoa aqui pa peu rezar né?... me sinto bem mermo.
Ciro: Aí essas rezadeiras nunca sim, cobraram pela reza não?
Cosma: Nããão, (balança com a cabeça também) paa assim, é é coisa dimi de, deu piquena que o povo
dizia né? Que reza ninguém se paga, reza ninguém se dá nem obrigado...
(SILÊNCIO)
Ciro: Ok Então...
Cosma: Reza não dá nem obrigado.
Ciro: Tem que, é que a pessoa recebe o dom e ee....
Cosma: Ééé ... reza não se paga ... né? ...Vejo dizer desde de quando era pequena que eu via ... o povo
dizer.
(Transcrição 3 - 28.03.2016).
Na compreensão das rezadeiras tanto cobrar pela reza como dizer obrigado constitui
uma ofensa a quem se dispôs a dedicar a vida a exercer o seu dom no grupo. A pessoa que
recebeu a reza pela dinâmica da cultura e da lógica social dessas sociedades não pode tratá-la
como uma mercadoria comercial que foi comprada. Porém, a retribuição através da amizade,
do respeito, da consideração e até de presentes materiais ou ajuda em dinheiro desde que
motivados pela retribuição no sentido de uma troca de dádivas, e não de um mero pagamento
por um serviço qualquer. A troca de dádivas estabelece um vínculo social e afetivo entre as
rezadeiras e as pessoas em quem rezam. A obrigação gerada pela dádiva se compara aos ritos
e cerimônias do potlatch das tribos australianas ou norte-americanas por ser composta de dois
momentos sociais que se complementa que integram pois a prestação total não implica
somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outras igualmente
importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de receber, do outro” (MAUSS, 2003, p.
201). Receber e aceitar a dádiva por meio das rezas em si já constitui o sistema de trocas que
gera um vínculo espiritual e identitário, porém a retribuição seja material ou simbólica, afetiva
reforça a relação entre o doador e o receptor da dádiva. Segundo o autor, a palavra potlatch
significa, em seu sentido maior, nutrir e consumir, isto é, alimentar com os dons espirituais as
transações humanas tecidas pelas dádivas conferindo aos sujeitos envolvidos um sentimento
de identificação e assim construindo um sentido de identidade cultural.
Dessa forma, a vivência das dádivas nas comunidades onde atuam as rezadeiras do
Quati e da Lagoa do Mato inscreve suas histórias de vida na coletividade. As transmissões
memoriais por meio dos ensinamentos das rezadeiras e rezadores mais velhos ao serem
procurados ou ao reconhecerem em seu grupo de convívio pessoas agraciadas com o dom
movem a lógica social das sociedades onde o dom é compreendido como um bem comum que
deve estar a serviço de todos os que dele precisarem. A dádiva constrói uma aliança entre a
rezadeira e o seu grupo, uma comunhão espiritual gerada a partir da economia simbólica da
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doação de toda uma vida, das trocas e retribuições em que se partilham valores como
amizade, reconhecimento e gratidão, perpetuando entre os sucessores dessas agentes na
comunidade a continuidade não apenas da função, mas de toda a base identidade que alicerça
a complexidade da oferta e recepção da reza numa troca de dons e partilha de histórias de
vidas.
4.2 As rezadeiras
As rezadeiras negras do Quati são reconhecidas como guardiãs e transmissoras não
apenas da religiosidade ancestral, mas também da memória dos antepassados. É nessa função
que se inscrevem nas relações com o seu povo numa relação de trocas simbólicas.
Consideradas mulheres sábias e detentoras das vozes ancestrais, como guardiãs e
transmissoras de uma cultura que atravessou o Atlântico, sua continuidade é propiciada pela
oralidade, seus rituais e lições de vida constituem experiências que se revestem de sentido na
vivência coletiva. As rezas e ritos exercidos pelas rezadeiras negras não são apenas orações,
benzimentos, bens culturais isolados, mas se inserem nas histórias de vidas dessas agentes. As
rezas estão intrínsecas as narrativas de vidas e não são recitadas dissociadas de conselhos,
lições que se inscrevem no cotidiano das rezadeiras. É nesse sentido que o momento social
das rezas é o espaço propício à memória do grupo e uma forma de transmiti-la às novas
gerações, para que conheçam a cultura dos seus antepassados, suas origens e o diálogo que
originou uma identidade afro-brasileira.
A rezadeira é reconhecida como portadora de um dom, de uma dádiva divina, que lhe
foi transmitida e confiada por um ancestral e que deve ser posta a serviço dos membros do seu
grupo. Sob o signo da africanidade, suas vozes-memória representam não um passado
perdido, mas um diálogo entre as identidades do passado africano com o presente afro-
brasileiro.
As agentes populares que aceitaram ser entrevistadas neste trabalho são três: dona
Ana Naldi da Silva, dona Maria de Lurdes Martins, já apresentadas no capítulo metodológico.
São herdeiras e continuadoras da função social de seus ancestrais, apesar de devido às
dificuldades de suas vidas precisarem se distanciar geograficamente do seu lugar de origem,
como dona Naldi que mudou de cidade para Pau dos Ferros, mas continua a exercer o seu
dom em outros grupos, e dona Lurdes que teve a memória reavivada por um membro de outro
grupo, um baiano quando morava na zona rural do município vizinho de Uiraúna na Paraíba.
Lurdes voltou sua memória para as práticas culturais e religiosas de sua terra a Lagoa do Mato
89
e compreendida a sua função se inseriu por meio da memória no seio da sua gente. Quando
retornou à sua terra pode cumprir a missão que lhe foi confiada. Dona Cosma exerce a sua
função em sua terra entre os seus conforme lhe foi confiado.
São elas as protagonistas desta pesquisa, as narradoras das histórias de vida que
constituem o cerne deste trabalho por meio das suas vozes materializadas nas entrevistas.
Suas histórias estão inscritas na história do seu povo, transmitem, elaboram e reelaboram suas
identidades em comunhão com a memória ancestral e as práticas culturais atuais da sua
comunidade.
4.3 Dona Naldi: entre rezas e memórias
A nossa primeira rezadeira entrevistada neste trabalho, a senhora Ana Naldi da Silva,
que relatou como ocorreu a sua iniciação para o exercício dessa função e como o seu dom
passou a ser um elo, uma coesão com o seu grupo social. Herdeira da tradição de sua avó
dona Tomásia, uma antiga rezadeira do município de Luís Gomes, Naldi é uma das rezadeiras
mais reconhecidas não só no município, mas em toda a região incluindo o sertão paraibano.
Assim:
Ciro: Então, a senhora aprendeu ... as rezas com?
Naldi: Minha vó, Tomásia.
Ciro: Sim, pode falar um pouquinho dela.
Naldi: Ela rezava. Ela me ensinava assim, pra dor de dente, ela começou me insinar pra dor dente. Se
você pegasse um peso muito pesado e sentisse uma dor assim (sinaliza para o peito), ela me ensinava
como rezava sabe?. Ela me insinava, e depois Ciro que ela me ensinou, que que dizer como era pra
fazer, é é, eu vivia assim eeu, de vida eu num fazia como eraa cumprino eu fiquei um pouco
perturbada, eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade. Ciro eu nããão dormia direito, quando ia
dormir era vendo muito santo, muita mata verde ... Muito santo. Eu andando nar aquela mata bem
estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro mato bem verdim e santo. As imagens que eu
encontrava mais era ... ... era as imagens de São José, São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa
Senhora da Conceição. Em cada passo que eu dava que encontrava as imagens no chão eu já
reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...
Ciro: A senhora via no chão né? Mesmo sem a imagem tá lá.
Naldi: No chão.
Ciro: Não era de gesso não, né?
Naldi: Não ... Pois, Ciro, ali eu me acordava e ficava procurando ... Ia dormir de novo Ciro e
começava. Aquelas rodinha, Ciro, assim, como cê pega uma corrente. Quando você pega uma corrente
(mostra no terço que ela usava no pescoço) que tem essas … ..., aí começava bem pequenininha,
aquelas correntinha e de repente se formava gran, desse tamanho (sinaliza com as mãos). Ali eu
tomava aquele susto eu conseguia dormir ... Então foi difícil ... Aí a minha mãe, me levou na casa dum
pessoal, eeu nem hoje sei quem era e quem sabia. Um homem rezador que tinha era foi longe numa
cidade fora de Luís Gomes uma cidadezinha fora de Luís Gomes um sítio. Aí meu irmão contou pra
eles que eu vivia assim que eu não dormia direito, e tudo, aí o homem foi e disse que eu era méida de
90
nascença, eu já tinha o dom de rezar, que eu já nasci com esse dom. Então eu como num tava
desenvolvenu, então por isso aí que eu tava ficando perturbada.
Ciro: A senhora tava com treze anos ainda?
Naldi: Sim. Aí eu tinha que. Aí me ensinou, como era que eu fizesse, esse homem falou assim: “Vou
acabar de lhe ensinar o que você tá na metade. Você assista nove missa, nove comunhão”, você vai e
ensinou pra mim rezar, seis horas da manhã, doze horas do dia e seis da noite. Nove missa, e essas
nove penitência pra eu fazer. No sábado eu vesti branco, no sábado, e eu quando passasse esses nove
dias de penitência como eu tava fazeno, eu nunca podia negar a minha oração pra rezar em ninguém.
Ciro depois que eu fiz isso a minha irmã que morava aqui em Pau do Serro, trabalhava na casa de
Pedo Damião e eu vim pra aí, eu já viúva, já foi eu viúva, tá. Aí eu assisti tudo as missa aqui e as nove
comunhão, nove dias e cumpri. Daí pra cá, desse tempo pra cá só encontrei felicidade na minha vida.
Durmo bem, agora só existe uma coisa Ciro, se eu disser “Ciro vou lá na tua casa rezar em você” se eu
num for eu não durmo direito. Éé quando vô durmir é sonhano, rezano em você, aparece as pessoa pra
mim, umas pessoa éé tem uma mulher que aparece sempre pra mim. ... É uma jove, sempre eu vejo
Ciro essa jove, ela vem quando chega diz assim pra mim eu dusmino, eu dusmino eu ecuto: “Naldi eu
cheguei”, aí eu rá sei que, é porque eu fiquei devenu oração aquela pessoa e eu num fiz. Mas tirante
dissaí ... tô muito bem. E sou muito feliz quando chega uma pessoa na minha casa pra eu rezar. Sou
muito feliz Ciro. Realmente a minha linha é branca de pra criança, a minha linha é branca é de criança
mais eu rezo em todo mundo, todo tipo mermo ... Se você perder um objeto eu tenho minha oração pra
você encontrar... tá; se você quiser conseguir uma coisa assim, pedir uma ajuda a mim eu posso
também com as oração posso rezar e com a fé minha e a sua você consegue. É Só você ter fé em Deus
e confiar e acreditar naquela oração que eu tô fazeno.
(Transcrição 1 - 09.11.2015)
A narrativa de vida da rezadeira Ana Naldi apresenta como marco significativo à
descoberta do seu dom e da sua função na comunidade. A sua avó, dona Tomásia, citada no
livro de memória de Gaudêncio Torquato (2008, p. 86) numa perspectiva diferente do relato
de vida, apenas como “A veia Tomásia, cara da mãe-África, que adorava pitar um
cachimbinho: sua filha Chica, engomadeira, mãe de uma grande prole que tanto ajudou a
nossa casa, como os serviços do meu pai nas terras do São João, perto da bolandeira (casa de
farinha) onde moravam”. A visão ocidentalizada do memorialista, a partir do seu contexto de
filho dos patrões não lhe permitiu reconhecer que dona Tomásia era uma importante agente
cultural dos povos afrodescendentes, restringindo-a um simples serviçal doméstica. Tomásia
era um importante rezadeira na comunidade, mãe de Chica de Tomásia, como ficou conhecida
popularmente a mãe de dona Naldir rezadeira. Foi dona Tomásia a responsável pela
transmissão memorial da função a Naldi e a imagem que a nossa colaboradora tem da avó.
Bosi (2007) reflete que o lugar ocupado pelo sujeito no seio familiar, no convívio diário, não
se compara ao convívio social cheio de convenções, pois nesse universo particular, o sujeito
pode revelar uma outra face.
As rezas, a função destas no grupo social rememorado por dona Naldi lhe conferem
uma posição, um lugar no seio da comunidade que um dia foi ocupado por sua avó dona
Tomásia. Na tradição popular, uma mulher não poderia transmitir a sua função nem ensinar às
rezas a outra porque quebraria as suas forças, ou seja, suas rezas não teriam mais eficácia
91
simbólica, para utilizar um termo de Pierre Bourdieu sobre o poder simbólico da linguagem.
Como o universo empírico desta pesquisa se inscreve no contexto de literatura e de cultura
orais, a memória se apresenta como o centro dessa socialização. A transmissão dos
ensinamentos por meio da oralidade é a função social da rezaderia no seu grupo, como de
diversos outros agentes da cultura popular, poetas, contadores de histórias. Há o pensamento
de que uma mulher não pode ensinar as rezas à outra nem lhe transmitir a função. No caso da
história de vida de dona Naldi, uma mulher mais velha, sua avó Tomásia, foi a responsável
pela transmissão da função no grupo social. Tomásia, a avó e portadora de uma rica
experiência na cultura do seu povo representa o critério predominante nas comunidades de
que as rezadeiras “são mulheres normalmente de idade” (COSTA, 2009, p.245). Esse traço
segundo o autor se dá pelo fato de que uma mulher mais velha, idosa, geralmente viúva, vive
em abstinência sexual, o que para o grupo lhe confere maior respeito e autoridade,
favorecendo o poder simbólico que lhe é reconhecido. Sobre a transmissão da função na
comunidade, o autor nos afirma que:
O dom, a descoberta: 90% ou mais delas são analfabetas. Elas não leram,
não pegaram orações em livros, não decoraram a partir de leituras, nem a
partir da escrita. Não. São analfabetas. Muitas não assinam nem o nome.
Enfim, aprenderam através da oralidade. Tiveram o dom de ouvir e de gravar
rapidamente centenas de orações ouvidas de outra pessoa do passado
(COSTA, 2009, p. 247).
Dona Naldi aprendeu o ofício com a sua avó Tomásia, esta que reconhecendo em sua
idade avançada a necessidade de transmissão da sua prática cultural decidiu ensinar à neta
ainda jovem aos treze anos porque foi chegado o tempo de não rezar mais em ninguém.
Embora o seu irmão Zé Pretim também exerça a função de rezador, Naldi afirmou não saber a
sua história, como ele aprendeu o ofício. O convívio com sua avó lhe conferiu a confiança
para a transmissão das rezas, visto que da família ela foi a única escolhida para suceder a
função da avó. Esse ponto da história de vida de Naldi dialoga com Costa que, ao entrevistar
rezadeiras, percebeu que:
Muitas delas me dizem que aprenderam de um homem. Algumas dizem que
foi de mulher. Mas normalmente, quando eu pergunto, elas dizem: mulher
que ensinar à mulher perde as forças. Então, ela acredita que não pode
repassar para outra mulher as suas rezas, o seu mundo místico. Ela tem que
passar para um homem, e um homem passar para uma mulher. No entanto,
há uma contradição, quanto a esse aspecto, pois muitas dizem que
aprenderam vendo e ouvindo as avós rezarem (COSTA, 2009, p. 247).
92
Um fato que se assemelha ao pensamento predominante de que o saber popular deve
ser transmitido para o sexo oposto é a história de vida de Dona Maria José em que, na hora da
morte, o seu pai, Atanásio Salustino, responsável na sua comunidade por ajudar os
moribundos na hora da morte, tendo ajudado a sua esposa e na sua ausência para encomendar
sua irmã Petronila foi substituído por D. Maria José. No momento de sua morte, a função de
Seu Atanásio foi repassada para D. Maria José, que cuidou da encomendação do pai e, a partir
desse momento, assumiu a sua função na comunidade. Nesse relato de vida, uma mulher
aprendeu com um homem no convívio e na experiência de uma vida inteira e sem intervalo de
gerações. Vejamos:
Entre a morte da mãe e do pai, percebe-se que a função de cuidar do morto é
transmitida pelo pai a D. Maria José. A mãe é “encomendada” por ele, pois é
Seu Atanásio quem “bota a vela” responsável pela iluminação do caminho
de sua esposa. Herdeira da tradição, a D. Maria José coube a tarefa de prestar
os ritos ao pai. E mesmo em outros momentos, como no relato da morte de
sua tia Petronila, na ausência de Seu Atanásio (que pressentiu a morte da
irmã), D. Maria José foi a responsável por “cuidar” da moribunda, exercendo
o papel de substituta do pai (RODRIGUES, 2006, p. 250).
Dona Maria José, como era conhecida no seu grupo social, e reconhecida no meio
artístico como Dona Militana era uma agente da cultura popular que exercia diversas funções
na sua comunidade: narradora, romanceira, cuidava dos moribundos e cantava excelências
para encomendação dos defuntos e nessa gama de funções também era rezadeira, embora não
fosse tão reconhecida por essa função como era pelo viés artístico de cantar romances.
Segundo Gutemberg Costa, que adotou em sua pesquisa a denominação de rezadeira, por ser a
mais enfática, ao invés de curandeiros, com os quais afirma ter tido pouco contato, e a
categoria empírica de mulheres rezadeiras. O autor aborda também a diversidade de funções
da agente popular e afirma que a sua função de narradora e romanceira não se separa da
atuação como rezaeira, enfatizando ainda que a religiosidade popular é um traço característico
do povo brasileiro e de seus agentes populares.
No relato de vida de dona Naldi, a questão da passagem das rezas de uma mulher
para outra, no caso de sua avó Tomásia, não gerou o problema conhecido nas culturas
populares de quebra de forças, ou seja, de as rezas de quem transmitiu perder a sua eficácia,
porque sua avó não exerceria mais a função devido à idade avançada. Dona Tomásia não mais
rezava e precisa fazer a “passagem” das rezas, como podemos compreender à luz do
pensamento de Walter Benjamin (1993) em seu ensaio “O Narrador: considerações sobre a
obra de Nikolai Leskov” , em que, com a aproximação da morte, o narrador passa a sua
93
experiência de vida, a sua função no meio social, os segredos do seu ofício, como uma
maneira de perpetuar a cultura e as vozes ancestrais. Nas culturas populares sente-se a
necessidade de transmissão da função e a sabedoria se torna transmissível segundo Benjanin.
Para a função de rezadeira, dona Naldir foi a escolhida por sua avó para exercer, ao contrário
do irmão Zé Pretim, que aprendeu as rezas noutro contexto:
Ciro: Que assim porque eu já tinha ouvido falar que mulher não passava pra mulher porque quebrava
as forças. Mas a senhora aprendeu com a avó da senhora e não quebrou as forças dela né?
Naldi: Não, porque ali já foi ela quem já passou pra mim. Que ela não rezava mais aí foi uma
passagem.
Ciro: Siiim ela não ia mais rezar. E assim da família ela só passou pra senhora?
Naldi: Só, só passou pra mim. Agora tem meu irmão Zé Pretim, ele reza mas eu não sei a história dele.
Éé não sei como, de onde veio e como foi, que que meu irmão Zé Pretim, que ele morava (…) João
Rosa e hoje ele mora cá na rua, construiu uma casa. Então ele reza mas a história dele eu não sei,
como foi.
Ciro: Como é a reza, é assim parecida com a da senhora, é não?
Naldi: É não. Eu num vô dizer que é porque eu não, eu, a dele o povo vai lá na casa dele procura rezar
mais eu não sei contar a história dele, eu sei da minha, a dele eu não sei como foi que surgiu porque
foi de pequena né, já nasci com esse dom, eu foi de pequena e meu irmão eu conheci ele rezando agora
com poucos tempos, poucos tempos.
Ciro: sim, não é de pequeno?
Naldi: Não, não. Éé, foi de um tempo desse pra cá.
Ciro: E assim a avó da senhora foi a transmissão, assim ela ensinou pra deixar pra alguém pra quando
ela partisse, né?
Naldi: Passou pra mim, ela disse “minha filha, eu não vou mais rezar em ninguém, que já tô de idade,
vou passar pra você, tudo o que eu sei das minhas oração eu vou passar pra você”. E era tão incrívi, éé
Ciro, que quando ela me ensinava hoje, amanhã ela ia perguntar, mandar eu rezar, do mesmo jeito eu
num faiava um, nem…
Ciro: Já tava na memória.
Naldi: Já tava na mimória. Tarra na mimória. Agradeço muito a Deus e amo ela, e peço sempre pra ela
mim ajudar cada vez mais. Peço sempre a ela, todo dia falo com ela.” Mãe véa me ajude cada vez
mais, a sinhora me ajudou, continue me ajudando na graça de Deus... pois é Ciro.
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
O fato de uma mulher fazer a passagem de suas rezas para outra e de um homem
fazê-la para outro segundo a crença popular causa o que é chamado de quebrar as forças, isto
é, as orações e benzimentos perdem a sua eficácia, o seu poder de realização. Rodrigues
(2006) relata que Seu Atanásio repassou o seu ensinamento e a sua função para sua filha
Maria José, esta que já ocupando a função do pai colocou a vela em sua mão na hora da
morte, ofício antes realizado por ele que havia ajudado a esposa na hora da sua morte. Costa
(2009) também constatou o pensamento de que a passagem deve ser feita para o sexo oposto
para não perder o poder de efeito das orações, mas que muitas rezadeiras aprenderam com as
avós e passaram a exercer o ofício sem perder a força devido à transmissão de mulher para
mulher. Compreendemos, assim, que não pode ser passado para o mesmo sexo quando ainda
94
se está exercendo a função, como se houvesse uma quebra do poder, uma divisão de forças,
mas quando a rezadeira se aproxima da morte ou a velhice não permite mais a atuação, a
função pode sim ser repassada para outra mulher.
Outro ponto significativo deste relato é a importância da memória para a transmissão
das rezas e das outras manifestações culturais populares, já que nesse universo predomina a
oralidade, já que nenhuma reza ou ensinamentos foram-lhes passados por escrito, o convívio
permitiu o aprendizado das rezas e, como disse Naldi, ouvia a reza e já estava na memória e
conforme Costa (2009) puderam ouvir e memorizar com rapidez as orações repassadas no
passado, o que se constitui como uma nunace do dom. Assim dona Tomásia foi guardiã e
transmissora dos seus saberes recebidos dos ancestrais e num contexto em que a escrita era
acessível apenas para poucos, foi a voz o suporte da sua cultura. O seu dom e as rezas
aprendidas com os antepassados por meio da voz a fez escolhida e preparada para que
também escolhesse uma sucessora. A função da rezadeira é para as escolhidas e é função das
mais velhas a transmissão que exige muita responsabilidade na escolha. Assim ela integra um
contexto em que:
Cada sertanejo é guardião de parte dos saberes e segredos de um mundo que
só pode ser alcançado pela voz. Contudo, cabe a alguns poucos escolhidos a
responsabilidade da transmissão memorial, da tradição e da criação no
domínio da oralidade. Dentre os escolhidos encontram-se os poetas e os
profetas (HÖFFLER, 2009, p. 194).
Nesse meio cultural, a função da rezadeira se reveste da mesma responsabilidade que
a dos poetas e profetas, pois estas agentes da cultura popular sertaneja, cujas práticas e
manifestações se inserem no universo oral, recebem a responsabilidade do exercício do dom,
do aprendizado da função e da transmissão desta para membros mais jovens do seu grupo
social e comunidade. As rezadeiras são escolhidas e também tem a responsabilidade de fazer
as futuras escolhas, pois a elas cabem a tranmissão memorial das tradições e da memória do
seu povo, como o fez dona Tomásia para a sua neta Naldi.
Em diálogo com o pensamento de Costa, o médico e pesquisador da cultura popular
Iaperi Araújo reflete a influência dos rituais afro-brasileiros e indígenas nas práticas da
medicina mágica popular, principalmente na religiosidade da macumba mais próxima das
matrizes africanas ou do catimbó mais relacionado à herança indígena. Já as rezadeiras e
benzedeiras como herança do catolicismo colonial, gradativamente foram adequando suas
crenças aos santos católicos, e como a cultura popular se trata de um fazer dentro da vida,
95
como ressalta Ayala em seus diversos escritos, cada santo católico foi associado a uma
situação, a um problema, doença, como protetor e mediador da cura e solução, e a rezadeira
está atenta a essas necessidades do cotidiano de sua gente. Nessa compreensão, as práticas das
rezadeiras apresentam elementos de diversas culturas e não podemos limitá-las entre a
chamada medicina mágica e a medicina religiosa, pois apresenta elementos de ambas:
A medicina mágica utiliza o sobrenatural como elemento auxiliar para
diagnóstico e tratamento. Está muito vinculada aos ritos afro-brasileiros e
indígenas, especialmente os de macumba, candomblé ou umbanda e dos
catimbós. Difere essencialmente da medicina religiosa praticada pelas
benzedeiras e rezadeiras, tanto para cura como para prevenção dos males que
atacam os crentes, pois alia-se objetivamente aos santos da Igreja Católica e
ao seu poder de proteção, baseada nos conceitos de “Corte Celestial” através
dos quais cada santo é um pequeno deus com poderes sobre a saúde e as
doenças (ARAÚJO, 2003, p. 23-24).
No relato de vida da rezadeira dona Naldi, a descoberta do seu dom, como ela mesma
elabora em sua fala, está relacionada a sua religiosidade católica e aos ensinamentos de sua
avó dona Tomásia. A visão dos santos católicos como São José, São Francisco, Nossa
Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição representa a herança cultural católica legada
pelos colonizadores do nosso país. Nessa hibridização com as raízes ancestrais da cultura
africana de quem herdamos o elemento mágico das manifestações, a presença dos santos,
principalmente de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora Aparecida. A Virgem da
Conceição era uma devoção portuguesa cultuada pelos brancos, pois os negros escravizados
cultuavam Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. A Virgem de Aparecida se tornou uma
ressignificação do catolicismo colonial em que uma devoção branca se revestiu do contexto
das histórias de vida dos negros. Fundiram as duas denominações em Nossa Senhora da
Conceição Aparecida, para os negros a metonímia de uma identidade múltipla, pois uma
devoção de cor branca do colonizador ao receber o adjetivo de Aparecida ao signo Conceição
passou a ser símbolo da luta contra a escravidão. Aparecida era a Nossa Senhora da
Conceição dos negros. Como afrodescendente e neta de dona Tomásia, rezadeira que na casa
dos patrões brancos era reconhecida apenas como força braçal nos trabalhos domésticos, e
não como uma agente da sua cultura, dona Naldi tem a visão da imagem da Senhora
Aparecida juntamente com os outros santos como uma progressão histórica, uma troca
simbólica das culturas portuguesa com a história do negro em terras brasileiras. Como uma
espécie de máscara branca às avessas, na compreensão de Fanon (2008). Vejamos:
96
Ciro: Então, a senhora aprendeu ... as rezas com?
Naldi: Minha vó, Tomásia.
Ciro: Sim, pode falar um pouquinho dela.
Naldi: Ela rezava. Ela me ensinava assim, pra dor de dente, ela começou me insinar pra dor dente. se
você pegasse um peso muito pesado e sentisse uma dor assim (sinaliza para o peito), ela me ensinava
como rezava sabe?. Ela me insinava, e depois Ciro que ela me ensinou, que que dizer como era pra
fazer, é é, eu vivia assim eeu, devida eu num fazia como eraa cumprino eu fiquei um pouco
perturbada, eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade. Ciro eu nããão dormia direito, quando ia
dormir era vendo muito santo, muita mata verde ... Muito santo. Eu andando nar aquela mata bem
estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro mato bem verdim e santo. As imagens que eu
encontrava mais era ... ... era as imagens de São José, São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa
Senhora da Conceição. Em cada passo que eu dava que encontrava as imagens no chão eu já
reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...
(Transcrição 1 - 09.11.2015)
Nas culturas populares, há o pensamento predominante de que o dom recebido como
dádiva divina deve ser posto a serviço dos membros do grupo social ao qual pertence, como
uma atitude de resposta e agradecimento à dádiva divina recebida. Em entrevista realizada
com o poeta e cantador de viola Antonio Florentino Valença, em sua obra No arranco do
Grito: aspectos da cantoria nordestina, Ayala (1988) aborda a gratuidade do dom nas
culturas populares. Falando de sua poesia e de sua atividade como ventríloquo, repentista e
cômico, o artista ressalta em depoimento à autora do livro que diverte as criancinhas pobres,
mas se cobrasse “eu ganharia muito mais, mas aí estaria vendendo o que Deus me deu. Porque
se dá de graça o que de graça se recebe, nem paguei para ser poeta e nem estudei para ser
poeta, nem para ser ventríloquo, então eu tenho o dever de dar de graça (...)” (AYALA, M. I.
N.,1988, p. 40). O poeta ainda ressalta que o dinheiro que ganha doa aos menos favorecidos,
não recebe cachê e dessa forma ganha muito mais. Segundo Ayala (1988), os agentes da
cultura popular possuem a concepção de que “a arte é uma dádiva divina que não deve ser
utilizada como fonte de recursos” (AYALA, M. I. N.,1988, p. 40).
A mesma lógica social rege a atuação das rezadeiras que não costumam cobrar por
seus atendimentos. Na minha convivência com dona Naldi, mesmo antes desta pesquisa
quando era minha rezadeira, testemunho o fato dela não cobrar por seu ofício, embora não
afirme verbalmente no seu relato de vida e eu não perguntar por prudência como parâmetro da
pesquisa em história de vida, pois ela poderia se sentir desrespeitada já que dessa informação
sou consciente.
Gutemberg Costa (2009) ressalta a gratuidade do exercício da função das rezadeiras.
Que ninguém pague pelos seus rituais, assim como jamais ouvimos falar de um narrador
popular legitimado por seu grupo que cobrasse pelas suas narrativas. A não ser os que já
folclorizados realizam apresentações culturais Nessa atmosfera de compreensão, o
97
pesquisador reafirma em seus escritos que, apesar da predominante situação de pobreza
material, muitas vezes de fome, o exercício da função é gratuito: “Eu cheguei a algumas
regiões vendo que a situação era de total miséria, de fome mesmo.” (COSTA, 2009, p. 246).
A função de rezadeira enquanto guardiã e transmissora da memória do grupo se
baseia na reciprocidade, na lógica social do dividir que rege as culturas populares. E a
retribuição do dom divino conforme acreditam terem recebido e dos ensinamentos que lhes
foram transmitidos pelos antepassados que motivam o compromisso das rezadeiras, como
exerceu sua função de cuidar dos mortos dona Maria José segundo Rodrigues (2006).
A colaboradora Naldi buscou ressaltar em seu relato de vida o seu compromisso com
os membros da sua comunidade, com os que procuram as suas rezas, caso não cumpra a sua
função se sente em dívida com as pessoas que fazem parte do seu grupo social. Muitas
pessoas retribuem as rezas com presentes, alimentos, vivência relatada pelo autor e que,
muitas vezes, presenciei na casa de dona Naldi, ou algumas vezes ela pediu o dinheiro para
comprar velas ou outros materiais necessários aos rituais, porém nunca nenhum pagamento.
Conforme podemos ver a seguir:
Ciro: A mãe Tomásia ela rezava nas outras pessoas também assim como a senhora?
Naldi: Rezava, rezava.
Ciro: Era é rezadeira.
Naldi: Mãe véa era. Só que minha vó rezava, mas não era como hoje que tinha; sabe. Quando ela sabia
que tinha uma pessoa necissan necessitando de uma reza, assim, que tava com uma grande dor de
cabeça, que tava assim vomitando e tava com dor, ela ia lá e rezava. Sem ninguém mandar, sem
ninguém chamar, ela ia lá e rezava.
Ciro: Rezava na pessoa sem a pessoa dizer né?
Naldi: Sim. Sem a pessoa chamar ela ia lá e rezava. E ela pediu muito a mim “Minha fia você nunca se
negue você fazer a sua oração a ninguém, num, seja quem for lhe procurar.”
Ciro: Com quem ela aprendeu ela num dizia a senhora não. Aprendeu assim nas casas que ela convivia
né?
Naldi: Éé, ela, elaa aprendeu aa rezar, minha vó dizia que foi com quem ela foi criada com quem ela
conviveu só Ciro que eu não o nome dessas pessoas ela disse, mas não lembro mais.
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
[...]
Ciro: E assim quem quem descobre o dom, o dom é gratuito, a avó da senhora nunca cobrou pelas
rezas?
Naldi: Não, nunca cobrou Ciro. E uma coisa eu te digo, isso ela dizia “minha fia não se negue sua
oração pra ninguém e nem cobre de ninguém nada, porque aí foi um dom que Deus lhe deu. Quando
Deus andou no mundo foi rezando e curando viu? Nunca cobrou nada de ninguém. Aí é assim, Ciro,
as pessoa me procura pra fazer as oração eu faço “Naldi, eu alcancei oh muié obrigado, você rezou, fez
oração pra mim agora alcancei o que eu queria, é quanto?” “mulher, né nada. Porque ninguém vende
as palavras de Deus por nada nesse mundo. (... ... ) pessoa assim, uma pessoa me dá dez reais, me dá
quinze reais, porque eu também eu gosto muito de ter minha velinha em casa, Ciro porque assim ciro,
se eu rezar pra você, ali eu gosto de ter uma velinha, acender pa seu anjo de guarda lhe proteger sabe?
E aí, mais deu cobrar tanto, isso eu não faço não, eu num tenho isso não.
98
Ciro: E assim, as principais devoções da senhora hoje? Os principais santos que a senhora reza?
Naldi: Os santos? As imagens que você fala? Os santos?
Ciro: Os santos.
Naldi: Éé, é São José, que é meu protetor, que me protege de todas as ... ...É São José, Senhora
Aparecida e Nossa Sinhora da Conceição. É os santos mais de minha devoção, tem mais santos mas o
santo do meu dia mesmo é São José. É um santo que toda hora, eu fecho os olhos e tô vendo ele, ele
me ama e eu amo ele toda hora porque tudo o que eu peço, Ciro vou contar o que aconteceu comigo.
Eu me achei numa situação muito difícil lá em Luís Gomes e um filho muito doente em São Paulo,
pricisando de mim ajudar e querendo vir pra minha casa. Aí, Ciro, imaginei assim “eu vou na
prefeitura pedir uma ajuda pra mim mandar meu filho vim embora. ... Ciro, eu fui lá na prefeitura,
num tinha ninguém. Cheguei no “Dubas” viu? o prefeito tava no Dubas. Eu entrei lá aí contei minha
situação. Ele falou assim, o prefeito falou assim que não podia me ajudar no momento e que a
prefeitura tava sem condições de ajudar nessa situação aí. Ciro, ele me deixou muuuito triste. “Meu
Deus o quê que eu vou fazer, pa meu filho chegar até aqui?” Ciro eu fui lá po meu quarto, me
ajoelhei, rezei e pedi a Deus e abaixo de Deus, Nossa Senhora, o santo do meu dia foi São José. Me
ajoelhei lá no meu quarto, rezei e pedi. Pois, Ciro eu digo a você, eu digo a você que apareceu umas
muié lá em casa e me ajudaram. Me deru o dinheiro da passagem, me ajudaru na passagem, fui buscar
meu filho, quando eu cheguei com ele em Luís Gomes, elas ajudaru, procurau a medicação, procuraru
isso e aquilo, pa meu fi e ele ficou bonzinho e voltou pra lá.
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
Na elaboração da sua identidade estão presentes as raízes ancestrais da cultura
portuguesa com o catolicismo colonial constantemente reelaborado, a matriz africana que
atravessou o Atlântico e a cultura nativa dos povos indígenas. Segundo o médico e
pesquisador da cultura popular, Iaperi Araújo, o uso de galhos de plantas nos rituais pelas
rezadeiras é uma herança da matriz indígena, eram os Janduís no litoral do Rio Grande do
Norte e os Cariris no interior, os detentores, os sabedores dos segredos das plantas, de seu uso
tanto medicinal como ritual na busca da cura de doenças.
As rezadeiras, especialistas em quebranto, mau-olhado, vento caído,
sinomínias de uma mesma patologia imprecisa, de origem provável na
desidratação, utilizam pequenos galhos verdes que por inúmeras cruzes
sobre a cabeça da criança enferma, vão murchando, por adquirirem o espírito
da doença que “fazia mal”. Rituais dos pajés que o catimbó nordestino
assimilou como herança da tradição oral (ARAÚJO, 2003, p.20)
Esse legado indígena se fundiu ao catolicismo europeu e à cultura africana,
elaborando-se assim uma cultura brasileira. Numa denominação do pesquisador Gutemberg
Costa “Mulheres que trabalham com galhos de plantas cultivadas em seus lares” (2009, p.
245). O trabalho com plantas consideradas medicinais ou mágicas, com poderes de cura ou de
proteção é uma herança indígena. E como herança da intolerância colonial com os rituais e
manifestações afro-ameríndias “Essas mulheres são discriminadas, inclusive por muitos
padres e religiosos” (COSTA, 2009, p. 245).
99
Sobre a relação de dona Naldi com a sua comunidade, esta, segundo o relato de vida,
começou a ser difundida por sua mãe dona Chica de Tomásia, que avisava à vizinhança sobre
o ofício da sua filha, sobre o dom que recebera por dádiva e por ensinamento dos ancestrais e
que estava a serviço do grupo. É essa a lógica social constituinte das culturas populares, o
exercício de uma arte ou ofício que tece uma teia envolvendo os membros de um grupo. Um
dom e uma sabedoria que constroem os laços com o grupo e mediam as relações sociais, as
trocas simbólicas:
Ciro: E assim lá a senhora já atendia as pessoas?
Naldi: Já. Já. É aquele pessoal ali de Compade Bone, éé aquele pessoal ali de Judite, éé do povo de
Seu Nogueira, eraa ali o pessoal de Dona Zefinha de Seu Mané nesse tem, era o pessoal que era o
pessoal mais próximo e quando minha mãe ficou avisando às pessoas que eu nasci com aquele dom e
eeu oo, o homem falou que eu ia ficar feliz, eu comecei a rezano pessoal. Então era o pessoal de
cumpade Bone, Seu Nogueira, o pessoal de Dona Zefinha ali de Seu Mané, era o pessoal que morava
mais próximo de nós era esse povo que nóis tinha mais contato. Era o pessoal de João Ismael, ali
depois onde hoje é de Aldo, sabe? era as pessoa que a gente tinha contato, que morava perto e.
Ciro: E assim quando a senhora casou continuou atendendo em casa?
Naldi: Continuei atendenu, em casa. É, quando eu casei, é, meu marido se chamava Damião que ele
era fi daquela finada Antônia, irmã daquela Nem. Então ele era trabalhador trabalhava com o pessoal
de Seu Pretim, no Leite trabalhava lá em Seu Pretim lá no leite; depois da da Palmeira descenu cê sabe
o que é o leite né lá? Era lá onde ele trabalhava, e sempre ele fa, as pessoa perguntava e sempre ele
falava pras pessoa que eu rezava, aí, por ali as pessoas se chegava minha casa pa rezar. ... Eee eu acho
Ciro que eu comecei a rezar eu tinha mais ou menos uma faixa uns treze, uns doze ano por aí, e já hoje
eu conto sessenta e três anos. Graças a Deus.
Ciro: de reza quase cinquenta né?
Naldi: É.
Ciro: E assim a senhora teve contato, além da avó da senhora, com outras rezadeiras? Frequentou?
Naldi: Tive aqui em Pau do Serro, que foi o tempo que minha irmã morava aqui e eu tive contato. Essa
mulher, acho que, acho que muita gente lá em Luís Gomes conheceu ela. Era uma senhora que morava
com o pade Caminha, uma senhora já bem de idade, bem escura assim que nem eu. Ela também me
ensinou muita coisa
Ciro: E assim na infância a senhora teve contato assim com o pessoal do Quati?
Naldi: Tive. Tive muito contato e era aquele eu pequena mas a minha irmã, Francisca, casou com
Vicente Gi e tinha aquele pessoal de Pedo Vintura, então minha mãe, meu, andarra muito pra lá, tinha
muito contato divido minha mãe era, que tinha era chamava assim era Luzia, éé´muita gente ali que
me, que realmente ainda é famia de Mãe Véa, aquele pessoal dos Vintura ali inda é famia de minha vó
Tomáza. Minha mãe tinha muito contato éé Faba, era Luzia, era Brasilina, esse pessoal tudo tinha
contato.
Ciro: a senhora conheceu ele?
Naldi: conheci tudim, conheci tudim; só é tem as pessoa que eu num conheci que foi Mané Giba que
era o sogro da minha irmã, o pai de Sanzi, Mané Gido eu conheci, mais Antônia de Mané Giba, a mãe
de Vicente Gido, Chico Gido eu conheci, dona Antônia.
Ciro: E assim a senhora tem lembrança das rezadeiras lá do Quati desse tempo? Quem eram?
Naldi: Tenho lembrança não.
Ciro: Lembra não?
Naldi: Não. Não tenho lembrança. Sei que lá tinha
Ciro: lá já tinha né?
Naldi: lá já tinha, mais nunca cheguei a ter contato com elas não.
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
100
Sobre o papel da oralidade no ofício de rezadeira, dona Naldi se orgulha de sua
memória, de lembrar das suas orações transmitidas desde a infância por sua avó dona Tomásia
e outras transmitidas por uma rezadeira com quem também tinha contato, de não precisar de
livros nem de ler suas orações. Nessa evocação da importância da memória no desempenho de
sua função, a representação dessa capacidade de lembrar as orações ensinadas desde a
infância faz da memória um dom inseparável da dádiva de ser rezadeira, um depende do
outro, pois o ofício exige a função do lembrar e esse ponto no relato de vida de Naldi é
enfatizado porque “Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito.
Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria apenas uma imagem fugidia. O sentimento
também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma
reaparição” (BOSI, 2007, p. 81). É justamente o sentimento e o apreço pelo dom da memória
e a consciência da sua importância que dá sentido à transmissão oral na história de vida de
Naldi. Ela sabe da função da memória e da oralidade na cultura do seu povo, principalmente
na transmissão da sabedoria popular pelos mais velhos aos continuadores da função no seio da
comunidade. Conforme podemos lê abaixo:
Ciro: E assim ao longo da vida da senhora, a senhora foi sempre aprendendo mais, né?
Naldi: Sempre aprendendo mais, sempre aprendendo mais. E sempre aprendendo mais que cada vez
que eu vinha praqui a Pau do Serro, eu, que eu encontrava essa encontrava mulher, que era muito
rezadeira aqui, sempre ela aumentava dizia mais ainda a sabedoria dela mais ainda que ela tinha, ela já
passarra pra mim. Ciro, eu fico éé, é coisa de Deus, que Ciro, eu decorar tudo na cabeça, e eu hoje
num esquecer um momento, das orações que eu aprendi até hoje. Hoje, o pessoal, a mioria eu fico
pensando, meu Deus como é que uma pessoa pega um ca, um livro uma coisa pra ler, vai se vai, vai
pra novena tem que tá lendo, e eu não preciso nada disso; nunca precisei, Ciro. É coisa de Deus. A
minha só na cabeça. Pergunte uma oração que minha vó me ensinou eu pequena que eu nunca me
esqueci, de jeito ninhum. Só, Ciro, uma coisa ela me disse, Naldi num ensine suas oração pra ninguém
não, porque é muito ruim, porque quebra as forças da oração. Pode ensinar, Ciro (faz gesto de não com
o dedo).
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
A partir dessa fala de dona Naldi, compreendemos que um dos dons mais apreciados
pela cultura popular é o da memória, considerado como uma dádiva divina para os agentes.
Gutemberg Costa (2009) afirma que, em suas pesquisas, 90 porcento das rezadeiras eram
analfabetas. Nesse sentido, a oralidade representa um patrimônio imaterial afro-brasileiro já
que grande parte dos negros não era alfabetizada devido à escravidão, apenas aqueles que
serviam em atividades mais exigentes e não nos trabalhos braçais. É a oralidade o suporte da
memória coletiva e, na esteira de Benjamin (1993), sem essa fusão da memória com a tradição
oral, a experiência do narrar não seria possível. Nesse sentido, as rezadeiras podem ser
101
comparadas ao griots, narradores africanos, transmissores das histórias que possuíam a função
de dar continuidade às tradições de suas tribos.
Desse fato surge a importância da memória e da oralidade, já que os ensinamentos
ancestrais das rezadeiras foram transmitidos pela voz-memória, e é por meio dessa voz que a
identidade se redesenha, que as funções são repassadas, que a possibilidade da continuidade
do legado ancestral se constitui. A essência da identidade cultural, da memória dos ancestrais,
de suas histórias e experiências de vida são transmitidas pelo narrador que sente a iminência
da morte, vivência que na história de vida de dona Naldi foi preparada ao longo do convívio
com sua avó dona Tomásia desde a infância. Foi nesse convívio que Naldi foi eleita para a
continuação do projeto de vida de sua avó, de construção do laço com o grupo social mediado
pelas rezas e pela passagem das experiências de uma vida inteira. Assim:
Os projetos do indivíduo transcendem intervalo físico de sua existência: ele
nunca morre tendo explicitado todas as suas possibilidades; Antes morre na
véspera: e alguém deve realizar suas possibilidades que ficaram latentes,
para que se complete o desenho de sua vida.
É a essência da cultura que atinge a criança através da fidelidade da memória
(BOSI, 2007, p.75).
A essência da cultura ancestral afro-brasileira atingiu Naldi desde a infância, por
meio dessa fidelidade da memória de que trata a psicóloga social Ecléa Bosi, quando aos
olhos da avó começou a ser formada para a função que exerceria em seu lugar. Também
Glissant compreende a sedimentação de culturas na elaboração das histórias do contador
crioulo e nesse ponto as histórias narradas pelas rezadeiras se assemelham às narrativas
crioulas. Os rituais e histórias de vida das nossas agentes entrevistadas são formadas de
derivas e acumulações como também são tecidas e narradas de forma circular com repetição
de temas transmitidos memorialmente para as novas gerações. Nessa dinâmica circular se
inscreve a transmissão do ofício de rezadeira. Assim:
A arte do contador de histórias crioulo é feita de derivas e ao mesmo tempo e
acumulações, com a presença desse lado barroco da frase e do período, essas
distorções do discurso onde o que é inserido funciona como uma respiração
natural, essa circularidade da narrativa e essa incansável repetição do tema
(GLISSANT, 1994, p.53).
Embora conviva com Naldi desde a minha adolescência e conheça sua história de
vida, a colaboradora não se sentiu à vontade para falar sobre a herança africana de sua cultura,
com relação ao culto dos orixás, e respeitei o seu silêncio e a sua recusa. A cultura de que esta
102
rezadeira é agente em sua comunidade recebeu toda uma influência católica num contexto em
que ou branqueava ou desaparecia por causa das perseguições e da intolerância (FANON,
2008). Nesse sentido, ela encontra maior facilidade em relatar sua vida relacionada aos santos
católicos, embora ressignificados pela história do seu povo, pelas experiências traumáticas do
tráfico, dos massacres físicos e simbólicos, do desenraizamento e da escravidão, para Gilroy
(2001) inseparáveis da cultura e da identidade negra ocidental, como a devoção a Nossa
Senhora Aparecida, uma Virgem Negra, que surgiu em terras brasileiras, a padroeira
portuguesa Nossa Senhora da Conceição revestida da nova simbologia como Nossa Senhora
da Conceição Aparecida como símbolo de luta contra a escravidão. Nesse sentido, embora por
convívio com dona Naldi e mesmo sabendo de seu culto aos orixás e raízes africanas,
percebemos que a entrevistada silenciou quando chegamos nesse ponto de sua história de
vida. Como os parâmetros da história oral não permitem que insistamos numa temática
complexa em uma entrevista, parei de perguntar sobre o assunto. Em sua atuação como
rezadeira, Naldi revela sua identidade católica, mas é preciso muita intimidade e confiança
para que revele os seus rituais de matriz africana e os coloque a serviço da comunidade. Não
são todos os frequentadores de sua casa que sabem das suas devoções e rituais africanos.
Vejamos:
Ciro: E assim, com o tempo que a senhora além dos santos a senhora foi tendo contato também
contato com os Orixás né? Com a religião mais…
Naldi: Hurumm. Foi, foi.
Ciro: De raízes mais africanas né?
Naldi: Foi, foi.
Ciro: Mas isso aí já foi bem na frente?
Naldi: Já. Foi bem, bem na frente já. Foi bem já bem avançado, bem na frente, bem na frente. ... Pois
foi, Ciro foi no início não.
Ciro: Não foi no início não, né? Na descoberta do dom não?
Naldi: Não. Foi depois com um tempo que eu fui vendo, que eu também tinha que, sabe? Outras
pessoas do bem né? Que viviam nesse mundo fazendo o bem e ajudando as pessoas, então essas,
também me apareceru pra que eu também pudesse lutar com eles também.
Ciro: Desenvolver também né?
Naldi: Desenvolver também.
Ciro: A senhora pode dizer quem são os Orixás da Senhora?
Naldi: Não, não. Num pode dizer.
Ciro: Não pode dizer, né?
Naldi: Pois é Ciro e eu agradeço a Deus todo dia e pelos momento bom que Deus me deu e tá me
dando até hoje. Agradeço muito. Ciro, lá em Luís Gomes, eu chego lá me Luís Gomes, assim, as
pessoas que acreditam muito em Deus e confia muito nas orações. Quando chego lá em Luís Gomes o
pessoal já com aquela fé que tem em Deus e que acredita nas orações, eu chego lá ói se eu passar dois
dias lá rezando no povo eu não dou conta. Não dou conta. Digo a você. Ói fui sábado, cheguei lá de
tarde, fiquei a tarde todinha rezando nas pessoas. as pessoas que sabiam que eu tava em Luís Gomes,
eu tava numa casa “Naldi cê tá onde? Dá pra você vir aqui rezar em mim?” eu tava naquela casa
rezano, outa pessoa ligava e então tirei o dia assim, sabe? Vim findá nas Casinha...
103
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
Quando indagada sobre a sua relação com os orixás, como são chamadas as
divindades africanas, dona Naldi silencia apesar da minha tentativa. Como a história de vida
respeita o lugar de fala dos colaboradores entrevistados, não mais insisti, embora Naldi ainda
tenha admitido que o seu contato com a religiosidade ancestral africana ocorreu bem depois
do início do seu ofício de rezadeira, o seu silêncio sobre o assunto e a recusa em falar se
constitui como uma identidade de resistência, assim como acontece com os moradores do
Quati quando indagados sobre a escravidão em que o silêncio foi a maneira encontrada para
reconstruir a sua história diferente da elaborada pelo olhar oficial (CARVALHO, 2010).
Esse conflito entre a memória oficial e a memória escolhida pelos povos que
passaram por traumas históricos, como é o caso das rezadeiras negras e dos povos
massacrados em guerras está presente na história de vida de Naldi como de tantos agentes das
culturas populares afro-brasileiras. Essa memória se apresenta dividida, pois se inscreve a
partir do lugar social de quem a relembra. Em eventos como desfiles de escolas de samba,
Dias do Folclore e da Consciência Negra, a memória do culto aos orixás aparece como uma
parte exótica da nossa identidade, que se permitiu “celebrar” oficialmente. Percebemos que a
dinâmica da memória quando se refere ao assunto dos orixás se torna complexa, dividida
entre o viés folclórico de quem não viveu nem vive o preconceito religioso baseado na visão
eurocêntrica e celebra essa memória como festa num ambiente exótico e de curiosidade. Essa
apartação social da memória que marca a vida das agentes da cultura popular afro-brasileira
que lidam em seu cotidiano com os ritos ancestrais relacionados aos orixás, e da memória
celebrada pode ser comparada memória conflituosa do massacre de Civitella Val de Chiana
em que:
Esses acontecimentos geraram o que Giovanni Contini muito bem descreveu
como uma memória dividida. Contini identifica, por um lado, uma memória
“oficial”, que comemora o massacre como um episódio da Resistência e
compara as vítimas a mártires da liberdade; e, por outro lado, uma memória
criada e preservada por sobreviventes, viúvas e filhos, focada quase que
exclusivamente no seu luto, nas perdas pessoais e coletivas (PORTELLI,
1998, p. 104)
Assim como o grupo de Civitella se divide numa parte que celebra o massacre como
um acontecimento da Resistência, o grupo de defesa da vila que matou três soldados alemães
e em represália esses mataram cento e quinze civis em Civitella, a memória da rezadeira
também se difere da memória presente nas comemorações, nas festas folclóricas que celebram
104
a cultura afro-brasileira e muitas vezes por meio de encenações e dramatizações que não se
aproximam da realidade de dor dos agentes que insistiram ao longo da história em cultuar as
divindades dos seus antepassados. Em Civitella, há uma memória oficial que celebra os fatos
históricos como um martírio e a real memória de dor e luto dos sobreviventes, dos filhos e das
viúvas que não se representa nas comemorações oficiais. No relato de vida de dona Naldi
marcado nesse momento pela recusa e pelo silêncio subjaz a memória da sua gente, dos seus
ascendentes cujas formas de manifestação religiosa foram perseguidas e reprimidas. Os orixás
tiveram que ser simbolizados por santos católicos ao longo da história, sincretizados e
ressignificados pelos santos cujo culto e devoção eram livremente permitidos. A rezadeira
falou com tranquilidade sobre a sua relação com os santos católicos. Vejamos:
Naldi: [...] Ciro eu nããão dormia direito, quando ia dormir era vendo muito santo, muita mata verde ...
Muito santo. Eu andando nar aquela mata bem estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro
mato bem verdim e santo. As imagens que eu encontrava mais era ... ... era as imagens de São José,
São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição. Em cada passo que eu dava que
encontrava as imagens no chão eu já reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...
(Transcrição 1 - 09.11.2015)
A memória da rezadeira revela uma clara divisão entre os santos católicos e os orixás
da religiosidade africana. É uma memória dividida e carregada de traumas devido ao histórico
preconceito racial e cultural. Na intimidade de frequentador da sua casa e das suas rezas,
tenho conhecimento das suas práticas culturais religiosas ligadas aos orixás, mas no momento
da entrevista a sua recusa foi necessária agir: “Com o devido respeito às pessoas envolvidas, à
autenticidade de sua tristeza e à gravidade de seus motivos, nossa tarefa é interpretar
criticamente todos os documentos e narrativas, inclusive as delas” (PORTELLI, 1998, p.
106). A cautela recomendada por Portelli diante do impacto norteou essa parte da entrevista,
pois com a tristeza demonstrada pela entrevistada originou um desvio no relato de vida com
foco na gratidão que sente por ter sido agraciada com o dom e no reconhecimento das pessoas
pelo seu exercício.
Com a tristeza demonstrada pela entrevistada originou um desvio e a rezadeira
escolheu falar do seu dom e da sua relação com as pessoas, da sua casa tão cheia e da grande
procura pelas suas rezas, tanto que começa a atender na cidade e vai findar nas Casinhas, um
bairro periférico bem afastado do centro. Sobre as raízes africanas Naldi silenciou, embora
tenha admitido que o contato com a questão dos orixás ocorreu bem depois da descoberta do
dom e do seu exercício, bem na frente como relata em suas palavras. A experiência de
preconceito religioso vivido pelos agentes da cultura e da religiosidade afro-brasileira se
105
compara às memórias traumáticas de Civitella. Assim “Alguém que nunca tenha passado por
uma experiência desse tipo jamais conseguirá sentir o que as pessoas de Civitella carregam
dentro de si” (PORTELLI, 1998, p. 106). A carga de dor da vivência do massacre de Civitella
por parte das testemunhas e sobreviventes comunga com a dor da rezadeira ao silenciar sobre
as suas raízes africanas. O sentimento que reveste esse norte das histórias de vida da rezadeira
e de tantos agentes da religiosidade afro-brasileira como pais e mães de santo dialoga com as
memórias da cidadezinha italiana. Á luz de Bosi (2007), ao pensar na esteira de Sartre,
entendemos que, assim como a velhice e a negritude se constituem como identidades
irrealizáveis, pois só podem ser compreendidas por quem de fato vive essa realidade. O olhar
de fora é incapaz de apreendê-la em sua intimidade. Há um terror, um ressentimento sentido
na alma do indivíduo que sofreu perseguição religiosa cuja forma de expressão se ancora no
silêncio e na recusa. Por isso a dificuldade de relatá-los, é um ponto sofrido da sua história de
vida difícil de exprimir e essa dificuldade de falar se compara às memórias de Civitella e à luz
do diálogo de Portelli com outros pensadores esclarece a dificuldade também do pesquisador
em lidar com o assunto e compreender essa elaboração da memória. Para o autor, “Assim,
Valeria Di Piazza se identifica plenamente com a relutância e a necessidade de se expressar
dos sobreviventes, e dedica seu trabalho ao dilema do ‘exprimível e inexprimível’ e a
dificuldade de comunicar e partilhar o luto e a perda” (PORTELLI, 1998, p. 106).
A elaboração das perdas, do luto, do ressentimento tece uma memória que se esquiva
de determinados acontecimentos que são considerados dolorosos para o narrador. Quanto ao
tema do viés mais africano da sua religiosidade e das suas práticas culturais, a fala da
rezadeira Naldi assume a mesma postura dos entrevistados negros moradores da cidade de
Luís Gomes e das comunidades do Quati/Lagoa do Mato quando perguntados sobre a
escravidão, atitude estudada por Carvalho (2010). O silêncio e a negação em falar desses
acontecimentos é uma maneira de elaborar a dor tanto transmitida pelos antepassados como a
ainda vivenciada pelos agentes da cultura afro-brasileira.
Numa atitude também de resistência, a recém-falecida mãe de santo baiana Mãe
Stella de Oxóssi defendeu em sua atuação a diferença entre os santos e os orixás, não
admitindo o sincretismo e associação entre eles por pertencerem a culturas diferentes. Para
ela, o catolicismo branco era diferente do candomblé afrodescendente. Essa era sua forma de
resistir e defender e militar em favor da cultura do povo negro e embora tenha escolhido se
posicionar ao invés de silenciar, sua atitude se irmana a de Naldi por construir um discurso
contra a dominação, como ocorreu em Civitella onde para Porltelli os posicionamentos não
são eternos e universiais, mas históricos e dessa forma dinâmicos e sujeitos às mudanças. O
106
nuance apresentado pelo discurso de Mãe Stella está resistindo ao “universalismo genérico
para dotá-lo do poder conflitante de uma narrativa em contraposição a outras” (PORTELLI,
1998, p.110). Na esteira da compreensão da crioulização de Glissant (1997), a postura da mãe
de santo é uma resistência a “digênesis”, ou seja, ao longo processo de descaracterização
cultural, de desfiliação à herança religiosa dos seus ancestrais africanos em que se recusa a
substituir seus mitos originais por mitos de outras culturas, como a católica europeia. Numa
negação a esta tentativa gradativa que ocorreu ao longo da dominação colonizadora de
apagamento dos elementos africanos, Mãe Stella se recusou a sincretizar orixás e santos
católicos como se fossem signos de uma só religiosidade. Os orixás são associados à natureza,
como, por exemplo, Iemanjá ao mar, no sincretismo fundida com Nossa Senhora da
Conceição, uma devoção católica herdada dos portugueses. Essa insistência em firmar os
elementos ancestrais numa sociedade predominantemente católica se inscreve no que Glissant
chama de “despossessão” em seu ato de resistir e retornar as suas origens e seus horizontes
culturais ancestrais sem a interferência da cultura branca. Já a atitude da rezadeira Naldi em
silenciar sobre o culto dos seus orixás se trata de uma “auto-digênesis” na esteira de Glissant
por cultuar os mitos e deuses africanos de forma sigilosa, tornando o seu culto original
obscuro e inacessível num território de sombras e de silêncio.
Por possuir um significativo tempo de convívio com Naldi, ainda tentei insistir, mas
recuei e respeitei a sua recusa, pois compreendi a gravidade do tema para a rezadeira. Essa
complexidade conflituosa entre as raízes africanas do trabalho das rezadeiras vem da
perseguição e do preconceito e do terror sofridos pelos negros que são componentes
integrantes de suas identidades, conforme Giroy (2001), e que não apenas guarda marcas na
memória dos agentes, mas infelizmente ainda ocorrem devido à incapacidade de entender
experiências diferentes, como a das rezadeiras que conseguem entrelaçar tantas raízes
religiosas e culturais e conviver com um mosaico de influências. Muitas pessoas e
pesquisadores se escandalizam com vivências que ultrapassam os seus próprios modelos.
Sobre esse fato, o autor reflete que:
Não tenho certeza se essa incapacidade de entender outras experiências e
outros modos de pensar que não os próprios é uma prerrogativa do
pensamento leigo e progessitas (que, por outro lado, está bem ciente do
problema). Talvez o pensamento religioso, sobretudo o católico, não esteja
totalmente imune também. Lidar com experiências que não as próprias e
compreendê-las deve, também, constituir a essência mesma da experiência
antropológica (PORTELLI, 1998, p. 107)
107
A culpa da negação em falar dos orixás não é da rezadeira, mas do tratamento
recebido ao longo da vida por parte de indivíduos que não aceitam culturas que fogem do
discurso de centro e vão além do controle social exercido pela cultura dominante baseada nos
padrões eurocêntricos, como o catolicismo. Portelli ressalta essa incapacidade do pensamento
religioso de não saber lidar com experiências que não as suas e do seu posicionamento não se
basear na compreensão constitutiva da experiência antropológica. Essa incompreensão gera
respostas como o silêncio da rezadeira e sua recusa em falar do que foi historicamente
rejeitado e quando relembrado pelo universo do seu outro, no caso o branco, é de forma
exótica que “celebra” a cultura afrodescendente em datas festivas, como Dia do Folclore, da
Consciência Negra, desfiles de carnaval e escolas de samba, porém sem conhecê-la e
compreendê-la em seus contextos reais de atuação, no cotidiano de seus agentes, sendo assim
representada no vazio de uma encenação do popular coforme criticou Canclini (1997).
O silêncio de Naldi protege um espaço sagrado da sua fé, cultura e memória, um
lugar impenetrável pelo outro, uma identidade que tem o poder de se contrapor às narrativas
dominantes sobre a sua cultura e sua gente e por meio do silêncio elaborar sua identidade,
resguardando o que é marcado pela dor e pelo preconceito e escolhendo falar da sua história
de vida a partir do seu dom e da sua atuação no seu grupo social como forma de construir um
novo olhar sobre suas memórias e a história do seu povo.
O silenciamento sobre as raízes africanas de dona Naldi vem uma identidade
alicerçada na memória da perseguição racial e religiosa. É o contexto desencadeador dessa
recusa em abordar um ponto tão marcante em sua história de vida. Muitas agentes negras da
cultura popular afro-brasileira embora sejam muitas vezes também filhas ou mães de santo,
conforme denominação da umbanda, devido aos preconceitos sofridos historicamente por seus
ancestrais, as dificuldades sofridas para cultuar seus orixás desde a escravidão, preferem ser
conhecida como rezadeiras, uma identidade de maior aceitação desde o passado até a
atualidade por sua ligação com o catolicismo. Uma religião que atravessou o Atlântico e
chegou em terras brasileiras sob o julgo da escravidão traz essa memória intrínseca.
O sagrado vale para cada um de acordo com a sua prática religiosa.
Infelizmente, no Brasil, as religiões de origem africana têm passado por
críticas, por dificuldades, problemas, sobretudo causados pela ignorância e
pelo preconceito de muitas pessoas, uma vez que os rituais afros vêm da
tradição de um povo que chegou ao Brasil sob o signo da escravidão. E
várias outras manifestações que têm raízes populares têm sido consideradas
marginais, e reprimidas, e criticadas (BENJAMIN, R., 2009, p. 215).
108
Outro ponto significativo da sua história de vida e que atravessou os séculos de
colonização é a presença do rosário como símbolo da identidade afro-brasileira. Reza a
tradição oral dos povos afro-brasileiros que a identificação da cultura negra com rosário
ocorreu pela semelhança com os colares de contas que existiam na África. A versão é que o
rosário surgiu das lágrimas de Nossa Senhora, e numa identificação com o contexto de vida
dos povos negros, diante do sofrimento da escravidão, visto que se tornou a protetora dos
escravos. O uso do rosário ao pescoço é uma marca dos negros do Quati. Uma vez em
conversa informal com o senhor Pedro Bode, primo de dona Naldi e morador da Lagoa do
Mato, ele me afirmou que o rosário é uma maneira de dizer que a pessoa é uma ovelha
pertencente ao rebanho de Nossa Senhora, como se fosse um chocalho, já que historicamente
Nossa Senhora do Rosário é protetora dos negros desde a colonização e o seu culto e
organização de irmandades se constituiu como uma identidade. Como relata Naldi:
Ciro: Naldi, e o que o rosário representa pra senhora? Esse que a senhora usa. Eu sempre vejo a
senhora e muitas outras rezadeiras com o rosário.
Naldi: Ééé. Esse rosário, eu acredito em Deus que ele é minha proteção tá?. Assim, pra proteger né?
assim pra porque a pessoa que reza, Ciro, ele reza as pessoas também são muito perseguida, sabia? Ele
também é perseguido. Por mais que você procure fazer o bem, Ciro, por mais que você procure
ajudar, mais inziste sempre a perseguição. E esse rosário, eu acredito que ele me guarda sabe? Ele me
me, assim eu me ... ... esse rosário no meu pescoço eu tô me achando já, comé que diz? Protegida,
sabe?
Ciro: E a avó da senhora, usava também?
Naldi: Ah ela morreu com rosário. Morreu com rosário. Minha vó morreu com o rosário.
Ciro: E as outras rezadeiras que a senhora conheceu, todas elas usavam?
Naldi: Quando ela achava que ia cair alguma coisa ela só pegava no rosário e dizia aquelas palavras aí
guardava o rosário (pega no rosário e coloca dentro do vestido), minha vó era assim. Pois é, Tomáza,
foi quem criou aquele pessoal de Sr. Gaudêncio, a primeira família todinha foi minha vó e a segunda
família. ...
(Transcrição 1 - 09.11.2015).
A representação do rosário na religiosidade popular afro-brasileira refletida na fala
de dona Naldi é de um objeto considerado sagrado por sua história de resistência e usado
pelas rezadeiras como signo de proteção, de que se valiam as rezadeiras nas horas de aflição,
pois pegavam no rosário e diziam palavras sagradas de suas orações e rezas. Atitude esta que
se assemelha à representação propagada pelos devotos do Padre Cícero Romão Batista de
Juazeiro do Norte no Ceará, localizado no sertão sofrido do Nordeste sujeito à diáspora e ao
desenraizamento causados pelas secas e pela ausência de condições materiais. Difundido pelo
Padre Cícero, é ainda hoje um símbolo de resistência e de identidade sertaneja, como também
para os negros, um sinal de proteção e de salvação, como se apresenta na imagem da carroça
do profeta popular José Alves de Jesus:
109
A imagem de Maria na carrocinha nos remete a José Alves de Jesus que
afirmava que Padre Cícero deixou a todas as ovelhas da mãe de Deus um
chocalhinho no pescoço, que deve ser usado sempre para chamar atenção de
Deus: o Rosário. Segundo ele. Ao rezá-lo, os Homens se lembram dos
mandamentos de Deus e não correm o risco de pecar.
O Rosário está ligado à imagem de Nossa Senhora. Uma das histórias
conhecidas em Juazeiro do Norte conta que as sementes das quais são feitas
o Rosário que cada romeiro traz junto ao peito nascem de uma planta que
brotou das lágrimas de Nossa Senhora, quando esta fugia do Egito com o
Meninno Jesus (HOFFLER, 2009, p. 201- 202).
Simbolicamente, há a crença popular de que o rosário foi feito das lágrimas de Nossa
Senhora na sua fuga para o Egito com o menino Jesus e São José devido à perseguição de
Herodes, título dado à Virgem de Nossa Senhora do Desterro nesse contexto do exílio. Assim
como os sertanejos do Nordeste brasileiro historicamente viveram em constante diáspora por
causa das secas e da fome e, por isso, encontram igualmente sentido no simbolismo do
rosário, os povos afro-brasileiros ao longo de sua história no Brasil com suas experiências
indissociáveis do deslocamento e do sofrimento causado pela diáspora e pela escravidão têm
no rosário uma representação identitária de resistência, pois as lágrimas da Virgem ao fugir
para o Egito se revestiram de outra significação, as lágrimas derramadas pelos escravos que
sofriam os mais cruéis castigos físicos além do desenraizamento, um dos mais cruéis traumas
de sua história. Daí a hibridização entre a religiosidade católica e a identidade cultural afro-
brasileira, nas palavras do autor a identidade cultural dos negros do Ocidente foi fundada na
memória da escravidão e do preconceito racial. É como se cada símbolo por mais simples que
possa parecer esteja relacionado à memória dolorosa da escravidão e a manutenção dos laços
entre os negros apesar da diáspora, mesmo que para isso fosse preciso uma adaptação a
cultura do colonizador. Porém, essa adaptação não se fez de forma passiva, cada manifestação
cultural foi reelaborada como resistência e construção de uma identidade historicamente
massacrada.
A festa do Rosário enquanto manifestação cultural afro-brasileira é uma marca em
muitas comunidades do sertão e do interior do Nordeste, como também a coroação dos Reis
de Congo, festa que apresenta um viés de carnavalização, de entronização dos negros e
destronamento do branco dominador, seguindo a esteira de Bakhtin (2003) sobre o viés
cultura popular em sua obra A cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rebelais. As irmandades negras de Nossa Senhora do Rosário foram
historicamente responsáveis pela organização das festas do Rosário, tão significativas nos
estados nordestinos como o Rio Grande do Norte, onde ainda acontecem nas cidades de Caicó
e Jardim do Seridó (PEREIRA; DOZENA, 2015). Sobre esse contexto:
110
De acordo com as pesquisas empreendidas por Cavignac (2008), as
irmandades negras presentes em todo o Brasil e a festa de Nossa Senhora do
Rosário das irmandades negras começaram a ocorrer no Nordeste a partir do
final do século XVII, com a coroação dos Reis de Congo em Recife de em
1674. No Seridó, as irmandades começaram a se formar com a cultura do
algodão no século XIX (PEREIRA; DOZENA, 2015, p. 45).
Na resistência cultural e religiosa dos povos africanos, os signos e símbolos foram
revestidos de novos sentidos ao longo da diáspora numa atitude de sobrevivência cultural. No
catolicismo, o rosário era o símbolo da vitória dos cristãos contra os muçulmanos.
Inicialmente a festa de Nossa Senhora do Rosário era chamada de festa de Santa Maria da
Vitória. Solenidade esta criada oficialmente pelo papa Pio V quando pediu aos cristãos que
rezassem o Rosário pela vitória dos cristãos (BISINOTO, 2017). Sobre essa batalha entre
cristãos e muçulmanos:
Lepanto era uma cidade da Grécia, com importante porto, junto ao Golfo de
Corinto. Nela se travou a famosa batalha naval, em que a esquadra cristã,
comandada por João da Áustria, derrotou os turcos mulçumanos. A vitória
foi obtida em 7 de outubro de 1571, impedindo assim a grande expansão do
império turco (BISINOTO, 2017, s.p.).
No contexto histórico das guerras entre cristãos e muçulmanos, a festa de Nossa
Senhora do Rosário foi criada e firmada por diversos papas como signo da vitória sobre os
muçulmanos, conforme podemos ver as modificações da festa e da devoção ao longo da
história:
Em 1573, o Papa Gregório XIII tornou a festa mariana obrigatória para a
diocese de Roma e para as Confrarias do Santo Rosário, sob o título de
Santíssimo Rosário da Bem-aventurada Virgem Maria.
Em 1716, o Papa Clemente XI inscreveu a festa no calendário romano,
estendendo-se para toda a Igreja. A celebração ocorria em datas diferentes,
conforme os costumes locais.
O Papa Leão XIII inscreveu a invocação “Rainha do Sacratíssimo Rosário”
na Ladainha Lauretana em 10 de dezembro de 1883.
Em 1913, o Papa Pio X fixou a data da celebração da festa em 7 de outubro
(BISINOTO, 2017, s.p.).
.
Porém, o mesmo rosário antes símbolo da derrota para os muçulmanos e signo
central da organização de confrarias e irmandades dos brancos e cristãos-católicos se torna em
terras brasileiras signo de resistência, sobrevivência e identidade dos povos afro-brasileiros,
numa ressignificação que lhes permitiu agrupamentos em irmandades católicas e uma forma
subjacente de rememorar as crenças e os costumes ancestrais ao associarem o rosário católico
111
com o colar de contas africano e usado na religiosidade ancestral, como a muçulmana. Outra
informação sobre o contexto histórico da devoção dos negros ao rosário de Nossa Senhora é
que esta atravessou o Atlântico:
Nos navios negreiros, estava presente a imagem de Nossa Senhora do
Rosário [...], ligada à ocupação da África pelos portugueses. Tal devoção
havia sido difundida especialmente no Congo e veio para o Brasil nos navios
negreiros. Inúmeros missionários se encarregaram de difundir a devoção do
rosário (LIMA, D. V. B. de, 2014, p.80-81).
Nesta riqueza e no complexo significado do rosário para os povos afrodescendentes,
este foi aclimatado às histórias de vida dos negros, e as Festas do Rosário do interior do
Nordeste brasileiro, como na histórica cidade de Pombal na Paraíba, em que a imposição da
cultura branca católica se dava pela construção de igrejas para o culto dos colonizadores. As
primitivas igrejas eram depois trocadas por igrejas maiores e para não ficarem no abandono
foram transformadas em capelas, que muitas vezes eram destinadas aos povos negros. A
antiga Matriz passaria a ser denominada como Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Após a
tranferência da devoção a Nossa Senhora do Bom Sucesso, título venerado pelos
colonizadores devido ao sucesso que obtiveram no massacre dos povos indígenas da região e
motivo primeiro do início da construção da primitiva capela. Segundo José Romero Araújo
Cardoso:
Até o final do século XIX os cultos católicos, direcionados a Nossa Senhora
do Bonsucesso, foram realizados na velha igreja em estilo barroco. Com a
construção de novo templo, concluído no início da década de noventa da
referida centúria, o recanto de oração dos cristãos da terra de Maringá à sua
padroeira, passou a se realizar na matriz inaugurada para receber a devoção
dos fiéis (CARDOSO J., 2015, s. p.)
Foi a atuação do negro Manoel Cachoeira que revestiu de identidade afro-brasileira a
festa do Rosário em Pombal que, junto ao bispo de Olinda, conseguiu tornar a festa oficial, já
que eram notórias as marcas da imposição do colonizador sobre as manifestações religiosas.
O sofrimento dos negros, as marcas do famigerado cativeiro geraram também uma resistência.
Foram necessárias três viagens a Pernambuco para que o fundador da festa do Rosário da
cidade de Pombal conseguisse o seu feito. Do diálogo de Manoel com o folclore negro foram
incorporadas à festa manifestações afro-brasileiras como o Reisado e os Congos, na própria
identidade da Irmandade do Rosário. Apesar da resistência da hierarquia católica com os
traços da cultura africana, na identidade dos negros do Rosário:
112
Três culturas se fundem no ensejo da adoração ao Rosário. Inúmeras tribos
islamizadas foram trazidas da África para o Brasil, permanecendo traços
culturais destas em razão da presença do Tecebá, o Rosário islâmico, entre
os dedos da imagem de Nossa Senhora. Notar que o culto se destina mais
precisamente ao Rosário, símbolo da resistência dos descendentes dos filhos
de Alá. Em seguida, enquanto signo da imposição do colonizador católico
encontra-se a presença do cristianismo, com Nossa Senhora coadjuvando a
expressão de Fé, e, finalizando com as evidentes marcas da louvação que
denotam a influência da cultura negra, considerada pagã pela igreja Católica,
de certa forma, em diversos momentos (CARDOSO, J., 2015, s. p.).
Em se tratando do viés rizomático da cultura afro-brasileira e de sua elaboração
sincrética, a presença de elementos e traços islâmicos, católicos europeus, africanos e
ameríndios nos reforça a compreensão dessa identidade como compósita, em que embora ao
longo da colonização tenha havido a tentativa forçada de prevalecer o catolicismo, não há
uma raiz principal, mas rizomas. É um rosário rizomático formado por contas diversas, por
fios de múltiplas ramas e culturas, por “formas muito diversas desde sua extensão superficial
ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos” (DELEUZE;
GUATTARI, 2004, p. 15). Essa mestiçagem cultural de traços de povos tão antagônicos como
islamitas e católicos, negros e indígenas nos mostra a riqueza e a complexidade da cultura
popular e da religiosiade afro-brasileira escondida muitas vezes numa manifestação simples e
singela como a devoção ao rosário que passa despercebida (AYALA, 1997). Esse objeto
considerado sagrado se constiui como ponto significativo da memória dos povos
afrodescendentes que liga descendentes a ancestrais, atravessou os séculos até a atualidade
reelaborando os seus sentidos e significados. Como objeto de manifestação cultural e
religiosa, se inscreve numa encruzilhada de signos que puxam fios de muitas raízes. Assim o
rosário foi e é utilizado em diferentes contextos e nos confirma o pensamento de que “Ser
rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou melhor, ainda, que se
conectem com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos usos”
(DELEUZE; GUATTARI, 2004. p.25).
Sobre a subjugada visão que a Igreja Católica tem da cultura negra que trouxe pelo
Atlântico outros ritos ainda hoje presentes em manifestações culturais como a Festa do
Rosário, as rezas e narrativas, a simbologia do rosário de resistência dos islâmicos a
colonização em memória do Tecebá, essa espécie de rosário do Islamismo citado por José
Romero Araújo Cardoso (2015), Cascudo (2002) aborda que ocorreu porque a catequização
dos negros não interessava tanto a Igreja Católica. Para o autor, aconteceu de forma
sumarizada porque do negro interessava o corpo como força de trabalho e não a alma,
diferentemente do que ocorreu com os indígenas. Esse pode ser um dos motivos de uma maior
113
resistência da cultura trazida da África que, embora ressignificada junto ao catolicismo, não
perdeu totalmente os seus traços, o que nos ajuda a compreender a fusão entre traços africanos
muçulmanos e pagãos com elementos culturais católicos europeus:
A catequese para o negro fora sumária, distraída, desinteressada das reais
conquistas da alma. A finalidade era manter o corpo obediente e produtor.
Alma, seria necessidade do homem branco. Unicamente a escravaria
contaminada pelo Islã deu trabalho a disciplinar-se nos eitos e bagaceiras ao
decorrer do Recôncavo baiano. As multidões pretas empurradas para a
mineração em Minas Gerais, zoas do ouro e diamantes, canaviais do Norte,
cafezais paulistas. Poderiam reagir à fome e maus-tratos. Jamais à violação
de crenças negras, diluídas no maquinalismo diário. Mesma situação em
Pernambuco, depois no Rio de Janeiro e São Paulo. Indígenas e negros não
defenderam os santos do seu sangue e cor. Não houve mártires da Fé,
esculpidos em bronze e ébano. Mantiveram as defesas mágicas e não atos
pragmáticos do culto tribal. Distinga-se a revivescência sudanesa como
atividade religiosa, notadamente complementar às práticas da liturgia branca,
ao terminar o século XIX. A África reforçava a memória dos seus exilados
filhos nas vitaminas das remessas incessantes. O indígena sofreu o ataque
maciço da catequese e fiscalização repressiva por todos os recantos de sua
geografia residencial. Seria a sensibilidade africana, e não ameríndia, a
detentora mais decisiva do catecismo cristão. Ainda agora, na África, o
Catolicismo avança com desoladora lentidão. Os “fiéis” são meras ilhas
heróicas (grafia do autor) no oceano, maometano, em constante preamar. Tal
não ocorreu no “degredo” brasileiro (CASCUDO, 2002, p. 345).
Segundo o autor José Romero de Araújo Cardoso (2015) no início da década de 1960
do século que passou, o padre Acácio Rolim se recusou a realizar a festa do Rosário por
considerá-la um espetáculo profano e herético promovido pela Irmandade do Rosário. Apesar
desse ato de racismo e intolerância religiosa e cultural, a população realizou a festa marcada
por significativa presença da comunidade. Já na atuação de outro sacerdote católico, o padre
Sólon a festa foi destacada como um expoente da cultura e da religiosidade da cidade. O apoio
da população local à festa se constitui como um marco do sincretismo, da elaboração de uma
identidade cultural híbrida em que não cabem mais ações de discriminação e rejeição a uma
cultura integrante da nossa identidade nacional.
Fato histórico semelhante à situação dos negros na cidade de Pombal ocorreu
também na cidade de Sousa no mesmo estado, quando os negros escravizados só adquiriram
um lugar para as suas práticas, embora já dominadas pelo catolicismo colonizador, quando foi
construída uma nova matriz e dessa forma os cativos puderam ter a sua própria capela, lugar
que se revestiu da identidade do Rosário dos Pretos.
114
Situada no largo da Praça da Matriz, a primeira igreja de Sousa, em estilo
barroco, fora obra de Bento Freire entre 1730 e 1732. A Igreja de Nossa dos
Remédios foi o marco do núcleo do Jardim do Rio do Peixe.
Com a construção da atual Igreja Matriz de N. S dos Remédios, a pequena
Igreja perdeu a condição de Matriz na década de 1880 ´passando para o
domínio da Irmandade do Rosário dos Pretos formada por negros cativos da
Região, sendo denominada Igreja do Rosário dos Pretos (SOUSA, 2005, p.3)
Segundo o mesmo relato que se encontra na Agenda da Cidade de 2006/2007 na
atualidade, a Igreja do Rosário dos Pretos é cuidada pela Irmandade do Santíssimo
Sacramento. Compreendemos, assim, que o histórico local perdeu as referências da cultura
afro-brasileira, como ocorre em muitos lugares em que predomina a visão subjugada dessa
identidade. Essa discussão nos esclarece como o rosário se tornou um signo de resistência e
da identidade dos afrodescendentes, principalmente no universo da religiosidade popular,
como é o caso das rezadeiras que a usam no pescoço e o rezam como símbolo forte da história
do seu povo e de suas histórias de vida. O rosário enquanto objeto é um cordão formado por
contas, composto por três terços de cinquenta ave-marias cada, centralizado numa medalha
com a imagem de Nossa Senhora e iniciado numa medalha com uma imagem também
mariana ou num crucifixo, em que se marcam e contam as orações católicas do Credo, do Pai
Nosso, da Ave-Maria, do Glória ao Pai e da Salve Rainha, composto pela tradição católica ao
longo da história e que “Na sua forma atual o Rosário tem por autor S. Domingos, fundador
da Ordem dos Pregadores ou Dominicanos por uma revelação particular de Maria no ano de
1206” (ADUCCI, 1958 apud CARTAXO, 1975, p. 106). Nessa longa e complexa dinâmica
cultural, o rosário e os ritos e festas que o circundam se constituem como signos fortes para a
identidade cultural afro-brasileira.
Para Glissant (2002), essa mistura cultural que ocorreu tanto na Neoamérica como
nas outras Américas onde nos incluímos se assemelham as misturas que aconteceram em
outros lugares do mundo, originando novas culturas que ele denominou crioulização. O autor
também afirma que essa nova cultura é imprevisível. Assim se formaram as rezas e as
narrativas de vida das colaboradoras desse trabalho, a partir dessa mistura de culturas, deste
caldeirão que envolveu a cultura africana com seus rituais mágicos e o papel social do griot, a
religiosidade muçulmana também trazida da África e em solo brasileiro ressignificada na
devoção ao rosário, e os elementos indígenas com os quais os negros tiveram significativo
contato, além da imposição cultural branca. Nesse intercâmbio:
[...] las culturas del mundo, en contacto instantáneo y absolutamente
conscientes, se alteran mutuamente por medio de intercambios, de colisiones
115
irremisibles y de guerras sin piedad, pero también por medio de progresos de
conciencia y de esperanza que autorizan a afirmar – sin que uno sea un
utópico o, más bien, admitiendo serlo – que las distintas humanidades
actuales se despojan con dificultad de aquello en lo que han insistido desde
antiguo, a saber: el hecho de que la identidad de un individuo no tiene
vigencia ni reconocimiento salvo que sea exclusiva respecto de la de todos
los demás individuos (GLISSANT, 2002, p. 17-18).
Para o autor, a crioulização só se constitui como tal quando os elementos culturais de
determinada manifestação se encontram em posição de igualdade. No caso das rezas e
devoções dos povos afrodescendentes no Brasil que ao longo da colonização e do período pós
foram bastante perseguidas e discriminadas, a crioulização se deu de uma maneira desigual.
As próprias rezadeiras e as pessoas que procuram suas rezas não diferem nem separam os
elementos de cada cultura, da africana, indígena e europeia e hoje apenas aparentemente
convivem harmoniosamente nos ritos. Das rezadeiras entrevistadas, apenas dona Naldi tem
um maior conhecimento da herança africana, como mostra o seu saber sobre os Orixás e o seu
silenciamento sobre o assunto ao ser indagada. As outras duas rezadeiras dona Lurdes e dona
Cosma trabalham, quase que inconscientemente, sua herança africana dentro das rezas. Esse
desconhecimento se deve à croulização desigual teorizada por Glissant e seu legado na
história dos povos afrodescendentes.
A colonização ocorrida no Brasil fez com que a cultura africana após atravessar o
Atlântico sofresse um violento silenciamento. Podemos perceber este silêncio na recusa de
dona Naldi em falar sobre a sua relação com os orixás, herança cultural e religiosa trazida
pelos povos negros que mais se aproxima da forma como era cultuada em terras africanas.
Falar sobre os santos católicos com a tranquilidade que não se pode falar dos orixás nos
mostra a repressão sofrida desde a colonização que ainda se reflete na identidade afro-
brasileira atual. Nesse sentido, “O ser se encontrava dessa maneira despojado de toda espécie
de elementos de sua vida cotidiana, mas também, e, sobretudo, de sua língua” (GLISSANT,
2005, p.19). Para o autor, a repressão e o silenciamento deixam o ser colonizado despojado de
si, da sua identidade ancestral e cultural. Mas a tentativa de colonização religiosa e cultural
dos povos diaspóricos os despojaram de sua língua, pois esta é desconhecida pelas rezadeiras
colaboradoras deste trabalho, mas não totalmente dos elementos culturais e de todo o seu
patrimônio e de suas tradições. Os traços africanos das rezas, como a presença da magia,
embora silenciados se hibridizaram com os traços católicos e se sobressaíram no meio dessa
mistura cultural.
116
Nesse processo de hibridização, também as irmandades religiosas se constituíam
como uma forma de organização social de brancos e negros. Quanto aos negros escravizados,
estes se organizavam em torno da simbologia do Rosário, como ocorria no estado de Minas
Gerais na época da colônia. Aqui há uma divisão nas irmandades formadas por negros, pois os
forros se reuniam em torno da devoção a São José e não a Nossa Senhora do Rosário:
A convivência social organizava-se em torno das irmandades religiosas,
formadas por indivíduos que tinham especial devoção por um mesmo santo
católico. As irmandades agrupavam pessoas da mesma condição sócio-
econômica. Havia irmandades de escravos (Rosário), irmandade dos forros
(São José), irmandades dos senhores proprietários de lavras e terras
(Santíssimo Sacramento). Tal fato revela como aquela sociedade era
extremamente dividiva e hierarquizada – a posição do indivíduo variava
segundo a cor, a riqueza e o prestígio social. Entre os membros da
irmandade, porém, predominava o espírito de solidariedade e de amparo.
As irmandades responsabilizavam-se pela vida espiritual dos irmãos:
realizavam missas e procissões, preparavam os enterros (geralmente feitos
nos cemitérios da própria irmandade), promoviam as festas dos santos
padroeiros, cuidavam dos doentes, patrocinavam artistas e músicos.
Frequentemente também erguiam suas próprias igrejas ou altares nas igrejas
principais (GONÇALVES; ANTOR, s. d., p. 23-24).
Já em outros lugares do Brasil, como o Recife, os sacerdotes dos cultos afro-
brasileiros dos orixás chamados de babalorixás eram integrantes das confrarias de Nossa
Senhora do Rosário e Luiz de França dos Santos, agente da cultura que foi dirigente do
Maracatu Leão do Recife, se orgulhava de ter sido juiz da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos (Coleção O Brasil Somos Todos Nós, 2011). Essa discussão
aprofunda o contexto histórico colonial e pós-colonial para a compreensão do significado do
rosário enquanto símbolo da história e da identidade não apenas das rezadeiras, mas de muitos
membros dos grupos sociais formados pelos povos afro-descendentes.
Os rituais das rezas herdados dos antepassados africanos e reavivados pelas atuais
rezadeiras de acordo com o contexto sócio-histórico contemporâneo da comunidade se
destacam na cultura não só local, mas regional, como uma das tradições que reúne em torno
de si a identidade negra como também ressignificam e reelaboram as antigas tradições em
diálogo com a cultura portuguesa, o que lhe dá um caráter de sincretismo religioso. Bosi no
seu estudo sobre a narrativa de vida de dona Risoleta, uma senhora paulista descendente de
escravos, nos apresenta que, após uma vida de trabalho, a entrevistada exerceu na velhice a
função social de rezadeira em diálogo também com o catolicismo, pois possuía em casa uma
imagem de São Benedito, santo negro e descendente de escravos, símbolo dessa intersecção
117
cultural e religiosa. Como signo de sua identidade negra e da memória social do seu grupo, o
santo católico está presente ao lado das atividades laboriosas de dona Risoleta e sintetiza a
relação para as rezadeiras das rezas e ritos com as atividades e tarefas do trabalho cotidiano.
Para a colaboradora da pesquisa de Bosi, as rezas e orações se constituem como um trabalho
no seio do seu grupo e ritualizam o seu cotidiano e a sua função social: Segundo Bosi:
Depois que ficou cega, d. Risoleta é amparada pelas filhas e exerce os dons
da cura e da oração. Agora as pessoas a procuram confiando nos seus
poderes espirituais e não há quem não saia atendido e confortado. D.
Risoleta continua trabalhando: ‘Eu tenho muita vontade de servir alguém.
[...] Não faço outra coisa, agora que estou cega, atendendo pedidos de
oração’ (BOSI, 2007, p. 477).
Atender aos pedidos de oração é o elo entre a rezadeira e os membros do seu grupo
social. Assim, esse ritual ancestral coloca a rezadeira numa função não só de depositária da
sabedoria popular do seu grupo, mas de transmissora memorial dessa cultura e de agente da
história oral do grupo, termo usado aqui não no sentido de metodologia de pesquisa, mas de
história do grupo transmitido por meio da oralidade e que tem relação intrínseca com os
rituais das rezas e o papel simbólico que representa na comunidade e na vida das agentes e
praticantes desse bem simbólico e cultural. A função de rezadeira define a posição no grupo
dessas mulheres negras, pois as praticantes desse rito são escolhidas pelos mais velhos do
grupo, sejam homens ou mulheres para exercer desde a função de rezadeiras como também de
transmissoras da história e da cultura. Assim cada mulher rezadeira é guardiã dos tesouros
espirituais do grupo, dos seus saberes e segredos, cabendo-lhes a responsabilidade de realizar
a transmissão memorial da história, da cultura e da religiosidade do seu povo. A função pode
ser passada dentro do grupo familiar, de pai ou mãe para filha, de avô ou avó para neta, por
exemplo. Segundo outra compreensão dessa tradição se o homem passar as orações para outro
homem e uma mulher para outra mulher o transmissor perde as suas forças, ou seja, suas
orações e rezas perdem o poder e a eficácia. Porém, no estudo realizado no ritual do
Cambonde na comunidade do Açude, Serra do Cipó em Minas Gerais, a função é repassada
de mãe para filha, eleita dentre a do grupo familiar mais digna de exercer a função, sem que
haja na perda da eficácia da reza:
O papel social de rezadeira deve ser herdado com muita honra pelas futuras
praticantes, passando de mãe para filha como relata Maria: “Aí quando
minha mãe [...] tava pra morrê, aí ela chamo nós e falô ‘agora ocês... eu sei
que cês não qué ouvi isso, mai eu tenho que falá c’ocês, eu agora eu quero
deixar o cargo de rezá na mão de uma d’ocês. E eu tenho certeza que vai dá
118
mais certo é Maria dos Milagres”. Este pedido da mãe, a antiga rezadeira, é
determinante para que a “eleita” seja oficialmente responsável por comandar
as rezas a partir de então (RESENDE; SOUZA, 2005, p.95).
A futura rezadeira dentro desse contexto sócio-histórico foi escolhida pela
experiência da sua mãe. Como aborda Benjamin (1993) em seu ensaio “O Narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, que é no momento da morte que o narrador,
aquele que conhece as tradições, os saberes e as experiências do seu grupo, transmite o seu
legado, a sua herança e os seus últimos conselhos e ensinamentos ao escolhido para continuar
a sua função social, como ocorreu no exemplo citado da senhora Maria, moradora da
comunidade do Açude que na hora da morte buscou garantir a continuidade dos rituais e da
sua cultura. Em outros contextos, a transmissão é realizada apenas de homem para mulher ou
o contrário, como é citado por Rodrigues (2006) ao relatar a em seu trabalho a transmissão da
função de ajudar os moribundos da comunidade passada por Seu Atanásio para a filha Maria
José.
Gutemberg Costa (2009), em seu artigo “Curandeiros e rezadeiras”, aborda que
optou como categoria de sua pesquisa mulheres rezadeiras. Também optei pela denominação
de rezadeiras pela maneira como são mais conhecidas na nossa região, aborda a realidade
atual dessa categoria no nosso Estado do Rio Grande do Norte e afirma que “Essas mulheres
geralmente são discriminadas por muitos padres e religiosos” (COSTA, 2009, p. 245). Daí a
necessidade de um trabalho em que possam se reconhecer a partir da sua identidade e de
combate à discriminação. Nesse sentido, os rituais das rezas, bênçãos e benzimentos são
exercidos por sociedades em existência, em situações reais de comunicação e interação social,
em que devemos considerar o seu processo de uso social e a relação existente entre os
praticantes e os seus receptores, dentro de sua atuação na comunidade. É a funcionalidade
social das rezas que as registra na memória das rezadeiras e dos membros do grupo que
reconhecem sua eficácia e as procuram.
As rezadeiras, embora alguns estudiosos pensem no fim de sua atuação com a
modernidade, continuam exercendo o seu papel e transmitindo a sua função, seja para
familiares, ou outros membros escolhidos dentro do grupo, sendo solicitados por sua gente
para rezar e benzer em diversos contextos sociais. Dessa forma, percebemos que, por meios
das rezas praticadas pelas mulheres negras moradoras do Quati, os laços de parentesco, de
identidade cultural, de história e relação com o passado dos ancestrais se constitui como uma
prática atuante e viva na cultura popular e continuamente reelaborada de acordo com novos
contextos e situações, pois as rezadeiras se inserem em situações sociais reais de comunicação
119
e interação. As rezas, a história oral do grupo são formas de afirmação identitária de quem as
exerce e transmite e de quem as solicita, e é nessa perspectiva que o nosso estudo se
desenvolve.
O fato de dona Naldi ter migrado para Pau dos Ferros, em sua fala o lugar é chamada
de “Pau do Serro”, uma cidade de maior porte onde se distanciou geograficamente dos
membros do seu grupo social, apesar de ser bastante visitada sempre que as pessoas de Luís
Gomes que recebem suas rezas vão a esta cidade ou necessitam da sua ajuda, não constituiu
um distanciamento de sua identidade cultural. O espaço não se tornou um obstáculo ao
exercício de sua função social. Ao atender pessoas também em Pau dos Ferros, fato do qual
sou testemunha, ela ampliou sua rede de relações sociais e afetivas. Esse fato contraria de
certa forma o pensamento do geógrafo Milton Santos quando afirma que:
Vir para a cidade grande é, certamente, deixar para atrás uma cultura
herdada para se encontrar com uma outra. Quando o homem se defronta com
um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória
lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação (SANTOS, M.,
2006, p. 222).
Nesse sentido, a rezadeira Naldi não deixou para trás sua cultura herdada dos
antepassados, embora o seu deslocamento a defrontou com um lugar estranho à sua história de
vida e a sua memória. O novo lugar não se tornou sede de uma alienação. Não obstante a
mudança, a colaboradora encontrou gradativamente espaço para o seu ofício de rezadeira e
uma nova convivência foi construída no novo lugar. A longa convivência no seu lugar
familiar foi continuada por uma nova vivência em que a agente popular continuou ativa,
retomando por meio da memória e da prática de rezadeira as imagens que lhes são caras.
Assim:
Vivemos um tempo de mudanças. Em muitos casos, a sucessão alucinante de
eventos não deixa falar de mudanças, mas de vertigem. O sujeito no lugar
estava submetido a uma convivência longa e repetitiva com os mesmos
objetos, os mesmos trajetos, as mesmas imagens, de cuja construção
participava: uma familiaridade que era fruto de uma história própria, da
sociedade local e do lugar, onde cada indivíduo era ativo (SANTOS, M.,
2006a, p. 222).
Como traço característico da identidade dos agentes das culturas populares, a
rezadeira Naldi após ter vivenciado uma longa interação com os membros do seu grupo no
município de Luís Gomes, nos sítios onde nasceu e possui familiares, na cidade onde morou
120
até sua ida para Pau dos Ferros, adaptou a sua função quando mudou de lugar. Passou a
construir uma nova convivência, reelaborando assim sua história de vida.
4.4 Dona Lurdes: um dom em que a pessoas acreditaram
A nossa segunda entrevistada é a senhora Maria de Lurdes Martins da Silva,
conhecida nas comunidades de Quati e Lagoa do Mato como Lourde de Pedro Chéu, nome
popular do seu esposo, referência comum nos nomes populares do sertão nordestino. Lurdes
cresceu em meio ao universo das rezadeiras negras de sua comunidade, pois ela é descendente
das famílias ancestrais do lugar, sobrinha, prima de outras rezadeiras mais velhas. O convívio
cotidiano ao longo da sua de vida foi fundamental para a descoberta do dom, como se fala nas
culturas populares. Porém, já vivendo num outro lugar a rezadeira narra que aprendeu a rezar
com um baiano que era cigano e que passou em sua casa pedindo esmolas. Na fala da
entrevistada fica subjacente que este baiano era um rezador, agente da sua cultura que
reconheceu em dona Lurdes uma pessoa portadora do dom. Com o início da sua função, dona
Lurdes foi também, segundo ela, melhorando, afastando as coisas ruins, pois na compreensão
das culturas populares, a pessoa que possui um dom e não o coloca à disposição dos seus não
se sente bem, muitas vezes até adoece, fato também narrado na história de vida da rezadeira
Naldi que passou a se sentir melhor após o início da sua função de rezar. Vejamos a fala da
colaboradora:
Ciro: Lurdes aí a senhora disse que a, cumé... aprendeu as rezas com um baiano, como a senhora
conheceu esse baiano, foi aqui?
Lurdes: Eu tava lá em casa aí ele passou... lá em casa, eu só sei que ele disse que era cigano né?. Aí ele
pidiu irmola, aí Pedo disse que não tinha irmola pa vagabundo, aí ele disse, eu tava deitada e ele disse
é isso mermo.
Ciro: A senhora morava aonde?
Lurdes: Na Paraíba
Ciro: Paraíba né?
Lurdes: Morei doze ano lá ainda né? Aí ele disse assim, ó você disse que não tem irmola pa dá e se eu
disser que tua mulé ta aí em estado como em cima duma cama e tem remédio pra ela, encontrou
remédio pra ela, vou ensinar remédio pra ela, ele te disse, o que é o remédio, ele disse pa ameba, eu
vou ensinar uu... criolim né? Criulim, muia um cordãozim (gesto demonstrativo com as mãos) e bota
dento dagua e vai pingando num copo d’água aí, o cordão moiado de criolino aí moia na agua e pinga
no copo. Fica no li é bem pretim, né? Aí fica branco, aí então fiquei boa da ameba com isso aí.
Ciro: Aí a senhora depois teve contato com esse baiano?
Lurdes: Num vi ele mair não, passou pedindo irmola, Tião disse que não tinha irmola pa vagabundo,
ele disse sua mulé ta aí em cima duma cama aí, ainda não encontrou remédio ainda a doença dela é no
intestino, é ameba, eu vou ensinar remédio pra ela, aí eu sai, ele ensinou o remédio, aí eu quebrei mie
pa ele levar, apanhei fejão, ele disse é isso mermu, num tinha nada pra me dá, vou levando mie,
feijão, cada uma bage tão graúda, a senhora trabalhou, trabalhei sinhô, apois a sinhora vai ficar
121
boazinha com esse remédio. Aí ensinou como rezar de criança, ensinou, aí foi embora chegou lá do
oto lado, (som de batidas nas mãos) que eu curo aí deu um grito, será que eu robei? Pa dá pra ele, será
que robei? Que ele chegou ensinando remédio pra mim, porque disse que não tinha nada em sítio e
tinha, sabia quem era né? Às vezes Jesus (som de batidas nas mãos) bate na porta da gente, ... ... e a
gente aí num dá nada aquela pessoa, ta pensando que é né? Apois foi esse baiano que ensinou esse
remédio a eu, chegou lá em cima em Maria de Raimundo, era lugar seco, a menina da canela seca
pegou deu o ligume, sei o que lá e tal, trabalhou bem muito, ela vai morrer trabalhou demais sei o que
lá, eu dei o grito bem forte: será que eu robeiii (gritando)? Dento da roça pra eu, dá pro baiano... eu
vim buscar pra tu, venha vê mais agora, venha, venha vê pra você. Margarida entrou, Maria de
Raimundo disse eu acho é pouco ... ... acunha Lurde, eu gritei mais forte ainda.
Ciro: Mas assim essas rezas da senhora, de rezar nas pessoas, rezar em quebrante ele ensinou tudo a
senhora nesse dia ou ele ensinou só o remédio mesmo?
Lurdes: Ele ensinou o remédio, ensinou como rezar em criança, ele disse ói Maria a sinhora tem um
probrema, aí eu disse que é? ... ... siga dava vai rezar, eu gosto de uma reza, ... ... aí disse que eu pra
melhorar mesmo quando eu rezasse o Credo, o Pai Nosso e a Armaria, (conta nos dedos da mão) pa
tanger aquelas coisas ruim. ... ... aí comecei a rezar aí fui, fiquei mais melhor, eu fiquei melhor com a
reza dele.
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
A rezadeira dona Lurdes teve significativa convivência com o universo diário das
rezaderias de sua comunidade, como sua tia Maria Nova, cuja memória marca este trabalho
por ser uma referência dos agentes populares do Quati e da Lagoa do Mato. As rezadeiras
mais idosas eram e são consideradas de maior respeito e de reza mais poderosa e eficaz, o que
segundo Gutemberg Costa:
Acredito que o fato de serem pessoas idosas favorece o poder mágico e
religioso que lhes é atribuído. Poder esse que se percebe reforçado, dentro
outros aspectos, pela idéia de abstinência sexual, uma vez que algumas
delas, sendo viúvas e idosas, não fazem parte de orgias, farras, festas
profanas, o que lhes propicia uma aura mágica (COSTA, 2009, p. 245).
A senhora idosa de que fala a seguir dona Lurdes é a rezadeira Joaquina, cuja função
no seio do grupo despertou na entrevistada o desejo de dar continuidade a essa prática.
Joaquina era moradora da comunidade de Lagoa do Mato, onde também mora dona Lurdes
hoje e onde moraram os pais dessa entrevistada durante toda a vida, numa casa próxima a casa
atual casa de Lurdes. Foi a observação da atuação de dona Joaquina que identificou Lurdes
com a vontade de também ser uma rezaderia, de se colocar a serviço dos membros do grupo.
Ciro: Mas antes, antes da senhora conhecer esse baiano a senhora já rezava nas pessoas?
Lurdes: Não eu tinha vontade de rezar e ... ... de pau e ficava bem.
Ciro: A senhora tinha vontade né?
Lurdes: Tinha vontade é.
Ciro: Mas a senhora tinha vontade porque via outras rezadeiras? Ou...
Lurdes: Era não era por que via uma velhinha aí queria dizer a coisa a eu e num falava, eu num sei ...
...
122
Ciro: A senhora via essa velhinha mais...
Lurdes: Via a veinha mais, ela dizia que o nome dela era Joaquina.
Ciro: Mas ela era de ... de Lagoa do Mato?
Lurdes: Joaquina num sei
Ciro: Mas a senhora conheceu ela morando aqui né? Ela morava dona...
Lurdes: Conheci ela morando aqui, Dona Mamédia... da onde era Dona Mamédia era? (faz entonação
tentando lembrar) Telúzia ela até fala daonde que ela era.
Ciro: Mas ela morava aqui?
Lurdes: Morava aqui, aqui perto de Maria Nova, Margarida (aponta com o dedo)
Ciro: Simmm, morava perto de Maria Nova ...
Lurdes: Onde tem aquela mandioca era a casa dela ali... reta essa casa de Zé de Juvino, essa primeira
casa.
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
Apesar de ter sido iniciada por um desconhecido que passou em sua casa, dona
Lurdes se identifica em seu relato de vida como uma continuadora da função em sua
comunidade. Embora a transmissão memorial da função de rezaderia por membros de sua
comunidade não tenha sido de forma direta, como dona Naldi que foi ensinada pela avó para
ser sua sucessora direta, o fato de dona Lurdes desejar ser também uma rezadeira em seu
meio, ao conviver com as práticas de dona Joaquina, observar o laço construído com as
pessoas das comunidades de Quati e Lagoa do Mato despertou na entrevistada a identidade
com a função social que desempenha até os dias de hoje. A rezadeira também se identificava
com o trabalho de Mãe Faba, sua avó materna, mãe da sua mãe conforme podemos ver no seu
relato de vida, que juntamente com Neném lhe ensinava a oração do Pai Nosso às seis horas,
hora considerada mágica, mística na cultura e na religiosidade popular. Segundo Cascudo
(2002, p.446) “As horas abertas (grifo do autor) são quatro: - meio-dia, meia-noite, às
Trindades, ao anoitecer e amanhecer, ao quebrar das barras”. Vejamos na fala da
colaboradora:
Ciro: Então Dona Lurdes a senhora tinha vontade de rezar quando via Dona Joaquina... mas nunca
tinha rezado antes?
Lurdes: Não, não só o Pai Nosso e quem ensinava era Neném com Mãe Faba ...
Ciro: Mãe Faba era rezadeira?
Lurdes: Mãe Faba era mãe da minha mãe, era parteira.
Ciro: Era parteira?
Lurdes: (balança a cabeça sinalizando um sim)...Era parteira minha mãe Fara ....
Ciro: Aí a senhora tinha vontade de rezar o pai nosso, mas não rezava nas pessoas não né?
Lurdes: Quem ensinava a nós era Neném a Mãe de Cosma, nós ia de 6 horas pra lá pra aprender o Pai
Nosso....
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
Para o estudioso da cultura popular e do folclore, são nessas horas do dia que feitiços
e pragas se revestem de força e eficácia, que a morte age, a doença piora, horas em que o
123
homem não encontra defesa e propícia aos trabalhos do mal e da destruição. Porém, no
catolicismo popular, na ressignificação elaborada pelas rezadeiras, essa foi a hora escolhida
pelas rezaderias para ensinarem orações as mais jovens, o que no contexto das superstições
populares no sertão nordestino tão discutidas por Câmara Cascudo, a hora deve ter sido
escolhida por ser no catolicismo considerada a hora da Ave-Maria, do anúncio do Arcanjo
Gabriel a Nossa Senhora segundo a tradição, trazendo dessa forma proteção aos orantes. A
cultura popular afro-brasileira não se separa do contexto de vida de seus agentes,
compreendida fora deste seria uma encenação, conforme reflete Canclini (1997). Às seis
horas assim é um momento social em que as tarefas da lida diária já se encerraram, propício à
narrativa, a transmissão das experiências de vida, da cultura ancestral, da religiosidade. Sobre
os momentos sociais, a divisão do cotidiano entre trabalho e o descanso, a vida prática e a
simbólica, Ayala (1997) explica que é nessa liturgia do cotidiano que se inscrevem as práticas
culturais como as rezas e as narrativas que as envolvem, o contato entre a rezadeira e a pessoa
por ela atendida.
O reconhecimento dos membros do grupo é um fator primordial para o exercício da
função de rezadeira. Sem esse reconhecimento não existe contexto social para essa função da
cultura popular. As pessoas que procuram as rezadeiras são significativas em sua história de
vida. Quando vivia na Paraíba, dona Lurdes não encontrou aceitação para a sua atuação de
rezaderia, pois as pessoas tinham medo, principalmente do poder sobrenatural da rezaderia
“descobrir as coisas”, por exemplo, quem praticou um roubo na comunidade, conforme
podemos ver no relato de vida a seguir:
Ciro: ...Ok e assim depois desse baiano a senhora começou a rezar nas pessoas lá na Paraíba ou
quando voltou pra cá pro Rio Grande?
Lurdes: Lá a maioria das pessoas ninguém aceitou tinha medo deu... Aí eu fui me peguei a nossa
Senhora de Aparecida pa abrir meus camim, e eu rezava o terço todo dia de 6 hrs, a santinha desse
tamain (indica o tamanho com as mãos) só que as pessoa tinha medo de mim ... a merma pessoa que
tinha medo de mim foi a pessoa que carregou a aliança do meu casamento, carregou, comprou, ....
carregou minha aliança comprou de pão e comeu, só que ela muito mintirosa. Aí quem tinha medo deu
rezando os terço com medo deu descobrir, só isso aí.
Ciro:- Simmm...
Lurdes: Aquela neguinha descobre um bucado de coisa,
Ciro: Isso lá na Paraíba ainda?
Lurdes: Na Paraíba, aquela neguinha preta... ela ta ali, mas no céu ela tá, ói vai descobrir as coisa. Aí
então tinha medo de mim, tinha medo de mim, ninguém queria rezar mais eu, quem chegava pa rezar
mais eu, era Maria Aparecida mermo nome da santa, madinha de Cleidivan meu que tá hoje em São
Paulo.
Ciro: Aí a senhora tinha quantos anos quando conheceu esse baiano?
Lurdes: Eu já tinha Cleidisvan, eu tinha trinta ee... faz oitenta e cinco ano, trinta e seis, trinta e sete ...
(conta nas mãos) trinta e nove ano eu tinha.
C: Aí depois a senhora demorou muito na Paraíba ou voltou a morar aqui?
124
Lurdes: Nós só fiquemo lá ... (SILÊNCIO) doze ano só.
Ciro: Doze anos?
Lurdes: Vim pra cá em noventa.
Ciro: Noventa né?
Lurdes: Onze de maio de noventa, foi ... dia de domingo.
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
O início da sua atuação como rezadeira ocorreu no seio do grupo familiar, rezando
no seu filho Cleidisvan contra quebrante, o chamado mau-olhado na cultura popular. A partir
desse fato veio o reconhecimento das suas rezas por parte dos membros da comunidade de
Quati e Lagoa do Mato. Esse é considerado um marco em sua trajetória de vida como
rezadeira ao voltar para a sua comunidade. Na compreensão das pessoas da comunidade, no
senso comum se a reza fosse ruim, para o mal, dona Lurdes não a exerceria sobre o seu filho.
Dái a comunidade passou a aceitar as rezas de dona Lurdes como parte de sua cultura e de
suas manifestações. Sobre a vivência desde a infância com o universo das rezadeiras, as raízes
culturais do seu povo, com uma história vivida em comum e o início do reconhecimento pela
comunidade do seu dom e da sua nova função, dona Lurdes nos relata a seguir:
Ciro: E?...Quando a senhora voltou a morar aqui como foi que as pessoas aceitaram a reza da senhora,
a senhora contou que tinha aprendido? As pessoas começou a procurar?
Lurdes: Rezando no menino meu, no Cleidisvan, botaram um quebrante nele aí ninguém descobriu, a
rente descobriu que ... a prantinha tinha que tá nele so de cuequinha, tinha que rezar nele só de cueca...
tava incricriado o menino viu? andava com ele no bornó assim, porque ele tano no braço num dava era
curtim (encena com os braços), aí butava ele no bornó assim, eu fiz o bornó, e carregava pa li, “homi
jogue isso fora”, falei assim: “jogue o seu, o meu deixe aqui comigo, tá no bornó”... quuando rezei
nele só de cuequinha ele começou a estirar as pernas, o povo até se assombrou, a menina aqui se
assombrou com ele se estirando... aaaaí, daí nos três dias o menino tava bonzim já, mago, fei ... aí eu;
leite de gado com ovo, batido, num tinha liquidificador (faz gestos com as mãos) não né?, aí sei que o
menino quando tinha três ano era desse tamain que não tinha quem dissesse que era aquele (encena o
tamanho) ... mas eu digo a você ... as pessoa ficava assim acreditando, aí ficaro aparecendo pá rezar,
eu fiquei rezando.
Ciro: Então assim, a partir daí foi que as pessoas começaram a conhecer a senhora como rezadeira?
Lurdes: Fooi, mai não é porque eu quero, isso é, é Deus mermo.
Ciro: Mas assim a senhora começou a sentir esse dom que a senhora tinha pra rezar ...
Lurdes: Derde de miudinha ...pode falar
Lurdes: Derde de miudinha ... de miudinha ... aí eu ficava gostano de ajudar, aí e minha mãe tu não
pode ajudar não tu é muito pequena e sei lá e tal apois não quer que eu ajude ninguém não então...
Ciro- Só pere aí assim a senhora queria ajudar a rezar?
Lurdes: Sim...
Ciro: Ajudar as rezadeiras ou a senhora mesmo rezar?
Lurdes: Assim a pes.., a galinha sofrendo, um bode, um cabrito uma coisa, mãe não deixava, aí meu
destino era o que? Selar um cavalo, montar e andar muito cavalo e nunca caí de cavalo ninhum ... Ali
in Antoin de Hermoge (aponta com a mão) eu corria muito, Colorau dizia assim vai cair, eu dizia sai
do mei se não eu passo pu cima, eu nunca caí do cavalo e caí duma jumenta, fiquei sem fala minha
mãe morreu e não sabe que eu fiquei sem fala desse jeito. Maria fez um chá me deu, tomei lá naquele
canto aculá, lá onde tá aquela, o carro vai passando, (aponta com a mão) tinha uma pinheira aculá né?
125
e eu fiquei lá estirada, me acordei com o chazim na boca, a queda fo ... agora dum cavalo nunca eu caí,
celado e... chapéu na cabeça (dá voltas em torno da cabeça com a mão) e depoois meu.
Ciro: Aí assim a senhora pequena nunca tinha rezado né assim nas pessoas não?
Lurdes: Não não (balança com a cabeça dizendo que não) eu tinha vontade de rezar assim nos cabritos
in pinto, mãe dizia tá lezano o pinto vai morrer um sei que lá, e eu ....
Ciro: E assim depois que a senhora voltou pra aqui, aí muita gente começou a procurar a senhora?
Lurdes: Por causa que eu rezei em Cleidisvan ele se disincricriou... tarra todo incricriado, Deurdete pré
de Uiraúna chegou a vê o menino todo incricriado, aí quando eu fiquei andano lá, aí ei cadê o
Cleidivan o menino, tá qui, morreu? eu não, tá qui, mai é gordim, mais novo que parece fi de rico, eu
digo aqui é leite de gado que ele bebe leite de gado ee com ovo, da gema do ovo só a gema sabe, comé
que pode dá o meu, desse jeito, ela falava assim (sorri enquanto conta) ...
Ciro: E ... a senhora começou a rezar nas pessoas aqui, começou a ser conhecida como rezadeira,
muita gente procura a senhora?
Lurdes: Éé eu num sei se é a fé dele, acho que é a fé dele que né? eu faço o que eu posso.
Ciro: Então tem tem quase trinta anos que a senhora é rezadeira aqui?
Lurdes: Vinte e seis.
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
Assim, a história de vida da rezadeira Lurdes é marcada por um forte sentimento de
identidade, pois desde a infância o convívio com as rezadeiras, algumas tias suas, foi o
responsável pela transmissão memorial da cultura do seu povo com as rezadeiras da sua
comunidade. Numa cultura marcada pela oralidade, em que não há uma história escrita dos
bens simbólicos de um povo e onde poucos dispõem de escolaridade, principalmente os mais
velhos, a criança dispõe das narrativas de vida dos agentes populares, como no caso as
rezadeiras mais antigas. Por ser a cultura afro-brasileira uma cultura de resistência cujos
traços foram historicamente massacrados pela cultura colonizadora, as raízes da cultura
ancestral são repassadas por meio do convívio diário, de uma socialização constante.
As práticas das rezadeiras obedecem, assim como a voz-poética, a um conjunto ritual
de gestos, palavras, tom de voz, em que cada signo é revestido de sentido. Há palavras
consideradas mais sagradas que a pessoa que recebe a reza não pode ouvir e a rezadeira as
pronuncia em voz baixa. Há gestos como traçar com a faca na marca do pé do doente no chão
cruzes para cortar íngua, isto é, glândula na virilha, como o fazia a rezadeira Maria Nova
(SILVA, 2016). O uso do ramo, a direção em que se faz o gesto de mandar os males embora,
o ato de quebrar e de jogar fora o ramo após a reza quando para este foi passado o mal, o
bocejar da rezadeira como sinal de mau-olhado. Todo esse universo ritualístico compõe a
performance dessas agentes em que a fé do receptor também integra o conjunto simbólico que
propicia a performance. Assim, a produção dessa performance, sua elaboração enquanto
discurso oral, ocorre “quando a comunicação e a recepção[...] coincidem no tempo”
(ZUMTHOR, 1997, p. 19). Esse tempo é comunitário, coletivo, em que o grupo reconhece o
126
valor ritual da voz e dos gestos da rezadeira e a cultura adquire sentido na vida das pessoas a
vivenciam.
Quanto ao papel da rezadeira na comunidade, umas curam doenças, outras tiram
quebranto, orientam como a pessoa deve se proteger do “mau-olhado” numa hibridização
acompanhada de orações católicas como é o caso de dona Lurdes, que asperge com água o
ramo de uma planta do seu quintal para realizar o rito. Assim:
No dia-adia estas tradições religiosas populares se manifestam em atos de
purificação e de proteção, como são os que livram as pessoas do “mau-
olhado” e do “quebranto”, que são energias negativas.
Para se proteger, a pessoa deve usar uma figa ou a medalha de algum santo
que ajuda a “fechar o corpo”. As crianças, que são as mais vulneráveis,
devem carregar sempre uma pequena figa no braço direito, amarrada a uma
fitinha vermelha. Falhando a prevenção, a pessoa atingida deverá –procurar
uma rezadeira, para livrar-se do mau olhado.
Geralmente o ritual é feito com a aspersão de água com folha de arruda ou
de alecrim, acompanhada de orações católicas, como o pai-nosso, a ave-
maria e a salve rainha (PREZIA, 2007b, p.91-92).
Na esteira do pensamento de Glissant (2014), o uso das plantas pelas rezadeiras é
compreendido com um “trace”, ou seja, um vestígio da magia africana herdado dos ancestrais
que, no Brasil, também se associou ao uso feito pelos indígenas. Isso pode ser percebido no
uso dos ramos, galhos de plantas durante as rezas que murcham na crença de que o mal-
olhado passa da pessoa para o ramo. Esse é um vestígio recorrente nas práticas dos rituais das
rezas, um traço significativo da memória mística e religiosa africana. Nessa riqueza de ritos
que é o sincretismo a aspersão com a água, ato que presenciei muitas vezes quando dona
Lurdes rezou em mim molhando o ramo na água, esse fato deriva de uma tradição judaico-
cristã, como a água do batismo simboliza a purificação dos pecados, a regeneração humana e
o simbolismo de uma fonte de água é visto como fonte de vida (ELIADE, 1972). Isso nos
mostra a muliplicidade de culturas e rituais presentes nas práticas das rezadeiras, o que reforça
a crioulização e o caráter rizomático da sua cultura. Em sua obra Introdução a uma Poética da
Diversidade, Glissant (2005) destaca a América como um lugar onde há interação de tantas
culturas que se torna extravagante. Para o autor a vivacidade desse contato se deve
principalmente a diáspora africana. A América se tornou o lugar central das mais conhecidas
culturas do mundo. Sobre a crioulização no sentido de uma mestiçagem que produz o
inesperado, as rezas como estão constituídas nas práticas das rezaderias negras do Quati são
um produto originado nesse complexo de culturas. Porém, conforme o mesmo autor, embora
o Brasil assim como o Caribe tenha tido uma crioulização acelerada, os povos que chegaram
127
ao local, ancoraram na dor os rastros e vestígios da cultura que atravessou o Atlântico. Assim
os povos diaspóricos tiveram uma disposição mais fácil com os outros. Nesses espaços sociais
se inscrevem as rezas, como a memória da terra natal que os africanos foram obrigados a
deixar, o contato com a cultura indígena irmanado pela dor e a mestiçagem cultural com o
europeu. Esse contato, conforme a compreensão de Glissant não foi harmonioso, o que
percebemos na forma como as rezaderias e outros agentes da cultura popular afro-brasileira
como membros das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, reelaboraram suas
manifestações culturais ao longo da história para evitar perseguições e preconceitos e não
deixar que apagassem os rastros e vestígios da cultura trazidos da África.
A compreensão do autor sobre a diversidade enxerga que o humano é constituído de
diferentes elementos. Essa heterogeneidade propicia uma relação intercultural e na
diversidade há a aceitação da diferença, ao contrário do que ocorre com o “mesmo” que o
elemento diferente é expurgado. Na “poética da relação” proposta por Glissant há um
enraizamento com o outro, com a sua cultura. A diversidade tece rizomas que se entrelaçam e
foi isso o que aconteceu com as culturas africana, indígena e europeia na elaboração dos
rituais e das rezas. São raízes diversas na constituição de suas manifestações culturais e
histórias de vida. Nesse sentido o humano “Ele não é ser, mas sendo e que todo sendo muda
[...] Um dia vamos admitir que não somos uma entidade absoluta, mas sim um sendo
mutável” (GLISSANT, 2005, p. 33). Nas vozes das rezadeiras se emaranham raízes negras,
indígenas e brancas, unidas por uma histórica teia de interculturalidade em que nenhuma
cultura é absoluta, e todas estão sujeitas à mutação. Essa mutação fermentou a incorporação
dos diversos traços que formaram os rituais, as rezas e as histórias de vida dos agentes da
cultura popular afro-brasileira.
Com relação ao complexo processo de mudança de que trata Glissant, intrínseco à
dinâmica das culturas populares afro-brasileiras, este também ocorre quando os agentes
migram para outro lugar. Assim a produção das manifestações culturais ocorre na
compreensão de que “A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o
universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o
homem e o seu meio” (SANTOS, M., 2006a, p. 221). Nessa relação entre o homem e o
espaço, refletida pelo geógrafo Milton Santos, percebemos a interação entre os agentes da
cultura popular e o seu meio. Por exemplo, a rezadeira dona Naldi cuja história de vida foi
vista anterior a da rezadeira dona Lurdes, apesar de residir atualmente em Pau dos Ferros,
nesta cidade passou a exercer a mesma função de rezadeira, tornando-se conhecida para o seu
ofício. Apesar do deslocamento, “Por serem ‘diferentes’, os pobres abrem espaços para um
128
debate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já
presentes” (SANTOS, M., 2006a, p. 221). Na esteira do pensamento do geógrafo, entendemos
que os ritos e as rezas, a sua identidade enquanto rezadeira permitiu à dona Naldi um novo
espaço e um novo debate com a população, com outra realidade em uma cidade maior do que
a sua cidade de Luís Gomes e os sítios onde morou, desenvolvendo “novas articulações
práticas e novas normas, na vida social e afetiva” (SANTOS, M., 2006a, p. 221).
A rezadeira dona Lurdes realiza as duas vertentes populares da reza, tanto à proteção
física quanto espiritual contra as energias negativas, reunindo em sua função e identidade de
agente popular as heranças africana, indígena e europeia, o que nos mostra a complexidade de
sua cultura. Lurdes desde criança sentiu o desejo de ser também uma rezadeira em sua
comunidade. Sem esta vivência, o ofício de rezadeira existente desde os ancestrais negros
como resultado de uma hibridização do catolicismo com as religiões trazidas da África não se
perpetuaria, principalmente após a morte dos mais velhos do grupo, e ficaria restrito a um
passado distante, abstrato, não constituindo a memória coletiva responsável pelo sentido de
pertencimento e identidade. A importância dessa transmissão nos é explicada por Ecléa Bosi
ao afirmar que:
A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha
suas raízes na história vivida, ou melhor sobrevivída, das pessoas de idade
que tomaram parte na sua socialização. Sem estas, haveria apenas uma
competência abstrata para lidar com os dados do passado, mas não a
memória (BOSI, 2007, p. 73).
O que a mãe da entrevistada considerava como lezeira conforme podemos ver no
relato de vida, para a criança já era um mergulho na cultura do seu povo, nas raízes mais
significativas da herança africana presentes em sua comunidade transmitidas pelas rezadeiras
antigas mais velhas alicerçada nos valores vividos coletivamente em que essa transmissão
memorial das experiências de vida em comunidade se assemelha à transmissão realizada pelo
narrador na visão de Walter Benjamim (1993). As rezadeiras mais velhas são comparadas aos
camponeses sedentários, que nunca saíram de sua terra, conhecem os membros do grupo com
precisão, suas histórias de vida e suas manifestações culturais. Dona Lurdes saiu da sua terra
para a vizinha Paraíba, mas não perdeu o laço com o seu grupo. Sua memória da infância, do
desejo de se tornar uma rezadeira, do convívio com as rezaderias antigas como dona Joaquina,
Maria Nova, ficaram latentes até o aparecimento do baiano em sua casa, este cujas
características relembra o narrador viajante de Benjamin (1993) que sai em viagem
aprendendo e transmitindo experiências para um dia retornar a terra natal e repassá-las ao seu
povo.
129
Quanto à volta de dona Lurdes à Lagoa do Mato e o seu início do papel social de
rezadeira, esta função se baseia no reconhecimento do grupo de sua autoridade e preparação
para o exercício da função, pois quando saiu da sua terra natal ainda não era uma rezadeira. É
o novo convívio com as rezas de dona Lurdes que constrói uma nova identidade para essa
colaboradora deste trabalho.
Após o encontro com o baiano e o seu retorno ao sítio Lagoa do Mato, a rezadeira
dona Lurdes iniciou a sua função social no espaço que lhe pertencia, entre os seus, familiares,
vizinhos. Na esteira da compreensão das realidades de espaço e tempo pensadas por Milton
Santos, o lugar não se limita ao espaço físico, mas ao cotidiano que nele se inscreve, as
relações construídas, seja na cidade ou no campo como é o caso de dona Lurdes. Por meio das
rezas, ela elabora uma comunicação com o grupo movida pela paixão humana, de forma
espontânea e criativa. O seu lugar de origem e ao qual retornou para morar se constitui como
uma referência em sua história de vida, que se ancora:
No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e
instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque
cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a
contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o
confronto entre a organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de
referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens
precisas de ações condicionadas, mas é também teatro insubstituível das
paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais
diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS,
2006a, p. 218).
O seu ofício de rezadeira passou a se sustentar no seu próprio meio geográfico tendo
como cerne as relações sociais com as pessoas do lugar que aos poucos foram lhe aceitando
como agente da cultura e da religiosidade popular afro-brasileira. Desse modo, o espaço
oferece a materialidade às relações entre a rezadeira e os membros da comunidade que a
procuram. Dona Lurdes foi se adaptando à nova função, assim como também às pessoas do
lugar, criando uma teia de solidariedade no interior do grupo que se recria nesse convívio
cotidiano. Nessas relações de proximidade:
Há uma variedade infinita de ofícios, uma multiplicidade de combinações
em movimento permanente, dotadas de grande capacidade de adaptação, e
sustentadas no seu próprio meio geográfico, este sendo tornado como uma
forma-conteúdo, um híbrido de materialidade e relações sociais. Desse
modo, as respectivas divisões proteiformes de trabalho, adaptáveis, instáveis,
plásticas, adaptam-se a si mesmas, mediante incitações externas e internas.
Sua solidariedade se cria e recria ali mesmo, enquanto a solidariedade
130
imposta pela cooperação de tipo hegemônico é comandada de fora do meio
geográfico e do meio social em que incide (SANTOS, 2006a, p. 220).
Rememorar esse fato da volta e o início de sua aceitação e procura como rezadeira
numa comunidade onde a função é atribuída a poucos eleitos por ser considerada de muito
respeito e de necessidade na vida do grupo. Os afrodescendentes foram historicamente
desassistidos pelos poderes públicos dos cuidados com a saúde. Cabia às rezaderias, o
exercício da medicina popular com plantas e dos ritos de rezas na busca da cura das doenças.
Hoje o papel das rezadeiras continua como rito simbólico que tece os laços de identidade
tendo por base as relações sociais, o convívio cotidiano de trabalho e descanso. É essa a
memória que confere sentido ao ofício de dona Lurdes, relembrá-la é sentir-se enraizada no
seu povo, no seio do seu grupo social. Rodrigues nos esclarece que:
Para os artistas populares, o trabalho, os cantos e a vida de sofrimento e de
desafios mantêm viva uma identidade construída a partir de valores de
comportamento e convívio. As rezas, os adágios, os ditados, os cantos, as
narrativas de santos e os costumes revelados por sua memória descortinam
as nuances do universo popular para aquele que ouve/lê a fala desses
sujeitos. O real reconhecimento destes por culturas diferentes da sua passa
por conhecer esses aspectos da sua identidade. O exercício de relembrar e
contar sua vida faz com que essas pessoas, entre lugares e temporalidades
variadas, recuperem as marcas que as fazem sentir-se parte do seu grupo
social. (RODRIGUES, 2008, p.41)
Quanto à identidade religiosa das rezadeiras, o catolicismo herdado dos
colonizadores é a religião “declarada” pela rezadeira dona Lurdes e que também predominou
no relato de vida da rezadeira dona Naldi. Nesta hibridização entre o catolicismo branco e a
religiosidade popular, as rezas e ritos de benzimentos herdados dos antepassados, mais uma
vez, como no relato de vida de dona Naldi, também a fala de dona Lurdes apresenta a imagem
de Nossa Senhora Aparecida, a Virgem Negra Padroeira do Brasil aparece na memória como
signo principal da devoção dos povos afrodescendentes, juntamente com outras denominações
dadas à Virgem Maria como Nossa Senhora do Carmo, padroeira das comunidades de Quati e
Lagoa do Mato numa devoção introduzida pelas Irmãs Missionárias Carmelitas, quando
residiam na Paróquia de Luís Gomes, Senhora Santana, mãe da Virgem Maria e padroeira da
paróquia. A devoção à Virgem de Aparecida tem um sentido maior para os povos negros por
ter surgido durante o período da escravidão, na época de maior sofrimento. Seus ancestrais
herdaram e transmitiram a devoção, que como signo de uma identidade construída
historicamente é constantemente reelaborada. Vejamos no relato de vida a seguir:
131
Ciro: E assim a religião da senhora é católica num é?
Lurdes: É Graças a Deus é.
Ciro: E assim quais são os santos que a senhora reza mais?
Lurdes: Nossa Senhora Aparecida, tem muita fé nela, que todo santo a rente tem fé né? que sempre
tem um que a gente se apega.
Ciro: E assim os santos que a senhora ... mais tem devoção?
Lurdes: Nossa Sinhora Aparecida, Nossa Sinhora Santana, Nossa Sinhora do Carmo, e o principal que
é Jesus Cristo porque ele tá no nosso meio toda hora né? ... Primeiro que tudo aquele lá de cima né
Jesus Cristo num é?
Ciro: E quando... a senhora começou a rezar /... e assim a senhora começou a rezar com devoção em
nossa senhora aparecida como foi? A senhora tinha vontade de rezar e ?...
Lurdes: Butaro a Santinha no mato aí eu tive dó dela pá começo-se assim foi, butaro no mato aí
disseru que num valia nada num sei que lá e aí foi isso truxe pra casa e foi isso, e ... ... lá todo dia eu
rezava e mode eu pedir uma; uma graça alcançada, eu alcançava, acendia uma velinha agradecia e era
assim, aí todo dia eu rezava acendia uma velinha e agradecendo aquilo que que alcancei, aí povo ficaro
com medo de mim, aquela ... ... num sabe com medo, com medo... desse tamain (encena com as
mãos) a Santinha inda truxe pra cá, depois que se acabôsse .... (levanta e vai buscar a imagem da
Santa) tenho mais aí tenho essa que Cidinha comprou.
Ciro: Certo.
Lurdes: Aí ela me deu, deu, ess, Santinha pa mim (é parecida com que a senhora deu.) era bem
miudinha, aí então tem ela maior porque cidinha deu, mai eu não tinha não ... eu pego a minha... eu ia
pegar mio mais não quer, chama chama. Pode deixar ela?
Ciro: Pode, pode.
Lurdes: Ela deu pa mim essa aqui.
Ciro: Mais aqui já muita gente era devota de Nossa Senhora Aparecida? A mãe da senhora? Não!?
Começou com a senhora, né?
(SILÊNCIO)
Lurdes: A minha mãe andava com eu muito in Aparecida, eu tinha vontade duma santinha eu não pe,
não pudia comprar ... ... dei um bain, pentiei ... calada... porque quando fui deitar mais pedo, a nega
sem futuro, só ... ... calada
Ciro: A senhora pode falar um pouquinho mais alto),
Lurdes: Aí eu fiquei calada, continuei banhei essa ... ... com sabão e fiquei né? rezando. Pedo não reza
não, mai tudo dele essa santa. Achei no riacho essa santa que jogaru até enterrada na area, talvez
brincadu com ela lá né? ...
Alguém: Alguma criança.
Lurdes: Foi adulto que jogou
Alguém: Foi adulto? ...
Lurdes: Zefinha...morava no Uiraúna aí a gente pra lá do Ritiro, daqui pra lá as direita, Zefinha
Alguém: eu já vi ela.
Lurdes: depois de Chica Pala, mãe de Neguim; povo de Chica Pala
Alguém: eu vi ela sabádo, eu tava lá em vera quando ela desceu.
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
A rezadeira narra que ia com sua mãe em Aparecida. Este lugar se localiza na divisa
entre os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte, entre os municípios de Luís Gomes e
Uiraúna. Lá existe uma capela dedicada a Nossa Senhora Aparecida construída no início do
século XX, com a abolição da escravatura recente e o começo da devoção à Virgem Negra do
Brasil no sertão nordestino. Segundo conversamos com populares, como a senhora Maria de
Lourdes Barbosa Pereira, conhecida como Lourdes de Carrim, leiga já idosa que cuidou dos
132
serviços da capela por muitos anos, havia uma significativa rejeição ao culto da imagem por
se tratar de uma imagem negra, muitos diziam “não vou rezar para uma negra dessas, fazer
promessa para uma negra”. Fato significativo para a memória da comunidade confirmado
também por dona Maria Madalena Ferreira, conhecida como dona Maria Pequena, a mais
velha zeladora da capela com mais de 90 anos. Uma das antigas imagens teve a sua cor
“clareada” para que as pessoas não rejeitassem mais o culto. Esse “branqueamento” da
imagem nos mostra a problemática do racismo numa sociedade que não compreendia a
mestiçagem como a marca histórica primordial da nossa identidade cultural brasileira.
Inclusive segundo Lourdes de Carrim chegaram a chamar a imagem de Sinhá Tomásia,
rezadeira e avó da nossa entrevistada Naldi, como forma de zombaria com a cor negra. Nessa
elaboração da identidade cultural dos povos afrodescendentes da Vila Aparecida e dos seus
outros moradores, essa devoção se inscreve:
No início do século XX, próximo a um antigo vilarejo chamado
popularmente de Feira do Pau que divide os estados do Rio Grande do Norte
e da Paraíba, uma família de descendência afro-brasileira cultuava uma
singela imagem da Virgem Mãe de Deus. Era a Imagem de Nossa Senhora
Aparecida numa época pós abolição dominada pelo racismo e pela
exploração do trabalho negro. Essa família de nome popular “Cupira”
morava nas terras do Sítio Alívio na parte próxima ao vilarejo pertencente ao
Rio Grande do Norte. Sua casa era a casa de Nossa Senhora, abrigava a
imagem e recebia seus devotos das localidades em torno do sítio. Lá ao redor
da pequena e primitiva imagem faziam suas orações e novenas e
encontravam na devoção a uma Virgem Negra a força para lutar contra o
preconceito.
A devoção cresceu e a Virgem precisou de uma casa própria para receber os
seus filhos e devotos. No ano de 1922 o então vigário da paróquia paraibana
de São João do Rio do Peixe, o padre Joaquim Cirilo de Sá, construiu uma
pequena capela para Nossa Senhora Aparecida em um terreno doado pela
família dos Valdivinos e por dois italianos que doaram terras suficientes para
a constituição do patrimônio da capela onde mais tarde muitas pessoas
construiriam suas casas povoando a antiga vila. [...]
A devoção cresceu e o antigo nome de Feira do Pau, devido ao lugar ser
conhecido por brigas e conflitos, deu lugar a Vila Aparecida pelo novo
sentido que a devoção revestiu o cotidiano do lugar. Em 1955 uma nova e
maior imagem de Nossa Senhora Aparecida foi doada à capela pela senhora
Luíza Pinto, conhecida como Dona Lulu, proprietária de uma fazenda que
originou parte da vila. Mas por sua cor negra a imagem foi rejeitada pela
população local, segundo os mais velhos como a senhora Maria Ferreira,
conhecida como Maria Pequena, antiga zeladora da capela hoje com mais de
90 anos, e a senhora Lourdes Pereira, as pessoas não queriam “rezar para
uma negra desta” e nem “fazer promessa para uma negra”, citando a fala das
pessoas, e a cor da nova imagem foi “clareada”. Este fato nos lembra o
pensamento de Frantz Fanon em seu livro “Pele negra, máscaras brancas”
sobre os conflitos psicológicos que passam os negros na elaboração de sua
identidade em relação aos referenciais do branco e o pensamento de Paul
Giroy em sua obra O Atlântico Negro ao afirmar que as culturas dos povos
133
negros são indissociáveis dos traumas do tráfico negreiro, da escravidão e do
racismo.
Com o tempo, a simbologia da Imagem venceu o preconceito e a devoção à
Virgem Negra se tornou signo de resistência e de fé dos povos negros e o
resgate histórico de uma das mais antigas capelas de Nossa Senhora
Aparecida no Brasil (FONSÊCA, 2017, s.p.).
O contexto do final do século XIX e meados do século XX da devoção à Virgem de
Aparecida foi marcado por preconceito e rejeição, principalmente entre as pessoas brancas.
Entre os afrodescendentes a devoção à Virgem de cor negra se constituía como um signo de
resistência da identidade afro-brasileira, como podemos apreender nos relatos de vida de dona
Naldi e de dona Lurdes. Era essa a capela da Nossa Senhora Negra frequentada por dona
Lurdes e sua mãe, onde suas identidades encontravam suporte, embora na religião do
colonizador, mas já influenciada pela história traumática dos negros no Brasil. Com relação à
identificação com o catolicismo pela maior parte das rezadeiras, Costa descreve e explica que:
90% das que foram entrevistadas por mim, aqui, no Rio Grande do Norte,
são religiosas, católicas, têm uma fé, uma devoção grande, principalmente
no Padre Cícero, nos santos católicos. Eu só encontrei uma que disse ser
espírita. Não se denominou macumbeira. Confessou que era espírita, porém
um espiritismo assim, tipo kardecista, algo como magia branca, uma coisa
mais branda, no caso. Sem fazer mal a ninguém, sem trabalhar para o mal. E
uma confessou ser evangélica, mas normalmente são católicas.
Raramente, no altar delas, no altar popular, não tem uma imagem do Padre
Cícero ou do Frei Damião.
Muitas rezadeiras inclusive aproveitavam a ida de Frei Damião às cidades e
faziam-lhes visitas. Confessavam, enfim, tinham fé na presença do Frei
Damião, que não foi o único místico peregrino pelo sertão nordestino. Esse
sertão que já foi visitado pelo Padre Cícero, já tinha sido visitado por
Antônio Conselheiro, pelo padre Biapina e tantos outros capuchinhos
(COSTA, 2009, p. 247).
Um ponto significativo apresentado por Costa é o medo da rezadeira que se
confessou espírita de ser associada à macumba, instrumento que deu nome popularmente a
uma das vertentes da religiosidade afro-brasileira. Como historicamente as religiões de matriz
africana foram associadas ao mal, inclusive o termo pejorativo de “magia negra”, com a
palavra negra sempre relacionada a uma conotação negativa. Por isso, a insistência da
rezadeira entrevistada por Gutemberg Costa em afirmar que sua atuação é mais branda, leve,
uma espécie de magia branca, do bem. Por isso recorreu inclusive a identidade espírita, de
origem kardecista, orientação mais distante do que pode ser considerado macumba.
Inês Barbosa de Oliveira ao refletir sobre a diversidade cultural nas escolas e a
herança da colonização ilumina a nossa compreensão sobre o medo de uma rezadeira ser
134
identificada como macumbeira, pois este papel social a partir dos padrões colonizadores e
brancos passou para a história como inferior, relacionado ao mal, ao erro. Nesse sentido, a
autora explica que:
Dos padrões estéticos da arte erudita aos conceitos que definem as
qualidades do bom cidadão, as “tradições” eurocêntricas têm legitimado sua
superioridade social através de direitos auto-outorgados de estabelecer o
bonito e o feio, o certo e o errado, o civilizado e o selvagem, ao longo da
história dessa interação (OLIVEIRA, 2003, p. 24)
A identidade católica das rezadeiras negras se situa num complexo jogo em que não
podemos pensar a sua cultura afro-brasileira como pura, sem constantes influências. Pois tem
razão Pollack (1992, p. 5) ao afirmar que “a memória e a identidade são valores disputados
em conflitos sociais”. Esse conflito que envolve um dos valores mais caros para os povos
negros que é a fé a religiosidade que atravessou o Atlântico negro e que em terras brasileiras
se reelaborou inscrita num difícil contexto devido à escravidão e à dominação com a tentativa
de cristianização da sua cultura ancestral.
Ao longo da história, a cultura e a religiosidade africana passaram por uma rica
hibridização sem perder os seus traços de resistência e se fundiu com a religiosidade dos
nativos indígenas e com a elaboração de um catolicismo popular, não a religião puramente
imposta pelos colonizadores, pois a situação de vida dos sertanejos pobres e dos indígenas
não se diferenciava da dos negros escravizados e mesmo após a abolição. Daí a cultura das
rezaderias apresentar traços do catolicismo popular, a devoção ao Padre Cícero, considerado
padrinho dos desamparados por sua história de vida, do costume das romarias. Semelhante ao
sofrimento e desenraizameto causados pela diáspora negra, o sertanejo que emigra devido à
fome causada pelas secas tem um contexto diaspórico, pois “A violência e o dilaceramento
ocasionados pela emigração parecem gerar um apego às tradições” (HOFFLER, 2006, p.
149). Como também a violência traumática da diáspora negra originou um apego aos
elementos culturais da África, misturados aos traços sertanejos. A sensação de deslocamento
de que trata Hall (2009) foi experimentada pelos povos negros ao longo da diáspora e da
escravidão, deslocamento geográfico e de pertencimento. Daí o apego dos negros às suas
tradições que se assemelham ao apego dos retirantes nordestinos em tempo de seca e êxodo.
Para Hall, em situação diaspórica, as identidades se tornam múltiplas, por isso a
complexidade e mistura nas identidades das rezadeiras, que atravessaram a história
subvertendo os modelos tradicinais que lhes foram impostos, já que o espaço da cultura
popular permite e é constituído pela subversão das tradições dominantes. É em meio à
135
hibridização e à multiplicidade de suas identidades que as rezadeiras se constituem como
agentes populares da cultura que representam, exercendo uma espécie de liderança junto ao
seu povo, ao lado de Pajés indígenas, de beatos, num mestiçamento não só físico, mas
principalmente moral, como pensou Sílvio Romero (1978). Assim:
As tradições culturais do povo da Civilização da Seca, herdadas dos tapuias,
como o misticismo, o costume do aconselhamento, o costume do
apadrinhamento, o gosto pelo trabalho em mutirão e a prática do
nomadismo, foram muito bem aproveitadas pelos líderes religiosos. O
aconselhamento era praticado por todos os líderes religiosos, mas foi
Antônio Conselheiro que ficou coma “alcunha” de Conselheiro. O
apadrinhamento era uma prática exercitada por todos os padres e beatos, mas
o “Padim Ciço” foi escolhido para ficar com o título de “Padrinho do Povo”.
O trabalho em mutirão foi muito usado por todos eles, mas foi o Padre
Ibiapina quem mais construiu prédios usando o mutirão (22 Casas de
Caridade, 10 igrejas, 9 cemitérios, 4 hospitais e outras obras). A
peregrinação foi exercitada principalmente pelo Padre Ibiapina, Beato
Antônio Conselheiro e pelo Frei Damião. A maior parte destas
características culturais sertanejas foram herdadas dos tapuias, que eram
místicos, nômades, gostavam de pedir conselhos ao Pajé, nos assuntos
religiosos e de saúde, e ao Cacique sobre guerra e convivência social. Tudo
que os índios faziam era em mutirão. Caçavam, pescavam, coletavam frutas
e mel de abelha e guerreavam em mutirão.
Os tipos humanos da civilização da seca, à semelhança dos beatos,
penitentes, cangaceiros, jagunços, vaqueiros, jangadeiros, raizeiros,
curandeiros e repentistas violeiros possuem traços fisionômicos,
psicológicos e culturais dos nativos tapuias.
Estes são os motivos que originaram esta prática religiosas tão singular que é
praticada no Sertão do Nordeste do Brasil (MENDES, 2015, p. 42).
Para a rezadeira dona Lurdes, na dinâmica do convívio com o trabalho das rezadeiras
da sua comunidade desde a infância, numa prática cultural e religiosa que caracteriza o seu
grupo social desde os antepassados e que se renovou em novos contextos, a sua identificação
com o exercício foi se construindo. Assim a nossa colaboradora entrevistada elaborou junto
com as rezadeiras mais antigas e conhecidas, num grupo quase familiar, pois a maior parte das
rezadeiras eram tias, primas, a sua identidade, o sentimento de que pertencia a essa função e a
deveria exercer em favor dos seus, relatando que há vinte e seis anos constrói esse laço com a
comunidade.
Na circularidade do ofício de rezadeira na comunidade de Quati e Lagoa do Mato,
dona Lurdes relata em sua história de vida que desde criança ao ver a atuação das rezaderias
de sua comunidade, sentia o desejo de realizar a mesma função. Porém, esse desejo ficou
latente em sua memória até que na Paraíba ocorreu o encontro com o cigano que passou em
sua casa. O ensinamento do cigano lhe reavivou a identidade que possuía com a atuação das
136
rezadeiras, a memória da infância e do convívio com as rezadeiras mais velhas. Sua ação não
teve início em sua própria comunidade, mas em outra, o seu dom não pode desabrochar entre
os seus, começando em outra comunidade. Mas quando retornou a sua terra não tinha
esquecido de suas raízes e o convívio com os membros do seu grupo se tornou um solo
favorável para o exercício da função. Aos poucos, o seu dom posto a serviço do grupo foi
sendo aceito e dona Lurdes se tornou continuadora da cultura em sua comunidade, exercendo
uma função tão cara e valorizada desde os seus antepassados até o contexto atual. Nesse
complexo jogo de memória e de identidade, Bosi explica-nos que:
Existem valores e diretrizes para a ação que às vezes não puderam
desabrochar no meio primitivo em que os vimos formulados. É possível que
limitações daquele grupo o fizessem guardar essa substância valorativa em
estado virtual. Um de seus membros, depositário de sua substância implícita,
pode vir a realizá-la em outro grupo onde encontrou solo favorável. Mas, é
possível também que esqueça as raízes distantes de sua ação atual. Seria
preciso que os membros do antigo grupo ainda estivessem perto dele,
reavivando-lhe a memória (BOSI, 2007, p. 408).
No caso da história de vida de dona Lurdes, não houve esquecimento de suas raízes
apesar do tempo que passou em outro estado, e foi justamente essa memória que foi propícia a
elaboração de sua identidade enquanto rezadeira mesmo quando não estava morando na
Lagoa do Mato. A memória das rezadeiras da sua comunidade e a identificação com as suas
práticas de origem foram fundamentais para a construção do seu papel social de rezadeiras até
a volta ao seio do grupo do Quati e da Lagoa do Mato para que seus membros a reconhecem
como agente dessa manifestação cultural.
Um dos pontos significativos na atuação das rezadeiras é o uso dos ramos de plantas,
o uso simbólico de diversos vegetais e a reza própria para cada necessidade do cotidiano dos
membros do grupo. Quando frequento as rezas de dona Loudes e de dona Naldi, sempre elas
pegam ramos próximos de suas casas, embora não tenham falado sobre isso nas entrevistas,
este fato é comum no cotidiano das rezaderias. Segundo Gutemberg Costa (2009, p. 247-248)
as rezadeiras atuam com “seu galho, mandando embora toda aquela enfermidade; apontando
sempre para o mar sagrado, enfim, mandando para o mar sagrado”. O mesmo autor ressalta
que as rezadeiras são “Mulheres que trabalham com galhos de plantas cultivadas em seus
lares” (COSTA, 2009, p. 245). Iaperi Araújo (2003) também reforça esse traço do uso de
galhos que vão murchando à medida que adquirem o espírito da doença que fazia mal à
criança, herança dos rituais indígenas dos pajés que tanto o catimbó nordestino como as
práticas das rezadeiras que foi repassada pela tradição oral. Construída como uma
137
manifestação cultural híbrida de um povo cujas histórias de vida estão envolvidas numa
complexa miscigenação cultural, na compreensão de Sílvio Romero (1978). Os ritos das
rezadeiras elaborados a partir do catolicismo branco, da religiosidade indígena e da
religiosidade africana que atravessou o Atlântico Negro materializam essa miscigenação
cultural. Muitas vezes as frentes das casas, os quintais e muros das rezaderias estão repletos
de plantas consideradas sagradas, protetoras dos males e usadas para fins específicos de cada
doença, quebranto ou necessidade das pessoas que as procuram. No viés da herança católica
iniciada desde a colonização:
Uma tradição muito difundida até hoje, inclusive nos centros urbanos, é o
ramo bento, obtido no domingo de Ramos. A maioria das pessoas que vão à
missa nesse domingo, não o fazem com o objetivo de aclamar Jesus,
entrando triunfante em Jerusalém, mas para levar um amuleto para casa.
Nesse dia encontra-se muita planta com significado mágico, como a arruda,
o alecrim e a espada de São Jorge, influência da cultura africana.
Posteriormente, os ramos secos são queimados e a cinza atirada ao vento em
ocasiões especiais, sobretudo nas tempestades com trovões (PREZIA, 2007a,
p.92).
O autor ressalta a herança africana, a influência tão forte dessa cultura na simbologia
das plantas e no seu uso que é inseparável da atuação das rezadeiras. Benedito Prezia, ao
abordar o caráter mais primitivo da religiosidade popular (primitivo no sentido de relacionado
com a natureza, não no sentido pejorativo) em que as culturas ancestrais se desenvolvem e se
ressignificam até mesmo nos centros urbanizados, nos mostra que as rezas não se restringem
ao meio rural. A função social das rezadeiras, que pode ser associada nessa compreensão a
dos xamãs e pajés, condenada ao desaparecimento como o pensamento moderno se volta para
as manifestações das culturas populares, sobrevive não de forma folclórica, como uma sobra
de atraso do passado no tempo presente, mas como uma cultura que mantém laços
identitários. Apesar do avanço tecnológico e da medicina, as rezaderias atuam como forma de
reavivar a cultura do seu povo, mosaico vivo de muitas memórias, de se relacionar com a
cultura dos antepassados, com os traumas e feridas históricas da diáspora, da escravidão e
colonização, tendo como palco e bastidor o contexto de hoje. Para o autor:
Durante muito tempo o xamã, ou o pajé foi visto como uma pessoa ligada a
cultos primitivos, “arcaicos” e que seriam abandonados à medida que as
pessoas tivessem acesso às culturas “superiores”. Tal situação não ocorreu,
pois o xamanismo tem se desenvolvido muito nos países de alta tecnologia,
já que as pessoas vão buscar nas religiões ligadas à natureza respostas aos
problemas da vida moderna (PREZIA, 2007a, p.93).
138
Assim, podemos perceber que os povos afrodescendentes não aceitaram
passivamente a cultura portuguesa, sem resistência e capacidade de recriar. Como exemplo,
Inês Barbosa de Oliveira (2003) aborda a capacidade de reapropriação dos padrões de
dominação, como a devoção a São Jorge e São Benedito em algumas cidades brasileiras, e
baseada no pensamento de Certeau, a autora comenta que essas transformações culturais são
fruto do uso criativo que os dominados, os mais fracos, fazem das regras que lhes foram
impostas. É o caso do uso do ramo pelas rezadeiras, numa fusão do trabalho com plantas
herdado dos nativos indígenas com o ramo bento da liturgia católica do Domingo de Ramos,
que na religiosidade popular se reveste de um caráter mágico de proteção típico dos
curandeiros e rezadeiras. Os povos afrodescendentes elaboraram uma reapropriação dos
padrões dominantes, num movimento dialético em que recriam a própria cultura e a dos seus
colonizadores numa atitude responsiva às imposições. Nesse sentido, os padrões impostos são
subvertidos para que não se perca no tempo o sentido de nação trazido dos ancestrais e os
membros do grupo diaspórico possam reelaborar suas próprias tradições. “Portanto, é
importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos
culturais tradicionais orientados para a nação” (HALL, 2009, p. 36). Para melhor
compreendermos essas adaptações e ressignificações dos padrões dominantes das culturas
vejamos que:
Entretanto, a partir desses contatos, estabelecidos a partir dos
“descobrimentos”, desdobramentos transformadores, criadores de culturas
diferentes das matrizes de origem ocorreram. A reflexão que pretendo
desenvolver fundamenta-se na ideia de que crenças, valores, conceitos e
produções culturais oriundas dos modos como essa interação ocorreu foram
sendo gestadas ao longo de uma história de criação simultânea de dominação
e desigualdade e de respostas da vítima” (Martins, 1993). Através tanto do
consumo de valores dominantes quanto de adaptações e usos (Certeau, 1994)
singulares que permitiram aos “descobertos” (Santos, 2002) recriar suas
próprias culturas bem como a de seus “descobridores”, as operações de
incorporação e transformação cultural podem ser entendidas como processos
cotidianos de aprendizagem, sobre os quais me deterei antes da discussão
principal (OLIVEIRA, 2003, p. 24-25).
Segundo a autora, o processo de reapropriação dos valores dominantes e os
desdobramentos dessa dinâmica se constituem como uma socialização constante. Seguindo a
esteira do pensamento pós-colonial de Boaventura dos Santos citado no texto da autora, os
descobertos ou no caso dos negros, os povos traficados, escravizados e posteriormente
“libertos” realizaram adaptações que lhes permitiram recriar suas manifestações culturais e
influenciar também a cultura dos seus colonizadores. Por exemplo, o culto e a devoção à
139
Virgem Negra de Aparecida, um ponto significativo comum às histórias de vida das duas
rezaderias dona Lurdes e dona Naldi, hoje declarada oficialmente Padroeira do Brasil, que é
uma influência da cultura e da história dos negros sobre a religiosidade católica branca. É um
movimento de transformação cultural, de incorporação de elementos afro-brasileiros que
recriou não só a cultura dos negros, mas também dos brancos colonizadores.
Um momento caro à memória da nossa entrevistada dona Lurdes é o fato de sua irmã
Aparecida, chamada por ela de Cidinha, ter adoecido gravemente e os membros da
comunidade desacreditarem de sua recuperação:
Lurdes: É do jeito que vinher... do jeito que vinher eu tô rezando, ar pessoa até diz, eu vi morrer um
dia toda leprenta num sei que lá, posso butar a mão on on onde tenho medo de duença não, é bestera ,
tê medo de duença ... eu conheci um monte de gente dizendo Cidinha ia morrer, iam quebrar minhas
canela tarra num sei que, num sei que lá, tô com minhas canela bem direitinha aqui Cidinha tá só o
ouro, já interrou um monte já, tá tudo sadio, Cidinha tá tá boazinha, e mais tem essa, Cidinha tem
sorte, se Cidinha adoecer eu for com Cidinha qua ... ... /... cheguemo, carro... brigado aí meu
cunhado... simbora. Cidinha é assim, Cidinha tá só o ouro, ninguém pode julgar ninguém de nada.
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
No relato de vida de dona Lurdes, esta fala é uma das mais marcantes, pois
rememora uma vertente importante da função social das rezadeiras, herdada da ancestralidade
indígena de sua cultura e papel no grupo em que se insere. No passado havia mulheres-pajés
que auxiliavam os pajés na realização de curas, traço herdado pelas rezadeiras que além de
tirar quebrantos cuidam também da saúde do corpo, exercendo o que o médico e pesquisador
da cultura popular Iaperi Araújo classifica como medicina religiosa:
A medicina mágica é especialmente aquela destinada a proteger as pessoas
das doenças ou estabelecer preceitos e fórmulas mágicas para a cura de seus
males. Difere essencialmente da medicina religiosa, exercida pelas
rezadeiras e curandeiras com a mesma finalidade de proteção e cura
(ARAÚJO, 2003, p. 73).
Embora o autor diferencie a medicina mágica da exercida pelas rezadeiras e
curandeiros, ambos foram bastante influenciados pelos ritos indígenas e afro-brasileiros. Da
mesma forma que as rezadeiras possuem características dos pajés auxiliares e principalmente
dos pajés andarilhos, pois dona Naldi relatou em sua história de vida que vai à casa das
pessoas quando é chamada para rezar, numa peregrinação em que sai de uma e já se dirige
para outra, na cidade e no campo. Inclusive testemunhei muitas vezes que, quando ela vem de
Pau dos Ferros a Luís Gomes, vai à zona rural, aos sítios Araras, Quati e Lagoa do Mato
atender as pessoas que depositam sua fé nas rezas e depois passa a atender na cidade, andando
140
nas casas dos membros do seu grupo social. Dona Lurdes também realiza uma trajetória
semelhante à de dona Naldi, mas sua atuação se concentra predominantemente na comunidade
onde vive. Assim ambas as rezadeiras apresentam características tanto dos pajés mulheres
como dos pajés andarilhos, o que nos mostra a mestiçagem cultural de sua função. Na sua
função social como Pajé:
Ele é ajudado por pajés-auxiliares e também por mulheres pajés. Em
algumas comunidades elas têm importante papel. Entre os povos tupis da
época colonial, havia também o pajé andarilho, chamado karaíba, espécie de
missionário ambulante, que circulava pelas várias aldeias, exortando as
pessoas e fazendo curas. Na época colonial, foram chamados de profetas
(PREZIA, 2007a, p.93, Grifos do autor)
O fato da rezadeira dona Lurdes atribuir a cura e a melhora de sua irmã Cidinha às
suas rezas quando os membros da comunidade duvidavam da recuperação, se constitui como
reavivar de sua identidade como rezadeira, como agente da cultura popular e da religiosidade
do seu povo. Na esteira do pensamento de Rodrigues (2008), rememorar esse fato é reforçar a
identidade coletiva enquanto membro de um grupo, é isso que dá sentido à sua prática, o
reconhecimento de sua atuação pelos seus. Ayala (1997) afirma que a cultura popular, a
literatura oral, se faz presente em momentos de intenso convívio social e de solidariedade,
como é o caso das rezas no momento difícil da doença de membros da comunidade, como o
foi no caso da irmã da nossa entrevistada.
Nesse ponto da história de vida da nossa colaboradora dona Lurdes, sua identidade
está marcada pelo fato de suas rezas atuarem num momento de solidariedade necessário à sua
irmã Cidinha, quando os outros membros do seu grupo, da sua comunidade de Quati e Lagoa
do Mato, passaram a desacreditar de uma sabedoria ancestral, a perder um pouco da sua
identidade coletiva herdada dos antepassados negros, a irmã da rezadeira “fica boa”. Na fala
da rezadeira, este é um momento forte porque dispôs do seu dom, do seu papel social no seio
do grupo familiar. Embora as pessoas próximas duvidassem, ela persistiu porque:
Segundo Halbwachs em nenhum outro lugar da vida social a convenção
importa menos. Julgamos um parente pelo que ele é na vida diária e não por
seus status, dinheiro, prestígio. A face que ele mostra a outros grupos não é a
mesma que se expõe ao julgamento concreto dos seus (BOSI, 2007, p.426,
grifos da autora).
A psicóloga social segue a esteira do pensamento sociológico de Halbwachs ao
enfatizar a importância do sujeito no grupo familiar e a elaboração de sua identidade inscrita
141
nesse contexto mais íntimo e peculiar. É importante ressaltar que a solidariedade das
rezadeiras num momento de doença de um membro do seu grupo social é um viés da herança
cultural indígena, visto que a sua função se constitui de uma mestiçagem cultural na esteira do
pensamento de Sílvio Romero (1978). Como uma cultura híbrida, na linha de Canclini (1998),
em que não buscamos uma separação do que é um elemento indígena, afrodescendente ou
branco europeu, mas a fusão destes na elaboração da memória e da identidade numa contínua
e constante elaboração das manifestações culturais. Nessa perspectiva dinâmica, dona Lurdes,
em sua função de rezadeira, apresenta características dos pajés indígenas e das mulheres
pajés. As rezaderias do Quati em termo de mestiçagem cultural no pensar de Sílvio Romero
(1978) se inscrevem num povo originado de um complexo caldeamento não somente étnico,
mas principalmente cultural que se fundiu também a uma identidade nordestina e sertaneja
marcada pela resistência às secas e à capacidade de se refazer. Assim:
A etnia nordestina foi originada do caldeamento étnico do branco
colonizador português (Cristão Novo), do negro que veio da África como
escravo e do índio que habitava a região. Os mestiços resultantes dessa
miscigenação interagiram com a terra quente e seca do sertão, com seu clima
semiárido tropical, com suas secas periódicas e catastróficas, com suas
chuvas reduzidas e altamente variáveis no tempo e no espaço, com seus rios
secos que só apresentam deflúvios durante o curto período de 3 a 5 meses,
com seus solos pobres, pedregosos ou excessivamente arenosos, com sua
vegetação raquítica, seca e espinhenta, dando como resultado o surgimento
de uma civilização ímpar, pioneira e intuitiva, que denominamos civilização
da seca (MENDES, 2015, p. 41).
A rezadeira dona Lurdes se insere na chamada civilização das secas, pois a mesma
foi criada na agricultura e atualmente trabalha no roçado junto com o seu esposo. Com a
cultura herdada de seus ancestrais aprendeu também a conviver com a terra e a dividir
simbolicamente o seu tempo cotidiano, pois são nos momentos de folga, de volta para casa
que se inicia a sua função de rezadeira, principalmente após às seis horas da noite quando o
seu povo já se recolheu em suas casas após um dia de trabalho. Suas rezas obedecem a um
tempo comunitário como é compreendido na esteira do pensamento de Ayala (1997).
No relato de vida de dona Lurdes, ela cita outras rezadeiras reconhecidas como
agentes da cultura em sua comunidade. Dentre elas dona Cosma, sua prima, que também é
colaboradora deste trabalho.
Lurdes: Não, não só o Pai Nosso e quem ensinava era Neném com Mãe Faba ...
Ciro: Mãe Faba era rezadeira?
Lurdes: Mãe Faba era mãe da minha mãe, era parteira.
142
Ciro: Era parteira?
Lurdes: (balança a cabeça sinalizando um sim)...Era parteira minha mãe Faba ....
Ciro: Aí a senhora tinha vontade de rezar o Pai Nosso, mas não rezava nas pessoas não né?
Lurdes: Quem ensinava a nós era Neném a Mãe de Cosma, nós ia de 6 horas pra lá pra aprender o Pai
Nosso....
.......................................................................................................................................................
[...]
Ciro: Vinte seis anos... e assim da da infância da senhora quem eram as rezadeiras assim mais
conhecidas do Quati, da Lagoa do Mato?
Lurdes: Era Joaquina Catingueira uma, (SILÊNCIO) eee Luci de zé Nazaro duas ... a ota, ixe de
Lagoa de Dento né?
Ciro: É, e da família da senhora tinha muitas rezadeiras aqui? das antigas? quem era que era família
da senhora?
Lurdes: Maria Nova rezava
Ciro: Maria Nova rezava?
Lurdes: Cadê a ... ... a ota lembra não... Neném de Faba rezava
Ciro: A que ensinou a senhora a rezar o pai nosso?
Lurdes: Sim... acho que Corma aprendeu com ela né?
Ciro: Pronto era filha de Neném de Faba nera?
Lurdes: É e.
Ciro: No caso Mãe Faba não era rezadeira não, era parteira?
Lurdes: Minha vó era parteira...
Ciro: E assim a senhora tem outras irmãs que são rezadeira, outras primas quem são mais aqui?
Lurdes: Tiquinha ... quem é a ota minha Nossa Senhora.... lembro mair não, lembro mair não.
Ciro: Mais Tiquinha aprendeu com as rezadeiras daqui?
Lurdes: Num sei como foi que Tiquinha aprendeu não... eu só sei que eu aprendi...
Ciro: Cosma que é prima da senhora também é né rezadeira?
Lurdes: Corma reza de triadura,
Ciro: Como é que chama?
Lurdes: Carne triada.
Ciro: Carne triada né?
(Transcrição 2 - 29.02.2016).
Em seu relato de vida, dona Lurdes cita rezadeiras de seu grupo familiar, além de
outras conhecidas na comunidade, nos sítios vizinhos, como Luci de Zé Nazário. Tiquinha é
irmã da nossa entrevistada. Suas palavras se revestem de pertencimento quando destaca Mãe
Faba, sua avó materna, e Neném de Faba sua tia, com quem aprendeu a oração do Pai Nosso,
Cosma, sua prima também é rezadeira e colaboradora deste trabalho. No veio da memória
coletiva, a mesma função de rezadeira exercida por diferentes gerações de uma mesma família
aparece na memória de dona Lurdes por conviver no grupo com dona Cosma, saber de sua
atuação e de sua função que tece um laço de identidade com o mesmo papel social da
primeira. Assim:
Talvez seja possível admitir que um número enorme de lembranças
reapareça porque os outros nos fazem recordá-las, também se há de convir
que, mesmo não estando esses outros materialmente presentes, se pode falar
de memória coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar na vida
143
de nosso grupo e que víamos, que vemos ainda agora no momento em que
recordamos, de ponto de vista desse grupo (HALBWACHS, 2006, p.41).
Assim, a memória individual das rezadeiras está inscrita na memória social e coletiva
e função social dessas agentes da cultura popular é uma das referências da identidade do
grupo, um elemento cultural caro e significativo para o seu povo. Como representantes da
memória da comunidade, os fatos, as pessoas relatadas nas histórias de vida são significativas
não apenas para a entrevistada, mas para os membros do seu grupo. Daí a razão de dona
Lurdes rememorar as rezaderias mais velhas de sua família e da comunidade, os momentos de
vivencia coletiva em que aprendeu as orações, as rezadeiras que ensinaram e as que
aprenderam ao seu lado, são pontos onde a memória se ancora.
4.5 Dona Cosma: um serviço herdado e aprendido de suas ancestrais
Dona Cosma Maria da Silva é a terceira colaboradora deste trabalho. A rezadeira
mora numa casa localizada à margem da estrada que divide geograficamente as comunidades
de Quati e Lagoa do Mato. Sua entrevista não teve o mesmo tom de intimidade que construí
com dona Naldi e dona Lurdes por ela não ser minha rezadeira, ou seja, não construí com
dona Cosma o mesmo laço que teci com as outras duas, pois no momento em que procurei
suas rezas, ela me informou que a necessidade do momento não era própria da sua função,
que no caso indicou dona Lurdes, que eu conheci e não estava em casa neste dia. Mas como
visito constantemente a comunidade onde mora e sou frequentador das rezadeiras da
comunidade, dona Cosma em um relato de vida mais breve aceitou conversar sobre o seu
ofício na comunidade.
Ciro: Essa nossa entrevista é sobre as, as rezadeiras daqui do Quati, aí o interesse da nossa pesquisa é
a senhora falar sobre sua vida sobre a reza, sobre a sua infância com quem aprendeu ...
Cosma: Eu aprendi com uma tia minha ... uma tia minha, aprendi a rezar com ela. Via ela rezando, né?
Ciro: Ela era daqui do Quati?
Cosma: Eera, tia minha irmã de minha mãe morava ali, pra lá da quadra, pa li, pra lá do centro num
tem umas casinha ali, casa de Zezé de Faba, então ela era irmã de Zé de Faba, morava ali; tia minha.
Ciro: E como era o nome dessa da tia da senhora?
Cosma: Luzia.
Ciro: Luzia?!
Cosma: Era.
Ciro: Irmã da mãe da senhora e?
Cosma: Irmã de minha mãe, irmã de Zé de Faba, irmã de Maria Nova.
Ciro: Sim, irmã de Dona Maria Nova,
Cosma: - É é, é.
Ciro: E como era o nome da mãe da senhora?
144
Cosma: Maria de Lurde.
Ciro: Maria de Lurdes né?...
Cosma: É.
Cosma: Aí eu aprendi rezar com ela.
(Transcrição 3 - 28.03.2016).
A rezadeira dona Cosma reforça os laços familiares da sua função, como foi
enfatizou também nos relatos das outras duas colaboradoras. Relatou que aprendeu com sua
tia, irmã de Zé de Faba, um dos nomes de muito conhecimento na comunidade, considerado
uma referência familiar. Quando se pergunta sobre família, sempre se refere a Zé de Faba,
Mãe Faba, Maria Nova, nomes onde se ancora a memória coletiva da comunidade e se
reforçam os laços de sangues e de identificação. Assim como Lurdes, sua função social no
grupo como rezadeira foi aprendida no seio familiar, embora dona Lurdes conforme já
relatamos tenha recebido a influência de um senhor baiano, foi no meio familiar e nas pessoas
mais próximas de sua comunidade o ponto mais significativo do desejo de continuar o
exercício dessa função no grupo.
Outro ponto historicamente marcante nas vidas das rezadeiras é a especificação de
seu ofício, ou seja, a função da sua reza nas necessidades dos membros da comunidade. A
epígrafe desta tese constituída de uma crônica de memória da professora Solange Batista
escrita a meu pedido para este trabalho sobre a sua madrinha Maria Nova, tia das
colaboradoras dona Lurdes e dona Cosma. Segundo a crônica memorialista da professora, sua
madrinha rezava em “carne triada”, essa era sua principal função enquanto rezadeira. Mas em
depoimento informal a professora me revelou que dona Maria Nova rezava discretamente em
mau olhado nas pessoas mais íntimas e próximas, como ela que frequentava a sua casa desde
criança. Assim, percebemos que as histórias de vida de cada rezadeira apresenta suas marcas
individuais embora estejam inscritas na memória coletiva, pois a manifestação cultural das
rezas é inseparável. Quando procurei dona Cosma para rezar numa necessidade particular, ela
me indicou dona Lurdes que rezava para o referido problema. Esse fato nos propicia a
compreensão de que as relações sociais na comunidade popular são tecidas na memória
coletiva e numa divisão das funções pelos agentes populares, como acontecia com os antigos
Pajés que eram auxiliados por outros e também por mulheres pajés (PREZIA, 2007a). Dona
Cosma nos relata que aprendeu a rezar com a sua tia Luzia:
Cosma: Aí eu aprendi rezar com ela.
Ciro: E ela rezava aqui no Quati em muita gente como era?
Cosma: Rezaaava, a casa dela era cheia de gente, o povo não pudia machucar um dedo (encena com os
dedos) que já corria pra lá, já corria pra lá pa rezar... ééé
145
Ciro: E assim, qual era o tipo de reza dela ela rezava pra quê?
Cosma: Era assim pa dirmintidura, num sabe, é pa dirmintidura, mesmo caso meu, éé eu rezo pa
dirmintidura, eu num rezo in criança, aqui tem veiz chega o povo, ah issaqui, eu digo ói eu num sei
rezar in in minino que eu num vou dizer que eu rezo né? (risos)
Ciro: Eu lembro até uma vez que eu vim.
Cosma: Muito bem. (Risadas)
Ciro: Pra senhora rezar de mau olhado.
Cosma: Foii.
Ciro: E num; a senhora disse que não...
Cosma: Ééé, eu rezo, eu rezo pa dirmintiura e quem chega aqui que manda eu rezar eu num sei se é a
fé né? tem gente que só vei uma veiz...
Ciro: E essa tia da senhora sabe com quem ela tinha aprendido?
Cosma: Não num sei não quem ela aprendeu não né?
Ciro: Aí a senhora já conheceu ela rezando, já conheceu ela adulta?
Cosma: Jáá conheci, já conheci ela rezando já ... já conheci ela rezando ... e nóis papa praticamente se
criemo lá na casa dela.
Ciro: Ela morava ali?
Cosma: Morava ali, pra lá da rua (aponta com o dedo), pra lá do prédio, tinha uma casona lá, ela
morava lá, aí nóis fumo criado lá, bem dizer lá que meu pai morreu eu tinha cinco ano... aí era quatu
irmão, eu Damião, minha irmã que mora im São Paulo e um que morreu, mai véi. Aí minha mãe
trabaiava nas bulandera, aí nóis ficava lá, nóis fumo criada na casa dela, nóis só vinha pa casa nuis
sabádo e nur domingo.
Ciro: Mas ela escolheu a senhora pra passar as reza ou a senhora foi aprendendo com ela?
Cosma: Ééé eu vi ela rezano aí eu comecei eu eu vi os pé qui ela dizia eu, eu di, eu rezava num sabe,
aí um dia eu disse, Bia eu quero rezar, eu quero é rezar, aí ela disse e vô comé qui você quer rezar aí
eu digo eu quero que Bia me ensine que eu já sei... eu via os pé qui ela dizia num sabe aí eu já in na
cabeça eu já aprendia aquilo ali, aí o resto ela mim insinou ... ela mim insinou.
Ciro: E a senhora tinhas quantos anos quando?...
Cosma: Eu, eu tinha eu a. na faxa duns quinze ano quando ela mim insinou, quando ela mim insinou,
Ciro: Quinze anos né?
Cosma: É, era mocinha nova, aí a primera pessoa que eu rezei foi in Antoin de Noca aí (aponta com o
dedo) Antoin de Noca chegou com o pé inchado aqui haha (risos) aí reze aqui nim meu pé eu digo
num sei rezar não, aí eu peguei e rezei no pé de Antoin de Noca. Antoin só vei duas veiz eu num sei se
ele lembra disso, né? Só vei duas veiz, aí na ota veiz eu dis, eu disse Antoin tu nem vei mais rezar ele
disse não que eu já fiquei bom, ficou bonzim do pé, aí é assim eu num sei se é eu que sei rezar ou se é
a fé né? Mar tem gente que vem pa eu rezar só vem uma veiz e duas veiz.
Ciro: E ela assim, ela ficou feliz em passar pra senhora a reza?
Cosma: Ficooou sim, ficou, ficou feliz.
(Transcrição 3 - 28.03.2016).
O diálogo com a transmissão memorial das rezadeiras mais velhas nos mostra como
essa cultura é rizomática, pois as raízes se espalham permitindo conexões entre os diversos
pontos do rizoma. Nessa transmissão rizomática em que os saberes e os ofícios das rezaderias
se multiplicam numa identidade rizomática, outras histórias de vida se interligam e nesse
universo “não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados,
aspirados multiplicados” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 15). As histórias de vida das
rezaderias fazem margem umas com as outras, ecos de vozes e memórias que se estendem e
se desdobram e dialogam, gernando mais ramificações do ofício de rezadeira ao despertar o
desejo e aspiração das gerações mais jovens pela função, como ocorreu com a jovem Cosma.
146
As histórias de vida das nossas três colaboradoras trazem a força e o enraizamento do
grupo familiar. Dona Naldi aprendeu as rezas de sua avó Tomásia, intimamente chamada por
ela de “Mãe Véa”. Dona Lurdes era sobrinha de Neném de Faba, mãe da rezadeira dona
Cosma, que lhe ensinou a oração do Pai Nosso, e Cosma aprendeu de sua tia Luzia. Assim o
grupo familiar em que estão inscritas é uma metonímia do grupo social, da comunidade onde
nasceram e a que pertencem culturalmente. Porém, a coesão a família reforça a do grupo por
ser mais forte, ter sido relatada com maior ênfase nas histórias de vida. Foi na família que os
ensinamentos ancestrais foram transmitidos memorialmente e que foram preparadas para a
função de agentes da sua cultura. Mesmo dona Lurdes, que em sua história de vida, teve a
influência de um estranho, o baiano, foi no grupo que aprendeu as primeiras orações e que
exerce a sua função. Isso nos é explicado por Ecléa Bosi:
De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão. Em nenhum outro
espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem
pode mudar de país, se brasileiro, naturalizar-se finlandês; se leigo, pode
torna-se padre; se solteiro, pode torna-se casado; se filho, pode torna-se pai;
se patrão, torna-se criado. Mas o vínculo que o ata à sua família é
irreversível: será sempre o filho da Antônia, o João do Pedro, o “meu
Francisco” para a mãe. Apesar dessa fixidez de destino nas relações de
parentesco, não há lugar onde a personalidade tenha mais relevo. Se como
dizem, a comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue
como a família valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa (BOSI, 2007,
p.425).
Nessa atmosfera da intimidade familiar, a rezadeira Cosma rememora sua avó
Joaquina na função de rezadeira da comunidade, como o fez nossa primeira entrevistada Naldi
ao relatar sobre dona Tomásia, e sua tia Luzia. Nessa teia de relações familiares, a
entrevistada se inscreve num grupo de rezadeiras cuja atuação é marcante na história da
comunidade do Quati e da Lagoa do Mato. Luzia, tia intimamente chamada por Cosma de
Bia, foi a responsável pelo aprendizado das rezas desta colaboradora quando esta ainda era
uma adolescente de quinze anos. Também enfatiza em sua voz-memória que a sua avó Maria
Joaquina era uma rezadeira. Nesse sentido, essa memória está ancorada no lugar ocupado por
elas na história de vida de Cosma e na história comum aos membros do Quati. A voz da
rezadeira Cosma é tecida da memória que penetra no convívio cotidiano, nas experiências
vividas coletivamente, trazendo para o presente à transmissão das vozes que no passado foram
as responsáveis pelos ensinamentos das rezas e dos exemplos de vida dessas agentes da
cultura popular afro-brasileira. A voz-memória de dona Cosma, assim como a voz poética
compreendida por Zumthor, “De fato, ela envolve toda a existência, penetra o vivido e
147
mantém o presente na continuidade dos discursos humanos” (2001, p.140). Assim, em suas
relações na família e na comundade, Cosma relata:
Ciro: E assim das rezadeiras mais antigas daqui quem a senhora tem mais lembrança além da
da sua tia?
Cosma: Da minha tia? Assim, da merma reza da minha né?
Ciro: Sim.
Cosma: Porque tinha minha vó que era rezadeira também agora minha vó ela rezava in
criança.
Ciro: Aí como era o nome da vó da senhora?
Cosma: Joaquina.
Ciro: Joaquina o quê?
Cosma: Maria Joaquina.
Ciro: era conhecida era Joaquina Bezerra ou Joaquina Catinguera?
Cosma: Joaquina Catingueira; Joaquina Catinguera que morava numa casinha aí (aponta com
o dedo) ói ela eu sou famia de daqueli minino da rua de Manel Catinguera, Damião
Catinguera, cê conhecia Damião?.
Ciro: Conhecia, Damião,
Cosma: Damião era tii meu, ele era tii meu, era irmão de meu pai, aí minha vó morava ali
numa casinha que tem tem a casa de Maria de Noca qui a casa de Maria de Noca era de taipa
... desse lado, aí tem a cerca de Gabriel? Pra baixo assim (indica e aponta com as mãos) onde
tem aquela mandioca de Damião ali era a casinha dela, casinha de taipa .
Ciro: Então a senhora lembra dela, da ... ...
Cosma: lembro, lembro
Ciro: A tia, quem mais era rezadeira aqui?
Cosma: .... até de outras rezas também...
Cosma : Maria Nova também rezava
Ciro: Rezava pra quê?
Cosma: de, do mermo jeito meu de dirmintidura.
Ciro: Dismintidura né?
Cosma: É. Maria Nova rezava também... aí pronto só essar daqui né? desse tipo aí.
Ciro: Da família da senhora era.
Cosma: É é.
Ciro: A avó da senhora?
Cosma: Minha vó rezava in bebê.
Ciro: A tia?
Cosma: Minha duas tia, Luzia e Maria Nova ... que rezava.
Ciro: E assim hoje como que a senhora se sente rezando?
Cosma: Eu me sinto bem (risos).
Ciro: As pessoas reconhecem, procuram?
Cosma: Ééé. Eu me sinto bem quando chega uma pessoa aqui pa peu rezar né?... me sinto
bem mermo.
Ciro: Aí essas rezadeiras nunca sim, cobraram pela reza não?
Cosma: Nããão, (balança com a cabeça também) paa assim, é é coisa dimi de, deu piquena
que o povo dizia né? Que reza ninguém se paga, reza ninguém se dá nem obrigado...
(SILÊNCIO)
Ciro: Ok Então...
Cosma: Reza não dá nem obrigado.
Ciro: Tem que, é que a pessoa recebe o dom e ee....
148
Cosma: Ééé ... reza não se paga ... né? ...Vejo dizer desde de quando era pequena que eu via
... o povo dizer. (Transcrição 3 - 28.03.2016).
A continuidade da tradição do ofício de rezadeira se apresenta como uma marca
presente no grupo familiar das nossas colaboradoras, que eram ensinadas por parentes
próximas como Naldi pela avó, Lurdes e Cosma por tias. Também o convívio com as
rezadeiras mais velhas na família e na comunidade, a observação da sua atuação e
performance, reforça o laço íntimo necessário ao aprendizado e ao exercício do ofício de
rezadeira. Esse ponto nos esclarece o porquê do aprendizado e da transmissão ocorrer de
forma mais circular no seio das relações familiares. Esse laço de parentesco impulsiona a
dinâmica da continuidade das práticas das rezadeiras, o que se constitui como identidade
comum às três entrevistadas e também no relato de dona Cosma é uma face intrínseca a sua
função:
Ciro: Aí hoje aqui de rezadeira só tem a senhora ?
Cosma: É é.
Ciro: Lurdes.
Cosma: Lurde.
Ciro: Tem mais?
Cosma: Não ... tem mar não.
Ciro: e da mesma família a senhora e Lurde né?
Cosma: é... da merma famia, (risos) nóis somo prima...
Ciro: ok. (entrevistador faz cena para parar a gravação)
Cosma: Somo prima eu e Lurde, nossar mãe era...
Ciro: Aí assim a senhora é prima legítima de...
Cosma: Lurde.
Ciro: Aí o nome da mãe dela era ? Cosma: Maria Martina
Ciro: E da mãe da senhora?
Cosma: Maria de Lurde, da minha mãe
Ciro: Todas elas filhas de, como era o nome da vó da senhora?
Cosma: Éé´... Maria Mafalda.
Ciro: Era ela que era da família de Zé de Faba?
Cosma - A mãe de Zé de Faba
Ciro: Simm, a mãe de Zé de Faba, simm.
Cosma: Eu sou sobrinha.
Ciro: Sim.
Cosma- Eu sou sobrinha de Zé de Faba, era mãe de Zé, minha mãe, a mãe de Lurde, a mãe da
mãe de Lurde, a mãe de Maria Nova. Maria Mafalda... minha vó.
Ciro: Certo e e assim, ela era parteira também? Parteira era mãe Nila né?
Cosma: Mãe Nila
Ciro: Era irmã dela?
Cosma - Mãe Nila era irmã dela dela... era parteira.
Ciro: No caso sua era avó da senhora que era chamada de Mãe Faba, não né?
Cosma: Mãe Faba
Ciro: Mãe Faba né?
149
Cosma: Mãe Faba, é hahaha (risos).
Ciro:Ok.
Cosma: Era Mãe Faba, os que eu conheci da parte de meu pai mar os da parte da minha mãe
eu nao conheci não.
Ciro: Quer dizer que a senhora não conheceu os avós da parte da mãe não?
Cosma: Da minha mãe não
Ciro: Como era o nome deles?
Cosma: Era Pedro Vintura ee Maria Mafalda
Ciro: Maria Mafalda?
Cosma: Era ... num conheci não.
Ciro: Que Maria Mafalda era mãe Faba?
Cosma: Mãe Faba
Ciro: E da parte do pai da senhora?
Cosma: Era Joaquina e Zé Catinguera, chamava Zé Catinguera.
Ciro: Sim... no caso a avó da senhora que era rezadeira da parte...
Cosma: Da, do meu pai.
Ciro: Certo. Da parte da mãe da senhora já aprendeu com uma tia.
Cosma: Com minha tia.
Ciro: Irmã da mãe, né?
Cosma: Irmã da minha mãe. (Transcrição 3 - 28.03.2016).
A nossa rezadeira no diálogo durante a entrevista relembrou ao ser perguntada sobre
o dia em que a procurei e ela indicou que naquela necessidade particular a reza apropriada era
de dona Lurdes, sua prima e moradora próxima de sua casa. Cada rezadeira tem o seu papel
na comunidade. Desde o tempo da colonização “Benzedeiras desfaziam quebrantos com a
ajuda de rosários, como também de patuás e folhas de pinhão-roxo (NETO, 2009, p.33). Essa
é no caso uma das funções que identificam a atuação de dona Lurdes como rezaderia.
Conforme já foi relatado anteriromente na fala de dona Cosma, quando a procurei para a reza
de mau-olhado, ela me mandou à casa de dona Lourdes que rezava nesse contexto. Nesse
sentido, as rezadeiras respeitam o espaço social ocupado por sua função na comunidade em
que cada agente popular tem as suas especificidades de atuação. Em sua fala, dona Lurdes
também enfatiza que “Corma reza de triadura” (Transcrição 2 - 29.02.2016). Dona Cosma se
orgulha de ser procurada para rezar nos males físicos, em machucados ou torções chamados
por ela de “dirmintidura”, que o povo recorre às suas rezas mais do que às de dona Lurdes
quando a necessidade é mais física do que espritual, já que Lurdes reza nos dois casos e
Cosma é conhecida especificamente pela cura de males físicos.
Ciro: E hoje vem gente procurar a senhora aqui né?
150
Cosma: Aquii? Ahahaha (risos) de veizinquando chega gente aqui de veizinquando de
veizinquando, quair todo mundo por aqui Lurde reza ali (aponta ligeiramente com o dedo)
mar é difíci o povo ir lá pa Lurde, só vem pra cá pa mim rezar, só vem pra cá. (Transcrição 3 - 28.03.2016).
Conforme já refletimos anteriormente a relação das rezadeiras com a busca da cura
para doenças físicas tem uma estreita relação com os saberes indígenas e afro-brasileiros
herdados dos antepassados. Dona Lurdes reza para males físicos e espirituais, como o mau-
olhado, a solução de problemas pessoais, mas dona Cosma tem o seu papel relacionado aos
problemas físicos como “carne triada”. Dona Cosma com orgulho relata que a casa da sua tia
vivia cheia de gente, que as pessoas não podiam machucar um dedo que já a procuravam. O
laço identitário de sua mãe com os membros do grupo social das comunidades de Quati e
Lagoa do Mato foi transmitido memorialmente para dona Cosma, que aprendeu as rezas e
mais tarde ocupou no grupo a função de sua tia na comunidade. Essa relação da rezadeira com
as necessidades do seu povo é que reveste de sentido à sua prática. Como legado cultural da
mestiçagem que originou a nossa identidade brasileira, as rezadeiras enquanto agentes da
cultura popular do grupo em que se inscrevem são continuadoras do papel desempenhado
pelos ancestrais indígenas e negros, principalmente nas comunidades do interior do Brasil,
urbanas ou rurais como no caso do Quati e da Lagoa do Mato, onde historicamente não havia
médicos e essa ausência era amenizada pelos saberes populares de pajés, parteiras,
benzedeiras e rezadeiras. Assim:
Hoje, no mundo rural e ainda no interior, há a figura do rezador e, sobretudo
da benzedeira, que substitui de certa forma o médico e o pajé e dá
continuidade à figura do pajé ou da mulher pajé, chamada pelos Guarani de
kunhã karaí. Muitos tratamentos populares, com rezas e à base de infusões
de ervas, têm-se revelado bastante eficazes. Quem não se lembra da reza
para buxo-virado, que somente reza forte consegue curar? (PREZIA, 2007a,
p.93, Grifo do autor).
Como a cultura popular é dinâmica e atuante dentro das relações coletivas de um
povo, a função social da rezadeira ou benzedeira, denominação dada conforme a variação
regional linguística e cultural é de agente de uma medicina popular, mas principalmente de
representante de sua cultura ancestral e transmissora da memória coletiva. Suas rezas estão
inseridas no cotidiano do seu povo, na vivência coletiva, e contextualizadas nas horas de
trabalho, de descanso, doença e de dor, de contato com o sagrado a partir das necessidades
materiais e espirituais. Assim, compreendemos o significado da atuação de dona Cosma não
151
apenas na procura dos seus pela cura de dores e problemas físicos, mas sua manifestação
cultural encontra um sentido maior. Apesar da presença atual de médicos na comunidade,
inclusive o posto de saúde fica localizado próximo da casa da rezadeira em questão. Seu
ofício de rezadeira enquanto agente da cultura popular afro-brasileira é a revivescência do
laço identitário com os antepassados que lhe legaram essa função como continuadora de uma
cultura marcada pela diáspora, pelo sofrimento da escravidão e pela discriminação. Nesse
caldo de miscigenação cultural que surgiu nos tempos coloniais:
Muito provavelmente, como aponta Silva (2009), as benzedeiras surgiram no
Brasil com a colonização. Aos saberes trazidos, por exemplo, pelas
antecessoras das atuais recomponentes galego-portuguesas (espécie de
benzedeiras ibéricas), até hoje presentes nas zonas rurais da Galiza e de
Portugal, juntaram-se os saberes de índios autóctones brasileiros e dos
escravos africanos que para cá foram trazidos de 1530 ao final do século
XIX (CÂMARA, MINGO e CÂMARA, 2016, p. 226)
Assim, desde os tempos coloniais os povos ameríndios e afrodescendentes tiveram
suas culturas hidridizadas no sentido pensado por Canclini (1997), misturadas e miscigenadas
de forma que deu origem a agentes da cultura popular afro-ameríndia e da cultura dos
membros das camadas populares inscritos no chamado catolicismo popular. Nesse contexto,
rezadeiras, pajés e beatos se constituem como representantes de uma identidade cultural
multiétnica da qual também beberam na fonte membros da hierarquia católica romana que
mais tarde se identificaram muito mais com a cultura do seu rebanho como o Padre José
Antônio Maria Ibiapina que percorreu o Nordeste em missões e o Padre Cícero Romão
Batista, que protagonizou o “milagre do Juazeiro”, a transformação da hóstia em sangue na
boca da beata negra Maria Madalena de Araújo em Juazeiro do Norte no Ceará. Na esteira
dessa vertente compreendemos que:
O catolicismo popular que gerou tantos beatos e beatas como os heróis que
lutaram e tombaram em Canudos ou padres andarilhos amigos de indígenas e
caboclos, como Gabriel Malagrida ou rezadeiras e benzedeiras que se
apropriaram de conhecimentos multiétnicos, trouxe também padres mais
arraigados às tradições da igreja, como Cícero e Ibiapina. Ambos, contudo,
profundamente marcados pelo sentimento popular e pela percepção fina que
tinham do povo do Nordeste e de suas demandas e necessidades materiais e
espirituais (CAVALCANTI, 2016, p.10).
Ao refletirmos sobre o que afirma o autor acima citado, dentre as necessidades
materiais e espirituais do povo do Nordeste, dos afrodescendentes, dos agentes da cultura
152
popular, está a de reavivar a cultura e a história dos seus antepassados marcadas por traumas
históricos, uma necessidade identitária que vem desde os tempos coloniais, pós-coloniais,
escravidão e pós-abolição da escravatura, e que assim atravessou os séculos até a atualidade.
Essa revivescência inscrita nos contextos sociais das comunidades populares sertanejas e
nordestinas, como é o caso das comunidades de Quati e Lagoa do Mato.
Como tratamos de uma cultura inscrita no universo da oralidade, principalmente
nessas comunidades mais afastadas dos centros de pesquisa que registram na história dita
oficial, escrita, os traços e manifestações culturais, as histórias de vida das rezadeiras e suas
rezas enquanto bens simbólicos de um povo e lições de vida ensinadas pelos mais velhos, a
transmissão memorial são a bobina que move a identidade coletiva. A diáspora e a escravidão
iniciaram a difusão de uma cultura africana que no Brasil se revestiu de novos traços e a
oralidade dessas culturas conduziu ao Novo Mundo em sua vasta grandeza territorial a
memória de um povo que atravessou o Atlântico negro, mas não esqueceu suas raízes.
As narrativas e histórias de vida nos mostram que as rezas não são uma manifestação
estática, tal e qual nos tempos passados, mas adquirem novos contornos pelo contexto de vida
de cada rezadeira, como é o foco deste trabalho. Daí a riqueza de rituais, de narrativas e de
histórias que compõem o mosaico identitário das comunidades afro-brasileiras em estudo.
Não somente as rezas foram repassadas, mas as narrativas de vida que integram a memória
cultural do Quati e da Lagoa do Mato. É aí que se revestem de sentido como laço social e
identitário de um povo.
As comunidades afro-brasileiras do sertão nordestino, da zona rural, por mais
afastadas e distantes que possam ser geograficamente possuem sua complexidade e
singularidade subjacente no modo simples como vivem suas manifestações (AYALA, M. I.
N., 1997). A identidade nacional do Brasil é formada por uma heterogeneidade, por traços
multiétnicos e assim multiculturais. Por isso, a cultura das comunidades de Quati de Lagoa do
Mato se concentra nas histórias de vida das suas rezadeiras a síntese da africanidade, da
herança ameríndia e do catolicismo do europeu branco que apesar das imposições históricas, o
legado dos povos negros e ameríndios se sobressai em sua memória e identidade. A
hibridização com o catolicismo não se deu sem resistência e os afrodescendentes
transformaram e reelaboraram a cultura ocidental imposta. O momento social de aprender
rezas não se restringia apenas a repassar às orações católicas, mas a acrescentarem a esse
catolicismo dominante os seus valores, necessidades de rememorar as origens, o legado
ancestral, e se inserirem sem perder o bem mais precioso que é a identidade coletiva, o que dá
153
sentido às rezas no atual contexto da modernidade e da tecnologia. Trazendo essa reflexão
tanto para o campo da cultura como da educação:
Numa digressão que considero necessária para a discussão sobre a cultura,
ou as culturas, nas salas de aula, desenvolvo aqui essa ideia (grafia da
autora) através de um diálogo entre alguns “bens culturais” que permitem à
cultura ocidental se impor sobre as demais e os modos como, diante dessa
força, os “fracos” se inscrevem, transformando e adaptando esses bens -
enquanto valores – às suas necessidades e origens (OLIVEIRA, 2003, p. 26-
27).
A autora abrange em sua abordagem esse complexo diálogo tanto nas comunidades
como nas escolas. Como o nosso foco são as comunidades de vertente afrodescendente, a
diversidade cultural do Quanti e Lagoa do Mato presente nas narrativas de vida, nas rezas, na
literatura oral, nas festas religiosas, nos folguedos. As rezas não se apresentam como um culto
de matriz essencialmente africana como o candomblé que cultua deuses trazidos da África.
Enquanto manifestação da cultura e da literatura oral popular e afro-brasileira reforça os
laços, a história e a memória do seu povo ressignificados no contexto brasileiro, não
recordadas puramente como foram trazidas pelo Atlântico.
Nesse ponto de reforçar os laços do grupo se concentra a importância da transmissão
dos saberes ancestrais. Dona Naldi foi ensinada por sua avó Tomásia, dona Lurdes aprendeu
observando as rezadeiras antigas da comunidade e as orações católicas com sua tina Nenén de
Faba. Dona Cosma aprendeu com sua tia Luzia. Os hábitos ancestrais, os costumes africanos
modificados no Brasil se misturaram ao catolicismo em suas práticas culturais e superou a
perseguição aos costumes afro-brasileiros. A transmissão memorial do ofício se deu numa
fusão com as orações e devoções católicas trazidas da Europa pelos portugueses numa
reapropriação inteligente da cultura dominadora. Assim:
Mesmo perseguido, o povo afro-brasileiro não se desfez de seus hábitos e
costumes, apesar de ter os seus cultos e suas crenças menosprezados por
muito tempo aqui no Brasil. Uma das formas encontradas pelos negros para
não deixar de praticar suas crenças foi misturar as religiões de matriz
africana com o cristianismo europeu, dessa forma eles agradavam aos
brancos por estarem praticando o Catolicismo e, ao mesmo tempo,
fortaleciam suas tradições trazidas da África transmitindo-as às gerações
mais jovens (JESUS, 2017, p. 54).
A identidade elaborada sobre as rezadeiras varia de acordo com a região, como as
denominações de benzedeiras ou curandeiras que segundo Gutemberg Costa essas agentes
154
“Recebem denominações populares de rezaderias, curandeiras, e, em alguns estados, como
Goiás e Minas Gerais, elas são chamadas de benzedeiras” (COSTA, 2009, p. 245). A
importância da transmissão oral tem sentido por sua maioria ser desse universo da oralidade e
que, por meio dela, foi iniciada em sua cultura ancestral, adquirindo os conhecimentos
necessários à sua prática popular no convívio com o seu grupo. Dessa forma:
Normalmente, a rezadeira, benzedeira ou curandeira, segundo Santos (2009),
caracteriza -se por ser uma mulher pobre, enxergada como sujeito histórico
que não possui muita cultura livresca. É necessariamente iniciada por uma
(s) antecessora (s), de quem herdou poderes de cura e conhecimento acerca
dos mistérios de suas práticas. (CÂMARA, MINGO e CÂMARA, 2016, p.
226).
As rezadeiras colaboradoras deste trabalho aprenderam o seu papel social no grupo
ainda jovens, como forma de perpetuarem as tradições trazidas, mas principalmente
ressignificadas, pelos contextos da comunidade e do grupo como também de suas histórias de
vida. Nesse sentido, a cultura afro-brasileira herdada dos antepassados negros e reelaborada
constantemente nas práticas comunitárias de convívio e solidariedade tem um significado
importante na construção do sentido de pertencimento, de identidade. As rezadeiras se
contituem como agentes da cultura popular do seu povo e de outros que se juntam às suas
práticas, pessoas vindas de outras comunidades como a cidade de Luís Gomes e outras
cidades até de estados vizinhos. Apesar de ser uma cultura construída sob os traumas do
tráfico negreiro e da escravidão (GILROY, 2001), suas manifestações e objetos culturais não
desapareceram apesar da perseguição e da cultura dominante que lhes foi imposta pelo
colonizador. Assim:
Ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um
bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam
esse lugar se tornasse idêntico e intercambiável. Nesses territórios a
identidade é posta em cena, celerada nas festas e dramatizada também nos
rituais cotidianos (CANCLINI, 2008, p. 190, grifo do autor).
Para o antropólogo, pertencer a uma dada comunidade, do local ao nacional,
pertencer a uma entidade é compartilhar saberes e vivências num lugar de trocas simbólicas,
de intercâmbio cultural. Nesse lugar híbrido da cultura, ser uma rezadeira do Quati não é
apenas estar inscrita numa identidade local, mas fazer parte da memória e da história de toda
uma nação formada de um mosaico multiétnico. As rezas não são apenas um objeto cultural,
um mero bem simbólico, mas um espaço conquistado sob o signo da resistência ao longo da
155
história do Brasil. Os povos afrodescendentes em constante luta, numa dinâmica cotidiana
buscaram seu espaço na cultura, teceram uma revivescência da ancestralidade num
movimento dialético em que inscreveram o seu legado na identidade nacional, pois:
Há anos os afrodescendentes buscam seu espaço na cultura e na literatura no
Brasil. Não podemos abdicar de um legado que faz parte da história deste
país e que em meio às paredes das senzalas, à escuridão do porão e nos
campos das fazendas nossos negros africanos nunca deixaram morrer suas
raízes (SANTOS, M. 2013, p. 80).
As rezas da comunidade afrodescendente do Quati, indissociáveis das histórias de
vida de suas agentes populares, as rezaderias, fazem parte da cultura nacional e hoje não mais
ocupam as senzalas e os porões. Continuam atuando nas comunidades rurais do sertão
nordestino, nos bairros de identidade afro-brasileira, nas comunidades reconhecidas como
quilombolas. Nesses lugares as raízes culturais que atravessaram o Atlântico negro saíram da
escuridão e continuam inscritas no cotidiano das suas comunidades, nos momentos de
socialização. As narrativas de vida das rezadeiras confirmam o pensamento de que “Na maior
parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e
idéias de hoje, as experiências do passado” (BOSI, 2007, p.55).
As narrativas de vida das rezadeiras negras do Quati podem ser associadas à
literatura africana que apresenta um forte teor de oralidade e de memória, como a obra do
guineense Abdulai Sila. Para melhor compreendermos o contexto de vida dessas mulheres
afrodescendentes está inserido nas redes da globalização, apesar de muitos pesquisadores e
folcloristas acreditarem que as comunidades rurais do interior do Nordeste brasileiro vivem
isoladas e suas manifestações são arcaicas, relíquias do período colonial, o catolicismo e a
cultura branca historicamente impostos também chega pelos meios de comunicação, muitas
assistem a canais católicos, a novena do Divino Pai Eterno da Rede Vida de Televisão, por
exemplo, mas estas informações e influências as afetam sem apagar os marcos e traços mais
característicos da cultura dessas comunidades mais afastadas. A força da opressão favoreceu
uma reelaboração das manifestações culturais, como suas histórias de vidas, narrativas, rezas,
crenças, um pensamento capaz de relacionar diferentes situações sociais e históricas. Essa é a
complexa elaboração de suas identidades afro-brasileiras, sem a falsa noção de uma
identidade essencialista, intocada. Refletimos que:
Por outro lado, essa situação de opressão e de miséria é também um dado
desencadeador de reflexão e conscientização, pois o sujeito local nota que,
156
através dos fluxos de informações baseados em redes da própria
globalização, aquilo que o afeta é também algo que afeta os outros sujeitos
das comunidades do mundo todo.
Ora, essa percepção no sujeito de que a força que o oprime é, em termos
simbólicos, a mesma força que oprime um outro, em um outro local, poderá
favorecer um pensamento relacional e não essencialista sobre a própria
cultura e identidade. Assim sendo, quando um escritor, um sujeito engajado
à sua própria cultura, decide tratar de sua cultura por meios literários, ou
seja, poéticos, ele abandona a ideia de raiz como ideia majoritária, e seu
discurso opta, no seu lugar, por uma representação da conjectura cultural
onde vive motivada por um desejo de levar a comunicação de seu imaginário
ao imaginário do outro (CARDOSO, S., 2014, p. 105).
Tanto as rezadeiras, exímias narradoras da vida e da história do seu povo como os
escritores e poetas engajados à sua própria cultura tratam desta cultura e de sua memória por
meio de sua arte, seja ela escrita ou oral, erudita ou popular, de forma não essencialista, ou
seja, conscientes de que não é possível manter sua cultura intacta, preservada numa raiz
majoritária. O discurso literário de um sujeito inscrito na cultura do seu povo é elaborado na
relação entre a cultura e a memória e é motivado pelo desejo de transmissão do imaginário
coletivo ao outro, numa relação que na esteira de Glissant (1997), pode ser chamada de
rizomática.
Apesar da penetração da cultura ocidentalizada, da tentativa de uma hegemonia
branca, as narrativas de vida das rezadeiras negras do Quati inserida numa complexa poética
de relações nos mostram que apesar do confronto e da disputa, o resultado é o enriquecimento
mútuo das culturas envolvidas. Inscritas num tempo histórico que comporta diversas culturas
e categorias de tempo, no caso das rezadeiras o tempo é o comunitário, envolvidas
inicialmente pela colonização e hoje por uma colonização globalizada que oprime e explora
os que são considerados mais fracos, as manifestações culturais afro-brasileiras das rezas e
das narrativas coexistem com diferentes manifestações. Apesar da presença da tecnologia nas
suas casas, dos programas de televisão católicos, os bens simbólicos das rezadeiras convivem
com esse contexto de diferentes temporalidades. Assim:
Quando penso em temporalidades diferentes e presentes estou querendo
inverter o eixo do ponto de vista dominante, de modo a ressaltar, por um
lado, a proximidade e a simultaneidade temporal, por outro, formas de
resistência, confronto e contestação, mas também a penetração da dominação
que provoca subordinação aos interesses dominantes ou o diálogo com
diferentes criações culturais, que pode gerar trocas e resultados
enriquecedores para os diferentes tipos de cultura em coexistência, confronto
e disputa (AYALA, 1997, p.3).
157
A mestiçagem cultural das narrativas de vida das rezadeiras, de seus ritos e rezas, se
assemelha com a crioulização apresentada em obras de escritores africanos como Abdulai
Sila. Tanto as obras escritas dos escritores africanos como as narrativas de vida das rezaderias
negras da comunidade de Quati encontram sentido por ser uma resistência às narrativas
dominantes, uma transgressão inscrita numa cultura híbrida. Pensando na esteira de Hall
(2009) e sua compreensão de cultura enquanto prática cotidiana de um povo em que este lhe
atribui valorização a partir de seus referenciais, a literatura e a cultura afro-brasileiras em suas
várias formas e manifestações são uma forma de afirmação diante de uma histórica hierarquia
cultural.
As manifestações culturais e as práticas rituais das rezadeiras se impuseram ao longo
do tempo em meio a uma inferiorização construída sobre os negros em que sua cultura foi
tratada como desterritorializada, como uma cultura sem chão para se reconstruir, flutuante
devido ao processo colonizador. Porém, as manifestações culturais afro-brasileiras, como as
narrativas e rezas, nos mostram que nenhuma cultura possui uma raiz majoritária, elas são
rizomáticas e crioulas segundo o pensamento de Glissant (1997). A formação de um
entroncamento dessas culturas híbridas resulta de um complexo e histórico processo de reação
aos modelos impostos pela hegemonia branca, pelos colonizadores, principalmente por se
tratar de uma realidade concreta, como é o caso das narrativas e das rezas inseridas no
cotidiano da comunidade.
As narrativas de vida das rezaderias negras são uma forma de o subalterno poder
falar (SPIVAK, 2010). Falar de suas histórias, de sua herança cultural, de sua identidade e de
produzir sua subjetividade sem a qual o grupo perderia a coesão que os une, de sua ligação
com o universo mítico, pois em sua função social primordial, como na cultura indígena cariri
“O rezador ou bisamu tinha um papel importante, não só como curandeiro, mas também como
intermediário da divindade (PREZIA, 2007b, p. 90, grifo do autor). Assim a função do
rezador ou da rezadeira por mais que esteja relacionada à cura de doenças ou solução de
problemas espirituais, sua intermediação com a divindade se faz por ser esse agente o
transmissor da cultura, da ancestralidade do seu povo, bem mais divino e sagrado para a
existência do grupo.
A hibridização constitutiva das culturas afro-brasileiras, seu viés rizomático, é
reforçada no caso do Brasil pela miscigenação presente em nossa população desde o início da
colonização, num processo duradouro que se enriqueceu ainda mais com a chegada de muitos
imigrantes. Fato constatado pelo sociólogo devido a:
158
A presença de etnias e culturas diferentes se faz sentir desde os relatos que
acusam os primeiros do grupo europeu mais antigo no Brasil, representado
pelo português, até nas contribuições africanas e dos grupos europeus e
orientais mais recentemente ajustados e integrados à nossa sociedade
(XIDIEH, 1993, p. 123).
Em seu trabalho etnográfico sobre narrativas populares, Oswaldo Elias Xidieh,
pioneiro nos estudos brasileiros a partir de uma visão mais sociológica das culturas populares
e do folclore, no tocante ao sincretismo e à aculturação, o autor relata que parte significativa
das narrativas apresentam rituais de cura e esse fato se deve a um “processo de acumulação e
acomodação de traços mágico-religiosos de diferentes culturas” (XIDIEH, 1993, p. 123). Esse
traço constitutivo das muitas narrativas, contos etiológicos e lendas coletados e analisados
pelo sociólogo com narradores paulistas que é o viés mágico-religioso se dá com as
influências indígenas e afro-brasileiras, cujos registros de relatos são mais abundantes e
segundo o autor, do caboclo se registra muito pouco. Este conserva muito mais traços
lusitanos como, por exemplo, o culto das almas. Como herança do romantismo brasileiro, a
cultura do caboclo foi considerada de pouca nobreza e valor com a tentativa de representação
de um índio impossível. Como também há um traço depreciativo com o negro em muitas
narrativas com ditados jocosos de inferiorização, destacando-se como exceção a narrativa do
rei mago negro que apesar da trapaça dos dois reis brancos, consegue chegar primeiro ao
presépio e ganhar a coroa de ouro. Essa depreciação e tentativa de inferiorizar o elemento
afro-brasileiro é uma herança da colonização que as narrativas das rezadeiras e a permanência
da sua atuação e função nas comunidades, reelaborada e inscrita em novos contextos que
conseguem conviver e dialogar com os tempos modernos, resistem de forma rizomática, numa
reação histórica as imposições.
Essa característica mágico-religiosa das narrativas de vida das rezadeiras negras é
resultante do sincretismo, da hibridização das três culturas matrizes da formação nacional
brasileira, indígena, africana e portuguesa, o viés mágico mais africano e indígena e os traços
católicos lusitanos. Esse conjunto de traços tecidos em diversidade presente nas narrativas de
vida das rezadeiras do Quati não se trata de lembranças fragmentadas do passado, mas de uma
função social ancorada no veio narrativo. As narrativas e rezas como elementos memoriais
não são expressões autênticas, da cultura e do passado africano, mas a recuperação atualizada
das vozes ancestrais inserida no cotidiano da comunidade. As rezadeiras desconstruíram o seu
lugar de vítima enquanto afrodescendentes marcados pelos traumas da diáspora e da
escravização e assumiram o seu papel de sujeitos históricos responsáveis pela memória,
cultura e tradição, revisitando o passado com o olhar de um momento novo do presente. Em
159
sua constituição identitária, tomaram de empréstimo também a religião, a língua e a cultura do
colonizador e, ao longo da história do seu povo e de suas histórias de vida, se legitimaram
enquanto agentes da cultura afro-brasileira no seu grupo.
Na esteira da compreensão pós-colonial em que ultrapassamos o pensamento de uma
cultura pura, de uma raiz majoritária e dominadora que se sobrepõe às outras, a cultura
popular afro-brasileira se moveu nos intertícios, nos entre-lugares, nas diferenças e nas
reações aos modelos sociais impostos e aos limites previamente estabelecidos. Nessa
articulação de diferenças culturais e produção de subjetividades individuais e coletivas, as
narrativas de vida das rezadeiras negras e suas rezas e ritos podem ser compreendidos como
uma estratégia elaborada de subjetivação, como novos signos de identidade. Assim:
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de
passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação
de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a
elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão
novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e
contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 2010,
p.20).
Na esteira de Bhabha para compreendermos as narrativas de vida das rezadeiras
negras é pertinente não só focarmos na narrativa enquanto produção de subjetividade, mas
também e principalmente no processo de produção desse tecido narrativo, nos momentos e
contextos sociais que proporcionaram essa produção e nos acontecimentos históricos e
culturais representados na voz-memória. A compreensão de uma cultura híbrida oferecida por
Bhabha se reveste da ideia das diferenças como constitutivas de uma sociedade e de sua
cultura. Assim se teceram as narrativas das rezas negras e seus rituais, como resultado de uma
tradução cultural elaborada em séculos de história, diáspora, escravidão e abolição, luta e
resistência. Na trilha do pensamento de Bhabha as narrativas das rezadeiras se inscrevem em
seu sentido de hibridismo sem a promessa de uma clausura celebratória nem de
transcendência. As culturas se mesclaram, uma encontrou tradução na outra, seus traços se
fundiram e se miscigenaram.
Rosa Bezerra num estudo sobre a representação social do cangaço e de movimentos
sociais protagonizados pelos negros, como a Revolta dos Malês na Bahia, do massacre
indígena baseado na ideia de uma raça inferior, mutilada na alma no tom forte das palavras da
estudiosa, e esvaziada enquanto sujeito de direitos, os negros e índios foram, o que
impulsionou as pessoas a uma identificação mesmo que inconsciente com brancos e cristãos
160
devido a representação do europeu enquanto superior. Nessa exclusão histórica que mutilou as
almas e as identidades indígenas e negras, numa violência real e simbólica, predominou sobre
o negro a visão eurocêntrica, o que negou seu direito à identidade. Ao discutir a visão do
pintor Rugendas, a psicóloga social reflete que:
Passando para o estudo da história do negro no país, nota-se também a visão
eurocentrista que percebia o negro como “raça inferior”, podendo ser
subjugado à força e vendido como mercadoria, como animal. O negro teve
também sua alma mutilada quando lhe foram negados os direitos à religião,
os costumes, a história, violando sua ideologia, seus mitos, seu modo de
vida. Rugendas acreditava na “verdadeira superioridade dos brancos sobre os
negros”. Ou seja, Rugendas percebia o negro digno de caridade, de piedade,
mas não como o outro, digno de respeito; na sua visão eurocêntrica, percebe
o negro como inferior ao branco (BEZERRA, 2009, p. 40- 41).
A autora Rosa Bezerra aborda a construção do pensamento histórico sobre o negro e
a elaboração da visão sobre ele a partir de critérios europeus, brancos e cristãos, o que lhe
negou o direito a “alma” durante muito tempo. Como a diferença é um elemento constitutivo
da identidade, Inês Barbosa de Oliveira aborda como a reação aos modelos impostos pela
cultura colonizadora, uma resistência que se faz na diferença, em processos constantes de
adaptação e modificação dos bens culturais e simbólicos que permitem a reinserção social de
práticas culturais consideradas como inferiores:
Nesse sentido, por um lado, em contextos multiculturais, muito da nossa
identidade se tece em oposição às identidades e forma de estar no mundo de
outros grupos sociais, sendo um dos modos pelo qual aprendemos a nos
inserir no mundo: diferenciando-nos dos “outros”. Numa história política e
cultural de transformação de diferenças em desigualdades, característica da
cultura burguesa e ocidental, vamos perceber processos de aprendizagem
que hierarquizam sujeitos e culturas. Valorizando os princípios fundadores
de umas em detrimento de outras, o que produz, por outro lado e
simultaneamente, processos de adaptação e modificação que permitem aos
supostamente inferiores reinserir-se socialmente, apesar da força com que
algumas dessas desigualdades se manifestam em nosso cotidiano
(OLIVEIRA, 2003, p. 26).
Foi esse processo de adaptação e de aprendizagem que permitiu às rezadeiras negras
se constituírem como agentes populares de sua cultura, da memória coletiva, representantes
de uma cultura híbrida que apresenta traços europeus, indígenas e africanos sem que a
histórica hierarquia dos sujeitos e das culturas se faça um obstáculo às suas práticas. Apesar
da valorização de uma cultura em detrimento das outras, no caso a branca e europeia em
detrimento da indígena e afro-brasileira, as manifestações culturais, narrativas, rezas e
161
benzimentos dos sujeitos desta pesquisa transcenderam as desigualdades e se tornaram até os
tempos atuais uma atividade cotidiana, revestindo de simbolismo e identidade uma realidade
concreta. Essas atividades de religiosidade africana que foram perseguidas durante o período
colonial e pós-colonial brasileiro pelas elites brancas e católicas, como o foram pela
inquisição do Brasil colonial por serem vistas durante muito tempo como diabólicas e não se
enquadrarem nos discursos de centro e dominante, são o suporte em que se ancora a memória
de uma comunidade, de um grupo não apenas étnico, mas cultural que reaviva sua identidade
na voz-memória de suas rezadeiras.
Nas reflexões propiciadas por Ecléa Bosi com base no pensamento de Simone Weil:
Trata-se de um direito humano fundamental para Simone Weil: “Um ser
humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência
de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos
pressentimento do futuro”. O desenraizamento é uma condição
desagregadora da memória: sua causa é o predomínio das relações de
dinheiro sobre outros vínculos sociais. Ter um passado, eis outro direito da
pessoa que deriva de seu enraizamento. Entre as famílias mais pobres a
mobilidade extrema impede a sedimentação do passado, perde-se a crônica
da família e do indivíduo em seu percurso errante. Eis um dos mais cruéis
exercícios da opressão econômica sobre o sujeito: a expoliação das
lembranças (BOSI, 2007, p. 443).
O papel social das rezadeiras negras do Quati garante aos membros do seu grupo o
direito a um passado, a uma memória. Suas narrativas e rituais além de conservarem os
tesouros ancestrais ressignificados na realidade de vida atual pressentem também um futuro
promissor para o seu povo em que suas tradições e bens culturais não serão esquecidos.
Embora as futuras gerações lhes deem novos sentidos e novas funções, a memória transmitida
pelas rezadeiras é um tesouro, fonte viva de identidade onde bebem os afrodescendentes de
diversas épocas e gerações. Suas práticas se constituem como uma condição agregadora da
memória coletiva, não permitindo o cruel desenraizamento já sofrido com a diáspora e a
escravidão. Elas tecem a crônica não só do grupo familiar, mas do grupo social e embora
ainda atingidas pela mobilidade, como dona Naldi que se mudou de Luís Gomes para Pau dos
Ferros em busca de melhores condições econômicas, mas nessa outra cidade continua
narrando e rezando, o desejo de ter um passado e de pertencer a um grupo lhe impulsionar a
narrar e a rezar. Narradoras de sua gente, as rezadeiras conferem aos seus o direito à memória,
a uma raiz, a um lugar no seio da coletividade e sua função é uma participação real, ativa e
natural na vida simbólica do grupo, dando também aos outros membros o mesmo direito.
162
Na esteira do pensamento de Bhabha, as suas narrações, rezas, rito e orações são
manifestações culturais inscritas e inseparáveis de suas histórias de vida que resistiram e
resistem à condição colonial historicamente imposta aos seus antepassados. Em seu papel
social na dinâmica do grupo comunitário. Suas narrativas de vida elaboram uma imagem
autêntica, uma identidade construída num tecido social reelaborada a cada geração pelas
tramas da história. Nas bobinas que movem a memória das rezadeiras negras, embora até
certo ponto de forma inconsciente, sua identidade se torna autêntica por transcender a máscara
branca através da sua função social e conseguirem dar uma resposta a uma luta historicamente
desigual. A elaboração das identidades intrínsecas às rezas e narrativas é uma produção como
atitude responsiva de sobrevivência cultural de um povo massacrado por séculos.
A fé em Deus e nos seus santos e antepassados aparece como uma marca da
identidade das rezadeiras participantes deste trabalho. Elas acreditam na autoridade e na
função que exercem, de que foram investidas por suas ancestrais e no reconhecimento que
recebem dos membros do seu grupo social, o que lhes proporciona um lugar social como
agente da cultura e da religiosidade popular, estabelecendo um elo entre a cultura ancestral e
as práticas cotidianas do grupo e perpetuando assim o sentido de pertencimento sem o qual o
grupo não sobreviveria como tal. Suas histórias de vida são a história do seu povo, sua
memória e identidade nelas encontram solo propício e fecundo.
163
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A psicóloga social Ecléa Bosi (2009) em entrevista à revista Na Ponta do Lápis
enfatizou a importância dos depoimentos colhidos para a transformação social do lugar onde
as narrativas surgiram. No decorrer desta escritura aconteceu o processo de reconhecimento
das comunidades do Quati (escrevo assim seguindo Câmara Cascudo embora outros escrevam
Coati) e da Lagoa do Mato como remanescentes de quilombos pela Fundação Palmares.
Apesar deste ato não ser o objetivo deste trabalho, os artigos que escrevemos sobre a memória
e a identidade afro-brasileira dos moradores do Quati e da Lagoa do Mato ao longo das
pesquisas deram a sua contribuição para esse reconhecimento. Como, por exemplo, o artigo
publicado em livro “O ensino da literatura afro-brasileira: relatos de experiência” (SILVA;
FONSÊCA, 2017) que tratou das relações entre o ensino da cultura afro-brasileira e os
agentes populares, narradores da comunidade. Outros artigos ainda em andamento ou já
publicados em jornais digitais sobre a cultura afro-brasileira do município de Luís Gomes e
sua zona rural, que embasaram esta tese e foram citados ao longo desta escrita, foram também
entregues à Fundação Palmares para melhor caracterizar os significados da cultura popular
afro-brasileira e o diálogo e a circularidade dessa cultura com a dos povos do Quati. Também
participamos de um projeto de iniciação científica orientado pela professora Solange Batista.
Assim:
Projeto de Iniciação científica, na área das ciências sociais.
Pesquisa realizada pelas alunas Rafaela Gomes da Silva, Nágila Aiane do
Nascimento e Maria Eduarda da Silva, estudantesd a 3ª série do ensino
médio da Escla Estadual Mariana Cavalcanti, sob a orientação da Professora
Solange Batista da Silva e cooreintação voluntária do Aluno de Doutorado
em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, desenvolvido
durante o ano de 2017. O trabalho foi apresentado na Feira de Ciências da
Escola, mês de agosto; Feira Regional da 15ª DIREC/Pau dos Ferros, mês de
setembro; e Feira de Ciências para todos no Semiárido Potiguar na UFERSA
Mossoró/RN, no mês de outubro. Tem como objetivo, a partir do
levantamento histórico, catalogação de documentos oficiais, entrevistas,
depoimentos, relatos e AUTODEFINIÇÃO das comunidades, oficializar o
pedido à Fundação Palmares para a certificação dessas comunidades como
remanescentes de Quilombos (BATISTA, 2018, p. 82).
O compromisso construído entre narrador e ouvinte, colaborador e pesquisador.
Nesse sentido, cumprimos o sábio conselho da autora Ecléa Bosi discutido no capítulo
metodológico e não arquivamos os relatos de vida que conhecemos ao longo do convívio com
muitos narradores, colaboradores e professores pesquisadores que nos conduziram até o
universo empírico das rezadeiras do Quati. Assim, o caminho de construção deste trabalho
164
seguiu ao lado do percurso para o reconhecimento das comunidades como remanescentes de
quilombos. Na esteira de Bosi, pudemos contribuir para a transformação do lugar onde
encontramos um ambiente propício à partilha de vidas, de suas histórias por meio das
narrativas. Além das rezadeiras entrevistadas neste trabalho, muitas outras vozes explícitas ou
subjacentes, do presente e do passado, que costuram a face afro-brasileira dos povos do Quati
e da Lagoa do Mato, vozes-memórias reelaboradas a partir da memória coletiva e da
transmissão oral dos saberes ancestrais. Nesse processo de reconhecimento que resultou na
autodefinição das comunidades enquanto remanescentes de quilombos:
Foram muitos anos para acontecer essa conquista e decisão por parte das
comunidades para a AUTODEFINIÇÃO, houve resistência, talvez medo, e
após o trabalho formalizado, passamos a contar com as parcerias que
contribuíram significativamente para o envio da documentação à Fundação
Palmares. São elas: Prefeitura Municipal, Associação Mãe Nila, Sec. De
Educação, Cultura e Desporto, Professor e Maestro Leandro Fernandes,
coordenador de Cultura Ozeano Paulino, Secretaria de Assistência Social,
pesquisador de Cultura Popular Ciro Leandro,e a brilhante contribuição da
professora Maria Carlos que orinetou o envio da documentação e
intermediou o diálogo entre nós e a Fundação Palmares, a comunidade
quilombola do Sobrado/ Portalegre-RN que nos recebeu e incentivou a
realização desta pesquisa, os habitantes das comunidades que colaborarm e
todas as etapas da pesquisa, levando em consideração que as pesquisadoras
são netas, bisnetas dos habitantes mais antigos das comunidades como
Mixica e Maria Nova. O grande Marco foi a reunião de AUTODEFINIÇÃO,
que aconteceu no mês de janeiro/2018, e em fevereiro/2018, foi enviada a
documentação (BATISTA, 2018, p. 84)
Na dinâmica da autodefinição, o mosaico de narrativas, das histórias de vida,
inscritas na teia do pertencimento enlaçam uma identidade comum. Ao lado dos narradores e
agentes da cultura popular como a falecida rezadeira Maria Nova tão citada no processo do
reconhecimento quilombola estão Naldi, Cosma e Lurdes cujas rezas e ritos de proteção e
benzimento não apenas guardam a memória do seu povo, mas movimentam as bobinas da
memória por meio da reelaboração do legado que lhes foi transmitido a partir das suas
histórias pessoais de vida sem que estas se afastem da história coletiva, pois os contextos
particulares se inscrevem no contexto social e comunitário. As rezas enquanto manifestações
da cultura popular afro-brasileira não se tratam de uma mera manutenção dos ritos e crenças
ancestrais, de um repasse estático que sobreviveu ao tempo, mas de uma constante atualização
dessa memória no cotidiano do presente, recebendo novos sentidos, sendo revestida de novos
significados devido aos novos contextos, como a mudança do lugar de morada que aconteceu
com as rezadeiras Naldi e Lurdes. As experiências de vida de cada colaboradora interferiram
165
na sua maneira de atuar no grupo, nas trocas simbólicas de representações entre elas e os
membros do seu grupo social.
As rezas das entrevistadas inscritas nas suas histórias de vida alinhavam suas
relações com o grupo a que pertencem e que propiciaram a descoberta e o desenvolvimento
do seu dom e da sua função social na comunidade. Em seus relatos de fala apresentados neste
trabalho, pudemos compreender a importância do grupo para a sua representação enquanto
rezadeira e narradora, da representação que constrói de si para o grupo e do grupo para si
numa troca baseada no exercício do dom e do serviço de rezadeira. É na memória ancestral e
atual do grupo reavivada e ressignificada na sua atuação como rezadeira que se elaborou e se
elabora enquanto processo dinâmico do viver a sua identidade de agente da cultura popular
afro-brasileira, adjetivo que traduz a mestiçagem cultural na esteira de Romero (1978) de que
a identidade brasileira formada pelo conjunto das heranaças culturais portuguesa, indígena e
africana. Retomando o pensamento de Romero, a pátria brasileira não ficou na palhoça do
negro abandonada nos areais da África, na oca perdida do índio e nem nos portugueses que
ficaram nas encostas do Alentejo. Essa pátria enquanto identidade e pertencimento é uma
pátria compósita, formada por muitos rizomas entrelaçados dessas três culturas na
compreensão de pensadores como Glissant, Deleuze e Guatarri. A identidade das rezadeiras é
tecida de rizomas católicos, indígenas e africanos, numa mistura que nos ajuda a compreender
a formação cultural do Brasil.
Porém nesse caldeirão de memórias, a face que mais se revela esá voltada para a
magia herdada tanto da África como dos indígenas e o conhecimento do uso das plantas
medicinais e sagradas para proteção e a cura de doenças que lhes foram transmitidos
memorialmente. Essa face é múltipla, é afro-ameríndia e afro-brasileira, rizomas que se
conectam a muitos pontos. O ramo de plantas usado pelas rezaderias é rizomático,
simbolicamente é originado de diversos galhos e raízes. As contas do seu rosário de proteção
também são rizomáticos. Metonímia dessa identidade multicultural, ele se ressignificou ao
longo da história desde o seu sentido islâmico trazido da África, ao significado da devoção a
Nossa Senhora que ancorou a resistência dos negros escravizados e a sua união em
irmandades, festas e manifestações culturais que reforçavam seus laços. Assim também se
construíram as histórias de vida das rezadeiras Naldi, Lurdes e Cosma de forma rizomática,
originando sua cultura de muitas raízes como também espalhando muitas outras.
As vozes das antigas rezadeiras do Quati e da Lagoa do Mato têm ecos nas vozes das
nossas colaboradoras. As rezas revestidas de suas histórias de vida e das histórias de vida dos
antepassados, das pessoas que lhes transmitiram os ensinamentos sobre o dom e a função das
166
rezas constroem na relação com os que procuram suas orações e com os outros membros da
comunidade. As rezas envolvidas nas narrativas de vida exercem a função coesiva da voz-
poética na compreensão de Zumthor (2001) que garante a sobrevivência do seu grupo.
Sobrevivência esta que alcança por meio da memória o Atlântico negro, a herança ancestral, o
diálogo com outras culturas em solo brasileiro, os bens simbólicos e culturais dos povos
afrodescendentes presentes na sua comunidade. Suas vozes e memórias conferem ao seu povo
o sentimento de identidade. No exercício da sua função de rezadeiras se atualizam as tradições
dos antepassados, ressignificam as memórias herdadas e transformadas por novos contextos,
redesenhando de forma dinâmica a face do seu grupo.
As histórias, os saberes populares, suas experiências de vida, os conselhos
constituem o bastidor dos relatos e as rezas e narrativas estão permeadas por suas histórias de
vida. O seu papel social de rezadeira se funde com a função de transmissoras da memória. E
função de lembrar que se apresenta no momento das rezas como práticas culturais
inseparáveis na elaboração das suas identidades. O papel de rezadeira posiciona as
entrevistadas no grupo, dando-lhe uma atmosfera quase sagrada na representação dessa
coletividade, detentora da memória e da dádiva divina, é a rezadeira quem socorre os aflitos
nos sofrimentos cotidianos e sem usufruir economicamente da sua prática. Essa dedicação de
uma vida inteira reforça o respeito e a consideração dos sujeitos por sua pessoa e é um dos
elementos mais significativos da identidade que comungam.
A representação das rezadeiras é um marco significativo para a elaboração da
identidade afro-brasileira do Quati e da Lagoa do Mato porque não só transmite a cultura e as
práticas dos seus antepassados como reavivam essa cultura como parte integrante do cotidiano
das comunidades. Ouvir suas vozes é poder compreender a dinâmica histórica e identitária
dos povos afrodescendentes não apenas do Quati, mas na história do Brasil em sua realidade
presente. As histórias de vida de Naldi, Lurdes e Cosma iluminam as histórias de vidas dos
membros do seu grupo social, dos seus antepassados, dos agentes populares do passado e do
presente, contribuindo para a construção do reconhecimento que resulta no sentimento de
identidade. Os relatos das colaboradoras trouxeram muitas vozes por elas representadas, como
Maria Nova, Dona Tomásia, dona Joaquina, Neném de Faba, Luzia e tantas rezadeiras e
narradores trazidos à tona na elaboração dos seus relatos como nomes fortes e influentes nas
suas histórias pessoais e na inserção destas na coletividade. As riquezas simbólicas que na
realidade dos povos do Quati cuja oralidade é uma forma de transmissão memorial alcançadas
pelo poder das vozes-memórias. As vozes das rezadeiras em suas práticas cotidianas, da reza,
do sábio conselho, do ensinamento de remédios caseiros, representam a esperança diante das
167
dificuldades, pois sua “voz que, quando proferida, dá vida a sonhos de um mundo melhor.
Poesia/profecia que é errância, é esperança, projeção de um futuro (e por que não de um
passado?) cujas glórias e riquezas o presente desconhece” (HÖFFLER, 2006, p. 31).
As glórias e as riquezas conhecidas no tempo futuro é a manifestação do
ensinamento, pois graças aos ensinamentos das rezadeiras mais velhas, como suas avós e tias,
as entrevistadas puderam ofertar às pessoas do seu grupo as benesses e riquezas espirituais, os
bens simbólicos considerados mais sagrados e valiosos para as comunidades populares que é
o exercício do dom, da dádiva divina. Também a transmissão da memória realizada pelas
nossas colaboradoras projetam um futuro para os membros do seu grupo, para as
comunidades do Quati e da Lagoa do Mato. Narradoras por excelência na compreensão de
Benjamim (1993), elas transformam suas vidas em cultura, rezam e aconselham a partir de
suas experiências de vida, sabem o rito e a palavra adequada às necessidades da sua gente,
pois são exímias conhecedoras das suas vidas pelo convívio social e comunitário e possuem
experiências comuns. Como muitas narrativas projetaram o reconhecimento quilombola, as
histórias de vida das rezadeiras memorizadas neste trabalho não guardam simplesmente a
história e o passado das comunidades, mas narram sua cultura viva, atual e atuante,
mostrando-nos a capacidade das culturas populares de se reinventarem ao longo do
surgimento de novos contextos de vida. Como riqueza maior, estas histórias costuram e
alinhavam o seu pertencimento à comunidade afro-brasileira, a uma identidade que envolve
um sentimento local, regional e nacional.
Os relatos de vida das rezadeiras nos oportunizaram compreender a inserção de suas
memórias e identidades individuais no seio de uma coletividade. A comunhão entre as
rezadeiras e as pessoas atendidas dá sentido a sua prática. Suas narrativas de vida nos foram
oferecidas como dádivas a quem se confia e através desse tipo de pesquisa não nos limitamos
a oferecer-lhes o lugar de objeto, mas são elas sujeitas ativas e atuantes deste trabalho que nos
presentearam com suas memórias. Assim, segundo Bosi (2009, p. 25). “Recebemos do
entrevistado uma coisa preciosíssima: ele nos dá alento, seu tempo de vida”.
Como cultura de resistência, elas cultuam suas crenças, seus ancestrais, apesar da
imposição da cultura dos dominantes, marca revelada em suas falas pelo silêncio, pelo
sincretismo religioso, pelo valor dado aos ensinamentos recebidos. É o seu olhar sobre a
memória coletiva que este pretendeu mostrar, o valor das rezas e das narrativas de memória
para as rezadeiras, para o seu povo e para os estudos das memórias, da cultura popular e das
identidades, um valor historicamente negado e silenciado por uma sociedade muitas vezes
ainda preconceituosa e permeada do ranço racista herdada da colonização e da escravidão,
168
como vimos nos exemplo das narrativas memorialistas escritas pelo viés da casa grande que
foram confrontadas nesta pesquisa com as histórias apresentadas pelas rezadeiras, estas
alicerçadas em seu lugar social na comunidade.
As vozes das rezadeiras, ao invés do silêncio e da imagem folclorizada ou
estereotipada dos agentes populares afrodescendentes, falam sobre si, suas histórias e as
histórias do seu povo. Num trabalho costurado a muitas mãos, numa melodia de muitas vozes,
a nossa tentativa de contribuição foi desenvolver nas comunidades de Quati e da Lagoa do
Mato o sentimento de pertencimento e valoração da sua cultura por meio de uma futura leitura
e conhecimento sobre as rezadeiras e a dinâmica cultural da comunidade. Nosso trabalho pode
servir também de referência para futuros trabalhos sobre a comunidade e os agentes das
culturas populares afro-brasileiras, pois ainda há muito o que se estudar sobre a contribuição
desses povos para a identidade nacional.
As rezas são as suas vidas. O universo da oralidade em que as rezadeiras foram
nascidas e educadas, as rezas aprendidas, as histórias dos sujeitos marcantes do Quati e da
Lagoa do Mato, o convívio social com a trama da cultura popular são a matéria-prima de suas
práticas culturais e de suas vidas. Praticantes e transmissoras da sua cultura, identificadas com
as tradições ancestrais, elas constroem o laço identitário com a sua comunidade
afrodescendente, com a cultura da região e com a história do nosso país cuja mestiçagem
cultural é um traço fundamental.
169
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176
ANEXO 1 - Convenções utilizadas para a transcrição:
CONVENÇÕES UTILIZADAS PARA A TRANSCRIÇÃO:
((anotações entre parênteses duplos)) Anotações da entrevistadora que indicam
gestos, comportamentos, referências e
contextos situacionais para uma melhor
compreensão do diálogo.
... Pausas breves
... ... Cortes na seqüência da narrativa
Trechos incompreensíveis que não
puderam ser transcritos.
(SILÊNCIO) Grandes pausas, que indicam reflexão e
momentos de hesitação.
Texto em itálico Marcações para, declamações e rezas.
/... Indicadores de corte na narrativa
♫ e texto em itálico Marcações dos momentos em que D.
Maria José canta.
Algumas informações necessárias:
1. As falas de outras pessoas no discurso das rezadeiras são representadas
entre aspas, mesmo quando antecedidas de verbo de elocução. Esse recurso foi
utilizado para diferenciar essas falas da fala de nossa colaboradora em situações
de discurso reportado.
2. Na narrativa, foram mantidas as seqüências conforme a variedade lingüística
das colaboradoras.
3. As marcas regionais foram conservadas por acreditarmos que personificam o
discurso narrativo.
4. O uso de pontos de interrogação e de exclamação juntos identifica trechos no
qual a pergunta é enfática ou retórica.
[?]
177
ANEXO 2 - Transcrição das entrevistas realizadas
ENTREVISTAS COM A REZADEIRA ANA NALDIR
CIRO LEANDRO COSTA DA FONSECA
PAU DOS FERROS- RN
Entrevista 1
Entrevista realizada em 09 de novembro de 2015, na residência de dona Ana Naldir, na cidade
de Pau dos Ferros.
Cerca das 7 horas chegamos eu e meu amigo Filipe Abrantes Fernandes Cavalcanti para a
entrevista com a reazderia dona Naldir, conforme combinamos anteriormente. Por problemas
técnicos com a minha filmadora, a entevisa foi gravada na câmera do celular de Felipe e
algumas perguntas feitas anteriromente na gravação perdida forma repetidas, pois a entrevista
foi reiniciada. Como Felipe foi vizinho de dona Naldir na cidade de Luís Gomes desde que
nasceu, ela ficou à vontade para relatar a sua vida.
Entrevista - Naldi.
Ciro: Então, a senhora aprendeu ... as rezas com?
Naldi: Minha vó, Tomásia.
Ciro: Sim, pode falar um pouquinho dela.
Naldi: Ela rezava. Ela me ensinava assim, pra dor de dente, ela começou me insinar pra dor
dente. se você pegasse um peso muito pesado e sentisse uma dor assim (sinaliza para o peito),
ela me ensinava como rezava sabe?. Ela me insinava, e depois Ciro que ela me ensinou, que
que dizer como era pra fazer, é é, eu vivia assim eeu, de vida eu num fazia como eraa
cumprino eu fiquei um pouco perturbada, eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade. Ciro
eu nããão dormia direito, quando ia dormir era vendo muito santo, muita mata verde ... Muito
santo. Eu andando nar aquela mata bem estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro
mato bem verdim e santo. As imagens que eu encontrava mais era ... ... era as imagens de São
José, São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição. Em cada passo que eu
dava que encontrava as imagens no chão eu já reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...
Ciro: A senhora via no chão né? Mesmo sem a imagem tá lá.
Naldi: No chão.
Ciro: Não era de gesso não, né?
Naldi: Não ... Pois, Ciro, ali eu me acordava e ficava procurando ... Ia dormir de novo Ciro e
começava. Aquelas rodinha, Ciro, assim, como cê pega uma corrente. Quando você pega uma
corrente (mostra no terço que ela usava no pescoço) que tem essas … ..., aí começava bem
pequenininha, aquelas correntinha e de repente se formava gran, desse tamanho (sinaliza com
as mãos). Ali eu tomava aquele susto eu conseguia dormir ... Então foi difícil ... Aí a minha
mãe, me levou na casa dum pessoal, eeu nem hoje sei quem era e quem sabia. Um homem
rezador que tinha era foi longe numa cidade fora de Luís Gomes uma cidadezinha fora de
Luís Gomes um sítio. Aí meu irmão contou pra eles que eu vivia assim que eu não dormia
direito, e tudo, aí o homem foi e disse que eu era méida de nascença, eu já tinha o dom de
rezar, que eu já nasci com esse dom. Então eu como num tava desenvolvenu, então por isso aí
que eu tava ficando perturbada.
Ciro: A senhora tava com treze anos ainda?
178
Naldi: Sim. Aí eu tinha que. Aí me ensinou, como era que eu fizesse, esse homem falou
assim: “Vou acabar de lhe ensinar o que você tá na metade. Você assista nove missa, nove
comunhão”, você vai e ensinou pra mim rezar, seis horas da manhã, doze horas do dia e seis
da noite. Nove missa, e essas nove penitência pra eu fazer. No sábado eu vesti branco, no
sábado, e eu quando passasse esses nove dias de penitência como eu tava fazeno, eu nunca
podia negar a minha oração pra rezar em ninguém. Ciro depois que eu fiz isso a minha irmã
que morava aqui em Pau do Serro, trabalhava na casa de Pedo Damião e eu vim pra aí , eu já
viúva, já foi eu viúva, tá. Aí eu assisti tudo as missa aqui e as nove comunhão, nove dias e
cumpri. Daí pra cá, desse tempo pra cá só encontrei felicidade na minha vida. Durmo bem,
agora só existe uma coisa Ciro, se eu disser “Ciro vou lá na tua casa rezar em você” se eu num
for eu não durmo direito. Éé quando vô durmir é sonhano rezano em você, aparece as pessoa
pra mim, umas pessoa éé tem uma mulher que aparece sempre pra mim. ... É uma jove,
sempre eu vejo Ciro essa jove, ela vem quando chega diz assim pra mim eu dusmino, eu
dusmino eu ecuto: “Naldi eu cheguei”, aí eu rá sei que, é porque eu fiquei deveno oração
aquela pessoa e eu num fiz. Mas tirante dissaí ... tô muito bem. E sou muito feliz quando
chega uma pessoa na minha casa pra eu rezar. Sou muito feliz Ciro. Realmente a minha linha
é branca de pra criança, a minha linha é branca é de criança mais eu rezo em todo mundo,
todo tipo mermo ... Se você perder um objeto eu tenho minha oração pra você encontrar... tá;
se você quiser conseguir uma coisa assim, pedir uma ajuda a mim eu posso também com as
oração posso rezar e com a fé minha e a sua você consegue. É só você ter fé em Deus e
confiar e acreditar naquela oração que eu tô fazeno.
Ciro: A mãe Tomásia ela rezava nas outras pessoas também assim como a senhora?
Naldi: Rezava, rezava.
Ciro: Era é rezadeira.
Naldi: Mãe véa era. Só que minha vó rezava, mas não era como hoje que tinha; sabe. Quando
ela sabia que tinha uma pessoa necissan necessitando de uma reza, assim, que tava com uma
grande dor de cabeça, que tava assim vomitando e tava com dor, ela ia lá e rezava. Sem
ninguém mandar, sem ninguém chamar, ela ia lá e rezava.
Ciro: Rezava na pessoa sem a pessoa dizer né?
Naldi: Sim. Sem a pessoa chamar ela ia lá e rezava. E ela pediu muito a mim “Minha fia você
nunca se negue você fazer a sua oração a ninguém, num, seja quem for lhe procurar.”
Ciro: Com quem ela aprendeu ela num dizia a senhora não. Aprendeu assim nas casas que ela
convivia né?
Naldi: Éé, ela, elaa aprendeu aa rezar, minha vó dizia que foi com quem ela foi criada com
quem ela conviveu só Ciro que eu não o nome dessas pessoas ela disse, mas não lembro mais.
Ciro: E foi criada lá na...
Naldi: Baixa Grande.
Ciro: Na Baixa Grande, né?
Naldi: Na Baixa grande. Mamãe é da Baixa Grande e papai é da Paraíba.
Ciro: E assim, Dona Tomásia, o marido dela, senhora sabia de onde era?...
Naldi: seei.
Ciro: o marido de Dona Tomásia era da Baixa Grande também?
Naldi: Era, era, é da Baixa Grande também. Que era Raimundo Bode ... Raimun, éé era
conhecido por Raimundo Bode, que era o pai de Vicente Bode, éé era o pai de, de, de muita
gente que que conviveu por aqui, sabe. E o pai de minha vó, quando ele morreu ele é
enterrado, em Zé da Penha... enterrado em Zé da Penha (diz bem baixo)
...
Ciro: Aí como foi, a senhora pode repetir a história lá da roça que ela.?
Naldi: Sim. Pode ... pode, posso repetir. Ela era uma moça assim, já, ela disse que já tinha
bem uns trinta ano já ela disse, e era muito sofrido de roça, ela e Quitéria. E ela falou a mim e
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ela sempre dizia assim “minha fia quando for pedir as coisas a Deus cê saba como peça saba
como vai pedir.” Aí lá eu dizia assim “Por que mãe véa, a sinhora diz isso?” “Minha fia
porque eu vou contar a você. Eu tava numa roça brocano, assim era uma hora muito quente,
quando eu danei a foice no no pau, o pau vei e bateu no meu oio” (coloca a mão no olho). Ela
disse e foi uma dor muito grande. Ela foi e disse que olhou pro céu e disse que só queria que
Deus desse um marido pra ela nem que fosse pra dar uma saia pra ela ... Entendeu? Devido a
dor ser grande ... ... Aí ela disse que com poucos tempos apareceu esse viúvo que era por
nome Raimundo Bode ... Aí ela ficou com ele, mas com, só ficou nove mês com ele.
Ciro: O tempo de ter a mãe da senhora né?.
Naldi: Então quando ele, quando ele morreu ela ficou grávida de mamãe. Aí quando ela teve
mamãe, passou pra Quitéria que era irmã de mãe véa, e minha vó vivia no mundo
trabalhando.
Ciro: Então Quitéria era irmã?
Naldi: Quitéria era ...
Ciro: era tia da senhora?
Naldi: Era. Irmã de mãe véa.
Ciro: Sim Quitéria era irmã de Dona Tomásia né?.
Naldi: Era. Seno tia de mamãe.
Ciro: Também morava lá por seu Gaudêncio né, Dona Quitéria?
Naldi: Morava. Morava, porque quando saíram da Baxa Grande, divido esse movimento ela
me contava de Chico Preto, vinheram pra Luís Gomes.
Ciro: E Chico Preto ele quis matar a vó da senhora né?
Naldi: É e Chico Preto era um homem muito valente. Disse que ele, é aquele tempo lá disse
que era muito valente, maldoso, matava as pessoa, então ele fez uma cruz pra minha vó e
ainda cavou a cova pra matar minha avó.
Ciro: Só por perversidade?
Naldi: Por perversidade. Aí nesse tempo acho que era uma união era tão grande naquele
tempo lá que avisaram lá a minha vó e de lá foi onde; vinheram de lá pra cá. Pá resolver.
Ciro: Aí assim a senhora começou a rezar ainda jovem, né? Solteira.
Naldi: Solteira ainda. Solteira ainda.
Ciro: E a senhora morava onde nesse tempo?
Naldi: Nós morava, depois da Lagoa de Cima ... depois da Lagoa de cima, eu não sei se você
ouviu falar naquele pessoal de Bone, compade Bone, éé o finado Chaga.
Ciro: Ouvi falar lá do Alto dos Cândidos, né?
Naldi: Que era o pai de João de Chaga, não, você passano a Lagoa de Cima, tem o açude, aí
tem, passou do açude tem as casa, a casa que morava, que num foi meu pai morava; onde pai
morou trinta ano nesse canto. ... ... Seu Gaudêncio.
Ciro: E assim lá a senhora já atendia as pessoas?
Naldi: Já. Já. É aquele pessoal ali de Compade Bone, éé aquele pessoal ali de Judite, éé do
povo de Seu Nogueira, eraa ali o pessoal de Dona Zefinha de Seu Mané nesse tem, era o
pessoal que era o pessoal mais próximo e quando minha mãe ficou avisando às pessoas que eu
nasci com aquele dom e eeu oo, o homem falou que eu ia ficar feliz, eu comecei a rezano
pessoal. Então era o pessoal de cumpade Bone, Seu Nogueira, o pessoal de Dona Zefinha ali
de Seu Mané, era o pessoal que morava mais próximo de nós era esse povo que nóis tinha
mais contato. Era o pessoal de João Ismael, ali depois onde hoje é de Aldo, sabe? era as
pessoa que a gente tinha contato, que morava perto e.
Ciro: E assim quando a senhora casou continuou atendendo em casa?
Naldi: Continuei atendenu, em casa. É, quando eu casei, é, meu marido se chamava Damião
que ele era fi daquela finada Antônia, irmã daquela Nem. Então ele era trabalhador trabalhava
com o pessoal de Seu Pretim, no Leite trabalhava lá em Seu Pretim lá no leite; depois da da
180
Palmeira descenu cê sabe o que é o leite né lá? Era lá onde ele trabalhava, e sempre ele fa, as
pessoa perguntava e sempre ele falava pras pessoa que eu rezava, aí, por ali as pessoas se
chegava minha casa pa rezar. ... Eee eu acho Ciro que eu comecei a rezar eu tinha mais ou
menos uma faixa uns treze, uns doze ano por aí, e já hoje eu conto sessenta e três anos. Graças
a Deus.
Ciro: De reza quase cinquenta né?
Naldi: É.
Ciro: E assim a senhora teve contato, além da avó da senhora, com outras rezadeiras?
Frequentou?
Naldi: Tive aqui em Pau do Serro, que foi o tempo que minha irmã morava aqui e eu tive
contato. Essa mulher, acho que, acho que muita gente lá em Luís Gomes conheceu ela. Era
uma senhora que morava com o pade Caminha, uma senhora já bem de idade, bem escura
assim que nem eu. Ela também me ensinou muita coisa.
Ciro: E assim na infância a senhora teve contato assim com o pessoal do Quati?
Naldi: Tive. Tive muito contato e era aquele eu pequena mas a minha irmã, Francisca, casou
com Vicente Gido e tinha aquele pessoal de Pedo Vintura, então minha mãe, meu, andarra
muito pra lá, tinha muito contato divido minha mãe era, que tinha era chamava assim era
Luzia, éé´muita gente ali que me, que realmente ainda é famia de Mãe Véa, aquele pessoal
dos Vintura ali inda é famia de minha vó Tomáza. Minha mãe tinha muito contato éé Faba,
era Luzia, era Brasilina, esse pessoal tudo tinha contato.
Ciro: a senhora conheceu ele?
Naldi: Conheci tudim, conheci tudim; só é tem as pessoa que eu num conheci que foi Mané
Gido que era o sogro da minha irmã, o pai de Sanzi, Mané Gido eu conheci, mais Antônia de
Mané Gido, a mãe de Vicente Gido, Chico Gido eu conheci, dona Antônia.
Ciro: E assim a senhora tem lembrança das rezadeiras lá do Quati desse tempo? Quem eram?
Naldi: Tenho lembrança não.
Ciro: Lembra não?
Naldi: Não. Não tenho lembrança. Sei que lá tinha
Ciro: lá já tinha né?
Naldi: lá já tinha, mais nunca cheguei a ter contato com elas não.
...
Ciro: E assim ao longo da vida da senhora, a senhora foi sempre aprendendo mais, né?
Naldi: Sempre aprendendo mais, sempre aprendendo mais. E sempre aprendendo mais que
cada vez que eu vinha praqui a Pau do Serro, eu, que eu encontrava essa encontrava mulher,
que era muito rezadeira aqui, sempre ela aumentava dizia mais ainda a sabedoria dela mais
ainda que ela tinha, ela já passara pra mim. Ciro, eu fico éé, é coisa de Deus, que Ciro, eu
decorar tudo na cabeça, e eu hoje num esquecer um momento, das orações que eu aprendi até
hoje. Hoje, o pessoal, a mioria eu fico pensando, meu Deus como é que uma pessoa pega um
ca,um livro uma coisa pra ler, vai se vai, vai pra novena tem que tá lendo, e eu não preciso
nada disso; nunca precisei, Ciro. É coisa de Deus. A minha só na cabeça. Pergunte uma
oração que minha vó me ensinou eu pequena que eu nunca me esqueci, de jeito ninhum. Só,
Ciro, uma coisa ela me disse, Naldi num ensine suas oração pra ninguém não, porque é muito
ruim, porque quebra as forças da oração. Pode ensinar, Ciro (faz gesto de não com o dedo).
Ciro: Que assim porque eu já tinha ouvido falar que mulher não passava pra mulher porque
quebrava as forças. Mas a senhora aprendeu com a avó da senhora e não quebrou as forças
dela né?
Naldi: Não, porque ali já foi ela quem já passou pra mim. Que ela não rezava mais aí foi uma
passagem.
Ciro: Siiim ela não ia mais rezar. E assim da família ela só passou pra senhora?
181
Naldi: Só, só passou pra mim. Agora tem meu irmão Zé Pretim, ele reza mas eu não sei a
história dele. Éé não sei como, de onde veio e como foi, que que meu irmão Zé Pretim, que
ele morava (…) João Rosa e hoje ele mora cá na rua, construiu uma casa. Então ele reza mas a
história dele eu não sei, como foi.
Ciro: Como é a reza, é assim parecida com a da senhora, é não?
Naldi: É não. Eu num vô dizer que é porque eu não, eu, a dele o povo vai lá na casa dele
procura rezar mais eu não sei contar a história dele, eu sei da minha, a dele eu não sei como
foi que surgiu porque foi de pequena né, já nasci com esse dom, eu foi de pequena e meu
irmão eu conheci ele rezando agora com poucos tempos, poucos tempos.
Ciro: Sim, não é de pequeno?
Naldi: Não, não. Éé, foi de um tempo desse pra cá.
Ciro: E assim a avó da senhora foi a transmissão, assim ela ensinou pra deixar pra alguém pra
quando ela partisse, né?
Naldi: Passou pra mim, ela disse “minha filha, eu não vou mais rezar em ninguém, que já tô
de idade, vou passar pra você, tudo o que eu sei das minhas oração eu vou passar pra você”. E
era tão incrívi, éé Ciro, que quando ela me ensinava hoje, amanhã ela ia perguntar, mandar eu
rezar, do mesmo jeito eu num faiava um, nem…
Ciro: Já tava na memória.
Naldi: Já tava na mimória. Tarra na mimória. Agradeço muito a Deus e amo ela, e peço
sempre pra ela mim ajudar cada vez mais. Peço sempre a ela, todo dia falo com ela.”Mãe véa
me ajude cada vez mais, a sinhora me ajudou, continue me ajudando na graça de Deus... pois
é Ciro
Ciro: Só voltando aqui, os pais da senhora, o pai da senhora era da Paraíba?
Naldi: Era. Era. Papai é nasci, era nascido, natural da Paraíba. Ele nasceu na Capivara,
manicípio de Uiraúna.
Ciro: Aí o nome dele completo?
Naldi: Siverino Izidóro Ferreira de Lima. E o pai dele era Izidóro, agora o sobrenome dele é
que eu não sei, Ciro.
Ciro: E a mãe da senhora é da Baixa Grande né?
Naldi: É.
Ciro: Nome completo?
Naldi: É, Maria Francisca da Conceição.
...
Ciro: E ela assim, a irmandade dela era do Quati né, porque o pai dela o pai dela já era viúvo.
A irmandade da mãe da senhora né, irmã de Vicente Bode né?.
Naldi: É.
Ciro: Vicente Bode né?.
Naldi: Pronto, era Vicente Bode, era era era irmão de mamãe porque é assim, ele era viúvo, já
tinha ... ... com muito filho e com mamãe mermo, só foi, e com minha vó mermo só foi
mamãe. Só mamãe só. ... Eu acredito que
Ciro: De novo sobre a vó da senhora, pode dizer Felipe? Sobre avó da senhora que a senhora
disse que aprendeu muita coisa.
Naldi: É aprendi muita coisa com minha avó, experiência de, assim, de quando eu não tivesse
nada na minha casa, assim, de alimento pra mim nem pra meus filhos, eu não falasse, não
relatasse pra ninguém, nem se lastimasse. Eu falasse pra Deus e pedisse a Deus que no outro
dia aparecia. Aí Ciro eu ficava assim em dúvida, “Mãe Véa como é que a senhora diz que eu
não diga pra ninguém, só diga pra Deus, e como é que vai chegar na minha casa?” Ela disse “
ói minha fia, ele mostra um meio de uma uma pessoa aparecer e lhe ajudar.” Pois num é
mermo, Ciro! Tu acredita que é desse jeito?
Ciro: E até hoje a senhora faz?
182
Naldi: Até hoje, Ciro eu digo a tu, ói tem dia que eu tô necessitando muito duma coisa aqui
em casa eu num falo pra ninguém. De madrugada, quatro horas da manhã eu me acordo e
rezo. E converso com Deus o que tá faltando, que tá necessitando, Ciro ói aparece uma pessoa
que eu num tô nem imaginando; “Naldi eu tenho dez reais pra tu” “Naldi eu tenho vinte aqui
reais pra tu” “Naldi eu tenho aqui uma garrafa de feijão pra tu”. E aparece.
Ciro: Deus sempre mostra.
Naldi: Deus sempre mostra.
Ciro: E assim quem quem descobre o dom, o dom é gratuito, a avó da senhora nunca cobrou
pelas rezas?
Naldi: Não, nunca cobrou Ciro. E uma coisa eu te digo, isso ela dizia “minha fia não se negue
sua oração pra ninguém e nem cobre de ninguém nada, porque aí foi um dom que Deus lhe
deu. Quando Deus andou no mundo foi rezando e curando viu? Nunca cobrou nada de
ninguém. Aí é assim, Ciro, as pessoa me procura pra fazer as oração eu faço “Naldi, eu
alcancei oh muié obrigado, você rezou, fez oração pra mim agora alcancei o que eu queria, é
quanto?” “Mulher, né nada. Porque ninguém vende as palavras de Deus por nada nesse
mundo. (... ... ) Pessoa assim, uma pessoa me dá dez reais, me dá quinze reais, porque eu
também eu gosto muito de ter minha velinha em casa, Ciro porque assim ciro, se eu rezar pra
você, ali eu gosto de ter uma velinha, acender pa seu anjo de guarda lhe proteger sabe? E aí,
mais deu cobrar tanto, isso eu não faço não, eu num tenho isso não.
Ciro: E assim, as principais devoções da senhora hoje? Os principais santos que a senhora
reza?
Naldi: Os santos? As imagens que você fala? Os santos?
Ciro: Os santos.
Naldi: Éé, é São José, que é meu protetor, que me protege de todas as ... ... . É São José,
Senhora Aparecida e Nossa Sinhora da Conceição. É os santos mais de minha devoção, tem
mais santos mas o santo do meu dia mesmo é São José. É um santo que toda hora, eu fecho os
olhos e tô vendo ele, ele me ama e eu amo ele toda hora porque tudo o que eu peço, Ciro vou
contar o que aconteceu comigo. Eu me achei numa situação muito difícil lá em Luís Gomes e
um filho muito doente em São Paulo, pricisando de mim ajudar e querendo vir pra minha
casa. Aí, Ciro, imaginei assim “eu vou na prefeitura pedir uma ajuda pra mim mandar meu
filho vim embora. ... Ciro, eu fui lá na prefeitura, num tinha ninguém. Cheguei no “Dubas”
viu? o prefeito tava no Dubas. Eu entrei lá aí contei minha situação. Ele falou assim, o
prefeito falou assim que não podia me ajudar no momento e que a prefeitura tava sem
condições de ajudar nessa situação aí. Ciro, ele me deixou muuuito triste. “Meu Deus o quê
que eu vou fazer, pa meu filho chegar até aqui?” Ciro eu fui lá po meu quarto, me ajoelhei,
rezei e pedi a Deus e abaixo de Deus, Nossa Senhora, o santo do meu dia foi São José. Me
ajoelhei lá no meu quarto, rezei e pedi. Pois, Ciro eu digo a você, eu digo a você que apareceu
umas muié lá em casa e me ajudaram. Me dero o dinheiro da passagem, me ajudaru na
passagem, fui buscar meu filho, quando eu cheguei com ele em Luís Gomes, elas ajudaro,
procurau a medicação, procuraro isso e aquilo, pa meu fi e ele ficou bonzinho e voltou pra lá.
Ciro: Aí a senhora fala do Santo do guia, um guia espiritual?
Naldi: São José, que é o santo do meu guia, de todas as horas.
Ciro: E o guia que a gente fala, é o anjo? O que é o guia?
Naldi: O guia, deixe eu dizer a você, é a força divina. É São José, porque eu peço a ele, com
as forças divinas dele me mostra. É São José mesmo.
Ciro: O próprio, o guia é o próprio?.
Naldi: É, Ele é meu guia de todas as horas da minha vida.
Ciro: E o santo que a senhora via quando tava…já eram eles, que quando a senhora tava pra
rezar, fechava o olho e via?
Naldi: Era eles...São José, São Francisco, Sinhora da Conceição e Sinhora Aparecida.
183
Ciro: A senhora via assim, andando e?
Naldi: Eu andano e contano essas images. Ciro e era um canto tão lindo mesmo Ciro, um
canto tão bonito, tão verde. Eu andava assim e era bem estreitim, as varedinha era tão
estreito, que eu andava assim, todo espaço que eu andava encontrava as imagens ... E eu não
sabia porque (… ...) depois foi quando eu fui descobrir, porque eu já tinha nascido com aquele
dom, de rezar, e então tava precisando de me desenvolver e ajudar as pessoas nas minhas
orações. Ajudar as pessoas. ... E eu me sinto muito feliz.
Ciro: E assim , com o tempo que a senhora além dos santos a senhora foi tendo contato
também contato com os Orixás né? Com a religião mais…
Naldi: Hurumm. Foi, foi.
Ciro: De raízes mais africanas né?
Naldi: Foi, foi.
Ciro: Mas isso aí já foi bem na frente?
Naldi: Já. Foi bem, bem na frente já. Foi bem já bem avançado, bem na frente, bem na frente.
... Pois foi, Ciro foi no início não.
Ciro: Não foi no início não, né? Na descoberta do dom não?.
Naldi: Não. Foi depois com um tempo que eu fui vendo, que eu também tinha que, sabe?
Outras pessoas do bem né? Que viviam nesse mundo fazendo o bem e ajudando as pessoas,
então essas, também me aparecero pra que eu também pudesse lutar com eles também.
Ciro: Desenvolver também né?
Naldi: Desenvolver também.
Ciro: A senhora pode dizer quem são os Orixás da Senhora?
Naldi: Não, não. Num pode dizer.
Ciro: Não pode dizer, né?
Naldi: Pois é Ciro e eu agradeço a Deus todo dia e pelos momento bom que Deus me deu e tá
me dando até hoje. Agradeço muito. Ciro, lá em Luís Gomes, eu chego lá me Luís Gomes,
assim, as pessoas que acreditam muito em Deus e confia muito nas orações. Quando chego lá
em Luís Gomes o pessoal já com aquela fé que tem em Deus e que acredita nas orações, eu
chego lá ói se eu passar dois dias lá rezando no povo eu não dou conta. Não dou conta. Digo a
você. Ói fui sábado, cheguei lá de tarde, fiquei a tarde todinha rezando nas pessoas. as pessoas
que sabiam que eu tava em Luís Gomes, eu tava numa casa “Naldi cê tá onde? Dá pra você
vir aqui rezar em mim?” eu tava naquela casa rezano, outa pessoa ligava e então tirei o dia
assim, sabe? Vim findá nas Casinha ... ...
Ciro: Naldi, e o que o rosário representa pra senhora? Esse que a senhora usa. Eu sempre vejo
a senhora e muitas outras rezadeiras com o rosário.
Naldi: Ééé. Esse rosário, eu acredito em Deus que ele é minha proteção tá? Assim, pra
proteger né? Assim pra porque a pessoa que reza, Ciro, ele reza as pessoas também são muito
perseguida, sabia? Ele também é perseguido. Por mais que você procure fazer o bem, Ciro,
por mais que você procure ajudar, mais inziste sempre a perseguição. E esse rosário, eu
acredito que ele me guarda sabe? Ele me me, assim eu me ... ... esse rosário no meu pescoço
eu tô me achando já, comé que diz? Protegida, sabe?.
Ciro: E a avó da senhora, usava também?
Naldi: Ah ela morreu com rosário. Morreu com rosário. Minha vó morreu com o rosário.
Ciro: E as outras rezadeiras que as senhora conheceu, todas elas usavam?
Naldi: Quando ela achava que ia cair alguma coisa ela só pegava no rosário e dizia aquelas
palavras aí guardava o rosário (pega no rosário e coloca dentro do vestido), minha vó era
assim. Pois é, Tomasa, foi quem criou aquele pessoal de Sr. Gaudêncio, a primeira família
todinha foi minha vó e a segunda família. ...
Ciro: Morreu lá na casa de Seu Gaudêncio?
184
Naldi: Era cozinheira, minha vó era cozinheira, era era conhecida em festa, quando havia um
casamento, era convidada pra fazer as festa, cozinhava muito bem. No tempo das festa de
Sinhora Santana, na casa de Dona Chiquita, ela tirava os nove dias de festa lá cozinhando.
Vinha muita gente de fora, de Natal, de fora aquele pessoal, e ela e Bernardina era quem
ficava lá os tempo todo cozinhando. E vó cozinhava muito bem, fazia lombo, era muito
gostosa a comida dela. Realmente, Ciro, eu digo a você outra vez, eu aprendi muitas coisas
que hoje sei, agradeço a Deus e a minha vó, Tomasa.
Ciro: Ela morreu já idosa?
Naldi: Mãe véa morreu, Ciro, eu ia te falar e você falou. Mãe véa morreu, eu acho que mãe
véa tinha uns 90 anos. Sabe porque esse tempo nem minha mãe tinha comé que diz; nesse
tempo aí atrás, Ciro, ninguém ligava de ter documento, de fazer documento, essas corra né?
Então quando minha vó quando morreu, minha vó tinha; eu acho que uns 90 anos. Nem
minha mãe nem meu pai, ééé sabia, ao certo, da idade de mãe véa.
Ciro: Ela faleceu aonde?
Naldi: Ela faleceu na minha casa. Eu morava comigo. Que quando eu fiquei viúva Ciro, eu
casei no primeiro casamento, que eu fiquei viúva, ela não quis morar com mamãe nem quis
morar só, escolheu pá morar mais eu. Eu morava na rua, naquela casa que hoje é de Guerreiro,
eu morava com ela que, ho aquela casa é de meu pai, aí nesse tempo eu não tinha casa,
moradia, fui morar no sítio na casinha de Mundico, no beiço da estrada minha vó morreu ali.
Tomáza morreu ali.
Ciro: Qual era essa casa de Mundico hoje no sítio Oliveira?
Naldi: Desceu a Lagoa de Cima, tem uma casinha assim de lado, era onde eu morava e onde
ela morava comigo. Você sabe onde é.
Ciro: sei, sei
Naldi: Antes de chegar lá em Zezito, uma casinha assim po lado do nascente (faz gesto com a
mão).
Ciro: Era aquela né?
Naldi: É aquela casinha que existe lá hoje, que eu morava com ela, onde ela morreu. Pois é,
foi lá.
Entrevista 2
Entrevista realizada em 29 de fevereiro de 2016, no Sítio Lagoa do Mato em Luís Gomes.
Já tendo avisado a dona Lurdes dias antes, cheguamos à tarde do dia 29 de fevereiro de 2016
em sua residência eu e meu amigo Francisco George da Cruz, morador do sítio Quati, também
conhecido de dona Lurdes desde a infância, pois a mesma foi rezadeira da sua família, o que
não lhe causaria constrangimento e que foi pedido permissão dias antes quando agendamos a
entrevista. Confrme combinamos George realizaria a filmagem enquanto eu entrevistaria com
dona Lurdes. Primeiramente testamos a minha outra filmadora, mas a qualidade do vídeo e do
áudio não estava satisfatória. Então realizamos a gravação em vídeo do celular de George.
Como na entrevista com dona Naldi, a conversa ocorreu de forma espontânea. A gravação da
entrevista depois me foi entregue por Jorge Cruz, irmão de George, que a coletou do celular.
Entrevista - Lurdes
Ciro: Lurdes aí a senhora disse que a, cumé... aprendeu as rezas com um baiano, como a
senhora conheceu esse baiano, foi aqui?
Lurdes: Eu tava lá em casa aí ele passou... lá em casa, eu só sei que ele disse que era cigano
né?Aí ele pidiu irmola, aí Pedo disse que não tinha irmola pa vagabundo, aí ele disse, eu tava
deitada e ele disse é isso mermo.
185
Ciro: A senhora morava aonde?
Lurdes: Na Paraíba
Ciro: Paraíba né?
Lurdes: Morei doze ano lá ainda né? Aí ele disse assim , ó você disse que não tem irmola pa
dá e se eu disser que tua mulé ta aí em estado como em cima duma cama e tem remédio pra
ela, encontrou remédio pra ela, vou ensinar remédio pra ela , ele te disse, o que é o remédio,
ele disse pa ameba, eu vou ensinar uu... criolim né? Criulim, muia um cordãozim (gesto
demonstrativo com as mãos) e bota dento dagua e vai pingando num copo d’água aí, o cordão
moiado de criolino aí moia na agua e pinga no copo. fica no li é bem pretim né? Aí fica
branco, aí então fiquei boa da ameba com isso aí.
Ciro: Aí a senhora depois teve contato com esse baiano?
Lurdes: Num vi ele mair não, passou pedindo irmola, Tião disse que não tinha irmola pa
vagabundo, ele disse sua mulé ta aí em cima duma cama aí, ainda não encontrou remédio
ainda a doença dela é no intestino, é ameba, eu vou ensinar remédio pra ela, aí eu sai, ele
ensinou o remédio, aí eu quebrei mie pa ele levar, apanhei fejão, ele disse é isso mermu, num
tinha nada pra me dá, vou levando mie, feijão, cada uma bage tão graúda, a senhora
trabalhou, trabalhei sinhô, apois a sinhora vai ficar boazinha com esse remédio. Aí ensinou
como rezar de criança, ensinou, aí foi embora chegou lá do oto lado, (som de batidas nas
mãos) que eu curo aí deu um grito, será que eu robei? Pa dá pra ele, será que robei? Que ele
chegou ensinando remédio pra mim, porque disse que não tinha nada em sítio e tinha, sabia
quem era né? Às vezes Jesus (som de batidas nas mãos) bate na porta da gente, ... ... e a gente
aí num dá nada aquela pessoa, ta pensando que é né? Apois foi esse baiano que ensinou esse
remédio a eu, chegou lá em cima em Maria de Raimundo, era lugar seco, a menina da canela
seca pegou deu o ligume, sei o que lá e tal , trabalhou bem muito, ela vai morrer trabalhou
demais sei o que lá, eu dei o grito bem forte: será que eu robeiii (gritando)? Dento da roça pra
eu, dá pro baiano... eu vim buscar pra tu, venha vê mais agora , venha , venha vê pra você.
Margarida entrou, Maria de Raimundo disse eu acho é pouco ... ... acunha Lurde, eu gritei
mais forte ainda.
Ciro: Mas assim essas rezas da senhora, de rezar nas pessoas, rezar em quebrante ele ensinou
tudo a senhora nesse dia ou ele ensinou só o remédio mesmo?
Lurdes: Ele ensinou o remédio, ensinou como rezar em criança, ele disse ói Maria a sinhora
tem um probrema, aí eu disse que é? ... ... siga dava vai rezar, eu gosto de uma reza, ... ... aí
disse que eu pra melhorar mesmo quando eu rezasse o Credo, o Pai Nosso e a Armaria, (conta
nos dedos da mão) pa tanger aquelas coisas ruim. ... ... aí comecei a rezar aí fui , fiquei mais
melhor, eu fiquei melhor com a reza dele.
Ciro: Mas antes, antes da senhora conhecer esse baiano a senhora já rezava nas pessoas?
Lurdes: Não eu tinha vontade de rezar e ... ... de pau e ficava bem.
Ciro: A senhora tinha vontade né?
Lurdes: Tinha vontade é.
Ciro: Mas a senhora tinha vontade porque via outras rezadeiras? Ou...
Lurdes: Era não era por que via uma velhinha aí queria dizer a coisa a eu e num falava, eu
num sei ... ...
Ciro: A senhora via essa velhinha mais...
Lurdes: Via a veinha mais, ela dizia que o nome dela era Joaquina.
Ciro: Mas ela era de ... de Lagoa do Mato?
Lurdes: Joaquina num sei.
Ciro: Mas a senhora conheceu ela morando aqui né? Ela morava dona...
Lurdes: Conheci ela morando aqui, Dona Mamédia... da onde era Dona Mamédia era? (faz
entonação tentando lembrar) Telúzia até fala daonde que ela era.
Ciro: Mas ela morava aqui?
186
Lurdes: Morava aqui, aqui perto de Maria Nova, Margarida (aponta com o dedo)
Ciro: Simmm, morava perto de Maria Nova ...
Lurdes: Onde tem aquela mandioca era a casa dela ali... reta essa casa de Zé de Juvino, essa
primeira casa.
Ciro: Sim.
Ciro: Pronto?
Alguém: Pronto.
Ciro: Então Dona Lurdes a senhora tinha vontade de rezar quando via Dona Joaquina... mas
nunca tinha rezado antes?
Lurdes: Não, não só o Pai Nosso e quem ensinava era Neném com Mãe Faba ...
Ciro: Mãe Faba era rezadeira?
Lurdes: Mãe Faba era mãe da minha mãe, era parteira.
Ciro: Era parteira?
Lurdes: (balança a cabeça sinalizando um sim)...Era parteira minha mãe Faba ....
Ciro: Aí a senhora tinha vontade de rezar o Pai Nosso, mas não rezava nas pessoas não né?
Lurdes: Quem ensinava a nós era Neném a Mãe de Cosma, nós ia de 6 horas pra lá pra
aprender o Pai Nosso....
Ciro: ...Ok e assim depois desse baiano a senhora começou a rezar nas pessoas lá na Paraíba
ou quando voltou pra cá pro Rio Grande?
Lurdes: Lá a maioria das pessoas ninguém aceitou tinha medo deu... Aí eu fui me peguei a
nossa Senhora de Aparecida pa abrir meus camim, e eu rezava o terço todo dia de 6 hrs, a
santinha desse tamain (indica o tamanho com as mãos) só que as pessoa tinha medo de mim ...
a merma pessoa que tinha medo de mim foi a pessoa que carregou a aliança do meu
casamento, carregou, comprou, .... carregou minha aliança comprou de pão e comeu, só que
ela muito mintirosa. Aí quem tinha medo deu rezando os terço com medo deu descobrir, só
isso aí..
Ciro- Simmm...
Lurdes: Aquela neguinha descobre um bucado de coisa,
Ciro: Isso lá na Paraíba ainda?
Lurdes: Na Paraíba, aquela neguinha preta... ela ta ali, mas no céu ela tá, ói vai descobrir as
coisa. Aí então tinha medo de mim, tinha medo de mim, ninguém queria rezar mais eu, quem
chegava pa rezar mais eu, era Maria Aparecida mermo nome da santa, madinha de Cleidivan
meu que tá hoje em São Paulo.
Ciro: Aí a senhora tinha quantos anos quando conheceu esse baiano?
Lurdes: Eu já tinha Cleidisvan, eu tinha trinta ee... faz oitenta e cinco ano, trinta e seis,trinta e
sete ... (conta nas mãos) trinta e nove ano eu tinha.
C: Aí depois a senhora demorou muito na Paraíba ou voltou a morar aqui?
Lurdes: Nós só fiquemo lá ... (SILÊNCIO) doze ano só.
Ciro: Doze anos?
Lurdes: Vim pra cá em noventa.
Ciro: Noventa né?
Lurdes: Onze de maio de noventa, foi ... dia de domingo.
Ciro: E?.... Quando a senhora voltou a morar aqui como foi que as pessoas aceitaram a reza
da senhora, a senhora contou que tinha aprendido? As pessoas começou a procurar?
Lurdes: Rezando no menino meu, no Cleidisvan, botaram um quebrante nele aí ninguém
descobriu, a rente descobriu que ... a prantinha tinha que tá nele so de cuequinha, tinha que
rezar nele só de cueca... tava incricriado o menino viu? andava com ele no bornó assim,
porque ele tano no braço num dava era curtim (encena com os braços), aí butava ele no bornó
assim, eu fiz o bornó, e carregava pa li, “homi jogue isso fora”, falei assim: “jogue o seu, o
meu deixe aqui comigo, tá no bornó”... quuando rezei nele só de cuequinha ele começou a
187
estirar as pernas, o povo até se assombrou, a menina aqui se assombrou com ele se estirando...
aaaaí, daí nos três dias o menino tava bonzim já, mago, fei ... aí eu; leite de gado com ovo,
batido, num tinha liquidificador (faz gestos com as mãos) não né?, aí sei que o menino
quando tinha três ano era desse tamain que não tinha quem dissesse que era aquele (encena o
tamanho) ... mas eu digo a você ... as pessoa ficava assim acreditando, aí ficaro aparecendo pá
rezar, eu fiquei rezando.
Ciro: Então assim, a partir daí foi que as pessoas começaram a conhecer a senhora como
rezadeira?
Lurdes: Fooi, mai não é porque eu quero, isso é, é Deus mermo
Ciro: Mas assim a senhora começou a sentir esse dom que a senhora tinha pra rezar ...
Lurdes: Derde de miudinha ...pode falar.
Lurdes: Derde de miudinha ... de miudinha ... aí eu ficava gostano de ajudar, aí e minha mãe
tu não pode ajudar não tu é muito pequena e sei lá e tal apois não quer que eu ajude ninguém
não então...
Ciro- Só pere aí assim a senhora queria ajudar a rezar? )
Lurdes: Sim...
Ciro: Ajudar as rezadeiras ou a senhora mesmo rezar?
Lurdes: Assim a pés.., a galinha sofrendo, um bode, um cabrito uma coisa, mãe não deixava,
aí meu destino era o que? Selar um cavalo, montar e andar muito cavalo e nunca caí de
cavalo ninhum ... Ali in Antoin de Hermoge (aponta com a mão) eu corria muito, Colorau
dizia assim vai cair, eu dizia sai do mei se não eu passo pu cima, eu nunca caí do cavalo e caí
duma jumenta, fiquei sem fala minha mãe morreu e não sabe que eu fiquei sem fala desse
jeito. Maria fez um chá me deu, tomei lá naquele canto aculá, lá onde tá aquela, o carro vai
passando, (aponta com a mão) tinha uma pinheira aculá né?, e eu fiquei lá estirada, me
acordei com o chazim na boca, a queda fo ... agora dum cavalo nunca eu caí, celado e...
chapéu na cabeça (dá voltas em torno da cabeça com a mão) e depoois meu.
Ciro: Aí assim a senhora pequena nunca tinha rezado né assim nas pessoas não?
Lurdes: Não não (balança com a cabeça dizendo que não) eu tinha vontade de rezar assim nos
cabritos in pinto, mãe dizia tá lezano o pinto vai morrer um sei que lá, e eu ....
Ciro: E assim depois que a senhora voltou pra aqui, aí muita gente começou a procurar a
senhora ?
Lurdes: Por causa que eu rezei em Cleidisvan ele se disincricriou ... tarra todo incricriado,
Deurdete pré de Uiraúna chegou a vê o menino todo incricriado, aí quando eu fiquei andano
lá, aí ei cadê o Cleidivan o menino, tá qui, morreu?, eu não, tá qui, mai é gordim, mais novo
que parece fi de rico, eu digo aqui é leite de gado que ele bebe leite de gado ee com ovo, da
gema do ovo só a gema sabe, comé que pode dá o meu, desse jeito, ela falava assim (sorri
enquanto conta) ...
Ciro: E ... a senhora começou a rezar nas pessoas aqui, começou a ser conhecida como
rezadeira, muita gente procura a senhora?
Lurdes: É é eu num sei se é a fé dele, acho que é a fé dele que né? Eu faço o que eu posso.
Ciro: Então tem, tem quase trinta anos que a senhora é rezadeira aqui?
Lurdes: Vinte e seis.
Ciro: Vinte seis anos... e assim da da infância da senhora quem eram as rezadeiras assim mais
conhecidas do Quati, da Lagoa do Mato?
Lurdes: Era Joaquina Catingueira uma, (SILÊNCIO) eee Luci de zé Nazaro duas ... a ota, ixe
de Lagoa de Dento né?
Ciro: É, e da família da senhora tinha muitas rezadeiras aqui? Das antigas? Quem era que era
família da senhora ?
Lurdes: Maria Nova rezava
Ciro: Maria Nova rezava?
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Lurdes: Cadê a ... ... a ota lembra não... Neném de Faba rezava.
Ciro: A que ensinou a senhora a rezar o Pai nosso?
Lurdes: Sim... acho que Corma aprendeu com ela né?
Ciro: Pronto era filha de Neném de Faba nera?
Lurdes: É é.
Ciro: No caso Mãe Faba não era rezadeira não, era parteira ?
Lurdes: Minha vó era parteira...
Ciro: E assim a senhora tem outras irmãs que são rezadeira , outras primas quem são mais
aqui?
Lurdes: Tiquinha ... quem é a ota minha Nossa Senhora.... lembro mair não, lembro mair não.
Ciro: Mais Tiquinha aprendeu com as rezadeiras daqui?
Lurdes: Num sei como foi que Tiquinha aprendeu não... eu só sei que eu aprendi...
Ciro: Cosma que é prima da senhora também é né rezadeira ?
Lurdes: Corma reza de triadura,
Ciro: Como é que chama?
Lurdes: Carne triada .
Ciro: Carne triada né?
(SILÊNCIO)
Ciro: E assim é mais em adulto?
Lurdes: É do jeito que vinher... do jeito que vinher eu tô rezando, ar pessoa até diz, eu vi
morrer um dia toda leprenta num sei que lá, posso butar a mão on on onde tenho medo de
duença não, é bestera , tê medo de duença ... eu conheci um monte de gente dizendo Cidinha
ia morrer, iam quebrar minhas canela tarra num sei que, num sei que lá, tô com minhas
canela bem direitinha aqui Cidinha tá só o ouro, já interrou um monte já, tá tudo sadio,
Cidinha tá tá boazinha, e mais tem essa, Cidinha tem sorte, se Cidinha adoecer eu for com
Cidinha qua ... ... /... cheguemo, carro... brigado aí meu cunhado... simbora. Cidinha é assim,
Cidinha tá só o ouro, ninguém pode julgar ninguém de nada.
Ciro: E assim a religião da senhora é católica num é ?
Lurdes: É Graças a Deus é.
Ciro: E assim quais são os santos que a senhora reza mais ?
Lurdes: Nossa Senhora Apare, tem muita fé nela, que todo santo a rente tem fé né? que
sempre tem um que a gente se apega .
Ciro: E assim os santos que a senhora ... mais tem devoção?
Lurdes: Nossa Sinhora Aparecida, Nossa Sinhora Santana, Nossa Sinhora do Carmo, e o
principal que é Jesus Cristo porque ele tá no nosso meio toda hora né? ... Primeiro que tudo
aquele lá de cima né Jesus Cristo num é?.
Ciro: E quando... a senhora começou a rezar /... e assim a senhora começou a rezar com
devoção em nossa senhora aparecida como foi? A senhora tinha vontade de rezar e ?...
Lurdes: Butaro a Santinha no mato aí eu tive dó dela pá começo-se assim foi, butaro no mato
aí disseru que num valia nada num sei que lá e aí foi isso truxe pra casa e foi isso, e ... ... lá
todo dia eu rezava e mode eu pedir uma; uma graça alcançada, eu alcançava, acendia uma
velinha agradecia e era assim, aí todo dia eu rezava acendia uma velinha e agradecendo
aquilo que que alcancei, aí povo ficaro com medo de mim, aquela ... ... num sabe com medo,
com medo... desse tamain (encena com as mãos) a Santinha inda truxe pra cá, depois que se
acabôsse .... (levanta e vai buscar a imagem da Santa) tenho mais aí tenho essa que Cidinha
comprou.
Ciro: Certo.
Lurdes: Aí ela me deu , deu, ess, Santinha pa mim (é parecida com que a senhora deu.) era
bem miudinha, aí então tem ela maior porque Cidinha deu, mai eu não tinha não ... eu pego a
minha... eu ia pegar mio mais não quer, chama chama. Pode deixar ela?
189
Ciro: Pode, pode.
Lurdes: Ela deu pa mim essa aqui.
Ciro: Mais aqui já muita gente era devota de Nossa Senhora Aparecida? A mãe da senhora?
Não!? Começou com a senhora né?
(SILÊNCIO)
Lurdes: A minha mãe andava com eu muito in Aparecida, eu tinha vontade duma santinha eu
não pe, não pudia comprar ... ... dei um bain, pentiei ... calada... porque quando fui deitar
mais pedo, a nega sem futuro, só ... ... calada
Ciro: A senhora pode falar um pouquinho mais alto),
Lurdes: Aí eu fiquei calada, continuei banhei essa ... ... com sabão e fiquei né ? rezando. Pedo
não reza não, mai tudo dele essa santa. Achei no riacho essa santa que jogaru até enterrada na
area , talvez brincadu com ela lá né? ...
Alguém: Alguma criança.
Lurdes: Foi adulto que jogou.
Alguém: Foi adulto? ...
Lurdes: Zefinha...morava no Uiraúna aí a gente pra lá do Ritiro, daqui pra lá as direita,
Zefinha
Alguém: Eu já vi ela.
Lurdes: Depois de Chica Pala, mãe de Neguim; povo de Chica Pala.
Alguém: Eu vi ela sabádo, eu tava lá em vera quando ela desceu.
Ciro: E assim Dona Lurde, Maria Nova era reza, rezava na pessoa igual a senhora ?
Lurdes: Maria nova rezava de carne criada e era partera, da melhor partera, quem pegou
Celhim de Tikinha foi,Tikinha ia ter Celhim sozinha, aí a pena ela cortou o imbigo.
C: Aí Maria Nova era tia da senhora, prima?
Lurdes: Irmã da minha mãe.
Ciro: Sim era tia da senhora né?
Lurdes: Era... e minha mãe também se pricisava ainda pegava menino ... eu peguei dois na
Paraíba ... ... vinha.. pá pego na hora e boto mai no mundo.
Ciro: Certo.
Lurdes: (dá uma risada) Eu não deixo morrer nããão, parto colado, butarra no carro ... pu
Uiraúna ... ... parto colado, sangue cuáia morre morre, morre na hoora.
Ciro: Recebia as pessoas pra rezar, você rezadeira?
Lurdes: Sim, sim. Com certeza... fazer coisa com raiva num adianta não, com raiva num
adianta não.
(gesto do entrevistador para encerrar a filmagem)
190
Entrevista 3
Entrevista realizada no dia 28 de março de 2016, na residência da senhora Cosma no Sítio
Lagoa do Mato em Luís Gomes
A entrevista com a rezadeira Cosma Maria da Silva ocorreu na tarde do dia 28 de março de
2016 na sua casa no sítio Lagoa do Mato, localizada próxima da esrada que dvide a
comunidade me Quati e Lagoa do Mato, conforme acertado anteriormente . Apesar de dona
Cosma não ser, como se fala na comunidade, “minha rezadeira”, ou seja, de eu não frequentar
a sua casa a procura dos ritos, a entrevista se deu de forma tranquila por eu ser frequentador
da comunidade há alguns anos. Chegamos eu e meu amigo José Jorge da Cruz, irmão de
George que fez a filmagem de dona Lurdes, para a entrevista, Jorge realizou a filmagem do
seu celular, depois me passando a gravação. Por ser também morador dão sítio Quati a sua
presença não causou nenhum problema na entrevista.
Entrevista – dona Cosma
Ciro: Essa nossa entrevista é sobre as, as rezadeiras daqui do Quati, aí o interesse da nossa
pesquisa é a senhora falar sobre sua vida sobre a reza, sobre a sua infância com quem
aprendeu ...
Cosma: Eu aprendi com uma tia minha ... uma tia minha, aprendi a rezar com ela. Via ela
rezando né?
Ciro: Ela era daqui do Quati?
Cosma: Eera, tia minha irmã de minha mãe morava ali, pra lá da quadra, pa li, pra lá do centro
num tem umas casinha ali, casa de Zezé de Faba, então ela era irmã de Zé de Faba, morava
ali; tia minha.
Ciro: E como era o nome dessa da tia da senhora ?
Cosma: Luzia.
Ciro: Luzia?!
Cosma: Era.
Ciro: Irmã da mãe da senhora e..?
Cosma: Irmã de minha mãe, irmã de Zé de Faba, irmã de Maria Nova.
Ciro: Sim, irmã de Dona Maria Nova,
Cosma: - É é, é.
Ciro: E como era o nome da mãe da senhora?
Cosma : Maria de Lurde.
Ciro: Maria de Lurdes né?...
Cosma: É.
Cosma: Aí eu aprendi rezar com ela.
Ciro: E ela rezava aqui no Quati em muita gente como era?
Cosma: Rezaaava, a casa dela era cheia de gente, o povo não pudia machucar um dedo
(encena com os dedos) que já corria pra lá, já corria pra lá pa rezar... ééé
Ciro: E assim, qual era o tipo de reza dela ela rezava pra quê?
Cosma: Era assim pa dirmintidura, num sabe, é pa dirmintidura, mesmo caso meu, éé eu rezo
pa dirmintidura, eu num rezo in criança, aqui tem veiz chega o povo, ah issaqui, eu digo ói eu
num sei rezar in in minino que eu num vou dizer que eu rezo né? (risos)
Ciro: Eu lembro até uma vez que eu vim.
Cosma: Muito bem. (Risadas)
Ciro: Pra senhora rezar de mau olhado.
Cosma: Foii.
191
Ciro: E num; a senhora disse que não...
Cosma: Ééé, eu rezo , eu rezo pa dirmintiura e quem chegaaqui que manda eu rezar eu num
sei se é a fé né? tem gente que só vei uma veiz...
Ciro: E essa tia da senhora sabe com quem ela tinha aprendido?
Cosma: Não num sei não quem ela aprendeu não né?
Ciro: Aí a senhora já conheceu ela rezando, já conheceu ela adulta?
Cosma: Jáá conheci, já conheci ela rezando já ... já conheci ela rezando ... e nóis papa
praticamente se criemo lá na casa dela.
Ciro: Ela morava ali?
Cosma: Morava ali, pra lá da rua (aponta com o dedo), pra lá do prédio, tinha uma casona lá,
ela morava lá, aí nóis fumo criado lá, bem dizer lá que meu pai morreu eu tinha cinco ano... aí
era quatu irmão, eu Damião, minha irmã que mora im São Paulo e um que morreu, mai véi.
Aí minha mãe trabaiava nas bulandera, aí nóis ficava lá, nóis fumo criada na casa dela, nóis só
vinha pa casa nuis sabádo e nur domingo.
Ciro: Mas ela escolheu a senhora pra passar as reza ou a senhora foi aprendendo com ela?
Cosma: Ééé eu vi ela rezano aí eu comecei eu eu vi os pé qui ela dizia eu, eu di, eu rezava
num sabe, aí um dia eu disse, Bia eu quero rezar, eu quero é rezar, aí ela disse e vô comé qui
você quer rezar aí eu digo eu quero que Bia me ensine que eu já sei... eu via os pé qui ela
dizia num sabe aí eu já in na cabeça eu já aprendia aquilo ali, aí o resto ela mim insinou ... ela
mim insinou.
Ciro: E a senhora tinhas quantos anos quando?...
Cosma: Eu, eu tinha eu a.. na faxa duns quinze ano quando ela mim insinou, quando ela mim
insinou.
Ciro: Quinze anos né?
Cosma : É, era mocinha nova, aí a primera pessoa que eu rezei foi in Antoin de Noca aí
(aponta com o dedo) Antoin de Noca chegou com o pé inchado aqui haha (risos) aí reze aqui
nim meu pé eu digo num sei rezar não, aí eu peguei e rezei no pé de Antoin de Noca. Antoin
só vei duas veiz eu num sei se ele lembra disso, né? Só vei duas veiz, aí na ota veiz eu dis, eu
disse Antoin tu nem vei mais rezar ele disse não que eu já fiquei bom, ficou bonzim do pé, aí
é assim eu num sei se é eu que sei rezar ou se é a fé né? Mar tem gente que vem pa eu rezar só
vem uma veiz e duas veiz.
Ciro: E ela assim, ela ficou feliz em passar pra senhora a reza?
Cosma: Ficooou sim, ficou, ficou feliz .
Ciro: E hoje vem gente procurar a senhora aqui né?
Cosma: Aquii? Ahahaha (risos) de veizinquando chega gente aqui de veizinquando de
veizinquando, quair todo mundo por aqui Lurde reza ali (aponta ligeiramente com o dedo)
mar é difíci o povo ir lá pa Lurde, só vem pra cá pa mim rezar, só vem pra cá.
Ciro: E assim das rezadeiras mais antigas daqui quem a senhora tem mais lembrança além da
da sua tia?
Cosma: Da minha tia? Assim, da merma reza da minha né?
Ciro: Sim.
Cosma: Porque tinha minha vó que era rezadeira também agora minha vó ela rezava in
criança.
Ciro: Aí como era o nome da vó da senhora?
Cosma: Joaquina.
Ciro: Joaquina o quê?
Cosma: Maria Joaquina.
Ciro: era conhecida era Joaquina Bezerra ou Joaquina Catinguera?
192
Cosma: Joaquina Catingueira; Joaquina Catinguera que morava numa casinha aí (aponta com
o dedo) ói ela eu sou famia de daqueli minino da rua de Manel Catinguera, Damião
Catinguera, cê conhecia Damião?.
Ciro: Conhecia, Damião,
Cosma: Damião era tii meu, ele era tii meu, era irmão de meu pai, aí minha vó morava ali
numa casinha que tem tem a casa de Maria de Noca qui a casa de Maria de Noca era de taipa
... desse lado, aí tem a cerca de Gabriel? Pra baixo assim (indica e aponta com as mãos) onde
tem aquela mandioca de Damião ali era a casinha dela, casinha de taipa .
Ciro: Então a senhora lembra dela, da ... ...
Cosma: lembro, lembro
Ciro: A tia, quem mais era rezadeira aqui?
Cosma: .... até de outras rezas também...
Cosma : Maria Nova também rezava
Ciro: Rezava pra quê?
Cosma: de, do mermo jeito meu de dirmintidura.
Ciro: Dismintidura né?
Cosma: É. Maria Nova rezava também... aí pronto só essar daqui né? desse tipo aí.
Ciro: Da família da senhora era.
Cosma: É é.
Ciro: A avó da senhora?
Cosma: minha vó rezava in bebê.
Ciro: A tia?
Cosma: Minha duas tia, Luzia e Maria Nova ... que rezava.
Ciro: E assim hoje como que a senhora se sente rezando?
Cosma: Eu me sinto bem (risos)
Ciro: As pessoas reconhecem, procuram?
Cosma: Ééé. Eu me sinto bem quando chega uma pessoa aqui pa peu rezar né?... me sinto
bem mermo.
Ciro: Aí essas rezadeiras nunca sim, cobraram pela reza não?
Cosma: Nããão, (balança com a cabeça também) paa assim, é é coisa dimi de, deu piquena
que o povo dizia né? Que reza ninguém se paga, reza ninguém se dá nem obrigado...
(SILÊNCIO)
Ciro: Ok Então...
Cosma: Reza não dá nem obrigado.
Ciro: Tem que, é que a pessoa recebe o dom e ee....
Cosma: Ééé ... reza não se paga ... né? ...Vejo dizer desde de quando era pequena que eu via
... o povo dizer.
Ciro: Aí hoje aqui de rezadeira só tem a senhora ?
Cosma: É é.
Ciro: Lurdes.
Cosma: Lurde.
Ciro: Tem mais?
Cosma: Não ... tem mar não.
Ciro: e da mesma família a senhora e Lurde né?
Cosma: é... da merma famia, (risos) nóis somo prima...
Ciro: ok. (entrevistador faz cena para parar a gravação)
Cosma: Somo prima eu e Lurde, nossar mãe era...
Ciro: Aí assim a senhora é prima legítima de...
Cosma: Lurde.
Ciro: Aí o nome da mãe dela era ? Cosma: Maria Martina
193
Ciro: E da mãe da senhora?
Cosma: Maria de Lurde, da minha mãe.
Ciro: Todas elas filhas de, como era o nome da vó da senhora?
Cosma: Éé´... Maria Mafalda.
Ciro: Era ela que era da família de Zé de Faba?
Cosma - A mãe de Zé de Faba
Ciro: Simm, a mãe de Zé de Faba, simm.
Cosma: Eu sou sobrinha.
Ciro: Sim.
Cosma- Eu sou sobrinha de Zé de Faba, era mãe de Zé, minha mãe, a mãe de Lurde, a mãe da
mãe de Lurde, a mãe de Maria Nova. Maria Mafalda... minha vó
Ciro: Certo e e assim, ela era parteira também? Parteira era mãe Nila né?
Cosma: Mãe Nila.
Ciro: Era irmã dela?
Cosma - Mãe Nila era irmã dela dela... era parteira.
Ciro: No caso sua era avó da senhora que era chamada de Mãe Faba, não né?
Cosma: Mãe Faba
Ciro: Mãe Faba né?
Cosma: Mãe Faba, é hahaha (risos).
Ciro:Ok.
Cosma: Era Mãe Faba, os que eu conheci da parte de meu pai mar os da parte da minha mãe
eu nao conheci não.
Ciro: Quer dizer que a senhora não conheceu os avós da parte da mãe não?
Cosma: Da minha mãe não.
Ciro: Como era o nome deles?
Cosma: Era Pedro Vintura ee Maria Mafalda
Ciro: Maria Mafalda?
Cosma: Era ... num conheci não.
Ciro: Que Maria Mafalda era mãe Faba?
Cosma: Mãe Faba
Ciro: E da parte do pai da senhora?
Cosma: Era Joaquina e Zé Catinguera, chamava Zé Catinguera.
Ciro: Sim... no caso a avó da senhora que era rezadeira da parte...
Cosma: Da, do meu pai.
Ciro: Certo. Da parte da mãe da senhora já aprendeu com uma tia.
Cosma: Com minha tia.
Ciro: Irmã da mãe, né?
Cosma: Irmã da minha mãe.
Ciro: Pode fechar.
194
FOTOS
O Fotógrafo
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
[...]
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Manoel de Barros.
As fotos abaixo foram tiradas durante a pesquisa de campo. A foto 01 foi tirada por Filipe
Abrantes Cavalcanti no dia 09 de novembro de 2015, em Pau dos Ferros na residência da
rezadeira Ana Naldi da Silva, durante a entrevista. A foto 02 foi tirada por Francisco George
da Cruz, no sítio Lagoa do Mato, na residência da rezadeira Maria de Lurdes Martins da Silva
no dia 29 de fevereiro de 2016. A foto 03 foi tirada no sítio Lagoa do Mato por José Jorge da
Cruz no dia 28 de março de 2016 na frente da residência da rezadeira Cosma Maria da Silva.
195
Foto 01 - Ciro e a rezadeira Naldi na sala da sua casa
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Foto 02: Ciro e a rezadeira Lurdes na sala da sua casa
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Foto 03: Ciro e a rezadeira Cosma na frente da sua casa
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