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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
JOJOMAR LUCENA DA SILVA
ABORDAGENS COMPARATIVAS DE CICLOS E DE
POTENCIAIS DA TERMODINMICA: ESCOLHA
RACIONAL OU PRAGMTICA?
SO PAULO
2015
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JOJOMAR LUCENA DA SILVA
ABORDAGENS COMPARATIVAS DE CICLOS E DE
POTENCIAIS DA TERMODINMICA: ESCOLHA
RACIONAL OU PRAGMTICA?
Tese apresentada Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de
So Paulo para a obteno do
ttulo em doutor em Filosofia
rea de concentrao:
Filosofia da Cincia
Orientador: Prof. Dr. Jos
Raymundo Novaes Chiappin
So Paulo
2015
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SILVA, J. L. ABORDAGENS COMPARATIVAS DE CICLOS
E DE POTENCIAIS DA TERMODINMICA: ESCOLHA
RACIONAL OU PRAGMTICA? Tese apresentada Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So
Paulo para a obteno do ttulo em doutor em Filosofia.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr._______________________Julgamento:____________________
Instituio:_____________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________Julgamento:____________________
Instituio:_____________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________Julgamento:____________________
Instituio:_____________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________Julgamento:____________________
Instituio:_____________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________Julgamento:____________________
Instituio:_____________________Assinatura:____________________
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,
, .
.
In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum,
et Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum.
(Io 1,1)
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Dedicatria
A meus pais a quem amo cada dia mais!
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AGRADECIMENTOS
Ao prof. Chiappin pela dedicao e pacincia, entusiasmo e compreenso
com que me apoiou nestes quase cinco anos de trabalho.
Ao prof. Caetano e prof. Ana Carolina pelas sugestes e correes feitas e
pela compreenso mostradas na ocasio da qualificao deste trabalho.
A todos os professores do departamento de Filosofia, especialmente queles
do grupo de Filosofia da Cincia.
Aos funcionrios da Secretria da ps da Filosofia, sempre prestativos.
A todos os funcionrios da biblioteca Florestan Fernandes.
s bibliotecrias da biblioteca do Instituto de Fsica da Usp.
A meus amigos...
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RESUMO
Talvez mais que a prpria Mecnica, a Termodinmica possui em seu interior uma grande
diversidade de teorias, que se distinguem por motivos vrios. Um modo de identific-las
analisar como se organizam, reflexo da metodologia empregada ao constru-las. Em
particular, a organizao que Carnot, Thomson e Clausius conferiram cincia do calor
do tipo sinttica, baseada no poder heurstico de ciclos termodinmicos. Por isso, tal
formalismo chamado de termodinmica de ciclos. Por outro lado, Gibbs, inspirado na
tradio que remonta a Lagrange e a Hamilton, constri uma teoria analiticamente
organizada, conhecida como termodinmica de potenciais. O estudo comparativo das
duas vivel e mostra-se como uma excelente ocasio para verificar e elucidar o poder
explicativo e racional de cada uma, com interessantes consequncias para a prpria
Filosofia da cincia. Alm disso, contextualizando historicamente cada uma, v-se que a
termodinmica de Gibbs uma teoria inspirada no mtodo analtico de Hamilton.
Palavras chave: ciclos, potenciais, termodinmica, mtodo sinttico, mtodo analtico.
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ABSTRACT
Perhaps more than Mechanical itself, thermodynamics has in its interior a wide variety of
theories which differ for various reasons. A way to identify them is analyze how they are
organized, which is a reflection of the methodology used to construct them. In particular,
the organization that Carnot, Clausius and Thomson have given to the science of heat is
the synthetic type, based on heuristic power of thermodynamic cycles. Therefore, this
formalism is called thermodynamic cycles. On the other hand, Gibbs, inspired by the
tradition going back to Lagrange and Hamilton, builds an analytically organized theory,
known as thermodynamics of potentials. The comparative study of the two is possible
and shows up as an excellent opportunity to verify and clarify the explanatory and
rational power of each, with interesting consequences for the Philosophy of science. In
addition, each contextualized historically, it is seen that the Gibbs thermodynamic theory
is inspired by the analytical method of Hamilton.
Keywords: cycles, potentials, thermodynamics, sintetic method, analitic method.
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SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................1
1 Uma breve histria da mecnica: da geometrizao analitizao
do
movimento.............................................................................................6
1.1 A geometrizao do espao............................................................................7
1.2 A geometrizao do tempo...........................................................................23
1.3 A algebrizao da mecnica.........................................................................35
1.4 A analitizao variacional da mecnica.......................................................42
1.5 O clculo como mecanizao da matemtica...............................................59
2 O formalismo Lagrangiano e Hamiltoniano...................................66
2.1 A funo lagrangiana no formalismo analtico............................................68
2.2 O problema dos dois corpos.........................................................................73
2.3 Retomando o fio da Histria........................................................................76
2.4 Da mecnica ptica e viceversa................................................................82
2.5 A transformao de Legendre.....................................................................119
2.6 A mecnica de sistemas macroscpicos.....................................................124
3 Uma breve histria da Termodinmica: da metafsica do calrico
aos conceitos de energia e entropia................................................134
3.1 O surgimento da Termodinmica...............................................................135
3.2 Sadi Carnot e os primrdios da cincia do calor.......................................140
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3.3 Clapeyron e a matematizao da cincia do calor......................................149
3.4 William Thomson: da cincia do calor termodinmica...........................157
3.5 Thomson e Clausius: a matematizao das leis da termodinmica............164
3.6 Clausius e a termodinmica como cincia da energia e da entropia..........184
4 Uma breve histria da Termodinmica: a analitizao de
Gibbs.................................................................................................202
4.1 Os primeiros trabalhos de Gibbs................................................................203
4.2 A termodinmica analtica de Gibbs..........................................................215
4.3 Maxwell e suas relaes.............................................................................231
4.4 Carathedory e a axiomatizao operacionalista.......................................239
4.5 A termodinmica de Gibbs como uma teoria hamiltoniana.......................251
5 Os formalismos de ciclos e de potenciais da Termodinmica......260
5.1 Lei de variao para a expanso de uma pelcula lquida..........................263
5.2 Equao de Clapeyron-Clausius................................................................275
5.3 Diferena entre as capacidades de calor.....................................................279
5.4 Compresso adiabtica...............................................................................290
5.5 Compresso isotrmica..............................................................................302
5.6 Expanso livre............................................................................................306
5.7 Processo de estrangulamento ou de Joule-Thomson..................................312
5.8 Alguns reflexos sobre a Filosofia da cincia..............................................318
6 CONCLUSO.................................................................................326
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................334
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INTRODUO
A competio e seleo entre teorias concorrentes um dos temas mais atraentes na historia e
filosofia da cincia. Teses clssicas como as de Popper e Kuhn podem ser ditas incidir sobre
este tema. Contudo, contrariamente ao que possa parecer, no tarefa fcil levar a cabo um
estudo comparativo entre teorias que cobrem um mesmo campo da experincia. Em primeiro
lugar, est a dificuldade de especificar a natureza da comparao a se realizar: se dos
pressupostos filosficos e matemticos, da metodologia, da lgica de soluo de problemas,
origem, etc, ou de tudo ao mesmo tempo. Esta primeira dificuldade se traduz imediatamente
como um dilema: a comparao deve ser feita cobrindo toda a amplitude do conjunto de notas
apenas mencionadas ou restringir-se a um ou algumas delas? A resposta a tal dilema, porm,
no absoluta, mas depende das teorias a serem confrontadas e razovel esperar que duas
teorias mais enxutas possam ser mais amplamente comparadas e viceversa. Sem mais rodeios,
parece-nos que duas teorias com a caracterstica que possibilita um confronto mais amplo
podem ser encontradas na Termodinmica.
A termodinma clssica, usualmente apresentada como a cincia de duas leis
fundamentais, fruto do trabalho de muitos e renomados fsicos do sculo XIX. As duas leis
fundamentais passam a caracterizar a termodinmica a partir dos trabalhos de William Thomson
e Rudolf Clausius, que se inspiraram na teoria de Carnot para as mquinas trmicas. A teoria
deste ltimo uma resposta a uma pergunta bem concreta: quais as condies de
funcionamento para uma mquina trmica fornecer a maior quantidade de fora motriz a partir
de uma certa quantidade de calor? O esquema elaborado por Carnot imaginar que a mquina
realiza uma sequncia de processos termodinmicos de tal modo que durante as trocas de calor
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com o ambinte no haja mudana de temperatura da substncia de trabalho, mas apenas do
volume.
Esta condio observada se a mquina funciona segundo um ciclo termodinmico bem
preciso e que recebe o nome do mesmo autor, ciclo de Carnot. Tal estratagema permite
responder pergunda acima e definir as chamadas mquinas ideias. Parte da herana outorgada
por Carnot consiste em investigar e propor solues a problemas bem precisos atravs desse
recurso metodolgico, dos ciclos. Em termodinmica, a segunda lei foi elaborada a partir da
anlise de ciclos, tanto por Thomson quanto por Clausius. Mais tarde, Maxwell deduziu uma
srie de relaes a partir de um ciclo de Carnot reestruturado. No nvel da empiria, muitas leis
podem ser demonstradas por este mesmo mtodo. A termodinmica que recorre intencional e
constantemente a estruturas cclicas para deduzir leis no nvel da empiria das duas leis
fundamentais denominada aqui termodinmica de ciclos.
Contudo, aps formular a primeira e segunda leis fazendo uso do mtodo de ciclos,
Clausius as reformula prescindindo dos ciclos e de qualquer particularidade prpria deste
recurso. As leis tornam-se leis universais: a energia do universo constante e a entropia do
universo tende a ser mxima. Esta mudana de perspectiva, que pode parecer incua, inaugura,
na verdade, a possibilidade de uma organizao alternativa da termodinmica. Gibbs quem se
percata disso e formula uma teoria analtica da termodinmica, que se baseia em dois princpios
equivalentes de natureza variacional. Do ponto de vista matemtico, a teoria de Gibbs mais
robusta e sofisticada que as anteriores. Todo a informao sobre os sistemas termodinmicos
reside agora em funes que se relacionam umas com as outras atravs de especficas
transformaes. Estas funes so chamadas potenciais. Da que a abordagem inspirada na
teoria de Gibbs ser denominada de termodinmica de potenciais.
O objetivo do presente trabalho comparar estas duas abordagens da termodinmica.
Antes de tudo, para alcanar tal fim, preciso contextualiz-las historicamente.
Aparentemente, o tema se restringiria termodinmica. No entanto, metodologicamente, a
teoria de Gibbs possui razes nos trabalhos de Hamilton sobre a ptica e a Mecnica, o qual,
por sua vez, um grande admirador do modo como Lagrange reorganizou a mecnica. O
contexto bem mais amplo do que aparentava! O prprio Lagrange justificava seu mtodo
analtico de fronte das alternativas anteriores, de Galileu a Euler, passando obviamente por
Newton, como o derivado do princpio mais fundamental da mecnica: o princpio do trabalho
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virtual ou das velocidades virtuais. Por isso, histria da mecnica vem dedicado o primeiro
captulo desta obra, mas no se trata de uma histria de nomes e conceitos, mas uma histria da
organizao metodolgica das teorias mecnicas deste perodo, que ao mesmo tempo e
inseparavelmente uma histria da matematizao da mecnica at Lagrange.
Como constituindo parte de uma teoria mecnica, o mtodo de Lagrange tambm foi
considerado por alguns um modo de mecanizar a cincia, tal como aplicaes das leis de
Newton a outros campos da Fsica foi interpretado como uma reduo destes mecnica. E
preciso concordar em parte com esta crtica se se toma o mtodo tal como formulado por
Lagrange na Mcanique analytique, pelo fato do princpio da teoria ser eminentemente
mecnico. Nesse sentido o trabalho de Hamilton de analitizao da ptica geomtrica e
ampliao do mtodo de Lagrange tambm para a Mecnica tem o poder de evidenciar que o
mtodo de Lagrange, um modo de organizar variacionalmente um campo da Fsica a partir de
um princpio relacionado a uma funo que caracterize completamente o sistema em estudo,
seja mecnico, seja ptico, ou outro qualquer. A este objetivo vem dedicado o segundo captulo
desta tese.
Os dois primeiros captulos so assim dedicados a contextualizar historicamente a teoria
de Gibbs e a termodinmica de potenciais. A termodinmica de ciclos, pelo contrrio, restrita
ao mbito da histria da conceitualio e matematizao dos fenmenos trmicos. Nesse
sentido, uma histria da termodinmica focada nestes dois aspectos suficiente para fazer
brotar as principais propriedades da termodinmica de ciclos. A este fim vem dedicado o
terceiro captulo. Por sua vez, como histria da termodinmica, o terceiro captulo pede um
complemento que abarque tambm as teorias de Gibbs e de Carathodory. Este o quarto
captulo, onde sero feitas algumas pontes entre o mtodo de Hamilton e a teoria de Gibbs,
evocadas nos dois primeiros captulos.
Os quatro primeiros captulos so de carcter eminentemente histrico. Os objetivos so
os enunciados mais acima, mas algumas vezes, mais do que planejvamos inicialmente,
questes secundrias se introduzem, desviando momentaneamente o curso das guas. A volta ao
curso normal ser feita muitas vezes antecipando alguns resultados que sero explicitados
somente no final do quarto captulo. Alm disso, a narrativa histrica seguir a ordem do tempo
segundo os autores envolvidos em cada mbito como uma histria das ideias, a qual, para dar
um exemplo, compreende de Sadi Carnot, passando por Clapeyron, William Thomson,
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Clausius, Gibbs, at Carathodory. As principais obras destes autores, referentes ao tema de
interesse, so analisadas e resumidamente apresentadas. Dentro do possvel, mantemos a
terminologia e a notao de cada um. Nos casos em que pode haver confuso, procederemos
com os esclarecimentos necessrios e apalaremos para uma notao mais prxima da
comumente empregada hoje.
Situadas historicamente, passamos ento ao confronto das teorias. A ideia resolver
alguns problemas de termodinmica atravs de cada uma das duas abordagens para averiguar
qual possui um poder explicativo maior e qual, segundo a lgica da deduo, mais racional.
Para tanto, preciso tipificar cada uma das abordagens para evitar zonas de interseco em
demasia largas. Isso poder parecer a alguns conceder um favorecimento injustificado a uma
das abordagens, contudo, sem tal tipificao, uma comparao que evidenciasse aspectos
metodolgicos das teorias no seria vivel. Nisso, uma srie de outras questes vinculadas
metodologia vem tona, sendo a principal delas a passagem do veredito a respeito do confronto
entre as abordagens de ciclos e de potenciais para o conjunto de teorias fsicas formuladas
segundo o mtodo sinttico e o analtico. Esta passagem de grande interesse para a filosofia
da cincia, pois permite uma preciso na lgica da pesquisa cientfica de Popper.
Este trabalho est em dilogo com outras teses e artigos tambm orientados pelo prof.
Jos Raimundo Novaes Chiappin, como a de Cesar Augusto Battisti (BATTISTI 2002; 2010), e
Cassio Costa Laranjeiras (LARANJEIRAS 2002; 2006; 2008). Semelhante comunicao ocorre
tambm com alguns trabalhos de autoria conjunta de Jos Raimundo Chiappin e Ana Carolina
Leister, especialmente os que exploram os programas de pesquisa pragmtico e racionalista
(CHIAPPIN; LEISTER 2010; 2011; 2014). Alm do dilogo com estes trabalhos, a presente
tese se mostra em sintnia com uma das mais frteis linhas de pesquisa do prof. Jos Raimundo
Novaes Chiappin, aquela que tem incio com sua tese doutoral em Filosofia (CHIAPPIN 1990)
sobre a filosofia da cincia de Duhem e que desde ento investiga a racionalidade de diversos
programas de pesquisas (ver bibliografia).
Se possvel escolher um texto, eu destaria um artigo de recente publicao tive
acesso a uma verso anterior, mais extensa , sobre o qual me debrucei durante muitos meses
nos primeiros anos do doutorado. Trata-se de (CHIAPPIN 2014), no qual o prof. Chiappin
compara, luz da filosofia da cincia de Duhem, a mecnica sinttica e a mecnica analtica.
Com o presente tema de tese e este artigo, eu estruturei meu estudo como uma evoluo das
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ideias, destacando em cada personagem escolhido a metodologia de matematizao da fsica.
Por uma questo bvia, eu pude dar mais espao histria, ao que fez cada personagem
escolhido. Por outro lado, a discusso filosfica que aqui ofereo mostra-se como um reflexo,
imperfeito s vezes, daquela realizada no mencionado artigo. No conseguirei render toda
justia ao influxo deste e de outros trabalhos do prof. Chiappin, e com este a dos colegas
citados no anterior pargrafo. Por isso os cito explicitamente nesta introduo para que o leitor
tenha claro que esta tese possui um contexto, sem o qual nem a proposta de trabalho teria sido
gerada. Peo desculpas por isto!
Este o contexto intelectual do que segue nas prximas pginas. A a comparao entre
a termodinmica de ciclos e de potenciais encontra seu habitat natural, sentido e alcance. A este,
por fim, pretendemos contribuir dificilmente o consiguiremos fazer na mesma altura dos
colegas citados com uma reconstruo parcial do programa de pesquisa de Gibbs,
parcialmente porque os temas anexos so vrios e alguns realmente complexos, em parte
tambm porque tal reconstruo no possvel ser feita sem explicitar a matemtica envolvida
no projeto.
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CAPTULO 1
Uma breve histria da Mecnica: da geometrizao
analitizao do movimento
O que se procura neste captulo apresentar a evoluo da ferramenta matemtica de descrio
ou representao da natureza, em especial, do movimento. Sugerindo dessa forma o relato a
fazer, descobre-se imediatamente, pela prpria construo da frase, como que uma presso que
o desejo de descrever e representar a natureza, inerente aos filsofos da natureza, exerce sobre a
ferramenta a disposio para aperfeio-la, caso se mostre demasiadamente rudimentar, ou
modific-la, caso seja inadequada. Esta presso perceptvel em alguns autores/obras de
filosofia natural, como Galileu, Newton, Euler e Lagrange, sem esquecer de Descartes, o pai da
geometria analtica, apesar de alguns renomados historiadores da cincia afirmarem que a
filosofia natural cartesiana, diante do problema do movimento, no incorporar as principais
descobertas matemticas feitas por ele, no concebe uma cincia do movimento que seja
matemtica, mas qualitativa (cf. KOYR 1986, p. 159). Obviamente, h outros nomes, como
Huygens, Leibniz, os Bernoulli, d'Alembert, etc, que poderiam constar no relato. Isso
verdade, tanto que, de fato, eles participam, como coadjuvantes, do presente roteiro. Como o
interesse , porm, coletar dados a respeito da evoluo matemtica associada representao
do movimento, e os mesmos, em alguns casos, encontram-se exemplificados em vrios autores,
basta com escolher alguns deles. Isso ocorre, por exemplo, entre Huygens e Newton, entre
Leibniz mais os dois Bernoulli e Euler, d'Alembert e Lagrange. Galileu, por outro lado, sem
par, pois na sua obra que se realiza, pela primeira vez na histria do pensamento humano, a
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ideia da fsica matemtica (cf. KOYR 1986, p. 345). Nada mais natural, portanto, que comear
o relato por ele1.
1.1 A geometrizao do espao
A compreenso da natureza no final do Renascimento se dava por meio de modelos ou
categorias herdadas sobretudo de Euclides, Arquimedes e sobretudo Aristteles2. A Euclides,
por exemplo, devia-se a teoria das propores que era a principal ferramenta para a
matematizao dos fenmenos da natureza at o final do sculo XVII. Esta teoria, desenvolvida
no livro V dos Elementos, opera com magnitudes (comprimentos, volumes, peso, etc) cuja soma
e comparao h significado, isto , as razes formadas devem ser entre magnitudes de mesma
classe, tambm chamadas homogneas, como volume com volume e peso com peso. A teoria
das propores, portanto, no prev razes entre duas magnitudes heterogneas, como, no caso
da cinemtica, entre espao e tempo para definir velocidade, pelo simples fato de uma razo
no ser nem constituir uma nova magnitude. Por exemplo, quando a velocidade constante, a
razo entre os espaos deve ser comparada com a razo entre os tempos para percorrer estes
mesmos espaos, ou, quando a distncia percorrida a mesma, a razo entre as velocidades
deve ser comparada com a razo inversa dos tempos. Nesse sentido, a descoberta das razes
incomensurveis os nmeros irracionais , como a razo entre a diagonal e o lado de um
quadrado, era interpretado como uma insuficincia do conceito de nmero diante daquele de
razo. Apesar da no entizao das razes, uma operao entre elas era possvel: a composio.
Sendo A, B e C quantidades homogneas, A/C chamada a razo composta de A/B e B/C. As
1 No apenas este captulo, mas toda a tese apoia-se sobre o estudo da matematizao da Fsica, especialmente da Mecnica, da ptica geomtrica e da Termodinmica. Fico grato ao prof. Chiappin por ter me incentivado a explorar este aspecto das teorias, tanto por palavra como por escrito (CHIAPPIN 2013a), pois, ao final, ele mostrou-se extremamente frtil.
2 A influncia desses personagens na obra de Galileu manifesta. Por exemplo, no Dilogo, a linguagem a matemtica euclidiana, um dos participantes no dilogo um portavoz do aristotelismo e Arquimedes frequentemente citado. O patrimnio intelectual da poca, no entanto, no pode ser remetido somente a esses autores. Em particular, a cincia mecnica a qual Galileu e a escola italiana do sculo XVI-XVII tinham diante dos olhos no a aristotlica, mas, segundo Duhem, a da universidade de Paris do sculo XIV: A habilidade matemtica adquirida no comrcio com os gemetras da antiguidade, Galileu e seus contemporneos a utilizaram para precisar e desenvolver uma cincia mecnica da qual a Idade Mdia crist tinha posto os princpios e formulado as proposies mais essenciais. Essa mecnica, os fsicos que ensinavam, no sculo XIV, na Universidade de Paris tinham-na concebido tomando a observao como guia; eles a substituram dinmica de Aristteles, convencidos de sua impotncia para salvar os fenmenos (DUHEM 1955, v. 3 p. 5). Em relao ao aristotelismo, a novidade da mecnica medieval experimental e conceitual, como se v pela insero por parte dos doutores parisienses de novos conceitos fundamentais como o de mpeto e o de movimento acelerado. A matematizao, como o texto citado deixa entrever, parte da contribuio que Galileu e seus contemporneos.
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razes devem ser continuas, ou seja, os extremos A e C devem ser intermediados por uma
quantidade comum B. Quando no este o caso, A/B e C/D, ento deve ser encontrada outra
razo B/F, que seja igual a C/D, tal que a composio entre A/B e C/D possa ser expressa
tambm como a composio entre A/B e B/F, cujo resultado A/F.
A teoria das propores, portanto, serve para estabelecer contato entre dois conjuntos de
magnitudes: a razo de magnitudes homogneas pode ser relacionada com a razo de outras
magnitudes homogneas. Quando um problema envolve vrias magnitudes, a proporcionalidade
se investiga fazendo a razo de uma das magnitudes relacionar-se com a potncia da razo de
outra. As demais quantidades so mantidas fixas. Esta uma limitao da teoria das propores:
as magnitudes so relacionadas somente aos pares. Nesse sentido, como veremos mais adiante,
o estudo do movimento uniforme de Galileu, nas Duas novas cincias, significa uma
flexibilizao da teoria das propores na medida em que, atravs da composio de razes, ele
expressa a distncia como proporcional velocidade e ao tempo conjuntamente.
A tentativa de compreender a natureza atravs da teoria das propores foi, no entanto,
tarefa empreendida por poucos antes de Galileu. E isso, em boa parte, por causa da influncia
da viso de cosmos herdada de Aristteles. De fato, esta, entre outras coisas, fundamenta a
teoria aristotlica do lugar e inspira explicaes por causas finais. O cosmos concebido como
um conjunto ordenado de objetos, possuindo cada um uma natureza prpria, a qual posta de
manifesto pela mesma ordenao ou distribuio espacial dos objetos no cosmos. Espao e
cosmos no so distinguveis. Este o contexto da chamada teoria do movimento natural dos
corpos, onde cada corpo, conforme sua natureza ou qualidade caracterstica, ocupa um lugar e
executa um movimento que lhe prprio no Cosmos. Dada a estreita relao entre Cosmos e
natureza/essncia/qualidades dos objetos, o movimento deve ser concebido qualitativamente.
Assim, por exemplo, corpos pesados possuem um movimento natural para baixo, enquanto
corpos leves, para cima, pois so caracterizados qualitativamente pela gravidade e pela leveza,
respectivamente. Estas qualidades so reais, existem nos objetos, o que faz com que a causa do
movimento lhes seja intrnseca e no extrnseca, levando ao privilgio de lugares e direes
conforme a natureza do corpo: para cada coisa corresponde um lugar natural no qual sua forma
substancial alcana a perfeio. Se alguma coisa retirada do seu lugar natural, ela tende a
voltar pois tudo tende perfeio. Se ela j se encontra em seu lugar natural, ela tende a
permanecer ali. Movimentos contrrios ao natural, como o de uma pedra lanada para cima ou
o de um projtil so violentos e no podem perdurar para sempre. Na verdade, qualquer
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movimento que no seja o natural, como o de um corpo arrastado horizontalmente, violento.
O lugar natural dos corpos graves o centro da Terra ao qual so atrados pela
gravidade, no a gravidade externa como a entendemos desde Newton a exercida pela Terra
sobre os corpos , mas interna, corresponde sua forma substancial dirigir-se para o centro.
Esta fora de atrao intrnseca, interna ao prprio objeto; e o arrasta at o centro; mas l
chegando, l permanece. Por outro lado, o lugar natural dos corpos leves a regio contigua
esfera da Lua, mas ainda subl-unar. Para l tendem o fogo, a fumaa e os vapores. Aos corpos
celestes correspondem a regio acima da Lua, supra-lunar, no porque so ainda mais leves,
mas porque so de outra natureza, so divinos. A eles no se aplicam as regras da fsica
terrestre, em particular a da impermanncia do movimento: o movimento acima da esfera lunar
eterno (cf. DUGAS 1988, pp. 20-21). Portanto, metafisicamente, a viso de cosmos de
Aristteles implica uma teoria do lugar, que caracteriza o movimento como qualitativo.
H, alm disso, razes epistemolgicas impeditivas matematizao da natureza:
impossvel matematizar a forma e a qualidade, pois a matria terrestre nunca assume formas e
qualidades precisas como so as matemticas nmeros, pontos, retas, circunferncias, cnicas,
etc , sendo, por isso, mais adequado deixar aos saberes de cunho experimental, como a fsica e
a metafsica, o estudo dos seres e fenmenos naturais. A disparidade entre matemtica e
natureza consequncia da prpria composio hilemrfica do natural e da irredutibilidade da
natureza material somente forma ou somente matria. Ento, como cincia abstrata de
formas puras, a matemtica mostra-se deficiente diante da concretude do natural3 (cf. KOYR
1986, p. 349-350). Ao carcter abstrado, deve-se somar a imobilidade do nmero e das outras
formas matemticas, alargando ainda mais o abismo entre matemtica e os fenmenos naturais.
Com mais razo, o movimento no confiado matemtica, mas metafsica. Aqui se d o
sepultamento da matemtica dentro da cosmoviso aristotlica: ignoto motu ignoratur natura.
Como, no plano metafsico, o movimento segue a natureza, que, no plano epistemolgico,
equivale a dizer que a natureza se manifesta (se d a conhecer) atravs do movimento, o
conhecimento a respeito dos seres e fenmenos terrestres se d por meio de cincias cujo
mtodo seja experimental (cf. KOYR 1986, p. 359).
Diferentemente de Aristteles, Arquimedes concebeu a cincia fsica da esttica sem
pretenses explcitas de incorpor-la em um sistema de mundo. Pelo contrrio, com postulados
3 Nos cus, no mundo supra-lunar, as coisas passam-se diferentemente. De fato, a matria celeste de outra natureza, divina, o que explica, por exemplo, a perfeio, circularidade, e eternidade do seu movimento.
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de origem experimental e demonstraes matemticas rigorosas, ele fez da esttica uma cincia
terica autnoma. Pormenores desta cincia no sero mencionados. Basta com saber que, j
desde o renascimento, as maiores repercusses do trabalho de Arquimedes esto tanto nos
detalhes da aplicao da geometria aos efeitos naturais como no carcter modelar de
conhecimento cientfico (cf. DUGAS 1988, p. 24).
Esta foi a herana intelectual recebida por Galileu e seus contemporneos, enriquecida
por conquistas mais recentes realizadas no Renascimento, como uma maior difuso dos saberes
clssicos antigos e um ambiente mais propcio ao debate. Da primeira conquista, um exemplo
a relativizao da tradio aristotlica com respeito ao papel da matemtica na compreenso do
mundo dos sensveis. De fato, Plato oferece no Timeu um relato dos esforos do demiurgo para
preencher de racionalidade causas errantes, que, por natureza, so destitudas da mesma. Esse
tipo de causa chamada de anank (ou necessidade), que significa fundamentalmente
irracionalidade pois no nunca completamente compreendida pela razo , e governam os
fenmenos pertencentes ao mundo dos sentidos. A consequncia que h algo de intratvel na
ordem dos sentidos, que acaba por no permitir a completa transformao da natureza em
contedos de natureza racional. O motivo da impossibilidade de uma completa racionalizao
da ordem dos sensveis est na tenso dialtica dos conceitos, expressa no fato que toda
determinao, diferenciao, negao. A ordem do sensvel destituda de inteligibilidade
intrnseca, pois cada coisa o que na medida em que no as outras coisas. Assim, a
definio de cada coisa deve incluir todas as outras; a essncia das coisas no est nelas
mesmas. Nasce dessa dialtica uma desarmonia entre realidade, a coisa em s, e a pluralidade,
as outras coisas que alienam a coisa em s.
A ordem do sensvel no se rende completamente razo ou, o que o mesmo, a razo
no abarca completamente a ordem do sensvel, pois esta a ordem da multiplicidade: cada
membro de uma multiplicidade , pela prpria participao nessa multiplicidade, no uma
inseidade, mas uma entidade internamente constituda por uma srie interminvel de relaes.
Somente na transcendncia uma coisa uma essncia idntica a s mesma, mas ento ela
tambm idntica a todas as outras, e consequentemente inefvel. Portanto, uma cincia do
plural, como a cincia do movimento ou a mecnica em sentido mais geral, deve envolver uma
construo e no uma descoberta da inteligibilidade; e a matemtica pode prover de
inteligibilidade a ordem dos sensveis (cf. MCTIGUE 1988, pp. 368-369).
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-
A oposio em relao a Aristteles radical. No apenas porque nega a pluralidade de
formas entendidas como centros de densidade essencial, mas sobretudo, no que concerne nosso
estudo, atribui um papel matemtica na construo da intelibilidade dos fenmenos fsicos.
Aristteles, como foi dito, sublinha a inadequao da matemtica diante dos fenmenos fsicos,
cujo melhor mtodo de investigao seria o experimental. Da que muitos, como Koyr,
Cassirer, Burtt e Crombie, encontrem no simples recurso matemtica como linguagem uma
prova do platonismo de um autor: se atribuis matemtica um status superior, melhor, se
atribuis a ela um valor real e uma posio de comando na Fsica, es um platonista. Se, ao
contrrio, ves na matemtica uma cincia abstrata de menor valor que as referidas aos seres
reais (fsica e metafsica), se, em particular, pretendes que a fsica no tenha necessidade de
outra base que a experincia ento, es um aristotlico (KOYR 1943, p. 421). Se esta a
chave de leitura da questo, ento Galileu deve ser reconhecido como um platonista. Mas com
esta categorizao no se ganha muito, e se mascara o pensamento de Galileu sobre a
matematizao da natureza de platonismo. Em particular, a cincia do movimento como um
mero salvar as aparncias de algo que na realidade irracional, inteligvel corresponderia,
na viso de Galileu, a nada mais que a uma construo matemtica, vazia de significado
natural? Em geral, aceitvel a tese de que o matematismo em fsica platonismo, mesmo se
se ignora; da que o advento da cincia clssica seja, visto de fora, um regresso a Plato
(KOYR 1986, p. 348)? No responderemos a esta pergunta agora, nem, tampouco, referindo-a
somente a Galileu. F-lo-emos ao final do presente captulo, quando tivermos mais elementos
caracterizantes do processo de matematizao da natureza4.
Sobre a realidade de um ambiente mais propcio ao debate, um aspecto dessa segunda
conquista a recuperao de teses heliocentriscas em detrimento do sistema geocntrico de
Ptolomeu. Entre estes trabalhos destaca-se o de Coprnico, e, posteriormente, impondo um
ponto final astronomia antiga, o sistema planetrio de Kepler. Um ambiente mais propcio, no
entanto, no significa um ambiente ideal. A cincia como um campo do saber autnomo,
especialmente em relao teologia, no estava ainda delimitado. Defend-la de intromisses
indevidas foi uma das grandes contribuies de Galileu cincia em geral. Tal atitude, todavia,
acarretava certos riscos dos quais Galileu era consciente. Antes dele, Coprnico havia sido
4 Fui indiretamente motivado a questionar a categorizao do recurso matemtica em Galileu como platonismo nas aulas do prof. Pablo Mariconda (Filosofia-USP). Em uma destas ocasies, o prof. Pablo nos perguntou sobre o que se ganha enquanto compreenso da pessoa e da obra de Galileu ao classificar sua postura diante da matemtica e da incipiente cincia como platonista ou aristotlica. Respondeu ele que pouco ou nada. Como no sou especialista em Galileu, prefiro focar minha crtica no neste ponto, mas no do recurso matemtica.
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-
condenado pela Inquisio por defender e difundir o que ento pareciam ser ideias contrrias
revelao divina contida na Bblia. Giordano Bruno, igualmente, mas condenao nos
tribunais foi seguida a morte nas chamas em um praa de Roma.
Imbudo das ideias de Coprnico, Bruno pode, por um lado, negar formalmente a teoria
aristotlica do lugar e a associada concepo do cosmos, e, por outro, afirmar a infinidade do
universo, que implica a geometrizao completa do espao. Koyr descreve de modo at
potico os efeitos do trabalho de Giordano Bruno sobre sua gerao e as seguintes: deixam de
haver lugares e direes privilegidas. E isto, por sua vez, implica a indiferena do espao, e dos
corpos, em relao ao movimento e ao repouso. O prprio universo tem o seu lugar no espao:
vazio imenso, infinito, que sustm e recebe o real. O cosmos medieval est destrudo; pode-se
dizer que desapareceu no vazio, arrastando consigo a fsica de Aristteles e deixando lugar vago
para uma cincia nova que Bruno, todavia, no ser capaz de fundar (KOYR 1986, pp. 218-
224).
Todas estas influncias borbulham como pensamentos na mente de Galileu, mas ele no
se perde na aleatoriedade de uma corrente de conveco de ideias. O carcter ecltico,
multidiciplinar prprio de Galileu e de seus contemporneos, que se deixa perceber, por
exemplo, no recurso ao estilo literrio dialgico da sua obra de maturidade, dilogo sobre Duas
novas cincias. O saber cientfico no estava ainda suficientemente delimitado diante de outros
saberes para garantir a satisfatoriedade de um estilo que ser predominante pouco mais de um
sculo depois nas obras sobre a mecnica, o axiomtico. Ao contrrio, filosofia, cosmologia,
teologia, histria, mecnica e matemtica entrelaam-se continuamente na argumentao
explanatria acerca dessas novas cincias. Como nossa investigao versa sobre a empresa de
matematizar a natureza, nada mais natural que focarmos a ateno nesse aspecto. Passemos,
pois obra de Galileu.
Na terceira jornada do dilogo sobre Duas novas cincias, Galileu introduz a segunda
das duas novas cincias, s quais o ttulo faz referncia. A primeira a Esttica, a segunda, a
cincia do movimento ou Dinmica, cujo tratamento vem feito em trs partes.
A primeira, a respeito do movimento constante ou uniforme, inicia-se com uma
definio: Entendo por movimento constante ou uniforme aquele cujos espaos, percorridos
por um mvel em tempos iguais quaisquer, so iguais entre si (GALILEI 1988, p. 121). A
palavra quaisquer propositamente includa por Galileu introduz uma tenso nesta frase.
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-
Tempos iguais quaisquer guarda em si, implicitamente, a operao de limite, de assumir
hipoteticamente que os intervalos de tempos possam, entre infinitos outros, tender tambm a
valores cada vez menores. Ora, este tipo de operao faz com que a velocidade, considerada
como o espao percorrido por um mvel em um certo tempo, deixe de ser determinada e
dependente do espao e do tempo, e passe a ser uma grandeza independente, primitiva.
preciso ento acrescentar, lista de grandezas primitivas para o estudo do movimento o
espao e o tempo , a velocidade instantnea.
A partir dessa definio, Galileu formula quatro axiomas e em seguida seis teoremas ou
proposies. Nesses dois conjuntos de enunciados, percebe-se uma irredutibilidade da
velocidade razo entre o espao e o tempo. Pelo contrrio, reafirma-se a o carcter primitivo
da velocidade. Portanto, a cincia do movimento adota o prprio movimento como grandeza
primitiva. No basta a anlise dos efeitos do movimento: o espao percorrido e o tempo
empregado para tanto. A cincia do movimento deve se interessar pelo movimento em si
mesmo e no apenas por seus surrogatos; deve ser capaz de instantaneiz-lo, evitando o
empobrecimento que significaria trat-lo como mdia.
Outro aspecto de interesse no inicio da Terceira Jornada como vem realizada a
matematizao do movimento. Nada melhor que tomar para estudo um dos teoremas dessa
parte, onde a matematizao do movimento feita explicitamente. No teorema I, vem dito que
se um mvel em movimento uniforme percorre dois espaos com a mesma velocidade, os
tempos dos movimentos esto entre si como os espaos percorridos (Idem, p. 122). Para
demonstrar a veracidade da proposio, Galileu serve-se do instrumento disponvel, a teoria das
propores. Para tanto, ele apresenta duas escalas na forma de retas, onde a primeira (IK)
representa os tempos empregados para percorrer os espaos percorridos na segunda (GH).
O mvel percorre o trecho AB em um tempo DE, enquanto o trecho BC percorrido em
um tempo EF. Prolongando o espao em direo a G e a H e o tempo em direo a I e a K,
pode-se em seguida dividir ID, na reta tempo, em trechos iguais a DE, e FK em trechos iguais a
EF, ou seja, IE construdo para ser um mltiplo inteiro de DE, e EK um mltiplo inteiro de
EF. O mesmo deve ser feito para os trechos GB e BH da reta espao, mas de tal forma que GB e
IE sejam mltiplos iguais de AB e DE, valendo o mesmo para BH e EH, respectivamente a BC e
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I D E F K
G A B C H
-
EF. Pelo dito, IE o tempo necessrio para percorrer o espao GB. Igualmente, EK o tempo
necessrio para percorrer BH. Mas como o movimento por definio uniforme, se o espao
GB for igual ao espao BH, o tempo IE ser tambm igual ao tempo EK, e, se GB fosse maior
ou menor que BH, tambm IE seria maior ou menor que EK (Idem, p. 123).
Consequentemente, das quatro grandezas iniciais, AB, BC, DE e EF, a primeira est para a
segunda, a saber, o espao AB est para o espao BC assim como a terceira est para a quarta,
ou seja, como o tempo DE est para o tempo EF, que o que queramos demonstrar (Idem, p.
123).
Em vez de pensar como esta argumentao superflua e circular, dada a natureza do
movimento constante, mais ilustrativo ver no recurso geometria das propores um modo de
fazer palpvel a ideia de tal movimento. Movimento constante aquele que segue a seguinte
regra de proporo conforme se escreviria hoje , AB:BC=DE:EF, isto , para intervalos de
tempos iguais quaisquer, os espaos percorridos so sempre iguais, ou, para mesmas distncias,
o tempo empregado sempre o mesmo. Raciocinar tendo como instrumento a teoria das
propores impe s cincias do movimento um carcter eminentemente discursivo, seja por
palavras seja por figuras geomtricas, em contraposio ao carcter algbrico formal da fsica
matemtica ps Euler. A evoluo pela qual a Mecnica passar em pouco mais de um sculo
no , como bvio, somente lingustico-simblico, mas operacional: exigir um novo
formalismo, mais analtico, e a criao/incluso/formalizao de novas operaes matemticas.
Nesse sentido, curioso verificar nos livros de histria da Matemtica que os grandes nomes
dessa cincia nesse perodo pertencem igualmente histria da Fsica ou, pelo menos, da
Mecnica.
No teorema II, se um mvel percorre dois espaos no mesmo intervalo de tempo, esses
mesmos espaos esto entre si como as velocidades. E, se os espaos esto entre si como as
velocidades, os tempos so iguais (Idem, p. 123), o raciocnio semelhante. De fato, a partir
da mesma figura, apenas reinterpretando o segmento IK como a escala de velocidade e no mais
de tempo, conclui-se que os mltiplos GB e IE so ou menores, ou iguais, ou maiores que os
mltiplos BH e EK. Dessa forma, fica evidente a proposio (Idem, p. 123). V-se, como
antes, que a proporcionalidade dos espaos e das velocidades deriva do fato dos mltiplos
serem ou menores, ou iguais, ou maiores. No caso da igualdade, trivial observar a
proporcionalidade. Nos outros dois, parece ser necessrio algum detalhe a mais: eles devem ser
ou menores ou maiores proporcionalmente: sendo a distncia GB ou menor ou maior que BH,
14
-
ento a velocidade IE deve ser proporcionalmente ou menor ou maior que a velocidade EK.
Novamente, em vez de estranhar a ausncia de um termo que se refira explicitamente
proporcionalidade, mais interessante, talvez, perceber a circularidade que h entre movimento
constante e teoria da propores: se as propores exemplificam bem como se d o movimento
constante, por outro lado, este ltimo corresponde integralmente geometria das propores.
O teorema III, que afirma que para um mesmo espao percorrido por velocidades
desiguais, os intervalos de tempo so
inversamente proporcionais s velocidades,
utiliza-se do teorema II para sua demonstrao,
mas no ser explorado aqui para que se possa
passar diretamente ao teorema IV, que um caso
de proporo composta e diz assim: se dois
mveis se movem com movimento uniforme, mas com diferentes velocidades, as distncias
percorridas em tempos desiguais esto entre si numa proporo composta pela proporo entre
as velocidades e a proporo entre os tempos (Idem, p. 124). Reproduzindo os smbolos
utilizados por Galileu, os dois mveis, E e F, possuem velocidades A e B e se movem em
tempos proporcionais a C e D, respectivamente. Ver a figura acima.
G a distncia percorrida pela mvel E com velocidade A no tempo C. Introduzindo a
distncia intermediria I de tal forma que G esteja para I assim como a velocidade A est para a
velocidade B, ento segue que I corresponde distncia que o mvel F com velocidade B
percorre no tempo C, isto , no mesmo tempo em que E percorre G. A proporcionalidade entre
G e I conforme s velocidades dos mveis deve ser acompanhada pela proporcionalidade de I e
L conforme os tempos. Quer dizer, a distncia I est para a distncia L assim como o tempo C
est para o tempo D, o que implica que L a distncia que o mvel F percorre no tempo D. Por
isso, I foi chamada mais acima de distncia intermediria, introduzida para compor atravs dela
a proporcionalidade, primeiro, entre as velocidades dos mveis e, depois, entre os tempos
empregados pelos mesmos. O resultado a proporo composta: G:L=AC:BD. Empregando
smbolos mais familiares, para expressar a mesma ideia, o mvel 1, em movimento uniforme,
percorre um espao s1 em um tempos t1 com velocidade v1. J o mvel 2 percorre um espao s2 em um tempo t2 com velocidade v2. Como se pode observar, este problema, de certa forma,
exige uma flexibilizao da teoria das propores pois se trata agora de compor uma proporo
entre trs pares de magnitudes e no mais entre dois pares como era costume. A tcnica, no
15
A
B
C
D
E
F
I
L
G
-
entanto, a mesma empregada nos casos de razes compostas. Introduz-se um movimento
intermedirio 3 com as caractersticas: t3=t1 e v3=v2. Dessa forma, s1:s3=v1:v3 e s3:s2=t3:t2. Como
s1:s3 e s3:s2 esto na forma de uma razo composta cujo resultado s1:s2, est ser proporcional
a v1:v3:t3:t2, que, recordando as caractersticas do movimento intermedirio, pode ser escrita
como v1:v2:t1:t2. Encarando as razes como quocientes, tem-se s1:s2=v1t1:v2t2. importante no
esquecer, porm, que somente com Descartes, com a analitizao da geometria e a
consequente algebrizao das propores, que as razes passam a ser encaradas como
quocientes e as propores como equaes. Entre outras consequncias, o resultado do produto
de dois segmentos, x1 com x2, no mais considerado, como se dava na tradio euclidiana,
uma rea, mas apenas outro segmento mais. A multiplicao e as outras operaes bsicas
tornam-se operaes fechadas: soma, subtrao, produto ou diviso de segmentos continua
sendo um segmento. Segmentos e nmeros so assim aproximados, no havendo mais motivos
para restringir as razes somente a quantidades homogneas (cf. GUICCIARDINI, pp. 125-
128).
Como se pode verificar, o texto original algo mais difcil de se entender, mas boa parte
dessa dificuldade no devida s complexidades das operaes envolvidas e sim carncia de
hbito no que diz respeito adoo e aplicao das regras de proporcionalidade. Uma estrutura
semelhante encontra-se nos dois ltimos teoremas referentes ao movimento constante. Seria
repetitivo analis-los aqui. mais interessante passar ao movimento uniformemente acelerado.
A investigao das caractersticas fundamentais do movimento uniformemente acelerado se d
em um contexto de debate entre os trs personagens envolvidos (Salviati, Sagredo e Simplcio),
no qual as dificuldades e pedidos de esclarecimentos so postos explicitamente. Galileu, pelos
lbios de Salviati, o define assim: chamo movimento igualmente, ou o que o mesmo,
uniformemente acelerado, quele que, partindo do repouso, adquire em tempos iguais,
momentos iguais de velocidade (GALILEI 1988, p. 127). O primeiro pedido de esclarecimento
a respeito dessa definio apoia-se na impresso que um grave que cai a partir do repouso e
adquire determinado grau de velocidade deve passar antes por todos os graus de velocidades
menores que este que so infinitos , mesmos graus de velocidades de extrema lentido, que
no percorriria caso continuasse seu movimento com essa lentido, uma milha nem numa
hora, nem num dia, nem num ano, nem em mil anos, nem teria percorrido um s palmo num
tempo ainda maior; consequncia qual parece que a imaginao dificilmente se acomoda,
enquanto que os sentidos nos mostram que um grave em queda cai imediatamente com grande
16
-
velocidade (Idem, p. 128). O representante da tradio escolstica aristotlica, Simplcio o
nome muito sugestivo , acrescenta a isso um sed contra: mas se os graus de lentido cada
vez maior so infinitos, nunca podero extinguir-se totalmente; razo pela qual um grave
ascendente nunca chegar ao repouso, mas se mover infinitamente, cada vez mais devagar,
coisa que no vemos acontecer (Idem, p. 129). A lgica desse argumento a mesma que faz do
clssico problema da corrida entre a lebre e a tartaruga de Zeno, um paradoxo. Este se
fundamenta na impossibilidade de diviso do tempo de modo semelhante do espao. Nesse
sentido, a resposta oferecida por Salviati genial e elucidatora de como a mecnica moderna se
apresenta como uma opo mais consistente e completa: isso o que aconteceria, sr.
Simplcio, se o mvel se detivesse durante algum tempo em cada grau de velocidade; acontece,
porm, que ele simplesmente passa sem demorar mais que um instante. E, posto que em todo
intervalo de tempo, por menor que seja, existem infinitos instante, estes so suficiente para
corresponder aos infinitos graus da velocidade que diminui (Idem, p. 129). Mas este no
mais que o primeiro golpe deferido contra a fsica de inspirao aristotlica. Em seguida,
admite-se que a explicao do movimento dos graves segundo Galileu substitui com vantagem
a verso dos mpetos, naturais e violentos, como causa e mantenedora do movimento.
Aproximando o conceito de mpeto do conceito de fora, sabe-se, desde Newton, que as
duas propostas no so excludentes. O prprio Galileu, porm, tambm o sabia. Sua verso do
movimento naturalmente acelerado dos graves exprime a estreita afinidade existente entre o
tempo e a velocidade: a intensidade da velocidade aumenta com aquela simplicssima
proporo com a qual cresce a continuao do tempo, que o mesmo que dizer, que em tempos
iguais se fazem acrscimos iguais de velocidade (Idem, p. 131). O que ele faz estabelecer os
valores da velocidade conforme o tempo transcorrido, o que pode ser feito sem considerar as
causas da acelerao, como a gravidade e o impulso
impresso pela mo ao lanar algo para cima: No me
parece ser este o momento oportuno para empreender
a investigao da causa da acelerao do movimento
natural, a respeito da qual vrios filsofos
apresentaram diferentes opinies, reduzindo-a alguns
aproximao do centro; outros, reduo
progressiva das partes do meio que falta a serem
atravessadas; outros ainda, a certa extruso do meio
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D
A
B
F
G I
E
C
-
ambiente o qual, ao fechar-se por detrs do mvel, vai pressionando e projetando o mvel
continuamente. Estas fantasias, e muitas outras, conviria serem examinadas e resolvidas com
pouco proveito (Idem, p. 131). Galileu, portanto, no somente traa a linha divisria entre
dinmica e cinemtica, entre causas e descrio do movimento, mas, pelo menos no contexto do
movimento, diz ser de pouco proveito as investigaes a respeito das causas da acelerao.
uma opo pela cinemtica, pela geometria ou descrio do movimento; as causas deste, seja na
forma de explicaes teleolgicas, seja na forma de explicaes mecnicas, no passam de
fantasias. Duhem diria que se trata de uma opo acertada na medida que o que vem feito
fsica e no metafsica, pois cabe fsica o estudo dos fenmenos, cuja fonte a matria bruta,
e das leis que os regem, e metafsica (ou cosmologia), conhecer a natureza da matria bruta,
considerada como causa dos fenmenos e como razo de ser das leis fsicas (DUHEM 1893, p.
42)5. E ao restringir-se aos fenmenos, a cincia do movimento de Galileu seria, nas palavras de
Duhem, um salvar os fenmenos. Nesse sentido, se aceitamos a proposta de Girvin de que, sem
ser explcita, a mecnica de Galileu parece ser elaborada de tal modo a requerer que a fora,
entendida como causa da acelerao, seja tomada como uma grandeza fundamental, juntamente
com o tempo, o espao e a velocidade instantnea (cf. GIRVIN 1948, p. 125), um dos aspectos
do trabalho de Newton seria o de transformar a fsica de Galileu em uma cosmologia.
Depois de convencidos os interlocutores ou retrucadas as objees, Salviati prope um
novo princpio, conectado definio de movimento naturalmente acelerado: os graus de
velocidade alcanados por um mesmo mvel em planos diferentemente inclinados so iguais
quando as alturas desses planos tambm so iguais (GALILEI 1988, p. 133). A leitura das
linhas e entrelinhas do dilogo entre Salviati e Sagredo que segue a apresentao desse
princpio, longe de mostrar uma origem na mais pura especulao idealista platnica, revela
detalhes e pormenores mais tpicos de algum muito afeito ao mtodo experimental. Antes de
tudo, a suposio levantada torna-se merecedora de aceitao sempre que se removam os
obstculos, sejam lisos, sem asperezas e slidos os planos e o mvel de prova seja
perfeitamente esfrico. Mesmo assim, a verdade de tal hiptese difcil de ser estabelecida
fazendo uso de planos inclinados. Como via alternativa, para tanto, Galileu utiliza-se do
pndulo simples. Este, construdo com o fio muito fino fixo em A e uma bola de chumbo de
uma ou duas onas, deslocado de sua posio mais baixa, B, a uma altura C, como indica a
figura acima.
5 A leitura e os sentidos da Filosofia da cincia de Duhem aqui adotada em tudo devedora a (CHIAPPIN 1990). Para o objetivo particular deste trabalho so de grande interesse os captulos 2 e 5.
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-
Quando abandonado, ele desce e depois sobe at (quase) alcanar a linha paralela
horizontal CD, descrevendo o arco CBD. Disto podemos perfeitamente concluir que o mpeto
adquirido pela bola no ponto B, ao transpor o arco CB, foi suficiente para elev-la segundo um
arco similar BD mesma altura (Idem, p. 134). sugerido, para se visualizar melhor o que
acabou de ser dito, fixar uns pregos, por exemplo, nos pontos E e F, no ao mesmo tempo.
Quando E estiver fixado, ver-se- que a linha do pndulo descreve o mesmo arco anterior at
alcanar o prego fixo. Ento a bola passa a descrever o arco BG. Quando fixado F, o arco ser
BI. Em ambos casos, porm, o mpeto adquirido pela bola suficiente para faz-la chegar at
linha horizontal CD. Esta experincia no deixa lugar para duvidar da verdade da suposio
Assim, de modo geral, todo momento adquirido durante a descida por um arco igual quele
que pode fazer subir o mesmo mvel pelo mesmo arco. Ora, todos os momentos que provocam
uma subida atravs dos arcos BD, BG, BI so iguais, visto que so produzidos pelo mesmo
momento adquirido durante a descida CB, como mostra a experincia; logo, todos os momentos
que so adquiridos durante as descidas pelos arcos DB, GB, IB so iguais (Idem, p. 134).
Partindo da hiptese a respeito da velocidade final de mveis que descem por plano
inclinados, verificada somente atravs do recurso ao movimento pendular, como foi apenas
visto, possvel chegar a uma espcie de princpio de inrcia. De fato, se um mvel que desce
por um plano inclinado, nas condies j assinaladas, alcana a mesma altura horizontal da qual
partiu em outro plano inclinado posto justamente frente desde, independentemente de sua
inclinao, ento a inclinao do segundo plano inclinado pode ser to pequena quanto se
queira, e, no limite, coincidir com a horizontal, caso em que o mvel continuar
indefinidamente em linha reta com velocidade constante. Galileu, porm, jamais enunciou tal
princpio formalmente. Foi Huygens e Descartes quem o fizeram (cf. GIRVIN 1948, p. 88),
como se v, por exemplo, no contexto do teorema que ser apresentado a seguir, onde a direo
horizontal considerada como indiferente tanto ao movimento como ao repouso, ou, o que o
mesmo, na horizontal, a resistncia ao movimento nula, visto que com tal movimento no
existe nem perda, nem ganho no referente prpria distncia do centro comum dos graves, que
no plano horizontal se mantm sempre a mesma (Idem, p. 143)6.
6 No contexto do movimento dos projteis, na quarta jornada, aps a apresentao do movimento sobre um plano horizontal como sendo constante e perptuo, o representante da tradio aristotlica, Simplcio, sugere o argumento de que uma linha horizontal, do ponto de vista cosmolgico, uma reta que se afasta continuamente do centro da Terra. Assim, medida que um mvel percorre um plano horizontal a partir da posio mais prxima da superfcie terrestre, na verdade ele se afasta do centro dos graves, devendo por isso ser freado pela gravidade. A resposta a este questionamento simples. Basta propor uma mudana de escala: da escala cosmolgica para uma escala local onde o comprimento do plano horizontal desprezvel comparado com o raio terrestre. No Dilogo,
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-
O teorema II extremamente elucidativo das
caractersticas geomtricas do mtodo de Galileu: se um
mvel, partindo do repouso, cai com um movimento
uniformente acelerado, os espaos por ele percorridos em
qualquer tempo esto entre s na razo dupla dos tempos, a
saber, como os quadrados desses mesmos tempos
(GALILEI 1988, p. 136). Indo direto demonstrao,
proposta a figura ao lado, onde o segmento AB representa o
tempo decorrido, sendo dividido em intervalos iguais, AD,
DE, EF, etc, e, ao lado, os espaos percorridos
correspondentes ao tempos: HL o espao percorrido no intervalo de tempo AD, HM o
espao percorrido no intervalo AE, etc. Conexo a AB, os segmentos DO, EP, etc representam as
velocidades mximas obtidas nos intervalos AD, AE, etc, respectivamente, nos instantes D, E,
etc. Nesse ponto, deve-se recorrer ao teorema precedente que estabelece a igualdade entre os
tempos nos quais um determinado espao percorrido por um mvel em movimento
uniformemente acelerado, nas mesmas condies do atual problema, e em um movimento
uniforme cujo grau de velocidade seja a metade do maior e ltimo grau de velocidade
alcanado no movimento uniformemente acelerado. A demonstrao do teorema I igualmente
interessante do ponto de vista do mtodo geomtrico, alm de ser muito simples, mas ser
deixada de lado, para no alongar demasiadamente a presente discusso. Retornando ao
problema, segue-se que as distncias HL e HM so idntidas s que seriam percorridas nos
intervalos de tempos AD e AE por movimentos uniformes com velocidades iguais metade
daquelas representadas por DO e EP. Essa relao entre os dois tipos de movimento analisados
fundamental, pois permite apelar ao teorema IV, referente ao movimento uniforme, visto
porm, Galileu apresenta um argumento semelhante de origem cosmolgico, mas desta vez para concluir que o movimento retilneo no deve ser considerado um movimento natural. A concluso outra: o plano real uma superfcie esfrica (KOYR 1986, p. 259-260). A opinio de Koyr sobre este tema : em princpio, o privilgio do movimento circular atacado: o movimento enquanto tal que se conserva, e no o movimento circular. Em princpio. Mas, de fato, o Dilogo no vai mais longe. E, ainda que isso tenha sido dito, nunca deslizamos, nem deslizaremos para o princpio de inrcia. Nunca, no mais nos Discursos do que no Dilogo, Galileu afirmar a conservao eterna do movimento retilneo. Isto pela simples razo de que um tal movimento retilneo dos graves uma coisa impossvel, e que para Galileu os corpos no graves deixariam de ser corpos e no poderiam mover-se de maneira alguma (KOYR 1986, p. 296). Na verdade, porm, h sim momentos em que Galileu aplica simultaneamente ao movimento retilneo os qualificativos de uniforme e perptuo. No prximo paragrfo nos depararemos com uma. Portanto, a anterior tese de Koyr deve ser, pelo menos, revista. No este o nosso objetivo. Foram os trabalhos de Gassendi, Torricelli e Cavalieri que comearam da lei da inrcia uma verdade universalmente aceita. No entanto, apesar de no constar como lei fundamental do movimento, a fsica de Galileu profundamente impregnada por esta ideia (KOYR 1986, p. 199).
20
M
I
N
LH
P
A
F
D
E
O
C B
G
-
antes, onde os espaos percorridos por movimentos constantes com velocidades distintas esto
entre s na proporo composta entre as velocidades e os tempos. Como, pela definio de
movimento uniformemente acelerado, a proporo das velocidades a mesma que a proporo
dos tempos, a proporo das distncias percorridas pelo mvel vem a ser a mesma que a
proporo dos tempos, que o que se queria demonstrar. Segue como corolrio, que os espaos
percorridos esto entre si como os nmeros mpares a partir da unidade, 1, 3, 5, 7,
Resta ainda, para encerrar este tpico, expor a teoria de Galileu sobre o movimento dos
projeteis, que se encontra no incio da quarta jornada. No que concerne a gerao desse tipo de
movimento, diz Galileu: imagino que um mvel foi
projetado sobre um plano horizontal livre de qualquer
obstculo; j evidente que dito mvel se movimentar
sobre esse mesmo plano com um movimento uniforme e
perptuo, supondo que esse plano seja prolongado ao
infinito. Se, ao contrrio, supomos um plano limitado e
situado a uma certa altura, um mvel que supomos dotado
de gravidade, uma vez chegado extremidade do plano e
continuando seu curso, acrescentar ao anterior movimento
uniforme e indestrutvel, a tendncia de ir para baixo,
devido a sua prpria gravidade; origina-se, assim, um
movimento composto de um movimento horizontal
uniforme e de um movimento descendente naturalmente acelerado (Idem, p. 197). A
concepo do movimento dos projteis a de um movimento composto. Em seguida, o que
constitui o teorema I da quarta jornada, afirma-se que tal composio resulta em um
deslocamento segundo uma linha semiparablica. A demonstrao desse teorema feita tendo
em conta apenas algumas poucas propriedades essenciais das parbolas, conforme a figura ao
lado, sendo que a principal delas afirma que o quadrado de bd est para o quadrado de fe, na
mesma proporo em que o eixo ad est para a parte ae. O movimento dos projteis compe-se
de um movimento uniforme horizontal e um movimento naturalmente acelerado vertical,
composio que, como tal, preserva as propriedades de cada movimento, no os misturando,
mas compondo-os. Como bd e ef so proporcionais aos tempos, visto corresponderem aos
deslocamentos do movimento uniforme, e ad e ae so proporcionais aos quadrados dos tempos,
visto corresponderem aos deslocamentos do movimento uniformemente acelerado, ento segue
21
t
b
c
dl k
g he
f
a
-
que os deslocamentos das componentes horizontal e vertical se relacionam conforme a
propriedade essencial das cnicas parablicas enunciada acima. H ainda, aps a caracterizao
matemtica do movimento dos projteis, um debate muito interessante sobre questes
cosmolgicas e empricas concernente concepo de movimento composto de Galileu7.
Como se observa da anlise acima, a habilidade matemtica adquirida por Galileu no
comrcio com os gemetras antigos, possibilitou-lhe transformar o espao em um vazio imenso,
que contm em si o prprio universo, em um espao euclidiano. Isso foi o que lhe permite
fundar a nova cincia, tarefa que Giordano Bruno foi incapaz de realizar. A geometrizao do
espao acarretou a geometrizao do movimento, conseguida atravs do estratagema de
flexibilizao da prpria matemtica euclidiana. De certo modo, a geometrizao do espao
decorreu do desaparecimento do cosmos medieval no imenso universo de Coprnico e Bruno. O
argumento que permitiu tal transformao de natureza filosfico (metafsico) e cosmolgico.
A geometrizao do movimento se d por vias mais tcnicas: pela flexibilizao da teoria das
propores. Ocorre, aqui, uma flexibilizao que visa adaptar melhor a ferramenta matemtica
natureza (mecnica) do problema afrontado. Podemos falar de uma aproximao da
matemtica em relao ao movimento, natureza. Essa aproximao produz uma maior
assemelhao entre ambos: a matemtica adquire propriedades e passa a ser exprimida com
categrias do movimento, e viceversa. Isso, digamos, direciona a flexibilizao da matemtica,
a qual, portanto, no arbitrria, mas atende a um propsito bem explcito, ou seja, a
ferramenta que deriva da possui umas propriedades especficas, ideal para trabalhos de um tipo
determinado; mas nada impede, porm, que ela seja utilizada para tarefas afins. Ainda que se
efetive por vias tcnicas, a geometrizao do movimento pressupe uma harmonia entre
matemtica e natureza, expressa na clebre frase que reconhece na matemtica o idioma da
natureza, que, como cosmologia, no nem aristotlica nem platnica, mas prpria de Galileu,
e porque no dizer, prpria da cincia moderna.
7 A resistncia de se aceitar a ideia de composio dos movimentos extrapola, enquanto problema, o campo da Mecnica. Falando aristotelicamente, o movimento no se compe, mas se divide em uma etapa violenta e outra natural, no caso dos projteis. Mais tarde, no Renascimento, Tartaglia e Benedetti introduzem uma etapa intermediria na qual os dois tipos de movimento se misturam, produzindo uma trajetria que equivale a um arco de circunferncia, antes e depois da qual o movimento se d em linha reta, violento e ascentende na primeira, natural e descendente na segunda. O princpio da composio dos movimentos devedor, epistemologicamente, de um princpio de Relatividade, o qual recebe uma primeira formulao, insatisfatria, com Copernico. Trata-se da relatividade ptica, que, como tal, epistemolgica no mecnica, entre outros motivos, porque falta-lhe isolar a noo de sistema fsico, falta-lhe conceber o movimento como um estado-relao, indiferente no s ao mvel, mas tambm a todos os outros movimentos: dois movimentos nunca se molestam, o que no ocorre na fsica aristotlica, onde dois movimentos constrangem-se sempre (KOYR 1986, pp. 202, 211).
22
-
Este esboo da cincia do movimento de Galileu serve tambm para avaliar a dimenso
do rompimento em relao tradio peripattica. Para comear, a mecnica de Galileu no
rompe com a tradio medieval como um ex novo, mas como uma inverso valorativa em
relao a algumas categorias epistemolgicas. Sua mecnica geomtrica o que quer dizer
quantitativa e no qualitativa ou finalista, como a que era feita ento e que encontrou em
Tartaglia seu pice e seu limite. A inverso se d mantendo o arcaboo metodolgico: o modo
de indagar a natureza experimental. A mudana, aqui, no foco. Explicitamente, o empirismo
de Galileu ativo, no ingnuo. Ele desconfia dos sentidos: nem sempre o que se v, . Dai a
busca por instrumentos que aprimorem os sentidos: o relogio ele utilizou-se do prprio pulso
para tal fim , o telescpio, etc.
Mas deixemos temporariamente o perodo de Galileu e voltemos ao relato da histria da
mecnica, concretamente ao perodo de Newton, desde o qual teremos mais e melhor
perspectiva sobre o perodo anterior.
1.2 A geometrizao do tempo
De modo geral, o mtodo de Newton semelhante ao de Galileu: racionalizao da natureza
atravs da geometria. O ganho advm da geometrizao do tempo, alm daquela do espao, a
qual exige a aplicao de uma tcnica de operao matemtica que ele chama de mtodo da
primeira e ltima razes de quantidades, que no mais que a operao de limite. Passemos
imediatamente grande obra de Newton. No livro I do Principia, mais do que a enunciao
clara e definitiva das leis do movimento, chama mais a ateno, por seu uso exaustivo e
fecundo, a aplicao de tal mtodo e a geometrizao do movimento que ele permite8.
Indo proposio I da seo II, deparamo-nos com a segunda lei de Kepler, enunciada
da seguinte forma: as reas que os corpos que giram descrevem por meio de raios traados at
um centro de fora imvel situam-se nos mesmos planos, e so proporcionais aos tempos nos
quais elas so descritas (NEWTON 2002, p. 83). A demonstrao da mesma e os corolrios
que seguem dela, exemplificam magistralmente o que foi dito no anterior pargrafo. De fato, na
figura abaixo, o corpo em questo descreve, pela sua fora inata, isto , por inrcia, a linha reta
AB. Em B atua imediatamente sobre o corpo uma fora de atrao com centro em S, que o
8 No preciso, na verdade, mais do que as primeiras trs sees do livro I para perceber isso, que, por sorte, coincide com o que o prprio Newton aconselhava ler mesmo a leitores no muito habituados s matemticas (BRACKENRIDGE 1995, p. 3-4).
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-
desvia de sua linha reta Bc para a linha reta BC. Por suposio, o tempo para percorrer Bc seria
o mesmo empregado para percorrer AB. O termo fora inata bem apropriado pois permite
recorrer ao corolrio I de Axiomas ou Leis do Movimento: um corpo, submetido a duas
foras simultaneamente, descrever a diagonal de um paralelogramo no mesmo tempo em que
ele descreveria os lados pela ao daquelas foras separadamente (Idem, p. 55). Ao movimento
por inrcia corresponde uma fora, uma fora inata, que, diferentemente da tradio aristotlica,
no se consome com o movimento, mas apenas com outra fora, uma fora motora imprimida e
contrria inata. Isso uma consequncia da segunda lei a mudana de movimento
proporcional fora motora imprimida, e produzida na direo da linha reta na qual aquela
fora imprimida (Idem, p. 54), que inseparvel da primeira lei ou lei da inrcia.
Dessa forma, o corpo desviado em B chega a C depois do mesmo tempo que empregaria para
alcanar o ponto c. Agora se trata de comparar as reas dos tringulos SAB e SBC. Claramente,
os tringulos SAB e SBc possuem reas iguais visto que as bases, AB e Bc, e as lturas, SA para
ambos, so iguais. O mesmo raciocnio vale para os tringulos SBc e SBD: ambos possuem a
mesma base SB e a mesma altura BC, dado que Cc e BV, segmento de SB, so paralelos.
Portanto, os tringulos SAB e SBC so iguais. O mesmo pode ser dito em relao ao tringulos
SCD, SDE e SEF. A demonstrao, no entanto, no termina aqui. Agora, na verdade, comea a
contribuio propriamente newtoniana ao problema: faa o nmero daqueles tringulos
aumentar, e suas larguras diminurem in infinitum, e seu permetro final ADF ser uma linha
curva. Portanto, a fora centrpeta, pela qual o corpo continuamente retirado da tangente dessa
24
S
A
B
C
D
EF
Z
V
c
d
ef
-
curva, atuar continuamente; e quaisquer reas descritas SADS, SAFS, que so sempre
proporcionais aos tempos em que so descritas, sero, tambm neste caso, proporcionais
queles tempos (Idem, p. 84). Fica assim demonstrada a lei de Kepler9.
Como se viu, para esta demonstrao imprescindvel uma clareza conceitual no que se
refere ao movimento. Suas leis, principalmente as duas primeiras leis de Newton, caracterizam-
no de um modo bem preciso, ou seja, segundo categorias quantitativas e no qualitativas como
vigente em tempos passados. Em concreto, na demonstrao acima oferecida, o corpo continua
em movimento retilneo e uniforme por inrcia no trecho AB e seguiria com o mesmo se
uma fora no o desviasse. A clareza conceitual manifesta-se tambm na relao quantitativa
entre movimento e fora: a segunda lei de Newton estabelece a proporcionalidade entre fora
motora imprimida e a variao do movimento, o que se faz observar na composio Bc e Cc
que equivale a BC e na identificao de Cc ou BV com a fora motora, que, como fora central,
dirige-se para S. Dessa forma, o conceito de fora deixa de ser um instrumento til somente
Esttica, conquistando agora um lugar tambm na Dinmica, e no um lugar qualquer, mas um
de grandeza primeira. A Mecnica, como cincia que tem em conta a origem do movimento,
conhece ento sua primeira formulao dinmica. Os problemas podem agora ser encarados a
partir de uma matriz conceitual completa e coerente. Os avanos so ntidos, os quais, em boa
parte, decorrem da quantificao do mpeto que antes pertencia, na opinio de Galileu, ao reino
das fantasias relativas s causas da acelerao natural. A coeso lgica conseguida com a
introduo do conceito quantizvel de fora na teoria de Newton que faz com que sua teoria
seja uma teoria, e no um apanhado de raciocnios, argumentos, dados, estratagemas e
resultados para justificar, fundamentar, mostrar, comprovar e explicar leis empricas, mtodo
utilizado praticamente pela totalidade dos autores das obras sobre mecnica, inclundo Galileu e
Kepler. A fantasia vem em parte dissolvida na mensurabilidade do novo conceito. Mas somente
em parte visto que, conceitualmente, a fora, como interao distncia, ser rejeitada pelos
mecanicistas cartesianos, contemporneos de Newton. Dois sculos depois, outro aspecto
fantasioso associado ao conceito de fora ser explorado e criticado na mecnica newtoniana: a
existncia de um referencial privilegiado de acordo com o qual o espao e o tempo so
assumidos como absolutos. Por isso que a mensurabilidade dissolve somente parte dos
aspectos fantasiosos associados s causas do movimento acelerado.9 As leis de Kepler possuem um alcance restrito, isto , so referidas somente aos planetas seis eram os
conhecidos na poca do sistema solar que descrevem uma trajetria elptica em torno do Sol. A generalizao das mesmas a qualquer movimento sob ao de uma fora dirigida a um centro fixo, em concreto da segunda, feita por Newton em 1679.
25
-
A mecnica newtoniana metodologicamente comprometida com uma metafsica das
causas do movimento, o qual no pode ser descrito se a fora resultante atuante no
conhecida10; ou viceversa, fato que se revela como uma petio de causa: dado um movimento,
qual a fora que faz com que o objeto realize este preciso movimento? A fora torna-se,
epistemologicamente, a explicao, nos moldes da causa sive ratio de Descartes (a discordncia
entre newtonianos e cartesianos no se d no nvel epistemolgico, mas metafsico). Para
ambos, Descartes e Newton, as teorias fsicas devem explicar e no apenas descrever. Teorias
explicativas precisam arrastar consigo um peso (metafsico), que no consiste necessariamente
em uma teoria da matria ou na entizao das foras da natureza, mas em atribuir ao efeito
(movimento) uma causa eficiente (fora). Este peso no uma espcie de apndice, o qual
poderia ser extirpado. No se trata de algo agregado, ou uma parte de um todo. a prpria alma
da teoria: explicar dar a razo, dizer a causa, tenha esta entidade metafsica ou apenas
epistemolgica. Para eles, no aceitvel menos das cincias naturais. Tal concepo do
trabalho cientfico influenciaria pesadamente os sculos seguintes. No sem razo, pois tal
concepo que havia possibilitado construir um sistema terico mais coerente e lgico, que,
entre outras coisas, incorporava muitas das realizaes de Galileu e Kepler, como leis empricas
deduzveis dos axiomas da mecnica sob condies concretas e, portanto, precisveis e
corrigveis pelo sistema terico fundado por Newton. Nesta linha, o que proposto e feito por
Newton no contradiz, em seu aspecto nuclear, a cinemtica de Galileu e o movimento
planetrio de Kepler. Pelo contrrio, os abarca como casos particulares, apresentando-se assim
como uma sntese superadora, no redutvel a um conjunto de leis empricas11. por motivos
como esse que Duhem lia a histria da Mecnica como uma evoluo e esforou-se por
identificar os elementos associados ao trabalho cientfico que impediram e/ou impediriam
rupturas na histria desta atividade. A crtica que este ltimo autor dirige a Newton no de
haver promovido uma ruptura na mecnica, e sim de haver se equivocado ao enfocar no tanto
o que objeto da fsica, os fenmenos e sua descrio, mas o que objeto da metafsica, a
causa daqueles. Porm, tanto a concepo explicativista quanto a descritivista da cincia
defendem suas posies por meio de argumentos que so metatericos, que no se
fundamentam na prpria teoria desenvolvida, mas em percepes e valores de diversas
naturezas como a teologia, a metafsica, a histria, etc. A necessidade das causas tanto para
10 A ideia de causa que subjaz ao texto aquela clssica, entendendo causalidade como regularidade (cf. PESSOA 2004, p. 7).
11 A teoria de Newton constitui o clssico exemplo de que uma teoria no apenas uma enumerao de leis empricas, como defendia Mach e os empiristas (operacionalistas).
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cartesianos quanto para newtonianos uma prova a mais do influxo da filosofia aristotlica e da
forma mentis clssica sobre a jovem cincia moderna.
A prxima proposio a analisar a VI, da mesma seo II: em um espao livre de
resistncia, se um corpo girar em qualquer rbita em torno de um centro imvel, e em um
tempo mnimo descreve qualquer arco ento nascente; e supondo que o seno verso daquele arco
traado bisseccionando a corda, e estendido de forma a passar pelo centro de fora: a fora
centrpeta no meio do arco ser diretamente como o seno verso e inversamente como o
quadrado do tempo (Idem, p. 91). primeira vista, esta proposio parece incompreensvel. A
dificuldade, porm, encontra-se mais na linguagem geomtrica utilizada e no na complexidade
de conceitos e raciocnios requeridos. Esse , em geral, o grande obstculo leitura desse
clssico das artes humanas que, por sinal, foi e muito mais celebrado do que lido.
Retornando, como foi dito durante a anlise da proposio I, as foras centrpetas so
representadas pelas diagonais menores dos paralelogramos ABCV e DEFZ (Corolrio III da
Proposio I). Estas diagonais menores so o dobro dos senos versos dos arcos duplos descritos
em tempos iguais quando as larguras dos tringulos diminuem in infinitum, ou seja, quando o
permetro ADF aproxima-se de uma linha curva (cf. CHANDRASEKHAR 1995, p. 77). Da
que a fora centrpeta seja proporcional ao seno verso. Para mostrar que esta mesma fora
inversamente como o quadrado do tempo, preciso fazer uma digresso. O lema V da seo I
recorda que as aeas de figuras semelhantes com um lado em comum, homlogos, so
proporcionais aos quadrados desses lados. Em um tringulo retngulo maior ACE, por exemplo,
que contm em si um tringulo retngulo menor
ABD, conforme a figura abaixo, a razo entre as
reas dos tringulos
ABD e ACE dada por ADBD:AECE.
Como os tringulos so semelhantes, ento
AD:BD=AE:CE, o que pode ser escrito como
AD:AE=BD:CE. De onde se conclui que as reas dos tringulos esto como AD:AE ou
BD:CE. Este exemplo vem adaptado a trajetrias curvas atravs do mtodo da primeira e
ltima razes, no lema IX: se uma linha reta AE e uma linha curva ABC, ambas dadas em
posio, cortarem-se uma outra em um ngulo dado, A; e com relao a essa linha reta, em
outro ngulo, BD, CE forem traadas de modo a encontrar a curva em B, C; e s pontos B e C
juntos se aproximam e se encontram no ponto A. Posso confirmar que as reas dos tringulos
27
AE D
CB
-
ABD, ACE, estaro finalmente uma para a outra como os quadrados de lados homlogos
(Idem, p. 76).
O lema anterior, VIII, referente figura ao
lado, afirma, de modo bem intuitivo, que os
tringulos ACE, ABCE e AGE, quando o ponto C
aproxima-se de A, tornam-se semelhantes e iguais
entre si, sendo o lado ABC o arco de uma curva
qualquer, AC a corda deste arco e AG a reta
tangente curva. O passo essencial da
demonstrao consiste na linearizao local: uma
curva, nas proximidades de um ponto, pode ser
identificada com a tangente curva no mesmo
ponto. Se os tringulos ABD e ACE tornam-se
semelhante medida que B e C aproximam-se de A, a situao do exemplo da rea dos
tringulos semelhantes com lados homlogos, acima apresentado, reproduz-se na ntegra: as
reas dos tringulos ABD e ACE esto uma para a outra como os quadrados dos lados AD e AE.
O lema seguinte, X, prope uma leitura do lema IX na qual as grandezas geomtricas so
substitudas por suas correspondentes grandezas cinemticas, no caso, a distncia toma o lugar
da rea dos tringulos e o tempo o lugar dos lados homlogos. Explicitamente: as distncias
que um corpo descreve impelido por qualquer fora finita, seja essa fora determinada e
imutvel, ou continuamente aumentada ou diminuda, esto, exatamente no incio do
movimento, uma para a outra, como os quadrados dos tempos (NEWTON 2002, p. 77). A
demonstrao desse lema, depois do que j visto, no envolve maiores dificuldades. Convm,
no entanto, fazer um pequeno esclarecimento. Newton conhecia bem a fsica do movimento de
Galileu e sabia igualmente qual havia sido o segredo do seu sucesso: conceber a velocidade, em
um movimento uniformemente acelerado, como proporcional ao tempo e no distncia
percorrida como havia conjecturado muitos de seus predecessores. Se assim, em tringulos
semelhantes, s bases podem ser atribudos os tempos e, s alturas, as velocidades. Usando esse
modo de proceder, no apenas se expressa a proporcionalidade entre tempo e velocidade, mas
tambm as distncias percorridas dadas pelas reas dos tringulos so interpretadas
imediatamente como proporcionais aos quadrados dos tempos.
Este fato, que em Galileu restrito a movimentos sob ao de uma fora determinada e
28
A
B
CD
E
F
G
b
c
d
e
f
g
-
imutvel, aplicado tambm a foras variveis desde que o movimento seja considerado
exatamente no incio do desvio de um
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